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Los Juzga un Tribunal, Los Condenamos Todos:
Memrias em conflito nos tribunais argentinos1
Liliana Sanjurjo (UFSCar/UNICAMP/So Paulo)
Resumo
H mais de trs dcadas, familiares de desaparecidos da ditadura militar argentina se
engajam em aes polticas para exigir Justia pelas violaes aos direitos humanos
cometidas durante a represso. Com a anulao das leis de anistia em 2005, abriram-se
os caminhos legais para a responsabilizao penal. Desde ento, as narrativas sobre o
passado entraram definitivamente em cena (e em disputa) nos tribunais do pas. Baseado
em etnografia dos julgamentos de delitos de lesa humanidade na Argentina, o artigo
analisa como vtimas, agentes do Estado acusados de violaes e atores judiciais
converteram os tribunais em lugar privilegiado para a afirmao de sentidos ao passado
ditatorial. Conduzindo uma anlise mais encantada da poltica e seu simbolismo (que
considera a dimenso afetiva e existencial da ao humana), o intuito problematizar
como a cena judicial vem desempenhando-se como espao de luta para a produo do
saber e verdade sobre a ditadura na Argentina.
Palavras-chave: Memria; Ditadura Militar; Direitos Humanos; Poltica
Introduo
No vamos a negociar jams una pena, una condena. Hace 12 aos intentaron
hacer la justicia transicional. Esto viene de Sudfrica, que era que el torturador
se siente junto al torturado para decir: mira, me equivoqu, me dieron
rdenes, te tortur, tenemos que olvidar. Esa es la justicia de amnista, de
perdn y que viene acompaada tambin de la reconciliacin. Tampoco no nos
vamos a reconciliar. Por qu tenemos que conciliarnos con el genocida y con
el torturador? Que el torturador vaya a la crcel, pague lo que tiene que pagar
por este horror que cometi. Tiene que haber justicia. Y la justicia que decimos
es crcel comn a todos los genocidas. La vida y la dignidad de nuestros hijos
no se negocian.2
H mais de trs dcadas, familiares de desaparecidos da ditadura militar
argentina (1976-1983) se engajam em aes polticas para exigir Memria, Verdade e
Justia pelas violaes cometidas durante a represso3. A partir de 2005, com a
1 Trabalho apresentado na 29a Reunio Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN. O paper est baseado em etnografia realizada no mbito de um projeto de
doutoramento junto ao PPGAS/IFCH/UNICAMP, com financiamento da FAPESP. Ver Sanjurjo (2013). 2 Depoimento de Nora Cortias, integrante de Madres de Plaza de Mayo-Lnea Fundadora, registrado em 2 de setembro de 2009 em Buenos Aires. 3 Familiares de Desaparecidos y Detenidos por Razones Polticas, Madres de Plaza de Mayo, Abuelas de
Plaza de Mayo e H.I.J.O.S. (Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio) so
2
anulao das leis de anistia pela Corte Suprema de Justia, abriram-se os caminhos
legais para a responsabilizao penal de agentes do Estado acusados de violaes aos
direitos humanos. Desde ento, as narrativas sobre o passado de violncia entraram
definitivamente em cena (e em disputa) nos tribunais do pas. Seguindo uma tendncia
de crescente judicializao da poltica, processo observado em diversos outros
contextos nacionais, os tribunais federais argentinos se transformaram em palco dos
embates pelas memrias da ditadura no pas.
Com base em etnografia realizada em audincias dos chamados julgamentos de
delitos de lesa humanidade na Argentina, o meu objetivo neste artigo problematizar
como familiares de desaparecidos polticos, sobreviventes da represso, atores judiciais
e agentes do Estado acusados de violaes, por meio das narrativas que enunciam,
converteram os tribunais em lugar privilegiado para a afirmao de sentidos ao passado
ditatorial: em disputa esto os projetos polticos, as palavras, as condutas e a moral de
vtimas e acusados, assim como em questo esto a legitimidade dos julgamentos e a
validade dos princpios jurdicos aplicados. Conduzindo uma anlise mais encantada
da poltica e seu simbolismo que considera a dimenso afetiva e existencial da ao
humana (significados, emoes, o sagrado, moralidades) (Verdery, 1999)4 , o meu
intuito analisar como a cena judicial vem desempenhando-se como espao de luta para
a produo do saber e da verdade sobre a ditadura no espao nacional argentino.
Entre a Verdade Jurdica e a Verdade Histrica
Abertos os caminhos para a responsabilizao penal, o movimento de familiares
de desaparecidos viu nos julgamentos orais e pblicos uma oportunidade nica para a
determinao da Verdade sobre a represso. Iniciadas as audincias judiciais, tal
considerao parece valer no apenas para sobreviventes e familiares das vtimas, mas
tambm para acusados, advogados, procuradores e juzes. No presente nacional, a cena
organizaes de direitos humanos integradas por familiares de desaparecidos da ditadura militar
argentina, definidas como organizaes dos diretamente afetados pelo terrorismo de Estado. 4 Verdery (1996, 1999) prope ampliar o vis analtico da teoria da ao racional a fim de desenvolver
uma anlise da poltica que considere a dimenso afetiva e existencial da ao humana. Tal abordagem
permite ver a transformao poltica como algo alm de um processo tcnico, abarcando o campo dos
significados, das emoes, do sagrado, das moralidades, do no racional. De uma perspectiva
antropolgica, torna-se ainda pertinente analisar a poltica como categoria mica, revelando os sentidos que os sujeitos atribuem s experincias que eles mesmos entendem como polticas, assim como [...]
examinar as relaes que indivduos e grupos estabelecem com a histria, com formas de agir e sentir
identificadas com geraes anteriores, associadas a tradies (Neiburg, 1995, p. 121).
3
judicial vem desempenhando-se como locus central de produo do saber e da verdade
sobre a ditadura. Pode-se assim dizer que, na primeira dcada do sculo XXI, o campo
jurdico converteu-se na Argentina em um dos mais importantes espaos de luta pela
afirmao de sentidos ao passado ditatorial.
Para os familiares de desaparecidos, a funo simblica dos julgamentos
transmitir memrias, bem como atribuir um sentido ao ocorrido. Agustn Cetrangollo,
filho de desaparecido e militante de H.I.J.O.S., considera os julgamentos uma instncia
de reparao para familiares e sobreviventes. Ressalta tambm que os julgamentos aos
genocidas servem como um instrumento para julgar o modelo poltico, econmico e
social implantado pelos militares. Portanto, mais do que determinar a pena e o
castigo, o ritual do julgamento penal cumpriria o papel de difundir valores sociedade e
de consolidar uma memria pblica sobre a ditadura. Da a importncia de publicizao
dos mesmos e a necessidade de respeitar o carter pblico das audincias orais. Alm de
impulsionar estas causas judiciais, o movimento de familiares de desaparecidos vem
promovendo uma ampla campanha para a sua difuso.
No decorrer do debate oral, ao mesmo tempo em que o desaparecimento forado
ganha uma definio jurdica (crime de lesa humanidade), familiares, sobreviventes,
procuradores e advogados buscam o reconhecimento social das vtimas do terrorismo de
Estado. Por meio de seus testemunhos, procuram afirmar as identidades polticas dos
desaparecidos (em contraposio ao que ocorreu durante o Julgamento s Juntas
militares em 1985, quando as histrias de militncia foram intencionalmente omitidas).
Essa novidade deve-se tanto a uma estratgia da acusao (como discutirei logo adiante)
quanto a uma necessidade que familiares e sobreviventes possuem de valorizar as suas
prprias trajetrias polticas, como tambm dos desaparecidos.
Vale salientar que a poltica que envolve a mobilizao da figura dos detenidos-
desaparecidos beneficiada por uma aura de santidade, que se presume que os mortos
tenham, e pela re-sacralizao da ordem poltica que os mesmos sustentaram, como
sugere Verdery (1999). Tal sacralizao aponta para uma qualidade particular dos
mortos enquanto smbolos polticos: funcionam como catalisador de emoes no campo
poltico, estabelecendo conexes com o sagrado. A sua auto-referencialidade mobiliza
afetos preexistentes, evoca sentimentos de perdas pessoais ou a identificao com
aspectos especficos da biografia da pessoa morta. No caso dos detenidos-
4
desaparecidos, essa qualidade potencializada por uma trajetria que os associa a idia
de desaparecimento simblico, sofrimento e vitimizao.
Nessa direo e retomando as proposies de Durkheim (1972) sobre a relao
entre a moral e os sentimentos, Vianna (2005) argumenta que, no contexto das
audincias judiciais, o reconhecimento do sofrimento do outro como algo capaz de
motivar ou justificar uma ao revela tanto a produo de uma leitura do sujeito sobre si
mesmo (colocada em termos morais), quanto organiza as formas pelas quais esse ato
deveria ser lido por outros. Dessa perspectiva, os embates morais (ou entre moralidades)
que ali se do devem ser compreendidos como enunciados socialmente demarcados pelo
sentido moral das aes dos prprios agentes e daqueles com que esto postos em
relao. Os sentimentos expressados (raiva, frustrao, angstia, tristeza, sofrimento),
atravs de sua exposio e reflexo, constituem e compem moralidades, funcionando
como armas para disputas e afirmao de memrias e verdades.
Portanto, nos tribunais, as emoes cumprem um papel persuasivo e ttico
(Bailey, 1993) na medida em que ajudam a legitimar ou deslegitimar aqueles que as
expem. Como aponta Das (1995), a encenao das memrias e a dramatizao pblica
do sofrimento privado no mbito jurdico impe sociedade a necessidade de
reconhecer as mentes e os corpos das vtimas, ao passo que coloca em debate a questo
da culpa e da responsabilizao. Desde que as sociedades contemporneas investiram o
poder judicial de autoridade para pronunciar a Verdade, os tribunais tornaram-se um
espao bastante apropriado para essa encenao.
Segundo afirmam familiares e ativistas, seus testemunhos (filmados e
documentados nas audincias) conformam um material valioso para a construo da
memria coletiva. As sentenas judiciais atribuem legitimidade s suas memrias,
permitindo que assim sejam reconhecidas socialmente. Alm disso, o espao do tribunal
vem constituindo-se como lugar de homenagem s vtimas. Atos so organizados em
frente aos tribunais, principalmente nos dias de incio ou trmino dos julgamentos.
Alguns familiares comparecem assiduamente s audincias, pois entendem ser essa uma
forma de tornar os desaparecidos presentes e de agradecer todos aqueles que aceitaram a
dolorosa tarefa de prestar testemunho.
As audincias judiciais funcionam, desta forma, como um ritual para a
rememorao dos desaparecidos e para o reconhecimento de suas identidades polticas.
Na ante-sala, aps longos anos, reencontros emocionados se produzem entre pessoas
5
que compartilharam a militncia poltica em anos ditatoriais. O pblico est integrado
majoritariamente por familiares, sobreviventes, ativistas de direitos humanos e
jornalistas. Tal como observou Arendt (2008a) em sua anlise sobre o julgamento de
Eichmann em Jerusalm, a maior parte do pblico ali presente j conhece tudo o que h
para saber e no precisa daquele julgamento para tirar suas prprias concluses sobre o
que sucedeu no passado. Ainda assim, familiares e sobreviventes consideram o
julgamento um ato simblico de reparao por crimes que, a partir do momento em que
foram definidos pelas normativas internacionais como de natureza imprescritvel,
impem como dever o ato de memria.
Parece-me assim sugestiva a idia de analisar esses julgamentos como rituais na
medida em que se constituem como [...] tipos especficos de eventos, mais
formalizados e estereotipados e, portanto, mais suscetveis anlise porque j
recortados em termos nativos [...] h uma ordem que os estruturam, um sentido de
acontecimento cujo propsito coletivo, e uma percepo de que eles so diferentes
(Peirano, 2001, p. 8). O drama do desaparecimento forado e da tortura reencenado
narrativamente ao longo do testemunho judicial, podendo ser assim analisado como ato
performativo (Turner, 1974 e 1985) com poder no apenas de argumentao, no
sentido da organizao racionalizada dessa memria e de seu uso para um objetivo
concreto, mas tambm de trazer ritualmente cena o j vivido, de modo que possa ser
partilhado de forma alegrica tambm pelos demais presentes (Vianna, 2005, p. 37).
Logo, nesses julgamentos-rituais, as disputas pelo reconhecimento de uma
verdade jurdica sobre a ditadura revelam como o campo jurdico pode afetar as
relaes de poder e ampliar as prticas sociais de memria. Em 2007, desde que as
anistias haviam sido anuladas na Argentina5, era pronunciada a primeira sentena contra
agentes do Estado responsveis pelo desaparecimento de pessoas durante a ditadura.
Nela, o juiz Carlos Rozanski definiu a represso como um genocdio, deciso que foi
considerada uma sentena histrica pelo movimento de familiares, que celebrou o fato
do tribunal ter validado a sua prpria interpretao sobre o que ocorrera em anos
ditatoriais: um genocdio perpetrado por razes polticas.
Vale salientar que a questo de como tipificar o sucedido deve-se menos a um
problema de variao da pena pois os responsveis j esto sendo condenados com a
5 Para um histrico das leis, decretos, processos judiciais e anistias referentes aos fatos da ditadura na
Argentina, ver Rafecas (2011), Slepoy (2011), Verbitsky (2011) e Yanzon (2011).
6
pena mxima permitida pelo ordenamento jurdico (a priso perptua) do que com a
inteno de afirmar juridicamente que tais delitos foram cometidos num marco social
especfico: o contexto dos massacres massivos e da utilizao de uma tecnologia de
poder na qual a negao do outro encontra o seu ponto limite (o desaparecimento
fsico e simblico da pessoa).
Haveria assim por parte do movimento de familiares uma vontade de
categorizao (genocdio, terrorismo de Estado), que se articula no campo jurdico com
a idia de produo de um discurso de verdade. Diversos atores sociais encontram-se
empenhados em introduzir a figura do genocdio nas resolues judiciais relacionadas
aos crimes da ditadura, trazendo para o mbito judicial a referncia ao genocdio
argentino tal como aparece na vida social. Alguns dos prprios atores judiciais
coincidem com essa proposta:
[] reconocer que en la Argentina tuvo lugar un genocidio es una necesidad
tica y jurdica. Ello por cuanto hace la relacin inseparable del derecho y la
verdad. [] en materia de juzgamiento de delitos de lesa humanidad, el
reconocimiento de una verdad histrica, como las violaciones masivas a los
derechos humanos, adquiere una importancia decisiva para la construccin de
la memoria colectiva (Rozanski, 2011, p. 185).
Em face da restrio dos grupos polticos da jurisprudncia internacional,
alguns procuradores e advogados querelantes vm procurando argumentar que na
Argentina ditatorial o Estado teria praticado o aniquilamento sistemtico de uma parte
significativa do grupo nacional6. A represso no ocorrera de maneira indiscriminada,
mas antes se dirigiu a um grupo social previamente definido, integrado por indivduos
que, de alguma maneira, foram considerados um obstculo para a implantao do
projeto poltico-econmico pretendido pela ditadura. Assim o fez, por exemplo, a
advogada Mirta Mantaras, em setembro de 2009, em sua alegao na Causa I Cuerpo
6 A Conveno para a Sano e Preveno do delito de Genocdio das Naes Unidas, aprovada em
1948, excluiu de sua aplicao os grupos polticos, definindo o genocdio como: todo ato perpetrado
com a inteno de destruir, total ou parcialmente, a um grupo nacional, tnico, racial ou religioso. Essa
excluso seria questionada nos anos 1980 pelo Informe Whitaker, pelos escritos do juiz espanhol Baltazar
Garzn acerca das ditaduras latino-americanas e pelas anlises sobre os tribunais penais internacionais
para os genocdios nos Balcs e em Ruanda. A crtica dirigia-se incluso dos grupos polticos no marco da Conveno a fim de abarcar os massacres massivos cometidos contra grupos definidos em termos
polticos. Para uma anlise sobre o Informe Whitaker e sobre os escritos de Baltazar Garzn, ver
Feierstein (2007).
7
del Ejrcito. O procurador Alejandro Alagia, que atuou na Causa ABO7, tambm se
posicionaria a favor dessa definio (genocdio), argumentando que os fatos do processo
(assassinatos em massa) no estavam previstos no cdigo penal. Por isso, a importncia
desses julgamentos para fomentar a luta pelo sentido e para a atribuio de um
significado verdadeiro ao sucedido.
Embora nesses julgamentos existam diferenas entre os argumentos
apresentados pelas acusaes, procuradores e advogados querelantes coincidem em
caracterizar a represso como um plano sistemtico de tortura e extermnio, elaborado e
executado pelo Estado contra um grupo social especfico, definido segundo critrios
polticos. Tal caracterizao busca tanto defender a necessidade de contemplar os
grupos polticos na figura do genocdio quanto afirmar um sentido particular ao
sucedido. Da que uma das estratgias utilizadas atualmente pelas acusaes seja
explicitar a identidade poltica das vtimas.
No decorrer das audincias da Causa ABO, os advogados querelantes e o
procurador pediram s testemunhas que falassem sobre a sua histria de militncia
poltica (como tambm dos desaparecidos), tanto para qualificar os fatos da represso
como um genocdio contra um grupo poltico quanto para defender os sobreviventes
das perguntas dos advogados de defesa (que procuravam deslegitim-los moralmente
denunciando suas atividades terroristas). Argumentavam que a ditadura militar havia
perpetrado um plano sistemtico de extermnio contra seus inimigos (definidos
politicamente) com o objetivo de reorganizar poltica e culturalmente a nao. Uma
das advogadas utilizou o termo massacres administrativos, termo cunhado por Arendt
(2008a e 2008b), para referir-se ao carter rotineiro e burocrtico do extermnio. Em sua
alegao, proferida em novembro de 2010, o procurador Alagia selecionou alguns dos
testemunhos para discorrer sobre as torturas infringidas contra os sequestrados. Tipicou
essas condutas aberrantes como crimes de lesa humanidade e enfatizou a
continuidade delitiva do desaparecimento forado (reiterando, com isso, a sua
imprescritibilidade), mesmo argumento utilizado pelos procuradores Guillermo Friele e
Felix Croux nas Causas Automotores Orletti e Vesubio, respectivamente.
Mesmo que as acusaes busquem comprovar o carter massivo dos crimes que
so objeto desses processos penais, a responsabilizao aparece de forma
7 Tratava-se uma causa que investigou os crimes cometidos em trs centros clandestinos de deteno de
Buenos Aires (Club Atltico, Banco e El Olimpo), que funcionaram como um circuito repressivo, sob
controle do I Corpo do Exrcito, entre os anos de 1976 e 1979.
8
individualizada, assim como as causas so estruturadas pela somatria de delitos
individuais (privao ilegtima da liberdade, tortura, homicdio, estupro, apropriao de
menores) contra pessoas tambm particulares, uma vez que o crime de genocdio no
encontra tipificao no cdigo penal argentino. Tendo isso em vista, uma parte dos
procuradores e advogados querelantes requer a presena de uma norma que permita
introduzir o genocdio no ordenamento jurdico. Defendem ainda que esses processos
penais sejam organizados circuitos repressivos, tanto para racionalizar os julgamentos
(evitando a abertura de inmeras causas individuais) quanto para evitar que as vtimas
sejam convocadas a prestar infinitas declaraes testemunhais.
Por outro lado, a advogada e militante de H.I.J.O.S., Ana Oberln, destacaria a
complexidade destes processos penais devido quantidade de vtimas e acusados,
questo do limite biolgico (acusados e testemunhas j falecidos ou com problemas
de sade), bem como sua repercusso social. Existiria ainda uma enorme dificuldade
em reunir provas trinta anos depois de transcorridos os eventos. O objeto da
investigao consiste justamente em um sistema clandestino de represso, que se
preocupou em manter suas operaes ilegais da forma mais secreta possvel, dispondo,
para tanto, de uma srie de mecanismos para assegurar a impunidade dos responsveis
vedao das vtimas, utilizao de codinomes por parte dos repressores, destruio e
ocultamento de corpos, locais de deteno, arquivos e documentao.
Por isso, cobra fora nesses processos penais a importncia dos arquivos
vivos. So as memrias de familiares e sobreviventes que se constituem como a
principal prova para a demonstrao de crimes cometidos na mais absoluta
clandestinidade. Procuradores e advogados querelantes buscam salientar essa
particularidade e, ao alegar sobre a dificuldade de recoleo de evidncias materiais,
pedem aos juzes especial considerao pelos testemunhos das vtimas e seu
reconhecimento como provas criminais legtimas. Procuram incorporar ao processo
todo tipo de prova, tais como os arquivos da CONADEP8, livros de autocrtica de
membros das foras repressivas, literatura de testemunho, material de imprensa e,
quando possvel, o prprio corpo delito.
Em suma, o que parece colocar-se nesses julgamentos to particulares a
possibilidade de determinar a verdade jurdica em condies no convencionais de
8 A Comisin Nacional sobre la Desaparicin de Personas (CONADEP) foi criada, em dezembro de
1983, com o objetivo de reunir testemunho e documentos e redigir um informe final relatando as
violaes cometidas durante a ditadura. Ver Conadep (2009).
9
exerccio das regras da prova. Na ausncia do flagrante delito ou de evidncias
materiais, recorre-se ao inqurito, procedimento que convoca todos que podem, sob
juramento, garantir que viram e que sabem. So os testemunhos daqueles considerados
capazes de saber seja por sua sabedoria (testemunhas de conceito) seja por ter
presenciado o acontecimento (testemunhas presenciais) que permitem determinar se
algo realmente aconteceu. Ao converter-se num procedimento legtimo de autenticao
e transmisso da verdade, o inqurito constitui-se como uma forma poltica de exerccio
do poder9.
Nos julgamentos de delitos de lesa humanidade na Argentina a enunciao da
verdade deriva, sobretudo, de um conhecimento de ordem retrospectiva, pautado no
testemunho, um saber produzido por meio do inqurito e da lembrana, o que revela o
peso da memria das vtimas no processo de construo da verdade jurdica. Suas
memrias sustentam a prtica jurdica, ao passo que produzem o saber sobre a ditadura.
E se as audincias orais levam ritualizao do sucedido atravs das narrativas
daqueles que sabem, que viram ou que viveram em carne prpria , o tribunal
transforma-se em espao no apenas para a afirmao da verdade, mas tambm para o
seu questionamento. Em disputa esto as palavras, as condutas e a moral de vtimas,
acusados, procuradores e juzes, assim como em questo esto a legitimidade do prprio
julgamento e a validade dos princpios jurdicos aplicados.
Pela Memria, Verdade e Justia: testemunhos de sobreviventes
Como na tragdia de dipo-Rei, a idia de que a testemunha, mediante a
enunciao da verdade, pode vencer os poderosos e de que o povo, atravs do processo,
conquista o direito de julgar quem o governa (Foucault, 1996), parece estar no centro
das consideraes de sobreviventes e familiares de desaparecidos da ditadura argentina.
O ato de testemunhar e de exigir Justia colocou-se como um dever, quando em tempos
ditatoriais familiares saram a denunciar os sequestros e sobreviventes apareceram para
narrar, em primeira pessoa, a experincia do horror vivida nos centros clandestinos de
deteno. Como aponta Agamben (2008), se mrtir a palavra grega para testemunha,
9 Como analisa Foucault (1996), as prticas judicirias estabelecem diversos procedimentos de pesquisa
da verdade, que definem formas racionais da prova e da demonstrao (como produzir a verdade, em que condies, de que forma observar e quais regras aplicar). As prticas judicirias incluem ainda a arte
de persuadir, [...] de convencer as pessoas da verdade do que se diz, de obter vitria para a verdade ou,
ainda, pela verdade (Foucault, 1996, p. 54).
10
termo que deriva do verbo recordar, a vocao do sobrevivente no pode ser outra seno
a da memria. Enquanto alguns se calam diante de uma lembrana que se sente
insuportvel, outros percebem no encarceramento o centro de suas vidas, como coloca
Primo Levi (1990). Estes ltimos consideram-se testemunhas de algo que os desautoriza
esquecer e silenciar, pois so fatos com uma dimenso muito maior do que o da prpria
existncia.
Para muitos aparecidos-sobreviventes e familiares de desaparecidos da ditadura
argentina, a memria converteu-se em um bem e um dever, ao passo que se lhes
apresenta como uma necessidade jurdica, moral e poltica (Sarlo, 2007). Se as
autoridades militares silenciavam, ocultavam ou negavam o ocorrido, as narrativas dos
afetados impuseram-se como a matria-prima para a construo da memria sobre o
passado ditatorial. Passadas mais de trs de dcadas de luta pela memria, suas vozes
manifestam-se novamente como uma necessidade. Desta vez, seus testemunhos
conformam a base das provas dos julgamentos penais e servem de fundamento para a
determinao da verdade jurdica sobre a ditadura. O testemunho no tribunal
transforma-se assim num ato para o reconhecimento das vtimas e de suas palavras.
Alguns se apresentam como parte querelante e se dirigem espontaneamente ao tribunal,
pois fizeram do testemunho e da demanda por Memria, Verdade e Justia um
compromisso existencial e poltico. Outros comparecem receosos, com medo de sofrer
represlias ou de ver suas condutas passadas submetidas a julgamento moral.10
Graciela Daleo, uma sobrevivente da ESMA11
que integra a Asociacin de Ex
Detenidos-Desaparecidos, converteu a memria numa obrigao. Ex-militante da
organizao Montoneros, ela trabalha para impulsionar as Causas de Direitos Humanos
e vem testemunhando desde os anos 1980. Graciela afirma que a sua sobrevivncia se
traduziu no compromisso de narrar o que viveu e defende a necessidade de reconhecer o
lugar simblico das condenaes penais, assim como do Direito como um espao de
luta poltica. Em seus testemunhos, Graciela empenha-se em desconstruir o estigma
que, ainda hoje, pesa sobre os sobreviventes dos centros clandestinos de deteno
argentinos.
10 O receio em testemunhar no seria infundado, sobretudo aps o desaparecimento de Jorge Julio Lpez.
Lpez, que havia sobrevivido ao cativeiro durante a ditadura, desempenhava-se como uma das principais
testemunhas de uma causa contra um repressor na cidade de La Plata. Ele voltaria a desaparecer em setembro de 2006; dessa vez, em pleno regime democrtico e definitivamente. 11 A Escuela Mecnica de la Armada (ESMA), localizada em Buenos Aires, foi um dos principais centros
clandestinos de deteno da ditadura militar argentina.
11
El balurdo que nosotros cargamos sobre las espaldas tambin fue ste: si ests
vivo por algo ser...; si conts el horror lo multiplics, si te lo calls, qu sos?,
un servicio porque no lo decs?, y adems ests quitando la posibilidad de
la construccin de la verdad y la lucha por la justicia. [] todas estas cosas
confluyen en la cuestin de que el campo de concentracin era la muerte, de all
slo poda salir la muerte, o sea, nadie (Daleo, 2001, p. 109).
Cabe salientar que uma das vozes mais negadas durante as dcadas de 1980 e
1990 na Argentina foi a dos sobreviventes. Em contraposio heroicidade e inocncia
atribudas aos detenidos-desaparecidos que nunca regressaram, sobre essa minoria de
aparecidos-sobreviventes recaiu o estigma de colaboradores, delatores, cmplices ou
traidores, processo atrelado confuso de papis entre vtimas e algozes dentro dos
centros clandestinos de deteno. Junto ao sentimento de culpa pela sobrevivncia (por
algo ser sobreviveu), aos aparecidos restou o silncio. Enquanto os familiares podiam
narrar e interpretar o que sucedera, aos sobreviventes s lhes era permitido relatar as
vexaes corporais sofridas durante o cativeiro. Como forma de proteger o lugar de
vtima to penosamente conquistado, no havia escuta possvel para qualquer referncia
s suas trajetrias de militncia poltica (como tambm no havia para os detenidos-
desaparecidos). Foi somente no final da dcada de 1990 que os sobreviventes
comeariam a aparecer, expondo outras narrativas sobre o passado e afirmando o seu
lugar enquanto representantes de uma gerao e de um projeto poltico que foi alvo da
represso.
A questo do colaboracionismo e da culpa revela-se como um tema clssico da
literatura sobre os sobreviventes dos campos de extermnio nazistas, como aponta
Agamben (2008). Primo Levi (1990), ele mesmo um sobrevivente, refletiu de maneira
primorosa sobre a questo. O autor afirmaria que essa zona cinzenta, habitada pelos
prisioneiros privilegiados ou prisioneiros-funcionrios, teria sido suficiente para
confundir a necessidade dos internos de julgar, ao passo que era demonstrativa do
processo de perda de autonomia do povo judeu, como ironizou Arendt (2008a). Essa
atmosfera de confuso e de suspeita gerada entre os sequestrados aparece nos relatos de
inmeros sobreviventes na Argentina, principalmente daqueles oriundos da ESMA.
Com muita lucidez, alguns aparecidos procuram inverter esse processo de
transferncia da culpa dos perpetradores para as vtimas. Ao mesmo tempo em que
narram sobre o trato desumano que receberam no cativeiro, os sobreviventes querem
demonstrar como jamais estiveram em condio de decidir (nem mesmo sobre a prpria
12
vida ou morte). E se foram propositalmente alocados nessa zona cinzenta da
sobrevivncia foi para gerar suspeitas, propagar o terror12
e impedir qualquer
solidariedade entre os sequestrados: [...] compromet-los carreg-los de crimes,
manch-los de sangue, exp-los tanto quanto possvel: assim contraem com os
mandantes o vnculo da cumplicidade e no mais podem voltar atrs (Levi, 1990, p.
21).
Apesar de acusados, julgados e constantemente forados a justificar-se, so os
sobreviventes (mais do que os familiares) que podem melhor contribuir para a
reconstruo da face mais secreta da represso. Nas audincias judiciais, eles se
esforam para transmitir o que viram e viveram nos centros clandestinos, mas tambm
para conferir legitimidade s suas narrativas. Em sua declarao no Julgamento as
Juntas Militares, Graciela Daleo quis enfatizar a enorme distncia existente entre
repressores e sequestrados que, como forma de negociar a sobrevivncia, haviam
desempenhado diversos tipos de tarefa no cativeiro.
Em outubro de 2010, no mbito da Causa ESMA, a sobrevivente Mara Milesi
iniciaria o seu relato identificando-se como uma ex militante da Juventud Peronista. Ela
ento contou sobre a sua condio fsica e psquica durante o cativeiro, sobretudo
quando viu seu filho (que tinha apenas quatro meses de vida) ser levado para uma das
sesses de tortura. Disse que permaneceu isolada, vendada e algemada durante meses,
at ser levada para trabalhar no subsolo da ESMA, onde cumpriria com muita culpa a
tarefa de falsificar documentos. Procurando culpabiliz-la pela sobrevivncia, os
advogados de defesa questionaram se ela saberia explicar por que havia sido liberada ou
levada para trabalhar no escritrio de falsificao. De forma incisiva, Mara respondeu
que no existira nenhuma lgica naquele lugar e que a inteno era enlouquecer,
quebrar e romper com qualquer lao de confiana entre os prisioneiros. Mara
finalizaria o seu depoimento afirmando que o seu testemunho significava uma dolorosa
volta ao passado, mas que reconhecia a sua importncia para a luta por Justia.
Vale aqui relevar, seguindo Pollak (2006), as particularidades do testemunho
produzido no mbito judicial. Trata-se, em primeiro lugar, de um protocolo formalizado
(nmero de ata, nmero do processo, data e hora de chegada da testemunha, seu nome,
data de nascimento, profisso, etc.). Em segundo lugar, esses testemunhos somente
12 Sobre a relao entre narrativa, violncia e dominao, Taussig (1983, 1995) afirma que as culturas do
terror se nutrem do silncio, do rumor, da fantasia e do mistrio, ao passo que, paradoxalmente, o algoz
precisa da vtima para produzir verdade, objetivando suas fantasias no discurso do outro.
13
podem acontecer aps a clssica frmula jurdica a testemunha jura que as
declaraes ditas correspondem a verdade. A testemunha est, portanto, sujeita a
penalizaes. Alm de submetidas a esse tipo de coao, o testemunho judicial
encontra-se determinado pelo destinatrio que o solicitou e restrito a um nmero
limitado de acontecimentos em resposta a perguntas precisas.
Em uma das audincias da Causa ESMA, por exemplo, realizada em outubro de
2010, ficou ntido o incmodo da sobrevivente Mara Adela Pastor quando foi lembrada
pelo tribunal de que poderia ser penalizada em at dez anos de priso caso mentisse. Ela
tambm se viu obrigada a responder se possua algum interesse especial sobre pessoas
que eram parte do processo (vtimas ou acusados). Aps esse constrangimento inicial,
ela foi submetida a um longo interrogatrio sobre as condies dela e de seu
companheiro Jorge Caffati (ainda desaparecido) durante o cativeiro. Ao final de sua
declarao, fez questo de afirmar que tinha sido uma militante popular peronista e
que se sentia orgulhosa de ter lutado por justia social e liberdade.
Observa-se assim como, no contexto do tribunal, o testemunho torna-se
fragmentado tanto pelo procedimento judicial quanto pelas perguntas de advogados,
procuradores e, eventualmente, juzes. Antes de tudo, o testemunho deve transformar-se
na evidncia de um crime. Por isso, a testemunha tende a desaparecer atrs dos fatos do
processo, j que se trata de estabelecer a verdade. Como analisa Pollak (2006), as
declaraes levam assim a marca dos princpios da administrao da prova jurdica:
limitao ao objeto do processo, eliminao de elementos considerados externos, de
modo que se possa oferecer uma perspectiva justa e verdadeira sobre a realidade.
O depoente deve assim conter suas emoes (mesmo diante das narraes mais
dolorosas e privadas), ao passo que v a sua memria sob constante questionamento,
quando no o v a sua prpria legitimidade como testemunha sobretudo os
aparecidos-sobreviventes, considerados testemunhas suspeitas e politicamente
interessadas.
Durante as audincias da Causa ABO e Causa ESMA, no apenas advogados
defensores, mas tambm o pblico de familiares e sobreviventes colocariam em questo
a credibilidade e a moral das testemunhas. J as defesas, alm de demandarem a
apresentao de evidncias materiais, exigiam dos sobreviventes que diferenciassem
nitidamente os fatos que realmente haviam presenciado dos fatos que haviam
reconstrudo atravs de fontes ou narraes alheias. Exigir que as testemunhas no
14
tivessem conversado entre si ou que suas memrias no tivessem sofrido com a
influncia do tempo e dos relatos que leram e escutaram como procuraram alegar as
defesas na Causa ABO seria como decretar a impossibilidade desses julgamentos.
Passados mais de trinta anos dos eventos que so objeto desses processos penais,
as vtimas se organizaram em coletivos para intercambiar, denunciar e produzir
informao; contaram, escreveram e publicaram suas memrias, assim como se
dispuseram a todo tipo de suporte que pudesse comportar suas memrias. Alm do
mais, dificilmente suas declaraes poderiam limitar-se ao objeto dos processos ou
gozar da devida iseno poltica, como estabelece a norma jurdica. Na medida em
que as audincias orais e pblicas (atravs do ato de testemunhar) so concebidas como
uma instncia de reparao para familiares e sobreviventes (conforme acordado entre
afetados, executivo e judicirio), tornou-se inevitvel que as vtimas no transformem o
seu dia de Corte numa ocasio para colocar (publicamente e diante dos acusados) suas
consideraes sobre a poltica ou para afirmar no puderam nos quebrar, no nos
derrotaram.
Se em 1985, no Julgamento as Juntas Militares, os sobreviventes precisaram
ocultar suas identidades polticas ou explicar porque haviam sido sequestrados (e
tambm sobrevivido), a partir de 2005, os tribunais converteram-se em momento
privilegiado para a afirmao de suas militncias polticas13
. Cabe problematizar ento
as condies que fazem possvel o testemunho, assim como revelar as coaes
estruturais que esto na origem do silncio, como sugere Pollak (2006). Enquanto nos
anos 1980 os sobreviventes estavam sujeitos ao processamento penal por aes
terroristas, e sobre eles recaa a responsabilizao pelo massacre e o estigma de
colaboradores, atualmente reconhece-se, em grande medida, o seu lugar como
militantes de uma causa justa e a importncia de seus relatos para a construo da
memria.
Os testemunhos de familiares e sobreviventes nesses julgamentos traduzem a
vontade dos mesmos de tornar pblica a palavra, ao passo que revelam um contexto que
os autoriza a expressar suas militncias por meio de narrativas centradas em certos
personagens e acontecimentos. Suas memrias se vem, desta forma, dotadas de uma
esfera de interesse ampliada, interesse que varia de acordo com a notoriedade da pessoa
13 Para uma discusso sobre a despolitizao do relato sobre a ditadura durante o julgamento s Juntas
militares, ver Crenzel (2008), Feld (2002) e Jelin (2008).
15
e da sua valorizao enquanto testemunha legtima e impoluta. Tal processo revela
ainda um contexto de grande desprestgio daqueles que participaram da represso ou
que procuram justific-la.
Nas audincias judiciais, algumas vtimas so consideradas testemunhas
exemplares, tais como as lideranas do movimento de familiares de desaparecidos ou os
sobreviventes que puderam alcanar um observatrio privilegiado dentro dos centros
clandestinos (sem que com isso perdessem o seu atributo de vtima impoluta).
Principalmente os testemunhos daqueles que foram destacados militantes polticos
gozam de um interesse especial por parte do pblico e das acusaes, no s porque
disporiam de ferramentas para interpretar politicamente o que viram, mas tambm
porque (como ex-combatentes) vem no testemunho um ato de guerra contra o
fascismo e a injustia, a favor da memria.
Assim ocorreu durante a declarao de Jaime Dri, sobrevivente da ESMA e um
conhecido militante peronista da organizao Montoneros. A sua notoriedade deve-se
tanto ao fato de ser o nico sequestrado da ESMA que conseguiu fugir (e sobreviver
fuga) quanto ao fato de sua histria ter se transformado num dos mais clebres
romances de testemunho do contexto ps-ditatorial argentino14
. Dri viria especialmente
do Mxico (pas onde reside desde que se exilou) para declarar na Causa ESMA em
dezembro de 2010, num dia em que a platia era visivelmente mais numerosa do que o
habitual. Ele encerraria o seu testemunho demandando a Verdade sobre o destino de
cada um dos detenidos-desaparecidos e proferindo um discurso inflamado sobre o papel
da juventude no proceso poltico de liberacin.
Fica patente como a poltica ocupa o centro das consideraes de vtimas e
acusados nesses julgamentos. O conflito poltico passado se v reatualizado e
ritualizado nos tribunais argentinos por meio das memrias daqueles que se enfrentaram
em tempos ditatoriais. Enquanto sobreviventes e familiares de desaparecidos buscam
destacar a qualidade moral das vtimas do terrorismo de Estado e afirmar um sentido
ao sucedido (genocdio por razes polticas, terrorismo de Estado), os imputados
tambm usam o seu dia de Corte para reivindicar uma Memria Completa e ressaltar
o valor de seus combatentes nessa guerra travada pelo bem maior da nao. Desta
forma, os rus buscam oferecer uma memria alternativa sobre a ditadura, justificar suas
aes, ao passo que colocam em questo os processos penais em curso.
14 Trata-se do livro Recuerdos de la Muerte de Miguel Bonasso (1984).
16
Por uma Memria Completa: a narrativa militar
H tempos as autoridades militares argentinas vm servindo-se de duas
categorias, que desempenham papel proeminente na jurisprudncia dos julgamentos de
criminosos de guerra, para justificar moralmente a represso ditatorial. Seriam elas as
noes de Atos de Estado e Atos por Ordens Superiores. Como coloca Arendt
(2008b), a noo de Atos de Estado fundamenta-se na proposio de que, em
circunstncias extraordinrias, governos soberanos podem ser forados a fazer uso de
meios criminosos diante de uma situao na qual a sua sobrevivncia se v ameaada
(seria o equivalente ao crime que o indivduo comete em legtima defesa).
Desde os anos 1980, os militares argentinos apelaram para o argumento do mal
menor ou do mal necessrio para defender o atuado. Entre dois males (baixas na
populao civil ou a vitria da subverso), coube ao Estado optar pelo mal menor
(baixas e derrotar a subverso) para garantir o futuro da nao. Desta forma, os
implicados na represso discorrem sobre suas aes atrelando a noo de Atos de
Estado a um discurso que afirma a existncia de uma guerra travada contra o inimigo
subversivo, que colocara em risco a continuidade do verdadeiro ser nacional. Nas
narrativas castrenses, a ditadura ento definida em termos de guerra anti-subversiva,
luta contra a subverso/terrorismo, guerra no convencional, guerra anti-
revolucionria, guerra fratricida, guerra interna. Pautados numa retrica que combina
o discurso da guerra dicotomia amigo-inimigo, os militares procuram reivindicar o
atuado e justificar a represso.
Assim o fez o capito da Marinha Jorge Acosta, no contexto de sua alegao na
Causa ESMA, em outubro de 2011. Acosta usaria o seu direito defesa para afirmar
publicamente uma verso alternativa sobre o passado. Recorrendo aos escritos de Che
Guevava, de organizaes armadas argentinas e aos testemunhos brindados pelas
vtimas durante o julgamento, ele se apresentou como um combatente de uma
guerra interna travada contra o beligerante inimigo subversivo. Afinado com o
projeto poltico do Processo de Reorganizao Nacional, como foi auto-proclamado
o governo militar, orgulhava-se de ter participado de uma guerra levada a cabo pelo
17
bem da nao, mas tambm em nome de Deus e da filosofia ocidental e crist
contra o atesmo marxista15
.
Em dezembro de 2010, no dia do pronunciamento da sentena de um julgamento
em Crdoba, o ex-ditador Jorge Rafael Videla tambm faria uso de seu direito ltima
palavra para reivindicar o atuado. Videla defendeu a legalidade do emprego das Foras
Armadas para combater e exterminar o terrorismo subversivo no marco de uma
guerra interna iniciada pelas organizaes terroristas. Segundo ele, o atuado
estaria previsto legalmente no Plano de Capacidades Internas e no Cdigo de Justia
Militar. Para o ex-ditador, tratou-se de uma guerra justa em defesa da Ptria, porm
uma guerra irregular cujo signo distintivo teria sido a impreciso. Nessa mesma
ocasio, Videla assumiu suas responsabilidades castrenses e defendeu, diante do
povo argentino e das Foras Armadas, a honra da vitria na guerra interna. Disse
ainda lamentar as mortes, as seqelas que deixam toda guerra e deplorar a
especulao do sofrimento alheio atravs do uso escuso de alguns da bandeira dos
Direitos Humanos.16
Como demonstram as alegaes de Videla, uma parte da corporao militar no
nega que seus quadros possam ter sido responsveis por atos atrozes durante a
represso, mas os justificam como sequelas, erros, excessos, impreciso ou equvocos
(fatos supostamente inevitveis s guerras) cometidos no contexto de uma ao
legtima. Os militares no foram sdicos ou criminosos, tal como as vtimas e a
acusao procuram afirmar nos tribunais (e fora deles), mas oficiais empenhados numa
ao histrica e grandiosa em nome da nao argentina.
Enquanto os implicados na represso se voltam para o argumento de Atos de
Estado e da guerra e suas sequelas para justificar o atuado, tambm recorrem noo
de Atos por Ordens Superiores. Videla alegaria a inocncia de seus subordinados,
militares que teriam se limitado a cumprir ordens ajustadas Doutrina ento vigente,
argumento repetido inmeras vezes pelos prprios oficiais subalternos nas audincias
judiciais: como bons e fiis soldados, cumpriram as ordens que lhes haviam sido
determinadas por seus superiores e pelas normativas de ento (Constituio Nacional e
15 Declarao de Jorge Eduardo Acosta durante audincia da Causa ESMA, em 20 de outubro de 2011, no
Tribunal Federal de Buenos Aires. Acosta (condinome Tigre) integrou o Grupo de Tarea 33.2 da
ESMA. 16 Jorge Rafael Videla, em 21 de dezembro de 2010, em julgamento na cidade de Crdoba. Tratava-se de
uma causa penal que investigara o fusilamento de 31 presos polticos na Unidad Penitenciaria No. 1 de
Crdoba.
18
regulamentos militares), embora admitam a dificuldade de tirar concluses vlidas
sobre a legalidade ou a ilegalidade dos procedimentos.17
Em contrapartida, as
acusaes buscam refutar o argumento da Obedincia Devida, alegando que nenhum ser
humano estaria moralmente autorizado a executar uma ordem claramente criminosa. Os
advogados querelantes na Causa ABO, por exemplo, recorreram ao testemunho de um
jovem guarda, que declarara que sempre soubera que se tratava de uma situao ilegal
e desumana.
Ao mesmo tempo em que o argumento de Atos de Estado, Atos por Ordens
Superiores e a retrica da guerra e seus excessos servem de fundamento para as
defesas, os imputados procuram questionar a Memria difundida pelo movimento de
direitos humanos e validada pelo Estado. No mbito da Causa ESMA, em outubro de
2011, o clebre capito da Marinha Alfredo Astiz afirmaria que as sequelas da guerra
haviam sido ressuscitadas pelos ilegtimos querelantes, pelo governo Kirchner e
por grupos fundamentalistas movidos pelo dio, ressentimento, intolerncia e
vingana18
. Jorge Acosta denunciaria a presena dessa memria cega, aglutinante e
parcial que, segundo ele, fomentaria a diviso e a desunio da Ptria. Se antes seus
inimigos foram terroristas subversivos, hoje eram o governo nacional e os
ativistas de direitos humanos, grupos que estariam empenhados numa ofensiva
contra as Foras Armadas, promovendo uma campanha revanchista motivada pelo
dio e pela vingana. Se antes a guerra foi travada no campo militar, atualmente a
guerra estava sendo deflagrada no campo psicolgico atravs dos direitos humanos,
da justia, da educao, da cultura e da memria.
O ex-ditador Videla tambm afirmaria essa derrota no campo poltico-
ideolgico. Segundo ele, os militantes teriam se mimetizado na sociedade como
paladinos da defesa dos direitos humanos a fim de instaurar um regime marxista
que prescreve a Constituio Nacional, Constituio que, segundo ele, guarda luto
pela Repblica desaparecida. O ex-ditador definiu a si mesmo como um preso
poltico e aos julgamentos de delitos de lesa humanidade como uma situao de
terrorismo judicial. Encerrou a sua fala dizendo que no pretendia alegar a sua
17 Declarao de Jorge Acosta, durante audincia da Causa ESMA, em 20 de outubro de 2011, no
Tribunal Federal de Buenos Aires. 18 Declarao de Alfredo Ignacio Astiz, durante audincia da Causa ESMA, em 14 de outubro de 2011, no Tribunal Federal de Buenos Aires. Astiz ganharia notoriedade aps se infiltrar no movimento de Madres
de Plaza de Mayo, sendo o principal responsvel pelo desaparecimento de um grupo de madres e freiras
francesas em dezembro de 1977.
19
defesa, mas aceitar aquela injusta condenao como mais um ato a servio de Deus,
da Ptria e da Concrdia Nacional.
Para os acusados, o enfrentamento passado entre a conspirao marxista
subversiva e as Foras Armadas se converteu, no presente, numa batalha entre os
deformadores da Verdade e aqueles que pretendem desmascar-los. Por isso,
decidiram oferecer sociedade uma Memria Completa. Enquanto dentro dos
tribunais alguns rus optam por fazer uso de seu direito defesa para expor a sua
prpria interpretao sobre o sucedido, nas ruas, as associaes que renem familiares e
amigos das vtimas do terrorismo/da subverso tambm procuram tornar legtima a
sua memria sobre a ditadura.
A AFyAPPA e a AfaVitA19
coletivos liderados por mulheres (em geral,
esposas de agentes do Estado implicados na represso) reivindicam direitos e o
reconhecimento de outras vtimas por razes polticas que no as do terrorismo de
Estado: as vtimas da violncia cometida pela guerrilha ou pelo terrorismo
subversivo. Com os lemas Memria Completa e Justia Completa, denunciam as
aes das organizaes armadas (esto tambin pas), pedem igualdade perante a Lei
(para ellos no existen los derechos humanos), demandam que os crimes da guerrilha
sejam categorizados como delitos de lesa humanidade, ao passo que exigem o direito
reparao econmica. Como analisa Salvi (2008 e 2010), tais grupos possuem uma
retrica e uma performance semelhante utilizada (e consagrada) pelas organizaes de
familiares de desaparecidos. Alm de mobilizarem a figura da vtima, apelam aos
laos de parentesco, s metforas de sangue (la sangre derramada por el terror) e s
narrativas do sofrimento e do luto. Invertendo o repertrio poltico dos familiares de
desaparecidos e forjando uma memria especular e reativa, estes outros familiares se
dizem portadores de uma verdade silenciada e empenham-se na luta contra a
deformao, a manipulao e a propaganda.
Essas organizaes reivindicam assim o estatuto de presos polticos para seus
familiares processados pela Justia, falam em terrorismo jurdico e mortos em
cativeiro (em referncia aos militares que faleceram respondendo a processo), ao passo
que questionam a legitimidade dos julgamentos de delitos de lesa humanidade.
Consideram-se vtimas de uma Justia que, segundo elas, ignora os fundamentos da
19 Asociacin de Familiares y Amigos de Presos Polticos Argentinos e Asociacin de Familiares y
Amigos de Vctimas del Terrorismo en Argentina, respectivamente.
20
legalidade e que se guia por um poder escuso conduzido em nome dos direitos
humanos. Clamam pela construo de uma Memria Completa e por um Nunca
Mais livre de perspectivas ideolgicas para que as vtimas da guerrilha possam ser
includas no relato oficial sobre o passado.20
Enquanto do lado de fora dos tribunais esses grupos questionam a legitimidade
dos processos penais, do lado de dentro os rus procuram atacar a legalidade dos
procedimentos jurdicos aplicados. Alegam ter seus direitos desrespeitados por serem
condenados por crimes que no estariam previstos no cdigo penal no momento dos
fatos (violao do princpio de retroatividade da lei), ou porque continuam detidos
mesmo quando no poderiam (pela idade avanada ou devido aos prazos de priso
preventiva expirados). Assim argumentou o capito Acosta na Causa ESMA que, alm
do mais, manifestou estar convencido do dever de tornar pblica a sua verdade com
minscula.
Em sua alegao na Causa ESMA, Alfredo Astiz apelou a diversos qualificativos
para definir o julgamento falso julgamento, ato ilegtimo, simulao/pardia de
julgamento , questionou o papel desempenhado pela ilegtima procuradoria e
ressaltou que, como ato de protesto, preferira prescindir de seu direito defesa. Videla
tambm renunciaria seu direito defesa, argumentando que conclura ser mais
produtivo que seus advogados se dedicassem a deixar registrado para a histria todas
as irregularidades cometidas nesses julgamentos; julgamentos que mais lhe parecia um
circo, uma pardia de julgamento sem justia e sem direito.
Alm de colocar em questo a legalidade dos julgamentos, alguns acusados e
suas defesas indagam sobre a moral das vtimas-testemunhas, atacando o seu valor
probatrio (esto politicamente comprometidas) e alegam inconsistncia das provas
criminais. Por isso, a insistncia das defesas em revelar as identidades polticas das
vtimas (eram todos guerrilheiros). Logo, se os sobreviventes e familiares de
desaparecidos conformaram um amplo repertrio para se referirem aos acusados
(genocidas, perpetradores, repressores, assassinos, torturadores, nazistas, fascistas,
psicopatas, dementes, covardes, imorais, pervertidos), os rus tambm procuram
desqualificar as vtimas, acusando-as de subversivos, terroristas, deliquentes-
subversivos.
20 Discurso de Mara Ceclia Pando, presidente da AFyAPPA, em ato realizado em Buenos Aires no ano
de 2009.
21
Durante a sua alegao na Causa ESMA, por exemplo, Alfredo Astiz ressaltou
como os ilegtimos querelantes haviam apelado de forma desnecessria ao projetar
as fotografias de crianas dos terroristas para causar um efeito emocional. Salientou
ainda como absurdas as afirmaes de que os terroristas eram juventude militante e
idealista que lutavam por uma sociedade mais igualitria. Astiz mencionaria crimes
e ataques da guerrilha a fim de tornar verossmil o argumento da guerra, para
questionar moralmente o lugar de vtima ocupado pelos ex-terroristas, bem como
para desacreditar seus falsos e imaginrios testemunhos. Jorge Acosta apelou para o
tema do colaboracionismo, colocando em dvida a identidade dos sobreviventes como
agentes de inteligncia da Marinha. Para Acosta, as testemunhas necessrias eram
antes de tudo portadoras de relatos falsos e mentirosos, assim como as acusaes
representavam uma grande falcia forjada a partir das narrativas de ex-terroristas.
Ainda assim, guiado por suas convices de cristo apostlico romano, considerava-
se no dever de enunciar naquele tribunal a sua prpria Verdade.
Submetidos condenao penal e moral, no resta alternativa aos acusados do
que apresentar outra verso sobre o sucedido. O dever de testemunhar se expressa ento
como uma oportunidade para afirmar a Verdade a fim de que a Histria possa um dia
restitu-los ao seu devido lugar: sero lembrados como soldados que lutaram para
salvar a nao do terrorismo. Pouco antes de seu falecimento e como um dos
representantes mais emblemticos da ditadura, Videla parecia haver tomado para si essa
obrigao. Em suas ltimas declaraes, o ex-ditador esboaria alguma crtica ao
acionar repressivo, mas ela no se dirigia propriamente ao atuado. No plano militar,
Videla continuava afirmando-se vitorioso: aniquilaram a subverso e reorganizaram
a nao. A crtica se referia ao que denominou de sequelas, erros da guerra contra
a subverso ou de derrota no plano poltico. Entre as sequelas estariam as
condenaes e crticas sociais s Foras Armadas e o tema dos detenidos-
desaparecidos.
Assim como o ex-presidente de fato, outros acusados sentem-se politicamente
derrotados, mas no arrependidos. Tampouco se sentem culpados moralmente, apenas o
foram penalmente (o que so coisas bastante distintas). Se nos anos 1980 prevaleceu um
discurso de teor negacionista (no h desaparecidos), no decorrer da histria das lutas
pelas memrias da ditadura na Argentina, e diante do crescente processo de legitimao
22
das vozes dos afetados, os militares se vem impelidos a ressignificar suas narrativas
sobre a represso a fim de que elas possam ter ainda algum sentido social.
Consideraes finais
Las vctimas y los victimarios, somos parte de una
misma humanidad, colegas en un mismo esfuerzo
por demostrar la existencia de las ideologas, los
sentimientos, los herosmos, las religiones, las
obsesiones. (TIMERMAN, 2000, p. 132).
As narrativas sobre a represso enunciadas nas audincias dos julgamentos de
delitos de lesa humanidade colocam em tela como o mbito jurdico encontra-se, no
contexto argentino, integrado ao campo de luta pela afirmao de sentidos ao passado
ditatorial. Tendo isso em vista e pautada nas reflexes de Foucault (1996) sobre a
relao entre a verdade e as formas jurdicas, analisei essas narrativas (esses fatos de
discurso) que emergem na cena judicial [...] como jogos (games), jogos estratgicos,
de ao e reao, de pergunta e de resposta, de dominao e de esquiva, como tambm
de luta. (Foucault, 1996, p. 9)21
.
Alm do mais, servindo-me das contribuies da antropologia para a anlise das
prticas jurdicas, voltei-me explorao dos problemas, processos e acontecimentos
referentes aos conflitos protagonizados pelas leis, pelos tribunais e pelos grupos sociais
que colocam suas demandam em termos de Justia (Tiscornia e Pita, 2005). Logo,
compreendendo o Direito como uma forma de ao poltica e procurando desvendar
seu significado e os sentidos que cria e impe, a nfase da anlise recaiu na investigao
da enunciao das leis e dos problemas que colocam, assim como das categorias do
pensamento que pautam os procedimentos jurdicos (justia, liberdade, direitos e
legalidade) a fim de verificar como os mesmos incidem na vida social22
.
Para as vtimas, os julgamentos de delitos de lesa humanidade na Argentina
representam uma resposta do Estado s suas histricas demandas por Memria,
Verdade e Justia. Ao mesmo tempo em que reconhecem o lugar simblico das
21 Em seu clssico estudo sobre o processo judicial entre os barotse na antiga Rodsia, Gluckman (1967)
j buscava traar as relaes entre poder e prticas jurdicas, voltando-se para a anlise dos modos de
controle social nas sociedades tribais. 22 Para Geertz (1997) a representao jurdica seria uma maneira particular de imaginar a realidade, uma representao que , por princpio, normativa. O interesse de Geertz reside em entender como grupos
humanos atribuem sentido aquilo que fazem (de forma prtica, moral, expressiva, jurdica), colocando
seus atos em estruturas mais amplas de significao.
23
condenaes penais como instncia de reparao e para a consolidao de uma
Verdade e de uma memria pblica sobre a ditadura, a demanda por Justia dirige-se
tambm condenao social e moral tanto das violaes cometidas quanto dos
perpetradores, demanda que se expressa no lema de H.I.J.O.S.: Los Juzga un Tribunal,
Los Condenamos Todos!. Logo, mais do que a relevncia da validao da verdade de
seus testemunhos e relatos no mbito jurdico que h muito tempo so de
conhecimento pblico e que j no podem ser negados , tambm cobra importncia
[...] as motivaes e as justificaes: por que voc fez isso? Voc se dava conta de que
cometia um delito? (Levi, 1990, p. 11). A questo moral colocada refere-se funo
do juzo humano (Arendt, 2008a).
Como aponta Agamben (2008), as categorias jurdicas esto carregadas de
sentido moral e religioso: culpa, responsabilidade, inocncia, julgamento, absolvio.
Por isso, nos julgamentos de delitos de lesa humanidade na Argentina ganha relevo a
existncia de um embate entre moralidades, embate que coloca em questo tanto as
intenes e condies nos quais tais atos foram realizados (atos traduzidos em termos de
violaes aos direitos humanos), quanto evidenciam as divergncias entre as medidas
legais adotadas nesses processos judiciais e outra ordem de regulaes (os regulamentos
e a doutrina militar vigente durante os anos ditatoriais, por exemplo).
Torna-se ento pertinente refletir, seguindo Vianna (2005), sobre a linguagem
moral que atravessa os direitos (que se expressa em expedientes de disputa e
representao), buscando assim uma compreenso circunstanciada da moral como
linguagem em uso produo, veiculao e embate de significados , mas sobretudo
como objeto de luta. Nessa direo, a minha inteno neste ensaio foi demonstrar as
dinmicas entre representaes sobre o passado ditatorial, entre agentes sociais (vtimas,
acusados e atores judiciais) que produzem e se apropriam de representaes e
moralidades como parte de suas estratgias para a afirmao de memrias e verdades no
contexto das audincias judiciais. Tais narrativas testemunhais, destinadas a realizao
da Justia, evocam memrias e histrias passadas, bem como demarcam categorias de
acusao e de moralidades.
Por isso, parecem-me sugestivas as reflexes propostas por uma antropologia
poltica da moralidade, tal como colocada por Fassin (2008 e 2013), para explorar
como vtimas e acusados entendem ideolgica e emocionalmente a distino entre o
bem e o mal a fim de desvendar o sentido que palavras e atos possuem para os agentes
24
sociais, por um lado, e para compreender a formao de sujeitos engajados em aes
que so justificadas no terreno moral, por outro. Ficou patente como, nos testemunhos
brindados nas audincias judiciais etnografadas, a expresso das emoes
(ressentimento, rancor, amargura, raiva, frustrao e indignao) representa uma
resposta a distintas situaes, que so experimentadas e vividas por vtimas e acusados
como uma injria ou uma injustia.
O ressentimento experimentado pelas vtimas se expressa como uma reao a
um passado de violncia e opresso. As vtimas no desejam vingana, mas demandam
reconhecimento e Justia, enquanto se recusam a esquecer e perdoar: Por qu
tenemos que conciliarnos con el genocida y con el torturador? Tiene que haber justicia.
Y la justicia que decimos es crcel comn a todos los genocidas. Em contraposio
queles que argumentam que o passado deve ser deixado para trs, a memria cumpre a
funo de tornar o crime uma realidade moral. O imperativo de Memria, Verdade e
Justia representa ento uma forma de resistncia, sobretudo num contexto em que o
esquecimento e a reconciliao parecem consensuais (a anistia e a expiao como
paradigmas universais e a empatia e o perdo como virtudes pessoais). Para as vtimas,
a aceitao desse consenso implicaria abandonar potenciais procedimentos legais, alm
de supor a possibilidade unilateral de perdo (j que os acusados no expressam sinais
de arrependimento). Sendo assim, o que as vtimas da ditadura na Argentina demandam
a Verdade sobre as circunstncias e razes da morte de seus familiares, alm de uma
justa retribuio aos criminosos e a defesa de uma forma especfica de dignidade, tal
como afirmam Madres de Plaza de Mayo: La vida y la dignidad de nuestros hijos no
se negocian.
J os acusados ressentem-se diante de uma situao na qual a sua posio social
(agentes do Estado que atuaram na represso) gera frustrao e repdio social. Os rus
expressam assim o seu descontentamento em relao poltica de Memria, Verdade e
Justia posta em marcha, incitando a sua animosidade e rancor contra certos
segmentos da populao (movimento de direitos humanos, governo nacional, membros
do judicirio). Alm do mais, o dilema moral que enfrentam, por terem feito uso de
meios escusos para derrotar o inimigo subversivo, resulta de uma discrepncia entre
expectativas e realidade em termos das representaes hericas de seu papel social
(salvadores da ptria), como tambm da racionalizao moral de suas aes (uma
guerra levada a cabo pelo bem maior da nao).
25
Aps dcadas de lutas pelas memrias da ditadura, as violaes aos direitos
humanos (como colocam as vtimas) ou os excessos (conforme afirmam os acusados)
cometidos por razes polticas dificilmente encontram respaldo social. Por meio de um
discurso que combina narrativa humanitria (direitos humanos) e naturalizao dos
afetos e do parentesco, o movimento de familiares de desaparecidos abriu os caminhos
institucionais, cientficos e legais para a afirmao da Verdade sobre a ditadura23
. Os
laos de sangue com as vtimas da represso garantiram capital social, bem como um
lugar de transcendncia moral aos familiares de desaparecidos, consagrando-os como
portadores da Verdade sobre a ditadura. Determinados campos do saber cientfico
(especialmente a gentica e a antropologia forense) contriburam para legitimar suas
narrativas. O sangue contido nos corpos dos familiares converteu-se na prova material
da represso: bancos de sangue (como o do Equipo Argentino de Antropologa Forense
e o Banco Nacional de Datos Genticos) oferecem a matria para comprovar delitos,
determinar a identidade de bebs apropriados e identificar os restos dos desaparecidos.
A legitimidade das vozes dos afetados imbui-se assim de atributos comumente
associados ao campo jurdico e cientfico (objetividade, neutralidade, veracidade,
legalidade), fazendo prevalecer suas memrias sobre o passado de represso e os
sentidos que os mesmos atribuem noo de direitos humanos. A luta dos familiares
por Justia e Responsabilizao, assim como o apelo que possui a afirmao de uma
verdade jurdica sobre o passado so, desse modo, cruciais para a consolidao de
uma memria pblica da ditadura na Argentina. Trabalhos acadmicos, sentenas
judiciais, evidncias materiais (corpos, sangue, edificaes, documentos) e os
testemunhos daqueles que sofreram em carne prpria constituem-se como formas de
saber e formas de verdade; antes de tudo, so modos de representao (capazes de
produzir efeitos na vida social) que, ao adquirem o estatuto de Verdade, do contorno e
sentido memria do ocorrido.
23 Verdery (1996) sugere problematizar os sentidos atribudos a noes como democracia, direitos
humanos, sociedade civil, enfatizando um vis analtico que se afaste das tendncias tericas mais
normativas com o intuito de explorar como essas noes (enquanto smbolos polticos) podem ser apropriadas e significadas contextualmente. Para anlises que versam sobre o debate antropolgico entre
relativismo cultural e a formulao de uma noo universal de Direitos Humanos, ver Messer (1993) e
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