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Presidente da República José Sarney
Ministro da Educação Jorge Bornhausen
Secretário-Geral do MEC Aloisio Sotero
Prêmio Grandes Educadores
Brasileiros
Monografias Premiadas 1985
Série Grandes Educadores, 2
P925p Premio grandes educadores brasileiros: monografias premiadas 1985. - Brasília: INEP, 1986.
p.: il. - (Série grandes educadores; 2)
Conteúdo: Fernando de Azevedo: a educação como desafio/Nelson Piletti - A renovação da escola pública: idéias e práticas educativas de Firmino Costa/Fernando Correia Dias.
Inclui bibliografia
1. Reforma do ensino 2. Azevedo, Fernando de 3. História da educação 4. Ensino Público 5. Costa, Firmino I. INEP II. Série.
CDU37.011.3(81):92
Presidente da República José Sarney
Ministro da Educação Jorge Bornhausen
Secretário-Geral do MEC Aloisio Sotero
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Prêmio Grandes Educadores
Brasileiros
Monografías Premiadas 1985
Brasilia 1986
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Diretor-Geral Pedro Demo
Diretora de Estudos e Pesquisas Acácia Zeneida Kuenzer
Diretor de Planejamento e Administração Carmo Nunes
Diretora de Documentação e Informação Magda Maciel Montenegro
Prêmio Grandes Educadores Brasileiros
Comissão Julgadora: Durmeval Trigueiro Mendes (Presidente) Eliana Marta Santos Teixeira Lopes Ester Buffa José Oliveira Arapiraca Zilda Clarice Martins Nunes
Secretária-Executiva Leticia Maria Santos de Faria
Coordenadora de Editoração e Divulgação Janete Chaves
Revisão Adriana Morgado Loureiro Andréa Studart Corrêa Marlow Santos
Revisão Tipográfica Corina Barra Soares Vania Velloso
Normalização Bibliográfica Regina Célia Soares
Capa e Diagramação Ana Maria Boaventura
INEP - Coordenadoria de Editoração e Divulgação Via N-2, Anexo I do MEC, sala 139 Caixa Postal 04/0366 70312 Brasília-DF Fone:(061) 223-5561
Sumário
PREFÁCIO 7 OS AUTORES: DADOS BIOGRÁFICOS 11 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES 13
PRIMEIRA PARTE
FERNANDO DE AZEVEDO: A EDUCAÇÃO COMO DESAFIO Introdução 25 Fernando de Azevedo por ele mesmo 27 A poesia do corpo 31 Máscaras e retratos 37 A educação na encruzilhada 42 Novos caminhos e novos fins 53 Pioneiro entre os pioneiros 61 A missão da universidade 70 A cultura brasileira 77 Na batalha do humanismo 85 O Brasil corre para o oeste 91 Um sonho latino-americano 98 Bibliografia 103 Apêndices 105
SEGUNDA PARTE
A RENOVAÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA: IDÉIAS E PRÁTICAS EDUCATI-VAS DE FIRMINO COSTA Introdução 123 Projeto republicano e tradição mineira 125 Vocação para lecionar 133 Escritos e sentimentos 142 Novo ensino público 151 Um modo de executar 162 Comunidade e cidadania 171 O magistério como profissão 181 Formação pedagógica e paradigmas 190 Tempos de mudança 201 Colaborando nas mudanças 212 Caminhos da linguagem 220 Anotações finais: memória e resgate 234 Bibliografia 239 Apêndices 249
Prefácio
O Prêmio Grandes Educadores Brasileiros constitui, sem dúvida, um incentivo aos pesquisadores para que desenvolvam estudos históricos na área da educação através de monografias que enfoquem a vida e a obra de educadores brasileiros eminentes. Instituído em 1983 e atribuído, no ano seguinte, o primeiro lugar a Maria Thetis Nunes -que apresentou um trabalho sobre Manuel Luis Azevedo d'Araújo -, ele permitiu também que retornasse à cena educacional esta pesquisadora da Universidade Federal de Sergipe que nos anos 50 publicara um estudo sobre o ensino secundário brasileiro, através do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). O segundo lugar foi, na mesma ocasião, conquistado por Maria do Amparo Borges Fortes, com um estudo sobre Anísio Teixeira.
Em 1985 concorreram ao prêmio 12 trabalhos enviados por pesquisadores de São Paulo, Paraná, Distrito Federal, Pernambuco, Rio Grande do Sui, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Estes trabalhos foram julgados por uma comissão integrada pelos professores Durmeval Trigueiro Mendes, da UFRJ, presidente da Comissão; Eliane Marta S. Teixeira Lopes, da UFMG; Ester Buffa, da UFSCar; José Oliveira Arapiraca, da UFBA, e Clarice Nunes, da PUC/RJ.
Foram premiados pela Comissão os trabalhos dos professores Nelson Piletti, em primeiro lugar, e Fernando Correia Dias, em segundo lugar.
O professor Nelson Piletti, doutor em História e Filosofia da Educação pela USP e atualmente professor daquela Universidade, teve premiado o seu trabalho sobre Fernando de Azevedo, que traz como subtítulo A Educação como Desafío..
A importância da obra de Fernando de Azevedo - seja como sociólogo da educação cuja atividade intelectual esteve no próprio núcleo da constituição dos cursos de Sociologia tanto quanto da reflexão educacional no Brasil, seja como administrador do ensino responsável pela mais famosa das reformas educacionais do País — é amplamente reconhecida, embora ainda insuficientemente analisada e discutida. O trabalho de Nelson Piletti aborda a vida intelectual de Fernando de Azevedo desde seu iniciónos anos 10/20 quando, inspirado na Antigüidade Clássica, manifestou por escrito seu entusiasmo pela educação física — vista como instrumento de "purificação da raça", como medida eugènica importante na construção de uma nova sociedade. Neste sentido, Fernando de Azevedo não escapou à temática que marcou o início do século e que se prendeu tanto à libertação da escravatura quanto à visão médica da educação que correspondeu ao período de combate às causas das grandes epidemias e que associou-se profundamente às posições escolanovistas.
O lançamento de Fernando de Azevedo na área educacional ocorreu não apenas através de sua atividade docente como professor secundário e da Escola Normal de São Paulo nos anos 20. Prendeu-se à sua atividade como jornalista de O Estado de S. Paulo, condição na qual assumiu a responsabilidade da realização do famoso inquérito sobre a
instrução pública em São Paulo. É a partir de então que ele passa a se preocupar com a profunda distância que marcava (e ainda marca) a formação das elites e a educação popular e chega, no ano seguinte, ao mais importante posto educacional do país, o de Diretor Geral da Instrução Pública do Rio de Janeiro. Desde então ele explicita suas posições em defesa dos princípios escolanovistas e de uma educação pública - leiga, gratuita, obrigatória, apoiada na co-educação e na idéia da escola única — que estarão presentes ao longo de tôda a sua vida e dos embates travados nas cinco últimas décadas de sua existência.
A famosa reforma do ensino de 1928 — cuja responsabilidade fora já aberta pela administração Carneiro Leão e cuja implementação foi em parte obra de Anísio Teixeira no início dos anos 30 — ficou marcada na nossa história educacional e associada justa e profundamente ao nome de Fernando de Azevedo. Mas a experiência desse educador na área da administração do ensino não se restringiu aos anos 20: ele foi ainda Diretor de Instrução Pública de São Paulo em 1933, Secretário de Educação e Saúde de São Paulo em 1947, primeiro diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais (resultante do convênio USP/INEP/MEC) de São Paulo, criado em 1956, e Secretário de Educação e Cultura do Município de São Paulo em 1961.
No entanto Fernando de Azevedo notabilizou-se na área da educação não apenas como administrador. Além de ter-se manifestado em diferentes campos do conhecimento nos 25 livros que deixou — e que lhe valeram a entrada para a Academia Brasileira de Letras em 1968 - ele participou intensamente do movimento escolanovista nos anos 30, foi presidente da famosa Comissão dos 32, redator e signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. A muitos aspectos desta luta ele retorna no final dos anos 50: foi também ele o redator do texto Mais uma Vez Convocados: Manifesto do Povo ao Governo escrito em defesa da escola pública diante das ameaças levantadas, em 1958, pelo substitutivo Lacerda, à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em tramitação no Congresso. Tomou igualmente parte na campanha em defesa da escola pública (1960-1961), na tentativa de conseguir a rejeição pelo Senado do texto aprovado na Câmara dos Deputados e, posteriormente, de evitar a sanção presidencial.
Seu livro A Cultura Brasileira, escrito como introdução ao censo de 1940, tornou-se um clássico da Sociologia da Educação. Mas sua influência foi profunda não apenas no campo educacional. Fernando de Azevedo marca o início da Sociologia entre nós. Professor de Florestan Fernandes e de Antônio Cândido, ele participou da criação da USP e ocupou a cátedra de Sociologia desde o início dos anos 40. Sua atividade universitária, marcada por posições progressistas, pela defesa de um socialismo democrático, por idéias do iluminismo e pela crença na força transformadora do ensino, por grande abertura intelectual e interesse por variados campos do saber, fizeram-no conhecido em todo o país por muitas gerações. O trabalho de Nelson Piletti traz à luz importantes aspectos da vida intelectual e da obra deste educador desaparecido em 1974.
O segundo prêmio coube ao professor Fernando Correia Dias, doutor em Sociologia com uma tese sobre o movimento modernista em Minas, ex-professor da Universidade de Brasília e atualmente professor da UFMG. Seu trabalho A Renovação da Escola Pública - Idéias e Práticas Educativas de Firmino Costa recupera para a historiografia educacional brasileira uma figura pouco conhecida, mas com grande significado na passagem do século e nas primeiras décadas do século XX. Suas posições abolicionista
e republicana no século XIX completam-se, na área educacional, com a adesão aos princípios escolanovistas, que caracterizaram as atividades dos renovadores em nosso país.
Firmino Costa viveu a maior parte da sua vida no município de Lavras, no interior de Minas Gerais, e sua atividade profissional teve caráter eminentemente pedagógico. Comerciante, vereador e mestre-escola, em Lavras, ele não chegou ao curso superior, deixando os estudos nos preparatórios. Foi, portanto, um autodidata que - vivendo entre 1869 e 1939 - sofreu forte influência do positivismo e do iluminismo, que se refletia no seu enorme apreço pela cultura intelectual e pela importância atribuída à ação dos intelectuais na sociedade.
Atuando no interior de Minas Gerais no começo do século, estava a par dos avanços pedagógicos da Europa e dos Estados Unidos, tendo sido um conhecedor e divulgador do pensamento de autores como Pestalozzi e Dewey.
A carreira de Firmino Costa como educador se iniciou em janeiro de 1907 quando, em conseqüência da reforma do ensino de 1906 inspirada na experiência paulista e no modelo argentino, a Secretaria do Interior de Minas Gerais instituiu grupos escolares em contraposição às tradicionais escolas isoladas. Firmino Costa foi nomeado diretor do terceiro grupo escolar criado em Minas, exatamente em Lavras, no qual permaneceu até 1925 e onde lançou o boletim quinzenal Vida Escolar. O grupo escolar de Lavras preocupou-se, sob sua direção, não apenas com a educação primária dos alunos em idade escolar mas com sua conexão à formação profissional, à assistência médico-odontológica, à criação e utilização de uma biblioteca escolar que ampliasse o horizonte intelectual dos alunos e com a formação de normalistas rurais.
Foi a partir de 1925 que Firmino Costa começou a adquirir projeção estadual e nacional. Dirigiu o internato masculino do Ginásio Mineiro em Barbacena, realizou conferências em Belo Horizonte a convite de Francisco Campos, colaborou na reforma do ensino de orientação escolanovista em Minas, assumiu a direção técnica do curso de aplicação da Escola Normal de Belo Horizonte, representou o governo mineiro numa das reuniões da Associação Brasileira de Educação.
A obra escrita deixada por Firmino Costa foi marcada por seu interesse pelos métodos e experiências didáticas e pela administração escolar, além da preparação de professores. Preocupava-o especialmente a questão do ensino da língua portuguesa. Entusiasta da instrução pública, como todos os escolanovistas, tinha Pestalozzi — um mestre-escola como ele — como modelo de vida e manifestava grande preocupação com a adequação dos princípios da escola ativa à nossa realidade.
As duas obras premiadas pelo INEP, em 1985, certamente contribuem para uma melhor compreensão da nossa vida educacional neste século, trazendo ao conhecimento de um maior número de pessoas as características que marcaram a obra e a atuação pedagógica de Firmino Costa e dando maior nitidez à ímpar figura de Fernando de Azevedo, como protagonista da vida intelectual deste pais por mais de 60 anos.
Vanilda Paiva
Os autores: dados biográficos
* * * *
FERNANDO CORREIA DIAS, natural de Tres Pontas, Minas Gerais, iniciou sua vida funcional na Secretaria da Fazenda de Minas Gerais e é hoje assessor do Ministério da Cultura.
É bacharel em Direito, em Sociologia e Política e em Administração Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais. como jornalista, foi repórter da Folha de Minas, redator político e cronista parlamentar junto à Assembléia Legislativa desse mesmo Estado. Prestou assessoria técnica a várias entidades estaduais e dirigiu o Centro de Estudos Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Doutor em Ciências Sociais pela UFMG, defendeu tese sobre O Movimento Modernista em Minas: uma Interpretação Sociológica. Em sua carreira docente como profes-
NELSON PI LETTI, doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP), iniciou sua formação em Caxias do Sul, sua cidade natal, licen-ciando-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade desse mesmo Município, em 1968.
Posteriormente, em São Paulo, desenvolveu seus estudos em Comunicação Social, na habilitação Jornalismo, e em Pedagogia, na habilitação Administração Escolar, cre-denciando-se, na primeira dessas áreas, com o bacharelado e na segunda com a licenciatura. Participou da elaboração do Modelo Pedagógico e Guias Curriculares para a Pré-escola, na Secretaria do Estado de São Paulo.
com o mestrado em História e Filosofia da Educação, aprofundou-se na linha eleita para sua especialização. Lecionou em cursos de graduação, História, História do Brasil, História da Educação, Metodologia das Ciências e Sociologia Aplicada à Administração.
Pesquisou e produziu trabalhos, alguns de cunho predominantemente didático, outros históricos ou ainda sociológicos, dentre os quais pode-se destacar o que obteve o prêmio no Primeiro Concurso Regional de Monografias, promovido pelo Centro Interamericano de Investigação e Documentação sobre Formação Profissional (OIT — CINTERFOR), em 1984: A Profissionalização Compulsória no Ensino Brasileiro de Segundo Grau.
As publicações técnicas de Nelson Piletti vêm sendo produzidas individualmente e em co-autoria, desde 1977.
A atuação do educador Fernando de Azevedo foi objeto de dois de seus trabalhos que antecederam o que ora é premiado no concurso para o Prêmio Grandes Educadores Brasileiros, destacando-se este dos demais pela originalidade da organização, pela extensão e profundidade.
sor titular da Universidade Católica de Minas Gerais, atuou em diferentes disciplinas da área de Sociologia, em nível de graduação e de pós-graduacão.
Participou da implantação dos cursos de mestrado e doutorado em Sociologia na Universidade de Brasilia (UnB) e foram numerosas as monografias de mestrado e teses de doutorado sob sua orientação.
Participou das bancas examinadoras de monografias e teses e da comissão julgadora do concurso para professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Inúmeras e eficientes foram suas atividades, não só docentes e culturais em cursos de extensão, congressos e reuniões em diferentes regiões do país, como ainda em associações científicas e culturais, destacando-se as de assessoria ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), à Coordenação do Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Conselho Federal de Educação (CFE).
Realizou atividades de pesquisa e consultoria em diferentes projetos, podendo-se destacar Universidade de Minas: Visão Ilustrada e Projeto Político, recentemente desenvolvido.
São numerosos os trabalhos de autoria de Fernando Correia Dias publicados em periódicos técnicos e revistas universitárias, envolvendo diferentes tipos como ensaios, crônicas, análises sociológicas e resenhas.
Premiado pela Portobrás com viagem à Amazônia por monografia sobre o monopólio estatal do petróleo, foi agraciado ainda com outros prêmios pela Academia Mineira de Letras e pela União Brasileira de Escritores, pelos trabalhos João Alphonsus: Tempo e Modo e Presença de Max Weber na Sociologia Brasileira Contemporânea. O seu livro A Imagem de Minas foi selecionado para publicação pela Imprensa Oficial de Minas Gerais.
O trabalho do professor Fernando Correia Dias intitulado A Renovação da Escola Pública — Idéias e Práticas Educativas de Firmino Costa, premiado no concurso do Prêmio Grandes Educadores Brasileiros, tem o mérito de trazer para a galeria dos grandes educadores brasileiros uma personalidade pouco conhecida, cuja atuação foi de elevado mérito e que, enquanto viveu numa localidade restrita do país, teve sua atividade caracterizada pela participação eficiente e anônima na obra de outros educadores já conhecidos como eminentes.
Considerações preliminares *
Palavras de Nelson Piletti Confesso que, inicialmente, fiquei preocupado, pensando sobre o que deveria falar
nesta oportunidade. Mas logo percebi que minha preocupação nao tinha razão de ser. Afinal, é até agradável pensar sobre o que falar na hora em que se recebe um prèmio. É mesmo um intervalo de descentração e de prazer. Um momento excepcional. Sim, porque a regra geral da vida humana é o pensamento crucial, necessário, que repercute decisivamente em seu destino, ao menos para a maior parte do povo brasileiro, para quem o prato do dia é a fome.
Por que haveria de preocupar-me? Este é um momento de liberdade. Várias alternativas se abrem às minhas considerações. Vários assuntos a escolher: a minha própria experiência de professor de 50 horas semanais, em escolas localizadas a mais de 100 quilômetros uma da outra e, ao mesmo tempo, de pesquisador da educação; a situação da educação brasileira — o difícil acesso à escola, a evasão, a repetência, a falta de recursos; a inadequação dos currículos e métodos escolares aos educandos e ao mundo de hoje; as precárias condições de trabalho do professor; a defasagem entre os discursos político-pedagógicos e a prática educativa; a distância entre o gabinete e a sala de aula, entre a sala de aula e a rua...
Mas, penso comigo mesmo, o que eu falar ou deixar de falar talvez não tenha muita importância. Esta é uma cerimônia formal de entrega de um prêmio. No entanto, existe também a verdade desta hora, a emoção deste momento. Verdade e emoção que, no meu caso, são reais ou, ao menos, parecem ser. Verdade e emoção que devo ao Ministério da Educação e ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais; aos meus professores; aos meus amigos e colegas; à minha família; à família de Fernando de Azevedo, na pessoa de sua filha Lollia de Azevedo Marx, cujo depoimento vivo e palpitante sobre a vida familiar de seu pai muito enriqueceu meu trabalho.
Verdade e emoção que devo, sobretudo, ao próprio Fernando de Azevedo, um grande educador. Mas não posso furtar-me à pergunta: educador tem alguma importância neste país? É neste sentido que vejo como fundamental a iniciativa do Ministério da Educação de resgatar nossa memória educacional. Mas é preciso ir além. É preciso construir o presente e o futuro. E só o faremos se não esquecermos e sim continuarmos a luta dos educadores que nos precederam; se tivermos uma consciência e uma prática históricas.
Fernando de Azevedo foi um crítico da educação do seu tempo. Muitas das críticas que levantou no importante inquérito sobre a educação paulista, em 1926, continuam válidas. Escrevia ele há 60 anos: "As críticas gerais, mais importantes? A de que a educação se ressentia da falta de planejamento e que, sem plano e sem alvo, desenvolven-
* Discursos proferidos pelos autores por ocasião da solenidade de entrega do Prêmio Grandes Educadores Brasileiros, cm 15/10/85.
do-se por adições e enxertos, andava divorciada do meio e renhida com os interesses fundamentais da vida nacional e da civilização. O triunfo da burocracia no ensino -burocracia estreita, aparatosa e niveladora; a rigidez de uniformização que tendia a torná-lo artificial; a legislação draconiana, o empirismo com que eram tratados problemas tão complexos, como os da educação, o caráter antiquado do sistema escolar (...)"•
Fernando de Azevedo foi um crítico consciente da importância da educação para o desenvolvimento do país. Lembremos, por exemplo, a abertura do Manifesto dos Pioneiros, de 1932, que ele redigiu: "Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum so-breleva em importância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional". Mas tinha também consciência dos limites da escola. No mesmo ano do Manifesto, escreveu: "A primeira conclusão a que nos levam os estudos sociais, é a limitação do papel da escola na sociedade".
Mas Fernando de Azevedo ultrapassou a crítica. Elaborou planos, tomou iniciativas, promoveu reformas. Ao entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1968, considerou-se "um escritor de idéias radicais, de espírito inquieto e insatisfeito consigo mesmo e com quase tudo o que vê à volta de si, dominado pelo demônio da reforma que é um de seus companheiros mais constantes nas horas de solidão".
como poderemos esquecer a importante reforma que promoveu nesta cidade do Rio de Janeiro, de 1927 a 1930? Sua administração à frente da Diretoria de Instrução Pública do então Distrito Federal mereceu cerca de 7.000 notícias na imprensa da época. Suas propostas foram debatidas, contestadas, aplaudidas. Não havia neutralidade. Os princípios da reforma — extensão do ensino, articulação de graus e modalidades, adaptação ao meio (urbano, rural e marítimo) e às idéias modernas de educação (escola única, escola do trabalho e escola-comunidade) - continuam a ter significativa atualidade e ainda constituem metas a atingir.
como podemos esquecer sua atuação no movimento de fundação da Universidade de São Paulo em 1934? A Universidade, segundo Fernando de Azevedo, representa a vitória da inteligência e da liberdade contra a força e a violência: "Pois, nesta época rudemente trabalhada por duas correntes sociais e políticas que, fazendo apelo à força, à vontade e à ação, tendem a esmagar a inteligência e a liberdade sob o rolo compressor da máquina do Estado, o governo de São Paulo criou a Universidade, como um protesto e afirmação de fé na liberdade de pensamento e de investigação, de crítica e de debate, que constitui os fundamentos das instituições democráticas e universitárias".
Professor de Latim, Psicologia e Sociologia, crítico literário, sociólogo, reformador da educação, Fernando de Azevedo elegeu o humanismo moderno, que integra as artes, as letras e as ciências, como núcleo inspirador do seu pensamento e da sua ação. Diretor de Instrução Pública do Distrito Federal, duas vezes Secretário de Educação do Estado de São Paulo, Secretário de Educação do Município de São Paulo, fundador da Universidade de São Paulo e Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, dessa Universidade, Presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia, Diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, membro da Academia Brasileira de Letras, Fernando de Azevedo teve destacada atuação de mais de meio século na vida educacional e cultural do país. Deixou-nos obras importantes, principalmente nos campos das Ciências Sociais e da Educação. A Cultura Brasileira é uma obra indispensável para quem queira conhecer nossa história.
Fernando de Azevedo foi um sonhador, um idealista, mas foi, sobretudo, um batalhador. É sua filha quem testemunha: "Meu pai era um forte, uma grande inteligência,
um trabalhador incansável, um batalhador. Um homem muito aberto para tudo, olhando sempre para o futuro. Até o fim trabalhou e lutou pelos seus ideais, pelo bem de sua família, com tôda sua força e energia."
Antônio Cândido de Mello e Souza, discípulo e amigo de Fernando de Azevedo, também nos dá testemunho de sua combatividade: "Fernando de Azevedo foi um exemplo raro de homem que gosta da responsabilidade e cuja lucidez é aguçada, não embotada, pelas dificuldades, porque elas espicaçam o seu ânimo combativo."
Permitam-me, para concluir, que lhes exponha uma última questão que me preocupa neste momento: apesar da marcante atuação de educadores como Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e outros, a educação brasileira tem ainda um longo caminho a percorrer. É que a mudança na educação não é tarefa para uma só pessoa, por mais genial que seja. É uma obra coletiva. Creio que aos poderes públicos cabe motivar, estimular, abrir caminhos, convocar, coordenar, providenciar recursos. O analfabetismo — como outros graves problemas que o Brasil enfrenta no campo educacional -, por exemplo, poderia ser superado ou ao menos substancialmente reduzido, com a aplicação, na prática, do princípio federativo: a partir de cada comunidade, que contaria com o apoio das municipalidades. Estas seriam coordenadas pelos Estados que, por sua vez, se integrariam num movimento de âmbito nacional, orientado e coordenado pelo Ministério da Educação. Municípios, Estados e União dividiriam e coordenariam suas responsabilidades num movimento que iria procurar o analfabeto no lugar em que vive, ao invés de esperá-lo na sala de aula. Num movimento que poderia engajar — por que não? - os estudantes universitários, os professores e outros grupos sociais dispostos a dar sua colaboração.
Esta proposta, ainda que pouco elaborada, é a expressão do sentimento de que os problemas da educação nacional são altamente prioritários e de que sua solução já não pode ser postergada. Funda-se na convicção, fortalecida pelo estudo de Fernando de Azevedo, de que o desenvolvimento do país passa necessariamente pela educação acessível a todos os brasileiros. Funda-se também na esperança. Esperança que se realizará na medida em que nos empenharmos na construção de um novo dia, pois, citando as palavras de Fernando de Azevedo, escritas em 1957 e que não deixam de ter atualidade: "O velho relógio da educação, 'emperrado e dissonante (escrevia eu em 1926) anda com atraso de quase meio século, marcando as primeiras horas de um crepúsculo matinal, sonolento e sombrio'... Se é certo que não parou, continua com enorme atraso. A julgar pela hora que marca, apenas raiou para nós a madrugada."
* * *
Palavras de Fernando Correia Dias É para mim motivo de grande alegria estar aqui nesta solenidade para receber o
prêmio outorgado pelo INEP à monografia que elaborei sobre Firmino Costa. Alegra-me o reconhecimento público a esse trabalho de pesquisa, no qual me empe
nhei intensamente, movido pela admiração que nutro pelo grande educador mineiro. A forte simpatia humana que Firmino Costa me suscita não suplantou a simpatia crítica. Desse modo, não compus um texto laudatòrio, mas um estudo analítico das práticas educativas características de determinada época e de determinado meio social.
Outro motivo de satisfação pessoal reside na oportunidade que vejo abrir-se para a divulgação do nome e da obra de um mestre injustamente esquecido nas últimas décadas. Sua memória só é cultivada por círculos muito restritos e pelos seus conterrâneos da cidade mineira de Lavras. Agrada-me o fato de estar contribuindo para a recuperação ampla da memória de Firmino Costa; enfim, para que as novas gerações possam conhecê-lo e admirá-lo.
Não foi ele um macroadministrador de sistemas educacionais nem se distinguiu como invulgar pensador; foi, entretanto, um extraordinário mestre-escola, dotado de notável capacidade criadora, atualizado com o pensamento pedagógico de seu tempo, totalmente receptivo às inovações significativas.
Erudito e culto, era mais bem informado sobre educação do que a média dos professores que lhe foram contemporâneos, inclusive os radicados nos grandes centros urbanos brasileiros. Recebia periódicos especializados estrangeiros e conhecia profundamente a história da Pedagogia. Esses traços de sua vida intelectual assumem maior expressividade na medida em que tratava-se de um autodidata. Cursou tão-sòmente os preparatórios, em São Paulo, se bem que o tenha feito com alguns mestres eminentes. Quando foi convidado a dirigir o Grupo Escolar de Lavras, em 1907, era apenas um comerciante. Já lecionava, nas horas vagas, Língua Portuguesa e Literatura no Instituto Evangélico.
A trajetória do mestre há de ser visualizada dentro do contexto social e político da Primeira República, período marcado por iniciativas tendentes a atualizar o ensino em seus métodos e objetivos. Difundia-se a crença liberal de que educação poderia modelar a sociedade.
Em Minas Gerais, a antiga tradição intelectual ilustrada tem assumido, historicamente, de modo alternado ou não, as vertentes da razão humanística e da razão pragmática João Pinheiro é bem o representante da segunda tendência, nos quadros da elite intelectual e política da região. De formação positivista, orientou-se no sentido da melhoria técnica do setor agropecuário, procurando, ao mesmo tempo, racionalizar toda a atividade produtiva em Minas. Em seu programa de governo, a instrução pública. como instrumento de preparação da força de trabalho para a nova era econômica, assumiu um papel fundamental. Eleito pelo sufrágio direto em 1906, João Pinheiro não cumpriu todo o seu mandato por ter falecido em 1908. Foi-lhe possível, contudo, durante esse breve governo, realizar profunda reforma da instrução. Instituiu, como principal novidade, o grupo escolar, que veio a substituir as antigas escolas isoladas ou singulares; nestas, alunos de diferentes níveis de escolaridade se juntavam na mesma classe, sob as ordens de um único docente, em geral mal preparado. O programa do ensino primário e as instruções que o acompanhavam eram inovadores para a época. Insistia-se no método intuitivo e na aprendizagem voltada para a vida prática.
Coube a Firmino Costa, diretor - na ordem cronológica - do terceiro dos grupos
escolares fundados em Minas, construir o modelo da escola renovada; encarregou-se de dar o tom à reforma João Pinheiro, executada por Carvalho de Brito, titular da Secretaria do Interior, a qual abrangia o setor da instrução.
Dentro do espírito da época, o educador lavrense lançou-se com todo o entusiasmo à tarefa de organizar sua escola, que contava inicialmente com dez classes, e de propagar o valor da educação junto a seus conterrâneos. Fundou, para isso, um boletim quinzenal, quase totalmente redigido por ele próprio, onde discutia questões práticas e assuntos doutrinários. O objetivo principal era o de criar uma consciência comunitária em torno da importância social da escola.
Firmino Costa não se restringiu a discutir e a complementar as instruções recebidas de Belo Horizonte: aventava alternativas, cumpria as prescrições de um modo crítico e propunha inovações. Criou suas próprias técnicas didáticas no ensino da geografia e da história locais, valendo-se de excursões e do conhecimento direto da realidade. como filólogo e pedagogo, preocupou-se especialmente com o ensino da língua materna, ramo do conhecimento a que deu uma contribuição substancial. O ensino da linguagem era, para ele, uma forma de ensinar a pensar. Concebia a expressão oral e escrita, sobre cujos problemas de aprendizagem debruçou-se durante décadas, como instrumento para a vida. A essa visão instrumental acrescentava uma dimensão estética, que lhe advinha de excelente formação literária de cunho clássico, mas aberta aos escritores contemporâneos e à evolução da língua.
Lembremos que Firmino Costa conseguiu perfeita interação da comunidade com a escola, tornando-se o grupo escolar o centro coordenador da instrução no município; instituiu, desde 1910, o Dia da Cidade, anualmente comemorado desde então; implantou assistência médico-dentária para os alunos; instituiu o ensino complementar, de cunho profissionalizante, com oficinas de marcenaria, selaria, sapataria, além de horticultura e trabalhos de costura para as meninas; organizou a Caixa Escolar, de assistência aos alunos carentes; arborizou o pátio da escola, transformando-o num bosque: criou a sala do município, a biblioteca e o museu escolar; relatou em vários livros sua prática educativa.
Desde o início, tendo em vista algumas deficiências da reforma João Pinheiro, preocupou-se com a adequada formação das normalistas. Elas deveriam ter, ao lado de uma formação propedêutica e do domínio do conteúdo das disciplinas do ensino básico, uma capacitação profissional, através dos conhecimentos de Psicologia Educacional, Didática, História da Educação, etc. O esquema de um novo Curso Normal, por ele proposto desde 1915, somente muitos anos depois acabaria por ser adotado em Minas.
Outra relevante inovação consistiu em criar, junto ao grupo escolar, um curso para normalistas rurais, certamente o primeiro, no gênero, a organizar-se no Brasil e cuja experiência seria retomada, anos depois, pela professora Helena Antipoff na Fazenda do Rosário.
Firmino Costa tornou-se conhecido em Minas pela difusão de suas idéias e pelo relato de suas atividades, através do boletim Vida Escolar, dos relatórios anuais que enviava à administração estadual (publicados pelo órgão oficial Minas Gerais) e da publicação de dois livros, respectivamente em 1913 e 1920, O Ensino Popular e O Ensino Primário. Dirigiu o Grupo Escolar de Lavras de 1907 a 1925. Neste último ano foi convidado para ser o reitor do antigo internato do Ginásio Mineiro, na cidade de Barbacena. Após realizar ali uma experiência pedagógica bem sucedida, foi convocado para trabalhar em Belo Horizonte no período do governo Antônio Carlos, que encetara nova reforma do ensino em Minas, de maior alcance do que as anteriores. A transformação educacional
efetivou-se sob a direção de Francisco Campos, auxiliado de perto por Mário Casassan-ta, o principal executor do projeto.
Firmino Costa debateu os princípios da Escola Ativa, que ele próprio, por intuição. vinha levando à prática desde o começo do século; participou de cursos de aperfeiçoamento para professores primários e pessoal técnico da Instrução Pública, lecionando Metodologia do Ensino de Português, História do Brasil e Educação Moral e Cívica e da elaboração do novo Programa do Ensino Primário (1927), do qual foi um dos principais autores; proferiu palestras sobre a História da Educação e seus grandes mestres. Pode-se dizer que, dentre eles, elegeu alguns paradigmas; Pestalozzi, que considerava como modelo de vida sob muitos aspectos, especialmente o da dedicação à infância e à juventude; Horace Man, o fundador da primeira escola normal nas Américas e John Dewey, pelos princípios pedagógicos da socialização por meio da solidariedade social. O mestre de Lavras foi um dos primeiros brasileiros a inteirar-se dos trabalhos de Piaget em Genebra e a mencioná-los em seus escritos.
A principal tarefa de Firmino Costa, em Belo Horizonte, foi a de dirigir a Escola Normal-Modelo, primeiramente como diretor-técnico do respectivo Curso de Aplicação, depois como diretor-geral, cargo que exerceu até 1937, quando aposentou-se por limite de idade. Nesse estabelecimento realizou, com perfeita eficácia, o projeto de formação de normalistas que acalentara desde a juventude. Firmino Costa faleceu em 1939, aos setenta anos, cercado da admiração e do carinho de colegas, alunos e ex-alunos.
com essas palavras, procurei transmitir uma idéia, embora esquemática, da vida e das realizações de Firmino Costa. Todos esses aspectos foram devidamente desenvolvidos na monografia. Devo agora dizer que me encontro afetivamente ligado à figura do educador que estudei - e esta é outra razão de agradecimento por estar aqui nesta circunstância. Foi ele professor de minha mãe, Judith Correia Dias, em Lavras, na época em que freqüentou o Colégio Nossa Senhora de Lourdes e estagiou no Grupo Escolar, sob a orientação do mestre. O diário que ela redigiu, em 1919, relatando as observações e os acontecimentos do período de prática profissional, constituiu uma das fontes para meu estudo. Trata-se do primeiro documento que despertou meu interesse pelo biografado, sendo também o filão pelo qual pude seguir adiante em minhas pesquisas.
Minha mãe, que experimentou benéfica influência de Firmino Costa, faleceu recentemente, aos noventa anos de idade, quarenta e tantos dos quais dedicados ao ensino público como professora e diretora de escola primária. Neste momento, peço licença para dedicar à memória de minha mãe o trabalho que realizei e o prêmio que ora recebo.
Gostaria ainda de saudar as pessoas da família de Firmino Costa que se encontram neste recinto, especialmente sua filha. Dona Júlia Costa Pirillo. Pensando não apenas no grande educador, mas também na figura humana de extraordinária integridade pessoal, evoco sua memória de verdadeiro sábio, citando algumas frases bíblicas que, segundo suponho, serão do agrado dos descendentes de Firmino Costa:
"A sabedoria de um homem ilumina seu semblante e a severidade de seus traços é modificada por ela". (Ecles. 8—1) "O ensinamento do sábio é uma fonte de vida, para libertar-se dos laços da morte". (Prov. 13-14) "Resplandecente é a sabedoria e sua beleza é inalterável. Os que a amam descobrem-na facilmente". (Sab. 6—12).
Ao receber, juntamente com o colega Nelson Piletti, da USP, um dos prêmios do Concurso Grandes Educadores, concedido por uma Comissão de qualificados especialistas, sob a presidência do ilustre Professor Durmeval Trigueiro Mendes, desejo insistir na atualidade do pensamento de Firmino Costa. O estudo que realizei, ao evocar essas idéias, poderá oferecer subsídios para a politica educacional dos dias de hoje.
De sua trajetória, destaquemos seu papel de apóstolo da escola pública democrática e eficiente. Por democrática, entenda-se a escola aberta a todos, sem discriminações e sem exclusões, além de caracterizada pelas relações internas não-autoritárias; por eficiente, entenda-se, mais do que o uso da racionalidade tecnológica, a capacidade de preparar adequadamente, para a vida e para o trabalho, as crianças e adolescentes. E ainda a capacidade de ser acolhedora, para empregar um termo de Firmino Costa. É dessa forma que a instituição escolar se liga à comunidade.
Num momento histórico, em que a sociedade civil brasileira se mobiliza, por meio de renovados movimentos sociais, a fim de participar da reconstrução democrática, é muito oportuno evocar o pensamento e a ação de Firmino Costa, que sempre insistiu em lembrar a responsabilidade social dos professores na formação dos cidadãos para a vida comunitária e para a democracia.
Seus ideais, é preciso que se diga, não se concretizaram ainda plenamente. Quando o Ministério da Educação estabelece a prioridade para o ensino básico, temos que aplaudir tal diretriz. É o caminho que nos aponta Firmino Costa, que consagrou tôda a sua existência a esse ramo da educação.
Primeira Parte
Fernando de Azevedo A Educação como Desafio
Nelson Piletti
Fernando de Azevedo (1894-1974)
Introdução
Seria temeridade pretender, nas poucas páginas de uma monografia, penetrar a fundo nas múltiplas e complexas realidades que constituem a vida de uma pessoa. Mesmo que esta pessoa tenha realizado uma profícua obra escrita e uma rica vida pública, como é o caso de Fernando de Azevedo. Certamente, o impresso e o público estão mais ou menos sombreados pelo lado oculto da personalidade ; talvez o público exerça até uma função de ocultamento mais que de revelação.
Esta monografia pode ser definida como um trabalho exploratório, que busca traçar uma visão panorâmica do grande educador que foi Fernando de Azevedo, visão panorâmica que vai se construindo aos poucos, passo a passo, na trilha do que foram sua produção e sua vida.
A linha mestra, o eixo central, é a sua obra. É nela que busquei o seu pensamento. Um pensamento que não é estático, meramente abstrato, mas que é dinâmico, que é movimento, que é histórico. O que me preocupou, basicamente, foi a procura da historicidade no pensamento e na ação de Fernando de Azevedo. Historicidade claramente manifesta em sua trajetória: de especialista em educação física e educador, em sentido amplo; de crítico literário a sociólogo. Educador e sociólogo sempre dominado pelo que ele próprio chama, já no final de sua vida, de "demônio da reforma".
Cada capítulo compreende uma faceta de sua produção e, ao mesmo tempo, um momento específico da sua história. É assim que se sucedem as principais facetas e os principais momentos, cada um dos quais, se devidamente aprofundado e analisado, pode constituir um estudo independente: o ponto de partida é a visão que o educador tem de si mesmo. Seguem-se, na medida do possível em ordem cronológica, as manifestações que considero mais características da sua presença: A Poesia do Corpo, a respeito dos escritos sobre a educação física e os esportes; Máscaras e Retratos, compreendendo a crítica literária; Educação na Encruzilhada, focalizando o inquérito que realizou em São Paulo, em 1926; Novos Caminhos e Novos Fins, analisando a reforma educacional que promoveu no Rio de Janeiro, de 1927 a 1930; Pioneiro entre os Pioneiros, enfatizando sua ação pioneira, juntamente com outros educadores, na luta por mudanças educacionais no Brasil; A Missão da Universidade, sobre o seu papel na fundação da Universidade de São Paulo e na defesa de uma particular concepção de vida universitária; A Cultura Brasileira, abordando suas contribuições teóricas e práticas ao avanço das ciências sociais; Na Batalha do Humanismo, em que se manifesta a defesa intransigente de um novo humanismo; O Brasil Corre para o Oeste, em que a análise sociológica é aplicada a fenômenos importantes de nossa história; e Um Sonho Latino--americano. sobre alguns aspectos de sua atuação à frente do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo.
Os três apêndices respondem à necessidade de uma compreensão mais global, menos técnica e mais humana, do educador Femando de Azevedo. Com este fim selecionei
uma página manuscrita; trechos do seu discurso ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, em 1968, quando faz um balanço geral de suas idéias e de sua vida; e um depoimento exclusivo de sua filha, Lollia de Azevedo Marx.
Além de estudo exploratório, passível de inúmeros e variados desdobramentos, este é também um trabalho de divulgação. É por demais urgente que resgatemos nossa memória educacional, não apenas a fim de conhecermos aqueles que contribuíram decisivamente para construir o arcabouço educacional que temos hoje, mas principalmente para que, compreendendo o caráter histórico dessa construção, tenhamos a coragem de dar-lhe continuidade, modi ficando-a onde e quando necessário.
A recuperação do nosso atraso em matéria de educação nao é tarefa fácil, nem missão para um punhado de supostos iluminados. É uma obra coletiva, mas é preciso que a coletividade, de modo especial aqueles mais diretamente envolvidos na educação escolar - administradores, professores e alunos - ampliem constantemente seu espaço e seu tempo de atuação e sua força transformadora. Já não digo para que alcancemos a meta inúmeras vezes proposta — mais como discurso demagógico do que como empenho real - de oferecer uma educação digna desse nome a todos quantos dela precisem e pelo tempo necessário, mas ao menos para que seja cumprido o preceito constitucional que manda oferecer o ensino básico a todas as crianças de sete a 14 anos.
O trabalho que ora apresento resultou do momento e das circunstâncias em que foi elaborado. Constitui, portanto, uma visão particular e provisória, sujeita às necessárias modificações exigidas pela própria historicidade que caracteriza o ser humano. Resultou também da cooperação direta ou indireta de muitas pessoas, com as quais convivi ao longo da minha vida. Quero mencionar especialmente meus familiares, amigos, colegas e professores.
Não poderia deixar de expressar meus agradecimentos aos professores Heladio C. G. Antunha e Maria de Lourdes M. Haidar, que despertaram meu interesse pelo estudo de História da Educação Brasileira; às professoras Vanilda Paiva, Diretora-Geral do INEP, e Leticia Maria Santos de Faria, Secretária-Executiva do Prêmio Grandes Educadores Brasileiros, pela atenção que me dispensaram; os professores Durmeval Trigueiro, Clarice Nunes, Eliana Teixeira Lopes, Ester Buffa e José Oliveira Arapira-ca, membros da comissão julgadora; e à familia de Femando de Azevedo, na pessoa de sua filha Lollia de Azevedo Marx, que, com seu depoimento vivo e autèntico, abriu-nos importante via de acesso a uma compreensão mais humana da personalidade do seu pai.
Fernando de Azevedo por ele mesmo
"Fernando de Azevedo foi um exemplo raro de homem que gosta da responsabilidade e cuja lucidez é aguçada, não embotada, pelas dificuldades, porque elas espicaçam o seu ânimo combativo. "
Antônio Cándido de Mello e Souza
A própria vida, e nâ"o apenas a educação, representou para Fernando de Azevedo um constante desafio, um intenso combate. E para um contato inicial e panorâmico com seu pensamento e sua obra, nada melhor do que a visão do próprio autor a respeito de sua vida e de suas realizações. 0 curriculum que segue foi elaborado pelo próprio Fernando de Azevedo:
"Fernando de Azevedo, professor da Universidade de São Paulo. Nascido em 2 de abril de 1894, em São Gonçalo do Sapucaí, no Estado de Minas Gerais. Estudou no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo (Estado do Rio de Janeiro), onde fez o curso ginasial (1903-1909); prosseguiu, ainda sob a direção dos jesuítas, durante cinco anos (1909-1914), seus estudos de língua e literaturas clássicas, grega e latina, e de eloqüência e poética, e bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de São Paulo, para a qual se transferiu, em 1917, da Faculdade de Direito de Belo Horizonte (Estado de Minas Gerais).
Cargos que exerceu - professor de Latim e, depois, de Psicologia, no Ginásio do Estado em Belo Horizonte, Minas Gerais (1914-1917); professor de Latim e Literatura, na Escola Normal de São Paulo (1920-1930); diretor-geral da Instrução Pública do Distrito Federal (1927-1930); professor catedrático de Sociologia do Curso de Aperfeiçoamento da antiga Escola Normal de São Paulo (1931-1933); diretor-geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo (1933); professor catedrático de Sociologia Educacional e diretor do Instituto de Educação da Universidade de São Paulo (1933-1938); professor catedrático de Sociologia Educacional da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1938-1941); professor catedrático da II Cadeira de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (desde 1941); diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1941-1943); membro do Conselho Universitário, desde a fundação da Universidade (1934) até 1938 e, novamente, em 1941-1943 e em 1949-1950; Secretário da Educação e Saúde do Estado de São Paulo (1947); professor chefe (desde 1947) do Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo; membro do Conselho Técnico e Administrativo da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (1948-1953); diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais, fundado em São Paulo em 1956, em virtude de um Convênio entre o Ministério da Educação e Cultura e a Universidade de São Paulo.
Atividades educacionais e culturais - Foi redator e crítico literário do jornal O Estado de S. Paulo (1923-1926). Organizou, dirigiu e comentou em O Estado de S. Paulo, em 1926, o inquérito sobre a arquitetura colonial e, nesse mesmo ano, o maior inquérito que se realizou sobre a instrução pública em Sao Paulo, abordando os problemas fundamentais do ensino de todos os graus e tipos, e iniciando a campanha por uma nova política de educação e pela criação de universidades no Brasil. No Distrito Federal (1927-1930), projetou, defendeu e realizou, numa campanha de quatro anos, a reforma do ensino que tomou o seu nome e com que se inaugurou uma nova política de educação no Brasil. Traçou e começou a executar um largo programa de construções escolares, fazendo construir, na administração Antônio Prado Júnior, grandes prédios, entre os quais o da Escola de Débeis Físicos, na Quinta da Boa Vista, cinco prédios destinados a escolas primárias, com capacidade para 3.000 alunos, duas grandes escolas profissionais, em cinco pavimentos, e o suntuoso edifício destinado ao atual Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Manoel Bernárdez, ex-Ministro do Uruguai, no Brasil, escreveu a respeito dessa reforma e dessas iniciativas: 'A capital do Brasil está realizando, em matéria de ensino, o que nenhuma capital do mundo pôde ainda realizar'. (Boletim de Educação Pública, junho-setembro, 1930, Rio). 'A reforma realizada no Distrito Federal, na opinião de Geraldo Seguei, não foi apenas a mais rigorosa e a mais fiel aos princípios da educação nova, como também passou a ser o modelo para as outras'. (Geraldo Séguel, da Escola Normal de Santiago, Chile, in Revista Pedagogica, dirigida por Lorenzo Lazuriaga, abril, 1931, Madri). 'A reforma - uma verdadeira revolução que se operou no país', segundo o julgamento de Léon Walter, professor do Instituto J.J. Rousseau. 'Esta obra é certamente uma das mais notáveis de nosso tempo', escreveu Ad. Ferrière, diretor adjunto do Bureau Internacional de Educação (Pour
l'Ere Nouvelle, Mai-Avril, 1931, Paris). Fundou em 1931, e dirigiu por 15 anos, na Companhia Editora Nacional, a Biblio
teca Pedagógica Brasileira, de que fazem parte, como duas de suas séries principais, a série Iniciação Científica e a coleção Brasiliana, que deixou com 250 volumes, e que é reputada a mais vasta e completa biblioteca de estudos brasileiros (1931-1946). Representou o Estado de São Paulo na 5ª Conferência Nacional de Educação, que se reuniu em Niterói, em 1932, e na qual foi eleito presidente da Comissão dos 32, organizada para o fim especial de elaborar o Plano Nacional de Educação, e constituída dos representantes dos 20 Estados e do Território do Acre, além de 10 educadores eleitos.
Foi o redator e o primeiro signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (A Reconstrução Educacional do Brasil - ao Povo e ao Governo), que se lançou em 1932, com a solidariedade de nomes dos mais ilustres do país, e foi publicado nesse mesmo ano, precedido de uma introdução escrita pelo próprio autor do manifesto. Fez, em 1933, como diretor-geral do Departamento de Educação, a mais profunda reforma de educação pública, em São Paulo, consubstanciada no Código de Educação, ainda em vigor nesse Estado, com as modificações que lhe foram introduzidas. Foi o relator tanto do anteprojeto, como do projeto do Decreto-Lei que instituiu, em 1934, a Universidade de São Paulo, para cuja organização trabalhou, durante cinco anos, como membro do Conselho Universitário, prestando serviços que foram julgados 'rele-vantíssimos' pelo próprio Conselho (1938) e pelo então Reitor da Universidade de São Paulo. Em 1938, foi eleito presidente da Associação Brasileira de Educação, com sede no Rio de Janeiro, e presidente da VIII Conferência Mundial de Educação, que devia realizar-se no Rio de Janeiro, tendo dirigido os trabalhos da comissão constituída de acordo com o Governo Federal para a preparação desse congresso de educado-
res, de quase todos os países do mundo. Ainda nesse ano de 1938 foi eleito pela Assembléia Geral do Instituto Nacional de Geografia e Estatística e nomeado pelo Presidente da República, presidente da Comissão Censitária Nacional e diretor-geral dos Serviços de Recenseamento da República.
Durante esse período de 37 anos, quer por sua própria iniciativa, como diretor-geral de Educação, duas vezes, e como Secretário de Educação e Saúde, quer a convite de Governos de Estados, de associações de professores e de instituições culturais, pronunciou em Minas, São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Paraná, Bahia e Rio Grande do Sul mais de oitenta conferências, sobre problemas de educação e aspectos de cultura nacional. Entre essas conferências realizadas no Distrito Federal e nos Estados referidos, destacam-se as que pronunciou no Rio de Janeiro, entre 1927 e 1930, quando diretor-geral da Instrução Pública, em defesa da reforma do ensino que promoveu na capital do país; O Estado e a Educação, proferida em 1932, perante a 5? Conferência Nacional de Educação, em Niterói; O Problema da Educação Rural, em 1933, no Rio de Janeiro; a série de conferências, em 1935, na Universidade do Paraná, em Curitiba, sobre a unidade nacional; as três, sobre Política e Educação, em 1936, na Faculdade de Direito, por iniciativa da Universidade de São Paulo; Sob o Fogo do Combate (a questão da formação de professores do ensino secundário), em 1937, em São Paulo; A Vitória sobre as Forças de Dissolução, em 1938, na sessão solene em que a Associação Brasileira de Educação comemorou o 109 aniversário da reforma do ensino no Distrito Federal; Entre as Angústias do Presente (palavras de fé aos mestres de amanhã), pronunciada em Florianópolis; As Universidades no Mundo do Futuro e O Nacionalismo e o Universalismo na Cultura, em 1944 e 1945, no Palácio do Itamarati; Na Batalha do Humanismo e Posição e Perspectivas Teóricas em Face do Ensino Secundário, em 1947 e 1948, em Belo Horizonte, na Universidade de Minas Gerais; e Rui e o Humanismo, pronunciada em 1949, a convite do Governo do Estado da Bahia, em Salvador, no Fórum Rui Barbosa, por ocasião das festas comemorativas do primeiro centenário do nascimento do grande brasileiro; e as que proferiu de 1950 a 1957, em S. Paulo, Campinas, Ribeirão Preto (Estado de São Paulo) e em Porto Alegre, na Universidade do Rio Grande do Sul.
Sociedades culturais e científicas a que pertence — Institut International de Sociologie, de Paris; American Sociological Society; International Sociological Association, fundada em 1949, em Oslo (Noruega), por iniciativa da Unesco, e de que foi vice-presidente (1950-1953), eleito no Congresso Mundial de Sociologia, em Zurique (1950); Associación Latino-Americana de Sociologia, com sede em Buenos Aires; Academia Nacional de História, da Bolívia; Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, São Paulo, Brasil; Sociedade Brasileira de Sociologia, de que é presidente desde sua fundação em 1935; Conselho Cultural do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Rio de Janeiro; Associação Brasileira de Educação, Rio de Janeiro; Centro Cultural Brasil-Israel, de que é presidente desde a sua fundação (1955).
Distinções recebidas - Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 1943; Cruz de Oficial da Legião de Honra da França, 1947(*).
Depois de 1957, ano atingido pelo curriculum apresentado, Fernando de Azevedo tornou-se Secretário da Educação e Cultura do Município de São Paulo (1961) e foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (1968). Faleceu a 18 de setembro de 1974.
(*) Curriculum vitae datilografado, parte do Arquivo Fernando de Azevedo existente no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
Suas Obras Completas, publicadas pela Melhoramentos, compreendem 27 volumes. Neste trabalho pretendeu-se analisar os aspectos mais relevantes do pensamento e da
ação de Fernando de Azevedo, em particular aqueles mais diretamente ligados à educação brasileira. Alguns desses aspectos, em virtude da própria natureza geral do trabalho e da perspectiva adotada, podem ter escapado a este estudo ou ter sido objeto de uma análise mais rápida do que seria necessário. Entretanto, o que sempre se procurou foi manter uma fidelidade tao auténtica quanto possivel ao pensamento de Fernando de Azevedo, expresso em sua obra e, por isso mesmo, tornaram-se necessárias freqüentes citações da mesma.
Na medida em que se buscou analisar a contribuição de Fernando de Azevedo à educação e à cultura brasileiras, não se deu atenção a outros aspectos de sua existência, como a vida familiar. No entanto, com o objetivo de tornar mais ampla e completa a visão aqui apresentada, incluiu-se em apêndice um depoimento exclusivo de Lollia de Azevedo Marx, filha do educador.
A poesia do corpo
"Fernando de Azevedo realiza atualmente no Brasil quase um paradoxo. Latinista de verdade, bate-se pelo atletismo com o denodo de apóstolo. "
Aitur Neiva - 1922
"Assim, a Antigüidade lhe inspirou o culto pela educação fisica, de que foi um dos primeiros teóricos no Brasil, revelando a força educativa da ginástica e do esporte. "
Antônio Cândido de Mello e Souza - 1984
Mais de 60 anos após as palavras de Artur Neiva, apontando um quase paradoxo nas atividades de Fernando de Azevedo, Antônio Cândido oferece-nos uma explicação para o problema: foi a Antigüidade que inspirou ao educador o culto pela educação física. Talvez isso tenha ocorrido. Entretanto, o mais provável é que entre os estudos da Antigüidade e o interesse pela educação física tenha havido uma relação de mútua influência. Esta suposição baseia-se no fato de que a primeira obra publicada por Fernando de Azevedo foi justamente um estudo sobre a educação física: a tese com que concorreu à cadeira de Educação Física no Ginásio do Estado, em Belo Horizonte, em 1915. Depois disso, no decorrer da década de 1920, o educador publicou tanto trabalhos sobre a educação física e o esporte quanto estudos a respeito da Antigüidade Greco-romana, o que faz supor uma interdependência das duas áreas.
Fernando de Azevedo parece corroborar a explicação de Antônio Cândido, embora a anteceda de um estratégico "talvez": "(...) não foi a despeito de minha formação inicial, impregnada de humanismo clássico, mas talvez por força e sob a inspiração desse humanismo mais grego do que latino que meu pensamento e minha ação se voltaram na mocidade para a cultura física e as atividades atléticas."1
O certo é que a educação física e a Antigüidade Grego-romana coexistiram na mocidade de Fernando de Azevedo. Especificamente em relação à primeira, além da obra Da Educação Física2, publicada pela primeira vez em 1916, o educador lançou, ainda, Antinous - um Estudo de Cultura Atlética3, em 1920, e A Evolução do Esporte no
Prefácio à 3a edição do livro Da educação física. São Paulo, Melhoramentos, s.d. p. 12.
A edição de 1920 foi publicada por Weiszflog Irmãos, de São Paulo. A edição de 1916, a primeira, não foi localizada.
3 São Paulo, Weiszflog Irmãos, 1920.
Brasil e Outros Estudos de Educação Física e Higiene Social4, em 1930. As três obras foram reunidas no volume I das Obras Completas organizadas pela Editora Melhoramentos, edição que é utilizada neste trabalho.5
Da Educação Física, segundo O Estado de S. Paulo, constitui "um espléndido trabalho de crítica como ainda em parte alguma do mundo se tentara, sendo nele feito um completo e perfeito estudo comparativo dos métodos e das escolas de educação física no tempo e no espaço..."6 Para que se tenha uma idéia da extensão e da profundidade desse trabalho que Fernando de Azevedo escreveu aos 20 anos, basta que se atente para o número de páginas (306, na edição de 1920) e para a bibliografia (87 livros, dos quais apenas dois em língua portuguesa). A grande maioria é constituída por textos franceses (65 livros) e alemães (12 livros), distribuindo-se os restantes entre o italiano, o inglês, o latim e o espanhol. Não se pode esquecer que o trabalho foi escrito como tese para o concurso à cadeira de Educação Física no Ginásio do Estado. Atualmente, um trabalho com tais características poderia muito bem ser apresentado em concurso de professor titular em grande parte das universidades brasileiras.
A obra divide-se em três partes. Na primeira parte - O Estado da Questão. Fatos e Interrogações - o autor discute algumas questões básicas: origem e evolução da educação física; bases científicas, objeto e concepção moderna da educação física; importância e valor da educação física; o exercício e seu papel na idade pubertária; a ação psicológica do exercício; a fadiga e o exercício; definição e plano geral de educação física; exercícios físicos: como se classificam; o prazer e o exercício físico; o papel dos jogos na infância; da ginástica escolar ou pedagógica e sua natureza; os esportes e sua justa situação num programa escolar; a educação física da mulher: o aspecto social do problema; eugenia e plástica;o papel do professor de educação física.
As escolas e os métodos constituem o objeto de estudo na segunda parte : Divergências de Escolas: em que se Baseiam, focalizando a escola amorosiana; o sistema de Sandow: a idolatria do músculo; ginástica de Müller e sistema sandowiano: ginásticas de quarto — escolas que se digladiam; o jiu-jitsu como esporte e como método de educação física; escola anglo-americana: predominância esportiva; o método de Ling: seu valor e supremacia do ponto de vista de ginástica educativa; as ginásticas sueca, francesa e alemã (ou de aparelhos): suas diferenças. O naturismo da escola hebertiana; a ginástica escolar e seus princípios; a individualização do ensino e a pedologia; os fatores do clima, da raça, da idade e do sexo na escolha do sistema; a educação física e sua vista de conjunto e na articulação de seus detalhes; o valor relativo de cada escola.
Os problemas brasileiros concernentes à educação física são analisados na terceira parte - Importância e Situação do Problema no Brasil:a rotina da educação física em nossas escolas; a ergastenia escolar e suas causas. O treinamento e o empirismo na educação física; abusões e preconceitos. A situação, entre nós, do professor de educação física; a importância da ginástica respiratória: ginástica respiratória individual e coletiva; o futebol: o verdadeiro valor do esporte inglés no plano geral da educação física; a hidroterapia na educação física; o nosso programa: princípios em que se baseia; idéias
São Paulo, Melhoramentos, 1930.
O Volume I das Obras Completas apresenta 332 páginas assim distribuídas: Da educação fí-sica:p. 3-219; Antinous:p. 221-278; A evolução do esporte no Brasil:p. 279-332.
6 O Estado de S. Paulo (Edição da Noite), 8-6-1920.
a adotar: a) antropometria escolar; b) colaboração médico-pedagógica; c) mensuração semestral do coeficiente de robustez; d) os boletins das mensurações corporais; patologia escolar. O papel da ginástica médica ou ortopédica na escola; higiene da educação física; o problema da higiene social pela educação física; organização nacional e educação física.
A simples vista dos assuntos tratados permite-nos avaliar a grande importancia da obra, ponto de partida de quase duas décadas de intensas atividades em prol da educação física, de modo especial como atividade escolar e em praças que haveriam de constituir centros de jogos para crianças.
No prefácio de 1915, Fernando de Azevedo justifica a escolha do título original do livro Poesia do Corpo: "À atlética, no alto sentido que lhe atribuímos, se ajustaria ono-me de 'poesia do corpo', por procurar tanto a saúde e o vigor quanto o equilíbrio e a harmonia, a beleza e a graça. É a expressão sintética da concepção moderna da ginástica, que, no seu elevado intuito pedagógico, é de fato e não pode deixar de ser 'poesia': criação. Disciplina e arte a um tempo — baseia-se tôda na biologia, nos princípios anatómico-fisiológicos para alcançar a saúde do corpo, que é a condição fundamental da do espírito, e tem a realizar também um fim estético — o belo na forma e no movimento."7
A obra de Fernando de Azevedo apareceu em segunda edição em 1920, já então com o título Da Educação Física, mais adequado à amplitude do trabalho, refundido e aumentado de dez capítulos, conforme o sumário aqui apresentado. Mais do que antes, como transparece claramente no prefácio da 2a edição, parece que agora o entusiasmo do autor pela educação física cresceu de forma extraordinária, encarando-a quase como uma panacéia universal: "... o preparo físico - pelo estímulo enérgico que provocam os exercícios no funcionamento fisiológico de todos os órgãos, inclusive do cérebro, que largamente beneficiam, estimulando intensamente seu desenvolvimento e sua nutrição - é um grande fator social e educativo, maravilhoso instrumento de recuperação física e transformação estética do indivíduo e uma das forças mais eficazes do desenvolvimento da mentalidade, da formação do caráter e da vontade, sobre os quais exerce poderosa e incontestável influência."
Mas Fernando de Azevedo vai muito além Não é apenas o indivíduo que se beneficia com a prática da educação física. Esta, em conjunto com outras medidas eugénicas, teria importante papel na construção de uma nova sociedade, fortificando e enriquecendo nossa gente "pela criação incessante de indivíduos robustos". uma nova etnia, que se imponha pelas suas graças físicas, mas também por uma mentalidade crítica e aberta. Em suma, um belo sonho cujo alcance só as próprias palavras do autor podem transmitir. A conclusão da obra é quase patética: "Aplicada convenientemente a educação física em gerações sucessivas e apoiada num conjunto sistemático de medidas eugénicas, poderá chegar-se mais rapidamente à afirmação de tipos característicos, com seus traços somáticos comuns - a um grupo talvez extremo e definitivo, representante nacional genuíno de uma nova etnia, que venha a constituir a comunidade nacional e possa ir florescendo, através do tempo, numa juventude cada vez mais robusta, rubra nos glóbulos vermelhos e morena na tez requeimada da pele. uma mocidade que se imponha não só pelas graças físicas, pela saúde, força e beleza, mas também, com a con-
7 AZEVEDO, F. de. Da educação física. 3. ed. São Paulo, Melhoramentos, s.d.p. 24-5.
Idem, ibidem, p. 26.
vivencia crescente de culturas heterogéneas, pela aquisição de uma mentalidade critica e aberta, capaz de compreender e valorizar tudo o que haja de auténtico, original e criador em cada civilização."9
Um sonho que, no Brasil, parece que ninguém levou a sério, muito menos as autoridades responsáveis pela educação e pelo esporte. Mas um sonho que vai muito além das meras atividades de educação física, já que parece haver um descompasso muito acentuado entre estas e os grandes e amplos objetivos que o autor lhes atribui. Na verdade parece que se manifesta aqui um excessivo entusiasmo, um otimismo exagerado, transferido mais tarde para a educação de modo geral, na forma do entusiasmo pela educação e do otimismo pedagógico, conforme análise de Jorge Nagle.10
Há que ressaltar a insistência sempre presente na purificação da raça, como se esta dependesse fundamentalmente da educação física, esquecendo-se fatores fundamentais como a alimentação, saúde, habitação, trabalho, etc. Além do mais, até que ponto um investimento excessivo - teórico e prático - na educação física, entendida como "afinadora da raça", investimento que provavelmente estaria longe de atingir amplas camadas populacionais, não traria implícita uma discriminação em prejuízo de indivíduos excluídos do grupo "representante genuíno de uma nova etnia"?
Antinous inclui dois estudos: O Segredo de Maratona - Apologia da Cultura Atlética, conferência pronunciada a 25 de janeiro de 1919 na Sociedade Eugènica de São Paulo; e Atlética Antiga e Atlética Moderna.
No primeiro estudo, Fernando de Azevedo faz a apologia dos esportes: "Mas a que atribuir essa robustez, que permitiu a um soldado, ferido e quase exausto, executar o lance de heroísmo, que é a memorável jornada de Maratona; a que atribuir esse esforço supremo de energia senio às virtudes cívicas, ao hábito do exercício, à cultura racional, à atlética, em suma — vida higiênica e arte plástica, erigida ao primeiro plano nessa educação sábia, que se destinava a formar o cidadão completo, o ideal da antigüidade clássica? Na atlética (permiti-me chamar aos esportes por seu nome grego), está, pois, o segredo de Maratona."11
Tal apologia perpassa tôda a conferência — cultura intelectual e educação física; atlética e eugenia; o exercício em face do veículo e da civilização moderna; o valor higiênico da atlética; o esporte como arte plástica; o valor psíquico-moral e o exercício; mobilização militar e mobilização esportiva; etc. - chegando à pergunta: "Qual o estorvo capaz de contrastar seriamente entre nós a ação lenta, mas eficaz da eugenia?" O próprio autor responde: "A raça... Mas não é obstáculo a raça". Fernando de Azevedo cita Monteiro Lobato: "(...) a raça dos bandeirantes é a mesma de Jeca-Tatu. É um longo e ininterrupto estado de doenças transmitido de pais a filhos, que explica como e porque dos Fernão Dias Pais Leme de outróra, terríveis varões enfibrados de aço, ressurtiu uma geração avelhantada, anemiada, feia, incapaz."12 Através da atlética. no entender de Fernando de Azevedo, chegaria o dia em que se substituiria "o riso se-
Idem, ibidem, p. 216-7.
NAGLE, J. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo. Ed. Pedagógica e Universitária, 1974.
11 AZEVEDO. F. de. Da educação física. Op. cit., p. 229.
12 Idem, ibidem, p. 247.
co e aparvoado do fraco pela alegria desabotoada e sugestiva do forte."13
Sem dúvida trata-se de um ponto de vista pelo menos discutível. Afinal de contas, no tempo dos bandeirantes, nem todos, provavelmente só uma minoria, tinham a robustez de um Fernão Dias Pais Leme e, assim mesmo, cabe perguntar até que ponto tal fibra foi resultado da atlética. Por outro lado, as doenças sao conseqüências de fatores estruturais, como a desigualdade sócio-econômica exacerbada que, durante séculos, permitiu a uns viverem nababescamente à custa da miséria e da fome da grande maioria.
Outros fatores, como a imigração e o clima, também não constituiriam obstáculo à ação da eugenia, já que não há clima inóspito ante o poder da ciência.
No segundo estudo — Atlética Antiga e Atlética Moderna — o autor exalta a atlética antiga e condena as restrições que a civilização moderna oferece ao exercício. Cada nova descoberta da ciência reduz as condições de exercício, reduz o campo da ação muscular: "O maior exercício contra o exercício é a própria civilização moderna."'4
O texto A Evolução do Esporte no Brasil (1822-1922) foi escrito para a edição especial do jornal O Estado de S. Paulo, comemorativa do 19 Centenário da Independência do Brasil. Nele Fernando de Azevedo traça um painel dos vários esportes - equita-ção, caça, cavalhadas, touradas, capoeira, esportes anglo-saxõnicos, etc. - acalentando em seu final "a esperança de chegar um dia em que possamos também fazer inveja a outras nações pela organização modelar de nossa educação física."15
Em trabalho para justificar a necessidade da construção de praças de jogos para crianças, na cidade de São Paulo, Fernando de Azevedo apontou a tríplice função educativa dos jogos infantis: "a) higiênica, porque o jogo ao ar livre é condição indispensável ao seu desenvolvimento físico; b) intelectual, porque servindo para lhes educar e apurar os sentidos e lhes dar hábitos de cálculo, reflexão e previdência, contribuem para a formação de sua mentalidade; e c) social, porque, estreitando o convívio de crianças de várias origens, têm por finalidade eliminar-lhes ou atenuar-lhes o preconceito de classes e, aproximando crianças rudes de educadas, despertar nestas o amor e o respeito pelos humildes e naquelas o hábito e as maneiras das que já foram beneficiadas pela educação no lar e nas escolas."16
No mesmo trabalho, o autor apresentou o que seria "a instalação de uma praça ideal", diferente de todas as "existentes no estrangeiro", com as dimensões de 100x150 metros. Apenas para que se tenha uma idéia da sofisticação da praça, vejamos algumas de suas instalações: estabelecimento balneário, piscina, estabelecimento de duchas, rouparia, lavabo, consultório médico, espaços livres, campos para jogos (de areia e de relva, este substituível por um rinque de patinação), gramado, tanque de vadiar, sala de ginástica com todos os equipamentos, pátio de aparelhos, oito caixas de areia, instalação sanitária, etc.
No final do traballio, Fernando de Azevedo oferece uma série de recomendações aos poderes públicos. Algumas dessas recomendações são particularmente interessantes por envolverem iniciativas tomadas apenas nas últimas décadas pelos poderes públicos e, assim mesmo, de maneira limitada:
Idem, ibidem, p. 246.
Idem, ibidem, p. 265.
Idem, ibidem, p. 305.
Idem, ibidem, p. 309.
• reservarem as municipalidades, na abertura de novos bairros, terreno para praças de jogos para crianças;
• dotar o Estado os pátios de todas as escolas públicas de aparelhamentos para jogos e brinquedos;
• onde ainda não houvesse praças para jogos, as municipalidades adotarem medidas provisórias : a suspensão, em certos dias e horários, do trânsito em determinadas ruas para que as crianças pudessem entregar-se a seus brinquedos e jogos; colocar à disposição de crianças pobres, aos domingos e feriados, bondes especiais para o seu transporte as praças mais próximas.
como se pode observar, a atuação de Fernando de Azevedo junto à educação física e ao esporte, tanto através de estudos teóricos quanto por meio da sugestão e da tomada de iniciativas, foi particularmente intensa até o final da década de 1920. Nas reformas educacionais que promoveu, no Rio de Janeiro e em Sao Paulo, a educação física sempre mereceu um lugar de destaque, sempre encarada em sentido amplo, como uma atividade educativa a influenciar decisivamente outras áreas de ensino. Sua presença também foi decisiva, de modo especial no Rio de Janeiro, no sentido de que as escolas tivessem amplos pátios providos de numerosos e adequados aparelhos para jogos.
Sem dúvida tal empenho teve muito a ver com a época — primeiras décadas do século — quando a preocupação com o desenvolvimento físico, com o aperfeiçoamento da raça, com a eugenia, esteve muito em voga, como fator fundamental não só do aperfeiçoamento individual, mas sobretudo do desenvolvimento nacional.
Máscaras e retratos
"O teu artigo! Que direi dele? Há ai certas observações microscópicas que me impressionaram profundamente. Reve-laste-me um Coelho Neto que eu desconhecia, mas que agora sinto. Apresentaste-me a mim mesmo. "
Coelho Neto
Conseqüência natural de sua formação humanística, os estudos clássicos de Femando de Azevedo ocuparam principalmente a primeira metade da década de 1920, quando vários trabalhos vieram a público: No Tempo de Petronio — Ensaios sobre a Antigüidade Latina (1923); Jardins de Salústio - A Margem da Vida e dos Livros (1924); O Segredo da Renascença e Outras Conferências (1925); Páginas Latinas - Pequena História de Literatura Romana pelos Textos (1927).1
Apesar de situados em determinada época, da mesma maneira que a formação humanística que os inspirou, esses estudos exerceram influência decisiva sobre as atividades posteriores de Fernando de Azevedo: "Essa formação não só me tinha marcado fortemente o espírito, que relutava em desprender-se dos interesses e das atividades literárias, como também (o que me foi fácil verificar) me havia armado, pelo hábito da análise crítica e pelo gosto da propriedade e da precisão, de certos instrumentos intelectuais, indispensáveis à abordagem de problemas de natureza e níveis diferentes. Não tivesse tido uma preparação a um tempo filosófica e literária, em que meus mestres me incutiram o espírito crítico de análise e reflexão, a procura do rigor no raciocínio e o gosto das construções teóricas, e não teria conseguido, sem nenhum mestre e sem qualquer aprendizado especial dirigido de cima, reeducar-me, proceder à revisão de meus conhecimentos e imprimir-me, por mim mesmo, nova orientação no sentido do espírito e dos métodos científicos."2 Da filosofia para a ciência - da educação e da sociedade — o jovem professor carregou consigo "um espírito já disciplinado, que aprendera a pôr ordem nas palavras por se ter habituado a pôr ordem nas idéias".3
Espírito crítico e disciplinado, rigor de análise, de reflexão e de raciocínio constituem sem nenhuma dúvida, elementos essenciais e sempre presentes na vida intelectual de Fernando de Azevedo, mas de modo especial em sua crítica literária. Esta, ape-
Os editores desses estudos de Fernando de Azevedo, em sua primeira edição, foram os Irmãos Marrano (No tempo de Petronio e Jardins de Salústio); a Editora Nova Era (O segredo da Renascença e outras conferências); e a Editora Melhoramentos (Páginas latinas); todos de São Paulo.
2 Prefácio de Máscaras e retratos. 2. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1962. p. 11-2.
Idem, ibidem, p. 12.
sar de ter ocupado um tempo diminuto de sua vida (1924-1926), produziu textos de real valor, publicados inicialmente no jornal O Estado de S. Paulo. Reunidos em um volume, sob o título genérico Ensaios, tais textos foram editados pela Melhoramentos em 1929. Posteriormente, em 1962, uma segunda edição revista e aumentada veio a público. Além de alguns acréscimos novos — A Escola e a Literatura (Introdução); 0 Homem Euclides da Cunha; Gilberto Freyre e a Cultura Brasileira; e mais alguns estudos literários e prefácios —, o próprio título da obra foi modificado, passando a ser Máscaras e Retratos.
Por que máscaras? Há críticos que realçam os defeitos ou aspectos negativos, outros as qualidades ou aspectos positivos, segundo o temperamento de cada um. Fernando de Azevedo preferiu seguir um caminho próprio e, até certo ponto, original: "Sem desconhecer o que essas obras e seus autores tivessem de criticável de tal ou qual ponto de vista ou apresentassem do que levamos à conta de defeitos, erros e lacunas, procurei, destacando-lhes as qualidades, lançar sobre aqueles, à semelhança de um véu ou, se se preferir, de uma máscara, não para encobri-los propriamente, mas para os dissimular, uma linguagem velada, de malícia e de ironia, que são maneiras de não dizer senão parte ou de exprimir o contrário do que pensamos e sentimos."4
Malícia e ironia estão presentes, por exemplo, inclusive literalmente, na seguinte passagem da crítica que Fernando de Azevedo escreveu sobre o livro Humor, de autoria de seu futuro colaborador na reforma da educação no Distrito Federal, Sud Me-nucci: "Mas, se um acentuado desdém, que parece afetar, pela doutrina e erudição, -bases indispensáveis a tôda sólida organização filosófica, - o levou, por um lado, a evitar qualquer exibição intempestiva de cultura, por outro, o impeliu a fazer uma concessão larga demais à ligeireza de espírito. 0 autor do Humor tem o bom gosto de refugar todo o pedantismo científico. Nem é mesmo dos que procuram simular cultura. Por isto não se parece com aquele astuto mercador, Hipérbolus, de que fala Aristófanes, e que para aumentar o peso e, portanto, o preço de suas lámpadas de bronze, lhes enchia o interior de chumbo... Mas certos espíritos perspicazes, excessivamente confiados na sua penetração crítica, são levados, com facilidade, sem o quererem, ao que Madame de Staël chamou, com malícia e ironia, "o pedantismo da ligeireza". Demais, é na cultura e na doutrina, - alvo das zombarias do ensaísta, — que se afiam as flechas da intuição, e a pureza da verdade nunca saiu, com alguns quilates a mais, da forja da meditação filosófica, sem que nessa fragua fosse mantido constantemente o fogo com o próprio material transportado pela erudição e pela ciência."5
Fernando de Azevedo tem consciência da ambigüidade das conceituações de defeitos e qualidades, que variam conforme a concepção de estética literária, a personalidade do autor e o momento histórico-cultural da criação. Por outro lado, há um sentido peculiar da palavra máscara, que é fisionomia característica, cuja procura na obra criticada constituiu uma preocupação constante do crítico. Essa fisionomia é aquela que fica impressa quando se tira a gesso a máscara de um morto. Entretanto, cabe a cada poeta, a cada escritor cuja obra foi analisada, julgar se o estudo feito pelo crítico constitui máscara ou retrato.
Por que retratos? A palavra retrato é empregada pelo crítico com o mesmo sentido com que circula na linguagem corrente: "Imagem, representação de uma pessoa quer
Idem, ibidem, p. 14.
Máscaras e retratos. Op. cit., p. 39-40.
pela pintura ou pela fotografìa, quer por uma análise e descrição de seus traços mais salientes e característicos."6
Observando à distancia, cerca de 35 anos após ter esento a crítica literária, Fernando de Azevedo, no prefácio à segunda edição de Máscaras e Retratos, que é de 1962, tem a certeza de sempre ter procurado ser objetivo, de acordo com sua sensibilidade artística e sua intuição: "Certamente, sempre me esforcei por observar com objetividade e exprimir com isenção de ánimo, e, tratando-se de obra literária, cuidava sobretudo de senti-la, — o que não se consegue senão por um dom muito especial que nos vem da sensibilidade artística e da intuição." Mas o crítico tem consciência, também, das próprias limitações e das possíveis influências de simpatias e prevenções em relação aos autores das obras analisadas: "De um lado, porém, manifestação ou produto do engenho humano, em qualquer dos domínios da arte, é uma realidade complexa e fugidia, que nem sempre é fácil de atingir no que tenha de mais profundo e de que nos escapam, às vezes, aspectos essenciais. Por outro lado, nos julgamentos de um crítico, — porque nada do que é humano lhe é estranho, — podem intervir e, de fato, intervém por vezes simpatias e prevenções que contribuem antes para 'mascarar' os autores do que para retratá-los."7
Máscaras e Retratos divide-se em três partes. Na primeira parte os autores sao reunidos em função dos temas tratados em suas obras: a crônica moderna; história natural brasileira; a crítica literária; a poesia social no Brasil; natureza e piedade; a raça na poesia brasileira; literatura pedagógica; etc.
A segunda parte abrange análises por autor: Aristeu Seixas, Amadeu Amaral, Coelho Neto, Plínio Barreto, Batista Pereira, Paulo Setúbal, J ú l i o de Mesquita Filho, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre são os escritores estudados.
Já na terceira parte, além de pequenos estudos escritos na década de 1920 para a seção Bibliografia do jornal O Estado de S. Paulo, são incluídos quatro prefácios: três escritos em 1946 e um, em 1951.
como a atuação predominante de Fernando de Azevedo foi desenvolvida no campo da educação, interessa-nos de modo particular verificar como o educador concebeu o significado da educação e da escola na história da literatura. Tal concepção encontra-se formulada no estudo A Escola e a Literatura incluído a título de introdução em Máscaras e Retratos.
Tanto o fenômeno literário quanto o pedagógico emergem de condições concretas histórico-sociais. E no âmbito dessas condições que devem ser analisadas as relações entre escola e literatura. No Brasil podemos distinguir duas grandes fases na produção dos fenômenos pedagógico e literário e na interação entre ambos: a fase que abrange o período colonial e o Império e a fase republicana.
Na fase que abrange a Colònia e o Império verifica-se um entrosamento entre a escola e a literatura, ambas associadas à família, à Igreja, ao poder econòmico e político, formando um conjunto de instituições convergentes e solidárias. O saber era detido pelos religiosos, de modo especial pelos jesuítas, que o transmitiam pelo ensino, pela pregação e pela própria vida, em que se misturavam o sagrado e o profano, em que a religião exercia poderosa influência. Essa influência continuou durante o Império, apesar da laicização do ensino, já que Igreja e Estado estavam unidos.
Idem, ibidem, p. 13.
Idem, ibidem, p. 15.
A escola dessa primeira fase era essencialmente humanística, literária, em que a eloqüência e a retórica eram supervalorizadas. Afirma Fernando de Azevedo: "Tendendo tanto a favorecer vocações literárias quanto a descoroçoar os tipos de inteligência, inclinados porventura a outras direções, a escola não só canalizava a atividade intelectual para as 'coisas literárias', desviando-a de outras aplicações, como passou a emprestar desde cedo um certo caráter, um tonus especial a tôda sorte de produções mentais. A eloqüência sagrada, como mais tarde, no Império, a eloqüência parlamentar e o teatro, combinando a palavra com outros meios de expressão (a mobilidade de máscara, a mímica, o gesto) e atingindo às vezes, por isso, extraordinário poder de invocação coletiva, favorecia de alto a baixo, na escala social, o gosto pela linguagem falada, viva e sedutora, que se cultivava nas escolas pelos exercícios de retórica e pelas disputações escolásticas."8 com o Império e a criação dos cursos superiores, em particular de Direito, abre-se um campo mais vasto à difusão das idéias jurídicas e literárias, em que oradores e poetas como Castro Alves, Fagundes Varela, Alvares de Azevedo e outros puderam exibir a força do seu talento.
A escola humanística contribuiu para generalizar a expressão literária, o amor á forma pela forma, o requinte e os rebuscamentos, elementos essenciais na formação da nossa sociedade, de modo especial da classe dominante, em que os formalismos burocráticos emperram a eficiência administrativa.
A escola de formação lingüístico-literária e a tradição cultural que ela ajudou a formar são, em parte, responsáveis pelo fato de que, ao contrário do que acontece em outros países, a literatura é no Brasil, "mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito".
Nas duas épocas em questão — Colônia e Império - existiu certamente "uma situação de compromisso, uma cumplicidade aberta, na Colônia, ou latente no Império entre a escola que refletia a cultura da época em Portugal, e a literatura do país".
Na segunda fase - período republicano — de modo especial a partir de 1930, novas condições modificam as relações entre a escola e a literatura. Por um lado, o próprio sistema educacional vai-se transformando, os currículos vão deixando de ser predominantemente humanísticos e literários, as escolas vão-se diversificando em vários graus e modalidades, uma nova clientela com novos interesses e condições passa a freqüentar os bancos escolares.
Por outro lado, "com os processos de industrialização e urbanização que começaram a acelerar-se, depois da Primeira Guerra Mundial, e as novas técnicas de transporte e comunicações - a expansão da imprensa, o impulso que tomaram as livrarias e as empresas editoras, a distribuição mais rápida de livros e revistas, as viagens dentro e para fora do país, as influências pessoais e de grupos e os contatos, por todas as formas, com as novas correntes de idéias e concepções estéticas contribuem para quebrar a influência da escola tradicional, inaugurar, sob pressão de 'novos' e 'novíssimos', uma era de inquietação e abrir aos meios literários fontes de inspiração mais modernas e singularmente fecundas. J á não é sob qualquer influência direta, mas à margem da escola e em oposição a ela que se desenvolvem e se renovam a crítica, a literatura de ficção, a poesia e o teatro".10
Idem, ibidem, p. 19.
Idem, ibidem, p. 32.
Idem, ibidem, p. 33.
Fernando de Azevedo aponta um dado significativo que reforça sua análise. Não é nas regiões em que mais se desenvolveu o sistema escolar que mais tomou impulso a literatura. Nossos maiores romancistas vêm do Nordeste e de Minas Gerais e nao de São Paulo.
Isso nao quer dizer que a escola não tenha importância para a literatura. Ela continua a ter importância, só que agora mais do ponto de vista do consumo do que da produção. A expansão das matrículas nas escolas de todos os níveis é um fator fundamental para o crescimento do público leitor e, portanto, que tem repercussões sobre o desenvolvimento da literatura nacional. Conclui Fernando de Azevedo: "A escola, pois, se não influi diretamente sobre a produção, é certo que, contribuindo para alargar e diversificar o público, estimula as criações do espírito, a que se abrem novas perspectivas, e, afinal, produz consumo, aumentando constantemente o número de leitores e. portanto, o mercado de livros."11
Após 1927, as incursões de Fernando de Azevedo no campo literário tomaram-se esporádicas, só ocorrendo em função de interesses específicos, como convites para conferências ou para prefaciar livros. Alguns fatos, como o inquérito educacional que promoveu em 1926, a reforma da educação no Distrito Federal, o convite para reger a cadeira de Sociologia no Curso de Aperfeiçoamento da Escola Normal da Capital, em São Paulo, contribuíram para que ele passasse a se dedicar sistematicamente a dois outros setores: a sociologia e a educação.
Na verdade, apesar de fatos objetivos pressionarem Fernando de Azevedo para o campo da sociologia e para a educação, não foi sem polêmica que ele relegou os estudos literários a um segundo plano: "Confesso, no entanto, ter sido uma árdua polêmica a que se travou em meu espirito, mas entre duas inclinações, igualmente fortes-as literárias, de um lado, e as científicas e educacionais, de outro — acabaram estas por vencer, não só pela consciência cada vez mais viva da importância da ciência e da técnica, na civilização atual, como também por me parecerem mais urgentes, em nosso país, os esforços em favor do desenvolvimento das ciências sociais e da solução dos problemas fundamentais da educação. Era preciso nas condições presentes sacrificar o ho-mem de letras, e eu me dispus naturalmente a sacrificá-lo de certo modo, para servir à ciência e, especialmente, à sociologia que me foi particularmente útil ao técnico, ao reformador e ao político da educação. Não creio terem perdido alguma coisa as letras de meu país nem terem lucrado muito as ciências sociais e a educação no Brasil."12
Idem, ibidem, p. 34.
12 Idem, ibidem, p. 12-3.
A educação na encruzilhada
"Esse largo inquérito marca efetivamente um periodo agudo na fermentação de idéias com que, nos domínios da educação, já se processava um movimento francamente renovador, igual ao que se manifestara na arte e na literatura, e que culminou na 'Semana de Arte Moderna', realizada em São Paulo. "
Fernando de Azevedo
Na verdade, não foi somente a educação que encontrou-se na encruzilhada na década de 1920. A própria crise educacional foi, até certo ponto, reflexo de uma crise muito mais ampla e profunda, resultante da crescente distância entre os ideais e os fatos republicanos: "Os ideais republicanos alimentaram intensamente projetos de um novo Brasil: uma federação democrática que favorecesse a convivência social de todos os brasileiros, promovesse o progresso econômico e a independência cultural.
Entretanto, o que se viu na realidade foi bem diferente. A frustração dos ideais republicanos conduziu o Brasil, as vésperas da Revolução de 1930, a enfrentar sérias crises em todos os setores da vida nacional. Crises que foram importantes fatores de mudança e fizeram avançar nossa história:
" •A federação foi frustrada pela centralização do poder promovida pelo controle do coronelismo, pela política dos governadores e pela 'dieta do café-com-leite'.
• Vários fatos contribuíram para a frustração do ideal democrático: só podiam votar os maiores de 21 anos do sexo masculino; as eleições eram fraudadas, para manter sempre o mesmo grupo no poder - atas eleitorais eram falsificadas, a mesma pessoa votava diversas vezes, defuntos compareciam às mesas eleitorais, etc.
• A convivência social viu-se frustrada pelo impedimento à participação, nas estruturas do poder, por parte das classes médias e dos trabalhadores, que eram explorados e oprimidos.
• A dependência do café e dos mercados internacionais frustrou o progresso econômico, levando o Brasil a enfrentar dura crise e depressão econômica, principalmente no final da Primeira República.
• A dependência cultural de modelos europeus, alienados do Brasil, levou uma par-
te dos nossos intelectuais a se revoltarem e, através da Semana de Arte Moderna, em 1922, proporem uma cultura autenticamente brasileira."1
O próprio Femando de Azevedo situa o movimento pela renovação educacional no âmbito de uma mudança mais profunda: "A geração nascida com a república e as que se lhe seguiram, arvoraram por tôda parte a bandeira da revolução com que se pretendia substituir uma democracia de nome por uma democracia de fato, em que as instituições políticas desabrochassem, na sociedade brasileira, como um produto natural de uma estrutura social e econômica, reconstruída em bases verdadeiramente democráticas."2
uma visão à distância, porém, dessa comparação entre a reforma educacional e a mudança em outros setores da vida nacional, de modo particular na arte e na literatura, leva-nos a uma conclusão um tanto quanto desalentadora: enquanto na arte e na literatura as mudanças foram grandes e profundas, no campo educacional, apesar dos esforços de inúmeros educadores, pouco avançamos além de mudanças administrativas e de avanços quantitativos visando a um aumento do número de matrículas. No aspecto qualitativo, isto é, em relação ao tipo de educação, bem como à maneira como essa educação é oferecida, parece que pouco evoluímos em relação aos últimos anos da Primeira República.
De qualquer forma, os avanços administrativos e quantitativos, a par de intensamente reclamados pela população, muito devem aos educadores que se entregaram de corpo e alma à enorme e difícil tarefa de renovar a educação nacional. E Fernando de Azevedo, no dizer de A. Almeida Júnior, foi conduzido quase por acaso ao grupo dos pioneiros da educação nova:
"Até o fim do primeiro quartel deste século, Fernando de Azevedo não era o apaixonado pelos problemas da educação, em que depois se converteu. Seu ingresso neste setor, ocorrido em 1926, deu-se mesmo (podemos dizê-lo) à moda do descobrimento do Brasil: por acaso. Desincumbia-se ele, com o brilho costumeiro, das funções de professor de Latim e Literatura da Escola Normal da Praça da República e escrevia crítica literária no grande matutino O Estado de S. Paulo, quando, um dia, Júlio de Mesquita Filho, redator-chefe do jornal, lhe atribuiu a tarefa de efetuar um inquérito sobre a situação do ensino paulista. Missão arriscadíssima! como esse ensino fora promissor nos tempos de Cesario Mota, muita gente pensava que seria ilógico e até mesmo antipatriótico desconfiar que em 1925 tivesse ele decaído. Além disso, que entendia do assunto esse ex-formigão audacioso, recém-vindo de outras paragens e há pouco bacharelado em direito? Mas Fernando de Azevedo, lutador de vanguarda que era (e que ainda é!), gostava de enfrentar exatamente aquilo que aos outros parecesse difícil.
0 próprio perigo foi sempre para ele um verdadeiro chamariz (...). Ele próprio preparou o extenso questionário. Ele próprio escolheu e intimou as
testemunhas; isto é, vinte educadores que, nas respectivas searas, sabiam distinguir entre o certo e o errado, e que, além do mais, não se arreceavam das eventuais represálias. Fernando de Azevedo os classificou em três grupos - ensino primário e normal, ensino técnico e industrial, ensino secundário e superior - e publicou todos os depoimentos, um a um em sucessivas edições do jornal O Estado de S. Paulo. Analisou-os depois, com firmeza e elevação; discutiu-lhes os dados, sopesou-lhes as conclusões -quase todas pessimistas. E a apreciação geral, mais tarde formulada por ele, foi pro-
1 PILETTI.C. & PILETTI, N. Filosofia e história da educação. São Paulo, Ática, 1985. p. 189. 2 AZEVEDO, F. de. A educação na encruzilhada. 2. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1960. p. 27.
fundamente melancólica: 4A instrução pública em Sao Paulo (disse então) podia ter sido a certos respeitos excelente para a época em que se instituiu e para a sociedade a que se propunha servir. Mas, que ela perdera o admirável impulso inicial, dado nos começos da República, nâ"o há sombra de dúvida'."3
O próprio Fernando de Azevedo conta, na introdução à primeira edição do inquérito, que apareceu em 1937 sob o título A Educação Pública em São Paulo, como foi despertado seu interesse pela educação brasileira:
"Em 1926 ainda fazia no O Estado de S. Paulo a crítica literária que me fora confiada desde 1924 e cujos estudos, aí divulgados, se enfeixaram mais tarde no meu livro Ensaios. Acabava então de realizar, para esse grande diário, um inquérito sobre arquitetura colonial quando Júlio de Mesquita Filho me incumbia de organizar um outro, sobre a instrução pública em São Paulo. Espantou-me a princípio a tarefa para a qual, sem vislumbres de modéstia, não me sentia realmente preparado. É verdade que já havia feito um inquérito sobre arquitetura colonial, sem entender grande coisa do assunto quando recebi o convite para promovê-lo, e sem outro preparo que um mes de estudos... Não me parecia, porém, que, com um esforço igual, conseguisse habilitar-me a tratar de matéria ainda mais difícil e complexa, como a de educação e ensino que, envolvendo questões de filosofia, política e técnica, não podia ser abordada senão com informações precisas sobre os sistemas educacionais modernos e especialmente sobre o de São Paulo e do Brasil, em geral. Nesses domínios, os meus conhecimentos não ultrapassavam ainda as fronteiras de duas especialidades: da educação física a que me dedicara durante alguns anos, desde 1916, e da literatura e língua latina de que exercia o magistério na antiga Escola Normal de São Paulo.
Tôdas essas razões com que me obrigava a consciência a declinar do convite para organizar e orientar inquérito de tal vulto, anularam-se diante da vontade resoluta dos diretores de O Estado a cuja confiança afinal era preciso corresponder. Certo, o que me pediam era quase um 'milagre de improvisação'. Desses de que só os jornalistas têm o segredo... O que dei foi tudo o que podia dar um homem a quem 'nada do que é humano, é estranho', mas que, conservando-se notoriamente inacessível, desde a mocidade, às paixões e às parcialidades políticas, se habituara a observar e a refletir para opinar e a escrever com inteira liberdade de juízo e de crítica. Não houve oportunidade que não buscasse para me informar sobre o assunto, nem livro, ao alcance da mão, que não lesse para dominar a matéria. Um mês depois começava esse vasto inquérito que se desenvolveu por quatro meses a fio."4
Logo na abertura do inquérito, Fernando de Azevedo identifica o que chama de "vícios de origem" das leis do ensino, vícios que, em nossos dias, estão longe de terem sido superados: "De iniciativa do poder executivo, as reformas, esboçadas quase sempre debaixo de um sigilo impenetrável, sobem, como questões fechadas, à aprovação do Congresso justamente reconhecida por mera formalidade para transformação de qualquer projeto governamental, em lei. Apressadas na sua elaboração, geralmente clandestina, de autoria de funcionários cujos nomes se mantêm em reserva, sem consulta preliminar às congregações, sem solicitação pública de sugestões e sem debate pro-
ALMEIDA JÚNIOR, A. Fernando de Azevedo e a renovação da educação. São Paulo, Fundação
Visconde de Porto Seguro, 1964. p. 23-5. Discurso proferido por ocasião da entrega do Prêmio de Educação Visconde de Porto Seguro, 1964.
AZEVEDO, F. de. A educação na encruzilhada. Op. cit., p. 25.
vocado na imprensa, essas reformas ainda encontram, para passagem vitoriosa de todos os erros de que sejam portadoras, as facilidades abertas pela complacência ilimitada das duas Câmaras."s
Tais vícios são apenas um dos atestados do descaso com que a educação era e ainda é tratada, cujos resultados concretos são de todos conhecidos e Fernando de Azevedo já vislumbrava antes do inquérito: "A nossa educação primária, asfixiada pelo dogmatismo oficial, ainda se modela segundo um padrão único e rígido, que, além de não consultar as realidades regionais, não tem organização adequada para corrigir, pelo manualismo, o nosso desamor aos trabalhos corporais e para desenvolver, em escolas-oficinas e escolas de trabalho, o espírito de cooperação social. O ensino profissional não passa de tentativas acanhadas. Os ginásios - aliás sob a fiscalização do governo federal — não estão aptos para realizar os fins a que se destinam. Não falaremos da ausência absoluta de instituições de alta cultura, de pesquisa livre e desinteressada, voltadas ao progresso das ciências puras e aplicadas. De resto, as nossas escolas não educam; instruem apenas, quando instruem. Não confundamos instrução com a educação. Só a educação cria forças vivas; a instrução não pode servir senão para dirigi-las."6
Ensino primário e normal
Ao introduzir-nos à primeira parte do inquérito, sobre o ensino primário e normal, Fernando de Azevedo defende "a necessidade vital de se reduzir a intervenção política na direção do ensino, cujas funções essenciais, de natureza técnica, são tolhidas quer pelo seu crescente caráter burocrático quer pela falta de autonomia de pensamento e de ação".7
O triunfo da burocracia traz a obsessão da uniformidade, o desprezo pelo princípio de adaptação regional e o esquecimento do espírito de cooperação em relação ao grupo social a que pertence a escola. como resultado, a escola afasta-se de cumprir suas funçOes, específicas e diferentes em cada meio sócio-econômico: "Na praia como no sertão, nos grandes centros urbanos como nas pequenas cidades em formação, a escola primária é absolutamente a mesma, a despeito das tinturas teóricas com que às vezes se finge diferençá-la nos programas. Uniformizadas, não apenas como deveriam ser no seu espírito fundamental, e dominadas exclusivamente pela sua função alfabetizante, que não conseguem desempenhar, as nossas escolas primárias não são organizadas no sentido de reagir eficazmente sobre o meio em que se instalam e em que podiam exercer poderosa ação social e de orientação prática e educativa das atividades locais."8
A análise do questionário proposto sobre o ensino primário e normal fornece-nos uma idéia, mesmo que aproximada, das principais questões que preocupavam os educadores da época, muitas das quais conservam significativa atualidade: "1) Temos nós um aparelhamento pedagógico, primário e normal, conforme as nossas necessidades e à altura do progresso material do Estado de São Paulo? 2) Podia apresentar em síntese as falhas e os erros mais graves do ensino primário e normal, na sua atual organização?
Idem, ibidem, p. 31. Idem, ibidem, p. 33.
Idem, ibidem, p. 39.
Idem, ibidem.
3) Em que termos se deve colocar e qual a solução que deve ter o problema do ensino primário, gratuito e obrigatório? 4) Qual a melhor solução provisória ao problema do ensino primário: o ensino primário incompleto para todos ou o primário integral para alguns? 5) Nao acha que a nossa escola primária ainda nao adaptada às classes populares em cujo proveito deve organizar-se, tem falhado a fins essenciais, dentro dos ideais modernos de educação? 6) Qual o verdadeiro papel que deve caber à escola primária:
a) na formação do caráter nacional; b) na obra moderna de assistência social; c) no plano geral de educação física e na criação de hábitos higiênicos; d) e como instrumento de iniciação profissional e de preparação para a vida?
7) Posta a questão neste pé, é partidário da uniformidade do ensino primário, teórico e rígido, ou da variedade desse ensino, prático e maleável segundo as necessidades (industriais, agrícolas, pastoris, etc), da região em que a escola se instalou? 8) Não acha que o Estado de São Paulo não poderá resolver, de maneira intensiva e extensiva, o problema de educação popular, sem pôr a serviço dessa obra os grandes recursos modernos como o cinema e o rádio? 9) como está tratada e como deveria ser resolvida a questão de assistência técnica e da inspeção e fiscalização do ensino? 10) Não reconhece que nosso ensino normal está quase inteiramente:
a) desviado de seu caráter profissional; b) desamparado de material didático atual e suficiente (como museus, herbários, la
boratórios e bibliotecas); c) e inspirado enfim em plano que não consulta nem a natureza do curso, nem as
necessidades culturais? 11) Nestas condições, qual a organização que imprimiria às nossas escolas normais, para as ajustar às suas funções e multiplicar a sua eficiência?
12) Não acha que é preciso pensarmos em promover uma cooperação eficaz da família e da escola:
a) convidando os pais a assistir às aulas e a interessar-se 'pela vida normal' e não apenas nos 'incidentes' da escola;
b) e por meio de reuniões em que se encontrem, para troca de idéias, professores, pais e alunos?
13) Sendo questão vital para o ensino a formação de professores, não concorda em que, com o ensino normal, reorganizado em bases novas, devem entrar em colaboração ao lado e acima dele, o curso periódico de conferências nas férias e uma escola normal superior? 14) Que me diz da Faculdade de Educação, segundo a Reforma de 1920 e as 'modificações' introduzidas pela Reforma de 1925? Quais os princípios que deverão inspirar a sua organização para que, instalada, não redunde um dia no mais completo descalabro? 15) Qual o melhor processo de seleção para o provimento de cadeiras, no ensino primário, no ensino normal secundário e no ensino normal superior?
16) como se poderia organizar em São Paulo praticamente uma obra eficaz particular, de orientação e propaganda do ensino, e de assistência econômica, higiênica e judiciária a todo o professorado?"9
Para responder a essas questões, Fernando de Azevedo convidou seis educadores: Francisco Azzi, advogado e catedrático da Escola Normal de Casa Branca; A. Almeida Júnior, médico e lente da Escola Normal do Brás, na capital; Renato Jardim, ex-professor catedrático, ex-diretor do Ginásio de Ribeirão Preto e da Escola Normal da Capital; José Escobar, professor da Escola Normal da Praça da República; Sud Menucci, ex-de-legado regional de ensino; Lourenço Filho, professor da Escola Normal da Praça da República.
Nao caberia aqui uma análise das respostas oferecidas ao questionário pelos educadores citados, mesmo porque o que está em pauta é o pensamento de Fernando de Azevedo, implícito nas próprias perguntas e em grande parte corroborado pelos seis professores. De qualquer forma, no final do capítulo, apresentaremos uma síntese dos resultados do inquérito, segundo palavras do seu organizador.
Ensino técnico e profissional
Fernando de Azevedo começa sua introdução criticando a escassez de escolas profissionais num estado industrial como São Paulo. São apenas cinco e sua organização deixa muito a desejar, presa a uma legislação inepta e confusa, sem determinação dos ofícios que devem ser ensinados nessas escolas. Os aparelhos de instrução estão abandonados, danificados por falta de peças. Os professores e mestres, ou são normalistas, sem conhecimento de qualquer arte industrial, ou são especialistas em qualquer ofício, mas sem o necessário preparo pedagógico.
Além de elementos quantitativos e materiais, carecem essas escolas de um plano de organização, que as enquadrasse em sistema, que reunisse a pluralidade dos institutos numa obra de unidade orgànica. Falta-lhes, por isso mesmo, o espírito claro e moderno de finalidade. como resultado, mais do que um ensino técnico e profissional, como sistema, o que existia eram escolas profissionais sem organização.
Para Fernando de Azevedo, nessa crítica "perde o ensino em São Paulo mais uma das penas de pavão com que se enfeitava..." 0 questionário apresenta as questões mais em voga na época, entre os interessados no ensino técnico e profissional: "1) Qual a sua opinião sobre o nosso ensino técnico e profissional? Tanto na sua organização, nos fins e na formação científica do seu pessoal docente, como no seu acanhado desenvolvimento, não está ele longe de corresponder às nossas necessidades técnicas, industriais, agrícolas e sociais? 2) Que têm feito e que podem fazer as nossas escolas profissionais para desempenhar a função que lhes cabe, de aparelhar o elemento nacional para as atividades técnicas e de exercer ação social e econòmica, incentivando e protegendo o trabalho agrícola e as indústrias locais? 3) Não acha que as nossas escolas profissionais, vivendo parasitariamente do erário público, deveriam ser organizadas sob o duplo princípio do self-supporting (a produção industrial pelas escolas) e de adaptação às necessidades de trabalho agrícola ou industrial das regiões onde se instalaram? 4) Qual a verdadeira necessidade do ensino profissional para mulheres e do ensino pro
fissional para homens, e qual o melhor plano especialmente adequado à finalidade pro-
Idem, ibidem, p. 41-2.
curada em escolas profissionais, masculina e feminina? 5) Nao é necessário, para lhe dar finalidade moderna dentro dos novos ideais sociais, renovar o sistema de educação profissional, baseando-se sobre o 'exercicio normal do trabalho em cooperação' e dos trabalhos de caráter social, segundo o método Dewey? 6) Na importação de sistemas educativos, como slojd sueco, com suas variantes e seus derivados, e de sistemas técnicos e artísticos como o Tadd, Delia Voss, com seu derivado Eddy, tem-se procurado, em nossas escolas profissionais, adaptá-los, com modificações originais, às condições particulares do meio para que se transportaram? 7) Que se tem feito de eficaz para disseminar intensivamente desde a escola primária e adaptar à índole e aos costumes do povo e aos materiais particulares do meio, o trabalho manual e o desenho, como elementos básicos de educação profissional? 8) Já nao é tempo — para se lançar em bases sólidas o ensino técnico e profissional -de se tentar uma reforma radical do desenho em todas as nossas escolas, segundo a sugestão de Rui Barbosa:
a) 'semeando o desenho imperativamente em todas as escolas primárias; b) abrindo-lhe escolas especiais; c) fundando para os operários escolas noturnas deste gênero; d) assegurando-lhe vasto espaço no programa das escolas normais; e) reconhecendo ao seu professorado a dignidade que lhe pertence no mais alto grau de escala docente ; f) e reunindo tôda essa organização num plano coeso, mediante a instalação de uma escola superior de arte aplicada'?
9) Não lhe parece que se deve estender a obrigatoriedade do ensino técnico elementar e se deve impor, para os que não recebem uma educação superior, 'uma educação técnica pós-escolar, obrigatória', profissional para os homens (de 14 a 18 anos) e doméstica para as mulheres (de 13 a 16) em escolas gratuitas de aperfeiçoamento (as continuation schools, na técnica inglesa)? 10) Temos procurado de alguma forma valorizar o 'elemento nacional' por meio de cursos e escolas técnicas especializadas (química industrial e agrícola, metalurgia, eletricidade, mecânica, etc), que lhe abram novos horizontes econômicos, em concorrência vitoriosa com o estrangeiro e lhe dêem o gosto e a tendência das atividades técnicas? 11) Não acha que se devem instalar, na praia e à margem dos rios nas zonas mais próprias, escolas profissionais de pesca, aparelhadas de modernos instrumentos, para a instrução adequada de nossos pescadores e como um elemento à solução do problema da pesca marítima ou fluvial inteiramente descurado entre nós? 12) Não reconhece que para a defesa e orientação científica da agricultura e transformação da indústria agrícola, temos de: a) atacar o problema da educação da população rural por meio de 'escolas especiais' (escolas práticas; fazendas-escolas); b) instituir 'escolas regionais', secundárias, destinadas às necessidades específicas de cada região; c) estimular a iniciativa privada no ensino agrícola, como já existe quanto ao ensino comercial ; d) criar e organizar 'em sistema' estações agronômicas e laboratórios de pesquisas agrícolas; e) criar escolas de agricultura para o ensino técnico;
f) e reorganizar, para lhe acentuar o caráter de instituto superior, a Escola Agrícola Luis de Queirós?
13) Sendo problema básico a formação de pessoal docente de escolas técnicas, tratando-se sobretudo de matérias especiais, não é falha gravíssima não termos ainda uma escola tecnológica para mestres, em que possam os candidatos a esse magistério adquirir os conhecimentos técnicos em artes industriais par a par com a orientação pedagógica indispensável ao exercício de suas funções? 14) Já se pensou porventura entre nós em adotar nas escolas profissionais as provas psicotécnicas e em organizar-se, como é necessário, um Instituto de Psicotécnica e de Orientação Profissional, para encaminhar à solução o problema de orientação e seleção profissional? 15) como constituir em São Paulo um grande foco diretor e irradiador de expansão de arte aplicada, servido de um laboratório de tecnologia e de um museu de documentação de arte industrial? 16) Que pensa da organização de centros populares, noturnos, agrícolas e industriais para ministrar:
a) rápido ensino técnico elementar; b) instrução prática em pequenas indústrias domésticas e locais; c) cultura geral por meio de projeções, demonstrações práticas e conferências; d) e para fomentar o 'espírito cooperativo' entre alunos, por meio de associações produtoras, para a exploração de indústrias aprendidas na escola?
17) Enfim, para se completar o sistema de educação profissional não julga necessário manterem-se institutos especiais, prepostos à educação de anormais, atrasados e refratários à instrução, e semelhantes às colônias de trabalho (Arbeitskolonie), do tipo alemão, e às colônias escolares profissionais (Arbeitslehrkolonie)?"10
Seis profissionais de diversas áreas foram selecionados por Fernando de Azevedo para tecerem suas considerações a respeito dessas questões: Paulo Pestana, da Secretaria da Agricultura; Navarro de Andrade, chefe do Serviço Florestal da Companhia Paulista ; J. Melo Morais, da Escola Agrícola Luis de Queirós, de Piracicaba; Roberto Mange, professor da Escola Politécnica de São Paulo; Teodoro Braga, professor de desenho e pintor;Paim Vieira, pintor e decorador.
Ensino secundário e superior Na época, segundo Fernando de Azevedo, não havia ramo de ensino tantas vezes re
formado, e tão longe de uma solução para os seus problemas, quanto o secundário. E o mais estranho era que as crises mais agudas ocorriam imediatamente após as reformas, que deveriam ser antes instrumentos de equilíbrio. A principal causa da situação era a de que o problema técnico do ensino foi sempre relegado a um plano secundário, se não esquecido, em todas as reformas.
Cada reforma opondo-se à anterior, sem nenhum plano global estudado e amplamente discutido, era natural que o ensino secundário continuasse desarticulado, encarado apenas como propedêutico ao ensino superior. O que lhe faltava, mais do que tudo, era a consciência de sua finalidade, desprovida de preocupações utilitárias e profissionais. e cabendo-lhe criar e desenvolver a cultura geral e desinteressada, através de um 10 Idem, ibidem, p. 130-2.
curso integral e seriado, comum a todos. Entretanto, o ensino secundário estaria intimamente ligado ao ensino universitário,
inteiramente descurado. Em primeiro lugar, porque seria o ensino universitário que viria resolver o problema fundamental da formação do professorado secundário e superior. Em segundo lugar, porque a falha das universidades, como responsáveis pelo preparo das classes dirigentes, repercutia sobre o ensino secundário, criando dispersão e indisciplina, pela inexistência de "um corpo de professores" educados num mesmo ambiente, com uma orientação uniforme e ideais comuns. Era mais do que urgente, pois, a criação de universidades, uma exigência cada vez mais premente das forças econômicas, intelectuais e políticas.
Sobre o ensino secundário e superior Fernando de Azevedo elaborou 1 2 questões, incluindo os principais problemas que esses graus de ensino apresentavam: "1) Qual, a seu ver, a causa fundamental do insucesso quase completo das repetidas reformas que têm reorganizado o ensino secundário e superior da República, sem conseguirem fazer do ensino um verdadeiro aparelho de educação integrado no ambiente nacional e um instrumento posto a serviço da cultura do país? 2) Qual a atitude que assumiu e deve assumir o Estado em face deste problema, quer cooperando, pelos seus representantes federais, na sua solução, quer tomando iniciativas para incrementar o ensino secundário e superior, dentro dos seus limites? 3) Podia apresentar-nos os principais erros e vantagens desta última reforma federal (Decreto 17.782-A, de 13 de janeiro de 1925), relativamente ao ensino secundário e à organização dos cursos profissionais superiores (médico, jurídico, politécnico, etc), na especialidade de que tem maior conhecimento? 4) Não lhe parece que a questão do ensino secundário, ainda hoje reduzido a uma função puramente preparatória para os cursos superiores, ainda não se resolveu satisfatoriamente, entre nós, por termos perdido a consciência de sua 'verdadeira finalidade' no plano geral da educação? 5) É favorável ao ensino secundário largamente baseado nas humanidades clássicas ou, sem desprezo destas, baseado nas línguas modernas e nas ciências? 6) Nas escolas de ensino secundário cuja orientação se deve dirigir antes no sentido da 'universidade' de conhecimentos (idéias gerais), deve-se - e na hipótese afirmativa -em que meios e em que altura se deve favorecer a 'especialização'? 7) Até que ponto se deve tomar, no ensino secundário, como uma reivindicação legítima, a aspiração incluída no princípio inovador: 'uma escola nova para necessidades novas'? 8) Não acha que nossos ginásios, antes organizados para instruir do que para educar. pouco têm contribuído e pouco podem contribuir, dentro de sua organização atual, para a formação da cultura média do país e sobretudo da mentalidade e do caráter nacional? 9) Se é problema capital, em uma democracia, a formação das elites intelectuais, não lhe parece urgente tratarmos da fundação de estabelecimentos de pesquisa científica e de cultura livre e desinteressada, que tenham por objetivo menos a organização de um ensino geral do que a contribuição para o progresso do saber humano? 10) Que pensa pois da criação de uma universidade em São Paulo, organizada dentro do espírito universitário moderno:
a) de maneira que se integrem num sistema único, mas sob direção autônoma, as faculdades profissionais (de medicina, de engenharia e de direito), institutos técnicos de es-
pecialização (farmácia, odontologia) e institutos de altos estudos (faculdades de filosofia e letras; de ciências matemáticas, físicas e naturais; de ciências econômicas e sociais; de educação, etc); b) e de maneira que, sem perder o seu caráter de 'universalidade', se possa desenvolver. como uma 'instituição orgânica e viva', posta pelo seu espírito científico, pelo nível dos estudos e pela natureza e eficácia de sua ação, a serviço da formação e desenvolvimento da cultura nacional?
11) Por onde se deveria atacar logo, de maneira prática, no Estado, esse problema complexo de cuja solução depende a organização de verdadeiros núcleos de pensamento original e fecundo, de pesquisa e de disciplina mental, capazes de abrir caminho ao desenvolvimento da ciência e cultura nacionais? 12) Não reconhece que é de tôda a necessidade, em São Paulo, a criação de uma secretaria autònoma e, no governo federal, de um ministério de saúde e instrução pública. sob cuja direção única, respectivamente no Estado e na República, fique todo o aparelhamento do ensino de qualquer natureza e em todos os seus graus?"1 '
Para responder a essas questões foram convidados oito especialistas: Rui Paula Sousa, professor da Escola Normal da Capital e um dos fundadores e primeiro diretor do Liceu Franco-Brasileiro; Mário de Sousa Lima, professor do Ginásio da Capital; Amadeu Amaral, jornalista; Ovídio Pires de Campos, professor e um dos fundadores da Faculdade de Medicina; Raul Briquet, professor da Faculdade de Medicina de São Paulo; Teodoro Ramos, engenheiro, matemático e professor da Escola de Engenharia de São Paulo; Reinaldo Porchat, professor da Faculdade de Direito; Artur Neiva. cientista e escritor.
Das questões e das propostas levantadas no inquérito não é difícil perceber a abertura de caminhos que iriam ser trilhados ao longo das décadas seguintes: após 1930 criou--se o Ministério da Educação e Saúde, fundou-se a Universidade de São Paulo e iniciou--se a organização de um sistema nacional de educação, entre outras iniciativas previstas como necessárias por Fernando de Azevedo. Deve-se reconhecer, contudo, que muitas outras iniciativas ainda hoje estão longe de serem concretizadas, como a adaptação da escola ao meio em que se situa, a consciência da finalidade da educação em todos os seus graus, a eficiência do ensino técnico, etc.
Vejamos as principais críticas à instrução paulista da época, segundo a interpretação de Fernando de Azevedo às respostas aos seus questionários: "As críticas gerais, mais importantes? A de que a educação se ressentia da falta de planejamento e que, sem plano e sem alvo, desenvolvendo-se 'por adições e enxertos', andava divorciada do meio e renhida com os interesses fundamentais da vida nacional e da civilização. O triunfo da burocracia no ensino — burocracia estreita, aparatosa e niveladora — a rigidez de uniformização que tendia a torná-lo artificial; a legislação draconiana; o empirismo com que eram tratados problemas tão complexos, como os da educação; o caráter antiquado do sistema escolar sofreram uma carga cerrada e críticas as mais severas de todos os lados. E a escola primária como foi então julgada? uma escola que falhou, sem finalidade educativa e montada para uma concepção social vencida. E o ensino técnico? Construção suspensa pouco acima dos alicerces; ensino, cujo desenvolvimento se considerava, pois, irrisório, sem estrutura para se pôr de pé, deba-tendo-se num estado caótico sem a menor organização. Do ensino secundário, o me-
11 Idem, ibidem, p. 192-3.
nos que se disse é que, vítima de um regime de aventuras e experiências, atropelado sob um montão de leis e projetos contraditórios, acabou por degenerar numa 'grande chaga' que tinha sua origem na multiplicidade de reformas inadequadas e, sobretudo, na falta de qualquer instituição preposta à formação do professorado secundário. E quanto ao ensino superior, a falha capital que se apontou foi a ausência de universidades ou a tremenda deficiência de instituições de altos estudos e de pesquisas."12
E quais as principais medidas propostas com vistas ao encaminhamento de soluções para esses problemas? "A necessidade de uma política de educação, com unidade de concepção e de plano, nas suas diretrizes e linhas gerais, como a de colocar os problemas de educação em face das novas condições econômicas e sociais e de adaptar o ensino às necessidades regionais; a reconstrução da escola 'para a formação de valores socialmente úteis'; a organização da escola primária como escola do trabalho e escola-comunidade; o problema da preparação do professor e a elevação do seu status social; a cooperação da família e da escola; as bibliotecas escolares, operárias e circulantes; o apelo ao cinema e ao rádio como instrumentos educativos e o seu papel na escola; a orientação e a seleção profissional pelos métodos psicotécnicos; a valorização técnica do elemento humano; o ensino secundário baseado nas línguas modernas e nas ciências; o papel da ciência e da técnica na civilização industrial; a criação de universidades como institutos de investigação científica e de altos estudos; a associação do ensino e da pesquisa; eis aí várias das questões mais discutidas e das medidas propostas no inquérito, e em torno de algumas das quais se estabeleceu uma notável convergência de pontos de vista. Esse acordo geral dos espíritos sobre pontos essenciais, bem definidos, além de implicar o reconhecimento deles por verdadeiros, autorizava um prognóstico seguro de uma sucessão de esforços para inseri-los no real."13
Na parte final do prefácio à segunda edição de Educação na Encruzilhada, escrito em setembro de 1957, Fernando de Azevedo considera ainda desoladora a situação do ensino nacional: "Duas faces de um único problema — a cultura das elites e a educação do povo - continuaram a ser tratadas como dois problemas distintos que se pudessem atacar separadamente, quando estão, de fato, intimamente ligados. Por isso, sem subestimarmos os progressos quantitativos e, em alguns setores, também qualitativos, realizados nesse longo período que medeia entre a época em que se procedeu ao inquérito e o momento atual somos obrigados a reconhecer que, no tocante ao ensino primário e ao ensino médio secundário e técnico, é ainda sob muitos aspectos, nebuloso e desolador o quadro que se oferece aos nossos olhos, com mais de 50% de analfabetos na população do país. O velho relógio da educação, 'emperrado e dissonante (escrevia eu em 1926) anda com atraso de quase meio século, marcando as primeiras horas de um crepúsculo matinal, sonolento e sombrio'... Se é certo que não parou, continua com enorme atraso. A julgar pela hora que marca, apenas raiou para nós a madrugada."14
12 Idem, ibidem, p. 22. 1 3 Idem, ibidem, p. 20. 14 Idem, ibidem, p. 23.
Novos caminhos e novos fins
"com a reforma se colocou subitamente o Brasil na vanguarda do movimento universal pela renovação da escola, e se marcou, na história do Brasil, uma etapa análoga à da independência e à da abolição. "
Frota Pessoa
Durante tôda a Primeira República foi particularmente aguda a dicotomia - apontada por Fernando de Azevedo no final do capítulo anterior - entre a cultura das elites e a educação do povo, duas faces do mesmo problema, mas tratadas como problemas distintos.
Expressão clara dessa dicotomia era a dualidade de sistemas educacionais então vigente: de um lado, o sistema federal, preocupado com a formação das elites através dos cursos secundário e superior; de outro lado, os sistemas estaduais, limitados a organizar e manter a educação das camadas populares, através dos cursos primário e profissional.
como foi amplamente demonstrado pelo inquérito de 1926, ambos os sistemas funcionavam de forma bastante precária, estando longe de cumprir suas finalidades sociais. No âmbito federal, as numerosas reformas realizadas pelo Executivo, com autorização legislativa (1890, 1901, 1911, 1915, 1925), não conseguiram estruturar um ensino secundário regular, com finalidade própria, nem organizar um ensino universitário digno desse nome.
Tal problema, da dicotomia entre a formação das elites e a educação popular, esteve no centro dos inúmeros debates que os educadores promoveram na década de 1920. Importante estímulo a esses debates e à busca de soluções para esse e para outros graves problemas, também apontados pelo inquérito de 1926, foi a fundação da Associação Brasileira de Educação (ABE), em 1924.
Educadores reunidos em torno da ABE, que se encontravam periodicamente em conferências nacionais, promoveram reformas da educação popular em vários Estados: Lourenço Filho, no Ceará (1923); Anísio Teixeira, na Bahia (1925); Francisco Campos e Mário Casassanta, em Minas Gerais (1927); Fernando de Azevedo, no Distrito Federal (1927), etc.
Fernando de Azevedo dirigiu a instrução pública no Distrito Federal de janeiro de 1927 a outubro de 1930, quando deixou o cargo por força da deposição do presidente Washington Luis1. Sua passagem pelo Rio de Janeiro pode ser comparada a um venda-
As informações gerais sobre a Reforma Fernando de Azevedo foram extraídas da obra de Nelson Piletti: A Reforma Fernando de Azevedo: Distrito Federai, 1927-1930. São Paulo, Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, 1982. (Estudos e documentos, 20).
val que tudo resolveu. Pode não ter alcançado plenamente seus objetivos, mas que conseguiu envolver tôda a opinião pública no debate educacional e, mais do que isso, forçar a todos a uma tomada de posição - a favor ou contra a reforma - ninguém pode negar. A confirmar tal fato, se para tanto nada mais houvesse, bastariam as cerca de sete mil notícias sobre sua administração, publicadas na imprensa da época.
Se alguma coisa se pode afirmar com certeza acerca da administração de Fernando de Azevedo à frente da instrução pública no Distrito Federal é que ela esteve longe de ser tranqüila. Logo de saída, apesar do crédito de confiança quase unânime aberto pela imprensa, surgiram algumas restrições ao fato de que a administração do Distrito Federal só encontrasse em outras paragens técnicos capazes de dar solução aos problemas educacionais do Rio de Janeiro.
0 censo escolar
Já a primeira iniciativa de Fernando de Azevedo a realização do censo escolar, como ponto de partida da reforma — dividiu inapelavelmente a imprensa local. Contra o censo posicionaram-se o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil, A Manhã e, principalmente, O Globo. Os argumentos iam desde a impropriedade de se chamar mais um técnico paulista - Sud Menucci - para dirigir o censo até a defesa pura e simples de que o censo escolar não era necessário. O último argumento apoiava-se no fato de que projeções do recenseamento geral de 1920 poderiam perfeitamente indicar quantas crianças em idade escolar estavam fora da escola.
A campanha mais sistemática e persistente contra o censo foi feita pelo jornal O Globo, que chegou a apresentar tabelas com o número de crianças em idade escolar, elaboradas a partir do recenseamento de 1920. Para que se tenha uma idéia dessa campanha e dos seus argumentos, reproduzimos algumas das alegações feitas pelos órgãos de imprensa:
Correio da Manhã: "A instrução pública do Distrito Federal é um caso muitíssimo sério. Não pense, pois, o Sr. Prado Jr. que a visita de sucessivos técnicos paulistas, especializados ou não no assunto, possa concertar, com facilidade, aquele pandemônio. Francamente, teria sido muito mais fácil ao Sr. Fernando de Azevedo, antes de mandar vir o homem da Paulicéia, consultar os dados do recenseamento do Distrito Federal" (25.02.27). "Tôda gente sabe que o Rio tem falta de escolas. Para prová-lo não é preciso esperar o recenseamento escolar"(l 8.03.27).
A Manhã: "A resolução irrefletida do novo diretor de dar início imediato a outro recenseamento sem indagar se o trabalho encontrado satisfazia (...) produziu desalentadora impressão" (20.03.27).
O Globo: "Não passa de uma dispendiosa e prejudicial fantasia o plano do recenseamento escolar (...) O Globo oferece ao Sr. Prefeito, e de primeira mão, todos os elementos do Rio escolar (...) Recenseamento escolar para quê? Não há quem nos possa responder; não há dialética que justifique tamanho contrasenso de administração" (20.03.27).
Não faltaram, porém, jornais que assumiram uma posição nítida em favor do censo. Entre estes podem ser citados A Pátria, A Rua, O Brasil, O Imparcial, A Noite. Veja-
2 Duas manifestações, apenas a título de exemplo: A grande causa está confiada a um apóstolo clarividente (A Pátria, 18.01.27); o que intriga no caso é que o Sr. Prado Jr. só encontre em São Paulo quem entendia de instrução (Correio da Manhí, 08.02.27).
mos alguns dos seus argumentos: A Pátria: "Basta dizer que para agir conscientemente nessa matéria era preciso,
antes de tudo, o recenseamento da população escolar. Sem essa primeira condição, todo e qualquer plano, mesmo bem orientado, ou produziria resultados insignificantes ou falharia, apesar das novas despesas necessárias à sua realização" (18.01.27).
O Imparcial: "Excelente, nao há dúvida, a idéia do recenseamento da população infantil em idade escolar. Do conhecimento exato do número de crianças dessa cidade depende o êxito de uma sábia política pedagógica (...)" (10.03.27).
Sud Menucci, em várias entrevistas à imprensa, procurou justificar a necessidade do censo afirmando entre outras coisas que a projeção dos dados de 1920. além de não ser rigorosa, não permitiria selecionar os lugares mais adequados para localizar as novas escolas.
Em 23 de março de 1927, com o concurso da aviação do Exército, que lançou folhetos convocando a população para colaborar, e da imprensa, que publicou apelos no mesmo sentido, teve início o trabalho censuario. O otimismo era geral, inclusive de jornais que desde o início se manifestaram contra o censo: "O êxito do primeiro dia excedeu todas as expectativas" Jornal do Brasil; "Correu admiràvelmente o primeiro dia dos trabalhos" Gazeta de Notícias; "O magistério carioca desincumbiu-se galhardamente de sua missão" Correio da Manhã; "A população carioca, culta e cavalheiresca como sempre, colaborou eficazmente para o recenseamento infantil" O Brasil.
Sud Menucci teceu elogios às professoras: "As professoras do Distrito Federal são modelares e é grato trabalhar e vencer com essas sacerdotisas do bem" (Jornal do Brasil, 24.03.27).
Os resultados foram publicados em 29 de abril de 1927, mostrando que, de 141.123 crianças em idade escolar, 89.960 (63,7%) estavam freqüentando a escola e 51.163 (36,3%) estavam fora da escola.
Além da falta de escolas, outro problema reconhecido por todos era o da precariedade das instalações escolares existentes, como o atestam algumas manifestações da imprensa, selecionadas entre muitas outras: "Não exageramos, afirmando que na maioria as escolas públicas se acham instaladas em edifícios ainda em condições muitíssimo inferiores às dos prédios da Favela" (O Brasil. 03.02.27); "Muitas das aulas públicas funcionam em pardieiros de todo o ponto impróprios às nobres funções que neles se exercem" (O Jornal, 23.02.27); "Tudo que é casa velha, inutilizada, imprópria para aluguel, imunda e em ruínas, é aproveitada para escola pública" (Jornal do Brasil, 03.04.27).
Fernando de Azevedo tinha plena consciência da difícil situação, de tal forma que, em todas as oportunidades, repetia que o que existia não podia continuar, defendendo a necessidade de uma reconstrução total de tôda a legislação e de todo o aparelho de ensino, como única saída para suplantar o caos em que se transformara a instrução pública no Distrito Federal, "ofensiva ao próprio decoro político da nação".
A discussão no Conselho Municipal
A mensagem com o projeto de reforma foi enviada ao Conselho Municipal no dia 4 de outubro de 1927 pelo prefeito Antônio Prado Júnior. O Projeto de Reforma do Ensino no Distrito Federal abrangia 14 partes, 38 títulos, 41 capítulos, 15 seções e 423 artigos e era acompanhado do seguinte diagnóstico da situação, que servia ao mesmo tempo de justificativa em sua defesa: "uma legislação difusa e fragmentária, como a
que possuímos, sem unidade e sem diretriz, desorienta o administrador, que não pode encontrar em muitas dezenas de pequenas leis, que se atropelam e se contradizem, o espírito de coordenação, indispensável a qualquer sistema de organização escolar. Sem um código íntegro, dentro do qual estejam bem estipulados os deveres e os direitos de cada um e delineada uma orientação pedagógica e social, para a qual todas as instruções convirjam, ou da qual todas derivem, não é possível obter de um aparelho escolar nenhum proveito prático. As leis forjadas sem espírito de síntese e sem convergência a um ideal educativo, tornam-se sempre, em vez de úteis, nocivas á coletividade. Por elas se criam serviços e instituições parasitas que sobrecarregam a máquina administrativa e entorpecem a obra social de educação."3
No dia 22 de outubro, atendendo a um pedido das comissões reunidas de Orçamento, Justiça e Instrução, que analisariam o projeto, Fernando de Azevedo esteve no Conselho Municipal, onde explicou pormenorizadamente, durante cinco horas, sua proposta de reforma. Tinha início mais uma fase da luta de Fernando de Azevedo. Era preciso vencer as resistências contra o projeto que, paradoxalmente, partiam dos intendentes da situação, que não se viram atendidos em seus privilégios, principalmente no tocante à sua interferência na nomeação dos professores. Estes seriam selecionados por concurso público.
A imprensa continuou dividida. O Globo ainda na oposição: "O Globo está onde sempre esteve, combatendo as reformas fictícias. No empenho de que iniciemos um século mais eficaz de ensino é que este jornal manterá sua atitude inflexível de crítica aos projetos superficiais e burocráticos, que tendem a transformar, entre outros, o problema da instrução, no mínimo, num campo profissional de candidatos a empregos" (16.10.27).
Outros jornais saíram em defesa do projeto de Fernando de Azevedo: "O programa Fernando de Azevedo corresponde integralmente às necessidades imperiosas do principal centro civilizado da Nação" (Pela Pátria, 20.10.27); "Tudo, enfim, obedece ao que há de mais novo no terreno da pedagogia, conforme disse o diretor de instrução" (O Brasil, 23.10.27); "Cremos que o Distrito Federal, sede do governo da República, vai ter uma organização escolar digna da nossa cultura" (A Pátria, 03.11.27).
Enquanto isso, no Conselho Municipal, estabelecia-se o impasse: os oposicionistas e independentes apoiando a reforma e os situacionistas fazendo oposição cerrada, na tentativa de obterem vantagens. A situação parecia insustentável, a reforma corria perigo, ao menos sua aprovação até o final do ano e a execução a partir de 1928 corriam sérios riscos.
Fernando de Azevedo veio a público, em 12 de novembro de 1927, com uma explosiva nota cuja conclusão é a seguinte: "O diretor de Instrução elaborou um projeto de lei e o ofereceu ao Conselho Municipal, atendendo a um convite com que o honraram as comissões reunidas de Instrução, Justiça e Orçamento. Se nada vale, deve ser rejeitado; se tem defeitos, deve ser emendado; se é obra digna de apreço, deve L aprovada. Supor o Diretor de Instrução Pública capaz de ceder a qualquer pressão ou transação é desconhecê-lo, senão injuriá-lo. A delicadeza com que acolhe todos os pedidos, o empenho que tem revelado em atender, quando possível, a pressões legítimas, dentro da lei e do interesse público, e a vontade em que estava e está de obter a colaboração dos Srs. intendentes com todo o respeito devido ao alto poder legislativo, não chegaram nunca a disfarçar a firmeza, em que sempre se manteve, de defender inflexi-
5 Mensagem do Prefeito ao Conselho Municipal. A Pátria, 05.10.27.
velmente, antes de tudo, os direitos de seus subordinados e os superiores interesses do ensino, no momento em que todas as forças livres e conscientes se empenham desinte-ressadamente nessa obra de idealismo construtor projetada na reforma de Instrução Pública."4
Se com esta nota Fernando de Azevedo pensava demover os intendentes de sua obstinada resistência, estava enganado. O fim do ano estava chegando e nada de aprovar a reforma. A solução viria através de um "golpe de mestre" de um intendente independente, que nao tinha compromisso com o governo municipal : Maurício de Lacerda. Este, desde o início simpático à reforma, começou a obstruir a discussão do orçamento municipal para 1928, obtendo apoio de outros intendentes. A questão foi claramente colocada por Maurício de Lacerda: "Ou passa a reforma de ensino ou não haverá orçamento."5
Diante do impasse, e diante da ameaça de serem responsabilizados pela não aprovação do orçamento, os intendentes resolveram chegar a um acordo: tanto a reforma quanto o orçamento seriam aprovados. Era o dia 26 de dezembro, em que todos estavam ainda imbuídos do espírito natalino.
A aprovação da reforma foi saudada pela imprensa no dia 27 de dezembro: "Parabéns, crianças!" (A Pátria); "Vitoriosa, finalmente, a reforma de instrução! Contra a vontade dos politicoes nefastos do Distrito, que o votaram vencidos e humilhados, o Conselho aprovou, ontem, o substitutivo da Comissão Especial, que respeita integralmente a substância do anteprojeto" (A Esquerda).
Abrangência da reforma
Para uma idéia apenas aproximada da grande abrangência da Reforma Fernando de Azevedo, basta que vejamos suas 14 partes e seus 38 títulos: 1) Do ensino em geral: da compreensão do ensino público; da direção, orientação e fiscalização do ensino; do ensino privado. 2) Do ensino público primário: do caráter e finalidade do ensino primário; do cadastro escolar; dos estabelecimentos públicos primários. 3) Do curso normal: das escolas normais. 4) Do ensino técnico profissional: das escolas profissionais em geral; da Escola Tecnológica de mestres e contramestres; do laboratório de psicotécnica e orientação profissional; do ensino profissional masculino; do ensino profissional feminino; das fundações particulares. 5) Do ensino doméstico: das escolas domésticas. 6) Dos cursos populares noturnos: da sua finalidade e organização. 7) Da educação musical nas escolas públicas: da organização e desenvolvimento da cultura musical. 8) Da higiene física do aluno e da higiene escolar: da educação física e sua organização; da inspeção médica e dentária escolar; da assistência higiênica das crianças; da escola primária e higiene infantil; da assistência social e alimentar; das edificações e instalações escolares. 9) Das escolas especiais para educação de anormais: da sua natureza e organização.
4 PILETTI.N. Op.cit., p. 82. 5 Gazeta de Notícias, 26.11.27.
10) Das instituições auxiliares de ensino: do Boletim de Educação Pública; da literatura pedagógica; das bibliotecas e museus escolares; do cinema escolar e do rádio; do escotismo; do intercâmbio interestadual e internacional escolar. 11) Das disposições relativas aos funcionários técnicos e administrativos de ensino: dos direitos e deveres dos funcionários de ensino; das faltas de exercício, das licenças e substituições dos funcionários de ensino. 12) Do código disciplinar: das faltas disciplinares e sua repressão; da competência, do processo e do recurso. 13) Do fundo escolar: de sua constituição e aplicação. 14) Das disposições gerais e transitórias: disposições gerais; disposições transitórias.
Evidentemente, nos estreitos limites deste trabalho, que pretende uma visão geral e compreensiva do pensamento e da obra de Fernando de Azevedo, nao cabe uma análise mais profunda de cada um dos tópicos da reforma.6 Restrinjo-me, assim, a uma breve apresentação dos princípios que fundamentaram a remodelação do ensino no Distrito Federal.
Princípios da reforma
No entender de Fernando de Azevedo, sua reforma fundamentou-se em três princípios básicos: a extensão do ensino ; a articulação dos diferentes níveis e modalidades; e a adaptação ao meio social e às idéias modernas de educação.
Por meio da extensão, pretendia-se tornar a escola acessível a toda a população em idade de freqüentá-la. Para isso o reformador lançou mão de três meios principais, entre outros:
• A redução do ensino primário de sete para cinco anos, com a redistribuição dos professores.
• Temporariamente, enquanto o número de matriculados excedesse a lotação do prédio, o estabelecimento do sistema de dois turnos.
• A construção de grandes grupos escolares, dotados de amplos espaços e modernos equipamentos.
O que se pretendia com a articulação era integrar todas as instituições escolares do Distrito Federal num plano único e sistemático de educação pública. A solução adotada foi a seguinte: o quinto ano primário assumia o caráter pré-vocacional, como ano de transição ao curso vocacional ; passavam a funcionar, anexos às escolas e institutos profissionais, cursos complementares de dois anos de duração, de caráter vocacional e fazendo ligação entre o primário e o técnico profissional; ao curso profissional de quatro anos - o último, de aperfeiçoamento - só se tinha acesso após cursar o primário e o complementar. como se vê, são inovações importantes que acarretaram uma mudança significativa em relação à situação anterior, em que não havia nenhuma articulação.
A adaptação ao meio devia ocorrer tanto no ensino primário quanto no profissional. Por isso mesmo, as escolas primárias seriam de três tipos, dependendo do meio em que se situavam: teriam oficinas de pequenas indústrias no meio urbano; campos de experiências agrícolas na zona rural; e museus e oficinas de aparelhos de pesca na zona marítima. Quanto às escolas profissionais, também deviam organizar-se em função das
6 Análise mais detalhada de tôda a reforma encontra-se em PILETTI, N. Op. cit.
necessidades do seu meio, especializando-se cada uma delas em determinado ofício. Segundo Fernando de Azevedo, foram três as idéias modernas de educação que ins
piraram a reforma: escola única, escola do trabalho e escola-comunidade ou escola do trabalho em cooperação.
Quanto à idéia da escola única, sintetiza o reformador: "O Estado dá, no sistema de educação, um ponto de partida comum para todos, mais ou menos extenso (cinco, sete ou nove anos) conforme as condições sociais e econômicas do meio. É o princípio da escola única (princípio democrático), incluído na reforma. A escola única, isto é, a escola constituída por todos os elementos da sociedade é a base da educação numa democracia social. Mas, como o Estado, para formação e desenvolvimento do espírito da democracia, tem interesse público nessa 'educação inicial uniforme', obriga todos (daí o princípio de obrigatoriedade) a uma 'formação inicial comum', e como não pode obrigar, taxando o ensino (instituído como base comum), torna-o acessível a to-dos pela gratuidade. A educação inicial deve ser uma para todos (única), obrigatória e gratuita."7
Para justificar a adoção do princípio da escola do trabalho, Fernando de Azevedo parte da constatação de que a sociedade apóia-se na organização do trabalho. A escola, como sociedade em miniatura, não poderia deixar de construir-se sobre as mesmas bases. Além de ser um meio de aprendizagem, o trabalho manual ensina a trabalhar, vencendo o preconceito contra ele existente, desperta e desenvolve o hábito e a técnica geral do trabalho. No ensino primário o trabalho se conformaria ao meio - urbano, rural, marítimo - em que se situa a escola; no curso profissional, cada escola deveria especializar-se num setor: Escola Profissional Agrícola; Escola Profissional de Obras em Madeira, Madeira Artística e Obras Anexas; Instituto Profissional Eletrotécnico e Mecânico; Escola Profissional de Artes Gráficas; Escola Profissional Mecânica; Escola Profissional de Construção; e mais duas escolas profissionais de pesca eram as escolas organizadas para oferecer ensino técnico profissional no Distrito Federal.
Para Fernando de Azevedo, existindo como uma sociedade em miniatura, a escola ensinaria os alunos a "viver em sociedade e a trabalhar em cooperação. O aluno não deve exercer a sua atividade isoladamente, mas, quando possível, em grupos, em que a realização e a responsabilidade de um trabalho sejam atribuídas a vários indivíduos, para se habituarem a agir em cooperação, afirmando a sua personalidade, com espírito de disciplina coordenador de esforços individuais".8 Cada classe deveria ser organizada como uma comunidade e as organizações e serviços existentes na comunidade também deveriam existir na escola: caixas econômicas, cinema, rádio, jornal, consultório médico, odontológico, etc.
Todas as transformações propostas por Fernando de Azevedo não poderiam ser implementadas se não houvesse professores capazes e dispostos a cumprir sua missão educativa, atualizando-se permanentemente. O curso normal também foi reformulado, com base nos princípios gerais da reforma, enfatizando-se sua finalidade profissional ao mesmo tempo em que se estimulava o aprofundamento da cultura geral, base da cultura profissional. Para isso organizaram-se bibliotecas para professores, estabeleceram-se prêmios para estimular a literatura pedagógica, promoveram-se cursos de férias, criou--se o intercâmbio interestadual e internacional de professores, etc.
Tais princípios, na verdade, tinham um alcance bem mais amplo que a simples re-7 PILETTI,N.Op.cit.,p. 112. o
Idem, ibidem, p. 114.
modelação do ensino. Fernando de Azevedo deixou bem claro, ainda no primeiro ano de sua administração, o que pretendia com sua reforma, de modo particular em relação à escola primária: "A escola primária com suas oficinas de pequenas indústrias, na zona urbana, com seus campos de experiências agrícolas, em zona rural, ou com seus museus de aparelhos de pesca, na região marítima, longe de desviar da lavoura e da pesca para os centros fabris, ou das indústrias para as letras, a população infantil que acolhe, vai assim ao encontro do que deveria ser, ao mesmo tempo que a instrução, seu fim principal: enraizar o operário às oficinas, o lavrador à terra e o pescador às praias, fazendo-os compreender e amar com o trabalho produtivo, a vida intensa das fábricas, a tranqüila vida rural ou a vida valorosa das grandes pescarias, em que se tempera, na escola permanente da luta com o mar, a energia dos praieiros."9
Um balanço geral da Reforma Fernando de Azevedo é tarefa extremamente difícil, tantas e tão variadas as iniciativas que tomou. Certamente seus objetivos, de modo especial de ordem quantitativa, não foram atingidos: muitas crianças continuaram sem acesso à escola, muitos prédios continuaram em situação precária, prédios novos não foram construídos em número suficiente, etc. Tudo isso leva-nos a uma importante conclusão: uma reforma não resolve o grave problema da educação brasileira, por mais bem intencionada que seja e por maiores os recursos de que disponha. Exige-se um trabalho a longo prazo, dependente da própria transformação das estruturas sócio-econômicas do país.
O próprio Fernando de Azevedo parece reconhecer essa limitação do alcance de sua reforma ao afirmar :"Mas, certamente, pelas formidáveis forças morais que mobilizou, pelo movimento de idéias e de opinião que desencadeou, pela rapidez com que se difundiu e pela extensão do campo que abrangeu, a reforma do ensino do Distrito Federal (1927-1930) foi, de todas as que se realizaram no país, a mais vigorosa, a mais revolucionária e a de maior repercussão, compreendendo no seu raio de influência quase todos os Estados."1 °
9 Idem, ibidem, p. 7. 10 AZEVEDO, F. de. A cultura brasileira. 5. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1971. p. 656-7.
Pioneiro entre os pioneiros
"Esse vasto programa, apresentado por tão eminentes mestres, é de tal importância que, por si só, justificaria uma revolução. "
Menotti del Picchia
0 governo que assumiu o poder com a Revolução de 1930 encontrou o ensino brasileiro numa situação tão precária quanto estava no início da República. Apesar dos ideais republicanos, pouco ou nada havíamos avançado em matéria de educação pública. Ainda não tínhamos um sistema nacional de educação: "O Governo Federal nada dizia e nada fazia em termos de ensino primário, que ficava ao encargo dos reduzidos recursos dos Estados; o ensino secundário continuava minado pelo ensino irregular, não-seriado, tendo como principal objetivo preparar para o ensino superior; quanto a este, ainda não tínhamos uma universidade funcionando."1
Uma das primeiras iniciativas do governo provisório, que assumiu em 1930, foi a criação do Ministério da Educação e das Secretarias de Educação dos Estados que, como vimos, havia sido proposta no inquérito organizado por Fernando de Azevedo em 1926. Para Ministro da Educação foi nomeado Francisco Campos, que na década anterior havia promovido a reforma da instrução pública em Minas Gerais. Com isso, os educadores que participavam da renovação da educação nacional, reunidos em torno da Associação Brasileira de Educação, passaram a ter grande influência nas iniciativas governamentais em matéria de educação. Tal influência exerceu-se, por exemplo, na própria criação do Ministério e das Secretarias de Educação e na inserção, na Constituição de 1934, de um capítulo especial sobre a educação, em que se fixaram os novos princípios educacionais.
No entender de Heladio C. G. Antunha, com a criação do Ministério da Educação, 0 governo federal procurou alcançar três objetivos:
"19) Ampliar sua faixa de participação no desenvolvimento da educação nacional, marcando dessa forma o término de um longo período de total — ou quase total — alheamento dos problemas relacionados com a educação popular.
2?) Desenvolver os instrumentos destinados a unificar, disciplinar e proporcionar a articulação e integração aos sistemas isolados estaduais, os quais registravam grande heterogeneidade em relação à organização das diversas modalidades de ensino a seu cargo.
39) Estabelecer os mecanismos destinados a promover o relacionamento federal
1 PILETTI, C. & PILETTI, N. Filosofia e história da educação. Sao Paulo, Ática, 1985. p. 206.
com os diversos sistemas, definindo-se assim as formas de intervenção do Ministério e de suas relações com as Secretarias de Educação estaduais e com os próprios estabelecimentos."2
A de 1934 foi a primeira Constituição brasileira a incluir um capítulo especial sobre a educação, estabelecendo alguns princípios importantes, pelos quais os educadores vinham se batendo há anos: a educação como direito de todos; a obrigatoriedade da escola primária integral; a gratuidade do ensino primário; a assistência aos estudantes necessitados; entre outros.
Em decorrência da Constituição de 1934 o governo federal passou a assumir novas atribuições em matéria educacional:3
1) A função de integração e de planejamento global da educação brasileira. Passou a ser competência da União "fixar o plano nacional de educação, compreensivo do ensino de todos os graus e ramos, comuns e especializados; coordenar e fiscalizar a sua execução, em todo o território do País". (Art. 150.)
2) A função normativa para todo o território nacional e para todos os níveis. O artigo 59 determinou: "Compete privativamente à União: XIV — traçar as diretrizes da educação nacional."
3) A função supletiva de estímulo e assistência técnica, onde houvesse deficiência de iniciativa ou de recursos (art. 150).
4) A função de controle, supervisão e fiscalização do cumprimento das normas federais.
Na verdade, não foram só positivas as conseqüências das novas atribuições do governo federal: "Se, por um lado, tais atribuições constituíram o início da construção de um sistema nacional de educação, por outro lado assinalaram uma profunda centralização das competências. A autonomia dos Estados e dos diversos sistemas educacionais foi limitada; quase tudo passou a depender da autoridade superior; multiplicaram--se os órgãos, as leis, os regulamentos, as portarias, etc, a limitar a ação de escolas e educadores; as funções de controle, supervisão e fiscalização tornaram-se burocráticas e rígidas, assumindo, muitas vezes, um caráter 'policialesco'; tal ênfase em aspectos legais. normativos, burocráticos muitas vezes levou a esquecer ou relegar a um plano secundário o objetivo fundamental da educação, que é o de criar condições para a formação de pessoas humanas."4
Voltando a São Paulo, em fins de 1930, Fernando de Azevedo, a convite de Lourenço Filho, passou a lecionar Sociologia no Curso de Aperfeiçoamento da Escola Norma] da Capital; foi nomeado Secretário de Educação do Estado, cargo no qual elaborou e colocou em vigor o novo código de Educação ; continuou a participar intensamente das reuniões e debates promovidos pela Associação Brasileira de Educação (ABE), da qual foi presidente no biênio 1937-38.
Nesse ambiente de muita discussão e agitação de idéias, um grupo de educadores,
2 ANTUNHA, H.C.G. A educação brasileira no período republicano. In: BREJON. M. org. Estrutura e funcionamento do ensino de 19 e 2? graus. São Paulo, Pioneira, 1973. p. 63.
3 Cf. ANTUNHA, H.C.G. Op. cit., p. 63-4. 4 PILETTI.C. & PILETTI, N. Op. cit., p. 208.
comprometidos com a renovação da educação nacional, resolveu marcar presença na orientação do ensino brasileiro, no momento em que a República passava por um período de transição. Essa presença já existia, mas esse grupo julgou oportuno reunir suas idéias num manifesto à Nação, para que não pairassem dúvidas quanto à sua natureza e aceitação entre os educadores. Fernando de Azevedo redigiu o manifesto — A Reconstrução Educacional no Brasil - Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova - assinado por mais 25 educadores e/ou escritores: Afrânio Peixoto, A. de Sampaio Dória, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Frota Pessoa, Júlio de Mesquita Filho, Raul Briquet, Mário Casassanta, C. Delgado de Carvalho, A. Ferreira de Almeida Júnior, J. P. Fontenelle, Roldão Lopes de Barros, Noemi M. da Silveira, Hermes Lima, Atílio Vi-vacqua, Francisco Venâncio Filho, Paulo Maranhão, Cecília Meireles, Edgar Sussekind de Mendonça, Amanda Álvaro Alberto, Garcia de Resende, C. Nobre da Cunha, Pas-coal Leme e Raul Gomes.
A abertura do Manifesto de 1932 é, por si só, bastante significativa, expressando de maneira insofismável a importância que os seus signatários atribuíam à educação e à necessidade urgente de sua reorganização, em consonância com a realidade do país: "Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a evolução orgânica do sistema cultural de um país depende de suas condições econômicas, é impossível desenvolver as forças econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade. No entanto, se depois de 43 anos de regime republicano, se der um balanço ao estado geral da educação pública, no Brasil, se verificará que, dissociadas sempre as reformas econômicas e educacionais, que era indispensável entrelaçar e encadear, dirigindo-as no mesmo sentido, todos os nossos esforços, sem unidade de plano e sem espírito de continuidade, não lograram ainda criar um sistema de organização escolar à altura das necessidades modernas e das necessidades do país. Tudo fragmentário e desarticulado."5
Do manifesto foram selecionadas algumas passagens que mostram suas linhas mestras, os princípios básicos, alguns dos quais incluídos na Constituição de 1934 e outros integrados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1961 :
1) A educação como instrumento de desenvolvimento da democracia: "A educação nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes, assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira função social, preparando-se para formar "a hierarquia democrática' pela 'hierarquia das capacidades', recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de educação."
2) A educação como uma função essencialmente pública: "Mas do direito de cada indivíduo à sua educação integral decorre logicamente para o Estado, que o reconhece e o proclama, o dever de considerar a educação, na variedade de seus graus e manifestações, como uma função social e eminentemente pública, que ele é chamado a realizar, com a cooperação de todas as instituições sociais."
3) A educação através da escola única: "Afastada a idéia do monopólio da educação pelo Estado num país, em que o Estado, pela sua situação financeira não está ainda
AZEVEDO, F. de. A educação entre dois mundos. São Paulo, Melhoramentos, 1958. p. 59. A primeira edição do Manifesto foi lançada em São Paulo, pela Companhia Editora Nacional, em 1932.
em condições de assumir a sua responsabilidade exclusiva, e em que, portanto, se torna necessário estimular, sob sua vigilância, as instituições privadas idôneas, a 'escola única' se entenderá, entre nós, não como 'uma conscrição precoce', arrolando, da escola infantil à universidade, todos os brasileiros e submetendo-os durante o maior tempo possível a uma formação idêntica, para ramificações posteriores em vista de destinos diversos, mas antes como a escola oficial, única, em que todas as crianças, de 7 a 15, todas ao menos que, nessa idade, sejam confiadas pelos pais à escola pública, tenham uma educação comum, igual para todos."
4) A educação leiga, gratuita, obrigatória e sem qualquer segregação econômica, social ou religiosa: "A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e co-educação são outros tantos princípios em que assenta a escola unificada e que decorrem tanto da subordinação à finalidade biológica da educação de todos os fins particulares e parciais (de classes, grupos ou crenças), como do reconhecimento do direito biológico que cada ser humano tem à educação."
5) A educação organizada com base no princípio da descentralização: "A organização da educação brasileira unitária sobre a base e os princípios do Estado, no espírito da verdadeira comunidade popular e no cuidado da unidade nacional, não implica um centralismo estéril e odioso, ao qual se opõem as condições geográficas do país e a necessidade de adaptação crescente da escola aos interesses e às exigências regionais. Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe multiplicidade."
6) A educação centrada no aluno: "A nova doutrina, que não considera a função educacional como uma função de superposição ou de acréscimo, segundo a qual o educando é 'modelado exteriormente' (escola tradicional), mas uma função complexa de ações e reações em que o espírito cresce de 'dentro para fora', substitui o mecanismo pela vida (atividade funcional) e transfere para a criança e para o respeito de sua personalidade o eixo da escola e o centro de gravidade do problema da educação."
7) A educação como processo contínuo de formação da personalidade integral através dos métodos ativos: "A partir da escola infantil (4 a 6 anos) até à Universidade, com escala pela educação primária (7 a 12 anos) e pela secundária (12 a 18 anos), a 'continuação ininterrupta de esforços criadores' deve levar à formação da personalidade integral do aluno e ao desenvolvimento de sua faculdade produtora e de seu poder criador, pela aplicação, na escola, para a aquisição ativa de conhecimentos, dos mesmos métodos (observação, pesquisa e experiência) que segue o espírito maduro, nas investigações científicas."
8) A educação universitária gratuita e aberta a novos horizontes: "A educação superior ou universitária, a partir dos 18 anos, inteiramente gratuita como as demais, deve tender, de fato, não somente à formação profissional e técnica, no seu máximo desenvolvimento, como à formação de pesquisadores, em todos os ramos de conhecimentos humanos. Ela deve ser organizada de maneira que possa desempenhar a tríplice função que lhe cabe de elaboradora ou criadora de ciência (investigação), docente ou transmissora de conhecimentos (ciência feita) e de vulgari-zadora ou popularizadora, pelas instituições de extensão universitária, das ciências e das artes."
9) A formação universitária e unificada de todos os professores: "A tradição das hierarquias docentes, baseadas na diferenciação dos graus de ensino, e que a linguagem fixou em denominações diferentes (mestre, professor e catedrático) é inteiramente contrária ao princípio da unidade da função educacional, que, aplicado às funções
docentes, importa a incorporação dos estudos do magistério às universidades e, por-tanto, a libertação espiritual e economica do professor, mediante uma formação e remuneração equivalentes que lhe permitam manter, com a eficiência no trabalho, a dignidade e o prestígio indispensáveis aos educadores. A formação universitária dos professores não é somente uma necessidade da função educativa, mas o único meio de, elevando-lhes em verticalidade a cultura, e abrindo-lhes a vida sobre todos os horizontes, estabelecer, entre todos, para a realização da obra educacional, uma compreensão recíproca, uma vida sentimental comum e um vigoroso espírito comum nas aspirações e nos ideais."
10) A educação como o dever mais importante do Estado: "Mas, de todos os deveres que incumbem ao Estado, o que exige maior capacidade de dedicação e justiça, maior soma de sacrifícios; aquele com que não é possível transigir sem a perda irreparável de algumas gerações; aquele em cujo cumprimento os erros praticados se projetam mais longe nas suas conseqüências, agravando-se à medida que recuam no tempo; o dever mais alto, mais penoso e mais grave é, de certo, o da educação que, dando ao povo a consciência de si mesmo e de seus destinos e a força para afirmar-se e realizá-los, entretém, cultiva e perpetua a identidade da consciência nacional, na sua comunhão íntima com a consciência humana."
Do manifesto foi extraído um programa educacional básico, esquematizado em dez pontos, cuja importância, principalmente pela influência que exerceu sobre a política educacional posterior, leva-nos a reproduzi-lo integralmente nestas páginas:
"I - Estabelecimento de um sistema completo de educação, com uma estrutura orgânica. conforme as necessidades brasileiras, as novas diretrizes econômicas e sociais da civilização atual e os seguintes princípios gerais:
a) a educação é considerada em todos os seus graus como uma função social e um serviço essencialmente público que o Estado é chamado a realizar com a cooperação de todas as instituições sociais;
b) cabe aos Estados federados organizar, custear e ministrar o ensino em todos os graus, de acordo com os princípios e as normas gerais estabelecidas na Constituição e em leis ordinárias pela União a quem compete a educação na capital do país, uma ação supletiva onde quer que haja deficiência de meios e a ação fiscalizadora, coordenadora e estimuladora pelo Ministério da Educação;
c) o sistema escolar deve ser estabelecido nas bases de uma educação integral;em comum para os alunos de um e outro sexo e de acordo com as suas aptidões naturais; única para todos e leiga, sendo a educação primária, gratuita e obrigatória; o ensino deve tender progressivamente à obrigatoriedade até 18 anos e à gratuidade em todos os graus.
II - Organização da escola secundária (de 6 anos) em tipo flexível de nítida finalidade social, como escola para o povo, não preposta a preservar e a transmitir as culturas clássicas, mas destinada, pela sua estrutura democrática, a ser acessível e proporcionar as mesmas oportunidades para todos, tendo, sobre a base de uma cultura geral comum, as seções de especialização para as atividades de preferência intelectual (humanidades e ciências) ou de preponderância manual e mecânica (cursos de caráter técnico).
III - Desenvolvimento da educação técnica profissional, de nível secundário e superior, como base da economia nacional, com a necessária variedade de tipos de escolas:
a) de agricultura, de minas e de pesca (extração de matérias-primas); b) industriais e profissionais (elaboração de matérias-primas); c) de transportes e comércio (distribuição de produtos elaborados), e segundo métodos e diretrizes que possam formar técnicos e operários capazes em todos os graus de hierarquia industrial.
IV - Organização de medidas e instituições de psicotécnica e orientação profissional para o estudo prático do problema de orientação e seleção profissional e adaptação científica do trabalho às aptidões naturais.
V - Criação de Universidades de tal maneira organizadas e aparelhadas que possam exercer a tríplice função que lhes é essencial, de elaborar ou criar a ciência, transmiti-la e vulgarizá-la, e sirvam, portanto, na variedade de seus institutos:
a) à pesquisa científica e à cultura livre e desinteressada; b) à formação do professorado para as escolas primárias, secundárias, profissionais e
superiores (unidade na preparação do pessoal do ensino); c) à formação de profissionais em todas as profissões de base científica; d) à vulgarização ou popularização científica, literária e artística por todos os meios
de extensão universitária.
VI — Criação de fundos escolares ou especiais (autonomia econômica) destinados à manutenção e desenvolvimento da educação em todos os graus e constituídos, além de outras rendas e recursos especiais, de uma percentagem das rendas arrecadadas pela União, pelos Estados e pelos Municípios.
VII — Fiscalização de todas as instituições particulares de ensino que cooperarão com o Estado na obra de educação e cultura, já com função supletiva, em qualquer dos graus de ensino, de acordo com as normas básicas estabelecidas em leis ordinárias, já como campos de ensaios e experimentação pedagógica.
VIII - Desenvolvimento das instituições de educação e de assistência física e psíquica à criança na idade pré-escolar (creches, escolas maternais e jardins de infância) e de todas as instituições complementares pré-escolares e pós-escolares:
a) para a defesa da saúde dos escolares, como os serviços médico e dentário escolares (com função preventiva, educativa ou formadora de hábitos sanitários, e clínica, pelas clínicas escolares, colônias de férias e escolas para débeis) e para a prática de educação física (praças de jogos para crianças, praças de esportes, piscinas e estádios);
b) para a criação de um meio escolar natural e social e o desenvolvimento do espírito de solidariedade e cooperação social (como as caixas escolares, cooperativas escolares, etc);
c) para a articulação da escola com o meio social (círculos de pais e professores, conselhos escolares) e intercâmbio interestadual e internacional de alunos e professores;
d) e para a intensificação e extensão da obra da educação e cultura (bibliotecas escolares, fixas ou circulantes, museus escolares, rádio e cinema educativo).
IX - Reorganização da administração escolar e dos serviços técnicos de ensino, em todos os departamentos, de tal maneira que todos esses serviços possam ser:
a) executados com rapidez e eficiência, tendo em vista o máximo de resultado com o mínimo de despesa;
b) estudados, analisados e medidos cientificamente, e, portanto, rigorosamente controlados nos seus resultados;
c) constantemente estimulados e revistos, renovados e aperfeiçoados por um corpo técnico de analistas e investigadores pedagógicos e sociais, por meio de pesquisas, inquéritos, estatística e experiências.
X — Reconstrução do sistema educacional em bases que possam contribuir para a nterpenetração das classes sociais e a formação de uma sociedade humana mais justa e
que tenha por objetivo a organização da escola unificada, desde o Jardim de Infância à Universidade, 'em vista da seleção dos melhores' e, portanto, o máximo desenvolvimento dos normais (escola comum), com o tratamento especial de anormais, subnormais e supernormais (classes diferenciais e escolas especiais)."6
Como se vê, um belo e completo programa cuja execução, ainda em nossos dias, es-á longe de ser alcançada, de modo especial em alguns de seus pontos, como, por exem
plo, o atendimento a tôda a população em idade escolar, a gratuidade em todos os níveis, a assistência ao pré-escolar, a formação universitária de todos os professores, o desenvolvimento de instituições escolares, pré-escolares e pós-escolares, etc.
Por isso mesmo, Fernando de Azevedo não perdia oportunidade em sua luta incansável pela implantação das novas idéias. Entre outras, algumas das quais veremos nos próximos capítulos, uma das ocasiões em que saiu a campo com força total foi durante a discussão da Lei de Diretrizes e Bases de 1961. Esta lei, cujo projeto fora enviado ao Congresso Nacional em 1948, foi a primeira lei brasileira a regulamentar o ensino em todos os níveis, do pré-primário ao superior.
Segundo Valnir Chagas, no processo de discussão dessa lei, "tudo se discutiu ou pôs em dúvida, quase sempre acaloradamente: a intervenção do Estado na educação (...); a preservação ou o restabelecimento das autonomias locais; a unidade da educação na di-versidade das condições regionais; o conceito de 'diretrizes e bases', seu caráter genéri-
ou específico; e a acepção estrita ou ampla de 'sistema de ensino', cifrando-se este a a conjunto de escolas ou alcançando também a sua orientação; (...) a obrigatoriedade
da escola primária; a separação da escola secundária da profissional (...)'\7
De todos, o assunto que mais empolgou o Congresso e que mais agitou os educadores e a opinião pública, especialmente nos últimos anos da discussão, foi a questão da liberdade do ensino. Mas esta era intepretada de uma forma bem particular: monopólio do Estado na educação ou livre iniciativa. Parece que não havia meio termo e as posições se radicalizaram: de um lado a corrente dos defensores intransigentes da escola pública, representada principalmente pelos educadores ligados ao movimento da educação nova; de outro lado o grupo que defendia a todo custo a iniciativa privada, preponderantemente relacionado aos meios católicos.
Os defensores da escola particular, a pretexto da defesa da livre iniciativa, esposavam uma concepção peculiar de liberdade de ensino, pretendendo, entre outras coisas: ensino ministrado sobretudo pelas entidades privadas e, supletivamente, pelo poder público; ensino particular não fiscalizado pelo Estado; e subvenção do Estado às escolas privadas. Tratava-se, como se vê, de um ensino livre, mas livre da fiscalização do
6 Idem, ibidem, p. 88-90.
CHAGAS, V. Educação brasileira: o ensino de 1? e 29 graus. 2. ed. São Paulo, Saraiva, 1980. p . 5 8 .
Estado e remunerado pelos cofres publicos.8
Inúmeros educadores levantaram-se em defesa da escola pública, como a única de caráter eminentemente democrático e capaz de atender a toda a população, independentemente de suas condições sócio-econômicas. Mais uma vez, Fernando de Azevedo veio a público em grande estilo. Agora o Manifesto dos Educadores - Mais uma Vez Convocados foi assinado por 180 educadores, entre os quais alguns dos signatários de 1932, como o próprio Fernando de Azevedo, Almeida Júnior, Anísio Teixeira, Carneiro Leão, Paulo Maranhão, Mário Casassanta, etc. A estes somaram-se numerosos jovens educadores, que haveriam de ter uma atuação marcante nos futuros destinos da educação e da cultura brasileiras: Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes, João Cruz Costa, Antônio Cândido de Mello e Souza, César Lattes, Paulo Duarte, Sérgio Buarque de Holanda, Miguel Reale, Fernando Henrique Cardoso, Darci Ribeiro são apenas alguns dos novos nomes.
O novo Manifesto ao povo e ao governo, que veio a público pela primeira vez a 19 de julho de 19599, mais de 25 anos após a mensagem de 1932, marcou "nova etapa no movimento de reconstrução educacional que se procurou então desencadear, e que agora recebe a solidariedade e o apoio de educadores da nova geração".10
Afirma, ainda, o novo Manifesto: "Não renegamos nenhum dos princípios por que nos batemos em 1932, e cuja atualidade é ainda tão viva, tão palpitante que esse documento, já velho de mais de 25 anos, se diria pensado e escrito nestes dias. Vendo embora com outros olhos a realidade, múltipla e complexa - porque ela mudou e profundamente sob vários aspectos - e continuando a ser homens de nosso tempo, partimos do ponto em que ficamos, não para um grito de guerra que soaria mal na boca de educadores, mas para uma tomada de consciência da realidade atual e uma retomada, franca e decidida, de posição em face dela e em favor, como antes, da educação democrática, da escola democrática e progressista que tem como postulados a liberdade de pensamento e a igualdade de oportunidades para todos."11
Todo o documento constitui uma candente defesa da escola pública, pois ela é vítima e não "responsável pelo abandono a que a relegaram os governos": "Não foi, portanto, o sistema de ensino público que falhou, mas os que deviam prever-lhe a expansão, aumentar-lhe o número de escolas na medida das necessidades e segundo planos racionais, prover às suas instalações, preparar-lhe cada vez mais solidamente o professorado e aparelhá-lo dos recursos indispensáveis ao desenvolvimento de suas múltiplas atividades."12
E o que pretendiam os que se opunham à escola pública? "A tudo isso, como a qualquer plano de organização, em bases mais sólidas e democráticas, da educação nacional, opõem-se abertamente as forças reacionárias, e nós sabemos muito bem onde
8 Cf. O Estado de S.Paulo, 07-01-59.
Redigido por Fernando de Azevedo, o Manifesto foi publicado pela primeira vez a 19 de julho de 1959, simultaneamente, por O Estado de S. Paulo e pelo Diário do Congresso Nacional. Posteriormente, foi reproduzido pelo Diário de Notícias e pelo Jornal do Comércio, ambos do Rio de Janeiro, bem como pelo Boletim do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Sao Paulo e pela Revista de Estudos Pedagógicos.
10 BARROS, R. S. M. de. ore. Diretrizes e Bases da Educação Nacional. São Paulo, Pioneira, 1960.
p.58. Idem, ibidem.
Idem, ibidem, p. 60-1.
elas se encontram e quais são os seus maiores redutos de resistência. Na luta que agora se desfechou e para a qual interesses de várias ordens, ideológicos e econômicos, empurraram os grupos empenhados em sustentá-la, o que disputam afinal, em nome e sob a capa de liberdade, é a reconquista da direção ideológica da sociedade - uma espécie de retomo à Idade Média — e os recursos do erário público para manterem instituições privadas que, no entanto, custeadas, na hipótese, pelo Estado, mas não fiscalizadas, ainda se reservariam o direito de cobrar o ensino, até a mais desenvolta mercantilização das escolas."13
13 Idem, ibidem, p. 79.
A missão da universidade
"Na organização da Universidade houve três pessoas que por ela trabalharam, consideradas os fundadores, com conhecimento profundo do modelo, pois o haviam discutido. Éramos o Júlio Mesquita, eu e o Fernando de Azevedo, que foi posto bem a par do projeto pelo Julinho e por mim. Fizemos várias reuniões, a três, para discutir o modelo. "
Paulo Duarte
Na realidade, a Universidade de São Paulo, criada a 25 de janeiro de 1934, foi a primeira universidade a funcionar no Brasil. A Universidade do Rio de Janeiro, criada a 7 de setembro de 1920, não teve existência mais que nominal, nunca chegando a funcionar na prática, pois as escolas que a formaram - Medicina, Direito e Engenharia, todas mantidas pelo Governo Federal — continuaram técnica e administrativamente isoladas, não tendo sido criados os instrumentos necessários à sua integração.
Esclarece-nos, nesse particular, Heladio CG. Antunha: "Sabe-se que a Universidade do Rio de Janeiro foi criada, em 1920, em virtude da necessidade de ser outorgado o título de Doutor Honoris Causa ao Rei Alberto I, da Bélgica, como parte das homenagens que lhe deveriam ser prestadas, protocolarmente, por ocasião de sua visita oficial, dentro do quadro das comemorações do Centenário da Independência."1
A inexistência de uma universidade, apesar do funcionamento do ensino superior desde o inicio do século XIX, colocava o Brasil numa situação de inferioridade em relação aos outros países sul-americanos. A intelectualidade brasileira não se conformava com o fato de o Brasil e o Paraguai serem os únicos países da América do Sul que ainda não contavam com uma universidade, sendo que países como o México e o Peru, por exemplo, já no século XVI haviam organizado tal instituição de ensino superior. A situação do Brasil, por isso mesmo, era considerada humilhante.
Não se pode falar que os intelectuais e educadores não tenham lutado em prol do ensino universitário. O que acontecia é que tudo estava na dependência do Governo Federal, a quem cabia legislar sobre o assunto. com a Revolução de 1930 e a entrada em vigor do Decreto Federal n° 19.851, de 11 de abril de 1931, que promulgou o Estatuto das Universidades Brasileiras, a organização do ensino universitário no Brasil tornou-se uma possibilidade real.
Fernando de Azevedo teve uma participação ativa na fundação da Universidade de São Paulo. Já em seu inquérito de 1926 o problema do ensino universitário havia sido
1 ANTUNHA, H.C.G. Universidade de São Paulo: fundação e retorma. São Paulo, Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Sudeste, 1974. p. 53. Nota 1.
colocado de forma clara e incisiva. Na formulação das questões, Fernando de Azevedo insinuava o tipo de instituição de ensino universitário que defendia e instava os depoentes a manifestarem-se a respeito. Não custa recordarmos as duas questões que tratam do assunto:
"9 - Se é problema capital, em uma democracia, a formação das elites intelectuais, não lhe parece urgente tratarmos da fundação de estabelecimentos de pesquisa científica e de cultura livre e desinteressada, que tenham por objetivo menos a organização de um ensino geral do que a contribuição para o progresso do saber humano?
10 — Que pensa pois da criação de uma universidade em São Paulo, organizada dentro do espírito universitário moderno:
a) de maneira que se integrem num sistema único, mas sob direção autônoma, as faculdades profissionais (de medicina, de engenharia e de direito), institutos técnicos de especialização (farmácia, odontologia) e institutos de altos estudos (faculdades de filosofia e letras; de ciências matemáticas, físicas e naturais; de ciências econômicas e sociais; de educação, etc);
b) e de maneira que, sem perder o seu caráter de 'universalidade', se possa desenvolver, como uma 'instituição orgânica e viva', posta pelo seu espírito científico, pelo nível dos estudos e pela natureza e eficácia de sua ação, a serviço da formação e desenvolvimento da cultura nacional?"2
como se vê, a universidade era vista como uma exigência da "formação das elites intelectuais" e da "formação e desenvolvimento da cultura nacional", objetivos a serem atingidos através da integração num único sistema da formação profissional, da especialização e dos altos estudos.
Além da reivindicação dos intelectuais e da legislação pertinente, outro fator contribuiu decisivamente para a fundação da Universidade de São Paulo. Foi a circunstância histórica que envolvia São Paulo na primeira metade da década de 1930. Derrotado duas vezes — em 1930 e em 1932 - São Paulo, no entender de suas elites, devia conquistar no terreno cultural a hegemonia que perdera no campo político. Nesse sentido, são extremamente significativas as palavras de Júlio de Mesquita Filho: "Vencidos pelas armas, sabíamos perfeitamente que só pela ciência e pela perseverança no esforço voltaríamos a exercer a hegemonia que durante longas décadas desfrutáramos no seio da Federação. Paulistas até a medula, herdáramos da nossa ascendência bandeirante o gosto pelos planos arrojados e a paciência necessária à execução dos grandes empreendimentos. Ora, que maior monumento poderíamos erguer aos que haviam consentido no sacrifício supremo para preservar contra o vandalismo que acabava de aviltar a obra de nossos maiores, das bandeiras à independência e da Regência à República, do que a Universidade?"3
Na mesma linha de pensamento, Fernando de Azevedo entende a criação da Universidade de São Paulo como a vitória da inteligência e da liberdade contra a força e a violência: "Pois, nesta época rudemente trabalhada por duas correntes sociais e políticas que, fazendo apelo à força, à vontade e à ação, tendem a esmagar a inteligência e a liberdade sob o rolo compressor da máquina do Estado, o governo de São Paulo criou a
2 AZEVEDO, F. de. A educação na encruzilhada. Op. cit., p. 192-3. 3 MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo, Liv. Martins Fontes, 1969. p. 199.
Universidade, como um protesto e afirmação de fé na liberdade de pensamento e de investigação, de critica e de debate, que constitui os fundamentos das instituições democráticas e universitárias. É a resposta de São Paulo aos ideais da força e da violência."4
Os fundadores da Universidade de São Paulo discutiram exaustivamente o modelo de universidade a ser implantado, chegando a cinco projetos fundamentais, todos eles concretizados em maior ou menor intensidade :
"19 - a constituição de um governo comum para tôda a Universidade, gozando de grande autonomia em suas relações com a administração pública;
29 - a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, como a escola propriamente universitária da U.S.P., destinada a ser a um tempo o centro dedicado à universalidade ou à totalidade do saber e o núcleo unificador de toda a Universidade;
39 — a realização de cursos gerais (propedêuticos, comuns ou básicos) para todos os alunos da Universidade, a serem progressivamente concentrados na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras;
49 — a construção da Cidade Universitária e a organização de laboratórios, prédios e equipamentos para uso comum, com a ampliação dos contatos e da convivência de mestres e alunos;
59 — a contratação de professores estrangeiros, a fim de se iniciar, na Faculdade de Filosofia, fora do estrito regime de cátedras, portanto, o cultivo dos estudos ainda não conhecidos no país, bem como de se implantar uma tradição de pesquisas e de altos estudos desinteressados, com a conseqüente formação de um novo quadro de intelectuais e de especialistas de alto gabarito."5
Apresentado um panorama geral da fundação da Universidade de São Paulo, dos seus objetivos e do modelo adotado, resta-nos examinar um pouco mais pormenorizadamente as idéias de Fernando de Azevedo a respeito da universidade, a sua concepção da missão da universidade.
Embora, na maior parte de suas obras, Fernando de Azevedo tenha feito freqüentes referências ao ensino universitário, o seu pensamento a respeito da universidade foi expresso mais em forma de discursos e conferências. Discursos e conferências que foram reunidos num único volume - As Universidades no Mundo de Amanhã - pela Companhia Editora Nacional e que são os seguintes:
1) Pela Cultura e Liberdade de Espírito: discurso pronunciado no banquete que foi oferecido ao autor, a 17 de dezembro de 1936, no salão do Hotel Esplanada, em S. Paulo.
2) Pioneiro de uma Política da Cultura (Para a história da Universidade de São Paulo): discurso escrito para ser proferido em março de 1937 no banquete que em homenagem ao Dr. Júlio de Mesquita Filho promoveram seus amigos, professores e estudantes da Universidade de São Paulo e que não se realizou, em obediência aos desejos do diretor de O Estado de S. Paulo.
AZEVEDO, F. de. A missão da universidade. Conferência pronunciada a 24 de janeiro de 1935. In: As Universidades no mundo de amanhã. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1947. p. 123.
ANTUNHA, H.C.G. Universidade de São Paulo:fundação e reforma. Op. cit., p. 95-6.
3) Sob o Fogo do Combate (A questão da formação universitária dos professores de ensino secundário): discurso pronunciado na solenidade de formatura da 1ª turma de professores do ensino secundário, a 21 de abril de 1937, no salão nobre da Faculdade de Medicina da Universidade de S. Paulo.
4) Ainda uma Vez Convocado (Para cumprir os deveres da luta e do pensamento): discurso proferido a 19 de julho de 1941, ao tomar posse do cargo de diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de S. Paulo.
5) Para Novos Caminhos da Cultura: discurso pronunciado a 3 de setembro de 1941 no banquete que lhe foi oferecido no Automóvel Clube, pelos professores e estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de S. Paulo.
6) A Missão da Universidade: conferência pronunciada a 4 de janeiro de 1935, na sessão solene de encerramento dos cursos do Instituto de Educação, da Universidade de S. Paulo.
7) As Lutas Políticas e a Universidade: 2ª conferência realizada a convite do Reitor da Universidade de S. Paulo, a 27 de outubro de 1936, na Faculdade de Direito.
8) As Universidades no Mundo do Futuro: conferência pronunciada, a convite da Casa do Estudante do Brasil, no Salão de Conferências da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, no dia 22 de junho de 1944.
9) O Nacionalismo e o Universalismo na Cultura: conferência pronunciada, a convite do Instituto Rio Branco do Itamarati, no Salão de Conferências da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, no dia 8 de novembro de 1945.
Outros textos de Fernando de Azevedo sobre o ensino universitário foram reunidos na segunda parte do livro A Educação entre Dois Mundos6 : As Universidades e o Momento Histórico; O Problema Universitário (Manifesto dos fundadores da Universidade de São Paulo, publicado em O Estado de S. Paulo, de 29 de maio de 1952); A Universidade de São Paulo (Estudo publicado em O Estado de S. Paulo, de 25 de janeiro de 1954 - edição comemorativa do IV centenário da fundação da cidade de São Paulo).
De todos esses discursos, conferências e estudos, porém, o trabalho mais sistemático e a síntese mais abrangente que Fernando de Azevedo escreveu sobre o assunto é a conferência A Missão da Universidade, na qual estão claramente expressas suas principais idéias sobre o que deveria ser a universidade. como se sabe, o Instituto de Educação foi incorporado à Universidade de São Paulo, situação em que permaneceu, oferecendo formação pedagógica aos futuros professores, até 1938, quando foi extinto e transformado em Seção de Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Seus professores catedráticos foram transferidos em igual posto para a nova seção da Faculdade de Filosofia. O que atribui especial importância à referida conferência de Fernando de Azevedo é o fato de ter sido feita por ocasião do encerramento do primeiro ano letivo da Universidade de São Paulo, na oportunidade da formatura do primeiro grupo de professores, depois que o Instituto passou a integrar o regime universitário.
6 AZEVEDO, F. de. A educação entre dois mundos. São Paulo, Melhoramentos, 1958. p. 99-139.
como foi dito, as principais idéias de Fernando de Azevedo sobre a missão da universidade estão nessa conferência e, por isso mesmo, sirvo-me dela, utilizando tanto quanto possível o próprio texto do educador, para apresentar em poucas páginas o que se pode considerar a síntese do seu pensamento sobre o ensino universitário.
Sobre o significado da criação da universidade: "A criação da Universidade importa, de fato, pela própria natureza e finalidade destas instituições, uma declaração de princípios, segundo os quais se substitui a ordem da força pela ordem do pensamento; a violência que corta as discussões pela liberdade que as estimula; a obstinação que geram os preconceitos pela tolerância que é inerente ao próprio espírito científico."
A respeito da interação entre a universidade e a nação: "Para que adquira a consciência de sua verdadeira missão e dos rumos que deve seguir; para servir à ciência e à obra de reconstrução nacional, precisa, sem dúvida, ser reforçada e ampliada por uma constante tomada de contato com as grandes forças vivas da nação. Mais do que um sistema de ensino superior, no conjunto de cujos institutos se elaboram a ciência e a alta cultura, ela deve ser 'o centro orientador de todas as energias coletivas', em que se forjam e se condensam as modalidades e os ideais que se pretenda imprimir à nação; e, por isto mesmo, como não pode dar forma e expressão senão aos ideais e às correntes do tempo e do meio, nem trabalhar senão com o material que lhe fornece a vida social, ela tem de transformar-se num sistema de antenas suscetíveis de entrar em vibração aos menores contatos sociais ou num órgão sensível a todas as inquietações e aspirações coletivas, e, por isto, capaz de se antecipar aos acontecimentos, para orientar eficazmente as transformações sociais, políticas e econômicas."
Acerca da importância do espírito científico de pesquisa na universidade: "A principal característica das universidades modernas, por tôda a parte, é 'o espírito científico de pesquisa', isto é, a indagação completamente objetiva e livre de quaisquer considerações que não sejam a busca da verdade, e que só se criará pelo estudo e pela pesquisa da ciência pura"; "Mas, se a principal função da Universidade é contribuir para o aperfeiçoamento do saber humano; se a ciência, longe de se fixar com os sábios num molde imutável e impecável, é feita de imprevisto, e se é próprio do professor universitário não só transmitir a ciência feita, mas esforçar-se por concorrer para a ciência a fazer-se, a se constituir, a pesquisa científica, que é o estudo dos fatos e a reflexão sobre eles, é o único meio que tem o professor de penetrar no futuro e a ele cabe, como dever primordial, cultivar e despertar, nos seus discípulos, o espírito de pesquisa e de invenção."
Sobre os prejuízos que os governos de força trazem à pesquisa na universidade, de modo especial no campo das ciências humanas: "Ainda sob os governos de força, que tão poderosamente influem sobre os regimes universitários, se se fecham ao espírito certos campos de investigação, como as ciências sociais e políticas, nas quais todo o trabalho científico se desenvolve, menos no sentido de investigar desinteressadamente a verdade do que no de procurar argumentos para justificar os regimes, as Universidades procuram compensar esta limitação e deformação que lhes são impostas pelas instituições políticas com uma intensificação crescente das pesquisas no campo das ciências físicas e naturais. A filosofia e as ciências sociais, como as letras, condenadas a uma camisa de força, não podem ser encaradas senão sob o ângulo da doutrina que constitui a base das instituições políticas, e, despojadas de todo o resíduo burguês ou proletário, devem regular suas idéias pelo ritmo da ciência do Estado..."
Quanto às relações entre a cultura geral e a especialização: "A situação, porém, chegou a um ponto em que os servidores de um ramo da ciência são obrigados a ignorar
quase tudo daqueles que estão ao lado (...) não é menos verdadeiro que o estudo exclusivamente especial, científico ou matemático, constitui uma perigosa mutilação do homem e que a especialização que impõe uma disciplina científica se deve constituir sobre a base sólida e larga de uma cultura geral, filosófica e literária, capaz de estabelecer o concurso e a harmonia entre as atividades e as exigências do espírito e um estreito laço de solidariedade moral entre os homens."
No tocante ao mesmo assunto, Fernando de Azevedo cita as palavras do poeta Lamartine, cuja atualidade, cerca de 150 anos após terem sido escritas, é inegável: "Eu não me espanto de que os tiranos se acomodem com especialistas e técnicos; eles têm necessidade de instrumentos engenhosos, arquitetos, mecânicos, artilheiros, homens de cifras, homens-máquinas para calcular, máquinas para construir, máquinas para matar, máquinas para servidão. A cifra não tem alma. Eles desconfiam desta força: desvi-rilizam a humanidade para dominá-la. O homem especialista não lhes recusa nada; o homem de idéias gerais lhes causa medo: ele sente, ele pensa."
A respeito da responsabilidade da universidade diante da ciência e da profissão: "Às Universidades modernas compete formar o sábio, o político, o profissional e o técnico; e na medida em que conciliar os papéis respectivos das ciências e das letras, os estudos desinteressados e os de utilidade imediata, as exigências da teoria e da prática, da cultura e da profissão, a Universidade de São Paulo estenderá o seu raio de influência no meio social, e, como uma instituição real e viva, marcará pelas suas pulsações o ritmo do progresso em todos os campos das atividades nacionais."
Acerca da posição da universidade diante do universalismo e do nacionalismo: "Se a Universidade é, por sua própria definição e por sua finalidade, qualquer coisa de 'universal', e a sua 'universalidade' provém não só de que ela deve abranger, nos seus cursos, todos os conhecimentos humanos (universitas rerum humanorum), mas do fato de que a ciência não tem pátria, os sábios a têm uma. E como a melhor maneira de servir um cidadão ao seu país é servir exemplarmente à profissão que escolheu, desempenhando, com proficiência e entusiasmo, a missão, ainda a mais modesta, que lhe coube na vida social, não há melhor maneira de servir à humanidade do que servir à pátria (...) Mas isto não quer dizer que seja justo assumir, nos domínios do pensamento, uma atitude parcial de prevenção contra as culturas estrangeiras, das quais será preciso fazer freqüentes transfusões de espírito científico e de métodos de trabalho, ou que se deva imolar no altar da pátria, que é parte no concerto das nações, os interesses da humanidade, a que cada uma delas deve servir e homar."
Quanto ao espírito científico que deve animar a universidade: "O progresso social, como o progresso científico, é 'uma escada em que não se pode subir senão de um degrau a outro, e onde cada um é indispensável à sustentação daquele que lhe está sobreposto'. Se a ciência, pois, nos pode dar, mais do que qualquer outra atividade humana, o sentimento da solidariedade moral mostrando-nos como as mais poderosas descobertas estão intimamente ligadas ao que as precedeu; se, desenvolvendo o juízo e o senso crítico, e, com eles, o sentido da relatividade das coisas, é ela que nos previne contra as adesões irrefletidas às soluções generosas, mas simplistas, que, procedendo de imaginações ardentes, não levam suficientemente em conta as realidades sociais, abrindo-nos do conhecido para o desconhecido e para o incognoscível as mais largas perspectivas, ela nos dará, ao mesmo tempo que um poderoso impulso para o ideal, esse sentimento de humildade, de pequenez e, portanto, de indulgência e de doçura, diante da enorme desproporção entre o conhecido e o desconhecido..."; "É preciso subir mais alto e sempre mais alto, lembra-nos H. Poincaré, 'para ver sempre mais lon-
ge, e sem nos determos demais no caminho. O verdadeiro alpinista considera sempre o cume que ele acaba de escalar como um degrau que deve conduzi-lo ao cume mais elevado. É preciso que o sábio tenha o pé do montanhés e, sobretudo, o coração do montanhês. Eis qual o espírito que deve animá-lo. Esse espírito é o que soprava outróra sobre a Grécia e fazia nascer os poetas e os pensadores."
No momento em que, sob o ànimo da chamada Nova República, o ensino universitário está sendo objeto de estudos com vistas a uma possível reforma, é mais do que necessário que as palavras de Fernando de Azevedo, escritas há exatamente 50 anos, sejam motivo de reflexão e análise. Quanto mais delas nos aproximarmos, mais descobriremos sua palpitante atualidade e sua sugestiva força criadora.
A cultura brasileira
"Aristocratismo e humanismo, socialismo e visão ilustrada do mundo constituem os eixos que definem a perspectiva do Autor de 'A Cultura Brasileira '. O anticapitalismo de elite, para retomar a expressão de R. Schwarz, parece sera tônica do pensamento de Fernando de Azevedo. "
Carlos Guilherme Mota
A contribuição de Fernando de Azevedo para o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil foi de fundamental importância, já que ele foi um dos pioneiros no campo: em 1928 introduziu a cadeira de Sociologia na Escola Normal do Distrito Federal;em 1933 implantou o ensino de Sociologia em todas as escolas normais do Estado de São Paulo; foi o responsável pela inclusão da cadeira de Sociologia no Instituto de Educação de São Paulo, fundado em 1933 e incorporado à universidade de São Paulo em 1934; a partir de 1931 ensinou Sociologia no Curso de Aperfeiçoamento da Escola Normal da capital de São Paulo; foi professor da mesma matéria no Instituto de Educação, de 1933 a 1938; a partir do último ano, com a incorporação do Instituto de Educação como Seção de Educação, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, Fernando de Azevedo tornou-se catedrático de Sociologia em seus quadros, onde teve como discípulos Florestan Fernandes e Antônio Cândido de Mello e Souza, e foi diretor a partir de 1941 ; desde a sua fundação, em 1935, exerceu a presidência da Sociedade Brasileira de Sociologia.
Além das atividades citadas, Fernando de Azevedo foi autor de várias obras no campo das ciências sociais. As de cunho mais teórico, sistemático e geral foram: Princípios de Sociologia, obra publicada pela primeira vez em 1935, constituindo, se não o primeiro, certamente um dos primeiros manuais da matéria, tendo servido para a formação de várias gerações de sociólogos; Sociologia Educacional, também uma das primeiras obras em seu campo, publicada em 1940 e traduzida depois para o espanhol: e A Cultura Brasileira, obra publicada originalmente em três tomos, sendo que o primeiro foi escrito como introdução ao recenseamento geral do Brasil, de 19de setembro de 1940. A obra completa veio á luz em 1943 e passou a ser vista como um estudo clássico na matéria, tendo sido traduzida para o inglês.
A grande abrangência e a profundidade dos Princípios de Sociologia — Pequena Introdução ao Estudo de Sociologia Geral de Fernando de Azevedo podem ser percebidas com uma simples vista geral dos títulos das cinco partes e dos vinte e dois capítulos que compõem a obra:
I — Os fatos sociais: a natureza objetiva dos fatos sociais; a diversidade e complexidade dos fatos sociais; as sociedades ou grupos sociais; as formas sociais, suas espécies
e suas causas; as atividades dos grupos e suas relações com as formas sociais; a evolução social.
II — A penetração do espírito científico no estudo dos fatos sociais : os estudos e as idéias sociais, da Antigüidade aos tempos modernos; a constituição de uma ciência particular do social;a luta pela autonomia da Sociologia como ciência.
III — A ciência social:a Sociologia, ciência positiva, com objeto próprio; a aplicação dos métodos científicos aos estudos sociológicos; os pesquisadores e a sociologia geral.
IV — As escolas sociológicas do ponto de vista do método: o método dedutivo matemático, no estudo das ciências sociais; o método psicológico em Sociologia; o método de observação monográfica, segundo a "Escola da Ciência Social"; a obra metodológica de E. Durkheim;o estado atual do problema metodológico.
V — As escolas do ponto de vista da explicação dos fatos sociais: a concepção física e organicista da sociedade e a aplicação à sociologia das leis mecânicas e biológicas;a interpretação psicológica da sociedade e dos fatos sociais; a explicação dos fatos e do desenvolvimento social por uma causa principal; a concepção realista e objetiva dos fatos sociais;as grandes correntes atuais do pensamento sociológico.
Apêndice: A Sociologia na América Latina e, particularmente, no Brasil. como se vê, trata-se de uma abordagem bastante eclética, certamente reflexo das
numerosas orientações que ainda habitavam a Sociologia, uma ciência que vivia sua infância final ou primeira adolescência. A imaturidade da ciência social, com suas inevitáveis conseqüências, era claramente reconhecida por Fernando de Azevedo: "Reconhecendo a insuficiência dos esforços tentados para assentar sobre base irrevogavelmente científica os conhecimentos sociais, não se pode proclamar grosseiramente a falência da Sociologia em cujos estudos só muito recentemente penetraram o espírito e os métodos científicos. Mas, além de ser ciência nova, ainda na infância (e todos conhecemos a larga zona de sombra que escurece o quadro de todas as outras ciências mais antigas), é a Sociologia, pela natureza e extensão do seu objeto, a mais difícil de dominar, na complexidade dos fenômenos sociais. As doutrinas, ainda as mais vulneráveis sob muitos aspectos, têm trazido, com todos os seus erros, alguns acréscimos às conquistas científicas, quando não tenham rasgado, pela riqueza de suas sugestões, novas perspectivas aos estudos sociológicos. Aliás, o erro reconhecido é o irmão mais velho da verdade. A crise das doutrinas, em lugar de comprometer o futuro de uma ciência, lhe facilita a renovação e a revisão; e os resultados insuficientes ou negativos, de que nos queixamos às vezes, provam e condenam, antes de tudo, se não unicamente, a insuficiência da documentação ou uma documentação unilateral sobre os mais delicados problemas, e, portanto, a deficiência dos processos de investigação empregados na sociologia."1
Aprender a ver, a observar, a imaginar, a pesquisar constitui um requisito essencial na superação das deficiências iniciais da Sociologia: "Mas os alunos não sabem ver. Aprender a ver e a observar é a mais difícil aprendizagem. Não se improvisa um pesquisador ou um experimentador. Nem em Física, nem em Química, nem em Sociologia. É preciso certamente 'fazer' observar, investigar e refletir, se queremos que aprendam a ver claro e a raciocinar sobre as realidades. Essa aprendizagem exige, no entanto, um constante esforço de atenção, impõe um trabalho duro de espírito e uma disciplina rigorosa de estudos. como também exige certa imaginação. Essa iniciação nos trabalhos de campo (field works) e na pesquisa social, só o professor pode e deve dá-la, con-
AZEVEDO, F. de. Princípios de sociologia. 8 ed. São Paulo, Melhoramentos, 1958. p. 3-4.
duzindo os alunos à observação e à pesquisa, em campos e com objetivos limitados, para que possam adquirir com segurança e aplicar o método estatístico e as técnicas de análise de casos ou de culturas, de investigação ecológica e de inquéritos ou levantamentos sociais de situações determinadas."2
A Sociologia só poderá tomar-se ciência na medida em que atribuir a seus estudos um caráter eminentemente objetivo: "E, por último, como a ciência é o 'estudo objetivo e desinteressado de uma realidade determinada', as concepções ideais, artificiais e arbitrárias, da sociedade, só podem perturbar a visão das formas reais e das leis de evolução das sociedades humanas. A Sociologia, como qualquer outra ciência, não tem por objetivo o estudo 'do que deve ser', mas 'do que é'; não do ideal, mas de fatos e de suas uniformidades constantes ou relações necessárias."3
Já em sua Sociologia Educacional, Fernando de Azevedo particulariza mais seu objeto de estudo, enfatizando apenas um entre os múltiplos fenómenos sociais - a educação —, embora este seja visto em suas relações com os outros fenômenos sociais. 0 estudo da educação como fenômeno essencialmente social, com ênfase mais no social do que no individual do fenômeno educativo, dependente das estruturas sociais vigentes em determinada sociedade, é o aspecto mais evidente da obra de Fernando de Azevedo, claramente aparente nos títulos da introdução das quatro partes e dos vinte e um capítulos:
Introdução:o que é Sociologia e o que é Sociologia Educacional. I — A Educação, fenômeno social: o individual e o social; a coesão social e a tradi
ção; a integração do indivíduo no grupo; a natureza sociológica do fenômeno de educação; a educação, um processo social geral; a educação nas sociedades primitivas.
II — As origens e a evolução da escola: a família e a educação;o grupo profissional pedagógico; escola, uma instituição social; a rotina na educação: formadores e reformadores; a educação e o progresso.
III — Os sistemas escolares: os sistemas escolares e os sistemas sociais gerais; a educação e as classes sociais; a complexidade e a crise em educação; a organização dos sistemas escolares.
IV — Os problemas sociais pedagógicos: as cidades e os campos e os problemas de educação; o Estado e a educação; política e educação; o problema dos fins em educação; a escola, o patriotismo e a unidade nacional;a opinião pública e a educação.
A ênfase no social, Fernando de Azevedo a desenvolveu inspirado principalmente em E. Durkheim, seu grande mestre no campo da Sociologia. Assim, a Sociologia seria uma das formas de se fazer o estudo científico da educação, de modo especial dos fatos sociológicos da educação, que são os predominantes: "Assim, pois, a Sociologia, como se vê, é uma das vias de acesso por onde se pode abordar o estudo científico da educação, como tato ou conjunto de tatos suscetíveis de observação, como sejam, 'o conteúdo da civilização' que a educação transmite (idéias, sentimentos coletivos, tradições, hábitos e técnica), as formas diversas que reveste (instituições escolares) sob a pressão da estrutura social, e a aparelhagem ou instrumental próprio (livro, material, etc.) de que se serve para transmiti-la."4
Idem, ibidem, p. 5.
Idem, ibidem, p. 8.
AZEVEDO, F. de. Sociologia educacional. 4 ed. Sao Paulo, Melhoramentos. 1957. p. 28.
Mas a Sociologia desenvolve um modo particular, diferente das outras áreas de conhecimento, para aproximar-se da realidade educacional: "Ora, a Sociologia, constituindo-se como ciência, sugere-nos um método novo para atingir a realidade educacional, a saber, considerá-la como um aspecto ou um setor da realidade social e analisá-la nas suas relações com os outros fenômenos da vida coletiva."5
É ainda o caráter social da educação, sempre presente, que fundamenta a necessidade do estudo da Sociologia para o educador: "Mas para que se tenha uma idéia ainda mais precisa de quanto interessa e é necessário ao educador o conhecimento da Sociologia, como base científica de sua profissão, basta atentar-se para esses três fatos fundamentais: a) a natureza sociológica do fenômeno da educação; b) as relações dos fatos sociais pedagógicos e os outros fenômenos coletivos; c) e as variações, em conseqüência, segundo os povos e sob a pressão das condições sociais, não só das instituições escolares, como também dos tipos de mentalidade ou dos ideais que se transmitem pela educação (...) Os sistemas de educação, determinados pelas estruturas sociais, não podem ser senão o que elas são numa sociedade dada."6
A Cultura Brasileira, uma vasta obra de 809 páginas em sua quinta edição, abrange quinze capítulos distribuídos em três grandes partes:
I — Os fatores da cultura: o país e a raça;o trabalho humano; as formações urbanas; a evolução social e política; psicologia do povo brasileiro.
II — A cultura: instituições e crenças religiosas; a vida intelectual — as profissões liberais; a vida literária; a cultura científica; a cultura artística.
III — A transmissão da cultura: o sentido da educação colonial; as origens das instituições escolares; a descentralização e a dualidade de sistemas; a renovação e a unificação do sistema educativo;o ensino geral e os ensinos especiais.
Carlos Guilherme Mota tece a seguinte apreciação geral a respeito da forma como Fernando de Azevedo interpreta a cultura brasileira: "O tom geral da obra é otimista, equilibrado, incorporando em sua concepção de cultura as manifestações dos vários campos do saber e, nesses campos, as diversas tendências. Não há antagonismos aparentes entre as variadas 'escolas' apresentadas. A plasticidade do conceito de cultura empregado garante a harmonia entre as diferentes posições. No máximo, pode-se registrar menos apreço pelas formas de organização do saber dentro dos quadros de instituições religiosas; afinal, o grande personagem é o ensino público, veiculador do saber laico — a fidelidade do pensamento de Fernando de Azevedo ao ensino laico vai permanecer como paradigma nas campanhas em defesa da escola pública, nos fins dos anos 50, das quais participou ao lado de Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Almeida Júnior, figuras maiores da história da educação no Brasil contemporâneo. Figuras à sombra das quais se formaram representantes do pensamento radical no Brasil, como Darci Ribeiro (discípulo dileto de Anísio Teixeira) e Florestan Fernandes e Antônio Cândido (discípulos escolhidos por Fernando de Azevedo).
O 'esforço incessante para a unidade', eis a meta de Fernando de Azevedo. As forças culturais devem ser assimiladas entre si, incorporando a experiência do passado, a 'herança sagrada, que deve ser imortal, de nossa história e de nossas tradições'. E nesse processo de assimilação dos contrários não teriam escapado elementos antagônicos representativos da democracia liberal e do socialismo, que se absorveram, compondo um
Idem, ibidem, p. 32.
6 Idem, ibidem, p. 32-3.
todo organico e equilibrado. A 'organização da familia e da propriedade' por sua vêz nao se ressentiu com a aceleração dos processos de industrialização e urbanização, os quais poderiam ter desviado o País da rota geral, levando-o para 'formas comunitárias dos tempos primitivos."7
Escrita integralmente durante o período ditatorial do Estado Novo, sob cujos auspícios foi originalmente publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografìa e Estatística (IBGE), A Cultura Brasileira, num significativo exemplo de conciliação e superação de antagonismos, abriga, por um lado, grandes elogios à Constituição de 1937, particularmente aos seus dispositivos referentes à educação: "A nova Constituição, outorgada em 1937, reafirmou, com efeito, levando ainda mais longe do que a Constituição de 1934, as finalidades e as bases democráticas da educação nacional, não só estabelecendo pelo art. 128 que 'a arte e a ciência e o seu ensino são livres à iniciativa individual e à de associações ou pessoas coletivas, públicas e particulares', como também mantendo a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino primário, instituindo, em caráter obrigatório, o ensino de trabalhos manuais em todas as escolas primárias, normais e secundárias, e, sobretudo, dando preponderância, no programa de política escolar, ao ensino pré-vo-cacional e profissional, que se destina 'às classes menos favorecidas e é, em matéria de educação, o primeiro dever do Estado' (art. 129). Sob esse aspecto, a Constituição de 1937, rompendo com as tradições intelectuais e acadêmicas do país e erigindo à categoria de primeiro dever do Estado o ensino técnico e profissional, pode-se considerar a mais democrática e revolucionária das leis que se promulgaram em matéria de educação."8
Por outro lado, nas últimas linhas de sua obra, Fernando de Azevedo vislumbra o desenvolvimento, no país, do que se poderia chamar de socialismo civilizado que, mais de quarenta anos depois de sua análise, parece que estamos longe de alcançar: "Certamente tôda a estrutura econômica, política e social, nessa fase nova da humanidade, se vem transformando também entre nós, mas por uma revolução incruenta; e a mudança a que assistimos, no país, de um sistema social estratificado para outro com um grau mais elevado de mobilidade, se realiza sem o menor sintoma de degenerescencia dos instintos sociais superiores e desses valores humanos que constituem uma das características fundamentais de nossa cultura e civilização. Nenhuma doutrina que desconheça uma metade do homem ou que, exagerando o aspecto técnico da civilização, estimule velhos instintos gregarios e prepare hordas de bárbaros mecanizados, inscreveu-se até hoje nos planos da política nacional ou de qualquer dos programas de uma política de cultura e de educação. uma e outra, intimamente articuladas - porque tôda política escolar varia em função de uma política geral -, não entraram no seio do movimento senão para encontrar, suscitar e desenvolver as aspirações personalistas e comunitárias, que nenhuma deformação transitória poderia abafar inteiramente, para procurar um socialismo que saiba combinar a pessoa e a comunidade, e para lançar à base da educação e da cultura a liberdade de consciência e o respeito aos direitos e à dignidade da pessoa humana."9
A contribuição de Fernando de Azevedo ao desenvolvimento das ciências sociais no Brasil não se limitou, porém, a suas atividades profissionais e a essas três obras
MOTA,C. G. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 4. ed. São Paulo, Ática, 1978. p. 75-6. 8 AZEVEDO, F. de. A cultura brasileira. 5. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1971. p. 693-4.
Idem, ibidem, p. 766.
fundamentais. Em numerosas oportunidades - discursos, conferências, entrevistas o autor de A Cultura Brasileira tornou público seu pensamento a respeito da Sociologia, das suas dificuldades e dos caminhos a seguir para que viesse a se transformar numa ciência de fundamental importância, de modo especial para os educadores.
uma dessas oportunidades foi o encerramento do I Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em Sao Paulo por iniciativa da Sociedade Brasileira de Sociologia e sob o patrocínio do IV Centenário da Cidade de São Paulo. Coube a Fernando de Azevedo, na qualidade de presidente da Sociedade de Sociologia, pronunciar o discurso final, a 27 de junho de 1954. E ele aproveitou a ocasião para fazer uma espécie de inventário do estado da Sociologia naquele momento.10
A constatação básica de Fernando de Azevedo foi a da defasagem considerável existente entre o grande número de cadeiras de Sociologia implantadas no país e o desenvolvimento qualitativo das ciências sociais: "Estivessem os progressos desses estudos ligados ou condicionados ao número de cadeiras de Sociologia e de Antropologia existentes no país (e só as de Sociologia orçam por cerca de 150, das quais 30 em Faculdades de Filosofia e outros institutos universitários, e 120 em Escolas Normais e Institutos de Educação), e já podíamos certamente dar-nos os parabéns. Mas, infelizmente, entre esses dois fatos dos quais um não exprime senão um crescimento quantitativo ou de difusão do ensino, não há nenhuma relação de qualidade, como se pode ver, para dar apenas um exemplo, na França em que, sendo tão poucas as cadeiras (talvez umas cinco ou seis) existentes no ensino oficial, avulta, com uma tradição científica já secular, uma galeria notável de sociólogos, muitos de primeira ordem e não poucos de reputação universal."
Fernando de Azevedo passa, então, a procurar as raízes das dificuldades que "ainda embaraçam ou retardam os progressos destes estudos". Entre as muitas dificuldades, o presidente da Sociedade de Sociologia identifica cinco, que considera as mais importantes e que se tentará caracterizar aqui com base em passagens extraídas do próprio discurso de Fernando de Azevedo:
1) A primeira dificuldade refere-se à própria concepção de Sociologia ainda em voga em determinados meios: "Ou confundimos sociologia com filosofia social, socialismo ou mesmo serviço social (confusão que, na própria França, ainda se verificava nos fins do século XIX, como se pode ver em revistas da época), ou caímos no erro oposto — 0 de a tratarmos como se fosse uma ciência já constituída e, portanto, sem as cautelas que impõe uma disciplina nova, de suma importância, mas ainda em formação. Ou idéias muito vagas e anacrônicas, já completamente superadas, sobre a nossa ciência, ou uma confiança sem reservas nas suas conquistas científicas, na exatidão de seus métodos e no poder de seus instrumentos de pesquisa."
2) Em segundo lugar, Fernando de Azevedo aponta para a falta de um vocabulário preciso e de sistematizações consagradas: "uma das dificuldades maiores em que esbarram o ensino e as pesquisas no campo das ciências sociais e a aplicação prática dessas ciências no plano internacional reside, como já se observou, exatamente no fato de que não existe uma terminologia consagrada e válida universalmente e bastaria para explicar como a nossa ciência ainda está longe dessas grandes sistematizações que, resultando do seu grau de amadurecimento e de precisão e da generalização dos fatos de observação e experiência, concorrem para tornarem mais fácil e segura a transmissão.
10 AZEVEDO, F. de. O ensino e as pesquisas sociológicas no Brasil: problemas e orientações. In: AZEVEDO, F. de. A educação entre dois mundos. São Paulo, Melhoramentos, 1958. P- 195-208.
pelo ensino, dos conhecimentos científicos." 3) Em seguida, Fernando de Azevedo identifica dificuldades "ligadas à mentalidade
e às tradições histórico-culturais do pais": "A indiferença, a incompreensão e mesmo a hostilidade do meio ambiente, que se exprimem em relação à cultura em geral e, particularmente, às ciências, pelas intromissões políticas e pelo descaso das administrações, tanto nos velhos processos burocráticos como nas próprias esferas do ensino, em que não raramente as preocupações com a carreira e as vantagens pessoais tomam o lugar às ambições puramente científicas, são tais e tamanhas, tão inveteradas e ainda tão terrivelmente bloqueadoras do verdadeiro espírito científico que o antigo diretor do Instituto Biológico declarava com amargura que, para não sofrer e não desanimar com elas, seria preciso ter 'a insensibilidade de um faquir indiano'."
4) Outras dificuldades estão diretamente ligadas às características do pesquisador e do cientista: "É a esse mesmo espírito que se prendem, como a tantas outras condições adversas à formação de pesquisadores e de homens de ciência, a improvisação e o diletantismo, a simulação de conhecimentos e o gosto da publicidade, a corrida desenfreada para os cargos e o culto das exterioridades brilhantes que compõem tudo o que há de mais contrário à verdadeira cultura e carreira científicas, cuja única medida se tem de buscar no alto teor da produção intelectual."
5) Finalmente, um último grupo de dificuldades abrange o espírito meramente utilitário e o conseqüente desprezo às especulações teóricas: "Ou muito me engano, ou a essa mesma mentalidade, a esse mesmo espírito utilitário que nos torna tão sensíveis às seduções da fortuna ou da carreira fácil, liga-se também a tendência, às vezes tão funesta, a desdenhar as especulações teóricas e a não apreciar os conhecimentos científicos senão à vista e em termos de suas aplicações imediatas. É claro que o conhecimento tende e deve tender à ação; que a rapidez da difusão da ciência atual não se explica senão por considerações práticas, e que, se a cultivamos, é sempre com as esperanças dos novos benefícios que dela resultam ou possam resultar para a solução dos problemas concretos que, em cada sociedade, desafiam a argúcia e a experiência dos homens. 'Saber para prever; prever para prover', na síntese lapidar de Augusto Comte que imprimiu a um pensamento antigo a forma quase popular de um adagio (...) Mas, se tudo isso é exato, não parece menos verdadeiro que, para poder dedicar uma vida à ciência, não é necessário que o homem de ciência se pergunte qual será a utilidade prática de suas investigações."
Inventariadas as dificuldades, Fernando de Azevedo indica caminhos que, a seu ver, poderiam contribuir para a superação dessas dificuldades. Duas são as propostas básicas:
1) A primeira delas aponta para a necessidade de se dar preponderância, no ensino secundário, às ciências físicas e experimentais, e de as Faculdades tomarem a si a responsabilidade pelo desenvolvimento dos estudos sociológicos: "Confesso, porém, que, dada a complexidade de nossa ciência e o grau insuficiente de sistematização de conhecimentos sociológicos no estado atual e em razão dos perigos de deturpação a que ainda está exposto o seu ensino entre nós, seria preferível conceder lugar preponderante, no currículo do ensino secundário, às ciências físicas e experimentais (...) Enquanto esperarmos por essas reformas, de interesse capital, do ensino secundário,é às Faculdades que compete iniciar, para continuá-la e desenvolvê-la, essa obra de 'recuperação' ou, melhor, de instauração, pela base, do espírito e dos métodos científicos, em geral, e sociológicos, em particular, quer criando cursos liminares de um a dois anos de preparação às diversas especialidades ensinadas nesses institutos universitários, quer planejan-
do e organizando, no interior de seus currículos, cursos de introdução, de noções fundamentais das teorias sociológicas, e sujeitos a constantes revisões."
2) Em segundo lugar Fernando de Azevedo propõe a luta contra a uniformização, conseqüência da submissão das universidades ao Estado: "Não há, de fato, perigo maior, especialmente para o desenvolvimento das ciências sociais, do que a submissão, sem restrições, das Universidades ao Estado que, como um rolo compressor, tende a tudo uniformizar e nivelar por baixo, modelando segundo um único padrão os institutos universitários, conduzindo a essa terrível 'simplificação dos tipos humanos que compensa a complicação dos organismos coletivos' e — o que é pior ainda — montando guarda, em nome de qualquer doutrina oficial, à porta do ensino e no campo das pesquisas."
Concluindo, Fernando de Azevedo manifesta sua certeza no desenvolvimento e na renovação da Sociologia: "Afinal, ainda que nos possa tardar o apoio necessário que a nossa ciência espera dos governos, da sociedade e de suas instituições, ela viverá e se renovará, se encontrar em nós a seiva de que se alimenta e que é constantemente fabricada por operários fiéis a seus princípios e a esses ideais."
Na batalha do humanismo
"Se a parte mais volumosa de sua obra se refere especialmente às questões técnicas da sociologia, o certo é que ela já nos apresentou uma ampla e importante contribuição em que aparecem aliados, sem violência, o rigor da ciência e as virtudes intelectuais de uma formação de humanista. "
Sérgio Buarque de Holanda
A bem da verdade, é necessário que se diga que, embora o humanismo clássico tenha constituído o ponto de partida e a inspiração original da produção intelectual e, mesmo, da atuação prática de Fernando de Azevedo, seu pensamento evoluiu no sentido de um novo humanismo, integrador das letras e das ciências, como se verá no decorrer deste capítulo.
0 essencial do pensamento de Fernando de Azevedo sobre o humanismo encontra--se em três discursos, duas conferências e um ensaio, produzidos na segunda metade da década de 1940 e nos primeiros anos do decênio seguinte, reunidos, juntamente com outros textos, em seu livro Na Batalha do Humanismo:1
1) Técnica, Humanismo e Educação: discurso proferido no dia 25 de junho de 1947, como Secretário da Educação e Saúde do Estado de São Paulo, por ocasião da homenagem que lhe foi prestada pelos médicos, professores e autoridades escolares e sanitárias.
2) Pelo Humanismo que Ainda Está em Vós: discurso pronunciado a 24 de julho de 1947, por ocasião da homenagem prestada a Georges Duhamel, da Academia Francesa.
3) Na Batalha do Humanismo: conferência proferida a 27 de outubro de 1947, em Belo Horizonte, na Universidade de Minas Gerais, em sessão solene presidida pelo Dr. Milton Campos, governador do Estado.
4) Rui e o Humanismo: conferência pronunciada a 10 de novembro de 1949, em Salvador, a convite do governo da Bahia, nas festas comemorativas do centenário do nascimento de Rui Barbosa.
5) No Caminho de um Humanismo Novo: discurso proferido a 27 de dezembro de 1950, no Teatro Municipal de São Paulo, na qualidade de paraninfo, na sessão solene
1 AZEVEDO, F. de. Na batalha do humanismo e outras conferências. São Paulo, Melhoramentos, 1952. Os estudos sobre o humanismo encontram-se nas seguintes páginas:Te'cnica, humanismo e educação: p. 1-10; Pelo humanismo que ainda está em vós: p. 11-20; Na batalha do humanismo: p. 21-38; Rui e o humanismo: p. 111-32; No caminho de um humanismo novo:p. 133-46; As universidades e o problema do humanismo :p. 147-70.
de colação de grau dos bacharéis e licenciados pela Faculdade de Filosofía, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
6) As Universidades no Século XX e o Problema do Humanismo: ensaio escrito especialmente para a obra As Universidades no Século XX, comemorativa do 49 centenário da fundação da Universidade Mayor de San Marcos, de Lima (Peru), e organizada pela Faculdade de Educação dessa Universidade.
É claro que a presença do humanismo na obra de Fernando de Azevedo não se limita a esses textos. O humanismo foi uma presença constante, mais ou menos explícita, em todo o seu pensamento e em tôda a sua ação, perpassando cada momento de sua vida, desde a sua formação inicial. Dele pode-se, mesmo, afirmar o que ele disse em relação a Rui Barbosa: "O seu humanismo, por isso, não era apenas uma concepção da vida, uma atitude mental em face do homem e do mundo. Era uma idéia em marcha, um pensamento em ação. Difundiu-se por tôda a sua obra como a seiva que sobe nas árvores, do tronco para os ramos, lhes matiza as flores e lhes dá sabor aos frutos, ou como o sangue, vigorosamente impelido, nos organismos jovens, até a periferia pelo poderoso músculo central, e com batimentos de sistole e diàstole, semelhantes aos do coração, pela elasticidade das artérias."2
Mas o humanismo onipresente de Fernando de Azevedo é também um humanismo compreensivo, abrangente, conciliador de tendências e interpretações diversas, assim como o foi sua vida, em que conviveram pacificamente o liberalismo e o socialismo: "Republicano, ou antes liberal por necessidade e reflexão, contrário a todos os regimes de força e de tirania, socialista desde jovem e profundamente preocupado com os problemas sociais, homem de meu tempo, sempre me pareceu possível conciliar a justiça social com a liberdade, o socialismo com as idéias e instituições democráticas. É nessa conciliação que deverão concentrar-se todas as nossas energias."3
Em sua tentativa de buscar o denominador comum do humanismo, Fernando de Azevedo procura identificar sua continuidade histórica, em que se alternam momentos de maior e de menor expressão humanista: "Quando falamos em 'humanismo' (...), o que queremos significar é, afinal, um movimento de espírito, uma corrente de pensamento e de opinião, que se vem desenvolvendo através do tempo, tomando a cor e a tempera da cultura em que floresceu, e cujas manifestações diversas não se podem considerar senão como 'períodos de uma evolução' ou elos da mesma cadeia de pensamento. O humanismo, por exemplo, dos Morus e dos Erasmos, nos princípios do século XVI, longe de voltar as costas à tradição, não fez senão continuar os grandes pensadores, cristãos é árabes, da Idade Média, 'herdeiros, eles próprios, das mais antigas sabedorias'. Ele sempre foi ou pretendeu ser 'uma assimilação verdadeira dos valores humanos. sedimentados no curso da história', e que se foram enriquecendo com a cultura grega e romana; com o triunfo e a expansão do cristianismo na Idade Média; com o Renascimento que se volta para a Antigüidade; com a definição do 'honnête-homme', em que já não se trata do mundo antigo; com a Declaração dos Direitos do Homem, na Revolução Francesa, de 89; com o romantismo do século XIX, e, afinal, com o desenvolvimento das literaturas modernas e o espantoso progresso das ciências."4
Idem, ibidem, p. 120.
3 Idem, ibidem, p. 3.
4 Idem, ibidem, p. 25.
A própria palavra humanismo apresenta um fundo comum, subjacente a todas as suas acepções, possibilitando "uma definição mais compreensiva": "Se, porém, despojarmos a palavra dos adjetivos que costumam acompanhá-la (humanismo 'clássico', 'racionalista', 'científico', etc.) e indicam o 'fundo principal' da cultura que, em cada época, marcou com seu espirito e lhe serviu de instrumento de propagação, será fácil reconhecer a existência de um fundo comum às acepções da palavra, na aparência divergentes, e chegar a uma definição mais compreensiva do humanismo. Sob esse vocábulo o que se quer exprimir, em última análise, 'é um antropocentrismo refletido que, partindo do conhecimento do homem (do 'homem integral', está claro), tem por objeto a valorização do homem' e, partindo, em conseqüência, do particular, se eleva cada vez mais ao geral, para o homem e os problemas inumanos."5
Somente a partir da continuidade histórica, e da busca e valorização ao que e essencial em sua definição, será possível a subsistência do humanismo, enquanto o mesmo espírito que assume a cultura de cada época: "Não é tomando, porém, o humanismo a máscara do passado, mas recolhendo das civilizações antigas o seu espírito ou o que tem de essencial e reanimando-o ao calor da vida e da cultura de nosso tempo, que será possível desenvolver a corrente que, com intensidade muito variável, atravessa todas as civilizações: se o humanismo quer subsistir, escreve justamente René Grousset, deve desde então renovar-se, ultrapassar-se sem cessar, integrando a seus dados tradicionais os dados, em perpétua mudança, da ciência e da cultura!"6
E os dados do mundo moderno e contemporâneo, que o humanismo deve integrar, são tanto os das letras modernas quanto os das ciências, ambos fazendo parte da essência das humanidades: "A verdade está, pois, em que nem os estudos literários, e muito menos os antigos, através de obras tão distantes da vida atual, poderiam constituir todo o essencial das humanidades, nem essas poderiam circunscrever-se ao campo das ciências, por maiores que sejam ou venham a ser os seus progressos, em todos os domínios da investigação."7
Mais do que essa coexistência das letras e das ciências como constituintes da essência do humanismo, Fernando de Azevedo propõe, em face das características do mundo moderno, até mesmo a preponderância das ciências: "Mas, se o ideal humanístico, para a formação do espírito, consiste na síntese harmoniosa dos elementos diversos que entram na composição de uma cultura, como se poderá negar às ciências a parte que lhes cabe e, mais do que isto, a preponderância no humanismo moderno, não só em face de seus progressos constantes como sobretudo pela crescente penetração do espírito científico em todos os domínios de estudos?"E
Ao considerar o campo específico da educação, em face do humanismo, Fernando de Azevedo defende a idéia de que o humanismo não está na matéria que se ensina - letras clássicas ou modernas, ciências - mas no espírito que anima esse ensino: "(...) é preciso repor a questão do humanismo nos seus termos exatos. Os homens de tal modo se habituaram a ligar a idéia de humanismo à dos estudos clássicos, que muitos ainda (mas em número cada vez menor) se recusam a conceber o humanismo
Idem, ibidem, p. 26.
Idem, ibidem, p. 158.
7 Idem, ibidem, p. 29.
8Idem, ibidem, p. 30.
sob novas formas e outros meios de atingi-lo. Ora, o humanismo clássico é uma etapa, já vencida, na história do humanismo,o qual não está na matéria que ensinamos (seja ela qual for, letras ou ciências), mas no 'espírito' que nos anima o ensino de qualquer disciplina e na maneira de ensiná-la. Se temos da vida uma concepção humana e universal e, portanto, larga e generosa; se estamos animados de sentimentos profundamente humanos, de cooperação e solidariedade universal; (...) se, falando aos homens de uma nação - de nossa pátria -, nos elevarmos a alturas de que a nossa mensagem possa ser compreendida por todos, acima das fronteiras e em todos os tempos; esse espírito de compreensão humana e essa largueza de visão geral iluminarão qualquer matéria que ensinarmos e da qual poderemos fazer um instrumento ou veículo do humanismo que é 'um meio de dar à vida humana um conteúdo de eternidade' e é indispensável à vida do espírito internacional."9
Entretanto, afirmando embora que o humanismo não está na matéria ensinada, Fernando de Azevedo evoluiu quanto à sua concepção a respeito das matérias que deveriam compor o currículo do curso secundário. Assim, em 1921, ainda professor de latim, defendia o ensino dessa matéria: "A verdade não está nem com os panegiristas, nem com os adversários dos estudos clássicos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Nem a crítica apaixonada, nem o louvor sem medida. Nem o latim a todo o transe, nem fora com o latim."1 ° Na mesma conferência, extremamente confiante na subsistência do latim como matéria curricular, proclamava: "Estejamos tranqüilos: o latim nos enterrará a todos."11
Já não pensava da mesma forma em 1944. Ao fazer uma análise das reformas do ensino de 1931 e 1941, Fernando de Azevedo dá a entender, salvo engano, que o ensino do latim e do grego seria dispensável: "A melhor reforma - a mais adiantada de quantas se realizaram no país, nesse domínio — foi a de Francisco Campos (1931), que, infelizmente, não chegou a ser executada em alguns de seus pontos fundamentais. Nessa reforma se pôs o acento nos estudos científicos e literários modernos, enquanto a do Ministro Gustavo Capanema (1942), se porventura procurou associar, num pé de igualdade, a cultura literária e a cultura científica, marcou, na verdade, o retorno às humanidades clássicas (com latim, em sete anos, e o grego, em três). Sob esse aspecto, prefiro a primeira que, dando a preponderância ao ensino das ciências, prepara melhor ao movimento moderno de conquista do espírito científico."12
Fernando de Azevedo vai mais longe, em defesa de um currículo moderno, acusando o ginásio clássico de classista: "(...) o ginásio de tipo clássico sempre foi um ensino montado para uma classe - um 'ensino de classe' — e o humanismo, baseado nas humanidades clássicas, nunca foi democrático. Não é por uma simples coincidência que sempre se concentraram, nas zonas conservadoras e reacionárias, os redutos de defesa
Entrevista ao seminário político Diretrizes. Rio de Janeiro. 30-6-1944. In: AZEVEDO, F. de. Seguindo meu caminho. Conferências sobre educação e cultura. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1946. p. 165-6.
Conferência pronunciada a 3 de dezembro de 1921, na solenidade de formatura dos professorandos da Escola Normal de São Paulo. In: AZEVEDO, F. de. A educação e seus problemas. 4. ed. São Paulo, Melhoramentos. 1958. p. 47. Tomo II.
11 Idem, ibidem, p. 59.
12 AZEVEDO, F. de. Seguindo meu caminho. Op. cit., p. 163.
desse ensino como uma 'iniciação geral' para todos que passam pelos ginásios. Ora, a tendência moderna é tornar a educação antes útil do que ornamental, é organizá-la para formar indivíduos antes em vista de uma 'utilidade social' do que de um consumo intelectual, de ordem pessoal e sem proveito para o conjunto da civilização."13
Para que se tenha uma idéia ainda mais clara da evolução do pensamento de Fernando de Azevedo em relação aos estudos clássicos e, em particular, no que diz respeito ao latim, voltemos uma vez mais á sua conferência de 1921, na passagem em que vem à tona a questão da escola útil, citada no parágrafo anterior: "Fosse, porém, e demos, por um momento, que seja esta a única utilidade do latim — a de sua capacidade educativa — e ainda assim, entrando como elemento de valor ponderável na formação intelectual, não seria justo dar de mãos aos estudos clássicos sob o pretexto de que a escola tem de visar exclusivamente a preparação para a vida. Pois, de fato, que preparação melhor para a vida do que formar a mentalidade e promover, antes de tudo, pelos meios mais eficazes, todo o aperfeiçoamento de que é suscetível o espírito humano? (...) Pois, o latim, por ser uma ginástica mental, que, como as matemáticas, e em geral, mais ou menos, tôda a disciplina, desenvolve e apura o espírito, pode equiparar-se, não por certo quanto à importância mas do ponto de vista dos objetivos, ao exercício, que adestra e avigora o corpo. Se não há meter a riso a ginástica, porque, na maioria dos casos, não tem utilidade prática imediata, porque se há de rejeitar, sob este fundamento, o latim - baldão e mofa dos adeptos do pragmatismo filosófico, que quer julgar as coisas do espírito apenas por seu valor utilitário?"14
Pouco mais de vinte anos depois, o próprio Fernando de Azevedo responde a essa crítica que fez ao pragmatismo, caracterizando-o como um fenômeno da civilização moderna: "Afirma-se que essa tendência (a de acentuar o aspecto utilitário da educação) é característica do pragmatismo. Mas esse pragmatismo que tem levantado tantas oposições é um fenômeno tipicamente americano ou antes um fenômeno geral, de uma civilização, de que o movimento dos Estados Unidos não é mais do que um caso particular?"15
Parece certo que, para Fernando de Azevedo, o humanismo deve assumir em cada época, conservando embora a essência permanente do seu espírito, um conteúdo específico correspondente à cultura dessa época. E tal conteúdo é que deve compor o currículo escolar, particularmente o do ensino secundário, verdadeiro foco irradiador do humanismo, através da educação integral: "O sentido do humanismo, se queremos realmente transmiti-lo, tem de apanhar o homem desde a infância até à sua plena maturidade, por uma educação integral, através de todas as fases de seu crescimento e de sua formação. Mas, certamente no ensino secundário que reside à base de universidades, é que assenta o eixo em torno do qual gira a grande questão do humanismo e da cultura geral. Se nossa política de educação visa formar o homem em si, o homem completo, o homem como tal, considerado sob todos os aspectos (físico, intelectual, espiritual, moral e estético), antes de nos dispormos a prepará-lo para uma tarefa particular, todo o ensino secundário, como aliás o primário que lhe fica subjacente, deve ser planejado, organizado e aparelhado para fazer triunfar a aspiração humanística para a educação
Idem, ibidem, p. 164.
14 AZEVEDO, F. de. A educação e seus problemas. Op. cit., p. 51-2.
15 AZEVEDO, F. de. Seguindo meu caminho. Op. cit., p. 165.
integral, em que a formação moral seja um fator decisivo da educação. Este, o ponto de partida e o fundamento de tôda a educação primária e secundária, porque é a própria base do humanismo."16
AZEVEDO, F. de. A educação e seus problemas. Op. cit., p. 164.
O Brasil corre para o oeste
"Esta obra (Canaviais e Engenhos), na qual è tentada pela primeira vez uma análise sistemática dos aspectos políticos da 'civilização do açúcar', representa um enriquecimento da orientação que procura apreender o processo social como uma totalidade. "
Florestan Fernandes
Industrialização,êxodo rural, urbanização, conquista do oeste, novas fronteiras agrícolas, em meio a outros ligados à ideologia desenvolvimentista, são temas que agitaram intensamente os fatos e as discussões e elaborações teóricas dos intelectuais brasileiros, de modo especial nas últimas três ou quatro décadas. A confirmar o fenômeno, aí estão, entre numerosos outros acontecimentos, algumas diretrizes governamentais básicas, que provocaram incontáveis polêmicas, estudos teóricos e volumes impressos: o nacionalismo no governo Vargas ("O petróleo é nosso") ; o desenvolvimentismo no governo Kubitschek ("Cinqüenta anos em cinco"); as reformas de base no governo Goulart; e o crescimento quantitativo da economia durante o regime militar ("O milagre").
Fernando de Azevedo, como um homem altamente sensibilizado em relação aos problemas e à cultura do seu tempo, não se furtou à análise desses temas. E é aí que descobrimos uma nova faceta, a acrescentar-se às do humanista, crítico literário, educador e sociólogo. E é Antônio Cândido que nos abre o caminho até ela: "(...) houve sempre nele um homem de visão política, no sentido geral do termo. Pensemos, no campo sociológico, em seu livro Canaviais e Engenhos na Vida Política do Brasil, de 1948, onde mostra de que maneira os fatos políticos funcionam como uma espécie de elemento conector dos vários aspectos da vida social ; como sistema de normas que permite o funcionamento das outras normas, travejando a organização da sociedade. Isto serve para compreender a sua constante preocupação com o lado político do pensamento e da ação educacional, embora nunca tenha aderido a nenhum partido. Mas declarava-se 'homem de esquerda', e na verdade era um socialista democrático independente, ainda imbuído dos ideais da Ilustração e tenazmente confiante na força transformadora do ensino, desde que associado à mudança indispensável da sociedade".1
Além de Canaviais e Engenhos na Vida Política do Brasil (1948), outras obras de Fernando de Azevedo seguem o mesmo caminho, isto é, uma análise a um tempo mi-
1 ANTÔNIO CÂNDIDO. Fernando de Azevedo. Depoimento prestado ao I Fórum de Educação promovido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, em agosto de 1983. p. 3. mimeo.
croscópica e macroscópica da realidade, incluindo elementos de sociologia, de economia e de política. São elas Um Trem Corre para o Oeste (1950) e A Cidade e o Campo na Civilização Industrial e Outros Estudos (1962).
Canaviais e Engenhos na Vida Política do Brasil, obra premiada e publicada em primeira edição pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, é definida pelo autor, no subtítulo, como sendo um "ensaio sociológico sobre o elemento político na civilização do açúcar". A perspectiva histórica constitui elemento comum à análise dos aspectos sociais, políticos e econômicos da civilização do açúcar.
Fernando de Azevedo começa fornecendo, na introdução, uma visão panorâmica da influência da civilização do açúcar sobre a vida e a organização política do Brasil, compreendendo o estudo da paisagem, da população, da economia rural, dos canaviais e engenhos e dos modelos e da evolução da aristocracia rural do Nordeste.
O conteúdo básico dos oito capítulos que compõem a obra é o seguinte: I — A Paisagem e o Homem: o meio físico;o homem; as relações entre a população
e o açúcar; desequilíbrios demográficos entre as populações rurais e urbanas. II - A Vida Econômica: a monocultura latifundiária; os engenhos coloniais; os es
cravos; economia colonial e economia pré-capitalista; usinas e fábricas;efeitos do grande capitalismo: as grandes indústrias.
III — A "Casa-Grande" e a Vida Pública: a organização da "casa-grande"; o ambiente patriarcal da fazenda escravocrata; o ensino religioso e literário; do patriarcalismo rural ao paternalismo autoritário; o provincialismo; as tendências oligárquicas da democracia.
IV — Tipologia Rural: o processo de descentralização e a organização a que deu origem; o individualismo ; o poder político, ligado à patrimonialidade; a evolução dos tipos sociais e políticos; o personalismo; partido de patronagem e partido ideológico;o chefe e o líder.
V - As Classes Sociais: burguesia urbana e aristocracia rural;a formação e o funcionamento das classes sociais; a estratificação social; as tendências políticas das duas classes.
VI — Elites Antigas e Novas Elites: as elites antigas: sua conservação e sua decadência; imitação européia nas classes superiores; a aparição das elites novas e seu papel social; a passagem da vida econômica, da fase agrícola à fase industrial.
VII - O Estado e a Indústria do Açúcar: a política fiscal da metrópole; a política protecionista do Estado; a política de intervenção do Estado.
VIII - Dos Engenhos às Usinas: os engenhos primitivos; revolução industrial; a economia capitalista e as grandes usinas; liberalismo político e liberalismo econômico; da economia livre para a economia dirigida; as tendências socialistas; política agrária.
uma das questões fundamentais discutidas pelo autor, com a qual conclui seu livro, é a da política econômica agrária, colocando-se ante duas alternativas: de um lado, a solução socialista ; de outro, o sistema capitalista.
Fernando de Azevedo entende que a partir de 1945 estava ocorrendo, no país, um avanço do socialismo, por causas diversas: "É certo que o socialismo, depois de 1945, se estendeu sobre o país e por causas as mais diversas: a vitória das Nações Unidas, de que participou a Rússia; o triunfo do espírito e do regime democrático e o restabelecimento das liberdades públicas, apagadas ou amordaçadas, durante mais de 15 anos, com pequeno interregno de três anos; a influência de teorias grosseiramente interpretadas, como também os progressos da grande propriedade (fábricas, fazendas, usinas), a extensão do luxo, de uma pequena minoria, de uma parte, e do pauperismo, de outra par-
te, com todo o seu cortejo sinistro de miséria física e social. Diante desse panorama, e numa época em que parecem estalar velhas instituições, assumiam importância capital os planos de reforma agrária, nos quais, se os partidos de extrema esquerda incluíam a socialização dos meios de produção, os partidos socialistas e mesmo os liberais democráticos já reclamavam, sob a pressão de problemas concretos, senão a divisão da grande propriedade, ao menos as medidas indispensáveis ao desenvolvimento da pequena propriedade, como um processo de democratização econômica e social."2
Na verdade, Fernando de Azevedo, já na época em que escreveu seu trabalho, desmentiu com a apresentação de fatos concretos a própria afirmação de que o socialismo "se estendeu sobre o país". Isto é, tanto em 1948 quanto hoje, a tendência dominante não é nem a divisão da grande propriedade, nem o desenvolvimento da pequena propriedade. Por força da dominação capitalista o que se verificou e continua ocorrendo é o desenvolvimento da grande propriedade.
A concentração do capital levou ao desenvolvimento tecnológico de umas poucas usinas paralelamente à manutenção de numerosos pequenos engenhos em condições extremamente precárias. Fernando de Azevedo atribui o fato à "morosidade de nossa evolução industrial", não fazendo referência à lógica do próprio desenvolvimento capitalista: "(...) se compararmos o número enorme de engenhos e de engenhocas, ainda existentes no país, de acordo com os dados relativos a 1935 (ou seja, 12.765 engenhos bangüês; 16.032 engenhos de rapadura e 11.224 fábricas de aguardente), não nos será difícil verificar a desproporção devida certamente à morosidade de nossa evolução industrial, entre as usinas (291) e, particularmente, entre as grandes usinas (24), de um lado, e, de outro, os engenhos que orçam ainda por mais de 40 mil e se espalham como cogumelos por todo o país, permitindo-nos conhecer, ao percorrermos lugares geográficos diferentes, diversas 'idades' de nossa história".3
O desenvolvimento só favoreceu as grandes propriedades e as grandes usinas: "Quando examinamos algumas das principais usinas do Nordeste ou do Recôncavo, de Campos ou de São Paulo, com suas instalações modernas, com seus lagos artificiais ou suas represas (só a Usina Catende, em Pernambuco, conta com 14 tanques com bombas de elevação e 9 açudes), com suas ferrovias e estradas de rodagem, com seus imensos canaviais e seus jardins para experiência de variedades, suas casas de hóspedes, suas vilas operárias e seus acampamentos urbanos, que a fábrica reúne e alimenta, não podemos deixar de admirar os progressos que se realizam na indústria açucareira e avultam aos olhos de qualquer observador que tenha visitado algumas dessas usinas, depois de percorrer as zonas dos velhos bangüês, movidos a água ou a tração animal, e mesmo a vapor, mas com as técnicas ainda rudimentares de produção."4
A conclusão de Fernando de Azevedo enquadra a luta entre a usina e o engenho nos estreitos limites da luta da indústria contra a lavoura, da técnica contra a natureza, da cidade contra o campo, captando a quebra da relação idílica do homem com a natureza: "com a abolição do regime servil e o advento da era das usinas, o senhor de engenho se descaracterizou, diluindo-se no bangüezeiro, decaído já de sua condição de se-
AZEVEDO, F. de. Canaviais e engenhos na vida política do Brasil. 2. ed. São Paulo, Melhoramentos. 1958. p. 179-80.
3 Idem, ibidem, p. 181.
Idem, ibidem.
nhor, mas ainda estreitamente ligado ao campo, e dando lugar a um outro tipo social, - o usineiro — que representa o ideal burguês, uma vitória da técnica contra a vida, da indústria contra a lavoura, e uma ruptura das relações do homem contra a natureza, diante da qual poderá extasiar-se, como um homem culto, pela sua sensibilidade, mas de que nao participará como o homem do campo, integrado na paisagem rural, pelo seu íntimo contato e pela sua quase convivência com o meio, as plantas e os animais. como tipo ou líder político, o usineiro vale apenas pelas suas qualidades pessoais, realçadas pelo seu poderio econômico. Já não é mais um representante da lavoura e dos canaviais, mas da burguesia urbana, sem a nostalgia do campo, que acometia, nas suas fugas para a cidade, os antigos senhores de engenho. A realidade, apanhada na sua fonte mais viva — a natureza como ela é e se apresenta -, diminui de fato, em proporção geométrica, em função mesma do aperfeiçoamento dos processos técnicos."5
Em Um Trem Corre para o Oeste - um estudo sobre a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, ligando Bauru, em São Paulo, a Corumbá e Ponta Porã, no Mato Grosso - Fernando de Azevedo nao apenas traça o papel dessa estrada "no sistema de Viação nacional", como menciona no subtítulo da obra, mas vai além, captando as simplificações sociais, econômicas e políticas da marcha que o Brasil como um todo realizou e vem realizando para o oeste.
Mais do que simples repercussões na realidade paulista, a construção da Noroeste traz à mostra uma política de vias férreas que deixa a desejar, entre outras razões, pela falta de um plano ferroviário de conjunto. Plano este que não teria por função apenas a integração nacional mas, também, a integração continental. De qualquer forma, a Noroeste é um exemplo do que poderia ocorrer neste país se ele fosse cortado por um sistema integrado de vias férreas.
Na introdução Fernando de Azevedo desenvolve uma análise do papel econômico e social das vias e dos veículos de comunicação e de transporte, referindo-se particularmente à sua evolução histórica.
A partir do primeiro capítulo sua atenção dirige-se às vias férreas e. em particular, à Noroeste do Brasil, abrangendo todos os aspectos a ela relacionados, como se pode ver pela síntese que segue:
I — Um Século de Vias Férreas: as origens e o desenvolvimento das estradas de ferro no Brasil ; a Argentina e o Brasil; a lentidão de nossos progressos.
II — Trilhos Bandeirantes: a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil; suas origens e seu desenvolvimento histórico; as cidades novas e o avanço dos trilhos;a política de penetração e expansão econômica; a conquista de novas terras à civilização.
III - A Função Econômica da Noroeste, Linha Estratégica: a Estrada de Ferro Noroeste e o desenvolvimento econômico; o movimento da população; análise do papel econômico, demográfico, estratégico e político da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil; pela unidade política do Brasil.
IV - Realizações e Perspectivas: análise dos movimentos da Estrada de Ferro Noroeste; as causas dos déficits anuais;o Ministério da Viação e a política de transportes; energia hidrelétrica e industrialização; a circulação das riquezas e os diversos tipos de transporte;o café e o gado.
V - O papel do Estado na Exploração das Ferrovias: a questão sobre o melhor sistema de exploração de estradas de ferro; a livre concorrência e a exploração pelo Estado; o regime de concessões; a burocratização dos serviços; administração e política.
s Idem, ibidem, p. 182-3.
VI - A Noroeste e sua Organização: análise do mecanismo administrativo e de seu funcionamento; na batalha contra o empirismo e a burocracia; o processo tecnológico; o problema das relações humanas; os serviços de assistência aos operários.
VII - Marcha para o Oeste. Do Atlântico ao Pacífico: a construção, no século XIX, das transcontinentais; as lições do passado; o sonho do caminho de ferro transcontinental no Brasil ; cinqüenta anos de projetos; a Noroeste e a Brasil-Bolívia.
A difusão da "civilização industrial" pelo Brasil afora, através de uma vasta rede de vias férreas, parece constituir o "sonho" fundamental de Fernando de Azevedo, expresso em cada página do seu livro. A este respeito sao significativas as últimas linhas de sua obra: "Sobre as pegadas dos bandeirantes que marcaram os rumos dessas estradas, os pioneiros da Viação e do industrialismo - esses novos roteadores do deserto, penetrando o nosso Grande Oeste, para alargarem as fronteiras econômicas do país, modelarão, ao meio-dia e ao ocidente, nessas regiões longíquas, a forte estrutura de uma civilização industrial. Certamente, nessa marcha em que apenas se pre figuram, numa forma esquemática e rígida, as diretrizes principais, a civilização contornará, sempre que for possível, os pântanos que, por tôda parte, constituem, com os desertos e as cordilheiras, obstáculos naturais ao seu desenvolvimento, procurando resguardar-se contra a massa montante dos aguaçais, nas colinas, elevações e terraços. Mas, um dia, dominadas as pequenas altitudes de 200 a 500 metros e superado o antagonismo formidável do deserto e das distâncias, ela se aventurará, impelida pelas ondas humanas, à conquista dos próprios pantanais, por meio de obras de dessecamento, de canais e de represas, transformando-os em terras prestadias e fazendo correr sobre essas imensida-des os trilhos de suas estradas, com audacias ainda maiores do que as dos traçados das vias férreas e rodovias que transmontam os Andes, como descreve Euclides da Cunha, tornejando escarpas a pique, enfiando em túneis afogados nas nuvens e correndo em viadutos alcandorados nos abismos...'."6
"A cidade e o campo na civilização industrial: antagonismo, oscilações e contradições" é o estudo que dá título ao livro A Cidade c o Campo na Civilização Industrial e Outros Estudos.7 Do próprio título depreende-se a tese central desse estudo: a civilização industrial constitui a realidade de hoje e do futuro e, portanto, representa a própria solução para os problemas enfrentados no campo.
Esses problemas são numerosos: a extensão territorial do país; a variedade de climas, de paisagens geográficas e humanas; a deficiência de estradas e de meios de trans-
6 AZEVEDO, F. de. Um trem corre para o oeste. 2. ed. São Paulo, Melhoramentos, s.d. p. 217.
7 Os outros estudos incluídos no livro são os seguintes: Introdução ao estudo das ciências no Brasil (Introdução escrita para a obra As ciências no Brasil, organizada e publicada sob a direção do autor); Introdução às ciências sociais (Trabalho que abre a seção de Ciências Sociais da Enciclopédia Delta - Larousse); Ciências Sociais e Ciências Naturais (Conferência pronunciada em São Paulo, na sessão de encerramento de uma das reuniões regionais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência); A Antropologia e a Sociologia no Brasil (também escrito para a obra As ciências no Brasil); As atitudes humanas em face das mudanças sociais; A educação como agente de mudança social; Mudanças sociais e variações semânticas; relação entre esses dois tipos de mudanças; A idéia de progresso. É possível uma noção científica de progresso? A evolução das elites políticas no Brasil contemporâneo e, particularmente, em São Paulo; Da palestra ao estádio. Reflexões sociológicas sobre a educação física (Aula inaugural proferida a 7 de março de 1961, na abertura dos cursos da Escola de Educação Física do Estado de São Paulo); Verdades amargas; Face a face com a realidade brasileira (Discurso proferido a 28 de novembro de 1961. em banquete oferecido por amigos e colegas no Automóvel Clube de São Paulo).
porte; a pequena produtividade; as precárias condições de vida e de trabalho do trabalhador rural; a desigual distribuição da terra; os métodos empíricos, fundados na rotina e em práticas primitivas, sao apenas os principais entre muitos outros.
Por um lado, esses problemas vêm sendo superados na medida em que muitas conquistas tecnológicas urbanas vão atingindo a população rural: "Certamente o automóvel e outros meios de transporte; as boas estradas; o cine, o rádio e a televisão, na medida em que alcançam a população rural e por ela se difundem esses instrumentos 'de penetração dinâmica ainda não compreendida em toda a sua potencialidade'; a participação que tende a crescer em algumas regiões, dos trabalhadores do campo e suas famílias na vida econômica e social de algum centro urbano, grande ou pequeno, e outros fatores têm contribuído, em graus variáveis, para produzir mudanças nos sistemas de relação e nos modos de vida dessas comunidades, eliminando algumas e reduzindo muitas das diferenças que separam a população rural da população urbana."8
Por outro lado, as oposições entre a cidade e o campo, ligadas a uma série de diferenças entre as populações do campo e da cidade - sociais, econômicas, culturais, técnicas, etc. — estão longe de serem superadas, e o progresso industrial é apenas um dos fatores, embora poderoso, do progresso rural: "É muito duvidoso, porém, que o progresso industrial, atingindo certo grau de intensidade e certo nível, venha a provocar por si mesmo, automaticamente, o progresso rural. Concorrerá certamente para isso, como uma força poderosa, mas não dispensará um conjunto sistemático de severas medidas diretamente ordenadas à integração da economia agrícola na economia industrial (...)."9
A primeira dessas medidas parece ser a reforma agrária, "de que parece sentirem todos a necessidade, mas sobre cujas bases e diretrizes se verificam mais divergências do que concordâncias de pensamento". Na reforma agrária que interessa à agricultura, alguns problemas devem merecer um destaque privilegiado, sob pena de a questão agrária permanecer sem solução: "Assim, pois, se se trata de reformas agrárias que cuidem antes da salvação da agricultura do que de grupos e classes interessadas na perpetuação de uma estrutura anacrônica, quase feudal, o regime ou sistema de vinculações do homem com a terra, a distribuição ou mais fácil acesso à terra, de acordo com as necessidades econômicas e sociais de cada região, e o amparo ao homem que a ocupa, são problemas que se transferem ao primeiro plano das cogitações em projetos ou reformas dessa natureza. Mas, não será somente com a reforma de estrutura ou de sistemas de distribuição da propriedade e controle da terra que se resolverá questão tão difícil e complexa como a questão agrária."10
Além da distribuição da terra, outro fator importante para a solução dos problemas agrários é a "industrialização e motomecanização das atividades agrícolas": "O desenvolvimento e a intensificação da produção agrícola estão, de fato, ligados a uma larga política de equipamento rural, de mecanização e tecnização, que se proponha tanto a modernizar e a aumentar o parque de tratores e máquinas agrícolas quanto a promover a introdução de novos métodos ou técnicas de exploração da terra."11
AZEVEDO, F. de. A cidade e o campo na civilização industrial e outros estados. São Paulo, Me
lhoramentos. 1962. o. 219. 9 Idem. ibidem, p. 220. 10 Idem. ibidem, p. 225.
Idem. ibidem, p. 226.
Em linhas gerais, a solução para Fernando de Azevedo está no que ele chama de "urbanização dos campos": "E, como a vida rural se caracteriza pela seu fraco estímulo para todo o progresso, ao contrário da vida urbana que oferece mais oportunidades para melhorar as condições de vida, a evolução da vida rural para as formas urbanas e da economia agropecuária para a industrial constitui a primeira e principal condição para que a escola e o ensino, a educação e a cultura, se desenvolvam nas comunidades rurais sob o duplo impacto da cidade e da indústria que são, ainda nas palavras de Louis Reissig, 'uma conquista laboriosa do homem' e, marcando a passagem de um processo vegetativo para um processo técnico, abrem caminho a novas formas de vida e de civilização."12
12 Idem, ibidem, p. 228-9.
Um sonho latino-americano
"É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos'.'
Eduardo Gaicano
O sonho de união latino-americana também foi sonhado em conjunto por educado-dos nestas paragens. Certamente, é um dos sonhos que continuam mais distantes da realidade. E as palavras de Eduardo Galeano, sem dúvida, contribuem para explicar as razões da distância entre o sonho e a realidade.
O sonho de união latino-americana também foi sonhado em conjunto por educadores de muitos países da região. Para melhor compreendermos como isso foi possível é preciso que tenhamos algumas idéias sobre o desenvolvimento e as realizações do INEP.
O INEP nasceu como Instituto Nacional de Pedagogia, para suprir uma lacuna que educadores vinham apontando há várias décadas e que os debates e discussões dos anos 20 e 30 deste século tornaram mais evidente. Na exposição de motivos da lei que lhe deu origem - Lei n° 378, de 13 de janeiro de 1937 - Gustavo Capanema, então Ministro da Educação, explicitava a finalidade do INEP: "Não possui, ainda, o nosso país um aparelho central destinado a inquéritos, estudos, pesquisas e demonstrações, sobre os problemas do ensino, nos seus diferentes aspectos. É evidente a falta de um órgão dessa natureza, destinado a realizar trabalhos originais nos vários setores do problema educacional, e, ao mesmo tempo, a recolher, sistematizar e divulgar os trabalhos realizados pelas instituições pedagógicas, públicas e particulares. Além disso, incumbir-se-á de promover o mais intenso intercâmbio no terreno das investigações relativas à educação, com as demais nações em que este problema esteja sendo objeto de particular cuidado de parte dos poderes públicos ou das entidades privadas."
O intercâmbio com outros países também apareceria como uma das funções do INEP no Decreto-lei nº 580, de 30 de julho de 1938, que alterou sua denominação para Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos e tornou mais explícitas suas finalidades: "organizar a documentação relativa à história e ao estado atual das doutrinas e técnicas pedagógicas; manter intercâmbio com instituições do país e do estrangeiro; promover inquéritos e pesquisas; prestar assistência técnica aos serviços estaduais, municipais e par-
ticulares de educação ministrando-lhes, mediante consulta ou independentemente dela, esclarecimentos e soluções sobre problemas pedagógicos; divulgar os seus trabalhos".
Exatamente para cumprir a última dessas finalidades, o INEP lançou, em 1944, a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Em 1955, no âmbito do INEP, então sob a direção de Anísio Teixeira, criaram-se, primeiro, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e, em seguida, para dar conta das diferentes realidades brasileiras, para as quais os educadores deveriam ser formados, os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais. Em 1972, mantendo a sigla, o INEP passou a denominar-se Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.
A composição da primeira diretoria do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Sao Paulo explicita claramente a preocupação pelo conhecimento das culturas regionais brasileiras, através da aproximação entre educadores e cientistas sociais: Diretor: Fernando de Azevedo; Conselho de Administração: Antônio Cândido de Mello e Souza, Egon Schaden, Florestan Fernandes, José Querino Ribeiro, Laerte Ramos de Carvalho e Milton da Silva Rodrigues.
Paralelamente às pesquisas de âmbito regional, o Centro Regional de São Paulo incluiu entre suas realizações o intercâmbio com outros países da América Latina, que era, como vimos, uma das finalidades do INEP. O Primeiro Curso de Especialistas em Educação para a América Latina, ocorrido durante o ano de 1958, foi planejado e realizado pelo Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, por iniciativa da UNESCO e sob o patrocínio do Ministério da Educação e do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Participaram 16 professores e administradores escolares de diversos Estados do Brasil e 11 de outros países sul-americanos.
Por ocasião do encerramento do curso, a 13 de dezembro de 1958, Fernando de Azevedo, então diretor do Centro Regional de São Paulo, pronunciou um discurso sobre a América Espanhola — A Face Esquecida — em que procurou oferecer a sua interpretação ao sonho de união latino-americana.
Fernando de Azevedo começa seu discurso identificando as contribuições que o curso que estava encerrando, certamente, trouxera a seus participantes: "Certamente terá ele contribuído para vos alargar o horizonte mental, rasgar no espírito aberturas em novas direções e despertar o gosto da análise e da confrontação de pontos de vista diferentes. Seja qual for a opinião que se tenha sobre os resultados mais ou menos eficazes de cursos intensivos, mas de pouca duração, é evidente que o trato e a conversação de educadores de procedências tão diversas, reunidos para estudar, pôr problemas, medir dificuldades, pesquisar, refletir, experimentar, devem concorrer poderosamente para a formação, por tôda a parte, de focos de renovação educacional. È este, o primeiro curso, de âmbito continental, que se inaugurou sob o céu do hemisfério iluminado pela constelação dos países sul-americanos, abrindo oportunidade à nossa instituição de estudos e pesquisas para se transformar num centro de convergência de educadores de todos esses países e de irradiação de novas idéias e técnicas de educação."1
O fato de estarem entre os participantes do curso representantes de outros nove países latino-americanos leva Fernando de Azevedo, como dever de hospitalidade, a dirigir seu pensamento à América Espanhola, elaborando a primeira imagem da união latino-americana: "Na panoplia em que se dispõem em leque, unidas à nossa,
1 AZEVEDO. F. de. A face esquecida. Pesquisa e Planejamento. Boletim do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, São Paulo, 3(3): 59-60, jun. 1959.
as bandeiras dos países, aqui representados por educadores escolhidos pelos seus respectivos governos, vejo um emblema da união latino-americana. Se, com as varetas presas à base para significarem as raízes comuns de suas civilizações, se abrem elas, na parte superior, separadas e distintas, como expressão da soberania de cada um dos países - fechado, porém, o leque, ajustam-se e se sobrepõem umas às outras para darem lugar a um corpo único, em que se simboliza a unidade na diversidade —, facilmente perceptível, através de particularidades de tôda ordem, pela convergência de interesses complementares e pela identidade fundamental de civilização."2
Se as origens dessa "tendência à união acima de fronteiras" podem ser encontradas na própria colonização e na formação histórica e social dos países latino-americanos, resultantes do encontro de duas culturas diferentes — a indígena e a ibérica -, com o domínio da segunda sobre a primeira, seu fato mais expressivo é a campanha da libertação das colônias, no início do século XIX, cujo principal líder foi Bolívar. A revolução da independência foi conduzida sob o signo da cooperação e da aliança, em que a maioria dos países se libertaram com a ajuda de combatentes dos países vizinhos. "Lima - escreve o venezuelano Blanco-Fombona — foi a última capital que se emancipou. E não se libertou (também ela) senão com a ajuda de argentinos, chilenos, equatorianos, bolivianos, granadinos e venezuelanos, que formaram o exército unido da Sul--América, sob o comando de Bolívar e do marechal Sucre."3
Bolívar foi o pioneiro do americanismo, da união na diversidade: "Grande no pensamento, grande na ação, grande na glória, grande no infortúnio, grande para suportar, no abandono e na morte, a trágica expiação da grandeza, nas justas palavras de Rodó, Bolívar, o Libertador da América Espanhola, foi também o pioneiro do americanismo e, pregando a sábia política que sintetizou em três pontos capitais - 'abrir estradas, povoar e educar' —, era com a união dos povos americanos que sonhava, antecipando-se a todos na idéia e no esforço para realizá-la, através das dificuldades criadas pelas naturais rivalidades e competições."4
Mas não é apenas no processo de emancipação política que se manifesta o sonho de união latino-americana. No campo cultural são numerosos os exemplos em que essa união não foi somente sonhada, mas também concretizada: o poeta nicaragüense Rubén Darío, durante os dois anos e meio em que permaneceu no Chile, em fins do sécuo passado, publicou quatro obras naquele país e dele "se envaidece o Chile, como se desse país fosse ele natural"; o primeiro reitor da Universidade do Chile, criada em 1842, foi um venezuelano, Don Andrés Bello. Prosadores e poetas, uns mais, outros menos intensamente, partilharam do ideal de união latino-americana.
Deixemos a palavra a Fernando de Azevedo: "Do mesmo ideal partilharam seus maiores prosadores e poetas, ainda aqueles em que uma influência européia mais acentuada tendia a diluir o americanismo 'nas incoerências cosmopolitas' de sua formação. E que prosadores e poetas! Eugênio Maria de Hostos, de Porto Rico, professor da Universidade de Santiago do Chile, tribuno, pensador, jurista e crítico literário, voluntário da revolução antilhana, esse 'Ulisses faminto de ideais', como lhe chamou Fombona, ao referir-se, como a uma nova odisséia, à sua aventurosa peregrinação pela América, esse
Idem, ibidem, p. 60.
Idem, ibidem, p. 61.
Idem, ibidem.
Dom Quixote da Liberdade', em cuja defesa pôs a palavra, a pena e a espada: Dom Juan de Montalvo, equatoriano, 'centro e esperança da opinião radical', o adversário terrível de Garcia Moreno, que ele combateu dentro e fora do país, com essa sobranceria e independência que lhe valeram uma imensa autoridade moral no Equador; um Manuel González Prada, peruano, 'espírito retilíneo, de afirmações e negações claras, homem de sacrifício, batalhador democrático, prosador vigoroso de Páginas Libres cujo estilo tem a naturalidade e a força vital de um 'movimento respiratório'."5
E assim prossegue Fernando de Azevedo, citando prosadores e poetas da América Espanhola, do século passado e deste século, tecendo um cántico de louvor à terra e aos homens: "Glória, pois, à América Espanhola, agitada e inconstante, como um mar que nao encontrou suas praias, mas fiel às tradições de liberdade, cultura e solidariedade continental, e em cujos ímpetos e ardor románticos, ligados às suas origens peninsulares, se pode buscar a nascente de sua inquietação espiritual em face das coisas e da vida. Glória aos criadores desse romance apaixonante, que é a grande aventura humana da descoberta, conquista, colonização, independência da América e da expansão dramática, por paisagens fragosas e bravias, da civilização ocidental."
A união latino-americana com que sonha Fernando de Azevedo parece ser a união promovida pela integração das elites "criollas" cujo espírito, nascido da luta pela emancipação política, devemos procurar cultivar com vistas a um maior conhecimento recíproco e para melhor servirmos à educação: "A despeito da cordilheira e das distâncias que se interpõem entre nós, não será muito difícil multiplicar esses contatos em que se acentuam sobre os fatores de diferenciação os fatores de convergência, para nos compreendermos melhor uns aos outros e, alcançando um grau mais alto de conhecimento recíproco, servirmos mais eficazmente à obra comum de educação."7
Aos educadores cabe importante responsabilidade no preparo e na orientação do movimento de união latino-americana: "Provocar e entreter o diálogo; integrar as visões parciais, correspondentes a cada uma das culturas, numa visão mais ampla, deliberadamente americana e humanística; apertar os laços que se tecem não só entre o solo, o meio social e o homem, como também entre todos os países e a civilização a que pertencem; 'transformar em consciência uma experiência tão larga quanto possivel', como propõe Malraux pela voz de Tchen, se não é tarefa a que somente educadores possam meter ombros - porque ela é coletiva, histórica, cultural e política -, é certo que é sumamente importante a parte que nos cabe no preparo e na orientação desse movimento."8
Aproximando-se e agrupando-se para atividades comuns, os educadores da América Latina não estão somente realizando o sonho de união latino-americana, mas também fundando "uma nova civilização": "É, de fato, aproximando educadores de todos os países da América; abrindo-lhes possibilidades para troca de idéias e de impressões e para a intercomunicação do que seus respectivos países tenham de mais autêntico e original, nas diversas esferas da cultura; é agrupando-os para cursos de atividades e
Idem, ibidem, p. 63-4.
6 Idem, ibidem, p. 65-6.
Idem, ibidem, p. 67.
Idem, ibidem, p. 68.
objetivos comuns e pondo-os em contatos, contínuos e diretos, que podemos realizar o sonho de união latino-americana, acalentado por Bolívar, e fazer saltar da forja em que se fundem o aço das máquinas e o metal da redenção econômica, a centelha do americanismo que imprima sua marca às criações do espírito e nos permita reconhecer-nos a todos, através das diferenças e características nacionais, como fundadores e participantes de uma nova civilização."9
Trata-se, realmente, de um sonho. Talvez mais próximo da realidade no fragor da luta pela libertação política do que nos dias que correm. uma das explicações para a frustração do sonho talvez esteja no esquecimento daquilo que cada país tem de "mais auténtico e original, nas diversas esferas da cultura", nas próprias palavras de Fernando de Azevedo. A integração latino-americana só será possível se construída sobre a integração nacional de cada país. Não terá futuro, portanto, qualquer sonho de união elaborado artificialmente pelas elites "criollas", passando por cima da realidade nacional. A integração só poderá resultar do que houver de mais autêntico e original em cada país, meta que impõe a renovação da própria educação, no sentido de uma maior aproximação com a realidade nacional.
Só renovando-se profundamente, com vistas a resgatar e incorporar o que há de mais autêntico na vida de cada país, é que a educação poderá contribuir para a realização do sonho de união latino-americana. E, no dizer do grande escritor uruguaio Eduardo Galeano, essa é uma luta do povo: "O atual processo de integração não nos faz reencontrar nossa origem nem nos aproxima de nossas metas. Bolívar tinha afirmado, certeira profecia, que os Estados Unidos pareciam destinados pela Providência para alastrar a América de misérias em nome da liberdade. Não há de ser a General Motors ou a IBM que terá a gentileza de levantar, no nosso lugar, as velhas bandeiras de unidade e emancipação caídas na luta, nem hão de ser os traidores contemporâneos os que realizarão, hoje, a redenção dos heróis ontem traídos. É muita podridão para lançar ao fundo do mar no caminho da reconstrução da América Latina. Os despojados, os humilhados, os miseráveis têm, eles sim, em suas mãos, a tarefa. A causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a América Latina possa renascer, terá de começar por derrubar seus donos, país por país. Abrem-se tempos de rebelião e mudança. Há aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre as consciências dos homens."1 °
9 Idem, ibidem, p. 67-8.
GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. 6. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. p. 280-1.
Bibliografía
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Apêndices
1. Reprodução da primeira página manuscrita do discurso pronunciado por Fernando de Azevedo, ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, em 1968. O manuscrito encontra-se no Arquivo Fernando de Azevedo, no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
2. Transcrição da parte inicial e da parte final do discurso que Fernando pronunciou ao ser empossado na Academia Brasileira de Letras. Excluiu-se a parte intermediária, em que o novo acadêmico faz uma apreciação sobre o patrono, o fundador e os seus antecessores na cadeira nº 14 da Academia, para a qual foi eleito.
3. Depoimento exclusivo e inédito de Lollia de Azevedo Marx, filha de Fernando de Azevedo.
Senhores Acadêmicos
É uma alta distinção que me concedestes, elegendo-me membro desta Academia sem que eu tivesse, em qualquer momento, disputado a honra de participar de vosso convívio. Não vos tendo batido à porta nem pleiteado a preferência que gostaria de merecer, tivestes para comigo a cativante gentileza de incluir-me entre seus pares, impondo--me o capuz de uma irmandade que, em pouco mais de meio século, já se constituiu, no mundo das letras, em corporação das mais ilustres tradições. Eu vos agradeço, pe-nhorado. Se não me apresentei nem me dispunha a ser candidato a uma poltrona nesta Casa, foi por pensar (e é um ponto de vista discutível, mas antigo) que honrarías, distinções ou postos de comando não se disputam; aceitam-se, aquelas, desde que espontaneamente conferidas, e estes, em certas condições, quando somos convocados. A deliberação de uma assembléia redobra de força, e a escolha, de desvanecimento para os eleitos, quando nela não intervém senão a vontade dos juízes; com a plena liberdade de iniciativa e de julgamento.
Aprecio, em tôda sua plenitude, a nobre e grave missão cultural de uma Academia de Letras. E já seria bastante para tê-las, a todas as instituições dessa ordem, na consideração que merecem. Mas, quando se trata de um grêmio, em que brilham valores dos mais altos na constelação literária do país e figuraram (para citar apenas alguns de seus grandes, entre os mortos) escritores do porte de Alcântara Machado, Monteiro Lobato e Mário de Andrade, historiadores da categoria de um Basílio de Magalhães e de um Afonso Taunay, poetas como Vicente de Carvalho, um dos maiores do Brasil, e Amadeu Amaral, jornalistas da estirpe de um Plínio Barreto, pregadores da eloqüência e unção religiosa de um Monsenhor Francisco de Paula Rodrigues, o famoso Pe. Chico, homens de Estado da estatura de um Washington Luis, historiador, eu me pergunto sr seria lícito a alguém hesitar na aceitação de tão luzido encargo como este em que me investistes, na vossa benevolência inesgotável em surpresas?
Essa atitude de discrição e reserva, quase de indiferença em face de títulos e mercês honoríficas, não penseis, porém, ser de ontem, em relação à Academia a que me honro de pertencer. Ela é mais antiga do que se possa imaginar. Por quatro vezes, desde minha mocidade, consegui sem esforço resistir à tentação de apresentar-me candidato á Academia Brasileira de Letras. Tinha 27 anos quando, pela primeira vez, um de seus vultos mais eminentes, Coelho Netto, tendo-me por digno, apesar da pouca idade, de fazer parte daquela Academia, solicitava me preparasse para disputar, na oportunidade, uma de suas cadeiras. Foi em 1921. Mais tarde, em 1923, voltava à carga o meu generoso amigo. Sentir-me-ia constrangido em repetir de público as palavras que me dirigiu em carta de 26 de novembro de 1923, quando já andava pela casa dos 29 anos. Em 1924, insiste: 'Tive há dias (escreve-me em 24 de fevereiro daquele ano) grande alegria, ouvindo duas vezes o teu nome citado por Laudelino Freire, no formoso discurso com que vai tomar posse da cadeira-Rui, na Academia. Co neças a entrar, meu velho. É
o primeiro raio de sol que se insinua no oriente, antes do surgimento. Praza a Deus que eu possa gozar esse grande dia." O dia não veio a esse tempo nem em qualquer outro, porque jamais concordei em disputar uma vaga na Casa de Machado de Assis. Por essa época já havia Coelho Netto obtido os votos de vários acadêmicos, entre os quais se achavam Goulart de Andrade, Laudelino Freire, Humberto de Campos e Afrânio Peixoto.
Em um estudo sobre Múcio Leão, contou Humberto de Campos que, perguntado certa vez a quem daria o voto para lhe suceder na Academia, se fosse atribuído ao acadêmico indicar seu sucessor, respondeu sem vacilar: "Múcio Leão ou Fernando de Azevedo." Quando faleceu o notável poeta, escritor e crítico literário, meus amigos, acadêmicos ou não, voltaram a insistir comigo para que me apresentas' candidato, em obediência à vontade de Humberto de Campos. Respondi-lhes, a todos, que somente me inscreveria, para lhes atender aos desejos, se Múcio Leão, o primeiro nome citado, não concorresse à vaga aberta com a morte de quem me surpreendera, na sua delicadeza para comigo, com tão alto julgamento. Felizmente não tive necessidade de lhe pleitear a cadeira: Múcio Leão inscreveu-se, e era ele o candidato de minha predileção. Sucederam-se novas manifestações, tão significativas quanto generosas, de uma das quais um dia participaram, reunidos num lar amigo, Rodrigo Octavio, então presidente da Academia, Álvaro Lins, Josué Montello, Múcio Leão, Barbosa Lima Sobrinho, entre outros, a que devo a fineza de inequívocas expressões de interesse pela candidatura de escritor tão obscuro. Todos, ao que pude sentir, votariam em meu nome, já engrandecido com suas preferências, no caso de me dispor a concorrer a uma das primeiras vagas que se verificassem. Não me foi possível, porém, mudar a posição que tomara: não me apresentei candidato a nenhuma delas.
Tal atitude, por estranha que pareça, foi firmemente mantida, como vedes, mesmo nos momentos em que tudo conspirava para me compelir a modificá-la. Dir-se-ia expressão de uma superioridade desdenhosa - vaidade ou, ao menos, desinteresse em face de associações dessa natureza. Mas, quanto posso julgar e se é que bem me conheço, não corresponde ela senão à dúvida angustiante sobre méritos que me têm sido atribuídos, ao sentimento de renúncia e de abandono, resultante de outro, extremamente vivo, da precariedade e transitoriedade das coisas. De minha formação inicial o que me ficara, além da crença em Deus e na vida sobrenatural, foram a inquietação diante do problema religioso, o sentimento da morte, que penetra profundamente minha vida e minha obra, e me parece decorrer menos de uma opinião lógica do que de um temor metafísico, a procura constante de mim mesmo e, daí, o gosto da solidão. Si tu sarai solo, tu sarai tuto tuo, na profunda observação de Leonardo da Vinci, protótipo do uomo universale da Renascença. Mas, vós, que me conheceis como homem de pensamento e de ação, tendes o direito de me interrogar como esses sentimentos, próprios da vida contemplativa e radicados por força de antiga disciplina ascética, puderam conciliar-se com o dinamismo interior, o amor à luta, o gosto de viver dentro da tempestade, enfrentando ventanias, o impulso para tudo reformar, a vontade de pensar e agir depressa e o interesse vigilante pelas coisas, pelos homens e pelos acontecimentos?
E eu vos responderei, perguntando se tudo isso não refletirá, em suas aparentes contradições internas, a tendência, não procurada mas instintiva, de encher e devorar o tempo que se vive cada dia e com que não se pode contar no dia seguinte, e talvez uma fuga da idéia da morte, pela plenitude do espírito criador e da ação que nos fazem esquecê-la e, porventura, superá-la? Fogem uns, quando o problema os inquieta, pela busca desesperada do prazer (evasão de superfície) e outros, pela atividade intensa e
ininterrupta (evasão em profundidade). É por isso que muitas vezes me tenho detido no pensamento de Goethe, quando nos afirma - creio que em suas "Conversações com Eckermann" - que "a mais nobre felicidade do homem que pensa é ter explorado o concebível e reverenciar em paz o incognoscível". Sim, explorar o concebível, inserir o ideal no real, mas atento às reações da realidade aos esforços para modificá-la, e reverenciar em paz e humildade o incognoscível, eis em que se tem consumido a vida, retraída e solitária, do sociólogo, escritor e reformador da educação, que hoje recebéis e que, por modesto que seja nos três planos, da ciência, das letras e da ação, é um homem que sempre procedeu nobremente porque nada pretendeu dos outros, e procurou, antes de tudo (e só Deus sabe quanto me custou), ser fiel a si mesmo e às suas convicções.
Se no mundo literário, de que é a nossa Academia uma das mais legítimas e altas expressões, se no domínio científico ou no plano da vida pública me foi dado trazer alguma contribuição original, não me ficou sombra de vaidade, que esta há muito me desertou do coração. Quando não me viesse de minha juventude, ocupada em meditações e sangrada de sofrimentos, bastariam os longos anos já vividos para me incutirem esse sentimento da relatividade das coisas, que nos leva a manter uma atitude de ironia e piedade em face da vida, dos homens e dos acontecimentos. Pois, à medida que recuamos no tempo - e não para tempos distantes, mas ainda recentes -, vão-se apagando tão rapidamente situações e figuras humanas, que nos aparecem, quando as evocamos, através de névoa, per speculum in aenigmate, segundo a expressão paulina. Na claridade, mas já esbatida como num crepúsculo em que "as sombras quanto vai sendo mais tarde tanto vão sendo maiores", surgem apenas, dentre os que ficaram para trás, os mais eminentes ou os que se situam mais perto de nós. No entanto, pela velocidade atordoante com que se processam as mudanças de valores, de critérios e de mentalidade, e pela rápida ascensão de elementos novos, os longes e os pertos tornam-se muito relativos e de tal modo que às vezes se faz longe o que aconteceu ou surgiu há poucas semanas ou alguns dias.
O tempo (reza um provérbio alemão) "é um moinho que mói lentamente, mas mói fino". É, de fato, um terrível peneirador de que nunca se sabe o que retém e o que deixa passar, joeirando e cirandando, com seu crivo de fios finamente trançados. Não raro os que rejeitam os contemporáneos passam à posteridade, e os que conquistam, em vida, as graças do público resistem a duas gerações. Numa época, a projeção e o prestígio — antecipações ilusórias de uma glória póstuma —, para se reduzirem, os que foram mais cortejados, às suas reais dimensões, na época seguinte, em que mal se entrevêem à meia luz, apoucados e mesquinhos. E quantas vezes, ao contrário, os esquecidos, mal interpretados ou incompreendidos não tiveram, depois da morte, a consagração com que não haviam sonhado e que, em vida, não lhes fora concedido prelibar na boca habituada ao sabor amargo das decepções? Peneirador implacável, o tempo. triturador de grandezas e reabilitador de valores! "A posteridade abrevia, como lembra Émile Faguet; e está no seu direito, porque escrevemos para ela; e é seu dever também e, por menos que pareça, um dever piedoso, pois não abrevia senão para não perder tudo." Os notáveis, os verdadeiramente grandes, os prosadores e poetas, mais eles mesmos, mais originais e mais humanos a um tempo, e, exatamente por isso, mais profundos, sedutores e poderosos, aqueles que falam ou podem falar para os povos de todas as latitudes e de todas as épocas, só eles é que ficam, eles é que são eternos - em cada país, os maiores de sua história literária, e que nem sempre, em suas mensagens, se revelam tão extraordinários que possam incorporar-se ao quadro olímpico, ainda mais
restrito, dos gênios da literatura universal'.
"Na cadeira em que me concedestes suceder a Plínio Ayrosa, que, no correr dos anos, se foi desencantando dos homens, da vida e dos acontecimentos, e se recolhera afinal a uma solidão quase monástica, surge agora um escritor que teve a felicidade ou a desgraça, o prêmio ou o castigo de conservar ainda acesa a chama que lhe ardia na mocidade, e, por mais viva que pareça, já nao tem a força nem o calor irradiante dos meus melhores tempos de inconformismo, de independência até à rebeldia, e de lutas obstinadas.
Já vedes, Senhores Acadêmicos, que imprudência não teria sido a vossa, se tivésseis escolhido mais cedo para membro desta ilustre Academia um escritor de idéias radicais, de espírito inquieto e insatisfeito consigo mesmo e com quase tudo o que vê à volta de si, dominado pelo demônio da reforma que é um de seus companheiros mais constantes nas horas de solidão. Tivesse sido outra a idade em que me fósseis buscar, e estaria logo com a mão no arranque, para, naturalmente, sem me dar conta das reações desfavoráveis, pôr a minha máquina reformadora em movimento. Pois, em época já bem distante, eu me perguntava porque as Academias de Letras nao se haviam ainda disposto a adotar um regime misto de seleção de seus membros, combinando sabiamente a iniciativa livre com o processo de escolha na base de competição dos candidatos. Verificada uma vaga, teria a primazia, por sistema, a apreciação de proposta de nome de alto valor (jovem ainda ou já consagrado), assinada por, no mínimo, dez de seus membros: uma vez aprovada, em escrutínio secreto, estaria livremente escolhido, sem que tivesse pleiteado a cadeira, o novo acadêmico. Não se abririam, portanto, inscrições senão no caso de nao haver proposta ou de não alcançar maioria absoluta de votos a que se apresentou. A segunda pergunta entre outras, a que, sem me dar resposta aplausível, me arriscava em tempos idos (velha história, como vedes), dizia respeito à resistência que então se opunha - e parece ainda muito viva — à admissão de mulheres de letras, escritoras e poetisas, realmente dignas de figurarem nos quadros acadêmicos.
Lembro-me do caso de Colette, um dos grandes escritores franceses de seu sexo. Nao a recebeu a Academia Francesa que, nas palavras de Pierre Brodin, "em matéria de vestes não admite senão as dos cardeais. Mas a Academia da Bélgica sentiu-se muito feliz em suprir essa deficiência e receber Colette com grande pompa em 4 de abril de 1936, na cadeira de Anna de Noailles. Ela deu assim uma pequena lição aos Quarenta, muitos dos quais, aliás, se teriam sentido realmente bem felizes, não fosse a tradição, de chamar ao seu convívio um dos maiores poetas em prosa do século XX". Certamente, quando me fazia essas interrogações indiscretas, eram poucas no país as mulheres que se podiam considerar grandes talentos. Mas no momento atual já são em maior número e de qualidade incontestável. Numa época difícil, sem estímulos, em meio da indiferença geral, poetisas e prosadoras, de méritos desiguais, souberam resistir ao desânimo e entreter, com sopros, fracos, uns, e outros, vigorosos, o foco a cujo calor iriam desabrochar um dia algumas de nossas maiores vocações literárias. Permiti-me prestar-lhes minhas homenagens, às pioneiras desse movimento e às que se tornaram glórias indiscutíveis da literatura feminina no país. Confesso que sua ausência nesta Casa de tão nobres tradições me faz falta e que, por senti-la vivamente, se me houvesse sido dado entrar aqui, em minha mocidade, já teria batalhado, como um mosqueteiro, em favor da admissão, na Academia, das mulheres de letras, que, para sua maior glória e nosso prazer, acrescentariam ao vigor e à força comunicativa dos homens as graças de seu espírito e a surpresa amável de suas luminosas intuições.
Mas, nesta altura da vida, tereis, para a tranqüilidade de todos, a segurança de que o homem que hoje recebéis, já de cabelos brancos, embora fiel às suas idéias e à sua vocação de reformador, nem tem os mesmos impulsos da mocidade ou da idade madura nem terá tempo para vos perturbar o sossego dos estudos e a alegria dos serões literários. Escolhendo-me agora, e somente agora, destes mais uma prova, entre tantas outras, de raro equilíbrio, de um vivo sentido de oportunidade, de sense of humour, senão de fina ironia, a que soubestes juntar a delicadeza e o calor humano, nas manifestações cativantes de simpatia pelo escritor que atraístes ao vosso convívio. Viestes, de fato, ao encontro de um homem de lutas, mas já um tanto cansado delas, de um incendiario que o foi, na mocidade, e se dispôs, com os anos, a transferir-se para o corpo de bombeiros, e, quando estivesse na plenitude de suas forças, tudo aqui, neste ambiente acolhedor, conspiraria para lhe quebrar os últimos ímpetos revolucionários. É que tendes uma confiança tranqüila na missão conservadora das Academias, guardias da boa linguagem e das boas maneiras, dos valores tradicionais e do patrimônio literário que nos foi legado pela história. Formas de controle ideológico, desempenham elas papel importante no processo de seleção cultural e, quando não sejam propriamente refratá-rias ao novo, se mantém em guarda e, não raro, numa atitude de expectativa armada contra as inovações, e tanto mais quanto mais bruscamente estabelecem uma ruptura com o passado.
É por isso, por sua função eminentemente conservadora, que relutam as Academias em reorganizar-se em novas bases e em escolher, para delas participarem, abridores de caminho, escritores de idéias avançadas. Nenhum movimento renovador, que eu saiba, terá partido delas, que funcionam mais como um sistema de freios do que como um sistema de pistões, antes para retardar do que para acelerar o processo de renovações. Estão no seu papel, fiéis ao modelo em que se inspiraram, estruturando-se segundo o tipo de instituições destinadas a preservar os valores tradicionais e não como laboratórios de experiências estéticas. Daí, a atitude de prudência senão de desconfiança que assumem, em face de problemas como, por exemplo, os das novas correntes de pensamento literário e, mais particularmente, os do neo-humanismo, aos quais, embora debatidos, fora delas, com vigor e paixão, parece manterem-se indiferentes. E são problemas de interesse capital para as letras e uma nova visão do mundo, e em cuja discussão têm intervindo cientistas e escritores desde os famosos debates travados na Câmara de Deputados da França, em 1834, entre o poeta Lamartine e o sábio Arago. No entanto, em assuntos de tal importância, ventilados em assembléias políticas e em simpósios internacionais, não se ouviu ainda a voz das Academias de Letras nem a das de Ciências, reunidas, para o debate da questão, em sessões especiais destas ou daquelas, ou em sessões conjuntas, prepostas a uma análise e confrontação sistemática de pontos de vista de homens de ciência e de homens de letras.
É do humanismo literário clássico, de origem e preponderância latinas, que nelas ainda se tala, quando se tala (o que raramente acontece), como se fosse possível subsistir o humanismo na forma antiga que assumiu e manteve através de séculos, correspondente a um tipo ou a uma forma já superada de civilização. Problema apaixonante, tem de ser, de fato, reexaminado a uma nova luz, em face do progresso das ciências e da técnica, em seus mais diversos aspectos e em suas implicações literárias, pedagógicas e humanas. Entre os títulos com que, na sua benevolência para comigo, me honram críticos e acadêmicos, e, certamente, um dos mais gratos ao meu espírito, é o de humanista, mas, ao ouvi-los falar, a propósito do amável qualificativo, e falando-lhes eu próprio sobre humanismo, tenho às vezes a impressão de estarmos falando línguas diferentes.
Pois, é ao humanismo, ainda remanescente, de inspiração latina, que se referem ou parecem referir-se, e é para outra forma de humanismo que se volta meu pensamento — um humanismo, tout court, sem adjetivos, mas em cuja elaboração entrem, por igual, ao lado das línguas antigas, as línguas e literaturas modernas, e a cultura científica que tem, também ela, um alto valor humano, e é "suscetível de abrir ao espírito os mais vastos horizontes, permitindo-lhe apanhar melhor o sentido do esforço humano". Para onde se volta, fortemente atraído, o meu pensamento é para o humanismo, sim, mas um humanismo penetrado de espírito crítico e experimental, que começou a soprar na Grécia, onde com um Pitágoras, matemático, um Hipócrates, fundador da medicina, o geòmetra Euclides, o físico Arquimedes, e um Aristóteles, filósofo, talento sólido e robusto, de espírito positivo, se embebem as raízes da nova civilização, de base científica e técnica.
Quando tratamos do humanismo, herdeiro e vulgarizador da sabedoria e civilização antigas, esquecemo-nos facilmente de que se exprimiam somente ou sobretudo pelas letras latinas essa cultura e civilização, embora penetradas da filosofia, das letras e das artes gregas. Não é, porém, rejeitar o humanismo, buscar-lhe as raízes mais profundas e dar-lhe, sob a inspiração helênica, a amplitude e substância que comportam as contribuições do espírito matemático e científico, originário da Grécia clássica e que melhor corresponde às exigências e aspirações da civilização atual. Ou, por outras palavras, não é a língua latina o único nem o mais poderoso veículo desse pensamento e dessa cultura. Na preponderância, por tantos séculos, do latim, como língua literária, está aliás uma das razões da decadência das literaturas em língua vulgar em vários países do ocidente europeu, e da demora dos progressos das línguas e literaturas modernas. Nem seria preciso lembrar ainda que, tornando-se filólogos letrados e eruditos, os humanistas, de inspiração latina, se foram afastando cada vez mais do público para se dirigirem a uma elite; e, é descendo às fontes mais abundantes da sabedoria antiga que encontramos, com as origens remotas da nova civilização, de fundamentos científicos, os estímulos e os meios de restabelecer o contato das elites com o povo e a comunhão das letras que, nas palavras de Anatole France, "são a flor das ciências, e das ciências que são a substância das letras".
É por aí, por essa interpenetração, pelas raízes, das ciências e das letras (e nos compete a nós intensificá-la por meio de conferências e diálogos de cientistas e escritores), é por essa integração no espírito e na forma da civilização atual, que podemos adquirir da vida e das coisas uma nova visão, mais profunda e original. Teremos então maiores possibilidades de alcançar essa coisa extraordinária, apontada por Arthur Miller na atriz Marilyn Monroe, de "ter o ar de ver sempre tudo pela primeira vez. É um dom maravilhoso (comenta Miller) mas também uma fonte de sofrimentos. Em geral, preferem as pessoas envolver-se de tédio e conformismo para melhor se protegerem da fadiga de renovar seus pontos de vista. Ela, não; não se enfastia, nunca cede diante do hábito. É muito fatigante ser assim, pois, para alguém exprimir verdadeiras emoções, reações pessoais e não convencionais, precisa estar dentro da vida e do tempo até o pescoço". Em todo caso, se, com o espantoso progresso das ciências e o reflorescimen-to das letras e das artes, em todas as suas manifestações, estamos na vigília de uma "nova idade clássica", como admitia Lunatscharsky, de uma repetição do "milagre grego", a que se referia Renan, de uma civilização só comparável mas em tudo superior à Renascença, em que tem suas origens o mundo moderno, e a essa "idade de ouro", que foi o século XIX, nós não seremos "os dignos continuadores dos gregos senão na medida em que formos os contemporâneos de nossa civilização como eles eram da sua.
Que importa saber 1er Platão no texto quando se é incapaz (pergunta Léon Brunschvieg) de compreender Einstein, de ter consciência do ponto a que a humanidade de hoje levou o escrúpulo da verdade? Eu me desculpo se, para ser breve e claro, tomo um ar aparentemente peremptório, mas duvido se possa nao digo resolver mas somente pôr o problema do humanismo, sem começar por meditar longamente sobre a herança de sinceridade, precisão e profundidade que o feliz esforço da ciência conquistou para nossos filhos".
Não sei bem se o discurso que me cabia proferir, ao tomar posse, em tão bela solenidade, de uma cadeira desta Casa, atendeu às exigências acadêmicas. Nunca me foi possível dobrar-me, ainda que o procurasse, a imposições de um ritual e a normas protocolares, consagradas pela tradição. Já me habituei tanto a ser eu mesmo que raramente tanho conseguido, no falar e no agir, contentar a todos. Se tenho porventura agradado quando escrevo, terá sido menos pelas idéias, sempre muito discutidas, do que pela maneira de exprimi-las, à qual não costumam faltar a clareza e a independência de julgamentos. como jamais, ainda em hora dificil e incerta, me utilizei de máscaras para dissimular-me aos olhos dos outros, nao havia de ser agora que afivelasse alguma delas a um rosto, tão pouco amável e já tão conhecido de vós que seria inútil a tentativa de encobri-lo com disfarces e artifícios. Mas essa mesma sinceridade com que vos falei, dirigindo-me a prosadores, poetas e homens notáveis, é mais uma expressão — e talvez a mais significativa - de meus sentimentos de respeito pela insigne Companhia a que, por vossa espontânea vontade, me senti de uma hora para outra incorporado, e com tanto maior surpresa para mim quanto se ergueram, para vos apoiarem e aplaudirem a decisão, sem um voto discrepante, tôda a imprensa e as mais diversas correntes de pensamento, literário e político. Eu vos sou agradecido a todos por essas manifestações que, pelo calor tocaram as raias de inesperada consagração, e, de modo particular, ao vosso ilustre presidente, o escritor e poeta Aristeu Seixas. por ser o maior responsável pela delicada lembrança de meu nome e por haver escolhido, para saudar--me de vossa parte, o eminente educador brasileiro M.B. Lourenço Filho, a que me prende amizade velha, mantida sem desmaios há mais de 40 anos, mas que, apesar da solidariedade fraternal a companheiros de ideais e de lutas, conserva, inalterável, para com os mais achegados ao seu coração, essa liberdade de opinião e de crítica que é, com a probidade profissional, um dos mais altos títulos de glória dos escritores.
Educador de largas vistas, um dos maiores da América, cientista de renome na especialidade a que se dedicou — a psicologia - e escritor primoroso, é um dos poucos que, através de todas as vicissitudes, se mantiveram fiéis a si mesmos e às suas idéias neste mundo sacudido de contradições e de lutas dramáticas. Não é só em sua linguagem, enxuta e de rara limpidez, mas também nas atitudes e decisões que se revela o sentido de equilíbrio e de medida, menos do seu temperamento do que do poder que adquiriu e apurou, com os anos, de conter, disciplinar e dirigir seus impulsos naturais. Mas o amor à independência até à altivez e sua serenidade, proveniente de um vigilante domínio de si mesmo, nunca chegaram a abafar, em Lourenço Filho, a sensibilidade e a ternura nas relações humanas. De tudo, pois, que tenha escrito de amável a meu respeito, sobre meu nome e minha obra, tereis de descontar — porque ele guarda tesouros de afetividade - o que emergiu de sua capacidade de amar e de admirar, de sua inteligência, compreensiva e humana, como também da consciência do encargo de que se incumbiu, em obediência à vossa expressa decisão. O autor de obras já clássicas, como, entre outras, a "Introdução ao estudo da Escola Nova", sem igual na literatura estrangeira, tomou a si, por deliberação vossa, interpretar sentimentos que, sendo dele próprio, são
os desta Companhia, constituída de escritores e poetas, em que se aliam à consciência de sua alta missão intelectual a fidalguia e a indulgência, nunca tão manifestas na história da Academia como no acolhimento que dispensastes, e vivamente me tocou no coração, a este novo acadêmico em fim de carreira e de vida, já envolto pelas últimas sombras do crepúsculo vespertino.
FERNANDO DE AZEVEDO, MEU PAI
Nossa vida em casa era diferente da de outras casas que freqüentávamos. Percebi isso quando fui crescendo. Pelo fato de papai ser um homem excessivamente preocupado com a família, muito autoritário apesar de muito carinhoso. A preocupação era tão grande que, nos resguardando de tudo, nos tolhia muito.
Quando papai chegava em casa, depois de falar conosco e nos beijar, afastávamo-nos indo brincar onde não nos ouvisse. "Seu pai precisa trabalhar", como minha mãe dizia, sempre vigilante para que ele tivesse a paz necessária.
Nossa convivência com papai era mais às horas de refeições que, por isso mesmo, eram muito prolongadas. Nesses momentos papai e mamãe conversavam sobre nós e conosco, sobre assuntos gerais e sérios. Quando crianças, nem sempre nos interessavam essas conversas, mas prestávamos atenção. com a idade fomos ficando muito bem informados. Quando meus pais não queriam que entendêssemos, falavam em francês. É claro que não demorou muito e acabamos entendendo; era a hora em que ficávamos mais atentos.
Papai recebia sempre muitos amigos, que em geral ficavam para almoçar ou jantar. Nós, as crianças, estávamos sempre à mesa e, para mim, era um encantamento poder ouvir o que diziam esses homens tão inteligentes e cultos. Queria muito ser como eles quando crescesse. A admiração que sentia por esses homens crescia comigo. Conheci todos, ou quase todos: Venâncio Filho, Frota Pessoa, Anísio Teixeira, Abgar Renault entre tantos e tantos outros. Grandes homens!
Quando adolescentes sentimos muito, principalmente meu irmão, a falta de liberdade que tínhamos. Meu irmão a conquistou, vencendo meu pai pela insistência e rebeldia. Mas nós, as mulheres, continuamos sob controle até nos casarmos. Meu irmão. como único filho homem, era para papai a esperança de um prosseguimento em seu trabalho, para mamãe o preferido e para as irmãs muito querido.
Quando rapaz meu irmão sofreu um gravíssimo acidente de carro, tendo que ficar hospitalizado por meses. Quase morreu. Papai largou tudo, dedicando-se exclusivamente a ele. Foi nessa ocasião que ficou com os cabelos brancos rapidamente. Foi horrível para todos nós. Quando meu irmão já casado e com três filhos adoeceu, tendo que fazer três grandes operações e falecendo, meu pai ficou desesperado. Junto a minha mãe, que era uma mulher mais resistente ao sofrimento, alegre e uma grande companheira, ele sobreviveu. Um ano depois perderam Lívia, a filha mais velha, sempre tão amiga e tão ligada a eles: foi outro golpe terrível, quando ainda não estavam refeitos da perda do Fábio. Papai ficou muito amargurado, um pouco agressivo, o que se nota em seus escritos nessa época. com o passar do tempo essa dor foi-se amenizando, papai ficou calmo, muito bom. Sempre forte, dominando na família, querendo sempre resolver os problemas das filhas e netos.
Papai, depois de duas operações, foi perdendo a visão, só tendo-lhe restado 10% nu-
ma das vistas, ficou quase cego. Fui então trabalhar com ele, ajudá-lo e com ele fiquei até seu falecimento. Escreveu até o fim de sua vida. Conseguia escrever mesmo sem enxergar, depois eu lia o que ele havia escrito, corrigia ou modificava se assim ele achasse necessário.
Meu pai era um forte, uma grande inteligência, um trabalhador incansável, um batalhador. Um homem muito aberto para tudo, olhando sempre para o futuro. Até o fim trabalhou e lutou pelos seus ideais, pelo bem de sua família, com tôda sua força e energia.
Lollia de Azevedo Marx São Paulo, maio, 1985
Segunda Parte
A Renovação da Escola Pública Idéias e Práticas Educativas de Firmino Costa
Fernando Correia Dias
Filmino Costa (1869-1939)
Introdução
Exporei, nas linhas abaixo, como surgiu e se desenvolveu o projeto de realizar um estudo sobre Firmino Costa. Estarão aí mencionadas as pessoas e instituições que tornaram possível a concretização do trabalho.
Se o nome do mestre mineiro só agora, com a presente divulgação, ficará conhecido por muitas pessoas, o certo é que para mim sempre foi familiar. Desde minha infância, acostumei-me a ouvi-lo ser mencionado, na casa paterna, com admiração e respeito. Minha mãe estudara com Firmino Costa em Lavras (MG), no longínquo ano de 1919. Cursando o Colégio Nossa Senhora de Lourdes, eia efetuou sua prática profissional, como futura normalista, no grupo escolar local, sob a direção de Firmino Costa.
Em data bem recente, tomei conhecimento de dois diários escritos por minha mãe: um registro íntimo de sua vida cotidiana, em Três Pontas e em Lavras, e o registro do estágio, de 1919, relatando as lições de Firmino Costa. Ocorreu-me a idéia de redigir um ensaio, não muito longo, a respeito desse educador, anexando ao escrito os dois diários.
A esse tempo, anunciou-se o Concurso Grandes Educadores, em sua primeira versão de 1983. Coloquei-me em campo, com as informações de que já dispunha, com o objetivo de verificar se Firmino Costa era ou não equiparável aos grandes educadores brasileiros. Minha impressão era no sentido positivo; as leituras e sondagens levaram-me à confirmação de seus altos méritos pedagógicos. Decidi ampliar o plano inicial e escrever um trabalho minucioso.
Consegui encontrar os veios corretos por onde encaminhar a pesquisa. A primeira pessoa a orientar-me foi o professor Ângelo Alberto de Moura Delfim, da Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (FAEPE), vinculada à Escola Superior de Agricultura de Lavras (ESAL) e, atualmente, diretor do Museu de Lavras, instituição fundada e organizada por Silvio Moreira, historiador local. O Museu está hoje incorporado à ESAL. O professor Ângelo propiciou-me informações e cópias de documentos e de livros de difícil acesso.
Em viagem a Lavras, guiada por meu sobrinho José Aurélio Ribeiro Dias, conversei longamente com a professora Ester de Carvalho Pereira, ex-diretora do Grupo Escolar Firmino Costa, sobre a história do estabelecimento.
A seguir, obtive muitos elementos informativos e cópias de outros documentos no Arquivo Público Mineiro. Recorri à conhecida gentileza e competência de Hélio Gravata, assessor da Casa, que já me ajudara na execução de projetos anteriores. Auxiliou--me, agora, no levantamento bibliográfico sobre Firmino Costa. Chegou ao requinte de oferecer-me um exemplar da Gramática Portuguesa, que havia recebido como prêmio, em 1923, quando aluno do terceiro ano primário, no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, de Belo Horizonte. Do professor Francisco Assis Andrade. Diretor do Arquivo. recebi também facilidades para meu trabalho. Ajudou-me nessas pesquisas, junto ao
Arquivo Público Mineiro, minha sobrinha Maria de Fátima Emmediato Álvares. 0 passo mais importante, eu o sentia, era o da aproximação com a família de Firmi
no Costa. Demorei a localizar suas filhas; só o consegui com a ajuda da professora Maria Auxiliadora Vieira de Carvalho, que me possibilitou, também, acesso a livros esgotados, existentes na Biblioteca do Instituto de Educação, na capital mineira.
Pude conversar longamente com Dona Alice (Licinha) Costa Pereira, então acamada, e com Dona Lívia Costa Gulikers, em sua residência em Santa Tereza, Belo Horizonte. Dona Júlia Costa Pirillo encontrava-se em viagens de visita a familiares seus. A casa conserva móveis que pertenceram ao pai de Firmino Costa, Capitão Costa Pereira, além de muitos outros objetos antigos. Graças à confiança e boa vontade de Dona Licinha, pude dispor da documentação que me faltava, inclusive as fotos que ilustram a monografia. Pude 1er e reproduzir várias cartas e muitíssimos recortes antigos de jornal. com esse material, foi-me dado concluir o trabalho às vésperas do fechamento das inscrições.
Outra pessoa da família que me ofereceu indicações extremamente úteis foi o Dr. Ismael Costa Pereira, sobrinho de Firmino Costa e antigo engenheiro e dirigente do Departamento de Estradas e Rodagem (DER), em Minas, agora com mais de oitenta anos. Pessoa dotada de aguda curiosidade intelectual, é autor de uma genealogia da família, da qual pude dispor de uma cópia.
A reprodução das fotografias que ilustram este ensaio foi realizada pela amiga e ex--aluna Ivany Neiva Câmara. De Dona Júlia Coutinho Ve loso, lavrense residente em Brasília, recebi o empréstimo de livros sobre sua cidade natal.
Quando estive em Porto Alegre, em janeiro de 1985, pude também conversar longamente com o escritor Guilhermino César, admirador e contemporàneo de Firmino Costa em Belo Horizonte, sobre traços da vida e das atividades profissionais do grande educador.
Era minha intenção entrevistar várias pessoas, especialmente ex-alunos e colaboradores do mestre, em Belo Horizonte e em Lavras. Não me foi possível fazê-lo, em face da exigüidade do prazo com que contava para inscrever-me a tempo no concurso do INEP. Do mesmo modo e pela mesma razão, não me foi dado conversar previamente com um neto de Firmino Costa, Sr. Paulo Bracarense Costa, residente em Brasília e que, sabedor do projeto, gentilmente prontificou-se a colaborar; graças a ele foi possível obter depois a fotografia de Firmino Costa, que aparece nesta monografia.
Os trabalhos de datilografia foram cuidadosamente realizados por Ermelina da Silva Paula, servidora da Universidade de Brasília. Finalmente, minha esposa, Ady Álvares Correia Dias, ajudou-me na revisão do texto datilografado.
Cabe-me agradecer, penhoradamente, a todas as pessoas e instituições mencionadas acima pela colaboração prestimosa que me ofereceram.
No capítulo introdutório, além do enquadramento histórico do tema, discutem-se as coordenadas teóricas e metodológicas da pesquisa, mostrando-se ainda o uso que se fez das fontes.
De todas as informações veiculadas no texto, apenas uma, a de que Firmino Costa tenha sido vereador e secretário da Câmara local, não pôde ser confirmada; essa informação foi encontrada em artigo de um antigo jornal lavrense. Solicitei esclarecimento à edilidade de Lavras, mas não obtive resposta.
No capítulo final sugiro algumas providências que têm como finalidade reavivar e perpetuar a memória de Firmino Costa. Esperamos que tenham boa acolhida por parte dos dirigentes educacionais.
Projeto republicano e tradição mineira
Firmino Costa
Firmino Costa (1869-1939) pode ser considerado um dos expoentes da moderna educação no Brasil, embora seu nome seja hoje pouco conhecido, mesmo nos meios especializados. Sua biografia pessoal e seus trabalhos se apresentam um tanto atípicos, quando se pensa nas carreiras de outros educadores brasileiros que se destacaram. Não foi um extraordinário pensador nem um macroadministrador de sistemas educacionais. Destacou-se, porém, como mestre-escola de notável criatividade; destacou-se pela perfeita consagração a suas tarefas; destacou-se, enfim, pela influência que exerceu nas mudanças da estrutura do ensino em Minas Gerais e pela constante capacidade de divulgar e debater as idéias inovadoras.
Essa vida de trabalho se desenrola no contexto social da Primeira República e no âmbito das coordenadas da tradição intelectual de Minas Gerais. Sobre o primeiro aspecto, propor-se-á aqui uma síntese, por ser matéria suficientemente conhecida, objeto de considerável bibliografia; sobre o segundo, far-se-á uma exposição mais aprofundada.
Possuíam os fundadores da República um ideário educacional dotado de certa coerência. Das formulações positivistas - e Benjamim Constant tem sido considerado um expoente dessa doutrina - derivavam o grande apreço pela cultura intelectual e pela ação política dos intelectuais na sociedade, além de uma concepção da hierarquia das ciências. Derrotado o poder règio, fundamentaram na idéia da soberania popular os esforços no sentido de preparar o povo para a vida cívica. O horror ao analfabetismo, tido como símbolo do atraso nacional, levou os governos estaduais a fazer expandir a rede de escolas públicas de ensino fundamental. Havia a preocupação, igualmente. de utilizar o ensino formal como meio de preparar a força de trabalho destinada a novas tarefas num sistema econômico em mudança. Por fim, lembre-se a vaga aspiração ao progresso social, associada a uma visão ufanista da realidade brasileira.
Era um período de consolidação capitalista com base na cafeicultura, especialmente a de São Paulo, que se tornara pólo, simultaneamente, da industrialização inicial e do mercado de trabalho urbano.' Nesse Estado, em 1890, efetua-se uma reforma do ensino primário de grande envergadura. Expande-se ali a rede escolar pública, com grande procura de matrículas.2
No final dos anos 20, entretanto, é que se realizaram as mudanças mais significativas
Para uma análise da consolidação do capitalismo e do papel de São Paulo nesse processo, consulte-se o trabalho de CARDOSO Fernando Henrique "Condições sociais da industrialização". In:
Mudanças sociais na América Latina, São Paulo, Ditei, s.d.
Sobre a reforma do ensino em São Paulo, consultar o livro de REIS FILHO, Casemiro dos. A educação e a ilusão liberal. São Paulo, Cortez, Autores Associados, 1981. Especialmente o
cap. 3.
nos sistemas escolares de vários Estados.3 Tais reformas devem ser consideradas como parte da intensa inquietação política e intelectual que agitava o país. O movimento modernista, deflagrado simbolicamente pela Semana de Arte Moderna de Sao Paulo, em 1922, difundira-se entre escritores e artistas de outros centros, como o Rio de Janeiro e diversas capitais estaduais. Em Minas, além de Belo Horizonte, também na pequena Cataguases.4 O tenentismo representava o anseio, expresso pela jovem oficialidade do Exército, de maior representatividade do poder nacional e superação das práticas clien-telísticas por parte das oligarquias regionais. Estas, com suas contradições internas, entram em crise de legitimidade. A fundação do Partido Comunista, a Coluna Prestes (1924) e as lutas sindicais por melhores condições de trabalho configuram um nascente processo de mobilização de massas.
É nesse quadro, sumariamente exposto, caracterizado pela articulação política das classes médias urbanas como dado fundamental, que surge, entre as elites, os projetos modernizadores da educação. Aparecem em meio a uma crença entusiástica nos efeitos da escola sobre a sociedade em geral.5
A reforma do ensino primário e do ensino normal, proposta por Francisco Campos em nome do governo Antônio Carlos, era das mais ambiciosas. Dela se ocupará um dos capítulos deste trabalho.
Raízes da tradição intelectual
É necessário fazer referência, do mesmo modo, a certos traços da tradição intelectual de Minas, para que bem se compreenda o florescimento de determinadas concepções educacionais.
Remonta essa tradição ao período em que se formaram a sociedade e a cultura regionais, no decorrer do século XVIII. A região mineradora configura-se por meio de vários traços peculiares. É uma área relativamente urbanizada, comparativamente a
A bibliografia sobre as reformas do ensino na Primeira República já é bastante numerosa. Os próprios responsáveis por esses projetos de modificação escreveram relatos e interpretações dos respectivos processos, como são os casos de Fernando de Azevedo (Rio de Janeiro) e Francisco Campos (Minas Gerais), cujos textos constam de nossa bibliografia. Em termos genéricos, vejam-se os trabalhos de NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira Republica. São Paulo, E.P.U., MEC, 1981 e A educação na Primeira República, In: FAUSTO, Boris, dir. O Brasil Republicano.; sociedade e instituições. São Paulo, DIFEL, 1977. p. 259. De PAIVA, Vanilda. Educação popular e educação de adultos; contribuição à história da educação brasileira. São Paulo, Loyola, 1973. Especialmente os dois primeiros capítulos da segunda parte. O livro de NAGLE trata especificamente das reformas estaduais e no antigo Distrito Federal, p. 189. Sobre a realizada em Minas, no governo Antônio Carlos, vejam-se: FERREIRA, Maria Elizabete. Poder regional e modernização educacional: Minas (1927/28), dissertação de Mestrado apresentada junto à UnB, análise da significação intelectual e política do movimento pedagógico da década de 20; PEIXOTO, Anamaria Casassanta. Educação brasileira: anos 20. São Paulo, Loyola, 1983. Monografia muito bem documentada e, sob muitos aspectos, definitiva sobre o assunto.
Para uma exposição sobre o Modernismo em Minas, veja-se .DIAS, Fernando Correia. Gênese e expressão grupai. In: ÁVILA, Affonso. org. Modernismo. São Paulo, Perspectiva, 1975. A respeito do contexto sócio-econômico desse movimento literário, de IGLESIAS, Francisco. Modernismo: uma reverificação da inteligência nacional, no mesmo livro organizado por Affonso Ávila.
Para uma exposição sobre o Modernismo em Minas, veja-se .DIAS, Fernando Correia. Gênese e de NAGLE.
outros trechos do território da Colônia. Existiram ali arraiais e vilas que se articularam para a quase exclusiva atividade do extrativismo mineral. A população era fortemente heterogênea, composta de antigos falseadores paulistas, descendentes dos bandeirantes; reinóis vindos de regiões rurais ou não;cristãos-novos;baianos e outros nordestinos; índios e grande contingente africano empregados como escravos nas minas. O poder da Metrópole é absolutista e despótico, controlando severamente toda a produção e impondo o monopólio sobre o ouro. Manifesta-se, também, o poder religioso com a presença de uma Igreja tipicamente contra-reformista, que utiliza das pompas litúrgicas e paralitúrgicas como instrumento de proselitismo; a estrutura religiosa não é administrada, como em outras áreas, pelas ordens religiosas, mas pelas irmandades, representativas de diferentes estratos sociais e étnicos. Tais associações permitiram a afirmação e a competição entre esses estratos. A cultura intelectual exprimiu-se, com brilho, principalmente por meio de realizações artísticas em vários domínios, como a literatura, as artes plásticas, a música e também por meio do pensamento político. Tôda essa subes-trutura da sociedade colonial, de certa forma geratriz da nacionalidade, se exprimia através de marcada visão barroca do mundo.
A Ilustração, segundo excelente estudo histórico a respeito, surge no Brasil em pleno século XVIII. De diversos pontos geográficos, partiram pessoas, nascidas em terras brasileiras, para estudar na Europa.6 Faziam parte, portanto, de uma elite formada por um pequeno contingente de pessoas que possuía recursos para custear esses estudos. Dirigiam-se principalmente para Coimbra, em menor escala, para Montpellier (cuja universidade foi responsável pela formação de muitos médicos brasileiros), Edimburgo, Paris, Estrasburgo. Segundo o estudo de Maria Odila da Silva Dias, Aspectos da Ilustração no Brasil, o que caracterizava essa corrente, nesse contexto histórico, era o grande interesse em formar elementos práticos, com conhecimento de técnicas aplicáveis à vida quotidiana, inclusive na produção econômica. Assim, o estudo da mineralogia era motivado pelo seu possível uso na atividade mineratória;o de botânica, na agricultura, e assim por diante. Eram muitos os brasileiros que adquiriram esse saber prático na Europa e que voltaram para atuar na terra de origem, geralmente depois de terem produzido, para a obtenção dos respectivos graus acadêmicos, memórias, relatórios e teses: quase sempre contribuições práticas.
Se examinarmos esse rol de deslocamentos, estudos e escritos, chegaremos à conclusão de que foram relativamente poucos os letrados que saíram de Minas em busca de estudo e que para ali voltaram depois, com ânimo definitivo, a fim de aplicar seus conhecimentos. O fato se evidencia se comparamos os dados sobre Minas com os referentes a outras regiões. Quais seriam os motivos que o possam explicar?
Os letrados mineiros eram clérigos, altos funcionários da Coroa, bacharéis em leis que trabalhavam de forma autônoma. Havia letrados entre os proprietários de terras e de minerações e também entre os militares. Dessas categorias é que sairiam os componentes tanto da Arcadia como da Inconfidência Mineira. Os poetas conheciam bem literatura clássica, tanto que escreveram segundo cânones semelhantes aos dela. Os clérigos eram versados nos filósofos franceses da época, vinculando-se ao pensamento ¡luminista, conforme o demonstram estudos muito convincentes sobre o assunto.7
Estudo pioneiro e rico de informações é o texto de Maria Odila da Silva Dias, "Aspectos da Ilustração no Brasil". Revista do Instituto Histórico e Geográfico, n. 278, 1969.
Veja-se o texto clássico de FRIEIRO, Eduardo. O Diabo na livraria do Cônego. Belo Horizonte, Itatiaia, 1958.
Razão pragmática e razão humanística
Pode-se afirmar que a concepção ilustrada vigente em Minas, na segunda metade do século XVIII, era mais identificável com uma razão humanística do que com uma razão pragmática, que terá sido dominante, no mesmo momento, em outros centros da Colônia.
Os conhecimentos práticos, no sentido das aplicações de cunho tecnológico, não prevaleceram na região — e isso deriva de motivos econômicos. Eram eles, em certa medida, desnecessários: como predominava a mineração, a agricultura era pouco expressiva, operando-se o abastecimento de gêneros alimentícios com transporte a longas distâncias; por sua vez, a mineração se exercia segundo padrões técnicos rudimentares, às vezes até predatórios. Nessas condições, era pouco solicitada a intervenção dos conhecedores de técnicas com base científica.
Na vertente da razão humanística, assim dominante, havia uma propensão específica para o conhecimento político. Não a teoria pela teoria nem a especulação filosófica, mas o saber capaz de iluminar o entendimento da crise do tempo e suas refrações na região mineradora. Era, por assim dizer, um saber também prático, mas não pragmático no sentido, já exposto, do uso da técnica para intervenção na natureza e para a exploração dos recursos naturais. Alguns trechos poéticos podem inserir-se nessa tendência do apelo ao conteúdo político. Mencionem-se o poema épico Vila Rica, de Cláudio Manoel da Costa; e, com maior ênfase, pelo seu caráter crítico, as Cartas Chilenas, de lomas Antônio Gonzaga. Há ainda os escritos doutrinários, de que é o mais expressivo o Tratado de Direito Natural, do mesmo Gonzaga; citem-se ainda os escritos políticos de Silva Alvarenga. Quanto aos clérigos, alguns trataram de temas políticos em famosos sermões.8
É possível buscar as fontes dessa inclinação para o conhecimento político, tanto no exame da formação dos intelectuais da época como das condições estruturais do poder. então exercido na área. Os letrados mineiros formaram-se na perspectiva do liberalismo que se consolidava na Europa enquanto movimento social. Possuíam também um projeto liberal que se condensou no processo conspiratório da Conjuração Mineira. Verificou-se, depois, que esse era um liberalismo impossível e inviável naquele contexto de dominação colonial. Havia uma correspondência entre as aspirações dos Inconfidentes e certos pressupostos do Iluminismo (liberdade, individualismo, propriedade, tolerância), mas não havia correspondência entre esses postulados e as condições objetivas da realidade social.
As fontes do predomínio do conhecimento político, no período inicial da Ilustração em Minas, devem ser buscadas mais longe. Desde o início, a Capitania constituiu-se de forma conflituosa. O território de seu domínio, definido como juridicamente autônomo, com a separação do da Capitania de São Paulo em 1720, tinha sido objeto de acirrada luta na Guerra dos Emboabas. Instalado o aparelho fiscal de confisco do quinto (20% sobre a produção de ouro) repetiram-se os atritos entre as populações das vilas e os representantes da Coroa. O combate aos quilombolas, em certos trechos, como o atual Sul de Minas, representou um outro aspecto desses conflitos.
Ao mencionar tais lutas, ressalta-se que a preferência pelo conhecimento político não resulta apenas do perfil biográfico dos letrados, mas de motivações mais profun-
8 ÁVILA, Affonso. Da linguagem barroca ao discurso reto, dois sermões na Vila Real do Sabara. Revista Barroco, 5:(65). 1975.
das, como a instabilidade política, a insatisfação coletiva e a disputa dos territórios mais rentáveis. Nas estruturas sociais caracterizadas por conflitos de classe ou de grupos, o conhecimento político tende a manter-se dominante na hierarquia dos diversos gêneros de conhecimento.9
Outro ponto de interesse - pela sua originalidade — a ressaltar na forma assumida pela razão humanística no século XVIII em Minas reside no paralelismo existente entre os estilos de pensamento e os estilos artísticos. É plausível pensar-se numa evolução paralela, de um lado, do barroco ao rococó e, de outro, do absolutismo ao pensamento liberal.1 °
É tempo de argumentar que, na história de Minas, parece haver uma alternância, em termos de pensamento das elites e de propostas de política econômica, entre as mencionadas vertentes da tradição intelectual ilustrada: a da razão humanística e a da razão pragmática.
A segunda passa a predominar na passagem do século XVIII para o XIX e, principalmente, nas primeiras décadas deste último. É o tempo da reorientação das diretrizes econômicas na região que se esgotara com a decadência das minas. Dispersam-se os contingentes demográficos até então concentrados na área central; difundem-se num processo de ruralização e de exploração econômica das terras que formam a periferia do que é hoje o Estado de Minas Gerais. É o tempo da construção das primeiras forjas, da exploração do ferro e dos projetos do Intendente Câmara. O apelo à tecnologia está presente.
Depois de um período decadente de rotina econômica nos governos provinciais, durante a última fase do Segundo Reinado, Minas conhece novo momento de retomada da consciência regional, quando se instaura o federalismo. O movimento de afirmação do Estado, dentro do sistema federativo, toma impulso sob os dois governos de João Pinheiro, especialmente no segundo (1906-1908). Novamente a razão pragmática se faz predominante, impregnando, então, tôda a política econômica e as preocupações sociais da administração estadual. No capítulo desta monografia sobre o novo ensino público implantado na ocasião, ficará patente em que consistiu esse retorno vigoroso à razão pragmática, visando ao desenvolvimento econômico regional, com reflexos indiscutíveis nos projetos educacionais.
Confluência: a universidade
No governo Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (1926-1930) propõe-se executar uma explícita plataforma liberal. Realiza-se nova e profunda reforma do ensino. Dentro dela, como seu coroamento, a criação da Universidade de Minas Gerais (UMG), em 1927, antecipando-se de alguns anos à de São Paulo. Correspondia a iniciativa a uma aspiração muito antiga das elites intelectuais de Minas. Basta dizer serem muito fre-
9 GURVITCH, George. Problèmes de la sociologie de la connaissance. In: Traité de Sociologie II. Paris. PUF. 1960. p. 124.
10 Sobre estilos de pensamento, cf. MANNHEIM, Karl. Ensayos sobre sociologia y psicologia social. México, Fondo de Cultura, 1963, capítulo com esse título. A respeito do paralelismo aqui citado, veja-se SALES, Fritz Teixeira de. A ideologia dos intelectuais de Ouro Preto no século minerador. Revista do Conselho Estadual de Cultura, Belo Horizonte, n. 9, p. 33-42. Sobre a questão do liberalismo, tal como exposta aqui, cf. GOLDMAN, Lucien. La ilustración y la sociedad actual. Caracas, Monte Ávila, 1968.
quentes, ao longo do tempo e no debate do tema, as referências ao sonho dos Inconfidentes de criar uma universidade mineira.
Sabemos que a criação da antiga UMG (que se federaliza em 1949, tornando-se Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fazia parte do projeto político muito mais amplo de Antônio Carlos: o de lançar-se na conquista de espaço político no âmbito nacional. Cremos que esse empreendimento, de alguma forma, representou a convergência das duas vertentes da tradição ilustrada em Minas. Essa Universidade foi cuidadosamente pensada para ser algo mais — em termo de definição de suas funções sociais -que uma simples agregação de escolas preexistentes. E essa concepção só foi possível, a nosso ver, porque existiam condições intelectuais em Minas para que se concretizasse. Aproveitou-se a experiência humanística que vem do século XVIII e do pensamento liberal mais antigo, certamente assimilado pela Faculdade de Direito, fundada em Ouro Preto e transferida para a nova capital; e vem, do mesmo modo, da corrente católica, dos velhos seminários diocesanos e Colégio do Caraça. Aproveitou-se, por outro lado, a experiência tecnológica da razão pragmática: a que procede da Escola de Minas e da influência de Gorceix; da veterana Escola de Farmácia de Ouro Preto; das Escolas de Engenharia e Medicina fundadas em Belo Horizonte no começo deste século; e, ainda, dos centros de pesquisa biológica, como o Instituto Ezequiel Dias, por algum tempo uma espécie de filial do Instituto Manguinhos na capital mineira. É provável que se encontre, no discurso dos fundadores da UMG, alguma aspiração de que dessa confluência, especialmente da filosofìa e das ciências aplicadas, surgisse uma síntese na linha da razão científica.
As considerações precedentes, acerca do sentido básico da UMG, mereceriam melhor fundamentação e desenvolvimento, o que não se torna possível nos limites do presente texto. Ficam esboçadas como ingredientes da história cultural de Minas e como esclarecimento sobre as oscilações nela ocorridas. Sobre esse pano de fundo é que se destacará a figura de Firmino Costa.
Conteúdo dos capítulos e natureza do trabalho
O trabalho sobre esse grande educador procura, efetivamente, situá-lo no contexto da história recente de Minas, na moldura de dois momentos privilegiados, os dos governos João Pinheiro e Antônio Carlos.
Os capítulos que se seguem a esta introdução - intitulados uma Vocação para Lecionar e Escritos e Sentimentos - constituem uma apresentação panorâmica da vida e dos trabalhos de Firmino Costa: uma visão da carreira e das principais linhas de pensamento.
O capítulo O Novo Ensino Público, ocupa-se das diretrizes da administração de João Pinheiro e de seu Secretário do Interior, Carvalho Brito, adotadas para o fomento e modernização da agricultura em Minas, assim como da reforma do ensino primário e normal por eles promovida. Estuda-se ainda o background político e intelectual de João Pinheiro que o levou a optar por essas diretrizes.
No capítulo seguinte — Um Modo de Executar - examina-se como Firmino Costa, diretor do grupo escolar de Lavras desde 1907, tornou-se um propagandista entusiástico da nova orientação referente ao ensino fundamental. São apreciadas aí as inovações que introduziu e o seu traballio de complementar as instruções e as normas dos regulamentos do ensino.
Comunidade e Cidadania versa sobre a concepção de escola primária voltada, em
primeiro lugar, para a comunidade local que a envolve e para a formação, pelo trabalho, dos futuros cidadãos.
O capítulo O Magistério como Profissão, ocupa-se dos requisitos da formação do magistério do ensino fundamental, por meio de cursos normais bem estruturados.Relatam-se as experiências implementadas em Minas, com esse objetivo, pelo Professor Firmino Costa.
A seguir, trata o próximo capítulo - Formação Pedagógica e Paradigmas - da própria formação pedagógica desse educador mineiro, inteiramente autodidática, e da influência que sofreu de grandes mestres, do passado ou contemporâneo, como Pestalozzi, Horace Mann e John Dewey. Mostra ainda corno ele divulgou o pensamento desses educadores.
0 capítulo intitulado Tempos de Mudança refere-se às principais coordenadas do governo Antônio Carlos, no sentido de renovar a vida política do Estado e seu sistema educacional.
Examinam-se, a seguir, as contribuições de Firmino Costa para essa reforma, no próximo capítulo.
Caminhos da Linguagem analisa a contribuição altamente significativa que o mestre mineiro ofereceu aos estudos filológicos do idioma nacional e à metodologia do ensino da linguagem no curso primário.
O último refere-se aos tempos derradeiros de Firmino Costa, à lembrança que deixou em sua bela trajetória profissional e ao resgate, que se impõe, de sua memória.
como apéndices, reproduzem-se documentos importantes referidos no texto.
O caminho percorrido
A elaboração da presente monografia exigiu a leitura e a análise de todos os escritos de Firmino Costa que pudemos encontrar;cremos haver tido acesso à quase totalidade de seus trabalhos publicados. De todos os títulos relacionados na bibliografia, apenas dois artigos publicados no Almanaque Brasileiro Gamier (edições de 1905 a 1909) deixaram de ser lidos por nós, por não ter sido possível encontrá-los.
Pesquisamos coleções de jornais, especialmente o Minas Gerais (Belo Horizonte), órgão oficial do Estado, e outros periódicos, como a Revista do Ensino, nas coleções do Arquivo Público Mineiro. Tivemos acesso, igualmente, ao arquivo da família Firmino Costa.
Não temos qualquer pretensão de haver esgotado o tema a que nos propusemos. Nem seria cabível utilizar todo o material lido. Agimos com espírito seletivo, fazendo confluir a grande quantidade de textos consultados para o exame de algumas linhas principais encontradas na vida e na obra do educador estudado. Foi assim que se selecionaram fatos narrados e argumentos usados.
Esta monografia pode ser caracterizada como uma pesquisa historiográfica, no campo da história social, valendo-se a análise de um quadro de referência teórica de natureza predominantemente sociológica. Esse quadro não é exposto por antecipação, mas referido, como suporte, sempre que necessário.
Em alguns capítulos esteve mais presente a pesquisa pessoal do autor; é o caso do referente ao governo João Pinheiro; noutros, valeu-se o autor dos caminhos já abertos por obras alheias.
Em certas oportunidades não nos furtamos de citar largamente textos de Firmino Costa. Sempre que foi necessário senti-lo com precisão, preferimos o seu próprio pen-
samento a qualquer resumo ou paráfrase. O título da monografía corresponde bem à natureza do pensamento e da obra do
educador estudado. Sua aspiração foi sempre a de renovar as instituições escolares. Talvez a única restrição que se lhe possa fazer é a de que se iludia com a idéia de ser a escola ativa o ponto terminal de toda a renovação.
Mais do que renovar, ele inovou muitas vezes e acompanhou os esforços do poder público em momentos cruciais: as reformas de João Pinheiro e de Antônio Carlos.
Quis fazer da escola pública um espaço democrático, aberto a todos e marcado por relações internas não autoritárias; e eficiente, não no simples sentido da racionalidade abstrata, mas da prestação de serviço à comunidade, segundo as aspirações desta.
O leitor verá que outros temas relevantes serão aqui trazidos, mas todos permeados por essa idéia da renovação. Renovar a escola, pensava Fimino Costa, para torná-la acolhedora.
Vocação para lecionar
Tempo de formação
Nascido circunstancialmente em Niterói, Rio de Janeiro, Firmino Costa (por extenso, Firmino da Costa Pereira) morou em Lavras desde a infância, ali passando a maior parte de sua vida. Considerava-a, de fato, sua terra natal, a ela se referindo com ternura sempre que se lembrava de acontecimentos passados, tanto de sua vida pessoal, como de seu trabalho como educador. Eram seus pais o Capitão Antônio José da Costa Pereira e Dona Custódia Maria do Carmo.
Descendia, pela parte materna, de uma família do lugar, a dos Sales. A mãe era irmã de Firmino Antônio Sales, lider político local e pai de Francisco Sales, que foi presidente de Minas na Primeira República, no período de 1902 a 1906. Firmino Sales usava, quando moço, o título de tenente, no caso, de Guarda Nacional ; chegou a tenente--coronel no período republicano, mas continuou sendo tratado pelo posto inicial. Um irmão de Francisco Sales, Pedro, foi também dirigente político no município, durante vários anos, ocupando os cargos de presidente da Câmara e de chefe do PRM.'
A ascendência pelo lado paterno é menos conhecida. De todos os textos compulsados, de Firmino Costa e sobre ele, em apenas um se encontra uma referência expressa a seu avô paterno: num discurso acadêmico do Cônego Francisco Bueno de Sequeira.2
Seu avô, Karl Joseph van der Zuland, era holandês, nascido em 1779. Veio para o Brasil no início do século XIX, presumivelmente como negociante de pedras preciosas;é provável que sua chegada tenha-se dado em 1815. Fixando-se em Minas, casou-se com Ana Delminda Diniz Costa Pereira, natural da antiga localidade de Carrancas, nascida em 1790. O único filho do casal, Antônio José da Costa Pereira, veio ao mundo em 1820, em Santa Quitéria, atual Esmeraldas. Sabe-se pouco da vida do Capitão Costa Pe
reira enquanto morou na localidade de origem. Sua vida é perfeitamente conhecida, porém, desde que se transfere para Lavras.
Ligando-se à família Sales pelo casamento, foi comerciante por longo tempo. A lembrança que deixou era a de alguém arrebatado na juventude e severo na idade provecta. O autor da genealogia da família Costa Pereira registra concisamente que um dos filhos do Capitão, João Batista, "desapareceu de Lavras, em 1891, depois de um desentendimento com seu pai".
Os pais de Firmino Costa casaram-se em 1848.0 futuro educador mineiro nasceria
Para maiores informações sobre a família Sales, de Lavras, consulte-se o livro de CARVALHO. Daniel de. Francisco Sales: um político de outros tempos.
Cf. SEQUEIRA, Francisco Mário Bueno de (Cônego). Firmino Costa (discurso). Belo Horizonte, EMIL, s.d. A genealogia da família Costa Pereira foi elaborada recentemente por um sobrinho de Firmino Costa, o eng. Ismael Costa Pereira, que teve a gentileza de nos fornecer uma cópia. Fez acuradas pesquisas sobre seu bisavô, junto ao consulado holandês em Belo Horizonte, a fim de rastrear a existência dele no Brasil.
21 anos depois. Nasceram antes quatro de suas cinco irmãs: Josefina, Carminha, Ernestina e Francisca; todas elas vieram a casar-se. Nasceram depois dele os irmãos João Batista, Delminda, Abdon e Antônio José, este em 1878. O pai e a mãe de Firmino faleceram, respectivamente, em 1897 e em 1899.
Supõe-se que tenha sido relativamente rápida a passagem de Costa Pereira por terras fluminenses, de tal modo ele se encontrou sempre vinculado a Lavras. A razão da ida para tão longe foi a saúde da esposa. Dona Maria Custódia. Um médico ilustre, o Dr. Augusto Silva, a ser citado outras vezes no presente trabalho, aconselhou o marido a levá-la para o litoral a fim de que banhos de mar auxiliassem o tratamento de sua debilidade física. O conselho foi acatado. Durante a permanência em Niterói é que nasceu Firmino Costa, em 1869.3
Ele próprio casou-se aos 29 anos de idade (em 1898) com Dona Alice Bueno da Costa, de família tradicional do lugar. Era ela descendente de Amador Bueno, o célebre paulista, "por via de um dos filhos deste - Diogo Bueno da Fonseca".4 Este último e seu irmão Francisco participaram do grupo de paulistas que desbravou essa região mineira no início do século XVIII; são tidos como fundadores da capela inicial de Campo de Sant'Ana das Lavras do Funil.
Firmino e Alice tiveram oito filhos: Aguinaldo, Aurélio, Lucilia, Lívia, Júlia, Alice, Marta e Maria.5
O meio doméstico marcou bastante a personalidade de Firmino. A respeito de duas pessoas deixou testemunho eloqüente: o pai e o tio Firmino Sales. Sobre este último afirmaria: "Foi um homem de ação e de vontade. Educado na escola do dever e do trabalho, acostumado desde a infância a uma vida austera, sem conhecer nenhum dos vícios do mundo, ele imprimiu à sua existência um tal caráter de seriedade e de energia que a todos inspirava confiança e respeito. Se houvesse cursado estudos regulares, teria sido, o tenente Firmino Sales, um extraordinário homem de governo, com a prontidão de resolver e executar, com a sua admirável dedicação ao trabalho, com seu elevado tino administrativo."6
Um dos motivos de admiração era o fato de esse austero fazendeiro haver tomado a iniciativa de dotar Lavras, em 1884, de abastecimento de água potável. Além de ter ad-
Informação dada por Ismael Costa Pereira, em sua residência, em Belo Horizonte.
4 Cf. SEQUEIRA, Francisco Maria Bueno de (Cônego), Op. cit.
Aguinaldo Costa foi juiz municipal em Belo Horizonte; era bacharel pela turma de 1924, na Faculdade de Direito da mesma cidade; essa turma foi a mesma de Gustavo Capanema, orador da colação de grau. Aguinaldo Costa foi também professor no Rio de Janeiro. Casou-se com D. Maria Bueno Costa. Aurélio Costa era cirurgião dentista; exerceu por pouco tempo essa profissão, passando a ser procurador de partes; vítima de prolongada enfermidade, faleceu em idade avançada. Lucilia Costa, também já falecida, foi professora em Lavras e funcionária da antiga Escola de Aperfeiçoamento. Lívia Costa Gulikers, viúva de João Gulikers, é professora, aposentada como diretora de Grupo Escolar em Belo Horizonte. Júlia Costa Pirillo, funcionária aposentada, é viúva de Antônio Pirillo. Alice Costa, antiga servidora da Escola de Aperfeiçoamento, trabalhou longos anos na secretaria da Escola Técnica de Belo Horizonte, estando agora aposentada. Marta e Maria são falecidas; a primeira, doente, faleceu de acidente aos 12 anos de idade. De ligação anterior a seu casamento, Firmino Costa possuía outro filho, Samuel, também já falecido. Este foi amparado pelo pai, que o encaminhou na educação e no trabalho. Era pessoa altamente estimada em Belo Horizonte.
6 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 13, p. 3.
ministrado o serviço, com a ajuda do Capitão Costa Pereira, chegou a adiantar recursos à Câmara Municipal, para financiar as obras, sem cobrar quaisquer juros.
Quanto ao pai, a admiração de Firmino Costa se fundava em várias razões. Encarecia nele o amor ao trabalho e a dedicação à família, fazendo com que desse aos filhos a melhor educação possível à época, e o espírito comunitário: além das obras mencionadas acima, ajudou na construção de um cemitério. Ao lado dessas qualidades, possuía interesse e aptidão para os trabalhos manuais. Comerciante e pequeno agricultor. mantinha oficinas de marcenaria e selaria para os próprios serviços dos respectivos estabelecimentos. Foi observando esse trabalho que Firmino Costa haveria de inspirar-se para construir, mais tarde, as oficinas de formação técnica que instalou junto às salas de aula do grupo escolar de Lavras.7
Outro traço da personalidade do Capitão fascinava o filho:o das convicções políticas que sempre sustentou. Participara da Revolução de 1842, sendo com certeza o combatente mais jovem. Fracassado o movimento, fora levado para Lavras por um dos dirigentes revolucionários, o lavrense Jorge Silva, recomeçando a vida como simples lavrador. Num escrito da maturidade ou do limiar da velhice. Firmino alude ao pai como "liberal extremado" naturalmente em confronto com a moderação do filho.8
Falando a respeito da origem do pensamento político paterno afirmava, já em 1907, que ele, "ao doce aconchego da família preferia as provações, azares e perigos dos combates, onde ia servir suas idéias liberais". Acrescenta que, "com a delicada compleição, mal podia ele empunhar a carabina, e por ser ainda inexperiente da vida, dobrados sofrimentos deviam sem dúvida aguardá-lo nos campos de luta".9
Aduz, finalmente, sem mencionar o vínculo de parentesco que os unia: "Conhecemo-lo mui de perto: seu caráter era inquebrantável, constante e intenso
o seu amor ao trabalho, sincero e entusiástico o seu devotamento aos princípios liberais. E são essas as armas de confiança para alcançar na vida o verdadeiro triunfo. que consiste sobretudo em ser útil à sua família e ao meio social."1 °
O meio social a que se refere sempre o autor dessas linhas é, em primeiro lugar, a própria comunidade em que vive e sobre a qual voltaremos mais detidamente depois.
Firmino Costa realizou seus estudos preparatórios em São Paulo. Preparatórios, palavra hoje em desuso, correspondia ao ensino secundário da época. Signitica o termo, segundo o Novo Aurélio, "estudos prévios para efeito de matrícula nos cursos superiores e em alguns especiais". Na verdade, o educador lavrense nunca seguiu cursos superiores: parou nos preparatórios, talvez por causa dos encargos familiares.
Nao dispomos de informação precisa sobre a época desses estudos. Em 1889, aos vinte anos, encontrava-se em Lavras, tendo participado, em novembro, de manifestações populares de regozijo pela proclamação da República. Colaborava na imprensa local e pronunciou discurso sobre a implantação do novo regime. ' '
' Cf. SEQUEIRA, Francisco Maria Bueno de (Cônego). Op. cit.
COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 189.
9 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 15, p. 3.
Idem. ibidem, p.3.
11' VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 33, p. 2.
Exerceu funções públicas - de secretário da Cámara Municipal — na qual desempenhou também mandato de vereador. Antes de se tornar um mestre-escola, foi sobretudo comerciante, atividade que parece tê-lo marcado de forma indelével. É provável que, com a morte do pai e ao tempo do próprio casamento, haja assumido a atividade comercial.
Seus professores, em São Paulo, foram o arcediago Francisco de Paula Rodrigues, Augusto Freire da Silva e o Dr. John Melchert.12
O primeiro deles nasceu na capital paulista em 1840, sendo quase trinta anos mais velho do que seu aluno mineiro. Veio a falecer em 1915, aos 75 anos de idade. Ordenou-se, depois dos estudos, no Seminário Episcopal de São Paulo e obteve, em Roma. o título de doutor. Num chamado Curso Anexo lecionou Filosofia, Francês, Retórica, História Universal e História do Brasil. Que disciplina ou disciplinas terá cursado com ele Firmino Costa? Cognominado Padre Chico, esse sacerdote era um famoso latinista. Publicou textos religiosos e sermões, marcados todos pelo caráter apologético. Sua capacidade intelectual é muito elogiada pelos letrados paulistas que lhe foram contemporâneos. É provável que Firmino Costa haja estudado com ele Francês e História.
Outro professor, Augusto Freire da Silva, era natural de São Luis do Maranhão, onde nasceu em 1836. No Rio, estudou arte taquigráfica: pretendia ser taquígrafo, certamente no Parlamento ou em algum tribunal. Por influência de um amigo, transferiu-se. entretanto, para São Paulo, tornando-se subdiretor do Colégio Ipiranga. Exerceu ali o magistério. Mais tarde formou-se em Direito, passando à função de magistrado. Freire da Silva compôs diversos manuais didáticos na área da gramática e da linguagem.13
Firmino Costa refere-se a seu professor de Português, cujos ensinamentos considerava insuficientes, do ponto de vista metodológico. como a referência é ao autor de uma gramática, com quase tôda a certeza se trata de Augusto Freire da Silva. Diz o antigo aluno:
"Quando eu era estudante de língua portuguesa, tive um professor competente e solícito, autor de uma ótima gramática. Nem por isso eu me contentava com sua orientação didática, sentindo que havia alguma coisa de inconsistente nos pontos basilares de seu ensino.
Mais tarde, tornando-me professor de português, continuei insatisfeito com a orientação que podia imprimir ao ensino da língua. Consultei vários compêndios de metodologia, mas. sem atinar com o que faltava, permaneci nas minhas dúvidas.
Só ulteriormente consegui solucionar as dúvidas e daí surgiu a idéia de compor uma gramática baseada em um novo princípio.
Era este o sentido das expressões como verdadeira base do estudo da língua."14
É importante observar o espírito crítico que impulsionava, desde o início, sua sede de aprender: noutras palavras, a inquietação intelectual.
1 2 A informação sobre os professores de Firmino Costa em São Paulo consta de resumo biográfico divulgado pelo Museu de Lavras.
13 As informações biográficas de Francisco de Paula Rodrigues podem ser encontradas no Dicionário de Sacramento Blake, v. 1; também em Luis Correia de Melo, Dicionário de autores paulistas e no volume da Revista da Academia Paulista de Letras comemorativo aos 70 anos da instituição (texto referente à cadeira nº 11). Sobre Augusto Freire da Silva, consulte-se Blake, Op. cit.
14 Aula transcrita na Revista do Ensino, 4 (36), ago. 1929.
O hábito do estudo sistemático era anterior à experiencia em Sao Paulo; com ela, porém, consolidou-se definitivamente. Firmino Costa procurou, a partir de então, incutir esse mesmo hábito nas outras pessoas, amigos, alunos e colegas.
Numa de suas reminiscências, no fim da vida, fala do assunto: "Outrora, chegado de S. Paulo, onde terminara os preparatórios, convivi na minha
pequenina cidade com um amigo, nós dois ainda rapazes, e tanto lhe falei sobre o valor do estudo, que ele resolveu estudar consigo mesmo, tornando-se hábil advogado, sem jamais ter seguido o curso jurídico. Os nossos coloquios diários deram-lhe energia bastante para dedicar-se, sozinho, à ciência do direito."15
Analogamente ao pai, Firmino Costa formou sua mentalidade, na maior parte do tempo, por meio da leitura solitária. com a diferença de que os alicerces que foi erguendo sustentaram depois uma carreira intelectual. O pai, revelaria depois, desejava que ele seguisse a "carreira das letras"; acabou seguindo a de mestre-escola.1 6
A mais antiga lembrança que conservou da leitura foi a do contato, ainda menino, com um livro que o deslumbrou, Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano. "Estava chuvosa a noite" lembra, "e mandaram-me levar uma carta ao correio. Saí às pressas, sem fazer caso da chuva, e voltei logo para engolfar-me novamente no precioso romance".
O hábito da leitura foi-se tornando disciplinado, exigindo anotações, e foi-se ampliando quanto aos interesses intelectuais. Ao proferir uma aula em Belo Horizonte, no ano de 1929, recorre às anotações que fizera num livrinho de apontamentos bem antigo, isto é, de 1886, quando contava apenas dezessete anos de idade. Tratava-se de uma citação extraída das Memórias de Goethe, sobre o fato, ocorrido com alguém, da renúncia da vocação: "Só a humanidade inteira é o verdadeiro homem;o indivíduo, para ser feliz e contente, deve ter a coragem de sentir-se parte desse todo."
Embora a palavra hábito apareça, às vezes, na verdade era o prazer da leitura que buscava. Em muitas passagens de seus escritos, tal sensação se evidencia de modo inequívoco.
Se a leitura foi solitária — no sentido de ter sido autodidática -, nem toda a meditação em torno dos livros foi também solitária. Teve a sorte de encontrar, mesmo no fundo da Província, alguns amigos mais velhos e experimentados, com os quais pôde manter proveitoso intercâmbio. Eram pessoas que haviam acumulado sabedoria - mais do que simples conhecimentos - e a partilhavam com o então jovem conterrâneo.
Conforme ressalta, "sem haver alcançado diploma de curso superior", entregou-se com afinco ao estudo. Atribui isso, em grande parte, às suas relações, "desde a mocidade, com ilustres intelectuais, cuja conversação instrutiva" encaminharam-no para o amor das letras. Ao evocá-lo, está discorrendo sobre a importância da conversação, da palestra bem conduzida, para o enriquecimento do espírito. "Não fossem essas horas inolvidáveis que eles me concederam com o encanto e o fulgor de sua prosa, e eu de certo ter-me-ia deixado ficar indiferente ao convívio dos livros."17
Dentre as pessoas que ele menciona, estão o Dr. Augusto Silva, médico de grande competência e líder comunitário em Lavras, autor de livros inéditos de ficção e de tra-
COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 34.
16 Idem, ibidem, p. 189.
17 Idem, ibidem, p. 189-90.
balhos sobre assuntos religiosos; o professor Samuel Gammon, missionário norte-americano, fundador do Ginásio de Lavras, depois Instituto Evangélico e que hoje tem o nome de seu criador; e Monsenhor Aureliano Deodato Brasileiro, conhecido na intimidade como Padre Licas, antigo professor de Teologia e de Filosofia no Seminário de Mariana, dono de notável erudição, respeitado vigário de Lavras por muito tempo, vindo a falecer em 1936. ,8 como o médico Augusto Silva era espírita e estudioso dessa doutrina, pode-se dizer que Firmino Costa possuía, dentre seus amigos eminentes, pessoas de diferentes crenças religiosas. Sempre desenvolveu, realmente, uma atitude de tolerância e de respeito às crenças, às opiniões e aos sentimentos do próximo. A valorização da tolerância aparece, ao longo da vida, em muitos de seus escritos, assim como na palavra dirigida aos alunos e colegas.
Aos três amigos já maduros, mentores de sua juventude, brinda com elogios calorosos. Do Dr. Gammon, lembra a seriedade, a forte personalidade de professor e o amoroso conhecimento que possuía do Brasil. Do Dr. Augusto Silva, o espírito filantrópico, a dedicação à medicina e o empenho pelo estudo, o que o levava tanto a acompanhar os avanços da ciência quanto a dedicar-se à leitura literária. De Monsenhor Aureliano, além das virtudes pessoais, dentre elas a humildade, recorda o amor aos livros clássicos da língua portuguesa.19
Trajetória profissional
Façamos agora um resumo da carreira profissional de Firmino Costa, especialmente enquanto educador. Esse aspecto, e também os demais versados neste capítulo, são abordados em linhas genéricas, para serem retomados depois, em profundidade, nos capítulos subseqüentes.
Lembre-se que desenvolveu ele, desde muito cedo, o interesse pela leitura. O pai e os mestres de primeiras letras foram, certamente, os orientadores iniciais. Por sua vez, demonstrou sempre, como traço saliente, grande curiosidade intelectual. Esta voltavate para a paisagem imediata da terra natal, para a história de Lavras e, ainda, para a vida dos grandes homens.
A realização dos preparatórios em São Paulo e o início da leitura sistemática de clássicos portugueses e de escritores brasileiros permitiram-lhe aprofundar o estudo das questões de linguagem, um dos campos de seu permanente empenho. O outro campo foi o dos estudos pedagógicos. A primeira vertente de seu trabalho intelectual começa a ser lavrada à época dos preparatórios, como se anotou acima. Quanto à segunda, não será possível marcar com precisão a data em que aflora. como o debruçar-se sobre oste-mas da expressão provinha de um desafio metodológico, é provável que os dois campos intelectuais tenham sido tratados simultaneamente.
Quando o Dr. Samuel Gammon, em 1906, convida-o para dar aulas de Português no Colégio Evangélico, Firmino Costa já se encontrava suficientemente preparado para dar início a uma longa carreira docente. Dos resultados desse primeiro magistério, notadamente no setor da literatura, ele dará notícia num belo discurso de paraninfo dos alunos daquele colégio, alguns anos depois.
I 8 A referência a Eurico, o Presbítero, encontra-se em artigo na Revista do Ensino 4. mar. 1929.
Sobre seu amigo Padre Licas, veja-se o artigo Mons. Aureliano Brasileiro, que publicou no Minas Gerais. Belo Horizonte, 1936.
Daí para frente, até às vésperas de seu falecimento, em 1939, andou pelas salas de aula e pelos gabinetes da administração escolar. Quis ser apenas um professor.
Em janeiro de 1907, foi nomeado por João Pinheiro, com a chancela do Secretário do Interior, Carvalho Brito, para dirigir o Grupo Escolar de Lavras. Durante alguns meses esteve preparando as instalações do estabelecimento, sediado em dois casarões do século XIX. O Grupo, mais tarde chamado Firmino Costa, ainda hoje funciona no mesmo local.
Deu-se a inauguração a 13 de maio de 1907, num ambiente festivo. Tratava-se, afinal, do terceiro grupo escolar a funcionar em Minas. O diretor profere o principal discurso da solenidade: ressalta o significado daquele ato e pede a cooperação de todos, principalmente dos pais de família, para que a nova modalidade de ensino prosperasse de modo adequado na cidade, em benefício dos educandos e da própria vida social de Lavras.
O Dr. Gammon insistiu com ele para que dividisse o seu tempo entre a administração do grupo e sua atividade docente no Instituto Evangélico. A idéia não foi aceita, pois pretendia dedicar-se inteiramente, na fase inicial, às tarefas de implantação e consolidação da nova escola.
A formação pedagógica do professor lavrense era inteiramente autodidática. Uma de suas fontes, citada desde o início, era a revista especializada L'Educateur, que se editava em Lausanne, na Suíça. Ele a assinou e a consultava com freqüência. A informação do que se passava no mundo, inclusive nos meios especializados da educação, era obtida pela quotidiana leitura dos jornais. Firmino era notavelmente bem informado. Como indício do fato, recorde-se que mencionou e traduziu os princípios do escotismo, pouco tempo depois de haver o Coronel Baden-Pawell instituído esse movimento educativo na Inglaterra.
Nos primeiros números de Vida Escolar, o boletim do Grupo de Lavras, editado quinzenalmente e durante dois anos, aparecem outros sinais desse excelente nível de informação do diretor, cujas reflexões e relatos, muitos recolhidos depois em livro, começam também a ser publicados.
De 1907 a 1925, permaneceu como diretor do Grupo Escolar de Lavras. Nele se introduziram várias inovações como a caixa escolar, o ensino profissional ligado ao curso primário, a formação de normalistas rurais, a assistência médico-odontológica a alunos pobres, a arborização do terreno da escola, a biblioteca escolar, as festas comunitárias com a participação dos alunos e da população da cidade.
Simultaneamente e na medida em que os trabalhos de diretor do Grupo permitiam, Firmino Costa colaborou com os demais estabelecimentos de ensino de Lavras, especialmente com o Instituto Evangélico e com a Escola Normal Nossa Senhora de Lourdes. Organizou, para esta última, a prática profissional. As normalistas faziam estágio no grupo escolar sob a orientação do diretor. Lecionou também Literatura naquele estabelecimento mantido pelas Irmãs da Piedade.
A cada ano mandava ao Secretário do Interior o relatório do grupo. Alguns foram publicados em opúsculo; todos o foram pelas colunas do órgão oficial do Estado, o Minas Gerais. Esse e outros fatos fizeram com que Firmino Costa se tornasse conhecido nos meios pedagógicos e administrativos.
Com o falecimento, em 1924, do presidente Raul Soares, foi eleito Fernando de Melo Viana, antigo Secretário do Interior que exercia as atividades de advogado e de magistrado, para terminar o mandato. O novo governante conhecera o Grupo de Lavras deixando no respectivo livro de visitas uma impressão lisonjeira. Em 1925, convida
Firmino Costa para o cargo de reitor do internato do Ginásio Mineiro, que se reinaugurava em Barbacena. Durante cerca de dois anos, vive uma experiencia diferente: a de dirigir estabelecimento de ensino secundário para rapazes. Consagra-se a essa nova missão e obtém bons resultados.
Desde o início de sua carreira pedagógica vinha preocupado com o ensino normal e com a necessidade de profissionalizar o magistério. Nos tempos da Vida Escolar, começara a discutir o tema, focalizando sempre a necessidade da dupla formação dos candidatos à docência primária: nos conteúdos dos programas de conhecimentos a transmitir e na técnico-profissional.
Quando se instala o governo Antônio Carlos, o reitor do Ginásio de Barbacena é convidado a proferir conferências pedagógicas em Belo Horizonte. Quem o convida é o novo Secretário do Interior, Francisco Campos. Essa iniciativa era apenas o prelúdio de uma convocação a ser feita algum tempo depois. Firmino Costa é chamado a Belo Horizonte, onde permanecerá, com pequenos intervalos de ausência, até 1939, quando falece. Na capital, irá colaborar na reforma do ensino, debatendo os temas pedagógicos. Logo depois foi nomeado diretor-técnico do Curso de Aplicação da Escola Normal de Belo Horizonte, setor correspondente à parte de formação técnico-profissional das normalistas. Posteriormente, assumia a direção geral do estabelecimento, cargo em que permanece até sua aposentadoria compulsória, aos 68 anos de idade, em 1937. Nesse cargo exerceu ação inovadora do ponto de vista das técnicas pedagógicas e da organização escolar. Na mesma época, esporadicamente, leciona Português nos colégios Isabela Hendrix e Batista Mineiro, ambos de orientação evangélica, sendo o primeiro uma das mais antigas instituições mantidas pela Igreja Metodista no Brasil. No fim da vida, depois de aposentado como diretor da Escola Normal, exerceu apenas a função de inspetor de ensino no Colégio Isabela.
Na década de 30 torna-se um nome nacionalmente conhecido nos meios educacionais. É o período em que publica seus trabalhos mais importantes de filologia portuguesa e de doutrina pedagógica. Participa de reuniões especializadas; representa, por exemplo, o governo de Minas numa das Conferências da Associação Brasileira de Educação. A convite da Professora Helena Antipoff pronuncia conferência sobre Pestalozzi.
Traços de personalidade
Por todos os lugares por onde andou, deixou sempre recordação indelével. Nas reminiscências de antigos alunos e colegas, a invocação do mestre é sempre carinhosa.
Suas aptidões para o ensino — para o contato positivo com crianças, adolescentes e jovens — foram cuidadosamente cultivadas por ele. Energia, polidez, tolerância, perseverança, simplicidade: eis algumas virtudes que menciona com freqüência e que gostaria de ver cultivadas pelos outros. Ele próprio as possuía em alto grau e de modo consciente.
Sendo um defensor pertinaz da profissionalização do magistério, teria que buscar essa condição para si mesmo. Exercitava suas tarefas com a seriedade de um artesão concentrado sobre o trabalho. Isso o levava a uma disciplina constante nas leituras, nos contatos, nos horários de trabalho, provavelmente restringindo outras atividades sociais.
Sua pessoa é lembrada assim por um dos primeiros alunos a freqüentar o Grupo, fundado em 1907: "Estatura mediana, olhos azuis, cabelo alourado, Firmino era pes-
soa de humor sempre igual, parecendo feliz; mas, de vez em quando, uma nuvem de espessa melancolia ofuscava-lhe o olhar, tornando-o taciturno. Aparecia à porta de nossa sala, com as mãos cruzadas nas costas, lançava sobre a classe um olhar meigo e paternal e, sem dizer uma só palavra, desaparecia, rumo às outras classes. Ninguém, entre nós outros, sabia onde esse homem havia aprendido tanto nem onde havia haurido tamanha carga de afeto e carinho."2 °
Outros testemunhos falam de seu senso de humor. Fazia-o transparecer nas aulas e nas reuniões. Era um sentimento espontâneo, destituído de sarcasmo. Nas aulas de prática profissional, junto às normalistas de Lavras, fazia comentários jocosos sobre os programas escolares. Contava casos ocorridos na família, especialmente as peripécias comerciais de um irmão. Muito bem informado, pelo hábito da leitura diária de jornais, ilustrava sempre suas exposições com o relato de ocorrências interessantes.2 l
Dotado de grande dose de entusiasmo, era capaz de transmiti-lo a auxiliares e alunos. Assinale-se, ainda, o sentido do dever — nos planos familiar, profissional, da solidariedade humana - como atributo muito arraigado em seu espírito. Nesse sentido, sua trajetória de servidor público foi um constante testemunho. Por vezes, esse traço cor purificava-se em verdadeiro senso de missão a cumprir.
Sua modéstia — ausência de presunção — não o impedia de aquilatar bem suas qualidades pessoais, seu valor. Por fim, o espírito independente diante do poder e da riqueza.
Outras características serão postas em evidência depois. Foram as que marcaram seus últimos dias de vida.
SEQUEIRA, Francisco Maria Bueno de (Cônego), Op. cit., p.6.
Dentre outras fontes, o diário da estagiária (normalista do Colégio N. Sra. de Lourdes), d. Judith. Correa Dias.
Escritos e sentimentos
A obra escrita
Proporemos, neste capítulo, um panorama dos trabalhos escritos por Firmino Costa. Publicou diversos livros desde 1913 até meados da década de 30. Deixou dois volumes inéditos.1 Sobre cada um dos volumes serão oferecidos os elementos informativos básicos, aprofundando-se o exame de certos aspectos nos capítulos subseqüentes.
Antes da divulgação do primeiro livro, colaborou com a imprensa de Minas, tanto na terra natal, como em Belo Horizonte. Os primeiros textos vindos a público surgiram, certamente, na imprensa de Lavras.
Destaque-se, nesse sentido, a criação do periódico Vida Escolar. Publicou-se, durante dois anos, circulando apenas nos períodos letivos. Saíram 34 números, entre o dia 19 de maio de 1907 e o dia 15 de novembro de 1908. A assinatura anual custava dois mil réis, com pagamento adiantado. Constava o jornal de quatro páginas, havendo as seguintes seções fixas referentes a acontecimentos, locais ou não, de interesse do ensino: notícias; comemorações; história de Lavras; grupo escolar; corografìa de Lavras. Além disso, publicava comentários pedagógicos. Estes eram quase sempre de autoria do próprio diretor do jornal e do Grupo; alguns foram assinados por outras pessoas: os professores Jacinto de Almeida e Suzana Alvarenga e o deputado Zoroasto de Alvarenga. Vários escritos de Firmino Costa aí editados foram reproduzidos depois em seus livros sobre questões pedagógicas. Alguns exemplos: Disciplina Escolar, Freqüência Escolar, Trabalhos Manuais, A Bem da Infância, Ensino Profissional, A Pressa, Vosso Filho. Curioso documento foi estampado pelo pequeno jornal: uma carta do Visconde de Castilho a Camilo Castelo Branco a respeito dos problemas da instrução pública; o documento era então inédito. uma cópia foi cedida a Firmino Costa por seu conterrâneo Gastão Vilela.2
Também na Vida Escolar saíram os primeiros relatórios, que se tornariam famosos, dirigidos ao Secretário do Interior de Minas, a respeito de sua ação à frente do grupo escolar. Davam conta, freqüentemente, das iniciativas e inovações postas em prática, assim como veiculavam opiniões do diretor do estabelecimento a respeito de política educacional.
No Minas Gerais, encontramos um artigo, de 1908, a respeito das mudanças do programa da cadeira de Português no Ginásio Nacional, o Pedro II, que muda de nome no início do período republicano, para voltar depois à antiga denominação. O artigo contém críticas à nova proposta do programa.
Em 1913 edita, pela Imprensa Oficial do Estado de Minas, um volume intitulado O
Segundo o informe biográfico preparado pelo Museu de Lavras, Firmino Costa deixou dois volumes inéditos: Memorial de linguagem c Edifício da vida.
2 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 9/10, p. 2.
Ensino Popular: Vários Escritos. Compõe-se de 108 páginas. O prefácio se abre com um pensamento de Emerson: "Não tendes que contar-me
em palavras e por títulos os livros que haveis lido. Deveis fazer-me sentir que página haveis vivido." Queria dizer que as páginas colocadas ante o leitor eram resultado de uma prática ao longo dos seis primeiros anos de funcionamento do grupo escolar. O cerne do livro, afirma, reside no relevo que dá "à instante necessidade de cooperação do povo e do governo para tornar a escola primária a instituição mais bem organizada e querida no Brasil. Relatará os esforços para uma educação completa, preparando os alunos para a vida profissional e a vida social".3
Abrange o volume alguns textos já divulgados na Vida Escolar: o discurso inaugural do grupo, o relatório do ano de 1912 e outros, escritos especialmente para o volume. uma das novidades é uma referência ao nascente movimento escotista, traduzindo-se o decálogo dos escoteiros.
Pode-se dizer que O Ensino Popular contempla aspectos do conteúdo das principais disciplinas do ensino elementar —Português,Geografia, História, Trabalhos Manuais - e também a metodologia considerada mais pertinente à transmissão desses conhecimentos às crianças. O autor trata ainda do ambiente da escola, das atividades extra-classe e da avaliação escolar. Começa a discutir a formação profissional do professor primário, tema que irá desenvolver durante toda a sua carreira docente.
O livro interessava aos professores em geral, especialmente aos mineiros, e também às autoridades do ensino. A principal utilidade desses escritos residia na discussão do lado prático da implantação dos novos dispositivos legais introduzidos (1906) pelo governo João Pinheiro. Firmino Costa começava a "dar o tom" da reforma. Ganham relevo os relatos de suas experiências didáticas (aula utilizando material da imprensa, por exemplo), de administração (implementação da Caixa Escolar), além de questões mais amplas, como as do método intuitivo e do ensino simultâneo, discutidas à luz de atenta observação da realidade.
Em 1920, ainda pela Imprensa Oficial, lança sua Gramática Portuguesa. Resultante de pesquisa eminentemente pessoal, o livro trazia alguns modos novos de perceber a língua falada e escrita no Brasil. Sob mais de um aspecto, trata-se de uma concepção original de gramática. Não se limitava a expor doutrina ou doutrinas sobre a língua culta, mas buscava inferir normas e tendências com base em abundante exemplificação, retirada dos clássicos portugueses e de autores modernos, especialmente brasileiros. Nem todos eram consagrados. Firmino Costa chegou a citar textos inéditos (de ficção) de seu conterrâneo Augusto Silva, considerado pelo gramático como um bom estilista. Desse, assim como dos demais livros dedicados à linguagem, faremos análise crítica mais detida no capítulo correspondente a esse assunto.
Terceiro de suas obras, o livro O Ensino Primário reproduz muitos dos temas anteriormente versados; é quase uma edição ampliada de O Ensino Popular, onde acrescenta algumas matérias novas. uma das idéias aí contidas, a ser depois desenvolvida em livro próprio, é a do calendário escolar:em cada dia do ano, lembrava-se, na escola, uma efeméride correspondente à data, acompanhada de um pensamento que houvera sido enunciado pela personalidade histórica evocada. Lembravam-se, de preferência, os feitos do mundo intelectual e do mundo científico; às vezes os do mundo político; raramente ocorrências militares. O Ensino Primário (Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1921) encerra-se com o calendário escolar do Grupo de Lavras. Esse texto já fora enca-
COSTA, Firmino. O ensino primário, p.3.
minhado à Secretaria do Interior como anexo ao relatório de 1916. Consoante se verá depois, incluem-se no calendário muitas efemérides lavrenses, episódios e acontecimentos de interesse escolar ou comunitário. O livro consolida as principais idéias de Firmino Costa sobre como conduzir, no ambiente republicano e provinciano, a educação fundamental. como seria lógico, o autor não se restringe apenas a aspectos didáticos da sala de aula do curso primário, mas se preocupa intensamente com a preparação dos professores para essa área do ensino, isto é, as normalistas.
No final da década de 20, com sua transferência para Barbacena e, logo depois, para Belo Horizonte, Firmino Costa amplia o raio de abrangência de seus interesses intelectuais básicos. Realiza freqüentes palestras versando tanto temas pedagógicos como filológicos. É levado a refletir sobre política educacional num período de renovação política, participa ativamente do comando do ensino normal em Minas e sedimenta suas idéias sobre metodologia do ensino da linguagem.
Publica vários livros na primeira metade da década de 30, com exceção de um, todos em São Paulo, pela Companhia Melhoramentos, inclusive na série Educação Brasileira. A exceção foi um opúsculo sobre Pestalozzi, editado pela Imprensa Oficial de Minas. O estudo da vida e da obra do grande educador suíço representa uma constante na trajetória de Firmino Costa. O mesmo texto seria reeditado em 1965, por iniciativa da professora Helena Antipoff, que o faz anteceder de expressivo prefácio.
Na mesma Unha da Gramática Portuguesa — com idênticas motivações didáticas — organizou um Vocabulário Analógico (São Paulo, Melhoramentos, 1933), precursor de todos os outros trabalhos no gênero que se editariam depois em português. Inclui considerável variedade de assuntos geralmente pouco estudados e que aparecem à luz de abundante exemplificação, colhida também nos escritos clássicos e modernos.
Editou ainda o volume Léxico Gramatical. Semelhante a outros livros editados no Brasil (João Ribeiro, Antenor Nascentes, Vitorio Bergo, Celso Luft), visa a apresentar o repertório conceituai da gramática em forma de verbetes ordenados por ordem alfabética. O prefácio desse livro é importante para se compreender sua concepção dessa problemática; nesse texto, responde a críticas que foram feitas à sua Gramática Portuguesa.
Na mesma época edita Aprender a Estudar, dedicado a seu filho Aguinaldo. Contém reflexões mais recentes, oriundas das práticas vividas em Belo Horizonte, ao lado de preocupações mais antigas, ou melhor, de sempre - que sempre povoaram seu espírito. Ao contrário do que se possa supor à primeira vista, não se trata de um manual de técnicas de estudo. O título do livro é o mesmo do primeiro ensaio; há outros com a mesma inspiração de transmitir a experiência de estudo do próprio autor: o uso da biografia, o arquivo do aluno, a leitura. Contém ainda variada matéria constituída de trabalhos (ensaios e notas) publicadas na Revista do Ensino, no final da década de 20 e início da de 30, e também no Minas Gerais. Um deles é ensaio de maior fôlego sobre a escola ativa e sua aplicabilidade ao meio social brasileiro. uma das preocupações demonstradas refere-se ao esforço do educador na conciliação entre liberdade e disciplina do educando. Demonstrando ter pleno domínio dos conteúdos programáticos, o autor nos oferece uma aula sobre o corpo humano. É claro que um texto desse tipo tem endereço certo: destina-se a apresentar subsídios aos professores jovens.
O livro se encena com um belo capítulo, Recordação, infelizmente curto, narrando impressões e discorrendo sobre influências sofridas pelo autor durante sua formação. Evoca com ternura a esposa falecida anos antes; lembra o próprio pai e de como recebeu dele a inspiração para montar as oficinas de trabalho no Grupo de Lavras; re-
corda, por fim, os amigos mais velhos (Dr. Augusto Silva, Dr. Gammon, Monsenhor Aureliano), que tanto marcaram o rumo de sua vida.
Publicaria ainda o pequeno volume Calendário Escolar, em que reproduz o calendário que havia construído e onde demonstra sua formação enciclopédica. Exclui dele as efemérides de Lavras. Precedem-no capítulos breves de introdução em que esclarece o sentido da iniciativa e como usar esse instrumento didático, referindo-se a Félix Pécaut, pedagogo francês que introduzira essa técnica didática. Firmino Costa tinha a ilusão de que esse instrumento pudesse ser oficialmente adotado no Brasil. O livro é dedicado "à memória de Erasmo Braga, grande e inolvidável amigo".
Obteve maior repercussão que o precedente o livro Pela Escola Ativa (1935), um dos muitos trabalhos aparecidos no Brasil como instrumento de divulgação da nova corrente pedagógica que animava os especialistas e professores brasileiros. O primeiro capítulo, Escola Nova, o mais extenso, dá-nos uma visão sintética dos princípios dessa orientação, notadamente por meio do exame do pensamento de John Dewey, além de expor, com espírito prático, a aplicação possível, no Brasil, dessas coordenadas teóricas. O capítulo seguinte, igualmente de relevo, é a comunicação feita, como representante do governo de Minas, à Conferência da Educação; denomina-se o texto As Grandes Diretrizes da Educação. O volume, como os precedentes (da área pedagógica), abrange reflexões pessoais sobre problemas práticos do ensino primário e normal; destaque-se o capítulo O Ensino da História, que exprime a visão de que o aluno deve compreender a realidade histórica a partir de sua experiência existencial imediata. Outro capítulo relevante, do ponto de vista biográfico, é o discurso inaugural do Ginásio Mineiro em Belo Horizonte. Pronunciou-o ao tomar posse do cargo de reitor do estabelecimento, em 1925. como curiosidade, acrescente-se a tradução feita pelo autor dos Direitos da Criança, um código proposto, à época, por médicos norte-americanos.
Vale ressaltar a dedicatória a ser lida no pórtico da obra: "À memória de Alice, ofereço, dedico e consagro este livro.
Ele encerra também dedicatórias parciais, feitas a estabelecimentos educativos, de que tenho sido diretor, professor ou inspetor, aos quais devo muitas provas de estima e consideração. Um deles, o primeiro grupo escolar de Lavras, concedeu-me a honra insigne de escolher meu nome para seu patrono. O outro, que é a Escola Normal de Belo Horizonte, eu considero como o grande prêmio final de minha carreira de educador." As outras dedicatórias, "parciais", são aos seguintes educandários: Colégio Carlota
Kemper (Lavras), Ginásio de Barbacena, Escola de Aperfeiçoamento (Belo Horizonte), Colégio Isabela Hendrix (Belo Horizonte), Curso de Aplicação (Belo Horizonte), Instituto Gammon (Lavras).
Nesse período final de atividade, publicou seu livro mais organicamente construído, o único que não é simples justaposição ou colagem de textos anteriormente escritos, mas uma reelaboração sistemática do pensamento do autor sobre uma área fundamental da aprendizagem. O livro, intitulado como Ensinar Linguagem no Curso Primário, é apresentado por prefácio compreensivo e lúcido de Lourenço Filho. Dedica-o o autor a seus amigos Noraldino Lima e Mário Casassanta "eméritos servidores da educação nacional".
Firmino Costa consegue aí fazer confluir harmoniosamente as duas motivações de seu espírito: o interesse pela comunicação verbal e o empenho em transmitir conhecimento com a participação ativa dos educandos. A linguagem, numa visão longamente vivida e sedimentada pelas idéias de Dewey, aparece pelo lado instrumental. Mas o lado
estético nao é preterido: o cultivo literário era vital para o antigo adolescente de Lavras fascinado pela leitura dos clássicos portugueses. como Ensinar Linguagem no Curso Primário é um livro escrito em estilo sóbrio, eficaz e elegante. A finalidade é "dar ao aluno capacidade de exprimir seu próprio pensamento em palavras suas, que demonstrem conhecimentos e observações por ele adquiridos de modo consciente".
Idéias políticas, sentimentos religiosos
Dos setenta anos que quase completou (morreu três meses antes de alcançá-los), Firmino Costa viveu vinte deles no periodo monárquico e cinqüenta no republicano. Acompanhou diversas mudanças políticas que tiveram reflexos no campo que particularmente lhe interessava: o da educação. Foi, assim, uma testemunha qualificada dessas oscilações; no plano regional, e isso ficará patente neste trabalho, influiu bastante e de modo positivo no pensamento pedagógico.
Tinha uma visão liberal do mundo. É muito provável que a tradição doméstica lhe tenha pesado para que houvesse adotado tais idéias. O adjetivo liberal aplicado a personalidades da vida pública e a atos das pessoas nas relações sociais, tinha uma conotação elogiosa quando ele o usava.
Quanto a Minas, era essa a tradição que prezava. Assim o transparece, em sua crônica de Lavras, ao referir-se à participação dos líderes locais na Revolução de 1842; ou, noutro plano, em suas referências ao papel de João Pinheiro na vida política do Estado.
É evidente que se tornou republicano. Encarou com esperança a implantação do novo regime, tal como ocorreu a muitos intelectuais de sua geração. Admirava, como bom ilustrado, as qualidades de Dom Pedro II, mas era também muito crítico no que tange à qualidade do ensino existente antes da República. Especialmente criticava o caráter autoritário das relações professor/educando na velha escola brasileira.
Na perspectiva ilustrada, atribuía papel político decisivo à escola. "É ela, a instrução, e não as formas de governo, que implanta a verdadeira democracia, fazendo vicejar a justiça e a liberdade! Vede-a fulgurante lá no pequenino reino da Dinamarca e na pequenina república da Suíça, irradiando para o mundo mais torrentes de luz, muito mais do que tôda a claridade esparzida pelo maior império da Europa ou da Ásia! Vede-a, através da história da humanidade, na sua forma genuína que é a educação popular, séculos e séculos desprezada, apesar do ensino público e intuitivo de Jesus, 'o mestre único', como lhe chamou Pestalozzi, vede-a, a escola do povo, que ressurge ao bafejo da Reforma e da Renascença, e com o seu farol triunfante por entre mil tropeços, vem rasgando e varando as trevas, abrindo caminho para a civilização, que hoje tanto nos maravilha e deslumbra com seus inventos assombrosos!"4
Esse trecho inclui-se num discurso, de paraninfo, lido no começo deste século. O tom candente de eloqüência, raro em textos de Firmino Costa, exprime bem o seu entusiasmo pela instrução pública e pela sua perspectiva histórica.
Há fortes indícios de que tenha sido igualmente um militante abolicionista. Essa atitude da mocidade terá deixado suas marcas. Mostrava-se muito atento ao destino das crianças de cor no campo do trabalho. Revoltava-se contra o tratamento cruel que muitas pessoas davam aos seus protegidos (meninos empregados para serviço doméstico) nas casas de família em Lavras. Citou, tirando dele uma lição, o comentário de Rui
COSTA, Firmino. O ensino popular, p. 104.
Barbosa sobre as agruras sofridas pelo poeta negro Luis Gama.5
Firmino Costa participou, de algum modo, do entusiasmo ingênuo com que se encarou a instrução popular no início da República. Essa tendência era temperada pelo espírito crítico e pelo conhecimento que possuía da realidade social. Mesmo assim, suas opiniões e sua prática eram, como se exporá depois, muito condicionadas pelo seu horizonte existencial, o de uma comunidade e de uma sociedade caracterizadas pela predominância de uma estrutura agràrio-mercantil.
Partilhava da ojeriza ao analfabetismo — visto, pelos letrados, como estigma que atingia os iletrados -, sentimento difuso na Primeira República e sempre presente em épocas posteriores. Mas o educador de Lavras estava longe de adotar uma percepção superficial do assunto. O que desejava mesmo era tornar a educação popular um instrumento da cidadania e a linguagem, uma ferramenta para a vida. Nunca vislumbrou qualquer efeito mágico na alfabetização.
No processo político a consciência do professor era tida por ele como extremamente importante: "Desde o catedrático de uma universidade até o mestre de uma escola primária, é em geral o professor que mais influi, por meio de seus discípulos, na vida nacional. Entregai aos reacionários as escolas de vossa terra, e vereis que dentro em breve ela retrocederá mais ou menos aos tempos coloniais; se puserdes, porém, o ensino a cargo de espíritos liberais e patrióticos, em pouco tempo vossa terra avançará no caminho do progresso."6
O entendimento do papel político do mestre não lhe indicava o caminho da ação partidária. Embora tenha exercido a vereança na mocidade, nunca depois se envolveu com partidos políticos. Pelo contrário, entendia que sua consagração ao trabalho educativo, no grupo escolar, devia levá-lo a certo distanciamento de partidarismos. Não obstante, suas ligações de família com os Sales, notadamente Pedro Sales, induziam muitas pessoas a identificá-lo com uma corrente partidária local e, em decorrência dessa suposição enganosa, a atribuir caráter político a muitas de suas atitudes meramente administrativas. Sofreu várias incompreensões derivadas dessa falsa visão tomada por algumas pessoas. Pretendia um relacionamento impessoal e fundado tão-sòmente no interesse público com a Câmara do município, que o ajudava em determinadas iniciativas.
Distanciamento semelhante era postulado em relação às correntes religiosas. Nesse ponto, seu pensamento, derivado das próprias vivências, coincidia com a atitude do governo João Pinheiro, inspirada no positivismo, de preconizar a laicidade do ensino público.
No discurso inaugural do grupo escolar, em 1907,depoisde examinar minuciosamente as funções sociais de uma escola pública, afirmava aos pais de família presentes: "Em uma coisa, porém, a mais delicada de todas, não intervirá a escola: essa ficará ao vosso inteiro cuidado, sob vossa exclusiva responsabilidade — a religião de vossos filhos. A constituição republicana assim o quer, e o Grupo de Lavras, obediente ao preceito constitucional, respeitará as crenças religiosas de cada qual, não desprezará as leis
"Um pobre pretinho, por exemplo, freqüentava o Grupo, onde ia aprendendo com vantagem. quando sua protetora o tirou da escola para ele ficar em casa pajeando criança. Por essa forma. com umas roupinhas baratas e com uns pratos de comida, dá-se ao coitado do pretinho uma proteção valiosíssima, fazendo dele um analfabeto". (Vida Escolar, n. 16, 15 dez. 1907).
COSTA, Firmino. O ensino popular, p. 59.
de Deus, mas deixará a cargo das famílias o ensino religioso."7
Tinha Firmino Costa uma visão secular da educação; sendo uma visão pestalozziana, inspirava-se, de modo profundo, em motivações cristãs ou, se se quiser, evangélicas. Pestalozzi, como se verá, não era apenas o introdutor do método intuitivo do ensino; era, para esse nosso mestre-escola da Província, sob muitos aspectos, um modelo de vida.
Qual era, afinal, a religião professada por Firmino Costa? Se conversarmos com muitos de seus antigos colegas e seus contemporâneos, a impressão que se colhe é a de que fosse protestante. A afirmação reveste-se de certo sabor de novidade pelo contraste estabelecido entre essa possível filiação religiosa e o padrão mais comum entre os educadores mineiros tradicionais: estes, na maioria dos casos, a esse tempo, eram católicos, geralmente do tipo apologético;como minoria, os agnósticos.
Do ponto de vista pessoal e profissional. Firmino Costa esteve próximo dos educadores evangélicos. Havia certas afinidades, sendo a mais destacável delas o espírito pragmático. Há uma palavra sua, num artigo, em que atribui ao Dr. Gammon a influência no sentido de experimentar, por intuição, procedimentos educativos mais tarde hauridos, com fundamentação teórica, em Dewey. Considerava, ainda, que a influência dos missionários norte-americanos, ali aportados desde 1893, havia sido muito positiva para Lavras, do ponto de vista pedagógico, pela quebra da rotina e pela introdução de novos processos educativos. Declarava mesmo que o progresso de Lavras muito devia àqueles educadores. Essa aproximação o levou, anos depois, a lecionar nos colégios be-lo-horizontinos Isabela Hendrix e Batista Mineiro.
O conhecimento, mais tarde, do escritor francês, famoso moralista protestante do começo do século, Charles Wagner, levou Firmino Costa a utilizá-lo como fundamento de ética social em suas aulas de metodologia da educação moral e cívica.
Um dos filhos, Aguinaldo Costa Pereira, advogado e professor por muito tempo radicado no Rio, converteu-se à Igreja Presbiteriana, ainda em Lavras, tornando-se crente fervoroso. Certamente essa decisão influiu sobre o restante da família. No sepultamen-to de sua mãe, Dona Alice, essa Igreja fez-se representar pela presença de um pastor. Ela freqüentava templos dessa denominação religiosa, mas não chegou a fazer profissão de fé.
Firmino Costa internou-se, em 1937, quando gravemente enfermo, no Hospital Evangélico do Rio de Janeiro, talvez por interferência do filho ou de outros amigos.8
Seu ex-aluno. Cônego Bueno de Sequeira, tem um depoimento que, a nosso ver, simplesmente confirma a solicitude do velho professor na prestação de serviços em sua comunidade: "Quando era costume levar-se a comunhão aos enfermos processio-nalmente, cerimônia a que só podiam comparecer homens, vi-o muitas vezes, de opa vermelha, acolitar o sacerdote até a casa do doente."9
Discurso inaugural. Vida Escolar, n. 2, 15 maio 1907, reproduzido em outros locais. Trata do mesmo assunto no artigo Freqüência do Grupo, publicado também na Vida Escolar.
Cartas são datadas por ele do Rio, em 1937, como uma enviada a Cristiano Machado, Secretário da Educação de Minas, lembrando a comemoração do 309 aniversário do grupo de Lavras; encontramos também uma dedicatória a Agripino Grieco, no exemplar de Vocabulário Analógico que lhe foi oferecido, datada do Rio em 1937; este volume se encontra agora na biblioteca da UnB, em Brasília.
9 SEQUEIRA, Francisco Maria Bueno de (Cônego), Op. cit.
Esse mesmo depoimento afirma que, "privado de sólidos conhecimentos filosófìcos e teológicos, pouco versado nas sagradas escrituras, meu saudoso diretor Firmino Costa, amiúde, flutuou e vacilou no terreno lutulento que palmilhamos rumo à vida futura", para acrescentar sempre haver notado nele "forte tendência para a doutrina carde-cista (sic), mas nunca entrou em polêmica nem procurou fazer proselitismo, o que prova a debilidade de suas convicções religiosas". Lembra ainda o quanto era tolerante, como estimava três amigos ilustres de credos religiosos diversos entre si e como exprimia um profundo sentimento ecumênico.
0 próprio Firmino assim resume a sua posição espiritual, depois de referir-se ao liberalismo do pai: "Quanto aos outros amigos, é de notar que um deles abraçara o espiritismo, outro seguira o protestantismo, e o terceiro professara o catolicismo. Nenhum me transmitiu a sua religião, não obstante consagrar-lhes eu a mais sincera admiração c amizade. Que teriam eles inspirado ao meu espírito? Quero crer que foi o reconhecimento do valor pessoal, onde quer que ele se encontre. Este sentimento de justiça constitui para mim o essencial, tudo mais é acessório, por muito importante e venerável que seja."10
Talvez se possa sumarizar, dizendo que ele foi um ser humano tangido por intensa espiritualidade, condensada no desapego aos bens materiais, dotado de perspectiva secular da vida social, às vezes temperada de ceticismo, mas sempre com uma indelével inspiração cristã não-dogmática.
Apenas um professor
Ao longo de sua extensa carreira profissional, quis ser apenas um professor. Nada mais do que um mestre-escola. Na verdade, foi um mestre-escola altamente qualificado, com vasto conhecimento dos conteúdos das disciplinas lecionadas no ensino fundamental e no ensino normal.
Na área pedagógica foi um perfeito autodidata. Nenhum conhecimento sobre educação lhe foi transmitido em cursos regulares. Muito poucos obteve ouvindo palestras e aulas de colegas.1 '
As afirmativas acima não significam que a atividade docente tenha-se limitado à sala de aula propriamente dita. De 1906, quando começa a lecionar no Instituto Evangélico, até aposentar-se, a 28 de dezembro de 1937, passou todos os seus dias de trabalho entre as paredes de escola ou perante classes de alunos ou nos gabinetes de diretor ou pelos corredores e saguões, acompanhando a vida escolar sob sua responsabilidade. Mesmo depois da aposentadoria como diretor da Escola Normal continuou, ainda, por pouco de tempo, no trabalho de inspetor escolar junto ao Colégio Isabela Hendrix.
Os dois marcos formais da carreira de professor público — do início e do término -são decretos dos governantes de Minas. O presidente João Pinheiro o nomeia diretor do Grupo de Lavras e o governador Benedito Valadares o aposenta por ter atingido o limite da compulsória, então 68 anos.
Num questionário preenchido na década de 30 (sem data. mas talvez de 1934 ou 35), ele fornece todas as informações sobre sua vida funcional. A ficha foi distribuída
COSTA. Firmino. Aprender a estudar, p. 188.
Aconselhava os professores a assistirem às aulas dos colegas, num espírito de cooperação. Ele mesmo assistiu a conferências de João Toledo, em Lavras, no Colégio Carlota Kemper.
aos servidores para que preenchessem os claros. Vinha encimada por um aviso: "Para atender a um pedido urgente da Secretaria da Educação, peça a todos os funcionários desta Escola o obséquio de responder ao questionário seguinte, apresentando-me também, para o mesmo fim, os documentos abaixo relacionados." Pediam-se: título eleitoral, três fotografias, diploma, prova de quitação com o serviço militar e certidão de idade fornecida pelo registro civil.
Eis os dados fornecidos, de próprio punho, por Firmino Costà, nesse questionário: "Nome do funcionário: Firmino da Costa Pereira;estado civil: viúvo;cargo inicial: Diretor do Grupo Escolar de Lavras, hoje G. E. Firmino Costa; data do contrato: nao houve; data da nomeação provisória: não houve; data da nomeação interina: não houve ; data da nomeação efetiva : 16 de janeiro de 1907 ; data da posse e exercício : 6 de abril de 1907;se obteve abono de faltas: não;se esteve afastado em que caráter: não;se obteve férias especiais: não; se esteve em comissão: não me lembro; se deixou de funcionar com perda de vencimento: não; quais os substitutos que teve e qual o período da substituição: nenhum; se esteve sujeito a pena: não; se mereceu algum elogio: o maior de todos foi dar meu nome ao Grupo;se obteve permissão para mudança de nome: não; se obteve remoção ou permuta (em branco)."12
Por esses dados, verifica-se que ele trabalhou ininterruptamente, sem uma só falta ao serviço, durante longo período.
Os últimos anos de vida de Firmino Costa foram marcados por sofrimento intenso. Ficara viúvo desde 1931. Seu segundo filho, já formado em Odontologia, foi acometido de grave doença mental, de que não se recuperou nunca. Por fim, ele próprio adoece, sofrendo câncer na face, onde foi operado mais de uma vez.
São numerosos os testemunhos sobre sua coragem ante tanta adversidade. Nesses últimos anos, manteve a mesma atitude de serenidade que caracterizou toda a sua existência.
Em certo momento venceu a enfermidade, conforme assinala seu colega e amigo Vitorio Bergo: "Ainda há pouco o vi e dele recebi novos alentos. A insidiosa moléstia que o acometera, graças aos Céus debelada, menos pela Ciência do que pelo Poder Divino, não abateu um instante seu valoroso espírito de educador. A sua inteligência, esclarecida e laboriosa, não teve férias nem nos dias de mais atroz padecimento. O prelo já havia jorrado a mancheias mais um produto da sua longa e madura experiência pedagógica, de que, por coincidência, segundo me declarou, ainda convalescente de melindrosa intervenção cirúrgica, havia feito seu cartão de visita, para apresentar-se ao novo Secre-tário da Educação. Era seu precioso livro Aprender a Estudar. (...) Dois novos livros ele está preparando."13
E provável que a aposentadoria compulsória, afastando-o do ambiente em que sempre viveu, tenha apressado seu falecimento, decorrente de uma crise de uremia. Mas até os últimos dias continuou trabalhando, isto é, lendo, escrevendo, ensinando.
12 Documento cedido pela família Firmino Costa.
13 Vitorio Bergo, discurso de paraninfo em Lavras. 1936, citado nas notas biográficas de Aguinaldo Costa.
Novo ensino público
No quadro republicano
Para discorrer sobre a influência de Firmino Costa no ensino fundamental em Minas, tem-se que remontar ao início da República e, mais precisamente, ao contexto histórico da ação administrativa de João Pinheiro. É o que se fará neste capítulo.
Quanto a esse ensino, Minas Gerais demorou bastante para desfazer-se da arcaica estrutura escolar que herdara dos tempos do Império. Em outras palavras, como assinala o educador Heli Menegale, em primoroso resumo histórico, o entusiasmo de Benjamin Constant pela educação contagiara a nascente administração federal e as de outras regiões, antes que chegasse a Minas.
Coube a Afonso Pena, o primeiro governante republicano a ser eleito no Estado, a tarefa de introduzir as necessárias modificações no ensino.
Eis uma síntese de sua atuação nesse sentido: "O governo Afonso Pena assinala a passagem de um periodo de ensaios para o período consciente, na instrução mineira. Deu o caráter de planejamento ao trabalho de organização do sistema; determinou o recenseamento escolar; estabeleceu a descentralização racional e orgânica da administração ; reservou recursos orçamentários anuais para a construção de prédios e aquisição de equipamentos; consagrou o princípio das classes mistas; aboliu os castigos, os físicos e humilhantes, e energicamente proibiu a possibilidade de influência política prejudicial à economia da escola; proporcionou liberdade ao ensino particular e subvencionou-o. Ao ensino normal imprimiu também o currículo exageradamente ambicioso (como acontecera na elaboração dos programas dos cursos elementares), o que refletia a influência do enciclopedismo positivista, encarecido na educação brasileira por Benjamin Constant."1
É amplamente reconhecida a decadência do ensino público, em Minas Gerais, nas últimas décadas do século XIX: os métodos pedagógicos eram deficientes e contraditórios, a despeito dos esforços, expressos em dispositivos legais, para aperfeiçoá-los; os professores eram mal preparados, em geral pessoas que simplesmente buscavam emprego num sistema clientelistico; as matrículas eram alarmantemente minguadas, calculando-se, em 1886, que apenas 7% das crianças em idade escolar freqüentavam as escolas públicas; havia total desinteresse pela alfabetização das meninas. Nesse panorama negativo, descrito em documentos oficiais, o ensino particular passou a contar com o apoio da sociedade e do governo.
Os depoimentos que nos chegam — especialmente de educadores que conheceram pessoalmente esse período — são significativos no que se refere à denúncia de desrespeitos cometidos contra as pessoas dos educandos. São muitos os depoimentos sobre
1 MENEGALE, Heli. A Instrução. In: CÉSAR, Guilhermino, org. Minas Gerais, terra e povo. Porto Alegre, Globo, 1970. p. 138. Trata-se de excelente síntese interpretativa da evolução do ensino em Minas.
castigos físicos e outras crueldades. Daí o entusiasmo, entre os professores mais conscientes, em torno da modernidade do novo ensino público, a partir do governo João Pinheiro,2
João Pinheiro reforma o ensino
João Pinheiro da Silva foi eleito presidente de Minas a 7 de março de 1906 para o quadriênio de 7 de setembro do mesmo ano a 7 de setembro de 1910. Seu vice-presidente era Júlio Bueno Brandão. Este assume o governo a 25 de outubro de 1908, em virtude do falecimento do titular do cargo, ficando no poder até a posse de Wenceslau Brás, eleito para completar o mandato. Bueno Brandão, por sua vez, elegeu-se presidente para o quadriênio seguinte.
A julgar pelo noticiário do Minas Gerais, os eleitos foram recebidos em Belo Horizonte, na véspera da posse, com um entusiasmo incomum, com a presença das mais eminentes figuras da política nacional.3 Realmente, a expectativa era intensa, talvez em virtude do prestígio nacional alcançado por Pinheiro e pelas idéias de como governar, que expusera na plataforma de candidato e em entrevistas de repercussão. Seus planos sobre o ensino, por exemplo, constavam desses documentos e passaram depois a constar das Mensagens ao Legislativo.
Seu Secretário do Interior, a quem estava afeto o setor de Instrução, era Manoel Tomás Carvalho de Brito, então com 34 anos, mas com intensa vida pública. O Minas publicara também a biografia oficial dos auxiliares do novo presidente. Carvalho de Brito nasceu em Itabira do Mato Dentro. Muito precoce, "aos nove anos de idade, foi plenamente aprovado em todas as matérias do curso primário"; seguiu preparatórios em sua terra e em São Paulo, para depois formar-se numa das primeiras turmas da Faculdade de Direito de Ouro Preto. Casou-se e trabalhou como jornalista em São Paulo, iniciando, depois, sua carreira pública em Minas, onde foi eleito, sucessivamente, deputado estadual e federal. A nota biográfica termina da seguinte maneira:
"É um dos que melhor assimila as idéias políticas do Dr. João Pinheiro, tendo com ele vários pontos de contato, notadamente em ser um self-made man.
Não há muito voltou de viagens de estudos em S. Paulo e República Argentina."4
A última anotação é relevante ao ponto de vista educacional. Que estudos teriam sido esses? Em São Paulo, na década anterior, tinham sido introduzidas modificações no ensino fundamental. Criou-se ali o primeiro grupo escolar.
Quanto à Argentina, temos uma notícia reveladora num livro escrito sobre aquele país por um brasileiro, mineiro e também político: Mário Brant. Trata-se do volume Viagem a Buenos Aires, de 1917, do qual só conhecemos a edição argentina (1980). A notícia revela que, no Brasil, são conhecidos há anos a organização e os resultados do ensino público argentino. Acrescenta que, quando foi convidado para ser Secretário do Interior de João Pinheiro, Carvalho de Brito começou a estudar a organização do ensino primário daquele país, "que introduziu, de volta, em Minas Gerais, com resultados hoje notórios".
Sem uma análise comparativa da legislação, nos dois casos, seria impossível detec-
Vejam-se alguns desses depoimentos no capítulo seguinte.
Minas Gerais. Belo Horizonte. 6 sei. 1906.
Minas Gerais. Belo Horizonte, 7 set. 1906.
tar que pontos foram adaptados ao caso mineiro, que inovações se transpuseram, etc. De qualquer forma, tudo é muito plausível. Houve realmente a viagem de estudos e Mário Brant, da mesma geração de Carvalho de Brito, foi pessoa muito bem informada. como dado curioso, lembre-se que um dos grandes responsáveis pelo desenvolvimento da educação popular na Argentina foi Domingo Sarmiento, professor, escritor e presidente; seu nome foi incluído, por Firmino Costa, numa seleção dos dez maiores pedagogos de sua preferência...
Depois da posse de João Pinheiro/Carvalho de Brito, passaram-se poucos dias antes que fosse promulgado o primeiro diploma legal sobre o assunto. A Lei n° 439, de 28 de setembro de 1906, tinha como ementa: "autoriza o governo a reformar o ensino primário, normal e superior do Estado e dá outras providências". Fixava as diretrizes genéricas e permitia que se baixassem decretos regulamentadores da matéria. O Decreto nº 1.947, de 30 de setembro de 1906, aprovou o programa do ensino primário e o Decreto nº 1.960, de 16 de dezembro de 1906, aprovou o regulamento da instrução primária e normal de Minas Gerais. Os principais aspectos dessa legislação serão expostos abaixo.
O novo governo estadual, porém, não somente baixou leis: iniciou imediatamente a articulação dos professores e implementou a nova orientação.
No dia 19 de outubro, foi realizada, por iniciativa do Secretário, uma reunião das professoras das escolas normais do Estado, em disponibilidade, para dar-lhes conhecimento do que pensava o governo a respeito do ensino primário e das novas diretrizes.
A 11 de novembro, noticiava o Minas Gerais que se fundara o primeiro grupo escolar de Minas, em Belo Horizonte, "com o qual o Sr. Dr. Carvalho de Brito inicia a execução da retorma da instrução pública prometida no programa do atual governo". O primeiro grupo só se instalaria, entretanto, sob a direção da Professora Helena Pena, no dia 5 de fevereiro do ano seguinte.s
O Regimento Interno dos grupos escolares foi aprovado pelo Decreto nº 1.970, de 3 de janeiro de 1907.
A Lei de 28 de setembro estabeleceu diretrizes para o ensino público em geral e normas especiais para os ramos primário e normal. No final, autorizou o governo do Estado a reorganizar a Escola de Farmácia de Ouro Preto.
As principais novidades foram :
• a declaração de que se devia buscar a obrigatoriedade do ensino primário gratuito, "determinando idade escolar e isenções",e o esforço pela difusão do ensino em todas as localidades;
• criação dos grupos escolares e de escolas-modelo, sendo os primeiros constituídos à base da agregação de escolas isoladas. Estas seriam mantidas onde conviesse;
• classificação dos professores primários em efetivos, adjuntos e substitutos, os primeiros obrigatoriamente normalistas;
• estabelecimento de incentivos ao magistério, por meio de possibilidade de acesso em uma carreira e de prêmios pela eficiência;
• formas de aproveitamento e disponibilidade dos antigos mestres; • criação facultativa de cursos técnicos junto ao primário. Propõe-se o auxílio aos
Apud MOURÃO, Paulo Krüger Corrêa. História de Belo Horizonte; de 1897 a 1930. Belo Horizonte. Imprensa Oficial, 1970. p. 106.
alunos pobres que revelem aptidões, possibilitando-lhes matrícula gratuita no Ginásio Mineiro ou em estabelecimentos equiparados. Amparo a alunos pobres que revelem "decidida aptidão para as artes mecânicas e as belas-artes" e cujo estudo poderá ser mantido no país ou no exterior;
• criação de uma escola normal-modelo em Belo Horizonte e de escolas normais regionais. Restrições ao aparecimento de novas escolas normais equiparadas;
• organização completa das escolas normais para formar "bons professores", adquirindo os alunos "as qualidades pedagógicas indispensáveis aos que se destinam ao magistério público";
• previsão de criação de um sistema de fiscalização e inspeção escolar.
E mais importante :
• estabelecimento da organização do programa escolar, através da adoção de um método simples, prático e intuitivo.
O programa do ensino primário, baixado dois dias depois, e certamente já em processo de longa elaboração, era precedido de interessantes instruções que aparecem reproduzidas no final do presente livro. Os requisitos da lei foram realmente alcançados: é simples, prático e intuitivo.
Trazia inovações quanto ao ensino da linguagem. Abolia-se a silabação, adotando-se o processo chamado da palavração, que tomava a palavra como a unidade básica do discurso. Outro aspecto importante do programa é a gradação bem medida na transmissão dos conhecimentos. Partia-se sempre do mais concreto e do mais próximo do aluno em sua vida cotidiana. Os programas se referiam a: Leitura, Escrita, Língua Pátria (que corresponderia, a grosso modo, à idéia de expressão oral e escrita), Aritmética, Geografia e História do Brasil, Instrução Moral e Cívica, História Natural, Física e Higiene, Trabalhos Manuais (estes distribuídos para meninas e meninos). Exercícios Físicos, Música Vocal. O programa era dividido pelas quatro séries (ou anos), distribuída a matéria por semestre.
O horário de todas as disciplinas era rigorosamente preestabelecido. As aulas funcionavam de 10 da manhã às duas da tarde, o que evidenciava hábitos muito rurais na maioria da população. Presumia-se que os alunos almoçassem por volta das nove horas.
O regulamento do ensino público (instrução primária e normal do Estado) era bastante longo e minucioso. Dividia-se em: Do Ensino em Geral; Do Ensino Primário Particular; Do Ensino Primário Público (classificação, organização e administração das escolas); Do Pessoal Docente (classificação, nomeação e acesso); Deveres dos Professores; Da Matrícula e da Freqüência, Suspensão e Restabelecimento do Ensino; Regime Escolar, Exames, Prêmios, Férias; Da Inspeção do Ensino; Dos Inspetores Escolares; Dos Inspetores Técnicos; Do Conselho Superior da Instrução; Das Licenças e Faltas; Das Penas (a professores e alunos).
Anexo ao Regulamento, havia uma tabela de vencimentos, estabelecida em termos de proventos anuais. Quanto aos professores primários efetivos, estabelecia-se gradação, a começar dos de colônias (agrícolas). Estes ganhavam um conto e duzentos mil réis por ano; os de distrito, um conto e quatrocentos; os das cidades, um conto e oitocentos; os da capital, dois contos de réis; o diretor de grupo escolar da cidade, três contos; diretores dos grupos da capital, três contos e seiscentos; professores-técnicos, três contos e seiscentos. Os porteiros de grupos escolares, novecentos e sessenta mil réis; os
serventes, setecentos e sessenta mil réis; os auxiliares de escolas isoladas, seiscentos mil réis.
Quanto às escolas normais, era a seguinte tabela: professor de qualquer cadeira, seis contos de réis por ano; professores de desenho e música, quatro contos e oitocentos mil réis; professores de costura, três contos e seiscentos; porteiro, um conto e duzentos; contínuo, um conto de réis; servente, novecentos e sessenta mil réis. O diretor seria um dos professores, com a gratificação anual de um conto e duzentos; o secretário seria também um dos professores, com a gratificação de seiscentos mil réis.
Seria dificil, em termos de hoje, avaliar o valor real desses salários. A distância no tempo nao nos permite muita análise do significado desses números, num país caracterizado por experimentar décadas de inflação, a menos que os comparássemos com a remuneração de outras categorias da força de trabalho. Apenas se podem anotar algumas discriminações: entre o rural e o urbano, talvez porque o custo de vida fosse mais caro nas cidades; entre o ensino primário e normal, em favor deste; entre os trabalhadores intelectuais e manuais, em favor dos primeiros; entre os professores de disciplinas comuns e os de arte, estes desvalorizados.
Vale a pena transcrever o Capítulo I do Regulamento, que trata Do Ensino em Geral, pois estão aí contidos os princípios que balizaram a reforma:
"Art. 1 º - 0 ensino deverá ter sempre em vista promover a educação intelectual. moral e física, e será primário, normal e profissional.
Art. 2 º - 0 ensino deverá seguir com rigor o método intuitivo e prático e terá por base o sistema simultâneo.
Art. 3º - A educação moral não terá em caso algum o caráter de um curso teórico e filosófico, mas será comunicada em forma experimental e simples, devendo ser naturalmente respirada na atmosfera da escola.
Art. 4º - A educação física será realizada não só por meio da ginástica e exercícios espontâneos, como principalmente por meio de trabalhos manuais.
Art. 5 º — 0 ensino primário divide-se em particular e público, devendo este ser ministrado oficialmente pelo Estado e pelas municipalidades e aquele por professores particulares e associações.
Art. 6 º - 0 governo empregará todos os esforços para que, dentro da esfera de suas atribuições, o ensino público se aperfeiçoe e se difunda pelo Estado do modo mais eficaz e completo.
Art. 7º - Os compêndios adotados oficialmente ou por direta iniciativa dos professores deverão de preferência aproveitar a estes como órgãos destinados a realizar a transmissão pessoal do ensino.
Art. 8º — 0 ensino primário estadual será ministrado gratuitamente em grupos escolares e escolas isoladas.
Art. 9 º — 0 ensino primário pode ser livremente administrado no Estado por particulares e associações, ficando estes apenas sujeitos à fiscalização do governo no que diz respeito à higiene, moralidade e estatística.
Art. 10 — O governo fará desde logo funcionar na Capital uma escola normal destinada exclusivamente ao sexo feminino, podendo mais tarde instituir outras com o mesmo tipo, para o mesmo sexo ou nao, onde for mais conveniente.
Art. 11—0 ensino profissional é o que é dado como complemento do ensino primário e tem o intuito de preparar os alunos para o melhor desempenho dos ofícios práticos apropriados a qualquer dos sexos."
Cremos que os dispositivos transcritos falam por si mesmos. Dentro do contexto em
que surge essa legislação - o de uma sociedade predominantemente agrário-mercantil com anseio de modernização — ela corresponde a inovações pedagógicas e procura atender ao intuito de formar mão-de-obra.
O ensino profissional era previsto em aulas anexas. Estas eram destinadas, separadamente, a meninos e meninas. Os primeiros poderiam executar trabalhos práticos "apropriados à sua idade e relativos aos ofícios do hortelão, arboricultor e jardineiro; receberão também noções praticas de construção de habitações e outras que sejam julgadas convenientes". As meninas, "em compartimentos separados, executarão trabalhos de costura, sob as suas diversas formas e nos seus variados destinos, e corte sob medida, habilitando-se ao mesmo tempo na fabricação de objetos de fantasia e ornamentação". Nos programas de trabalhos manuais, dava-se preferência aos de destinação utilitária. É interessante ressaltar rigorosa separação entre os dois sexos. Em termos gerais, era esse o critério para a formação das classes; em certas circunstâncias, permitia-se instituir classes mistas, mas, preferentemente, agrupando os alunos de mais baixa idade.
O regulamento dispunha ainda sobre a criação de museu escolar e sobre as instalações das escolas públicas, tanto sob o aspecto arquitetônico como sob o do equipamento escolar.
No que tange ao ensino normal, o currículo ficou assim estabelecido:
Primeiro ano - Português, Aritmética, Desenho, Música, e Trabalhos de Agulha. Segundo ano — Português, Francês,Geometria, Geografia, História, Educação Mo
ral e Cívica, Música, Desenho, Trabalhos de Agulha. Terceiro ano - Noções gerais de Física, Química, História Natural e Higiene, Arit
mética Comercial, Escrituração Mercantil, Música, Desenho, Trabalhos de Agulha.
O curso simplificara sobremaneira o que estava em vigor, vindo da Reforma Afonso Pena. Dava-se uma noção muito sumária das disciplinas constantes do curso primário, não havendo qualquer matéria de formação profissional. A prática profissional deveria ser feita junto aos grupos escolares e escolas isoladas. Deveriam, entretanto, as escolas normais possuir laboratórios de ciências naturais.
Os grupos escolares
Quanto ao curso primário, a principal novidade residia na instituição dos grupos escolares. Significava isso o fim, como único padrão, das escolas isoladas existentes em todas as etapas anteriores: colonial, imperial e da própria República.
"Admira como durante anos tenham sido mantidas escolas isoladas em cidades onde as havia em número suficiente para se reunirem em grupos. O raciocínio parecia simples: em lugar de quatro escolas isoladas, cada uma com quatro classes, poder-se-ia reunir estas escolas numa só, de modo que cada professor apenas lecionasse em uma classe ou ano escolar.
A idéia simples, afinal, firmou-se em instituição e coube ao governo de João Pinheiro introduzi-la em Minas Gerais (...)."6
6 MOURÃO, Paulo Krüger Corrêa. João Pinheiro e a instrução. In: COELHO, Copernico Pinto, org. Coletânea do Centenário de Nascimento de João Pinheiro da Silva. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1960. Número especial.
Quem faz esses comentários é um historiador do ensino mineiro. O fato é que essa idéia do grupo escolar já tinha sido adotada em São Paulo, depois da República; em Minas aparecia a expressão, pela primeira vez, num diploma legal.
Outro historiador, também emérito educador, afirma: "Desatou-se o nó de uma dificuldade secular, criando os grupos escolares, isto é, agrupando as escolas em que alunos de vários planos de adiantamento recebiam ensino juntos, na mesma sala de aulas. As classes passaram a distinguir-se em quatro graus e cada professor deveria lecionar a alunos de nível escolar igual. Disto resultou ser o mesmo número de professores aproveitado muito melhor e ter-se resolvido automaticamente a velha questão do ensino simultáneo."7
Além dos grupos, persistiam as escolas isoladas em pequenas localidades ou no meio rural. Por sua vez, criavam-se escolas-modelo, em anexo às escolar. normais, funcionando como classes de aplicação.
Heli Menegale aponta os aspectos positivos e os negativos dessa legislação. Baixaram-se regulamentos muito minuciosos, em face da circunstância de que os professores nao haviam sido consultados nem treinados para as inovações. "Havia em tudo interessantes vestígios dos melhores processos pedagógicos da época, quanto a material didático, aprendizagem da leitura, ensino das normas gramaticais." A crítica incide, principalmente, sobre os rumos excessivamente simplificados que se imprimiram ao ensino normal. A escola normal-modelo demorou a ser instalada; seu currículo era deficiente, nao incluindo matérias pedagógicas; limitava-se ao exercício de uma prática, por parte das normalistas, junto às escolas primárias.8
Quem organizou essa legislação? Sem dúvida, na técnica legislativa, encontra-se a presença do próprio secretário Carvalho de Brito e também nos conteúdos do regulamento, por certo inspirados em contato com outras realidades sociais, durante as viagens de observação à Argentina e a São Paulo. Artur Joviano, competente professor de Portugués, terá sido, com tôda a certeza, o autor das instruções e dos programas de Leitura, Escrita e Língua Pátria. Outra pessoa que colaborou estreitamente na elaboração do regulamento foi Cipriano de Carvalho, depois diretor da Escola Normal-Modelo, conforme ele próprio o afirma numa comunicação apresentada em Congresso, em 1912.9
Foram alcançadas as metas da reforma? Só não o foram mais amplamente porque o seu idealizador faleceu no meio da jornada. Em grande medida, obteve-se êxito. As duas primeiras mensagens enviadas ao Legislativo, a 15 de junho, respectivamente de 1907 e 1908, dão testemunho dos resultados atingidos. Expressas em texto conciso e objetivo, relatam as medidas governamentais implementadas, aí incluídas as referentes à educação.
Na primeira não existem dados, pois tudo se encontrava em fase de implantação. Refere-se especialmente ao Decreto n° 1.960, de 16 de dezembro do ano anterior, que regulamenta o ensino público. Acrescenta que a reforma "teve de ser completa e total quanto aos métodos de ensino, à disciplina escolar e à fiscalização severa do serviço, estando o governo cuidando das casas escolares apropriadas e do respectivo mobiliário.
MENEGALE. Heli. üp . cit., p. 139.
Vejam-se os decretos referentes à reforma do ensino, cujos dispositivos são aqui citados, na bibliografia, item "documentação".
ANAIS do II Congresso Brasileiro de Instrução Primária e Secundária de 1912. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1913.
dentro dos restritos recursos orçamentários".1 ° A seguir, referindo-se ao novo ensino, afirma ser reconfortante o "restauramento,
cujas glórias mais ao povo cabem que ao governo", tendo havido compreensão rápida do alcance das medidas tomadas. Alude ao auxílio das municipalidades e augura o "concurso direto da própria iniciativa particular".
Quanto ao ensino agrícola, insiste em assinalar sua importância e complexidade, tocando ainda na regulamentação que há pouco fora dada ao setor.
A segunda Mensagem informa o que se passa no ensino primário, no secundário e no superior. Quanto a este último, relata a situação da Escola de Farmácia e da Faculdade de Direito. No ramo secundário, acena com modificações no Ginásio Mineiro que possuía externato e internato; informa acerca da existência de estabelecimentos ao Ginásio Nacional (anteriormente, e também mais tarde, Pedro II), estando situados em Ouro Preto, Diamantina, Juiz de Fora (dois), Muzambinho, Pouso Alegre, Silvestre Ferraz, Uberaba, São João del Rei, Lavras, Itajubá e Leopoldina.
Ao referir-se ao secundário, expõe João Pinheiro suas opiniões pessoais. Vale a pena recordá-las por meio desta extensa citação:
"No nosso, como em quase todos os países, da grande massa que se dedica ao estudo clássico e às profissões liberais, apenas limitadíssimo número aufere resultados que compensem os extenuantes esforços despendidos.
É uma ilusão dos pais, como é uma miragem dos moços, procurar a independência positiva da vida social nestas carreiras de brilhante exterioridade, mas de frágil consistência, por mais que ao longo tirocínio se decretam privilegiadas garantias oficiais.
É que a vida das classes liberais repousa sobre a prosperidade material da sociedade; descurada esta e dado o seu desequilíbrio pelo excesso daquelas, terão de sofrer a tal repercussão, surgindo o proletariado intelectual, cujo aspecto doloroso já se desenha entre nós.
Ao desejo tão natural dos pais de educarem convenientemente os filhos, à ânsia de progredir sempre e de fazer progredir a terra que nos é berço, devem corresponder os poderes públicos com a organização do ensino profissional e técnico, de sorte que no campo tão vasto das diferentes indústrias consigam todos a mais sólida e a mais bela das independências, construindo, ao mesmo tempo, o progresso real do País."11
O autor da Mensagem estava, assim, tudo apostando no ensino técnico, ao anunciar iniciativas nesse campo. Ele usa a lógica econômica ao fazer a crítica às profissões liberais, de que é o primeiro requisito o ensino secundário, e às limitações (já existentes) do mercado de trabalho. Ao falar, contudo, em "carreiras de brilhante exterioridade, mas de frágil consistência", provavelmente tinha em vista o feitio de brilho ba-charelesco que reveste o exercício dessas atividades profissionais entre nós. É manifesto, nesse trecho, o antiintelectualismo de João Pinheiro, presente em muitos de seus pronunciamentos.
É no tocante ao ensino primário que aparecem, na mensagem de 1908, dados importantes. Em doze meses, instalaram-se 22 grupos escolares; nos tempos seguintes. acelera-se a expansão desses estabelecimentos. Quase duplicou o número das matrí-
SILVA, João Pinheijo da. Mensagens ao Congresso Mineiro. In: BARBOSA, Francisco de Assis, org. Idéias políticas de João Pinheiro. Brasília, Senado Federal, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980.P.351.
11 Idem, ibidem, p. 351.
cuias escolares depois da reforma. Nos 22 grupos, achavam-se matriculados 10.090 alunos. Encontravam-se em fase de preparo e adaptação outros prédios destinados a grupos. Registra, entretanto, o documento esta cifra preocupante: das 800.000 crianças existentes em Minas, em idade escolar, nada menos de 700.000 encontravam-se ainda fora das escolas. Tal verificação representa um primeiro passo no sentido do diagnóstico realista da situação escolar.
Pretendeu João Pinheiro vincular o ensino à formação da força de trabalho. Tinha uma percepção idealizada dos efeitos possíveis do emprego de tecnologia agrícola. Em um dos seus textos, chega a falar da enxada como instrumento humilhante por lembrar a escravidão. Mal poderia prever que, quase um século depois da Lei Áurea, nos dias correntes, continua a enxada a ser empregada. Para ele, a rentabilidade do trabalho humano, com uso dos meios técnicos modernos, teria um papel libertador.
Costuma-se lamentar a morte precoce desse governante mineiro, sempre com o pensamento em especulações sobre o seu provável destino, no plano nacional, talvez como Presidente da República, o que, presumidamente, poderia ter mudado os rumos da vida nacional e do regime republicano. Todo esse raciocínio tem muito de gratuidade, parecendo ser mero jogo de conjecturas.
E inegável, contudo, que João Pinheiro fez falta a Minas: sua presença teria feito com que se completasse seu programa de governo e se lançasse mais solidamente o alicerce de maior prosperidade regional.
De qualquer modo, ficaram suas atitudes como paradigmáticas de ações encetadas algumas décadas depois. Tanto Juscelino Kubitschek como Israel Pinheiro, este filho do antigo estadista, parecem ter-se inspirado em idéias de João Pinheiro a respeito da expansão das forças produtivas do Estado. Ambos, em conjuntura totalmente diversa, adotaram medidas com o mesmo cunho pragmático.
A busca de apoio
Voltando ao tema educacional, registremos pormenor relevante. Afirmava João Pinheiro, no programa de governo, que a reforma do ensino "não depende da lei, quanto de sua execução". Preparar os prédios dos grupos, recrutar professores capazes, escolher diretores competentes: tais eram os requisitos dessa boa execução.
Dentre as pessoas que o ajudaram a levar avante a reforma, estava Firmino Costa, cujas relações pessoais com Carvalho de Brito eram muito próximas e amistosas.
Esse educador estava explicitamente solidário com a modificação do ensino feita por João Pinheiro e por seu Secretário do Interior; em sua prática de ensino, assumiu, entretanto, uma atitude de compreensão crítica. com uma visão mais moderna da educação do que a dos governantes de seu tempo, pôde também temperar a tendência tecnicista do poder com uma efetiva visão humanística.
Cinco dias após a morte do Presidente, o jornal Vida Escolar, boletim informativo e pedagógico do Grupo de Lavras, publicava, em sua primeira página, um comentário repassado de muita emoção. O escrito recorda os momentos cruciais da vida de João Pinheiro: seu amor ao trabalho desde a juventude; o vigor e a coerência do propagandista da República; a ação do governante de Minas no início do novo regime; o retorno a Caeté, "terra de sua mãe e onde ele passara a meninice", para ali instalar uma indústria cerâmica; a dedicação permanente ao trabalho, "nesse retiro, onde não se abria uma frincha à passagem da politicagem interesseira"; o retorno a Belo Horizonte, a convite do governo, desse gesto da Presidência Sales repetido por parte do povo
mineiro, que o foi buscar para ser senador e, em seguida, presidente de Minas. "O que foi seu governo, nesse período estreito de duração e largo de benefícios - assinala ainda o jornal — di-lo-ão todos os mineiros desde os que culminam em posição social até 0 mais modesto das classes laboriosas. O desenvolvimento agrícola e a instrução do povo absorveriam o melhor da atividade do presidente extinto."12
Lembra depois a Vida Escolar as últimas palavras escritas por João Pinheiro, antes de adoecer: o fecho da mensagem mandada ao Legislativo: "Abrir escolas que iluminem a inteligência das crianças; ensinar o trabalho aos adultos; guiar e aconselhar, nas dúvidas, os produtores; cuidar das questões materiais, sem abandono da parte espiritual e moral; tero culto sincero da liberdade; tornar a paz garantida; a justiça amada; paternal, o exercício da autoridade; conciliadora a política - é, senhores representantes de Minas Gerais, operários efêmeros que somos do serviço permanente da Patria - é termos trabalhado pelo grandioso ideal republicano, na terra mineira, que, primeira, o sonhou, por ele deu vidas e o tem executado, nestes dezoito anos de regime, sem retro-gradações e sem precipitações."13
Era o testamento político de João Pinheiro. Sem dúvida, tratava-se do último escrito, mas não sua palavra derradeira, dita em público, sobre questões básicas de sua administração. No dia 7 de agosto, no mesmo ano de 1908, recebia manifestação, no Palácio da Liberdade, pela passagem do segundo ano de seu governo. Falaram, saudan-do-o, o deputado estadual Francisco Paoliello e o republicano histórico Alexandre Stockier. Em sua resposta de improviso, segundo resumo publicado, o presidente comentou o elogio de um dos oradores aos "progressos alcançados pela reforma da instrução pública", com estas palavras: "Não há dúvida alguma que é um fato auspicioso e generalizado em todos os recantos do Estado. Mas, a administração não teria podido operá-la com êxito, se não encontrasse a imensa boa vontade dos pais de família, das administrações locais, dos professores, para realizar a reforma que está hoje radicada e se desenvolverá sempre e cada vez mais."14
No mesmo discurso, comentava a reforma agrícola, o desenvolvimento pecuário e a expansão das cooperativas de cafeicultores. Os diversos programas se entrelaçavam intimamente na concepção governamental. Ensino, relembre-se, liga-se de modo estreito às atividades produtivas.
Na verdade, nos anos seguintes, as modificações do ensino se rotinizaram. Iniciativas isoladas, embora meritosas, como as de Firmino Costa, instalando uma série de oficinas para artífices em seu Grupo, não se propagaram.
Em 1912, entre os dias 28 de setembro e 4 de outubro, realizou-se. em Belo Horizonte, o II Congresso Brasileiro de Instrução Primária e Secundária. Era presidente Júlio Bueno Brandão, o vice de João Pinheiro. Na política estadual houvera uma cisão. Carvalho de Brito estava, nesse momento, no ostracismo, depois de derrotado nas urnas como candidato civilista. Seu nome aparece numa pequena nota nos Anais do Congresso.
Um dos redatores do Regulamento da reforma do ensino, Cipriano de Carvalho, apresenta bem elaborada comunicação, explicando o sentido do ensino público demo-crático e reclamando que não se improvisem novas modificações.15
12 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 33, p. 1.
Idem, ibidem, p. 1. 14 Segunda Mensagem ao Congresso Mineiro. Op. cit. 15s Anais, Op. cit.
Firmino Costa nao está presente nesse certame. De longe, não deixa de opinar. Num texto denominado Contra o Analfabetismo responde, antes que se reúna o Congresso, a urna de suas teses: "Que remédios sociais podem ser apontados para dar-se combate enérgico ao analfabetismo no Brasil?" Essa era a grande obsessão.
De Lavras, responde que o principal remédio é formar bem o professor primário; tudo mais é acessório. Além de formá-lo bem, evitar toda a interferência política (diríamos hoje clientelistica) no ensino, o que leva à designação de docentes incapazes.
"O governo de Minas, que tem mostrado empenho em dotar o Estado de boas escolas primárias, bem poderá completar sua benemérita obra, mantendo como professores tão-sòmente aqueles que instruem e educam os alunos. Enquanto os defeitos do ensino público primário forem apenas ladeados, sem se enfrentar o maior deles, que é o professor inábil, nós estaremos marcando passo, sem fazer povo, sem garantir o futuro da pátria."16
Pode-se dizer que o carisma de João Pinheiro manteve acesa, enquanto ele era vivo, a idéia — talvez mais propriamente a ilusão - de que a aprendizagem profissional pudesse alterar substancialmente, inclusive no campo, as condições de vida da população. propiciando aos portadores de melhor técnica de trabalho certa mobilidade social.
De sua passagem pelo governo, ficou a idéia positiva, periodicamente retomada, de que a sociedade, em Minas, poderia mobilizar, pelo seu próprio esforço, os meios e recursos naturais que a fizessem próspera. como protagonista, ficou a imagem do governante simples, austero, generoso e, acima de tudo, consciente de sua responsabilidade para com o bem comum.17
16 SILVA, João Pinheiro. O último discurso. In: BARBOSA. ¡Francisco de Assis. Op. cit., p. 395-96.
1 7 Para o exame das oscilações da carreira de Manoel Tomás Carvalho de Brito, consultar, FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um estadista da Republica. Rio de Janeiro. Nova Aguilar. 1977; WIRTH, John D. O fiel da balança; Minas Gerais na federação brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1982.
Um modo de executar
Identificação com a reforma
Foi considerável a influência do pensamento e da ação de Firmino Costa nos rumos da reforma do ensino instituído por João Pinheiro. Por tê-la executado de forma ponderada — e ao mesmo tempo crítica —, o diretor do Grupo de Lavras teve seu trabalho atentamente acompanhado, no seu município e nos demais, por todas as pessoas relacionadas com o ensino público.
Deve-se insistir na identidade básica, quanto a propósitos educacionais, entre as autoridades do governo e esse educador. No texto transcrito, do comentário sobre a morte do Presidente do Estado, evidenciou-se bem o fato. Anteriormente, comentara, pela Vida Escolar a mensagem ao Legislativo e o relatório do Secretário do Interior: "Desses trabalhos, de grande interesse para o povo mineiro, sobressai que o ponto principal do programa do governo de Minas é a instrução — instrução primária e profissional. Inteiramente acordes com essa direção do governo, temos vivo prazer em lhe dirigir nossas congratulações. Não é isso mera cortesia. Nas circunstâncias, ao governo do Estado urge tratar da inteligência do povo para o fim de curar o atraso do mesmo povo."1
Dentro da mesma orientação de João Pinheiro, dá esta explicação para o atraso: "É o atraso que principalmente vai empobrecendo o povo mineiro, o qual, trabalhando sem saber trabalhar, despende mais esforço, relativamente produz menos, não pode aperfeiçoar o produto e estraga as fontes de riqueza. como há de ele assim entrar em concorrência com outro povo?"
Cita os números contidos nos documentos e concita seus conterrâneos a lê-los, porque não devem ser indiferentes às dificuldades "deste grande e liberal Estado de Minas, tão justamente admirado por estrangeiros notáveis".2
Estava bem informado sobre a experiência paulista. Em certa ocasião, discutindo a questão da freqüência escolar em sua cidade, cita palavras do presidente de São Paulo, Jorge Tibiriçá, segundo quem as escolas paulistas tinham suas vagas disputadas. Dizia o governante que, "ao passo que se vêem em outros países cultos o emprego de meios coercitivos para as escolas serem freqüentadas, entre nós as escolas transbordam de alunos e são insuficientes para o grande número de crianças que anualmente as procuram". Firmino Costa desejava uma demanda idêntica em Minas.
Em artigo, recorda que o governo, ao apresentar a reforma, confessara-se "apaixonado pela solução do problema". E acrescenta: "Lembro-me de haver sido co-partici-pante dessa paixão nobilissima." Fala a respeito dos grupos que antecederam os de La-
Relatório ao Secretário de Interior. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1917.
2 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 5, p. 2.
3 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 7, p. 2
vras:o Barão do Rio Branco.de Belo Horizonte,dirigido por Helena Pena,e o de Juiz de Fora, inaugurado a 4 de fevereiro de 1907, dirigido pelo professor José Rangei.
Ao assumir a direção de seu estabelecimento, em 1907, Firmino Costa estava preparado para as tarefas que o esperavam. Preparara-se próxima e remotamente. Da remota sedimentação de experiências e saberes, falou-se no capítulo Vocação para Lecionar. No discurso inaugural, traça um programa de trabalho: discorre sobre o papel da nova escola na comunidade, apela para a cooperação dos pais e afirma o compromisso de tudo fazer para dar às crianças de sua terra a educação fundamental mais completa possível.
Esse discurso foi impresso e distribuído pelas escolas primárias de todo o Estado. por iniciativa do governo estadual. O edifício inaugurado compreendia (e compreende até hoje) dois prédios. Um estava situado na então Rua Direita e era conhecido pelo nome de Casa da Instrução; nos fundos desse, ficava o outro prédio, tradicionalmente conhecido como Casa do Colégio. O primeiro, doado desde há muito ao governo do Estado, foi construído pela Associação Propagadora da Instrução, em 1873; o segundo, construído por subscrição popular de iniciativa do tenente Firmino Antônio Sales (tio de Firmino e pai do presidente Francisco Sales), foi adquirido pela Câmara e doado também ao Estado. A adaptação fora feita, pouco antes, pela administração municipal, sendo presidente da Cámara o vereador Pedro Sales.
Essas informações foram retiradas de uma reportagem publicada pela Vida Escolar que descreve minuciosamente as instalações dos dois prédios.4
O periódico publicado pelo Grupo Escolar desempenhou papel importante na difusão das vantagens da escola pública e da propaganda da matrícula escolar.
O pequeno jornal projetou-se nos meios oficiais e também junto a personalidades de destaque. Pandiá Calógeras visitou Lavras, em 1908, em companhia do Diretor da Estrada de Ferro Oeste de Minas, Chagas Dória, e dos deputados Viana de Castelo e La-mounier.
Poucos dias depois, em carta a Firmino Costa, elogiava o jornal que havia recebido pelo Correio, afirmando: "Recebi e li os números da Vida Escolar que me mandou. Nao só achei ótima a doutrina pregada pela folha, como achei a tentativa em si merecedora dos mais altos encomios e digna de ser imitada por todas as cidades onde há grupos escolares. De fato, na fase atual do ensino primário no Brasil, o principal colaborador do progresso não é o habito, como nos países onde, por tradição antiga, os benefícios da instrução e as vantagens dos novos métodos pedagógicos já figuram incorporados na região subconsciente da psiquê popular. Entre nós, a evangelização deve visar as famílias para que estas sejam os propulsores reais da obra de vanguarda feita pelo mestre, pela escola. Tal conceito vi com o maior prazer posto em prática em Vida Escolar. Felicito-o cordialmente por isto, e conte sempre com meu dedicado, se bem que modesto auxílio, no tocante a assunto tão sério, tão essencial à formação do Brasil de amanhã."5
A educação popular
Além da divulgação feita pela imprensa, o diretor do grupo visitava pessoalmente as familias do lugar; fê-lo no início e o repetiu depois, no esforço de manter a freqüência dos alunos.
4 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 1, p. 2.
5 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 32, p. 2.
Dessas experiências de contato direto com o povo, colheu muitos ensinamentos e ainda casos interessantes. Alguns deles foram narrados, pela Vida Escolar, numa série intitulada Casos Verídicos. Abriu-a com uma historinha sintética:
"Estávamos presentes, ainda de pé. A mãe: Meu menino não tem adiantado nada no Grupo. O menino: O senhor quer sentar-se?" A anedota correu mundo, pela sua moralidade. É possível que o professor tenha, em
relatos verbais, acrescido algum pormenor ao pequeno incidente: o certo é que a temos ouvido de inúmeros contemporâneos de Firmino Costa, sempre com menos economia de palavras e sempre como um elogio à finura de espírito do mestre.
Esses casos giravam quase sempre em torno da necessidade de freqüência às aulas. Outro deles:
— "Qual! no Grupo meu filho vai aprender maus costumes com os meninos do povo. — Eu o estou vendo brincar em sua casa com os tais meninos. — É, mas no Grupo não serve. — Pois é engano da sra. julgar seu filho melhor que os do povo. No Grupo, minha
sra., não são apenas os meninos de famílias elevadas os que se distinguem no procedimento e no aproveitamento. Dos filhos do povo há também muitos que figuram nos boletins com elevadas notas. Os bons sentimentos e os dotes de inteligência também se encontram, minha senhora, nas famílias humildes. Ponha seu filho entre os da idade dele e não o crie numa redoma, tornando-o desde pequeno um pocinho de soberba."6
Era, assim, uma espécie de apóstolo da escola pública. Não era contra os estabelecimentos privados, mas entendia que se devia "como medida complementar da reforma, impedir que se estabeleçam e funcionem escolas, sem primeiro conhecer como se acham instaladas, como ministram o ensino".7
A ação se desenvolveu em duas linhas fundamentais: a divulgação do valor do ensino, inclusive para a vida de trabalho, feita principalmente junto às famílias; e a organização interna do estabelecimento, com a aplicação dos princípios e preceitos da reforma educacional.
Em ambos os casos, contou com o apoio dos poderes públicos, no plano municipal e no plano estadual, embora não fosse ele um homem de partido. Em relação ao governo estadual, lembra, "correspondia-me principalmente, como era natural, com o Dr. Carvalho de Brito", acrescentando: "Que admirável visão de estadista ele possuía, que entusiasmo, que operosidade." Achava que esse entusiasmo de Carvalho de Brito não se repetiu em seus sucessores. "Tivesse sempre a instrução o esplendor dessa época, e Minas seria hoje uma grande Suíça pela educação de seu povo..."8
A despeito dessa deferência para com a autoridade, possuía espírito muito independente, demonstrado nas críticas que fazia a imperfeições e inadequações dos dispositivos estabelecidos pela reforma.
Assim, ao invés de boletins diários da vida do Grupo, exigência que fazia fragmentarem-se os dados, preferiu pedir autorização para mandar relatórios periódicos, conten-
6 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 26, p. 4.
7 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 23, p. 2.
8 COSTA, Firmino. Aprender a çstudar.p 100-5.
do sempre dados estatísticos do movimento escolar. Sugere também, num dos primeiros números da Vida Escolar, modificação nos critérios de substituição de professores.9
Não se satisfez com as instruções do programa do curso primário e, por esse motivo, acrescentou alguns esclarecimentos, destinados aos professores. Sobre a didática das principais disciplinas, também escreveu. Supriu faltas: por exemplo, um programa de higiene escolar.
Em todos os casos, foi além da letra da lei. Preocupou-se, em sua escola, com pormenores que a outros passariam despercebidos: a arborização do largo pátio, formando quase um bosque; a boa conservação do equipamento e rigoroso asseio em tudo; a ornamentação das aulas.
Inovando e renovando
Se, em muitos aspectos, renovou a aplicação dos preceitos legais, em outros foi o caso de inovar por completo.
0 espírito inovador manifestou-se, em primeiro lugar, quanto aos métodos de ensino. Era necessário colocar a criança como centro das atenções da escola. Em Minas, como em São Paulo, a instrução primária tomara o rumo do método intuitivo. A própria legislação era explícita quanto às novas diretrizes, como se pode verificar pela leitura das Instruções baixadas e que se encontram transcritas em apêndice do presente trabalho.
0 que levou Firmino Costa a sistematizar o uso dessa atitude didática foi o seu conhecimento da experiência pedagógica de outros países, adquirido por meio da leitura da revista L'Educateur e das biografias dos grandes educadores. Contribuíram também, para tanto, sua capacidade de observação e as conversas com o Dr. Gammon.
Alguns dos interesses didáticos especiais o acompanharam sempre: o ensino da leitura, o uso das excursões para o estudo da geografia e da história locais, a transmissão das práticas de higiene, a compreensão da história tendo como base a experiência pessoal e imediata dos alunos.
Outros aspectos são discutidos pelas colunas da Vida Escolar. Referimo-nos à disciplina escolar, por exemplo, a ser baseada no despertar do interesse e da atenção do aluno, conciliando-se com certo grau de liberdade e só diretiva em certas circunstâncias. Seguiu, a respeito, certas propostas de Spencer.1 °
Mudam duas coisas, principalmente, no novo ensino em geral e, em particular, em sua execução por Firmino Costa: a capacidade de incentivar o interesse dos alunos pelo ambiente escolar e pelo conteúdo do aprendizado; e, associado ao precedente, a relação educador/educando, a ser definida pelo conhecimento da criança e pelo respeito a ela.
Insistamos em que esse é o testemunho dos educadores e dos intelectuais que estudaram pelo antigo sistema de disciplina imposta, de ensino puramente memorizado, de truculência dos mestres.
Gustavo Pena, escritor mineiro conhecido pelos seus relatos de viagem ao exterior, nascido em Lavras, deixou estas impressões no livro de visitas do Grupo local:
9 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 6. p. 1.
10 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 4/5, p. I.
"Que extraordinária e consoladora diferença entre o passado e o presente; entre a antiga escola do professor Teófilo — em que aprendi a 1er, nesta minha doce e adorável terra natal - e este instituto!...
A escola moderna é a grande e nobre oficina, onde se burila o caráter, desbastam-se as asperezas de temperamento, faceta-se o espírito, o qual, à semelhança das pedras raras, não brilha sem o trabalho de lapidação paciente. Por isso, a missão de ensinar, inseparável da tarefa de educar (e educar sem a brutal selvageria de outrora), requer um esforço abnegado e quase esgotante.
Sirvam estas linhas de testemunho de apreço e afetuosa simpatia ao que dirige, com tanta dedicação e competência, este Grupo escolar, e aos que aqui lecionam."
Outro filho ilustre de Lavras, Zoroasto Alvarenga, deputado e depois Diretor de Higiene do Estado de Minas, acompanhou de perto os trabalhos iniciais executados por seu amigo Firmino Costa, tendo escrito também vários artigos para a Vida Escolar. Na edição de 15 de janeiro de 1908, publica este testemunho:
"Sao apenas transcorridos oito meses que se instalou o Grupo Escolar desta cidade e já aparecem em plena evidência os resultados brilhantes da reforma do ensino.
Até agora o menino, dado como pronto na escola pública, pouco excedia nos seus conhecimentos ao saber assinar o nome, em letra garranchosa, de sorte a poder qualificar-se eleitor. Tirante disso quase mais nada: cacarejar uma leitura, escrever ao lojei-ro um bilhete ou uma informação ao doutor era tarefa sempre dificil.
Agora um pirralho do Grupo conversa em sujeito e predicado, faz cálculos mentais e fala em aritmética; não desconhece a geografia e a história de sua terra e coisa de admirar! entra pelas ciências físicas e naturais, desvendando os rudimentos delas.
Um desses petizes já me falou em Colombo, Anchieta e outros da história pátria com o mesmo desembaraço com que se ufanava de contar, olhinhos vivos e carinha rosada, que uma planta tem tantas partes, que uma flor tem sépalas e pétalas, estâmes e pistilo. Tudo isso em oito meses!
Os professores devem estar contentes com os resultados de seus esforços; os frutos colhidos pagam que farte a energia despendida e aí hão de ficar como elemento de prova da excelência do novo método aos espíritos duvidosos e ramerraneiros irredutíveis."11
São no mesmo sentido as impressões do Cônego Sequeira. Transcrever esses depoimentos não significa endossar certa idealização do papel da escola; significa ilustrar a afirmação de que houve mudança qualitativa na forma e no conteúdo da educação primária e que essa mudança foi mais profunda no Grupo de Lavras, o qual, de certa forma, deu o tom do novo ensino público mineiro.
Além das inovações nos métodos, houve-as, igualmente, nas instituições escolares. Citemos, em primeiro lugar, a organização de uma biblioteca. Em outubro de 1908, dizia o diretor que ela seria inaugurada em breve.
"Deverá constar a biblioteca de tratados de pedagogia; de livros didáticos e obras de consulta sobre as matérias do curso primário; de manuais sobre artes, ofícios e indústrias; de enciclopédias e dicionários; de publicações concernentes ao Brasil; de obras clássicas e literárias escolhidas; de coleções de leis e relatórios; de revistas e jornais. As publicações recebidas em duplicata ou as que se considerarem impróprias serão permutadas por outras."12
11 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 18, p. 1. 12 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 31. p. 1.
Relata depois as doações recebidas: a Revista do Arquivo Público Mineiro, a coleção completa da Revista Ilustrada, de Angelo Agostini, a História Geral do Brasil, do Visconde de Porto Seguro, a História Universal, de César Cantu, o Grande Dicionário Larousse e o Novo Larousse Ilustrado. De sua parte, afirma o diretor, irá dotar a biblioteca de algumas coleções de jornais locais, "grandemente estimáveis por serem únicas." 13
Ao anunciar o melhoramento, Firmino discorre sobre a função da biblioteca, tanto internamente para alunos e mestres, como também para a cidade.
A biblioteca foi organizada no dia 19 de dezembro de 1908. Passou a ter quatro divisões: Biblioteca Infantil Custódio de Souza Pinto; biblioteca do professor primário; obras em português ; obras em língua estrangeira.
Em seu relatório de 1917, dirá o diretor: "A primeira foi fundada em 10 de outubro de 1913 e recebeu o nome de seu ilustre doador; a segunda está sendo organizada de acordo com o plano, que apresentei em meu relatório anterior, onde enumerei todas as obras, em número de cem, que devem compô-la; as demais divisões sao constituídas por quaisquer volumes, que pela sua natureza não se incluem nas duas primeiras. "com o fim de melhor despertar nos alunos mais adiantados sua predileção à leitura, organizei uma biblioteca infantil, formada de vinte obras escolhidas, para de preferência serem lidas por eles, fornecendo-se-lhes a relação das mesmas, caso queiram adquiri-las para seu uso."
Nesse mesmo relatório é possível interar-se o leitor das demais instituições escolares ali criadas:
• Museu escolar, previsto na legislação, mas organizado segundo um projeto pessoal de Firmino Costa e enviado ao governo no relatório anterior.
• Assistência infantil, destinada a suprir os alunos carentes de elementos necessários ao acompanhamento das aulas. Fornecia merenda diária, distribuía roupas. fornecia material escolar, escovas para dentes, canecas para água, "emprestava facas para descascar frutas no recreio", providenciava corte de cabelo, mantinha farmácia escolar, promovia vacinação, fazia revista de asseio, visitava os alunos doentes em suas casas.
Estava sendo providenciada a construção de instalações para a assistência dentária; no mesmo pavilhão seriam instalados três chuveiros e apetrechos para corte de cabelo.
No mesmo relatório, o diretor apresenta um minucioso projeto de farmácia escolar. • Sociedade Infantil de Estudo, uma espécie de clube de estudo e de ciência. Tinha
por objetivo desenvolver a biblioteca e o museu. Seu lema: "Saber melhor para melhor querer e melhor agir."
• Caixa Escolar Dr. Augusto Silva, que se constituía em um fundo de assistência aos alunos pobres, semelhante às que foram criadas na mesma época em Minas, constituindo uma tradição até hoje vigente. A Secretaria do Interior enviava à Caixa material escolar. Vivia de doações dos próprios alunos e de pessoas da comunidade. O curso de Trabalhos Domésticos fornecia refeições e confeccionava roupas para os alunos.
• Prêmios, instituídos com o objetivo de incentivar a freqüência e aproveitamento dos alunos. Eram doados por pessoas interessadas em ajudar e recebiam nomes. em geral, de beneméritos da localidade.
• Comemorações de festas escolares, como o sete de setembro (ali também o Dia
13 Idem, ibidem, p. 1.
da Árvore), 15 de novembro e outras datas. 0 Dia da Cidade foi instituído pelo grupo escolar.
Outras inovações introduzidas naquela escola se referiam à abrangência do ensino. Além do ensino elementar propriamente dito, criaram-se os cursos Rural de Professores e o Complementar.
Sobre o segundo, pode-se 1er, por exemplo, no Relatório de 1913: "Este curso prepara marceneiros, serralheiros, sapateiros e costureiras. Seu ensino,
além de abranger a prática desses ofícios, compreende desenho e revisão das matérias do curso primário.
A matrícula do curso constou de 34 alunos, sendo 19 do sexo masculino e 15 do feminino.
A freqüência legal foi de 20 alunos no primeiro semestre, e de 20 no segundo."14
Lamenta que a freqüência não tenha podido ser maior. Isso se devia ao acanhamen-to das instalações e também às dificuldades de manutenção dos alunos pobres. Sugere que o governo encontre meios, possivelmente com apoio das municipalidades, para oferecer prêmios (o que corresponderia às atuais bolsas de estudo) para que os alunos pobres pudessem se dedicar mais a essa aprendizagem.
Esses cursos, mantidos sempre em Lavras, correspondiam a uma ampliação dos objetivos da reforma, e cuidavam principalmente do ensino agrícola.
Em Lavras, havia também aulas de horticultura para rapazes e meninas. O plano de aproveitamento do terreno doado ao Grupo pela Câmara Municipal foi feito pelo professor norte-americano Benjamin H. Hannicut, da Escola Agricola.15
Certamente, por causa das dificuldades práticas, o curso complementar foi-se restringindo com o tempo. Chegaram a funcionar apenas, em certa época, os de marcenaria e de trabalhos domésticos.
Muitos artesãos e artífices formados pelo Grupo de Lavras, segundo a tradição oral e segundo alguns depoimentos escritos, eram muito considerados, no mercado de trabalho, pela sua competência e senso de responsabilidade.
Quanto ao Curso Rural de Professores, faremos a apreciação de seu significado no capítulo sobre o magistério como profissão. Era mantido pela municipalidade e supervisionado pelo diretor do grupo escolar.
Num relatório do Presidente da Câmara Municipal, lê-se a seguinte apreciação: "Durante este ano (1926), a Câmara despendeu com este serviço a quantia de
4:320$000. Os professores diplomados por este curso têm dado as melhores provas de si, estan
do alguns deles colocados em escolas rurais estaduais. A Câmara, a nosso ver, andou bem, fundando e mantendo o Curso Rural de Professores, pois a falta de professores para as escolas rurais e mesmo distritais se vinha fazendo sentir de maneira assustadora."16
14 Relatório ao Secretário do Interior. Belo Horizonte, 10 e 11 mar. 1909.
O Professor Hannicut, autor de um livro sobre a cultura do milho no Brasil, foi diretor da Escola Agrícola de Lavras. A Vida Escolar informa, em seu n. 26, de 15 de julho de 1908: "Já foi arado o terreno para a horta escolar do Grupo. O plano traçado pelo Sr. Dr. Benjamin Hannicut para esse grande melhoramento mereceu elogios do Sr. Dr. Carvalho de Brito, Secretário do Interior."
16 Relatório do Dr. Paulo Menicucci, presidente da Câmara Municipal. Lavras, 1927.
Outra inovação assinalável foi a de estabelecer novas relações entre a escola e a comunidade. Sobre tal assunto se discorrerá mais amplamente no próximo capítulo. Tratava-se, por um lado, de levar a propaganda da instrução, considerada esta como um direito social básico,a todas as camadas da comunidade; por outro, de promover a articulação comunitária, tendo a escola pública elementar como centro. Essa idéia foi depois incorporada à Reforma Antônio Carlos, sob a forma de federações escolares.
Em resumo, as inovações se deram sob os aspectos institucionais; do aprimoramento dos métodos de ensino; da abrangência do ensino (ampliando-se quanto ao ensino normal rural e ao técnico-profissional ao nível do grau primário); do relacionamento com a comunidade.
Ocorreram outras práticas, que nao eram propriamente inovadoras, mas de renovação de idéias e práticas já existentes no sistema de ensino mineiro. Assim, sem romper com a tradição regional e nacional, adotaram-se certas tônicas diferentes: o civismo visto do ângulo da cidadania foi posto em prática por Firmino Costa;do mesmo modo,o ensino da história a partir do presente e do imediato;e, mais importante ainda, a nova visão do ensino normal. Na consideração deste último tema, nos deteremos melhor mais adiante.
Os famosos relatórios
Desejamos falar mais um pouco do cerne da concepção educacional de Firmino Costa, do significado de seus relatórios e da repercussão obtida pelo seu esforço construtivo.
Entendia que a preparação para a vida profissional - dentro de espectro mais amplo de relações sociais - era a principal finalidade do processo educação/instrução exercido pela escola, especialmente a escola fundamental. Não enxergava apenas do ângulo da formação da força de trabalho para o mercado; enxergava mais a faceta da realização pessoal dos profissionais. Assim como a escola superior estava aberta apenas aos privilegiados, era preciso preparar os outros nas oficinas, as "academias dos pobres".
Os relatórios que enviava ao Secretário do Interior tornaram-se uma praxe proveitosa: para o grupo, para a administração, para o professorado. Neles o diretor relatava as principais ocorrências do ano anterior; dava uma noção precisa do andamento de todas as seções da escola; propunha planos e projetos de melhoramentos; fazia críticas à legislação ou a medidas administrativas; propunha sugestões de iniciativas a serem tomadas pelo governo. Debatia, por vezes, assuntos mais amplos ou menos rotineiros de natureza pedagógica. Publicados em opúsculos alguns, todos difundidos pelas colunas do Minas Gerais, exerceram esses documentos oficiais uma influência em todo o Estado; basta lembrar que o órgão oficial era lido pela quase totalidade dos servidores públicos de Minas.
Por esses relatórios, percebe-se, por exemplo, como Firmino Costa estava atualizado com o material escolar moderno produzido no Brasil e no exterior. Depois de falar. num deles, da preocupação em evitar a sedentariedade, realizando certas atividades sempre ao ar livre, com auxilio ainda da horticultura e da jardinagem, informa: "Ligando a devida importância aos exercícios de ginástica, fiz vir da Dinamarca uma série de vinte e dois quadros representativos nas posições não só corretas como também incorretas, concernentes àquela disciplina."
Sua preocupação com os livros escolares era vivamente crítica. Procurava selecionar o melhor, independentemente do prestígio nacional dos respectivos autores: "Em vez
do Livro de leitura, de Bilac e Bonfim, impróprio para o curso primário, sejam preferidos para o quarto ano A horta de Tomé, de Mota Prego, e O livrinho das aves, de Rodolfo von Diering. A obra do Sr. Mota Prego é um dos melhores livros de leitura para crianças, que eu conheço ;é bastante lê-lo para ficar-se encantado com o seu estilo, com a sua narração, com os seus elevados conhecimentos, deixando-nos ele uma impressão agradabilíssima e inspirando-nos um intenso entusiasmo pelo cultivo da terra. O livrinho das aves vale principalmente pelo assunto, tratado de modo carinhoso pelo seu ilustre autor."
Nesse mesmo relatório, revelando interesse pela educação científica dos alunos do primário, propõe:
"ótimo serviço prestaria o governo de Minas ao estudo da história natural e de física, se mandasse traduzir para o professorado o precioso livro Les sciences physiques et naturelles à l'école primaire, méthode expérimentale, par P. Chauvet et J. Jeanjeau, éditeur A. Thorinaud, Montluçon.
É este um compêndio que satisfaz o mais exigente professor. Seus autores resolveram o problema do ensino experimental daquelas ciências na escola primária por meio de um método que torna as experiências rápidas, simples e econômicas, havendo o Prof. Chauvet organizado, para esse fim, além do compêndio, um guia e um laboratório ideal, que custa apenas 40 francos."17
São apenas alguns exemplos de temas tratados nos relatórios. A partir do primeiro deles, referente ao primeiro semestre de atividades do estabelecimento, e publicado em julho de 1907, foram sendo elaborados anualmente e religiosamente divulgados, até 1925, quando o diretor se transfere de Lavras.
Por esse e outros meios, o Grupo Escolar de Lavras se tornou muito conhecido no Estado. Nos registros da Vida Escolar, percebe-se o grande número de visitantes que procuram conhecer a obra educativa de Firmino Costa; do mesmo modo, o registro aparece no livro de visitas e nos diários das estagiárias de prática profissional. São professores de municípios vizinhos, políticos, secretários da educação de outros estados.
Mais do que todos esses, contribuíram para perpetuar a memória dessa obra os antigos alunos, que se orgulharam de terem dela participado.
Baseou-se este capítulo, especialmente, nos escritos da Vida Escolar; eles testemunham o impulso inicial da carreira de mestre-escola do diretor do Grupo de Lavras. A coleção que compulsamos foi enviada por Firmino Costa ao então dirigente do Arquivo Publico Mineiro, Augusto de Lima, escritor e político. Baseou-se ainda em alguns relatórios, mas temos a certeza de que não nos foi possível explorá-los em toda a sua riqueza de conteúdo.
17 Relatório ao Secretário da Interior. Belo Horizonte, 1909.
Comunidade e cidadania
Sempre Lavras
Cioso de suas raízes familiares, Firmino Costa identificou-se, desde cedo e de forma bastante concreta, com a cidade de Lavras, por ele evocada com ternura crescente nos últimos anos de vida. Tratava-se, por certo, de um sentimento muito particular, mas fecundado por uma tendência cultural de Minas.
Já se notou o vivo sentido municipalista que se exprime no pensamento e na atuação de intelectuais mineiros. Ao analisar as características das diversas regiões, em seu estudo interpretativo da literatura brasileira, Viana Moog versou o tema com inegável propriedade. Por mais nacionalmente famoso que seja um escritor mineiro, tende sempre a vincular a própria imagem ao município de origem.1 Por sua vez, o traço municipalista foi sempre alimentado pela força atribuída ao poder local: as lutas políticas de família invariavelmente se ferem nos horizontes das pequenas comunas. Lavras não está ausente desse panorama; não está isenta dessas paixões. Para desgosto de Firmino Costa, que postulava a impessoalidade como norma de atuação dos dirigentes educacionais, o expediente clientelistico sempre acompanhou essas disputas.
A personalidade do educador lavrense talvez fosse, em alguma proporção, resultante de dois vetores familiares quase opostos. Do lado paterno, o espírito de aventura, a capacidade de ousar e de apostar no futuro; do lado materno, o sedentarismo rural de várias gerações de agricultores. Procurou o equilíbrio entre cultivar as tradições locais e abrir caminho em direção ao futuro. Pelo casamento, ligou-se a uma família de descendentes de bandeirantes, fundadores da cidade, os Buenos.
Esse cultuar a comunidade de origem pôde encontrar bom suporte nos dispositivos legais referentes à reorganização do ensino primário, isto é, na legislação baixada por João Pinheiro e Carvalho de Brito. Está ali contida a idéia de se começar a transmitir a percepção da realidade geográfica por meio do contato com a sede da unidade escolar, como se pode verificar nas instruções reproduzidas em apéndice e, principalmente, no próprio programa. Dispositivos semelhantes, recomendando o uso do ambiente local como ponto de partida, foram estabelecidos para o estudo da História do Brasil.
Percebe-se que as instruções e os itens programáticos se inspiravam nos princípios do ensino intuitivo, pretendendo a transmissão de conhecimentos a partir do mais concreto e imediato. Mas pareciam pretender, igualmente, lembrar aos pequenos alunos sua ligação afetiva com o meio social que os envolvia. Primeiro a família, depois o município - era a orientação.
Num artigo muito antigo, nosso mestre propõe sua própria forma de iniciação dos escolares no conhecimento geográfico. Faria com eles uma excursão, levando-os a lugar
Cf. MOOG, Viana. uma interpretação da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1943. Esp. cap. 6; há uma segunda edição, com o subtítulo Um arquipélago cultural. Antares, INL, 1983.
elevado, donde se pudesse descortinar largo horizonte. Apontaria ali os pontos cardeais. determinando cada um deles pela posição dos prédios correspondentes; o edifício do prédio escolar seria indicado da mesma forma. Em mais um ou dois passeios seguintes, observaria com os alunos os diversos acidentes geográficos da localidade, a serem depois representados num tabuleiro de areia. Mais tarde se faria o esboço cartográfico da povoação. O primeiro semestre seria encerrado com o estudo dessa carta: "Ruas, praças e avenidas principais, espécie de arborização e calçamento, iluminação e água potável, meios de transporte e Viação férrea, serviço postal e telegráfico, tudo isso daria assunto para um ensino tão vantajoso quão interessante." Haveria também referência ao clima, aos edifícios públicos, estabelecimentos comerciais, estações do ano, enfim todo tipo de informação sobre a paisagem, a vida econômica, as relações sociais.2
No segundo semestre, mostraria que a cidade ou vila em que viviam os alunos era parte pequeniníssima de uma grande totalidade, o mundo. Esta, ao contrário, não poderia ser visualizada diretamente, mas pela figuração num globo terrestre. Propõe que se construísse o globo de forma simplificada, com os mares e os continentes. Neles se fixariam os territórios do Brasil e de Portugal, como preparação para um estudo conjunto histórico-geográfico das unidades políticas.
Para justificar esse ponto de vista, Firmino Costa usa uma frase de surpreendente poesia: "0 sol e a lua, o dia e a noite, o céu e as nuvens, como velhos conhecidos dos alunos, têm o direito de preceder na escola o distrito e o município, que serão aprendidos mais tarde."3
Em seu grupo escolar, essa variante do programa oficial certamente foi seguida. As excursões foram usadas e preconizadas por ele como um recurso didático de grande valia e uma forma de contato benéfico com a natureza.4
0 seguro conhecimento dos aspectos geográficos e históricos de Lavras e de sua região era bastante anterior à atividade de mestre; esse domínio derivava do culto à tradição local e do bom relacionamento com os cidadãos mais antigos e bem informados do lugar. Ao assumir a direção do grupo escolar, estava não apenas em condições de fazer executar o programa oficial, com relação à história do município, como de produzir bem elaborada monografia sobre o assunto. Em capítulos sucessivos, foi publicado no boletim quinzenal do Grupo.
"Coordenando os trabalhos publicados na Vida Escolar, organizei-os com estes títulos para enfeixá-los em livro: o quadro histórico;cronologia;documentos históricos; igrejas e vigários de Lavras; ruas e praças; primeiros anos do município; revolução mineira de 1842; a proclamação da República; distritos; governo municipal ¡divisão judiciária; lavrenses beneméritos; corografia, compreendendo o município, a cidade e os distritos."5
Quase todos esses temas foram versados na publicação: a parte histórica, numa série de vinte e quatro apontamentos numerados por algarismos romanos; a parte de corografia foi interrompida com o encerramento da circulação da Vida Escolar, no número 34. Os apontamentos da História de Lavras foram reproduzidos pela Revista do Arqui-
2 COSTA, Firmino. O ensino primário, p. 125.
3 COSTA, Firmino. O ensino popular, p. 54.
4 COSTA, Firmino. O ensino primário, p. 129.
5 COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 52.
vo Público Mineiro, juntamente com a notícia de instalação do grupo escolar. Anotou a redação daquela revista: "Esta excelente monografia é devida à pena do nosso ilustre colaborador Firmino Costa, diretor do grupo escolar da cidade de Lavras."6
Trata-se de criterioso trabalho historiográfico, em que se usam simultaneamente a tradição oral e documentos escritos; alguns deles foram pesquisados pessoalmente por ele no arquivo paroquial e no da Câmara Municipal. Ao escrever o relato da repercussão, em sua cidade, da Proclamação da República, o autor estava usando seu próprio testemunho de participante dos fatos. Curiosamente, há um longo hiato, quanto a acontecimentos políticos, entre a Revolução Liberal e o 15 de Novembro de 1889.
Tal tarefa, realizada aliás com presteza e segurança, era por ele encarada como o cumprimento de uma obrigação. "Ão grupo", afirma, "cabe naturalmente o dever de redigir a história e a corografia locais. Mesmo que esse trabalho já tenha sido feito, cabe-lhe retificá-lo e desenvolvê-lo, dando-lhe publicidade".
Entendia competir ao grupo escolar não apenas ser uma "casa de educação" para os seus alunos, mas também ser um centro educacional para as demais escolas primárias do município. Do grupo "terá que partir a orientação do trabalho didático para as escolas singulares, unindo-as em fortes laços de solidariedade, fazendo-as adotar os modernos métodos de ensino, animando-as sempre no desempenho de sua elevada missão".''
Mais ainda, incumbe-lhe ser o guardião e o animador das tradições da localidade. Deveriam estas ser retiradas do esquecimento, para receber celebração condigna. Para tanto, propõe que cada grupo escolar crie uma "sala do município", repositório vivo de tudo que fosse concernente à comunidade.
É claro que essa visão tinha muito mais sentido numa sociedade menos complexa do que a atual sociedade brasileira. Havia a esse tempo, em regra, uma única escola pública maior em cada município;eram poucas as instituições comunitárias capazes de exercer funções essenciais à vida coletiva local. Esperava-se muito da escola.
Firmino Costa, desde o início, desde o discurso inaugural da escola que iria dirigir, dispôs-se a dar tudo de si pela sua cidade.
"Quanto a mim poderia dar a este estabelecimento uma direção que o torne equiparável a seus congêneres? Só o tempo poderá responder. Se eu, porém, atingir a este alvo, bem o sei, não será por mim, mas devido principalmente ao nosso meio social. Esta atmosfera de paz e de moralidade, que se respira em Lavras, é em extremo favorável à educação popular. Num meio tão apropriado não poderá deixar de desenvolver-se esta casa de educação. O povo compreenderá que é dele o Grupo Escolar e tratará o mesmo como uma de suas mais valiosas propriedades.
He virá auxiliar minha direção com sua experiência e seu entusiasmo. E é o que espero, porque neste posto não terei outra vaidade senão a de servir ao povo, sendo meu único objetivo a educação da infância de minha terra."8
COSTA, Firmino. História de Lavras; apontamentos. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, 1913. p. 125.
' COSTA, Firmino. Centro de instrução municipal. Revista do Ensino. Belo Horizonte, mar./out. 1925. p. 187-8.
a COSTA. Firmino. O ensino popular, p. 12.
Antes de dizer o que fez Lavras, será interessante comparar essa opinião dele - a de que os méritos eram da cidade - com a de seu amigo Mário Casassanta, no sentido contrário, de que Firmino Costa transformara a atmosfera local. Registrando a aposentadoria do velho mestre, em 1938, afirma Casassanta: "Graças a essa vontade de aprender e a uma extraordinária capacidade de abnegação, esse professor, que antes de ensinar os outros se ensinou a si mesmo, construiu em Lavras a melhor escola primária de Minas Gerais e imprimiu à comunhão lavrense em cunho indelével de polidez e de elevação."9
Enfim, o que transparece de tudo é a identidade entre o cidadão e sua terra natal. Além de criar a sala do município, no grupo escolar, instituiu também uma data fes
tiva. Propôs que o dia 20 de julho, data da elevação de Lavras à categoria de cidade, em 1868, fosse consagrado à festa da cidade.
Em 1914, a festa comemorativa alcançou muito brilho. O Cine-Jornal, órgão do cinema Internacional, da empresa F. Pizzolante (vespertino diário de distribuição gratuita), assinala a data com um número especial. Estampa fotografìa de Firmino Costa na primeira página e um artigo dele, intitulado Cidade de Lavras, que é um esboço da história do município. Num texto assinado por Nelly, provavelmente um pseudónimo, o diretor do grupo escolar recebe calorosos elogios, mas também sob um ângulo pouco usual: "é um dos elementos mais.indispensáveis para a tão necessária libertação do humano pensamento dos nocivos preconceitos metafísicos que a Idéia Moderna procura abater para substituir pela sólida Fé Científica".1 ° Essa imagem de um antimetafísico, proposta talvez por algum ou alguma positivista, não parece corresponder à linha dominante do pensamento de Firmino Costa. Não obstante, num dos itens do Calendário Escolar, considerou Augusto Comte como o maior filósofo do século XIX.
O cultivo das figuras consideradas representativas da história local foi realizado pelas colunas da Vida Escolar, na seção Comemorações. Apareceram sucessivamente os seguintes nomes: Comendador José Esteves, dirigente político, administrador e filantropo (nº 1 do jornal); Martins de Andrade, antigo deputado provincial, jornalista e propagandista da República (nº 2); José Custódio, simples artesão, exemplo de trabalho e generosidade (nº 7); Pedro Rodrigues, fazendeiro e benemérito da Casa de Misericórdia (nº 7); Vigário José Bento (Ferreira de Mesquita), pároco dedicado e caridoso (nº 11); José Esteves, médico e membro do antigo Conselho Distrital (nº11); Romão Fagundes, faiscador de ouro no século XVIII e construtor da Matriz (nº 12); Tenente Firmino Sales, pai de Francisco Sales, responsável por várias iniciativas, inclusive a do abastecimento d'água da localidade (nº 13); Major Ferreira, farmacêutico prático e filantropo (nº 14); Capitão Costa Pereira, pai de Firmino Costa, combatente na Revolução de 1842 (nº 15); Augusto Silva, médico, escritor, líder espírita (nº 17); Evaristo Alvarenga, "espírito liberal e patriota, que se interessava muito pela causa pública" (nº 18); José Jorge da Silva, um dos chefes do movimento de 1842 em Minas, pai de Augusto Silva (n927).
O que se pretendia era oferecer o exemplo de vidas dedicadas ao trabalho e ao bem coletivo. Foram também pessoas que participaram do progresso do município e da re-
CASASSANTA, Mário. Firmino Costa, Belo Horizonte, s. ed. 1938.
Cf. Cine-Jornal, órgão do Cinema Internacional. Empresa F. Pizzolante. Vespertino diário de distribuição gratuita. Ano I, n. 49, 20 jul. 1914, edição comemorativa do 469 aniversário da cidade. Publica artigos de Firmino Costa: A Cidade de Lavras, p. 1, e dois artigos sobre o mestre - Firmino Costa, por Nelly, e Carta aos alunos do Grupo Escolar, por Neto.
gião. Significativamente, não cogita Firmino Costa apenas do progresso material, dando importância também à evolução dos costumes e da mentalidade coletiva, conforme se pode 1er neste trecho de sua história de Lavras:
"Quando se tornou vila, em 1832, tinha Lavras 245 prédios, e não havia calçamento em nenhuma das ruas. De edifícios públicos apenas existiam nesse tempo a igreja matriz, a capela do Rosário e a das Mercês. As casas envidraçadas, e uma ou outra possuía janelas de rótula. As mobílias das salas constavam de bancos de encosto, tamboretes de couro com cabelo, marquesas ou catres servindo de sofá.
Os costumes de nosso povo em 1832 deviam diferir muito dos de hoje. 0 grande atraso daquele tempo, e sobretudo a escravidão, haviam de influir desfavoravelmente na doçura dos nossos costumes, tornando-os mais ásperos.
Quanto ao vestuário, as senhoras não safam à rua sem o seu capote de abano e sem um lenço na cabeça, não prescindindo deste último as próprias moças."11
Aspecto que considerava fundamental era o do desenvolvimento do ensino. Nas efemérides lavrenses que registra no calendário escolar do Grupo, dá sempre destaque às personalidades ligadas à instrução, aos educadores e ainda aos acontecimentos escolares. Registra, por exemplo, a morte, em 1898, da professora pública D. Guilhermina Brasileiro, "que durante longos anos fez de sua escola, na cidade de Lavras, uma verdadeira casa de educação".12
Caloroso tributo dedica também à memória de Guilhermina Gammon, a esposa do missionário e educador Samuel Gammon. Ela passara 14 anos em Lavras, em companhia do marido, auxiliando-o na direção do Ginásio. Faleceu nos Estados Unidos em 1908, recordando-se sempre com carinho de seu trabalho educativo no Brasil. Firmino Costa faz o seu perfil em artigo publicado em Vida Escolar. Afirma que acaba de receber carta de seu amigo, dando-lhe a notícia do falecimento da esposa. "Amava o colégio e os alunos, amava os amigos e o povo de Lavras. Assim nos escreve o Dr. Gammon."13
Firmino Costa encontrava-se convencido de uma espécie de vocação de Lavras para as atividades educativas. Era uma tradição com raízes bastante antigas:
"Se em 1832, ao instalar-se a vila, existiam aqui três escolas particulares com 62 alunos, como já referimos, no ano seguinte de 1833 havia, além das aulas particulares. uma escola pública com a matrícula de 40 meninos e meninas, sob a direção do professor Raymundo Nonato, e mais a aula de gramática do padre Brasiel.
Desde o princípio a municipalidade lavrense mostrou-se zelosa da instrução. Em seus relatórios o fiscal do município prestava sempre informações sobre o movimento da instrução em Lavras, e a Câmara não perdia ensejo de interessar-se pelo desenvolvimento intelectual da vila. Na sessão de 24 de outubro de 1833 o vereador João Evangelista de Carvalho apresentava uma proposta, pedindo ao governo a criação de uma escola primária para o sexo feminino, proposta que foi renovada pelo vereador Major Antônio Simões de Souza nas sessões de 9 de janeiro de 1836 e 16 de janeiro de 1838."
Depois,já na passagem do século, foram sendo criados novos estabelecimentos de
11 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 24.
Em apêndice deste livro, vejam-se as efemérides lavrenses.
13 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 27. p. 1.
ensino elementar, de ensino normal, oficial e particular, de ensino secundário. Mais tarde, a Escola Agrícola, ligada ao Instituto Gammon no início, transformou-se em Escola Superior de Agricultura de Lavras (ESAL), hoje estabelecimento federal.
Num discurso de 1918, como paraninfo das alunas da Escola Normal de Lavras, Firmino Costa faz uma pequena profecia, no fundo exprimindo desejo íntimo seu:
"A boa sorte de Lavras quer fazer de nossa terra a cidade da instrução. É um belíssimo projeto que já está sendo executado.
Não sei se a cidade projetada terá esplêndidas avenidas, parques admiráveis, grandes fábricas em atividade, automóveis e carros em profusão. Mas eu diviso no grandioso plano um povo forte, animado e laborioso, verdadeiro amigo da Pátria, cheio de iniciativas úteis, vivendo em plena harmonia, sem ódios políticos e religiosos.
Eu me honro de ser um dos operários desse trabalho, e é como tal que hoje aqui me encontro, atendendo ao delicado convite dos novos operários da futura cidade, aos quais irei dizer algumas palavras, para o que vos peço a devida vênia."14
A escola cultivava as tradições e animava o progresso, segundo essa concepção. Para tanto deveria formar bons cidadãos. Quer dizer: os meninos e meninas deveriam ser educados para o trabalho a ser integrado numa solidariedade a nível comunitário e a nível da sociedade como um todo, visando ao bem comum. O trabalho era dever de todos, em todas as camadas. A instrução tornava o trabalho mais eficaz, mais rendoso, mais gratificante. Essa èra, em síntese, a perspectiva de Firmino Costa. Acrescente-se que o cidadão era sempre prestante, isto é, cooperativo.
Futuros cidadãos
São nesse sentido os conselhos que deu à turma de formandos em 1915, no grupo escolar, em outro discurso de paraninfo:
"Fazeis parte da cidade desde pequenos, e de ora em diante não podereis de todo desertar o vosso posto. Estudantes, empregados ou auxiliares de vossos pais, que sereis agora, mais tarde ocupando qualquer posição social, procedei sempre como verdadeiros cidadãos.
São dignos deste nome todos aqueles que sabem servir fielmente a sua cidade, tanto na ordem social, como na ordem política. Obras de beneficência e de educação, serviços públicos, administração municipal, tudo que for a bem do desenvolvimento da cidade merece vossa inteligente cooperação.
Tal como o jequitibá, que na floresta se eleva cada vez mais alteroso e frondejante, até ficar sobranceiro às outras árvores, assim vosso amor à cidade erguer-se-á cada vez mais adiante, até envolver numa auréola de patriotismo esta grande nacionalidade. É de amor que precisa a Pátria, é falta de amor a crise em que ela se debate."15
Essa idéia de civismo, que aparece aqui um pouco convencionalmente, foi sendo depurada, pelo mestre, ao longo de sua vida. Nesse momento pensava no exercício dos deveres dos cidadãos em face da comunidade, como primeiro passo para a consciência da lealdade em face da sociedade nacional.
COSTA, Firmino. O ensino primário, p. 233.
15 Idem, ibidem, p. 204.
Sempre deu alguma importância aos ritos patrióticos, ao uso dos símbolos nacionais. Essa perspectiva fazia parte, aliás, do ambiente das primeiras décadas da República, ou por influência positivista ou ligada à pregação de Olavo Bilac. No Grupo de Lavras, havia sempre hasteamento da bandeira nacional, por comissões de alunos que se destacassem. O sargento Sant'Ana, amigo do diretor, encarregava-se de treinar o batalhão escolar para marchas e desfiles nas solenidades.
Ao lado disso, havia, também, uma instrução prática sobre o trabalho cooperativo dos cidadãos prestantes na comunidade. Promoviam-se às vezes sessões simuladas da Câmara Municipal, do tribunal popular ou da pequena atividade comercial, pois o mestre considerava o trabalho do comerciante como um serviço prestado ao público.16
com o decorrer de sua experiência, Firmino Costa passou a dar maior importância à solidariedade entre os alunos, nascida da interação durante o trabalho escolar. Insistia na socialização dos alunos por esse processo.
Num texto posterior à experiência do grupo, iria associar mais claramente o tema do vínculo emocional com a localidade à idéia do correto ensino da história: "A história é a mestra da vida, dizem muitos, mas não nos esqueçamos de que a vida é o tempo presente. Por conseguinte, em vez de remontarmos imediatamente ao passado de que a criança não pode formar idéia, procuremos a princípio fazê-la compreender a realidade: a vida da família, a da escola, a da sede escolar, a do Estado, a vida nacional. Mais do que dramatizar a história, a classe irá fazê-la neste caso, colaborando para a melhoria do meio social."
O liame definitivo e mais fecundo com o meio social será a profissão: "Mas a profissão ou trabalho não se improvisa: aprende-se e aperfeiçoa-se", afirmará num texto escrito já em Belo Horizonte. "0 trabalho para a profissão continua, infelizmente, a ter organização incompleta em nosso país, onde há universidades para os favorecidos da sorte, e não existem oficinas em número suficiente para as classes populares. Ora, a sociedade tanto precisa de doutores como de oficiais."17
Os "oficiais" são principalmente os artesãos qualificados, por cujo trabalho ele nutria funda admiração. Narra que manteve, em seu gabinete de diretor, por muito tempo, mesa de trabalho construída por um artífice que aprendeu o ofício de marceneiro no Grupo, um ex-aluno; e que este se sentia lisonjeado pelo uso dado ao objeto que confeccionara com esmero.
Noção de civismo
Iria retomar, muitos anos depois, a concepção de civismo, esboçada naquele discurso de paraninfo. Em artigo escrito para a Revista do Ensino, em 1932, propõe o rateio das responsabilidades sociais pela educação cívica, entre os diversos segmentos sociais. "Somente o civismo dos poderes constituídos e dos orientadores da opinião pública -diz ele — conseguirá restabelecer a confiança na República Nova. É necessária uma reabilitação política para garantir o futuro do Brasil."
Esse artigo começa com uma frase entre aspas: "Ensinar o menino a pensar para lhe ensinar a viver; fazer dele um homem, e do homem um cidadão, eis o que já recomendavam os homens da Renascença e, em particular, Rabelais e Montaigne." Essa escala
Cf. SEQUEIRA, Francisco Maria Bueno de (Cônego), Firmino Costa. Op. cit.
17 COSTA. Firmino. Pela escota ativa. p. 128.
é realizada no âmbito escolar: "Ora, o professor, especialmente o professor primário, este verdadeiro protetor da cidade, como lhe chamavam os judeus, terá percorrido aquela escola?"
No restante do escrito, discute a necessidade de boa formação cívica do futuro professor primário; insiste em examinar o papel da escola normal nesse processo. (Essa perspectiva, àquela altura, ele já estava aplicando, na direção da Escola Normal Modelo, de Belo Horizonte).
Traça ainda os limites entre patriotismo e civismo. Considera o primeiro como "sentimento instintivo", quer dizer, impulso para a ação em momentos decisivos, mas sujeito a distorções: "às vezes ele degenera em bairrismo, regionalismo e jacobinismo". Pro-pOe depois esta comparação: "O patriotismo é como se fora a floresta, que está cheia de perigos e de belezas. A floresta pode conter surpresas entre os seus encantos. Quem se sente garantido no interior dela? Não são menores as surpresas do patriotismo quando ele degenera, quer na paz, quer na guerra. Assim como se faz preciso cultivar a floresta para transformá-la em plantações, searas, pastagens, parques, assim também cumpre que o patriotismo seja cultivado, para se elevar em civismo. O patriotismo está para o civismo assim como a floresta para a seara. Pode-se dizer que o civismo é o patriotismo cultivado."18
Firmino Costa foi depurando o seu sentido de civismo. Tornou-se isento de ufanismo. Os apelos aos jovens e crianças, por ele enunciados, eram calorosos, plenos de sentimento, porém nunca resvalavam para o tom piegas, tão comum entre os seus colegas de todos os tempos.
Para formar bons cidadãos, nenhum instrumento era mais válido, para esse educador, do que a boa preparação profissional, levando o amor ao trabalho.
Do ponto de vista de sua posição social, Firmino Costa era um intelectual pequeno burguês, de família de origem rural, tendo vivido durante décadas em pequena mas florescente cidade mais ou menos equidistante das metrópoles da Região Sudeste do país. Lavras contava com comércio razoavelmente desenvolvido e era um centro ferroviário de relevo, abrigando oficinas da Oeste de Minas (depois Rede Mineira de Viação); contava igualmente com indústria têxtil.
Possuía Firmino Costa sincera satisfação na convivência com duas categorias de gènte: as pessoas de espírito cultivado e os artesãos. A valorização do trabalho bem feito - especialmente o artesanal — transparece em vários de seus escritos.
O modelo mercantil
Numa atitude curiosa, em muitos momentos Firmino Costa se vale do simile do modelo da atividade mercantil (que foi a ocupação de sua juventude) para caracterizar a atividade do ensino. Ora o professor é comparado ao comerciante, tanto um como outro ordenando seus materiais em compartimentos e gavetas, tanto um como outro oferecendo amostras aos clientes; ora o conhecimento é comparado ao capital e também contabilizado. É claro que suas metáforas derivavam, em geral, da vida concreta que levara,1 9 Certa vez, em conferência sobre Pestalozzi, comparou - aliás com notável deli-
18 Idem, ibidem, p. 153.
19 Idem, ibidem, p. 90.
cadeza de linguagem - a padronização do ensino à padronagem dos tecidos.w
Seria, contudo, diminuir o alcance do pensamento desse educador considerar que tivesse uma visáo capitalista do ensino ou que considerasse o conhecimento mercadoria como qualquer outra. O reformador educacional era, sob o prisma do pensamento político-econômico, um reformista que fazia restrições ao capitalismo como sistema.
Tal pode ser avaliado por um escrito da maturidade sobre a vida profissional. Preocupado com a questão do desemprego, exprime-se desta maneira:
"Não menos perniciosa do que a ociosidade e do que o excesso de trabalho é a falta deste para quem o procura e nao encontra, caindo assim na penúria. Isso vem produzindo no mundo uma das crises mais tormentosas.
São problemas que somente a reforma integral do sistema educativo e da organização econômica poderá algum dia resolver. Certamente a escola verbalista de hoje jamais conseguirá solucioná-lo, porém a verdadeira escola ativa terá capacidade para fazê-lo."
Vê-se que considerava a educação como instrumento necessário, mas não suficiente para as transformações sociais. Que nova organização econômica seria essa, capaz de solucionar uma questão como a do desemprego? Sugere uma organização cooperativista: "Paulo Cuminal, em memória apresentada ao 39Congresso Internacional de Educação Moral, propõe para o organismo econômico a cooperação que vem trazer-lhe a harmonia entre o capital e o trabalho, e, ainda melhor, a preponderância do trabalho inteligente e organizador. Um capital que não exige dividendo, que se contenta com um interesse fixo, eis o capital cooperativo. Ele prescreve a especulação e a exploração, pres-tando-se apenas ao bom funcionamento da empresa. Em o negócio cooperativo, o capital não é senhor, é unicamente o auxiliar. O capital cooperativo, esse capital organizador, se levanta pouco a pouco contra o capital antigo, medíocre organizador, muitas vezes desorganizador e dividido aliás em fragmentos que lutam uns contra os outros, até se destruírem."21
Não poderia, naturalmente, ao tempo em que fez essa crítica e adotou essa espécie de utopia cooperativista, prever a extrema eficácia - acompanhada de irracionalidade, como a da destruição da natureza — de que se revestiria o capitalismo monopolista nos dias atuais.
Voltando, enfim, à aplicação do modelo mercantil, tentemos fazer, no caso, um exercício de estruturalismo genético à Lucien Goldman.22 Que haveria de comum, em termos de traços estruturais, entre a concepção de ensino adotada por Firmino Costa e a prática do comércio vigente em Lavras no começo do século? Pelo menos uma convergência é possível vislumbrar. 0 ensino por ele proposto deveria levar em conta, como ponto básico, a individualidade do aluno, com quem deveria o professor estabelecer efetiva relação interpessoal, procurando conhecer sua personalidade e as condições de vida da família; do mesmo modo, o comerciante numa pequena cidade conhece cada freguês, ou desconhece quando é forasteiro, de qualquer forma oferece a cada um tratamento individualizado, às vezes até quanto ao preço das mercadorias. Nao haveria aí um começo de homología entre um peculiar pensamento pedagógico e uma pe-
Idem, ibidem, p. 199
21 COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 55-6.
22 Cf. GOLDMAN, Lucien. Le structuralisme génétique en sociologie de la littérature. Bruxelas. Université Libre, 1967. E ainda do mesmo autor: La ilustración y la sociedad actual. Caracas, Monte Avila, 19/8 .
culiar estrutura social? No caso particular de Firmino Costa, tudo indica também que ambas as atividades eram concebidas estritamente como um serviço prestado ao público.
Noutro ambiente e noutro contexto - a Belo Horizonte do início dos anos 30 -quis ele reviver a idéia da escola fundamental como centro dinámico da vida comunitária. O governo Olegario Maciel lançara um movimento de recuperação econômico-financeira de Minas: a Campanha Econômica, que mobilizou a imprensa e diferentes associações. Pretendia-se incentivar a produção agropecuária e, explicitamente, substituir importações. A mobilização objetivava ainda a colocação de títulos da dívida pública, obrigações do Tesouro do Estado, para custeio das despesas mais prementes. Havia uma Comissão Central e, no ámbito desta, uma Subcomissão da Instrução, constituída por Mário Casassanta, Edgar Renault Coelho, Waldemar Tavares Pais, José Maria de Alkmin, Helena Pena, Gil Lemos, Alda Lodi, Firmino Costa e Vitalia Campos. A Subcomissão dirigiu circular aos professores do Estado com esclarecimentos sobre a "reconstrução financeira" e com apelo a se engajarem na campanha. uma das medidas propostas era a de que os particulares permutassem obrigações do tesouro federal pelas apólices de Minas, a fim de que aquelas fossem caucionadas em bancos para levantamento de numerário, por parte do governo. Dias antes da divulgação dessa circular, Firmino Costa, em nome da Subcomissão, dirigira outro apelo, denominado "a escola mineira".23 Propunha providências que significavam a participação ativa dos grupos escolares nessa campanha, cada um dêles constituindo-se "em centro de ensino para os alunos e em centro de informações para a administração estadual". Além de difundir técnicas agrícolas e captar dados sobre a vida econômica local, deveriam as escolas manter hortas e dar preferência a produtos nacionais. Essa mobilização durou pouco. Em decorrência dela, o nome de Firmino Costa ganhou maior projeção nos meios educacionais, pelo novo testemunho que dava de seu interesse pelos problemas públicos.
23 Minas Gerais. Belo Horizonte, 21 jan. 1931, p. 2. Ibidem, Firmino Costa. A escola mineira, 21 jan. 1931, p. 2.
O magistério como profissão
Uma questão antiga
Firmino Costa preocupou-se constantemente com o problema da formação adequada de professores. É preciso recuar no tempo, para que possamos compreender a natureza e a profundidade desse empenho. As faculdades de Filosofia (e Ciências e Letras, como eram inicialmente conhecidas) só se fundam no Brasil com o desenvolvimento do ensino universitário, na década de 1930, notadamente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Destinavam-se a formar professores e especialistas nos diversos ramos do conhecimento. As primeiras experiências de ensino superior de educação datam da mesma época. Ele só veio a conhecer essas experiências nos últimos tempos de sua vida, pouco antes da aposentadoria. Por sua vez, o ensino normal era geralmente pouco voltado para a prática pedagógica, quase confundindo-se com o ensino secundário da época.
Professor e pedagogo, graças aos seus esforços autodidáticos, preocupava-se com a necessidade de serem formados mestres, especialmente para o ensino fundamental, que fossem verdadeiros profissionais.
Daí a constante reflexão sobre o ensino normal. Entendia que fora uma falha da reforma João Pinheiro, de 1906, o ter conservado esse ramo do ensino como puramente propedêutico e de transmissão de conhecimentos a serem reproduzidos nas salas de aula do curso prático. Empenhou-se para que a falha fosse devidamente sanada.
Por aquela reforma, eram as escolas normais "destinadas a dar educação intelectual, moral e prática, necessária e suficiente para o bom desempenho dos deveres de professor primário, regenerando progressivamente esse ensino público";insistia-se, no texto legal, em que eram destinadas "ao preparo prático de professores primários com todas as qualidades indispensáveis ao seu magistério", constando o curso das disciplinas: português e francês; aritmética e geometria; geografia, história e educação moral e cívica; noções gerais de física, química, história natural e higiene; aritmética comercial e escritura mercantil; desenho linear e a mão livre; música. Os componentes dessas disciplinas eram seriados em três anos de curso. Instituía-se, ao lado dessas disciplinas de conteúdo, a prática do magistério primário, a ser realizada nos grupos escolares e nas escolas isoladas das respectivas localidades, "sob a direção dos professores da escola normal".1
Nos anos seguintes a essa reforma, outras modificações seriam introduzidas na sistemática desse ramo do ensino. Tratava-se quase sempre de mudanças de pouco alcance. A reforma profunda só se daria no final da década de 1920, durante o governo Antônio Carlos. Criou-se, na oportunidade, o Curso de Aplicação, com todo o apoio de Firmino Costa, que o considerava, numa interpretação um tanto exagerada, verdadeiro curso superior. Ele próprio foi o primeiro diretor técnico desse curso, em Belo Horizonte.
Regulamento da instrução primária e normal. Decreto nº 1.960, de 16 de dezembro de 1906. baixado por João Pinheiro.
No boletim do Grupo de Lavras, ele acompanhou todos os passos, notadamente os dados no próprio município, no sentido da implementação do ensino normal. Assim, registra um discurso de Nelson de Sena, então deputado, combatendo um projeto de lei e defendendo o estabelecimento de seis zonas geográficas para fim de instalação das escolas: "Entretanto, cumpre-nos, mais por amor à instrução do que por bem-que-rer a esta terra, apresentar os títulos que Lavras tem para se propor como sede da Escola Normal desta zona."
E passa a enumerar as vantagens institucionais e geográficas apresentadas pelo município para pleitear o benefício.2
Sempre entendeu que a oferta do ensino normal deveria ser tarefa precipuamente do Estado. Essa convicção nao o impediu, contudo, de apoiar iniciativas particulares sérias e de com elas colaborar, como foram os casos da escola mantida pelo Colégio La-vrense e do Colégio Nossa Senhora de Lourdes. como, pelo regulamento, a prática pedagógica deveria ser ministrada por professor de escola normal, tendo sido admitido nesses estabelecimentos, foi-lhe facultado exercer a direção da prática no grupo escolar.
Os argumentos expendidos em favor de uma verdadeira reforma do ensino normal, em Minas e no Brasil, eram do seguinte teor: o professor primário representa, notadamente nas comunidades menores, um líder no trabalho de proteção à infância, necessitando estar tecnicamente preparado para o desempenho dessa função social; o ensino elementar deve basear-se no método intuitivo, cuja aplicação exige conhecimentos psicológicos e capacidade de observação por parte dos professores, conhecimentos esses que só a instrução psicopedagógica sistemática lhes pode oferecer; todas as profissões intelectuais dependem, para o bom exercício, de formação especializada, o mesmo devendo ocorrer com a do magistério, em todos os seus níveis; a consciência profissional é necessária para o bom desempenho de quaisquer tarefas, especialmente as do ensino; pela competência profissional é que o professor se impõe ante os colegas e os alunos, dela dependendo a própria disciplina das classes; a competência profissional deve substituir os critérios personalistas e clientelísticos no provimento e na evolução da carreira dos docentes; o professor é que forma outros profissionais, sendo ele, por esse motivo, profissional por excelência. Nas linhas abaixo, esses aspectos serão apreciados, não necessariamente nessa ordem, através da exposição dos trabalhos e das discussões em que se empenhou Firmino Costa, no intuito de aprimorar o ensino normal em Minas Gerais e no Brasil.
Contribuições
A primeira contribuição efetiva que deu foi a da criação do Curso Rural no Grupo de Lavras. A idéia nasceu quando Firmino Costa tomou contato com a existência de um professor da roça que era velho, surdo e ignorante... Era ministrado em dois anos, segundo o princípio do notável educador, para quem era preferível, em certos casos, "ensinar pouco para ensinar bem, formar o espírito e não enchê-lo". Das alunas que se destacavam no curso primário, eram escolhidas as candidatas a freqüentar o novo curso. Os conhecimentos do ensino primário eram revistos e aprofundados, acompanhados de prática profissional. Lecionavam nesse curso professores primários escolhidos, destacados especialmente para a tarefa. Os futuros professores rurais freqüentavam também
2 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 6, p. 2.
as aulas do curso técnico. Essa iniciativa tinha o apoio da Cámara Municipal de Lavras; proporcionou-se, dessa forma, a capacitação de várias turmas de mestres rurais, em geral, dedicados e competentes. Antes do término, os diplomandos tinham que responder a um questionário elaborado pelo diretor, contendo informação e conhecimento básico das disciplinas do curso fundamental e da organização escolar.
"Por que é que os diplomados no curso rural aceitarão de bom grado ir para a roça, quando as normalistas, em geral, não querem ir?" A essa pergunta, que considera provável, Firmino Costa responde, num trabalho que apresentou à Segunda Conferência Nacional de Educação:
"Aquele curso, pela sua própria natureza muito modesto, além de gratuito, não dando direito senão às cadeiras rurais, será naturalmente freqüentado por alunos pobres. Ora, estes já se acostumaram, desde a infância, a contentar-se com pouco e não estranharão o viver monótono da roça. Os pobres não têm tanto medo como os ricos e remediados, e sabem relevar melhor do que estes as faltas da vida. Assim sendo, eu creio que os diplomados do curso rural estarão prontos a ir para a roça. O plano adotado prende-se principalmente à formação de professores, que estejam dispostos a ir para a roça e que se adaptem à vida do campo. Este é o eixo da questão."3
Naturalmente, as resistências a ir morar na roça são ainda grandes hoje, valendo a observação para professores ou quaisquer outros profissionais, especialmente os formados nas grandes cidades. Mas é evidente também que as diferenças culturais entre o rural e o urbano não serão hoje, de modo geral, tão grandes como o eram no começo do século, no Brasil.
A segunda contribuição foi a de se criar, mediante um programa de estudos sistemáticos, a prática profissional para as alunas da Escola Normal Nossa Senhora de Lourdes, em Lavras. O programa foi apresentado ao Secretário do Interior, no relatório referente ao ano 1916, e vai transcrito como apêndice deste trabalho.
Tivemos acesso ao diário de uma normalista, escrito no ano de 1919, e no qual ela ia registrando diariamente as ocorrências da prática profissional. Assinala, às vezes com entusiasmo, às vezes carinhosamente, mas sempre com objetividade, o conteúdo das preleções de Firmino Costa, seu desempenho próprio e de suas colegas quando encarregadas de alguma lição. Muitas das observações dos escritos do professor aparecem nesse diário da estagiária: por exemplo a valorização do desenho como ferramenta didática.4
Num diálogo bem antigo, transcrito ou inventado (mais provável a primeira hipótese), intitulado A normalista, o professor pergunta a uma jovem recém-formada. D. Júlia, pelo que ela aprendeu na prática profissional em sua escola. Ela vai dizendo: aprendeu a instalar a sala de aula, com todos os requisitos regulamentares; a organizar a classe; a regê-la. A normalista afirma, a certa altura: "para saber como ensinar, explicava-nos o nosso professor , deve-se primeiramente saber o que se vai ensinar e a quem se vai transmitir o ensino. Não pode ensinar bem tanto aquele que sabe mal a mataria como o que conhece mal os alunos".
E com humor: "uma coisa merecia grande cuidado de nosso professor - era a educação da voz, o principal órgão de trabalho no magistério. Ele nos ensinava os meios de
3 COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 57.
4 Diário de Judith Correia Dias, 1919 (Lavras). O Museu de Lavras guarda outros documentos do mesmo gênero.
conservar a voz, de ajustar sua intensidade e altura às condições da sala e dos alunos, de dar-lhe a necessária inflexão para nao se tornar monótona. Não queria que desperdiçássemos o grito, dizia ele, para não estragar a voz e inutilizar aquele meio eficaz de disciplina. Quanto à dicção, ele procurava que nós a tivéssemos correta, clara e desapressa-da."5
Nos escritos mais antigos, preocupa-se mais com os métodos de ensino normal do que com os defeitos do currículo das escolas. Preocupava-se com a correta assimilação do método intuitivo pelos futuros professores primários.
Preocupava-se ainda com a necessidade de se escolher com impessoalidade e por critérios de mérito, nunca por injunções políticas.
"É preciso - argumenta - que o professor deva a nomeação à sua própria capacidade, e não a outras causas. Se ele não conseguir impor-se pela aptidão, perderá a confiança em seus merecimentos, e ficará descrente do valor da educação. Seu exemplo mostrará então aos alunos que mais vale na vida a lisonja ou o favoritismo do que a competência e o cumprimento do dever."6
A questão da profissionalização do professor passa a ser o centro de suas atenções a partir de determinado momento. Inicia, então, a crítica à estrutura curricular vigente em Minas, mais próxima da do antigo curso secundário. Era uma formação de humanidades, sem qualquer iniciação à pedagogia ou á psicologia educacional.
Firmino Costa afirma que a idéia bem nítida de um curso normal com caráter profissional, de preferência de nível superior, para formação de professores bem capacitados, no Brasil, adveio-lhe em noites de vigília, quando da gripe espanhola: "A incrível epidemia que assolava o mundo irrompera numa pequena cidade. Alguém vira adoecer todos os seus, mas fora poupado pela epidemia. Em horas de tão cruel ansiedade, viera-lhe ao pensamento, de modo inexplicável, a idéia da elevação do ensino normal a curso técnico-pedagógico. Pensava muito naqueles dias e acabara por elaborar um plano do novo curso, de que pôde fazer a apresentação oficial. Estava lançada a semente, e decorreram anos..."7
Ora, a apresentação oficial a que se refere deu-se nesse mesmo ano de 1918. Fora convidado para ser orador de um festival em benefício da Caixa Escola Dr. Estevão Pinto, do Grupo Barão do Rio Branco, em Belo Horizonte.
"O fim das escolas normais - dirá na conferência - é ensinar a ensinar, é formar educadores. O curso normal constitui uma especialidade e tem caráter profissional. Não se pode confundir com o curso secundário, que se propõe a dar uma instrução geral, que é um desenvolvimento do ensino primário. Nos cursos jurídicos, por exemplo, não se ensina a língua portuguesa, aliás tão necessária ao advogado como ao professor. Entretanto, as escolas normais não se diferençam dos liceus ou ginásios, são verdadeiros cursos secundários. Basta comparar os respectivos programas para verificar-se a semelhança deles."
Fala depois da deficiência do preparo pedagógico, especialmente da psicologia aplicada à educação. Dá como exemplo a atenção e de como suscitá-la como auxiliar da disciplina. Isso só é possível com conhecimento psicológico. Propõe, por esses motivos,
COSTA, Firmino. O ensino popular, p. 17.
6 Idem, ibidem, p. 93-4.
COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 88.
um curso normal, de caráter superior, de dois anos, em que se estudariam matérias especializadas de formação profissional, as quais ele enumera. Quanto a ser superior, requisito que defenderia até o fim da vida, cremos que adotou essa idéia baseado simplesmente na exigência de que o curso normal deveria exigir preparatórios tanto quanto os outros cursos que formavam, no Brasil, profissionais liberais.8
Explicitaria melhor sua proposta de um novo curso normal numa memória que apresentou ao Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância e que está transcrita no livro O Ensino Primário. O verdadeiro protetor da infância é o mestre primário; este deve ser formado adequadamente para realizar essa missão. Tudo reside, então, em reorganizar o ensino normal. A razão de que não tivesse, até então, caráter profissional é a de que se encarava o ensino pelo lado apenas da instrução e não da educação: "Ao professor pouco importava estudar a psicologia infantil, nada lhe valia conhecer a estrutura e a vida da sociedade, qualquer método ser-lhe-ia excelente desde que soubesse as matérias de ensino."9
0 curso normal que propõe, em dois anos, deveria compreender estas matérias distribuídas em cinco cadeiras: 1?) Pedagogia, psicologia, história da educação, prática pedagógica; 2ª) Instrução moral e cívica, legislação escolar, organização das instituições escolares; 3ª) Higiene, assistência infantil e exercícios físicos; 4ª) Desenho e trabalhos manuais; 5ª) Artes domésticas, ensino de piano e canto, organização de festas escolares. Era assim algo bastante abrangente e estritamente técnico-profissional. Cobria até mesmo a recente inovação brasileira da Educação Artística, para a qual há uma licenciatura.
A execução desse programa tinha em vista a problemática da educação popular, que podia ser assim expressa: instrução, higiene, assistência e trabalho. Explicitava cada uma dessas facetas e tratava de como preparar as normalistas para enfrentá-las.
Tal como está exposto, provavelmente nunca houve um curso normal semelhante no Brasil. As idéias básicas de Firmino Costa foram, porém, aceitas em Minas com a reforma do ensino encetada por Francisco Campos e implementada por Mário Casassanta. Aceitou-se como norma geral a experiência do curso rural vivida em Lavras e arredores. As escolas normais de segundo grau passaram a contar com um Curso de Aplicação, em dois anos, precedido de etapas de formação geral. Não era ainda um curso universitário, como preconizara Firmino, mas uma formação especializada, correspondendo ao atual nível de segundo grau. Em sua exposição de motivos, Campos afirma que o modelo era semelhante a experiências européias, mas ficara aquém de alguns sistemas, como o da Áustria, em que o curso normal era, de fato, de nível universitário.1 ° Ter sido o primeiro diretor-técnico do Curso de Aplicação e, algum tempo depois, diretor-
COSTA, Firmino. O ensino primário, p. 207-22.
Idem, ibidem.p. 18.
"Esta, mutatis mutandis, a organização que tem presentemente o ensino normal na Alemanha, na Inglaterra, na Áustria e nos Estados Unidos. A diferença está, apenas, em que nesses países a tendência é de alargar o curso, aumentando-lhe as exigências, elevando o seu padrão intelectual. Na Alemanha, na Austria e nos Estados Unidos já a organização do ensino normal tende a nivelá-lo ao ensino universitário, partindo do princípio de que as técnicas do ensino primário só se adquirem mediante estudos teóricos largos, progressivos e completos." Francisco Campos, exposição de motivos sobre o regulamento do ensino normal. In: Educação e Cultura, 2. ed. Olympio, 1951, p. 32.
-geral da Escola Normal Modelo constituiu para o mestre o merecido coroamento de sua carreira: era a vitória de seus planos, de seus sonhos, do trabalho de uma vida.
A mulher e a escola
Nao estaria completa a exposição do pensamento de Firmino Costa sobre a formação e as condições de trabalho do magistério primário se nao fizéssemos referência a um seu ponto de vista, à primeira vista inusitado, a respeito da relação entre a tarefa doméstica e a docente. Na palestra, Educação Popular, proferida em Belo Horizonte em 1918, logo após discorrer sobre o ensino normal e sobre seus requisitos, trata do que considera uma "incompatibilidade manifesta": aquela existente entre "os deveres de mãe de família e os de professora". Refere-se, com tôda a evidência, a um dado tipo de mães de família, o das mulheres que conseguiram terminar o curso normal. São, em geral, de classe média ou, para usarmos o termo dele, remediada. Descreve, a seguir, valorizándoos, os trabalhos de dona de casa e de mestra. A mãe de família responsável, argumenta, arca com todo o trabalho de administração da casa, de sua arrumação, da alimentação de todos os demais componentes do grupo familiar. Os cuidados de ordem moral, na educação dos filhos, são, do mesmo modo, absorventes. A falta de boas criadas ainda mais onera-a nesses trabalhos. Por sua vez, as tarefas docentes tomam tempo e fazem despender energia, para que sejam convenientemente executadas. A professora não deveria chegar fatigada à sala de aula ; os trabalhos escolares vão além do tempo preenchido na escola, pois exigem preparação das aulas, necessidade de atualização de conhecimentos, correção e avaliação dos trabalhos escolares. como conciliar duas ordens de atividades tão exigentes? Aceitas como procedentes as considerações que fez, não há possibilidade de conciliação entre os dois tipos de afazeres, acrescenta ele: "Se o regulamento incompatibiliza o magistério com qualquer cargo público, se ao professor é vedado exercer a profissão de comerciante ou outra de que resulte prejuízo para o ensino, igualmente deve afastar da escola a mãe de família."1'
Nesse caso, com relação à professora do ensino público, o Estado deveria interferir. É possível que ele tenha revisto, com o tempo, ponto de vista tão drástico. Pelo me
nos não voltou a se ocupar do tema nos escritos ulteriores. Descontado um possível sentimento patriarcal — com sua tendência a proteger a mulher —, o que parece suscitar essa questão é a própria realidade social daquele tempo. A família de classe média urbana, fosse nuclear ou extensa, não podia, ao contrário das famílias dos fazendeiros, sustentar vários criados. A qualidade passou a ser uma exigência. O caráter ambíguo do emprego doméstico - nem bem profissional nem bem integrado à familia que o utiliza - acentua as dificuldades. As expectativas com relação ao nível de dedicação da mulher e à perfeição de seu trabalho, em nossa sociedade, tornavam-na e a tornam ainda vulnerável a tensões psicológicas.
Na verdade, o mestre estava cuidando da questão já antiga - e hoje diferente — a da dupla jornada de trabalho da mulher, no emprego profissional e como principal (às vezes única) responsável pelo trabalho de casa. A questão tornava-se mais dramática por dois motivos: a profissionalização do professor era apenas incipiente, estando aberta a todo questionamento possível e a mulher arcava sozinha com a administração doméstica. De lá para cá, as condições da vida urbana se alteraram sensivelmente. 0 setor terciário se diversificou bastante, oferecendo prestação de serviços mais eficientes aos
COSTA, Firmino. O ensino primàrio, p. 207.
lares. Por outro lado, há consciência de que as responsabilidades domésticas devam ser partilhadas com o homem O equipamento eletromecânico facilita os serviços, ao mesmo tempo que faz diminuir a prática do artesanato doméstico.
Embora fosse compreensível, em 1918, em Minas Gerais, falar-se naquela incompatibilidade manifesta, parece evidente que se trata hoje de uma questão obsoleta ou que, no mínimo, deva ser colocada em outros termos.
Firmino Costa, na verdade, não possuía qualquer preconceito antifeminino. Pelo contrário, sempre valorizou a presença da mulher na sociedade.
Num dos seus textos mais antigos, denominado Vosso Filho, figura uma conversa do professor com um amigo que é pai de alunos. Enuncia-se apenas a fala do professor. Eis os parágrafos finais, sobre a educação feminina:
"Eu me regozijo de ver quanto vos interessais pelo futuro de vosso filho, e sinto que um nosso amigo comum não pense do mesmo modo em relação à sua filhinha. Ele concorda em que os homens aprendam muito, mas uma mulher, para quê? Entanto ele acredita que a mulher tenha uma alma igual à do homem e sabe que ela irá ser companheira deste, compartilhando na família os deveres domésticos, para cujo desempenho não basta a ignorância. E uma mulher ignorante, sem educação, como poderá fazer feliz a um marido educado?
Qual! o nosso amigo tem olhos e não vê, é preciso que nós dois, para o bem de sua família, abramos os olhos dele à verdade. Tanto o homem como a mulher precisam ser educados, igualmente educados. Se um e outro vão viver juntos, como iguais, por que hão de ser desiguais na educação?"12
No começo do século, pensava sobretudo na formação da mulher para o lar, excetuadas as professoras que deveriam consagrar-se inteiramente ao ensino.
Mais tarde, estará cogitando do papel social da mulher, não apenas na escola, mas na comunidade e na sociedade, como se percebe neste escrito posterior à reforma Antônio Carlos:
"O curso normal é de preferência freqüentado pelo sexo feminino. Em grande maioria, o pessoal docente primário acha-se constituído pelas normalistas. A educação da infância brasileira está assim entregue à mulher. Masa cooperação preciosa desta pode e deve dilatar-se, porque a escola de hoje não se limita à sala de aula, estende-se à coletividade, abrangendo a vida social e até política.
Neste vasto campo de ação o concurso da mulher, mormente da professora, será de incontestável utilidade. A educação moral, social e cívica do povo, iniciada na escola primária, reclama a colaboração da mulher. E porque esta completa o homem, um e outro, unidos para o bem comum, podem agir com toda a probabilidade de bom êxito."13
Observador sensível da realidade, percebia Firmino Costa as mutações sociais que se processavam à sua volta, o que o leva a dilatar os seus horizontes, para além dos limites da comunidade local e do grupo doméstico.
como foi dito antes, viveu apenas de seus vencimentos de professor. Os dois marcos dessa carreira são dois decretos: "O Presidente do Estado de Minas Gerais resolve nomear o cidadão Firmino Costa Pereira para o cargo de diretor do Grupo Escolar de Lavras. Palácio da Presidência do Estado de Minas Gerais, em Belo Horizonte, 16 de ja-
12 COSTA. Firmino. O ensino popular, p. 71-2.
COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 18.
neiro de 1907. ass.) João Pinheiro da Silva e Manoel Tomás Carvalho de Brito." Anotado no verso: "Vencimento anual, 3:000$000. ass.)Duval Epaminondas."O outro ato : "O Governador do Estado de Minas Gerais resolve aposentar o diretor da Escola Normal da Capital, Firmino Costa, por haver atingido a idade de 68 anos, nos termos da legislação em vigor. Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, 28 de dezembro de 1937. ass.) Benedito Valadares Ribeiro e Cristiano Monteiro Machado." No verso : "Vencimento anual, 15:600$000. Gratificação adicional de que trata a Lei nº 425, 1:560$000; abono provisório de que trata a Lei 130, de 1937: 1:560$000 ass.) C. Camargos." O Secretário da Escola fez a anotação no livro próprio: era ele Orosimbo Herculano de Mello, discípulo e amigo de Firmino Costa, o segundo diretor do Grupo de Lavras.14
Obteve, também na década de 30, já no fim da vida, o lugar de inspetor federal de ensino, provavelmente por iniciativa ou interferência de Gustavo Capanema, que muito o admirava.
De qualquer forma, com família grande, lutou sempre com dificuldades e viveu modestamente. É provável que se locomovesse de bonde em Belo Horizonte. Num artigo sobre Maurício Murgel, quando da morte dele, narra, como fato relevante, que esse seu colega o conduziu de automóvel, uma tarde em seu retorno ao lar.15
Anedota ou não, conta-se que sonhava com uma viagem à Europa; como seus vencimentos não eram suficientes para essa aventura da viagem internacional (que seu amigo Gustavo Pena fizera tanto), alimentava a ilusão da loteria. Teria sido encontrado, depois de falecido, entre seus guardados, um livro contábil em que guardava os bilhetes em branco. Na capa, a inscrição Meu sonho.1 6
Encaminhou uma de suas filhas, Lívia, ao magistério primário; esta aposentou-se recentemente como diretora de escola estadual, em Belo Horizonte.
Ainda em Lavras, em 1925, naturalmente sem saber que em breve partiria para outras missões, em Barbacena e Belo Horizonte, tenta encaminhar, também no magistér i o ^ filha mais jovem, Lucilia, consolidando sua situação num colégio.
É interessante a carta que escreve a um dos diretores do Instituto Evangélico, o Dr. Knight, reveladora do interesse pelo destino dos filhos e também de um certo traço de proteção patriarcal: "Porque tive sempre em alto apreço o Instituto Evangélico, do qual sou sincero amigo, não me acanho em vir expor-lhe o que penso sobre o trabalho da Lucilia no Kemper."
Depois de considerar outras possibilidades da filha (que, entretanto, prefere trabalhar no Colégio Kemper), propõe: "O que acabo de considerar parece-me bastante para fazer-lhe uma proposta razoável: dar à Lucilia, neste ano, ordenado de 2:000$000. O amigo tem o espírito muito reto, e sem dúvida concordará comigo."
14 Obtivemos cópias desses atos oficiais, pertencentes ao arquivo da família de Firmino Costa, em Belo Horizonte.
15 "Um dia teve a gentileza de levar-me de automóvel para casa. Nesse percurso disse-lhe eu: 'Ninguém melhor do que você, Maurício, poderia auxiliar-me na direção da Escola Normal'." Homenagem à memória de Maurício Murgel. Minas Gerais. Belo Horizonte, 3 maio 1934.
Referência ao autor feita pelo professor Guilhermino César, que conviveu em Belo Horizonte com Firmino Costa.
O professor ideal
Por último, retomemos a imagem do professor ideal que ele traçou no inicio de sua carreira. Nesse perfil marcado pelo modo de vida de uma pequena comunidade agrário--mercantil e pelas limitações políticas ali existentes, fala-se no magistério como sacerdocio; fala-se pouco nos direitos do professor. Mas vale reproduzi-la como um convite a esta reflexão: o que haveria de transitório e conjuntural e o que haveria de permanente e ainda válido nessa definição?
"Ser professor é dedicar-se inteiramente à instrução, é querer como o seu próprio o progresso dos alunos, é prezar a profissão e reconhecer a primazia dela, é dilatar sempre os seus conhecimentos, é fazer da vida um exempio constante de virtudes cívicas e morais. Despretensioso e benévolo, não deve o professor aspirar aos mimos fascinantes da popularidade, e menos ainda às lutas infrutíferas do partidarismo; liberal e tolerante, a ele cumpre acolher e difundir as conquistas da civilização, sem todavia melindrar as idéias e crenças contrárias; criterioso e perspicaz, ele tem de ser cuidadoso em suas palavras, ele há de ser pronto no entender e às vezes no calar."17
Trata-se do retrato do professor que ele quis ser, dentro da circunstância em que viveu.
Nos capítulos seguintes, voltaremos à época em que foi diretor da Escola Normal de Belo Horizonte e às suas idéias sobre o ensino.
17 COSTA. Firmino. O ensino popular, p. 59.
Formação pedagógica e paradigmas
Descoberta da educação
No capítulo anterior, vimos como Firmino Costa pregava a preparação adequada dos mestres. Neste se verá como ele se preparou para os encargos do ensino. Invertendo a ordem dos capítulos e repetindo Casassanta: ele ensinou-se para depois ensinar.
O interesse pelas pesquisas de linguagem nasceu bem antes de que ele iniciasse os estudos preparatórios em São Paulo. Despertaram-no para isso seus velhos mestres la-vrenses. como o pai o quisera destinado às letras, aprofundou esses estudos e, ao fazê-lo, passou a ocupar-se do melhor modo de transmitir os conhecimentos gramaticais. Simultâneo a esse empenho é, com certeza, a curiosidade pedagógica.
Agradava-lhe a leitura de biografias, notadamente as dos benfeitores da humanidade; e entre estes começou a incluir os educadores. A história dos métodos educativos e das idéias pedagógicas veio, assim, a constituir o foco de sua preferência na atividade intelectual. Mais tarde, passaria a incluir e aconselhar tais biografias como recurso pedagógico na formação dos adolescentes.1
A descoberta da revista suíça, editada em Lausanne, L'Educateur, fato muitas vezes citado em textos de e sobre Firmino Costa, foi crucial para sua informação. É possível encontrar menções freqüentes a esse respeito, inclusive desde a Vida Escolar. Assim, por exemplo, é por meio dessa revista que toma conhecimento, em 1911, da morte de Alfred Binet; das comemorações do centenário da morte de Pestalozzi, em 1927;e da criação do movimento escoteiro.
O redator-chefe da "esplêndida revista" era François Guex, professor de Pedagogia na Universidade de Lausanne. Sua obra Histoire de l'Instruction et de l'Education foi cuidadosamente lida por Firmino Costa, que dela se valia para suas aulas e conferências.
Descobriu um dia a obra de Gabriel Compayré, escritor, administrador da educação e político francês. Sabia-o um divulgador, "disseminador", como escreveu certa vez, mas se baseou em muitas de suas informações históricas. Comentando o primeiro contato com o historiador, relembra: "Apesar de já se terem passado vários anos, ainda me recordo com prazer do dia em que recebi uma encomenda postal. Era a coleção Les Grands Educateurs, de Gabriel Compayré. Tinham vindo dez opúsculos, contendo as biografias de Rousseau, Spencer, Pestalozzi, Jean Macé, Félix Pécaut, Herbart, Montaigne, Charles Déma, Horace Mann e do Padre Girard. Corn que contentamento eu li então essas biografias encantadoras!"2
No livro Aprendei a estudar, fala da aplicação da técnica. Propõe resumos biográficos de personalidades de sua preferência: Barão do Rio Branco, Oswaldo Cruz, Pasteur, Barão de Macaúbas. p . 7 7 .
COSTA, Firmino. Calendário escolar, p. 5.
Desde essa época, desses contatos iniciais, nunca deixou de buscar informações novas e de estar atualizado. O hábito da leitura constante de jornais facilitava sobremaneira o trabalho. Um exemplo de sua capacidade de atualização é o fato de ter tomado conhecimento, em plena década de 20, das idéias que iam sendo formuladas por Piaget; e, mais importante, citava e aplicava conceitos piagetianos, dentre eles, a idade apropriada para a aprendizagem da leitura.
Longe de constituir erudição puramente livresca, o conhecimento pedagógico acumulado por Firmino Costa tinha por objetivo a aplicação imediata em sua prática educativa. Seus escritos, nessa matéria, não se revestiam de veleidades literárias; pretendiam ser reflexões nada especulativas, que comprazia em divulgar, por considerá-las úteis aos colegas de magistério. "Urge transformar o professor", dizia, "mediante a cultura pedagógica, a fim de que ele possa transformar a escola". Acrescentava que os ensinamentos pedagógicos "devem ser ensinamentos de vida, que proporcionem uma educação liberal e façam compreender os deveres sociais". Propunha aos professores coligirem, num memorial, notas de leitura sobre esse campo de estudo e observação.3
Possuía uma visão panorámica da história da educação e da pedagogia. Revelou-o num capítulo intitulado "Memorial de Pedagogia", em que rememora os grandes momentos e os grandes pensadores. O capítulo exprime o extenso domínio sobre a matéria tratada e testemunha a lenta sedimentação de saber obtida em muitos anos de trabalho. Lê-se aí uma resenha bem ordenada, e não simples enumeração de obras, datas e nomes. Ao contrário, articula-se o texto de modo coerente.4
Está dividido em várias seções: desde a filosofia clássica até os dias atuais, passando pela Idade Média, pela Renascença e pelos séculos XVII, XVIII e XIX. Nessa perspectiva, é evidente, restringe-se aos fatos e às idéias ocorridas no Ocidente. Curiosamente, falando a respeito dos gregos, cita uma palavra de Goethe: "Reflita-se nisso, a grandeza dos antigos, principalmente da Escola de Sócrates, é expor aos olhos a fonte e a regra de tôda a vida e de tôda a atividade, e convidar, não a uma especulação frivola, mas à vida e à ação." Tal pensamento ajusta-se ao modo de ser e de ver do educador la-vrense.
Dentre os contemporáneos, destaca Claparéde, citando seu livro Psicologia da Criança, que acabara de ser editado em português, em tradução de Aires da Mata Machado Filho e de Turiano Pereira. Fornece informações sobre a atualidade brasileira, citando as obras representativas do movimento da Escola Nova e mencionando as coleções em andamento.
Não se esquece de seu amigo Mário Casassanta, o "realizador da reformada instrução em Minas, como inspetor geral do ensino. Desenvolveu surpreendente ação, levando às escolas de Belo Horizonte a sua palavra iluminada. Estendeu ao Estado de Minas a sua atividade apostolar, despertando energias e esperanças. O trabalho de Mário Casassanta produziu uma espléndida obra pedagógica, que lhe cumpre transformar em livro".5
Na verdade, a despeito desse apelo, Casassanta nao reuniu em livro seus trabalhos sobre educação. Nos últimos anos de uma vida laboriosa, dedicou-se mais ao ensino universitário de Direito, aos trabalhos literários e à ação política, sem descurar do cons-
COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 109.
4 Idem, ibidem, p. 105-22.
Idem, ibidem, p. 121.
tante empenho prático pela realidade educacional. Numa última anotação, alude à Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte, à
qual atribui grande parte da renovação pedagógica havida em Minas: "Foi naquele ambiente de estudo que os professores compreenderam o ensino moderno baseado na observação e na experiência. A formação técnica do professorado primário, eis o problema que vai sendo solucionado, tanto quanto possível, pela referida escola, que tem também estudado os alunos dos grupos escolares de Belo Horizonte, conforme vários boletins dados à publicidade."6
No final do primeiro ano letivo da Escola de Aperfeiçoamento, o velho professor foi convidado a proferir uma palestra, ao ensejo da criação da Associação Pedagógica das Alunas-mestras. Começa por lembrar aquele período laborioso, "um ano de duro pelejar" em que elas "renasceram para a vida intelectiva". Agradece ter sido escolhido presidente de honra da entidade, cujos objetivos, lembra às suas ouvintes, eram os mais elevados, pois"corporificam a vossa solidariedade professoral, o vosso propósito de semear as novas idéias educativas, a efetividade da cooperação interescolar, o vosso devotamente aos professores do interior, a vossa iniciativa em prol da cultura do professorado".7
No restante da palestra, discorre sobre os grandes educadores. Cita suas fontes principais, que indica às jovens colegas: Francois Guex e Gabriel Compayré. Lembra o grande prazer intelectual que a leitura do primeiro deles lhe proporcionou.
Depois, num raro momento de brincadeira, diz que havia sonhado com sua "distinta colega de presidência da Associação" e que esta lhe dera, como tarefa escolar, fazer uma composição sobre o número dez. "Fiquei sem saber como sair, e despertei com o coração a tremer", disse ele.
"Acredito em sonho — revela — e vou tentar responder o teste. Espero que meu trabalho seja classificado com indulgência, para eu permanecer na casa dos normais. De outra sorte, nunca mais acreditarei em sonhos..." Pensou em "mil dezes" e, por fim, resolveu fazer uma composição sobre dez gran
des educadores. Escolheu-os entre os "que já deixaram a vida terrenal". Numa referência implícita à figura de Jesus, afirma: "Claro está que o mestre único, o mestre por excelência, o modelo de todos nós, não fará parte de minha escolha. Seria irreverência, que não pratico, incluí-lo entre os outros, por muito grandes que estes sejam."8
Pela ordem cronológica, traça rápidos perfis dos educadores escolhidos: Comenius, Rousseau, Pestalozzi, Herbart, Froebel, Horace Mann, Sarmiento, Spencer, Félix Pé-caut, Alfred Binet. Oito eram europeus, um norte-americano e outro argentino. Sobre Binet, transcreve a notícia de sua morte, que lera em L'Educateur: "Um dos maiores sábios franceses, o psicólogo mais eminente de nossa época, Alfred Binet, acaba de desaparecer, prostrado em alguns minutos, aos 84 anos de idade, por uma apoplexia cerebral." O número da revista era o de 18 de novembro de 1911. Sobre os demais, ressalta o traço mais marcante das respectivas carreiras. Assim, Félix Pécaut desenvol-
Idem, ibidem, p. 122.
7 COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 88-99.
O texto dessa palestra foi publicado na Revista do Ensino e depois no livro Pela escola ativa p. 88. Curiosamente, na segunda publicação, suprimiu dois pequenos trechos: o parágrafo que começa pela frase "acredito em sonho" e a referência a Jesus Cristo.
veu o ensino normal; Sarmiento contribuiu para a instrução da classe operária e fundou a primeira escola normal na Argentina; Froebel criou os jardins da infância, etc.
Por fim, nova referência ao papel da Escola de Aperfeiçoamento como sede do curso técnico-pedagógico, "um dos principais do nosso país" e um apelo caloroso para que as professoras seguissem os ensinamentos dos grandes pedagogos, com cujas "centelhas geniais" de "heróicos construtores da civilização" elas deveriam aquecer suas almas.
Na direção da Escola Normal de Belo Horizonte, iria propor a criação de uma biblioteca pedagógica. 0 elenco básico compunha-se de cinqüenta títulos, em que apareciam livros e periódicos, em geral em português, francês e espanhol. Iam desde os teóricos da Escola Ativa, como Ad. Ferrière, Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo, até historiadores como Compayré e Francois Guex, passando por pensadores clássicos, psicólogos modernos e outros. São mencionados vários livros de Dewey, dentre os quais Democracia e Educação, já traduzido para o português. Um autor mineiro, lago Pimentel, professor da Escola Normal, comparecia com o seu compêndio Noções de Psicologia. Um autor que não era propriamente um pedagogo, mas um famoso moralista, Charles Wagner, entrava também na lista com seus livros Pour les Petits et les Grands e mais A Vida Simples e O Valor. Esses trabalhos eram usados por Firmino Costa em suas preleções sobre educação moral.
Quando se inaugura a Biblioteca Pedagógica do Estado, o diretor da Escola Normal profere um discurso modelar de análise da função educativa do empreendimento. "O segredo da educação - afirma - aqui se acha patente na freqüência da biblioteca. Consignada como matéria das mais importantes, a biblioteca já foi compreendida pelas alunas como se fosse uma disciplina não só escolar mas também pós-escolar. Algum dia findará a escola para as alunas, mas a biblioteca é que jamais findará, se elas quiserem honrar seu diploma, se elas anelarem ter vida intelectual."9
Os paradigmas
É preciso deixar claro que os grandes mestres não influíram com a mesma intensidade no pensamento e na prática de Firmino Costa. Percebe-se nitidamente a maior ponderação de alguns deles.
Pestalozzi aparece, desde muito cedo, como paradigma. O grande educador suíço tornara-se conhecido no Brasil, desde o século XIX, embora inicialmente apenas num círculo restrito de especialistas. Em São Paulo, no sistema de ensino estabelecido na década de 1890, seu nome é citado com alguma constância, inspirando práticas do ensino intuitivo. Rui Barbosa, tradutor da Lição das Coisas, de Calkins, tinha plena consciência da importância histórica e do papel inovador de Pestalozzi.1 °
Para Firmino Costa, insistamos neste ponto, tratava-se não apenas do criador de um método, mas também de um modelo de vida. Perceba-se bem: modelo sob alguns aspectos, dentre eles o da consagração integral á prática educativa e o da aspiração de ser apenas um mestre. 9 COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 74.
Veja-se, a respeito, as informações e a análise de Lourenço Filho, em seu livro A pedagogia de Rui Barbosa. São Paulo, Melhoramentos, 1956. Veja-se também notícia da aplicação do método intuitivo em São Paulo, no livro de REIS FILHO, Casemiro dos. A educação e a ilusão liberal. São Paulo, Cortez, Autores Associados, 1981.
Considerava Pestalozzi o herói modelar. É significativa esta comparação: "uma vida, por exemplo, como a de Pestalozzi, inteiramente consagrada à educação da infância, a quem ele se dedicou com constante e intenso amor por entre mil sacrifícios, representa muito mais para a humanidade do que a vida de Napoleão, cujo gênio militar foi deveras admirável, sem no entanto haver deixado contribuição valiosa para o desenvolvimento da sociedade."11
Rigorosamente correta ou não a última afirmativa, o certo é que encerra clara opção por uma perspectiva de vida e pela idéia de paz.
Nosso mestre tinha sempre presente o espírito pestalozziano, com o qual entrara em contato por intermédio de textos biográficos e por meio, principalmente, de algumas obras do notável educador. Será lícito afirmar que esse espírito impregna o trabalho quotidiano de Firmino Costa.
Pôde, além disso, oferecer a seus alunos e a públicos interessados interpretações pessoais dos trabalhos e da vida de Pestalozzi. A esse respeito, pronunciou duas conferências que ficaram indeléveis entre os ouvintes e entre os leitores respectivos.
A primeira delas foi programada no âmbito do curso de aperfeiçoamento para inspetores técnicos. O noticiário então publicado ressalta a impressão causada pela eloqüência do conferencista, que foi apresentado por Mário Casassanta, inspetor geral da instrução. Considerou a reportagem que foi uma apresentação "comovida e comovente" do tema e "uma bela página em que o autor desenhou com nitidez a existência evangélica do cidadão de Zurique, propondo-o como modelo dos educadores que aspiram realizar plenamente sua missão".12
A palestra, publicada na Revista do Ensino e reproduzida depois em Pela Escola Ativa (capítulo dedicado ao Curso de Aplicação de Belo Horizonte), constitui valioso texto interpretativo. Propõe-se, de início, a imagem artesanal da tecelagem como simile da existência humana. Diz que nem sempre somos nós mesmos a tecê-la: "A escola é em parte tecelã de nossa vida." Acrescenta que indicará aos professores e professoras "um modelo para seus favores futuros". É a vida de Pestalozzi, da qual apresentarei alguns traços, colhidos em suas biografias. A fonte principal é o livro de Albert Malche, Vie de Pestalozzi, ainda hoje uma das mais abalizadas fontes sobre o assunto.13
Quanto ao desenrolar da vida de Pestalozzi, o conferencista apresenta, com indisfarçável empatia, os episódios mais dramáticos das lutas levadas a cabo e das incompreensões sofridas; e, mais especialmente, os fracassos e vitórias da missão pedagógica abraçada por aquele educador, até o reconhecimento final, alcançado nos últimos anos de uma trajetória atribulada.
Nessa conferência expõe sinteticamente as grandes linhas desse pensamento. Em primeiro lugar, o empenho em "psicologizar a educação". Dele deriva a vontade de conhecer individualmente o educando, em suas características de personalidade e no contexto social por ele vivido. Depois, o aproveitamento do interesse espontâneo do aluno na aprendizagem. O conferencista ressalta a modernidade dessa observação, desenvolvida contemporaneamente por Claparède e Dewey. Outro traço, a intuição — método intuitivo como "princípio absoluto de todo o conhecimento". Firmino Costa examina,
COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 77.
Noticiário do Minas Gerais, transcrito na Revista do Ensino, Belo Horizonte.
13 COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 199-215.
com base na bibliografia sobre o tema, as raízes dessa postura científica. Exemplifica com algumas aplicações concretas do método intuitivo, como no ensino da leitura e da aritmética. Recorda ainda como os acontecimentos que enfrentava — especialmente as adversidades — levava Pestalozzi a transmitir aos educandos a consciência do valor da solidariedade social.
Discorre também sobre a concepção religiosa do biografado, "independente de todo dogmatismo", porém, inspirada na figura de Jesus, que ultrapassa, como modelo, "as luzes e verdades dos sábios". Inclui, na parte final da conferência, o sumário das teses pedagógicas pestalozzianas, contidas em como Gertrude Ensina a Seus Filhos.
Para demonstrar a importância histórica do educador suíço, transcreve uma estatística elaborada por Claparède. Este fizera a análise de conteúdo de sete livros que tratam da pedagogia clássica (entre 1529 e 1841), representando seis diferentes países. Fez o levantamento de quantas páginas eles dedicaram aos principais educadores. Apurados os resultados, Pestalozzi colocava-se, em termos percentuais, bastante à frente dos demais grandes educadores. Comparecia com 24,6% das páginas, seguido de Rousseau com 13,4%. Os outros eram, em ordem decrescente, Herbart, Froebel, Comenius, Locke, Kant, Fénélon, Lutero, Rollin, Motaigne, Erasmo, Basedov e Rabelais.
Essa conferência tinha fins de divulgação e, ao mesmo tempo, intentava destacar a atualidade de Pestalozzi, relativamente às tendências da Escola Ativa. O intuito era o de frisar o seu nome como paradigma de uma renovação educacional que pretendia melhor conhecer, do ponto de vista técnico-pedagógico, a individualidade dos alunos.
A palestra que Firmino Costa pronunciou sobre o mesmo tema, alguns anos depois, era igualmente impulsionada pela admiração que nutria pelo extraordinário pedagogo suíço; mas eram diferentes o público, os objetivos e o tom da exposição. Fora uma iniciativa da professora Helena Antipoff, dirigente da Sociedade Pestalozzi, a que o próprio conferencista igualmente pertencia. Fazia parte de uma série, levada a efeito no pavilhão do Instituto, destinando-se a despertar a atenção dos educandos para as grandes vidas exemplares. A palestra era, confessadamente, de compilação, feita em ordem rigorosamente cronológica, de relatos feitos por historiadores, em torno dos sucessivos projetos de Pestalozzi, de amparo da infancia desvalida e de experimentação educacional. A identificação do conferencista com o tema confere ao texto, entretanto, apesar da pretensão modesta, uma extraordinária força de convencimento dos ouvintes e. posteriormente, dos leitores. Estampou-se a conferência num opúsculo, saído a lume em 1935. Trinta anos depois, D. Helena Antipoff tomou a iniciativa de uma segunda edição, na série de publicações da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais. No prefácio, a saudosa educadora lembra o acontecimento de 1935, acentuando o alcance educativo das palestras então realizadas. E termina por fazer o caloroso elogio do conferencista, com quem possuía várias afinidades. uma delas, o interesse pelo ensino normal rural;outra, o desinteresse da teoria pela teoria.14
14 "O Prof. Firmino Costa era um notável educador a quem Minas Gerais muito deve. Fundou a Escola Normal Doméstica em Lavras e foi diretor da Escola Normal Modelo, hoje Instituto de Educação de Belo Horizonte; pensador, autor de vários livros de pedagogia e um dos promotores da reforma do ensino em Minas, em 1927. Homem bom e generoso, um dos primeiros membros da Sociedade Pestalozzi, aceitou sem vacilar o convite para colaborar neste programa de palestras, dando sua contribuição valiosa sobre um dos seus heróis prediletos - PESTALOZZI." São as palavras finais do prefácio de Helena Antipoff, à segunda edição da conferência de l u mino Costa.
A afinidade de Firmino Costa com Pestalozzi era publicamente reconhecida. Mário Casassanta, depois de comentar sua obra de filólogo, afirma:
"A sua virtude mestra, porém, é a de educador. Firmino Costa pertence à família pestalozziana. Como obrigassem a dirigir uma escola, pensou, e bem, que educar crianças não devia
ser obra de mero instinto, mas obra de ciência e consciência, com seu sistema de leis e com seu conjunto de normas práticas.
Calculou o que quase ninguém até então entre nós havia presumido, e era que, como havia uma ciência e uma arte para o engenheiro, o médico, o eletricista, o agrônomo, também deveria existir uma ciência e uma arte de ensinar.
Procurou conhecer a bibliografia da matéria, mais de vinte anos antes de que essas idéias viessem a ser ventiladas, no país, e foi dos primeiros dos nossos professores a estudar os pedagogos de nosso tempo."
A lembrança dos colegas de magistério coincide com a impressão de alguns ex-alunos. Escritora lavrense, Maria Eugènia Montenegro, no livro de memórias Saudade,Teu Nome é Menina, recorda sua entrada no grupo escolar da cidade natal: "De mãos dadas, fomo-nos, rua acima, minha irmã mais velha e eu, até chegar ao Grupo Escolar, que ficava depois da Igreja Matriz. Um belo prédio colonial, com grades de ferro na sala principal e altas vidraças. À entrada, subindo poucos degraus, lousas nas paredes laterais com máximas e frases cívicas. O diretor - o Sr. Firmino Costa -, o Pestalozzi mineiro. As crianças, tratava-as como pai bondoso e enérgico."
O outro dos grandes paradigmas é o educador norte-americano Horace Mann. Firmino Costa conhecia bem a vida desse antigo político, administrador da instrução pública e pioneiro de muitas iniciativas nos Estados Unidos. São muitas as citações que faz de pensamentos e atos produzidos por ele. Conhecia-o através de livros e, certamente, pelas informações oferecidas por educadores estadunidenses residentes em Lavras, em particular Samuel Gammon. Num discurso de paraninfo, fez o elogio do fundador do Instituto Evangélico, "que sabe honrar a grande pátria de Horace Mann!" Referência semelhante foi feita também à viagem das professoras da Escola de Aperfeiçoamento que tinham ido aperfeiçoar-se na Universidade de Columbia.15
Do ponto de vista da metodologia didática, Horace Mann era um admirador das experiências pestalozzianas que conhecera numa viagem á Prússia, durante longa excursão à Europa. O elogio desses métodos, feito publicamente num relatório, despertara controvérsias e discordancias no meio educacional norte-americano. Uma preocupação dele, comum a Firmino Costa, era com o ensino da leitura.
Mas eram outros os motivos mais fortes de admiração, por parte do educador mineiro. Apreciava em Mann o fato de ter sido o criador da primeira escola normal na América, em 1839, como sinal de grande interesse pela formação adequada de professores para o ensino fundamental. E ainda o empenho no desenvolvimento da escola pública para todos; o lado apostolar, que o levava a uma permanente campanha de propaganda da educação do povo, e a disseminação que realizou de bibliotecas escolares.
Gostava de citar uma frase de Mann, pronunciada pouco antes de seu falecimento: "Tende vergonha de morrer antes de haver alcançado uma vitória para a humanidade."
No mesma discurso de paraninfo, a normalistas de Lavras, fez um resumo da vida
15 Veja-se: A bem da reforma. Revista do Ensino, ano 5, n. 46, jun. 1930. p. 68, que trata da viagem de um grupo de jovens professoras mineiras para estudar em Columbia. Voltaremos ao tema no capítulo Colaborando nas mudanças.
de Horace Mann, para quem, gostava de lembrar, "a escola é a maior descoberta que a humanidade fez". Recorda também a origem humilde do pedagogo e o extraordinário amor á natureza que sempre demonstrou desde a juventude.
Alguns anos mais tarde, na inauguração do prédio novo - ainda hoje uma construção imponente — da Escola Normal Modelo, seu diretor discursou para destacar a importância do acontecimento. Novamente lembrou a criação da primeira escola normal nas Américas e a forma dramática como ela se instalou, a 3 de julho de 1839.
"Nesse dia — relata —, em hora de chuva torrencial, estavam reunidos alguns homens e três meninas tímidas, que iam prestar exame. Entre aqueles achavam-se Horace Mann e Cyrus Pierce, respectivamente fundador e diretor da referida escola. O primeiro havia vendido a sua biblioteca para adquirir a mobília e aparelhos destinados ao novo estabelecimento de ensino; o segundo, que pelas suas alunas era chamado o pai Pierce, declarara, ao aceitar a nomeação, que 'preferia morrer antes que ser mal-sucedido'."
O início, relembra, foi difícil. O número de alunas, entretanto, cresceu em poucos meses. Já em outubro do mesmo ano, foi criada uma classe anexa para prática pedagógica das futuras professoras.
"Mas não se suponha que cresceu entre flores a primeira Escola Normal da América. Contra ela se desencadeou forte oposição, até da parte das professoras. Entretanto, tal oposição foi ardorosamente rebatida, e as próprias alunas se ergueram como uma unidade, diz o historiador, e refutaram todas as calúnias, provando sua falsidade."
Propõe que se tirem lições do fato. Apela para a solidariedade das alunas em torno do ensino normal. Mostra a diferença de ambiente que tem cercado o estabelecimento em Belo Horizonte. Se não é preciso defendê-la, impõe-se zelar pelo seu aprimoramento.16
Há outras convergências entre os dois pedagogos. O hábito de fazer relatórios administrativos - recheados de observações práticas e de reflexões doutrinárias - é comum aos dois educadores, não se sabendo se estamos diante de simples coincidência ou se Firmino Costa teria de fato assimilado conscientemente esse exemplo.
As semelhanças abrangem ainda outros domínios. O apostolado da escola pública -e de uma escola pública eficiente e democrática - aparece em ambos os casos. Basta que se recorde, no caso de Firmino Costa, a campanha de divulgação, empreendida em Lavras pessoalmente por ele, indo de casa em casa para convencer as pessoas a colocarem os filhos na escola e a colaborarem com a instrução. O mesmo trabalho de persuasão foi feito pela imprensa.
Outro traço comum é o empenho na organização de bibliotecas e o incentivo a seu uso constante. O mestre mineiro fundou, primeiramente, a biblioteca do Grupo, de dimensões avantajadas para a época e a localidade. Sugeriu, posteriormente, bibliotecas especializadas: a infantil, a do professor, etc. Criou, finalmente, a Biblioteca Pedagógica em Belo Horizonte. Numa entrevista, concedida no Rio em 1933, deu um balanço do assunto, dentro da reforma Antônio Carlos: "Em primeiro lugar, cumpre por em realce a importância que acertadamente se tem dado ao uso da biblioteca, tanto no curso primário, como no curso normal. Na Escola Normal de Belo Horizonte funciona a Biblioteca Pedagógica do Estado, òtimamente instalada e contendo grande número de obras de valor, dispostas em salas convenientemente mobiliadas, sob a direção ime-
16 Discurso na inauguração da Escola Normal, Minas Gerais, Belo Horizonte, 16 mar. 1934. p. 15.
diata de dedicadas bibliotecárias. Na mencionada escola todas as alunas, cerca de mil, freqüentam a biblioteca." '17
Esse movimento, apoiado pelas autoridades educacionais de Minas, muito devia à persistente campanha do diretor da Escola Normal.
Nao se limitava às bibliotecas escolares. Participava de todo esforço em favor de bibliotecas públicas. Em 1932, apoia o trabalho do professor J. Guimarães Menegale, no sentido de ampliar e reorganizar a biblioteca mantida pela Prefeitura de Belo Horizonte, a fim de transformá-la numa verdadeira biblioteca pública. Firmino Costa escreve-lhe uma carta calorosa, que foi publicada pela imprensa da Capital mineira.18
com essas observações, quisemos mostrar como a admiração por Horace Mann decorria da identidade com certas práticas educativas por ele realizadas nos Estados Unidos. Do ponto de vista teórico, a não ser Pestalozzi como fonte comum, não há maior identidade. Pode-se mesmo afirmar, com base em relatos históricos, que a perspectiva doutrinária de Mann era muito mais pobre, mesmo levando-se em conta a diferença de épocas em que viveram ambos os educadores. Sua principal fundamentação era a frenologia, hoje inteiramente ultrapassada, e que nunca teve maior repercussão na prática educativa brasileira.
John Dewey, terceiro paradigma a destacar, penetra mais tarde no universo de conhecimento do mestre mineiro. Corresponde a influência ao período da plena identificação com a Escola Ativa. Nos trabalhos já escritos em Belo Horizonte, sua citação é freqüente. Considera-o "um dos nomes culminantes da pedagogia moderna, principal criador da escola nova, filósofo, psicólogo e pedagogista que atualmente talvez exerça mais profunda influência na vida pedagógica mundial, como mestre dos mestres que assim pode ser considerado".19
Desde o início do Grupo de Lavras, havia ele adotado, por intuição, certos princípios e certas práticas que corresponderiam mais tarde aos conceitos aprendidos em Dewey. Atribuía essa percepção antecipada ao contato com o espírito prático de Samuel Gammon.
No texto mais extenso e elaborado que escreveu sobre a escola ativa, Firmino Costa inicia sua argumentação citando um resumo dos pressupostos dessa corrente pedagógica, formulados por Dewey e extraídos de uma resenha realizada por Jesse Newlon:
"I. Dewey pôs em foco, para a consideração dos professores, a natureza e as necessidades da infância, centralizando as atividades escolares antes no desenvolvimento da criança do que nas exigências das matérias de estudo, distinção essa de suma importância. II. A educação é um constante processo de reconstrução de experiência, destinado a ampliar e aprofundar o conteúdo social. III. O terceiro princípio encontra-se na doutrina do interesse e do esforço, que constitui um corolário da teoria, segundo a qual a educação é experiência. A tarefa de organização de um programa, que satisfaça as condições de interesse, representa um dos problemas mais complexos e difíceis da educação.
17 A organização do ensino em Minas. Entrevista de Firmino Costa ao jornal A Noite, Rio de Janeiro, out. 1937.
18 Carta a J. Guimarães Menegale, publicada pelo Minas Gerais. Belo Horizonte, 10 maio 1932,p.9.
COSTA; Firmino. Aprender a estudar, p. 119.
IV. Finalmente, Dewey enuncia urna nova teoria, encarando a escola como instituição social, parte inerente do processo integrai de socialização."20
Fundado na compreensão dessas diretrizes, desenvolve o arcabouço da nova orientação pedagógica, sempre referindo-se à sua própria experiência pessoal e às condições concretas da sociedade brasileira. Não se trata de pura transposição de princípios e de práticas nascidos em outros contextos sociais.
Que aspectos do pensamento de Dewey mais lhe chamam a atenção? Ao propor o programa do ensino da linguagem no curso primário, acentua a idéia do pensador norte-americano, segundo a qual "o principal mérito do programa e das matérias é para o professor e nã"o para o aluno". Os conhecimentos sistematizados têm seu valor porque dão possibilidade ao "educador de determinar o ambiente, o meio necessário à criança e, assim, dirigir indiretamente a sua atividade mental". Outra contribuição fundamental é a de vincular a atividade escolar à vida social. Lembra, numa citação, a idéia de Dewey de que "um estudo só tem valor se ele permite ao aluno compreender melhor o seu meio social e lhe confere o poder de avaliar até que ponto suas capacidades poderiam prestar serviço à sociedade". A solidariedade obtida, pelo processo de socialização, é conseguida pela escola. "Importa habituar o organismo moral da criança a uma clara e contínua representação da solidariedade social." Várias virtudes (espírito de colaboração, entusiasmo, espírito de iniciativa, prevalência do interesse coletivo) são desenvolvidas em interação solidária.
Para Firmino Costa, a importância do educador norte-americano não reside apenas em sua visão sobre o ambiente estritamente escolar. Concorda com os postulados éticos por ele formulados. No curso que deu, em Belo Horizonte, sobre Metodologia da Educação Moral e Cívica, insistiu com os ouvintes na necessidade da sólida formação ética do educador, a ser construída em torno de um núcleo de valores básicos. E citou, como instrumentos úteis para tanto, a leitura de alguns livros. Dentre eles, estava um de Dewey, L'Ecole et l'Enfant, a tradução francesa.
Cita o seguinte trecho : "O que os educadores precisam ter antes de tudo é uma fé autêntica na existência de princípios morais susceptíveis de aplicações efetivas. Importa que esses princípios sejam formulados de acordo com a vida social e psicológica. Cumpre que nós não os consideremos como cousas arbitrárias e puramente transcendentais, como se o termo moral designasse uma parte ou uma região especial da vida humana. E é absolutamente necessário reconhecer que tais princípios são reais, e reais no mesmo sentido das outras forças, que eles são inerentes à vida social e ao mecanismo psíquico individual. Aquele que trabalha inspirado por esta certeza pode dar constantemente uma significação moral a todos os ramos de estudos, a todos os métodos de ensino,a todos os incidentes da vida escolar."21
Firmino Costa, em sua proposta ética, temperava, assim, um ponto de vista de inspiração cristã, o de Charles Wagner, com os ingredientes seculares e, em certa medida, "naturalistas" de Dewey. Este era, percebe-se, um mestre da pedagogia e da ética social, particularmente a profissional.
Dos três mentores, um foi modelo de vida e fundamento de toda a sua visão educativa (Pestalozzi); outro serviu de exemplo pela flama de propagandista do ensino popu-
20 COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 5.
21 Metodologia da História e da Instrução Moral e Cívica; Curso de Aperfeiçoamento para o Professorado Primário. Revista do Ensino, Belo Horizonte, 5(44): 63 , 1930.
lar (Horace Mann); o terceiro, por fim, exerceu o desafio sobre a inteligência, pela sua proposta integrada de vida, democracia e escola (John Dewey). Cada um representou um momento especial na existência de Firmino Costa: o contato inicial com crianças e adolescentes em sala de aula e nos ambientes familiares de Lavras; a luta pelo ensino normal eficiente;e a formulação final das idéias da Escola Ativa.
Há uma palavra sobre Dewey, a qual, guardadas as devidas proporções, pode ser invocada a propósito de Firmino Costa: "A propósito das influências intelectuais experimentadas, é necessário, contudo, ter em conta o que o próprio Dewey pensava. Em sua opinião, o que mais tinha influído em seu modo de pensar nao haviam sido os livros, mas seus contatos pessoais e suas experiências práticas, especialmente no campo da educação."22
Firmino Costa poderia dizer o mesmo. E disse algo também pertinente sobre o seu labor de escrever. As primeiras linhas do prefácio de seu primeiro livro, publicado em 1913, são estas:
"Nao tendes que perguntar-me, diz Emerson, em palavras e por títulos os catálogos dos livros que haveis lido. De veis fazer-me sentir que páginas haveis vivido.
As páginas singelas, publicadas no presente volume, foram vividas por mim, posso dizê-lo, desde quando, há seis anos, assumi a direção do ensino público desta cidade.
Derivam elas do que tenho mediado e posto em prática para conseguir uma educação primária completa, capaz de dar aos alunos o desenvolvimento necessário, que os habilite tanto quanto possível à vida social e profissional adaptada às exigências de nossa civilização."23
Enfim, aprendeu nos livros e aprendeu fazendo. Ele era, no entanto, um inveterado leitor.
Opinião de Charles Frankel, no verbete John Dewey da Enciclopédia Internacional de Ciencias Sociales (MacMillan, dir. por David L. Sills), em sua edição espanhola. Aguilar. 1974, v.3. p .653 .
COSTA, Firmino. O ensino popular, p. 4.
Tempos de mudança
Políticos e intelectuais
Ao assumir o governo de Minas, a 7 de setembro de 1926, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, já com larga tradição na vida pública regional, dá inicio a um periodo fecundo de transformações políticas. De certo modo, Fernando de Melo Viana prepara o caminho. É que este instituíra vias de contato com o povo, num sentido quase populista.
O estilo de Antônio Carlos seria estritamente liberal. Tinha consciência do peso de sua tradição familiar, trazia consigo vasto cabedal de experiência política, era sinceramente democrata e pretendia renovar os costumes políticos. Inseria-se, desse modo, na corrente que reclamava mais representatividade do poder, a nível das estruturas políticas estaduais e no plano nacional. Era essa, por exemplo, a plataforma tenentista. Para tanto, impunham-se modificações na legislação e na prática eleitorais, assim como melhor comunicação entre governo e opinião pública. Teses como as do voto secreto e do voto feminino, novidades à época, foram sendo propostas e, afinal, aceitas com entusiasmo.
Antônio Carlos, além do ideário liberal com tintura modernizante, jogava com sua habilidade política e com sua capacidade de conciliação, que lhe foram extremamente úteis em suas negociações com a poderosa Igreja Católica de Minas, na discussão,dentre outras questões, do ensino religioso nas escolas públicas, afinal reintroduzido.
Do programa de governo constava também a reforma do ensino, notadamente o primário e o normal, ambos sob a responsabilidade da administração estadual. Não se tratava de "mais uma reforma"; era antes um projeto de mudança de rumos, no sentido modernizante e de modo antecipado, e depois paralelo, a outros tantos projetos implementados em diferentes unidades federadas. A reforma foi além dos dois mencionados ramos do ensino. Criou-se uma escola de aperfeiçoamento, destinada à formação de pessoal técnico para o ensino elementar, em moldes bastante avançados para a época; criou-se também uma universidade.
Heli Menegale, em seu utilissimo resumo da história da instrução em Minas, depois de referir-se ao trabalho de João Pinheiro, transmite-nos sinteticamente està apreciação:
"Os governos seguintes trouxeram à atualização e ao desenvolvimento da instrução elementar e do ensino normal novas contribuições de que foram mais importantes: a escola pré-primária, as experiências do trabalho em oficinas, para meninos, e a introdução de Pedagogia, Psicologia Infantil e Higiene no currículo do curso normal.(...)
Ê facilmente perceptível a continuidade no aperfeiçoamento da instrução em Minas, durante a primeira quarta parte deste século. Tal evolução, porém, será considerada de superfície, se a compararmos à transformação produzida pela reforma de 1927, porque
esta desceu ao fundo da escola para trazer à tona a criança e dar-lhe posição de prioridade."1
Sobre as coordenadas da mudança do ensino elementar e do normal se discorrerá mais adiante.
Outra iniciativa de relevo foi a da criação da Universidade em Minas Gerais (UMG), em 1927, logo após haver-se instalado o novo governo. A aspiração a esse empreendimento constava tradicionalmente tanto do discurso oficial quanto das manifestações dos intelectuais. Era o apelo periódico, já referido aqui, ao "sonho dos inconfidentes": fazia parte dos planos da Conjuração Mineira instalar uma universidade em Minas. Foram diversas as tentativas nesse sentido, tomadas no Parlamento do Império ou no Congresso Nacional, sempre sem resultados objetivos. Ainda sob esse aspecto o governo Melo Viana aplainou o terreno, com proposta ao Legislativo.
O projeto de lei da UMG foi encaminhado no dia 11 de agosto (data do sesquicente-nário da criação dos cursos jurídicos no Brasil) ao Congresso mineiro e sancionado no primeiro aniversário da administração Antônio Carlos, a sete de setembro de 1927. Não se afigura como iniciativa tão orgânica e ambiciosa como o projeto da Universidade de São Paulo (USP) sete anos depois; era, contudo, algo mais do que a simples agregação de escolas superiores preexistentes, no caso as de Direito, Engenharia, Medicina e Odontologia. A concepção dos fundadores incluía aspectos outros, além da formação profissional: pensava-se, por exemplo, como funções da universidade, a pesquisa científica e o interesse pelo progresso regional.
Instala-se a nova universidade em meio a grande expectativa da opinião pública. Ela representava um passo relevante no amplo projeto político de Antônio Carlos, cuja meta final era certamente a de alcançar a Presidência da República para um mandato de quatro anos, o que na realidade não chegou a ocorrer em tempo algum. Representava também o auge de uma orientação ilustrada, mobilizando, no mesmo rumo, intelectuais e políticos.
Por sua vez, conforme assinalamos na introdução deste trabalho, significou a convergência das duas correntes que caracterizam a tradição ilustrada em Minas: a da razão pragmática e a da razão humanística, talvez com a implícita intenção de fazer emergir a razão científica, de algum modo, em Minas Gerais.
Belo Horizonte já contava, no final da década de 1920, com requisitos institucionais e com considerável grupo de professores capacitados para que se pudesse empreender 0 projeto universitário. Era mesmo, segundo alguns entusiásticos defensores da iniciativa, o lugar ideal, no Brasil, para o empreendimento: isso pelo aspecto bucólico da cidade, à imagem de antigas cidades universitárias européias.
As conseqüências foram benéficas, até mesmo a curto prazo, no que tange ao desenvolvimento da cultura e da divisão do trabalho intelectual.
O primeiro reitor da UMG foi Francisco Mendes Pimentel, ex-parlamentar, republicano histórico, famoso jurista e experimentado educador. Sua atuação foi marcante nos primeiros tempos da instituição.
Foi outro, porém, o grande artífice da política de Antônio Carlos inclusive no setor educativo: Francisco Campos, Secretário do Interior (a quem estava afeta a instrução pública) e principal elemento da equipe governamental no quadriênio. Os outros secretários eram: Finanças, Gudesteu de Sá Pires e depois José Bernardino Alves Júnior; da
1 MENEGALE, Heli. A Instrução. In: CÉSAR, Guilhermino, org. Minas Gerais; terra e povo. Porto Alegre, Globo, 1970. p. 140.
Agricultura, Industria, Terras, Viação e Obras Públicas, Augusto Viana do Castelo e depois Pjalma Pinheiro Chagas; da Segurança e Assistência Pública, José Francisco Bias Fortes. O secretário da Presidência era o escritor Mário de Lima, líder do laicato católico, que exerceu influência para os acordos de Antônio Carlos com o episcopado mineiro.
Quanto a Francisco Campos, tratava-se de sua primeira grande experiência no Executivo. Viera de uma rápida carreira como jurista e professor de Direito. Havia realizado curso e concursos brilhantes na Faculdade de Direito, a mesma que fora fundada em Ouro Preto, no fim do século passado, e de que tinham sido professores, inicialmente, Afonso Pena e João Pinheiro, sendo por isso denominada, ainda hoje, a "Casa de Afonso Pena". Viera também de mandatos legislativos, inclusive na Câmara Federal, em que se destacara pelo brilho intelectual e pela afirmação política.2
Mais velho do que os jovens intelectuais modernistas em Minas, era pessoalmente ligado a alguns deles. Era oriundo do oeste de Minas, tanto quanto Emílio Moura e Gustavo Capanema. Um dos seus irmãos, Alberto Campos, prematuramente falecido alguns anos depois, era amigo muito próximo de Carlos Drummond de Andrade. Por intermédio desse irmão, o futuro autor de Alguma Poesia foi levado para trabalhar na redação do Diário de Minas, órgão representativo do PRM em Minas. como se sabe, na redação desse jornal oficioso e politicamente austero, realizou-se, na época, a propaganda do modernismo literário em Minas. Faziam parte de sua redação, além de Drummond, que chegou a redator-chefe, João Alphonsus, Emílio Moura e, por algum tempo, Afonso Arinos. Ao mesmo grupo eram ligados Pedro Nava, Abgar Renault (deputado estadual em 1927), Milton Campos, Ciro dos Anjos e Martins de Almeida. Em 1925 e 1926, circula o órgão do Modernismo em Minas, A Revista, impressa nas oficinas da Imprensa Oficial do Estado.
A essa época, portanto, havia certo entrosamento entre o grupo do poder e o grupo intelectual. Drummond, por exemplo, acabou indo trabalhar com Gustavo Capanema, de quem se tornaria amigo para sempre. O poeta foi também chamado a colaborar com Mário Casassanta, na Revista do Ensino, no começo da década de 30. Pedro Nava, em 1927, sextanista de Medicina, faz um discurso de saudação a Antônio Carlos, ao término de uma passeata dos estudantes, em comemoração ao nascimento da universidade em Belo Horizonte.3
Outro exemplo, este menos circunstancial, é o da perfeita identificação de Rodrigo M.F. de Andrade com a administração Antônio Carlos e, àquele tempo também, com a pessoa de Francisco Campos. Rodrigo, que estudara algum tempo na Faculdade de Direito de Belo Horizonte, encontrava-se como redator-chefe de O Jornal, dirigido por Assis Chateaubriand no Rio de Janeiro. Em virtude desse vínculo de emprego, acabou por ser igualmente o redator-chefe da Revista do Brasil. O futuro fundador dos Diários Associados havia adquirido os direitos dessa publicação a Monteiro Lobato. Passou-se à fase Calógeras da Revista, pois esse político e historiador encabeçava-lhe o respectivo Conselho Diretor. Tanto em O Jornal como na Revista, Rodrigo escreve vários textos de conteúdo antibernardista e de apoio à política de Antônio Carlos. No
2 Sobre Francisco Campos, há já uma bibliografia considerável. A respeito de sua carreira, veja-se MONTEIRO. Norma de Góis. Francisco Campos: trajetória política. RBEP. 53 jul. 1981. p. 183. Veja-se especialmente o item "Secretário do Interior do Estado de Minas Gerais".
3 O discurso de Pedro Nava está publicado no Minas Gerais. Belo Horizonte, 19 ago. 1927. Em Beira mar, o memorialista recorda o episódio e fala sobre a criação da Universidade.
primeiro, organiza uma edição especial sobre Minas Gerais, para a qual escreve um artigo encomiástico a Francisco Campos, que denominava-se Um Professor de Intrepidez. Na segunda, publicou comentários e editoriais políticos sobre a atualidade mineira. Examinou a plataforma de Antônio Carlos e o discurso de posse de Campos na Secretaria do Interior.4
Pode-se afirmar, resumidamente, que a geração dos intelectuais modernistas participou ativamente do momento de renovação política encabeçado por Andrada. Contribuiu para arejar o ambiente intelectual. Seus principais valores eram literários e artísticos. Na medida, porém que se insurgiram contra os padrões estéticos academicistas, instauram um debate muito vivo que acaba por impregnar o próprio ambiente político. É curioso que, voltando-se contra o passado literário imediato, valorizam, ao mesmo tempo, as raízes intelectuais mais profundas de Minas, as que remontam à Arcadia, no século XVIII.
Firmino Costa, a despeito de sua cuidada formação literária, não demonstrou maiores simpatias pelo modernismo literário. Seu principal elo de ligação com esses escritores e mesmo com Capanema era Mário Casassanta, que chegou a publicar poemas bissextos modernistas.
Francisco Campos, na área do ensino, exerceu intensa atividade de leitura, reflexão, debate e elaboração legislativa. Coube-lhe redigir os novos regulamentos do ensino primário e normal ; as exposições de motivos que os acompanharam, quando foram submetidos à assinatura de Antônio Carlos, constituem verdadeiros ensaios, plenos de informação erudita e de apreciações políticas, a respeito de questões educacionais. Firmino Costa denominou-as "prefácios históricos" da legislação.5 O tom desses textos é diverso do que está presente nos escritos dos educadores da época, embora os autores citados pudessem ser os mesmos, como Dewey e Claparède. A diferença estava em que Campos permeava sua escrita, com freqüência, da tônica filosófica, que era o forte de sua formação e de sua mentalidade.
Se trabalhou quase só e isolado na hora de redigir os diplomas legais, o certo é que ouviu muitos especialistas e muitos amigos de confiança, antes de fazê-lo. Ouviu-os quer particularmente, quer institucionalmente. Promoveu o Congresso de Ensino Primário, em 1926, o qual ofereceu subsídios valiosos, sendo simultaneamente instrumento eficaz de mobilização do professorado. Dentre as inúmeras pessoas que participaram da reunião e executaram missões da Secretaria do Interior encontravam-se alguns parentes de Francisco Campos — do mesmo tronco da matriarca mineira D. Joaquina de Pompéu —, como Alberto Álvares Fernandes Vieira e Osvaldo de Melo Campos.
O primeiro deles chefiou missão à Europa em busca de educadores experimentados para compor a equipe de alto nível que se pretendia organizar em Minas. Dessa busca resultou a vinda de ilustres pedagogos, psicólogos educacionais e professores de artes plásticas, alguns por algum tempo, outros definitivamente. Dentre estes últimos, destaca-se a grande figura de Helena Antipoff, russa de nascimento, aluna de Claparède na Suíça. Ela iria integrar-se de modo permanente à vida intelectual do Estado; veio a fa-
4 Da Revista do Brasil, sob a responsabilidade de Rodrigo M. F. de Andrade, foram publicados dez números, edições quinzenais, em 1926. O artigo referido, Um professor de intrepidez, foi publicado em O Jornal, Rio de Janeiro, suplemento especial sobre Minas, 24 abr. 1929. Refere-se à carreira de Francisco Campos como professor de Direito e transcreve longo trecho filosófico do mesmo.
5 COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 165.
lecer décadas depois, octogenária, cercada do respeito de todos, depois de uma vida de fecundas realizações.6
A Escola de Aperfeiçoamento teve uma atuação decisiva no progresso educativo da região. Fundada em 1929, foi considerada por Francisco Campos como o coroamento de sua obra. O curso geral recrutava professores dos grupos escolares da Capital e do interior, para um trabalho de dois anos de estudo, em tempo integral, de disciplinas pedagógicas e de administração escolar.
Predominavam as matérias concernentes à psicologia educacional e à metodologia didática das disciplinas constantes do ensino elementar. Suas alunas passaram a dominar e a difundir as técnicas de medida de inteligência, para fins de composição de classes homogéneas e de estímulo à aprendizagem
O corpo docente era formado por professores vindos de Genebra e outros centros europeus, além de mestras mineiras com estágio de aperfeiçoameto no Teacher's College da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos.7
Normas e justificativas regulamentares
Os dois mais importantes documentos legais da reforma do ensino, ao tempo de Antônio Carlos, foram o Regulamento do Ensino Primário e o Regulamento do Ensino Normal, aprovados por decretos do Presidente do Estado e elaborados sob a responsabilidade do Secretário do Interior, Francisco Luis da Silva Campos. Os decretos foram, respectivamente, os de números 7.970-A, de 15 de outubro de 1927, datado de Uberaba, e 8.162, de 20 de janeiro de 1928.
Ambos os regulamentos são extremamente minuciosos, baixando normas sobre os mais variados aspectos técnicos e administrativos.
O documento do ensino primário trata do ensino público e do ensino primário particular. O primeiro é dividido em duas categorias: o fundamental e o complementar, este de natureza técnico-profissional. Segundo ele, o ensino fundamental é obrigatório e leigo, dividido em escolas infantis e primárias. Há estritas normas para o funcionamento do ensino particular. Cria-se o ensino subvencionado. Trata o regulamento da obrigatoriedade e freqüência escolar; estabelece censos escolares periódicos e um sis-
Lê-se em MENEGALE, Heli. Op. cit., p. 142: "Pedagogos de influência internacional, como Claparéde e Simon, a psicóloga Helena Antipoff, Orner Buyse, para organização do ensino técnico, as mestras de desenho e modelagem, Artus Perrelet e Jeanne Milde, integraram a missão européia que, contratada pelo governo mineiro, participou dos cursos de introdução da reforma."
Sobre o grupo que estudou nos Estados Unidos: "Simultaneamente, enviou o governo um grupo de professores aos Estados Unidos, onde no Teacher's College ,da Universidade de Columbia. participaram de cursos, seminários, conferências e de atividades de observação, com um único objetivo: formar-se nos novos métodos e processos, preparando-se para constituir, através da Escola de Aperfeiçoamento, o núcleo gerador do processo de renovação, que se esperava das escolas mineiras." Grande responsabilidade pesava sobre os ombros das professoras Inácia Guimarães, Alda Lodi, Amélia de Castro Monteiro, Benedita Valladares e Lúcia Schmidt Monteiro de Castro (Lúcia Monteiro Casassanta): "Não quero certificados, atestados ou diplomas. Venham apenas preparadas", disse-lhes Campos no momento do embarque. Regressando ao Brasil em março de 1929, já no dia seguinte à sua chegada deram início aos trabalhos para a instalação da Escola de Aperfeiçoamento. Informações contidas no livro de PEIXOTO, Anamaria Casassanta. Edu-caçfo no Brasil, anos 20. Sao Paulo, Loyola, 1983. p. 146.
tema de estatística escolar. Trata ainda da direção superior do ensino, com dispositivos sobre as atribuições do presidente e do secretário, da Inspetoria Geral da Instrução Pública e do Conselho Superior da Instrução. Este passa a ser dividido em duas seções: a administrativa e a técnica. Dispõe depois sobre inspeção e assistência técnica.
uma das atribuições da seção técnica do Conselho Superior da Instrução era a de "estudar e ensaiar, sob a sua direção técnica, os recentes processos de instrução primária, tais como os de Decroly, Dalton Plane, Escola Livre, Escola Ativa, etc, sugerindo meios práticos de introduzi-los gradativamente na instrução pública do Estado". Atribuía-se, ainda, ao referido setor "incentivar a aplicação dos testes pedagógicos e promover a sua padronagem".8
A reforma Francisco Campos, embora não tenha sido a primeira iniciativa estadual nesse sentido, na década de 20, foi sem dúvida a que se antecipou e foi mais a fundo nos esforços em prol da Escola Nova, isto é, do ensino ativo e participado, por meio de centros de interesse e segundo técnicas pedagógicas baseadas na psicologia experimental.
Outra característica dessa transformação foi a de incentivar a relação da escola com a comunidade local, por meio de instituições como a Associação de Mães de Família (existentes desde o governo anterior), dos conselhos escolares (constituídos por autoridades do poder público local, autoridades religiosas e escolares), das caixas escolares, destinadas estas a promover a assistência aos alunos carentes. O outro elo entre a vida escolar e a da cidade era a realização do auditorium, espaço para manifestações artísticas, canto coral, exposições, audições musicais, além de palestras de interesse público ou, por exemplo, de educação para a saúde.
Estavam previstas, por outro lado, instituições extraclasse para congregar os alunos, tais como os clubes de leitura, os "pelotões de saúde", etc.
A escola infantil era dividida em maternal e jardim de infância, com atividades diferenciadas.
Os grupos escolares, sediados em localidades com pelo menos 300 crianças em idade escolar, tinham os respectivos cursos primários com duração de quatro anos. As escolas rurais e as singulares, de três; neste caso, havia o acréscimo de um ano escolar.
Estruturou-se a carreira docente, com possibilidade de promoções e estímulos através de prêmios para os professores mais eficientes.
Nas escolas urbanas, estavam previstas as seguintes disciplinas: Desenho, Leitura e Escrita; Língua Pátria; Aritmética; Cálculo Mental e Noções de Geometria; Noções de Cousas, em torno de centros de interesse infantil, segundo o método Decroly; Geografia Geral e do Brasil, especialmente de Minas Gerais; Noções de Educação Moral e Cívica e de Urbanidade ; rudimentos de Ciências Naturais e Higiene; Canto; Exercícios Físicos. Além de seguir essas matérias, os alunos dos grupos escolares deveriam executar trabalhos manuais. Essa relação denota um elenco mais diversificado e mais complexo de disciplinas do que o estabelecido pela reforma João Pinheiro/Carvalho de Brito.
Comparado com o dessa última, o programa do ensino primário baixado no governo Antônio Carlos é bem mais extenso (juntamente com as instruções). Aprovado pelo Decreto n° 8.094, de 22 de dezembro de 1927, esse documento está editado num volume de 406 páginas, intitulado : Instruções e Programas do Ensino Primário do Estado
a Em alguns pontos, valemo-nos do resumo feito por MOURAO. Paulo Krüger Corrêa. O ensino em Minas Gerais no tempo da República (1889-1930). Belo Horizonte, Centro Regional de Pesquisas Educacionais, 1962. p. 372.
de Minas Gerais. Desse numero de páginas, 274 sao dedicadas às instruções (67,5% do total) e o restante ao programa propriamente dito e mais o horário em que se distribuem as disciplinas.9
Nessas instruções, às vezes, se discute o significado da disciplinais vezes, suas possibilidades de aplicação; outras, os pontos mais relevantes do programa. Antes de entrar na análise de cada mate'ria, fala-se sobre a escola, o aluno, o professor, a Caixa Escolar, a organização da classe.
uma novidade das instruções é a parte referente a Noções de Cousas: aí, segundo a idéia de centros de interesse (método Decroly), apresentam-se sugestões de temas e seu desenvolvimento na sala de aula: "A nova disciplina, que assim se pode chamar, introduz na escola a observação direta do meio. Ela faz derivar do exercício de observação todas as atividades escolares. É um programa de idéias associadas, em sua educação. A leitura dos quadros da nova disciplina mostrará por si só as evidentes vantagens do método empregado."
com referência ao ensino normal, foram muitas as inovações introduzidas pelo Regulamento.
Estabelece o art. 19 que esse ramo tem "por objeto formar professores e demais pessoal técnico para o ensino primário do Estado, e será ministrado em duas categorias de Escolas: - a do primeiro e a do segundo graus".10
A seguir, estabelece que, nos grupos escolares de primeira e segunda categorias, haveria um curso de dois anos para a formação de professores rurais. Nesse ponto o regulamento assimilava a experiência pessoal de Firmino Costa em Lavras e em sua região de influência.
As de segundo grau eram oficiais, em número de dez, segundo cinco regiões do Estado, sendo as primeiras instaladas em Belo Horizonte, em Juiz de Fora e em Ouro Fino. Esse curso destinava-se a formar normalistas "completas" que poderiam também ser professoras de metodologia e prática profissional nas escolas normais. Constava de três etapas: curso de adaptação (em dois anos), o preparatório (três anos) e o de aplicação (dois anos).
Esta última etapa era propriamente a formação técnico-profissional das futuras normalistas, constando o currículo das seguintes matérias: Psicologia Educacional; Biologia e Higiene; Metodologia; História da Civilização, particularmente História dos Métodos e Processos da Educação;e Prática Profissional.
Para se chegar a essa etapa, as outras duas deveriam ser percorridas. O curso de adaptação constava de: Português, Francês, Aritmética, Noções de História do Brasil e Educação Cívica, Geografia, Noções de Ciências Naturais, Desenho, Educação Física e Canto. Era um reforço do conhecimento adquirido no primário.
Já o preparatório, "destinado a ministrar a cultura geral indispensável à formação do magistério primário", era seriado da seguinte forma:
Primeiro ano: Português, Francês, Aritmética, Geografia, Desenho, Trabalhos Manuais e Modelagem, Música e Canto Coral e Educação Física;
Segundo ano: Português, Francês, Aritmética, Geometria, Corografia do Brasil, De-
MIN AS GERAIS, Governo. Instruções e Programas do Ensino Primário do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1927. p. 69-146.
Os regulamentos foram por nós consultados em sua reprodução na Revista da Universidade de Minas Gerais, n. l.tomo 1. Belo Horizonte, 1929.
senho. Trabalhos Manuais e Modelagem, Música e Canto Coral e Educação Física; Terceiro ano: Portugués, Francés, História do Brasil, Física e Química, História Na
tural, Desenho e Educação Física. O que se ministrava, nessa etapa, além de constituir cultura geral desejável na época
(Francês e não Inglês, por exemplo), era também o indispensável em termos de informação sobre o conteúdo do ensino fundamental.
Essa modalidade de ensino normal do segundo grau possibilitava uma formação profissional bastante satisfatória, dentro dos requisitos preconizados, durante tantos anos, por Firmino Costa. Somente o Estado poderia oferecer o segundo grau.
As escolas normais de primeiro grau poderiam ser tanto oficiais como particulares, estas últimas equiparadas às primeiras. A de Belo Horizonte chamava-se Escola Normal Modelo.
As normalistas formadas pelas escolas de primeiro grau, depois do exercício do magistério por dois anos, poderiam obter diploma de segundo grau, mediante exames das seguintes matérias: Francês, Psicologia Educacional, Metodologia e Prática Profissional.
Para ingresso no primeiro grau, era necessária a aprovação no segundo ano de adaptação ou a prestação de exame de admissão.
O normal do primeiro grau tinha a seriação seguinte: Primeiro ano: Português, Aritmética, Geografia, Desenho, Trabalhos Manuais e Mo
delagem, Música e Canto Coral e Educação Física; Segundo ano: Portugués, Noções de Geometria, Corografía do Brasil, Noções de
Ciências Naturais, Desenho, Trabalhos Manuais e Modelagem, Música e Canto Coral, Educação Física;
Terceiro ano: História do Brasil e Educação Cívica, Metodologia, Noções de Psicologia Infantil e Higiene Escolar e Prática Profissional.
Esse sistema durou bastante tempo. Somente em 1946, houve modificações substanciais, relacionadas com a nova estrutura do ensino em âmbito nacional. Nessa mesma ocasião o Curso de Aperfeiçoamento foi transformado em Curso de Administração Escolar.
Em 1927, Francisco Campos, em suas duas exposições de motivos, defendeu e explicou tanto o currículo, como a organização escolar que estavam sendo implantados.
Tinha razão Firmino Costa, ao considerar como prefácios históricos as exposições de motivos com que Francisco Campos encaminhou ao chefe do Executivo mineiro os regulamentos dos ensinos primário e normal. Tem-se a impressão de que o Secretário do Interior, em poucos meses, dominou por completo as questões educacionais de seu tempo, pelo menos segundo a corrente psicopedagógica dominante, naquele momento, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Sua preparação mais próxima para a redação desses textos foi feita de duas formas: pela leitura dos teóricos (Dewey, Decroly, Claparède, além de artigos em revistas especializadas norte-americanas), e pelo contato com os educadores mineiros, notadamente os mais experientes. No tratamento do ensino primário, pensamos encontrar os conselhos de Helena Antipoff, quanto, por exemplo, à questão dos alunos com déficit mental. Na abordagem do ensino normal, pensamos poder encontrar idéias de Firmino Costa.
Os dois prefácios são, ademais, redigidos com elegância e eficácia de estilo. São bem ordenados textos de justificativa e interpretação dos dispositivos legais.
No referente ao primário, desenvolve a argumentação a partir das definições feitas por .Antônio Carlos, na campanha eleitoral e depois no governo, em torno de seu programa educacional. A análise se prende, em primeiro lugar, à função educativa da es-
cola primária, legalmente definida como tendente a alcançar o desenvolvimento físico, mental e moral dos alunos.
Francisco Campos entende esse papel educativo no sentido de promover a socialização das crianças: de incentivar a sociabilidade delas com o meio e entre elas, nao de modo artificial - a escola corno estufa -, mas pela captação das correntes vivas da sociedade envolvente. A escola deveria transmitir os influxos do meio, sempre de forma sistemática, retificando-os e transformando-os em valores, normas, etc. Internamente, instituições de interação e de aprendizagem da convivência facilitariam o esforço de socialização. Em outras palavras, a escola seria uma agência fundamental na preparação das pessoas para a vida social bem integrada. Ao formar as novas gerações, segundo essas diretrizes, a instituição escolar estaria educando a própria sociedade, de que é uma espécie de miniatura.
Examina depois o papel instrutivo da escola elementar. Começa com o ensino da leitura. "Nela é que se tem de operar o milagre do aprendizado da leitura, o maior de todos, porque é a chave dos demais." Nesse ponto passa a examinar as exigências psicológicas da infância no processo de aprendizado. Propõe uma síntese dos princípios psicopedagõgicos referentes aos interesses e motivação infantis. Recusa o ensino puramente passivo e receptivo. Aprofunda essa perspectiva, ao propor a adoção do método Decroly, privilegiando os "centros de interesse".
O restante do documento aborda questões de organização das escolas, o problema da carreira docente a ser concebida segundo critérios de racionalidade e a estratégia da implantação do novo regulamento. Ele espera que administrações sucessivas sigam a mesma linha, para consolidar as inovações. Apela para o espírito de colaboração dos professores e de todo o pessoal envolvido no ensino público.
Quanto à reorganização do ensino normal em Minas, discute também, amplamente, as questões teórico-práticas, na exposição de motivos.
Declara que o governo estadual sempre esteve convencido de que a melhoria do ensino fundamental só seria possível e duradoura na medida em que se aprimorasse também o ensino normal, matriz do primeiro. Daí a necessidade de se modificar por inteiro a formação das normalistas.
Faz pertinente observação de que os fundamentos da formação do professor primário não se beneficiaram do mesmo espírito de pesquisa e das conquistas científicas que haviam aberto novos horizontes à educação elementar. Verificava, assim, a existência de um descompasso entre ambos, em termos de progresso teórico-metodológico. Cabia, em razão disso, incorporar esses adiantamentos ao ensino normal.
"Tais resultados e aquisições - argumenta - só se tornarão fecundos ingressando no ensino normal, afeiçoando-se neles, desde a escola profissional, a mentalidade e o espírito dos professores, introduzindo-os na circulação intelectual das Escolas destinadas à formação dos mestres de maneira que estes os adquiram não apenas com o caráter de ensino teórico, senão como uma técnica, o que só as Escolas de Aplicação podem fazer. O problema, pois, está em que nos cursos voltados à preparação dos professores haja uma integração perfeita das matérias de finalidade propedéutica e profissional, de sorte que os professores se tornem, a um só tempo, senhores dos assuntos que terão de ensinar, como da sua significação no crescimento mental dos alunos, cônscios, igualmente, dos fundamentos e finalidades da escola primária, assim como da técnica, dos processos, dos métodos de ensino. Ora, nenhum training profissional será adquirido pelo simples fato da acumulação das matérias; somente poderá resultar da integração dos vários objetos de estudo e da prática sobre eles exercida."
Acrescenta que é necessário melhorar a qualidade do ensino elementar. A difusão será positiva somente se acompanhada da melhoria qualitativa. Para mostrar como a má qualidade do ensino constitui verdadeiro castigo para os educandos, recorre a pesquisas e artigos da Educational Review, dos Estados Unidos.
Aborda ainda aspectos administrativos do ensino normal, mas, principalmente, a justificativa das inovações curriculares, notadamente o estudo da Biologia e da Psicologia Educacional. Discorre ainda sobre a introdução, no currículo, da disciplina História da Civilização, em particular, dos métodos e processos educativos. A esse respeito, invoca novamente a autoridade de Dewey, agora para acentuar a importância do estudo da história intelectual.
Coube a Mário Casassanta a tarefa de levar à prática as formulações doutrinárias e a legislação que iam sendo elaboradas. Teve também direta participação no trabalho de formular os programas de ensino.
Graças a seu prestígio intelectual e sua habilidade conciliatória, conseguiu fazer impor suas idéias e suas posições em matéria de doutrina pedagógica. Só assim se compreenderá como o antigo inspetor geral da instrução, católico de formação e de prática, pôde levar adiante em Minas as idéias e princípios da Escola Nova, contra os quais se levantavam preconceitos e restrições, por parte de educadores católicos e de representantes do clero. As manifestações contrárias assumiram as formas de resistência difusa e de combate aberto. Mário Casassanta conseguiu contornar essa oposição, em seus contatos amistosos com bispos mineiros e com líderes leigos.
Em tempos posteriores, demonstraria ele novamente essa habilidade, no mesmo terreno, ao estabelecer relações de boa amizade com pessoas opostas entre si, como eram Alceu Amoroso Lima e Fernando de Azevedo.11
Francisco Campos, de brilhante passagem também pela administração mineira, seguiria seu destino político-doutrinário no plano federal, como Ministro da Educação, até 1934, e depois, da Justiça, em cuja função foi responsável pela Carta outorgada, no limiar do Estado Novo, em 1937. Sua presença, na administração educacional, durou ao todo cerca de oito anos. Não é o momento de se analisarem as motivações, em termos biográficos e de contexto histórico, para essa tomada de rumo de caráter autoritário.
No momento, gostaríamos de assinalar que o governo Antônio Carlos, sob diversos aspectos, constituiu uma tentativa bem sucedida de democracia efetiva, mas limitada (no sentido de que não atingiu, socialmente, todas as camadas da sociedade regional). Foi, entretanto, o liberalismo possível em Minas. Antes dele e da modernização que implantou, tal seria inviável, devido às características de clientelismo da oligarquia local. Depois dele, as polarizações ideológicas da década de 30 e o início dos movimentos de massas urbanas tornariam a sociedade muito mais complexa, de modo a ultrapassar o modelo liberal de democracia limitada.
A favor de Antônio Carlos, diga-se que terminou seus dias no ostracismo político, porque se recusou ser conivente com o regime autoritário.
Minas foi deixando aos poucos de ser uma realidade agrário-mercantil. Belo Horizonte, nas décadas seguintes, foi perdendo paulatinamente o ar bucólico - a cidade ideal para ser a sede de uma universidade... -, para tornar-se o centro polarizador de
A respeito do assunto, consulte-se PEIXOTO, Anamaria Casassanta, Op. cit., todo o cap. 5. Implementação da Reforma.
uma poderosa região industrial do setor metalúrgico. Finalmente, cabe dizer que nao tivemos intenção, neste capítulo, de esgotar o as
sunto da reforma Francisco Campos/Mário Casassanta em Minas. Nosso intuito foi tão-sòmente de situar, do ponto de vista do contexto político, esse momento e, dentro dele, o papel de Firmino Costa.
Para análise ideológica da reforma e do contexto econômico de Minas Gerais, na Primeira República, consulte-se o excelente trabalho de Anamaria Casassanta Peixoto, citado na nota 6 do presente capítulo.
Colaborando nas mudanças
No ginásio de Barbacena
Os relatórios anuais iam construindo a fama de Firmino Costa em Belo Horizonte, como educador experimentado e imaginoso. No governo Melo Viana, chegou a vez de que fosse convocado para outras tarefas diferentes daquela em que se empenhava desde 1907. Antes que tal ocorresse, o nome do mestre começou a figurar na recém-fundada Revista do Ensino. No número de março/outubro de 1925, aparece, como parte da série "Os nossos grupos escolares", matéria sobre o estabelecimento de Lavras, com a descrição do que ali se fazia. A reportagem termina assim : "As linhas acima justificam os constantes elogios com que os nossos administradores tém estimulado essa inteligência tenaz e construtora, que é o professor Firmino Costa."
Ilustrando a matéria, uma fotografia do prédio da biblioteca e do museu do Grupo. Nesse mesmo número, encimada pela foto da fachada da escola, um artigo do próprio diretor, intitulado Centro de Instrução Municipal, em que defende a idéia de que o grupo escolar deve, além de suas funções óbvias, assumir a "de centro de instrução para as escolas do município".1
Melo Viana fizera uma viagem a Lavras. Ficou conhecendo o Grupo Escolar, sobre o qual deixou suas impressões no livro de visitas. como Secretário do Interior de Raul Soares, bem sabia do trabalho de Firmino Costa.
Por esses e outros motivos, acabou por ser convidado o educador lavrense para outra função : a de reitor do internato do Ginásio Mineiro, em Barbacena, prestes a ser reinaugurado. Para lá se transferiu, deixando para sempre o município em que foi criado.
A mudança coincide com certo esgotamento do modelo escolar criado em Minas no começo do século; coincide com a efervescência política, ainda tímida, que marca a crise das oligarquias regionais da Primeira República e preludia o movimento de 1930. Mas, acima de tudo, diga-se que Firmino Costa já fizera por sua terra tudo que podia e sabia como mestre-escola. Ele inicia uma ampliação de sua influência pessoal como educador.
Será um interludio a passagem por Barbacena. Esse período de cerca de dois anos divide a trajetória profissional de Firmino Costa em duas etapas bem marcadas. Na primeira esteve na planície, como diretor de uma escola pública, claramente situado na moldura de uma importante reforma do ensino, sobre cuja execução teve influência marcante; na segunda, estava próximo do poder de decisão da política educacional do Estado, assessorando outra reforma, a de Antônio Carlos, redigindo programas, difun-
A Revista do Ensino, mar./out. 1925, publica duas matérias: uma anônima, O Grupo de Lavras, outra, de autoria de Firmino Costa, Centro de Instrução Municipal, p. 112 e 187, respectivamente.
dindo novas idéias pedagógicas, participando de uma experiência fecunda de ensino normal.
Mas Barbacena nao foi um interlùdio estéril e sem brilho. Consagrou toda a sua habitual energia para dirigir com eficácia o internato. As diretrizes de sua administração foram traçadas com nitidez no discurso pronunciado durante a inauguração solene do educandário. Ressaltou a colaboração que esperava entre os professores e a influência destes sobre os alunos. "Para servir de guia — disse - considere-se o educador como representante da autoridade e da liberdade. Fazendo os alunos exercitarem-se nesta, ao mesmo tempo ele os fará compreender o valor da autoridade na organização social. Dentro da verdadeira liberdade, a obediência deixará de ser passiva para tornar-se ativa, longe de ser um ato puramente externo, ela resultará da boa vontade dos alunos." Traça todo um programa de orientação nos estudos e de cuidados com a saúde dos estudantes, para propor, a seguir, rumos da organização do ginásio, especialmente quanto ao uso da biblioteca e do auditório. Diz aceitar o novo desafio e termina por falar da virtude da perseverança como indispensável à vida intelectual.2
A julgar pelos elogios expressos na imprensa local, a gestão de Firmino Costa agradava aos barbacenenses. São impressões transmitidas em notícia sobre seu aniversário e dando conta das conferências que fizera em Belo Horizonte, a convite de Francisco Campos.
Tais palestras pedagógicas, realizou-as em outubro de 1926, na Escola Normal Modelo, portanto, pouco depois da posse do governo Antônio Carlos. O Minas Gerais do dia seis, nas Notas Oficiais, registra que haviam conferenciado, na véspera, com o Secretário do Interior (Francisco Campos) "as seguintes pessoas: Prof. Firmino Costa. Dr. Isauro Epifanio, deputado Washington Pires, Dr. Martins de Almeida e coronel Polidoro dos Reis". Teria sido simples visita de cortesia? É plausível conjecturar que trataram de assuntos administrativos e pedagógicos e que tenha sido já solicitada a colaboração do educador aos planos de renovação do ensino que seriam implementados a partir do ano seguinte.
As palestras se realizaram nos dias subseqüentes, parecendo ter despertado bastante interesse. Compareceram autoridades e dirigentes de estabelecimentos de ensino; convidou-se todo o professorado da Capital. O conferencista expôs, em dias sucessivos, os seguintes temas: Um Grupo Escolar (relato e interpretação da experiência realizada em Lavras), A Língua Pátria, O Método Intuitivo, Ensino Distrital e Rural e Calendário Escolar. Esse contato com os meios intelectuais de Belo Horizonte deve ter sido decisivo na convocação futura de Firmino Costa para novas missões na Capital.3
Foi marcante, ressalte-se de novo, a passagem por Barbacena. Depois de sua saída. os alunos organizaram no Ginásio o Grêmio Literário Firmino Costa. Na administração seguinte, em 1928, a congregação aprovou um voto de louvor ao ex-reitor, afirmando que ele "prestou a esta casa os melhores serviços, quer reitoria, quer no período inicial de reorganização do Internato, quer nos dois anos de sua reitoria, elevando moralmente o renome glorioso deste estabelecimento de ensino. Emérito educador, distinguiu-se entre nós pela linha impecável da mais esmerada polidez, imprimindo a seus atos todos o traço rùtilo da bondade, da prudência, da justiça, revelando-se sempre à altura das
2 COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 78. 3 A presença de Firmino Costa em Belo Horizonte foi registrada pelo Minas Gerais, do dia 6 ao
dia 14 de outubro de 1926.
delicadas funções de que esteve revestido, exercendo a reitoria." Acrescentava a moção que ele só deixara ali amigos e admiradores fervorosos.'
Preparando a reforma
Ao participar destacadamente do I Congresso de Instrução Primária do Estado de Minas, em 1927, Firmino Costa muito contribuiu, com sua experienciado debate de diferentes teses. O certame teve o caráter de intensa mobilização do professorado como passo preliminar da reforma.
Dividia-se em diferentes seções: organização geral do ensino; questões de Pedagogia; instituições auxiliares da escola; aparelhamento escolar; desenho e trabalhos manuais; educação moral e cívica; canto; higiene e educação física; exames e testes; e escolas infantis. Em cada seção, procurava-se dar respostas a teses formuladas em forma de indagações específicas. Na primeira dessas seções, Firmino Costa debateu alguns temas, como o nível de eficiência do ensino normal para a formação de profissionais aptos ao ensino primário; a existência de falhas e defeitos na organização do ensino primário e os meios de corrigi-los;e, finalmente, os meios de tomar eficiente a cooperação das câmaras municipais na obra de difusão do ensino primário.5 Quanto às questões referentes à Pedagogia, discutiu os temas: a duração de cada lição e o horário das classes, e a especialização ou não dos professores primários. A quinta tese - "haverá vantagem na tradução e adaptação de livros estrangeiros para uso dos alunos na aprendizagem da leitura?" - foi relatada por ele. A conclusão foi sintética e indireta: "Para o ensino da leitura, hão de ser adotados livros nacionais ou estrangeiros, que se subordinem a uma seriação educativa, capaz de incutir no ânimo dos alunos o amor à leitura." Depois de longo debate, foi aprovada. Relatou ainda tese referente aos livros aconselháveis na constituição da biblioteca dos professores.
Voltou a discutir um tema relacionado com desenho, sobre se seria conveniente criar-se um curso de aperfeiçoamento para professores que tivessem de executar "os programas de desenho, trabalhos manuais e cursos técnicos".
Por fim, debateu algumas teses, incluídas na seção educação moral e cívica, sobre os requisitos pessoais do professor primário, e sobre a gradação "mais racional e pedagógica do ensino moral e cívico".6
Ao tratar de que normas cívicas ensinar e como fazê-lo, apresentou ao relator Luiz Pessanha um aditivo, enumerando essas normas, que foi aprovado pela Comissão e depois inserido no Programa do Ensino Primário.
Desse modo, Firmino Costa começa a participar da reforma promovida no governo Antônio Carlos. Testemunha qualificada de todo o desenvolvimento do ensino fundamental e do ensino normal na Primeira República, ele próprio ajudara, baseado na intuição, a renovar esse ensino; no final da década de 1920, adere conscientemente às idéias pedagógicas da Escola Nova.
4
Da moção da Congregação do Internato do Ginásio Mineiro, foi-nos cedida uma cópia pela família Firmino Costa.
Lembre-se que ele possuía uma experiência positiva de relacionamento com a Câmara Municipal de Lavras, da qual recebeu ajuda para o Curso Rural de Professores.
6 O Congresso do Ensino Primário teve ampla cobertura na imprensa belo-horizontina. Nosso resumo baseia-se em publicação da Revista do Ensino, 1926, edição especial.
Primeiramente nos círculos informais de amigos e colegas e depois no âmbito do Conselho Superior da Instrução, passou a discutir o que Convinha mudar, no sistema educacional de Minas, e quais seriam os meios adequados de implantar as mudanças.
com freqüência, expunha suas idéias em palestras e em artigos publicados na imprensa mineira, notadamente no Minas Gerais, que possuía uma seção denominada Pelo Ensino.
A Revista do Ensino, criada ainda no governo Melo Viana, foi o veículo eficaz de motivação do professorado durante as etapas de elaboração e implementação da reforma. Editada com regularidade, inseria matérias variadas sobre práticas e métodos de ensino e teoria pedagógica, além de depoimentos e textos sobre experiências em andamento. Era o órgão oficial da Inspetoria Geral da Instrução.
A colaboração de Firmino Costa foi constante, durando até os primeiros anos da década de 30. Às vezes, eram pequenos artigos transcritos do Minas Gerais, às vezes textos de conferências ou série de aulas, às vezes ensaios de meio fôlego. Publicou também seu primeiro relatório como diretor técnico do Curso de Aplicação da Escola Normal de Belo Horizonte.7
Executando a reforma
Começou pelo Programa do Ensino Primário. É facilmente perceptível, para quem conhece os escritos de Firmino Costa, que foi efetiva sua colaboração no preparo desse documento. Está patente tanto nas instruções como nos programas propriamente ditos. Pelas citações, pelos autores mencionados, pelas idéias, evidencia-se que redigiu boa parte do texto. No que tange às matérias como Leitura, Escrita e Língua Pátria, não resta dúvida de que lhe coube, senão tôda, a principal responsabilidade pelo texto; o mesmo se pode dizer da História do Brasil e da Educação Moral e Cívica. Aliás, em cursos de aperfeiçoamento, promovidos em Belo Horizonte, no final da década de 20. ele lecionou a metodologia do Português para assistentes técnicos e de História e Educação Moral e Cívica para professores primários. É provável também sua participação nos programas de Higiene e Trabalhos Manuais.
Firmino Costa empenhou-se em acompanhar a implementação da reforma do ensino ao tempo de Antônio Carlos. Auxiliou muito de perto a ação de Mário Casassanta. Preocupava-se com que o movimento renovador fosse de longa duração, e não fruto de entusiasmo passageiro.
Ao mesmo tempo que implanta, em Belo Horizonte, o novo ensino normal, tão de acordo com sua antiga pregação, ele participa do debate público em torno dos dispositivos legais e do seu sentido, da letra e do espírito da reforma.
Deixa-se contagiar pela animação dos mais jovens. No momento educativo que se vivia em Minas percebe três atitudes positivas: cooperação, que tirava o professor do isolamento e o integrava no movimento social da reforma; solidariedade entre os servidores no trabalho; e autonomia, isto é, o ensino sob direção técnica, liberto de injunções políticas. Elogia a liderança da reforma, dirigindo-se, ao que parece, a Mário Casassanta: "Mas convém notar que de um espírito excepcional, tão admirável no conceber quão pronto no executar, nem é preciso dizer-lhe o nome, tem derivado, em grande parte, o movimento promissor a que me refiro."
E depois, como que justificando sua própria participação entusiástica: "Eu mesmo.
Relatório do Diretor Técnico do Curso de Aplicação. Revista do Ensino. Belo Horizonte.
que já devia estar na reserva, continuo em plena atividade, reanimado no meu íntimo por esse devotamento inigualável do executor da reforma. Às vêzes, como que me sinto transportado aos tempos da reforma João Pinheiro, quando, de uma feita, percorri toda minha cidade, visitando ricos, pobres e miseráveis para pregar-lhes os novos princípios..."8
Seu relacionamento com os mestres das novas gerações era o melhor possível. Alunas e professores da Escola de Aperfeiçoamento o convidam para conferências; colocam-no como presidente de honra da Associação Pedagógica. Era o reconhecimento, por parte de pessoas já com formação acadêmica sistemática, ao valor do autodidata competente e íntegro.
O reconhecimento era recíproco. Num outro artigo, ele elogia o aproveitamento das moças que tinham estado na Universidade de Columbia, invocando, a esse propósito, dois de seus paradigmas:
"Lembro-me de haver lido que uma comissão de industriais franceses fora visitar uma exposição na Alemanha, e ficara surpreendida de encontrar produtos tão perfeitos quais os fabricados em França. 'Como puderam rivalizar assim conosco?' perguntaram. E os alemães responderam: 'Fomos ao seu país, trabalhamos nas suas fábricas e aprendemos com os srs. o que estão vendo.'
Um professor da pátria de Horace Mann poderia fazer igual pergunta às professoras mineiras, que, depois de proveitoso estágio em uma universidade norte-americana, aqui se acham aplicando o que aprenderam. Elas estão prestando ao Estado serviços inestimáveis.
A bem da reforma, permita-se-me dizê-lo, seria acertad íssimo que o governo de Minas enviasse nova turma, agora de professoras e professores, a fim de cursarem, como as primeiras, a mesma universidade, onde souberam assimilar tão bem o ensino ministrado por educadores notáveis, principalmente as admiráveis concepções educativas desse genial pensador que é John Dewey. Bem escolhida que seja a turma, ela voltará, dentro de pouco tempo, para reforçar o trabalho de renovação educativa, dentro das linhas da atual reforma."
Escreveu, é claro, sobre o Curso de Aplicação, a experiência pioneira que iria comandar. Sem exagero, afirma, pode-se equiparar a instalação desse curso, na Escola Normal de Belo Horizonte, à criação dos cursos primários no Brasil, em 1826. Explica o sentido da inovação - a primeira autêntica escola normal criada em Minas - e analisa o programa de cada disciplina do respectivo currículo.9
Todo o esforço de Firmino Costa, no debate e na execução das diretrizes educacionais, no final da década de 1920, encontra-se documentado em seus livros Pela Escola Ativa e Aprendendo a Estudar; há alguns trabalhos, inéditos em livro, publicados em periódicos. Seria redundante a exposição de suas idéias, embora muitos pormenores de sua atividade não tenham sido mencionados nestas páginas.
Na década de 30, ele alcançou o pleno reconhecimento, por tôda a Minas Gerais, de seu valor de mestre. Foram inúmeras as manifestações recebidas. Provas de carinho partiam das famílias belo-horizontinas, das alunas e dos colegas de magistério. A data de seu aniversário era lembrada de modo festivo. De Lavras, constantemente chegavam a ele as demonstrações de afeto dos conterrâneos, notadamente os que lhe eram con-
o
Movimento educativo. Revista do Ensino, 5 (46): 69, jun. 1930.
9 COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 46.
temporáneos e nao poderiam esquecer a fecunda passagem do mestre pelas escolas dela.
O contato com o corpo discente da Escola de Aperfeiçoamento e com as normalistas em geral tornou-o mais conhecido no interior do Estado, crescendo-lhe o prestígio intelectual. Em muitos municípios contava com ex-alunos e admiradores fiéis.
Para além das fronteiras de Minas, projeta-se também um pouco mais o seu nome como educador. A publicação dos últimos livros pedagógicos proporcionara-lhe considerável projeção nacional.
Esse tempo de plena aceitação pública foi, paradoxalmente, um tempo de padeci-mento intenso, com a doença lentamente desgastando-lhe a força e a energia com que sempre viveu e trabalhou.
Apesar de tudo, nessa década, teve participação apreciável na vida intelectual de Belo Horizonte. Diversificou o seu interesse pedagógico, se é possível assim dizer de alguém de curiosidade permanentemente aberta a todos os aspectos do próprio ofício. Aproximou-se de outras instituições, como a Sociedade Pestalozzi e o Instituto São Rafael, de educação para cegos. A propósito deste último, escreveu um depoimento de grande sensibilidade.
Preservando a reforma
Na transição da Primeira República para o regime político pós-Revolução de 30, chegou a temer pelos destinos da renovação educacional. Escreveu, a esse respeito, um artigo no Minas Gerais, encarecendo a necessidade de se manterem os critérios de impessoalidade, a "direção técnica", na administração das escolas.
"Equivale este artigo — pondera — ao depoimento de uma testemunha de vista, tanto mais insuspeita quanto não pretende para si outras posições, nem precisa de julgar senão pelo próprio valor inerente ao assunto. Tem este tal magnitude,geralmente reconhecida, que dispensa qualquer encarecimento, antes se impõe como primeiro fator do progresso de uma nacionalidade."10
O espírito independente aí revelado haveria de aparecer em outras ocasiões. Na solenidade de reabertura dos cursos na Escola Normal Modelo, de Belo Horizonte, solenidade a que esteve presente o secretário, seu amigo Noraldino Lima, Firmino Costa diz, a certa altura, em seu discurso:
"Quando se lembraram de meu nome para diretor da Escola Normal, eu disse estas palavras a quem me fez o convite: 'Minha convocação tem, pelo menos, a seguinte vantagem — quando o governo quiser substituir-me, poderá fazé-lo francamente, na certeza de que não ficarei magoado com isso'."11
"Sim, meus caros amigos, neste entardecer da vida, em que a palavra deve ser fide-líssima aos sentimentos, diz-me a consciência que acima de tudo desejo o bem da Escola Normal, e confesso-me feliz com os colaboradores e as colaboradoras que encontrei neste instituto."12
10 Direção técnica. Minas Gerais, 21 set. 1930. p. 6.
11 Discurso na reabertura dos cursos da Escola Normal, Belo Horizonte, Minas Gerais. 16 mar. 1934.
12 A bem da reforma. Idem, ibidem, p. 69.
Receberia, na mesma década, incumbências honrosas por parte do governo de Minas, que o enviou como representante seu a algumas reuniões pedagógicas de âmbito nacional.
Em outubro de 1933, vai ao Rio de Janeiro, representando a administração estadual na Conferência Nacional de Proteção à Infância. Concedeu uma entrevista ao jornal A Noite, na qual faz um balanço da organização do ensino em Minas. Entendia que a estruturação do primário achava-se firmada em bases sólidas e duradouras, "que correspondem ao espírito da escola ativa". Narrou, pormenorizadamente, a implantação da Escola Normal e da Escola de Aperfeiçoamento, ressaltando o espírito novo que as animava. Concluiu a longa entrevista com a apreciação sobre o ambiente das escolas elementares: "Nem há outro meio igual à socialização para suprimir o artificialismo que ainda perdura no trabalho escolar. Para mim a escola deveria funcionar como uma sociedade ideal, fazendo o milagre de tornar o dia letivo mais aprazível e querido do que o dia feriado. A escola precisa de ser a casa do aluno, onde ele encontre o conforto e o encanto que lhe são necessários para compreender a vantagem da cultura intelectual."13
Era um cidadão participante, empenhado em causas que ultrapassavam os limites da vida estritamente profissional. Recorde-se sua presença nos debates da Campanha Econômica no início da década. Em dado momento participou até mesmo do debate político. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, assumiu francamente a atitude de oposição a São Paulo, invocando o princípio da unidade territorial do Brasil, ameaçada por "políticos profissionais". Mário Casassanta havia tomado a iniciativa de expor o ponto de vista oficial de Minas sobre esse acontecimento, proferindo uma série de palestras a respeito, pelo microfone da Rádio Mineira; essas preleções foram depois reunidas no livro As Razões de Minas. Firmino Costa, em apoio a seu amigo, com quem se identificava inteiramente, nesse e em outros assuntos, compareceu à rádio para 1er um manifesto de solidariedade á causa mineira.
O louvor à liberdade é o tema de um dos últimos escritos do velho mestre: o discurso de paraninfo das normalistas de Belo Horizonte, turma de 1937, ano de sua aposentadoria. Significativamente, o tema era versado no momento em que o Brasil ingressava na ditadura estadonovista, implantada a 10 de novembro daquele ano. É fora de dúvida de que ele se conservou, até o fim, completamente fiel aos princípios liberais do início de sua existência.
A amizade com colegas de magistério se aprofunda nos últimos anos de sua presença em Belo Horizonte. Destaquem-se os nomes de Helena Antipoff, Mário Casassanta, Noraldino de Lima, Maurício Murgel, Aníbal Matos, ao lado de pessoas mais jovens, como suas colegas Maria Isabel Vieira e Maria José de Melo Paiva, ambas também da direção da Escola Normal.
Homenagem final
No ano seguinte á aposentadoria, a 14 de junho de 1938, foram-lhe prestadas homenagens muito especiais, durante uma sessão realizada na Escola Normal. Estavam presentes representantes do mundo oficial de Belo Horizonte; presidiu à sessão o representante do governador do Estado. Associaram-se à homenagem, promovida por aquele es-
13 A organização do ensino em Minas. Entrevista ao jornal A Noite, Rio de Janeiro, out. 1933.
tabelecimento de ensino, as seguintes entidades: Academia Mineira de Letras, Conservatório Mineiro de Música, Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Grêmio das Ex-alunas do Curso de Aplicação, Instituto São Rafael e Sociedade de Concertos Sinfônicos. Depois dos discursos de saudação e de agradecimento, houve uma audição artística, com música sinfònica, de càmera, e solos, além de declamação de poemas. Saudaram-no o professor Aníbal Matos, num longo e eloqüente discurso de análise da vida e da obra do homenageado, e a aluna Leda Piló, em nome do corpo docente.
Foi-lhe entregue ainda um álbum de desenhos, de autoria de Delpino, no qual estão retratados o corpo docente e a turma de formandos da Escola Normal.
Em seu discurso de agradecimento, mostrava-se comovido com o calor da amizade que lhe era dedicada. Dirigiu-se especialmente à Escola Normal, em que personificou o alvo de sua afeição. Naquele momento, percebia também a profundeza das atribulações nor que passava a humanidade: "Nesta hora de terríveis apreensões para o mundo, os educadores felizmente permanecem vigilantes." Citou o movimento fundado na Inglaterra, por Noel Ede, denominado A Paz pela Amizade, que consistia no intercâmbio internacional de jovens. Exaltou o sentimento de tolerância e a busca da harmonia que deveriam reinar no ambiente da escola. Terminou por enaltecer o sentimento que sempre cultivou, o da profissão bem realizada.
Essa talvez tenha sido a última ocasião em que falou em público. E era a manifestação mais carinhosa e preparada com mais requinte, dentre as mais que recebeu naqueles últimos anos de Belo Horizonte e de diretor da Escola Normal, e das quais se encontram notícias em nossa bibliografia.
Enviaria logo a Lavras exemplares do discurso do professor Aníbal Matos. Numa edição do jornal escolar dali foram comentadas a homenagem e as palavras de elogio ao patrono do estabelecimento.
A carreira de educador chegara ao auge. Nos últimos tempos de vida, nem a doença nem as preocupações familiares o abateram. Basta dizer que preparava dois novos livros. Escasseava, porém, a colaboração na imprensa. Num dos últimos artigos, escrito sobre a morte do amigo (por mais de cinqüenta anos) Monsenhor Aureliano Brasileiro. relembra o início de seus estudos filológicos, sob a orientação do velho sacerdote. Conforme assinalou um conterrâneo, na imprensa de Lavras, nem o padecimento físico era capaz de roubar-lhe o sentimento de suavidade com que se exprimia sobre sua terra e as antigas afeições.
Reservamos para o próximo capítulo uma exposição mais pormenorizada dos estudos sobre linguagem realizados pelo mestre mineiro.
Caminhos da linguagem
Desde o início
Os trabalhos gramaticais e filológicos de Firmino Costa o acompanharam desde os tempos dos estudos preparatórios até seus últimos dias de existência. Eis as motivações para o desenvolvimento dessa esfera de sua vida intelectual: a aproximação, na juventude, dos autores clássicos, notadamente os portugueses; a consciência da importância da linguagem na educação e nas relações sociais em geral; e a necessidade de cultivar uma boa metodologia do ensino da expressão oral e escrita.
Assim estimulado, não enveredou por trilhas comuns a gramáticos portugueses e brasileiros do fim do século passado e começo do atual. Não cultivou a gramática pela gramática, nem se envolveu em polêmicas sectárias, nem foi defensor do purismo da escrita. Foi antes um pesquisador atento, sempre buscando captar com acuidade a língua viva que se falava e escrevia no Brasil.
Um especialista — o Cônego Sequeira, seu discípulo no Grupo de Lavras — propõe, como restrição, o fato de que sua obra "se ressinta da falta de acurada familiaridade com os autores das línguas clássicas". Firmino Costa foi talvez da primeira geração de brasileiros a aprender gramática em português e nao em latim. Ademais, estava convencido da desnecessidade, a não ser em cursos superiores, da aprendizagem sistemática da gramática histórica, tendo em vista a autonomia alcançada por nosso idioma. A outra restrição do mesmo autor é a alusiva à ausência, nos trabalhos do mestre lavrense, "de apoio nos princípios gerais da lingüística". Acrescenta o crítico: "É que, no seu tempo, havia ainda uma grande dissociação entre filologia e lingüística, quase intransponível, que só se desfez modernamente, após os estudos de Vendryés, Kreschmer, Ernout, Meillet e outros. como quer que seja, os estudos de Firmino Costa ficaram e a sua obra ainda hoje se lê com proveito e prazer."
Proveito e prazer, entendemos, são despertados pela limpidez da escrita desse gramático ameno e pelo senso prático com que propõe os problemas enfrentados. Eram virtudes percebidas e proclamadas, desde o início, por seus leitores. Estes eram variados, leigos ou não, comentando os estudos do mestre nos pequenos jornais.
Não fez carreira como filòlogo profissional ou como cultor inconteste do ramo: publicou pouquíssimo em órgãos especializados e relacionou-se com um pequeno grupo de colegas. O que o projetou realmente, em termos nacionais, no círculo de pessoas interessadas no assunto, foi a atenção que sempre lhe deu João Ribeiro, ao considerá-lo, desde 1910, um "ilustre colaborador" de sua gramática superior. Um dos últimos escritos publicados pelo grande filòlogo foi sobre Firmino Costa, em 1933. Correspon-
SEQUE1RA, Francisco Maria Bueno de (Cônego). Firmino Costa (Discurso). Belo Horizonte, EMIL, p. 11. Ensinava-se português, através do latim. A respeito do ensino do português através do latim, consulte-se MACHADO FILHO, Aires da Mata, Tomás Brandão. In: O ENIGMA do Aleijadinho e outros estudos mineiros, Rio de Janeiro, J. Olympio, 1975. p. 129.
deu-se ainda com Ramiz Galvão, que dedicou seus últimos anos de vida a pesquisas lexicográficas. Relacionou-se,do mesmo modo, com Afonso D. Taunay, também dedicado ao estudo do léxico português.
Havia grande afinidade, sob todos os aspectos, entre Firmino e seu colega Mário Casassanta, este bastante mais novo quando do conhecimento pessoal e da convivência cotidiana que travam entre si no final da década de 1920 e início da de 30. Casassanta comentou todos os livros de seu amigo, editados sobre os temas da língua portuguesa. Tinha por ele o máximo apreço. Um traço comum era também a simplicidade de estilo e a ausência de grandiloqüência.
uma gramática polêmica
Pode-se dizer que a Gramática Portuguesa, de Firmino Costa, obteve razoável repercussão em Minas e fora do Estado. Na imprensa de Belo Horizonte, apareceram algumas apreciações. Mário de Lima, escritor prestigioso, ligado aos meios oficiais, escreve um artigo no Minas Gerais. À Margem de um Livro, em 1921. Elogia as inovações contidas no volume, propondo retificação a respeito de determinadas classificações feitas pelo autor criticado. Tal apreciação provoca uma réplica de um leitor, A. Hermeto C. da Costa, publicada também pelo Minas, e seguida de novos esclarecimentos de Mário de Lima. Dessa forma, Firmino Costa, que não era dado a polêmicas gramaticais. acabou provocando uma delas. O mesmo órgão oficial estampou, em maio de 1921, na sua seção Publicações, uma resenha anônima, muito simpática ao livro, recomendando que fosse adotado nas escolas normais.
Houve várias outras apreciações nos jornais do interior de Minas, o que revela a boa acolhida que tivera a gramática. Júlio de Oliveira, em O Turvo, publica uma Obra de Valor; J. Goulart, em O Município, de Lavras, A Gramática de Firmino Costa; Márcio, em O Itajubá, publica Aspectos sobre o mesmo assunto; no Correio do Sul, de Santa Rita do Sapucaí, aparece também um artigo intitulado Firmino Costa (o pedagogista e o filólogo) a propósito de sua Gramática Portuguesa. Nao sao artigos superficiais: procuram apreender os objetivos inovadores do compêndio, de que em geral elogiam o tom ameno, longe do padrão de casmurrice existente em livros do gênero. Estão todos citados na bibliografia deste trabalho.
A Gramática constitui uma sóbria edição, um livro sólido como sempre soube fazer a Imprensa Oficial de Belo Horizonte. Sob o ângulo da editoração, possui pequenos defeitos: não conta com um índice geral, mas apenas com um analítico; a bibliografia. correspondente aos exemplos citados em abono dos argumentos, é colocada no final do volume, em forma de "abreviatura das obras citadas". Abrevia-se às vezes pelo nome do livro (Diálogos, de Frei Amador Arrais, por exemplo); às vezes, pelo nome do autor (Lucena, História de S. Francisco Xavier, por exemplo). Na maioria dos casos. não se fica sabendo de que edição se trata.
A despeito da ausência do índice sistemático, é possível inferir-se a estrutura do livro, principalmente com a observação do que se poderia chamar, com alguma boa vontade, da programação visual utilizada. Em particular, com a observação dos recursos tipográficos empregados nos títulos e subtítulos, o que pressupõe certa hierarquia dos assuntos.
Um curto primeiro capítulo, à guisa de texto introdutório, define os princípios norteadores do trabalho e o significado de gramática. Segue-se a taxionomia, depois a classificação das locuções e a classificação das cláusulas, em conexão com o exposto ante-
riormente a respeito das categorias gramaticais. O capítulo seguinte, Da Sintaxe, depois de considerações preliminares, fala sobre a composição (o lado síntese da escrita) e a análise (estudo das partes componentes do período). com destaque, discorre sobre o período, em cujo ámbito trata da análise léxica, da análise lógica, das proposições. Abre um título para as interjeições e, em Novo Complemento, discorre mais detidamente sobre as técnicas e a metodologia da composição e sobre os recursos para desenvolver a expressão, como a leitura constante e orientada, e as notas de leitura. Propõe, finalmente, nesta parte, uma biblioteca literária básica aos aprendizes da língua portuguesa.
Nesse ponto da exposição, apresenta uma espécie de sumário: "Fatos sintáticos sao fatos verificados entre os elementos construtivos do período. Têm eles as seguintes denominações: concordância, ordem, regência. Classificamos na taxionomia os materiais da construção, isto é, as palavras, as locu
ções e as cláusulas, que todas, contorme vimos, se reduzem a palavras, e estudamos na sintaxe a própria construção que é o período. Tendo já examinado os elementos do período, parece-nos de razão que passemos a tratar dos elementos da palavra, antes de nos ocuparmos dos fatos sintáticos.
As palavras têm elementos materiais, que são representados pelos sons, e elementos significantes, que compreendem os radicais, os afixos e as flexões. O estudo deste denomina-se morfologia, e o daqueles chama-se fonologia. Assim fica completa a lexio-logia, que se divide em três partes: taxionomia, fonologia, morfologia.
Já atendemos à primeira, iremos agora atender às duas últimas."2
Na fonologia, trata, sucessivamente, de homônimos, homófonos, homógrafos, parónimos, rizotónicos, onomatopaicos, vozes de animais, sons das coisas; na fonética, das vozes, das consonancias, dos grupos vocálicos, dos grupos consonantais; trata ainda, na prosodia, dos valores dos fonemas e do acento tónico; na ortografía, dos sinais ortográficos, do uso das maiúsculas, das abreviaturas, do sistema ortográfico e das regras ortográficas. Na morfología, das palavras compostas, da prefixação, da justaposição, da aglutinação, do hibridismo, das palavras derivadas; na derivação própria, inclui nomes de pessoas, nomes de profissões, nomes de árvores, sufixos coletivos, sufixos diminutivos, sufixos aumentativos, sufixos qualitativos, designações de sistemas, denominações de ação, adjetivos pátrios, relativos a partes do corpo, adjetivos referentes a animais, adjetivos derivados e sufixos verbais; e derivação imprópria. A seguir, trata das palavras variáveis: gênero, número, grau; flexões verbais, com exemplos de conjugação, além de muitas classificações e particularidades dos verbos.
Ocupa-se, na seqüência, conforme o sumário acima, dos fatos sintáticos: concordância (verbo, adjetivo, adjunto predicativo, voz passiva); ordem ou colocação (incluindo colocação dos pronomes); regência (sujeito e verbo, adjunto adjetivo, adjunto adverbial, adjunto substantivo e adjunto predicativo). Trata ainda das figuras de sintaxe e dos vícios de linguagem. Em todos esses casos, utiliza-se de abundante exemplificação, argumentando com alternativas possíveis de uso na língua culta.
Finalmente, no trabalho de pesquisa que é mais elogiado pelos críticos, inclusive os mais severos, Firmino Costa apresenta um capítulo denominado Particularidades Sintáticas. Em ordem alfabética, a começar pelo a craseado até os vários usos do substantivo vez, o autor examina um grande número de peculiaridades da língua portugue-
COSTA, Firmino. Gramática portuguesa, p. 91.
sa na construção dos períodos. como no restante do livro, lança mão de exemplos retirados de textos literários.
Voltando ao começo, reconsidere-se rapidamente a taxionomia que, classificando as palavras, define o substantivo e o divide em comum e próprio. Quanto ao primeiro, encontra subdivisões como: coletivo, partitivo (amostra de chita, de renda, de papel), superlativo ("A caçulinha é o seu ai-Jesus", por exemplo), pejorativo, e correlativo (algoz e vítima, etc.). Considera o pronome como substantivo e não como categoria á parte. Estuda os adjetivos qualificativos - descendo a pormenores de exemplificação como cores e sinais de bois e cores e sinais de cavalos — e adjetivos determinativos. Trata como categorias o verbo, o advérbio, o conectivo e a contracto.
uma característica do livro é o tratar, simultaneamente, do conteúdo da gramática e das formas de transmissão e aprendizagem. Freqüentemente, o autor se dirige ao leitor ou ao conjunto de leitores, com o tratamento vós. É possível que esteja se dirigindo ao professor ou ao professorado e também ao leitor autodidata capaz de acompanhar seu raciocínio.
A Gramática pretendia ser inovadora. E, sob muitos aspectos, conseguiu alcançar este objetivo. Em todas as resenhas feitas sobre ela, o que mais se destaca é o princípio de que partiu o autor, contido nas primeiras linhas: "A palavra vale, não tanto pela sua forma, mas principalmente porque exprime idéias e pensamentos. Pode-se dizer que a alma da palavra é o sentido, e que sua forma não passa de ser matéria perecível."
Cita nomes novos que vão surgindo como aviões, aeronaves, etc, ao passo que outros caem em desuso, como os contidos num trecho de Francisco de Morais, a respeito da indumentária feminina, e que transcreve.
"O sentido, como parte essencial da palavra - acrescenta — norteará a organização desta gramática, e a ele subordinar-se-á a forma vocabular. Desprendido assim dos laços, em parte artificiosos que ainda cingem os estudos gramaticais, este compêndio apresentará uma nova feição, tomará caminho diferente do de seus congêneres, pretenderá simplificar e melhorar o ensino da língua pátria."
E, mais importante: "O sentido das palavras é representativo de uma idéia ou de uma combinação de
idéias. A esta última se dá o nome de juízo, que na linguagem popular equivale a pensamento. Das expressões das idéias e dos pensamentos por meio da fala ou da escrita é que trata a gramática."3
A exposição sumária do conteúdo do livro, assim como a lembrança de suas diretrizes justificam-se para que se compreendam as intenções do autor e também para que se alcance a significação de muitas críticas a ele feitas.
Defrontavam-se as pessoas com uma gramática não-convencional. Quem o disse bem foi um antigo discípulo do autor, ao asseverar que, "fugindo dos tipos de imitação, pois sua gramática não copia nem imita, produziu um livro original que é menos gramático na acepção comum do que um curso de português." Não haveria, contudo, algo de infundado ou de excêntrico em muitas das propostas?
A crítica mais cerrada e severa — mas nem por isso a mais penetrante em muitos aspectos — foi a do escritor e acadêmico Mário de Alencar. Releva intercalar aqui um retrospecto das circunstâncias em que se produziu tal apreciação.
Francisco Alves, benfeitor da Academia Brasileira de Letras, havia estabelecido que parte de seu legado em dinheiro se destinasse a conferir láureas aos melhores estudos.
Idem, ibidem, p. 3-4.
feitos no Brasil, em torno da língua portuguesa e de seu ensino. Depois de alguma hesitação e de vencidas as dificuldades em definir as normas para a outorga dos prêmios, a instituição abriu o concurso nacional, em 1921. Talvez nesse tempo os concursos da ABL tivessem maior repercussão do que hoje. Foi-nos possível 1er num jornal de Vitória (ES) comentário sobre a gramática de Firmino Costa, "com a qual - dizia — concorre a um dos prêmios da Academia Brasileira de Letras".
Os outros concorrentes foram: Marques da Cruz (com o livro Português Prático), Carlos Góis (Dicionário de Raízes e Cognatos da Língua Portuguesa), M .Said Ali (Lexeo-logia do Português Histórico), Antônio Corrêa d'Oliveira (A Fala que Deus Nos Deu), Agenor Silveira (Colocação dos Pronomes), Antônio Mauro (Estudos de Português). F. de Assis Cintra (O nome "Brasil", com S ou Z?), Júlio Nogueira (Manual Ortográfico Brasileiro) e Clovis Monteiro (Morfologia e Sintaxe do Substantivo na Língua Portuguesa).4
A comissão encarregada de julgá-los estava constituída pelos acadêmicos Mário de Alencar, Miguel Couto, Xavier Marques, Humberto de Campos e Osório Duque Estrada. O primeiro e o último deles apresentaram apreciações escritas sobre cada livro, em forma de parecer. A maioria da comissão optou pelo parecer de Mário de Alencar, rejeitando, ipso facto, o de Duque Estrada, que publicou seu voto vencido.
O relator propôs o primeiro prêmio ao livro de M. Said Ali, filólogo já conhecido por uma obra anterior, Dificuldades da Língua Portuguesa; conferiu o segundo prêmio ao trabalho de Júlio Nogueira; e o terceiro, ao de Carlos Góis. Os demais foram excluídos do julgamento final, por motivos diversos, em geral por impropriedade ou por deficiência. No primeiro caso, estava a obra do poeta português Antônio Corrêa d'Oliveira, que compôs longo poema sobre o idioma.
É bastante minucioso o parecer, afigurando-se-nos, também, em geral, criterioso. Seu autor procurou estudar temas que não conhecia bem e fez cotejos com obras semelhantes. Entendemos, entretanto, que foi bastante severo com a gramática de Firmino Costa e não compreendeu bem sua proposta inovadora. As principais críticas se referem ao caráter misto da obra "de gramática e guia pedagógico", o que, segundo o crítico, "lhe desconcerta a estrutura" às classificações pouco usuais utilizadas na taxionomia. Recusa ainda a linguagem coloquial com que, em certos momentos, se dirige ao leitor; por exemplo, quando fala em famílias de palavras que mantêm entre si "relações amistosas". Nem mesmo aceita como original a orientação da gramática pelo sentido das palavras, "mas não sei que tenha sido outro o critério dos bons gramáticos de todos os tempos".
Apesar de tôdas as restrições, diz Mário de Alencar, no início de seu parecer: "Não avaliará com acerto este livro quem não o tiver lido em todas as suas partes.
Em duas das últimas - Fatos Sintáticos, Particularidades Sintáticas — revela-se o autor um inteligente estudioso da língua, possuidor de anotações feitas diretamente em vários autores portugueses e brasileiros, na sua quase totalidade modernos, com exceção de Camões, Bernardes e em menor proporção Vieira.
Os exemplos colhidos são copiosos, as explicações claramente expostas, e as regras formuladas com justeza e segurança."
A seguir, declara que, para compor sua Gramática, Firmino Costa "não esperou a suficiente extensão e maturação de seus estudos, nem se disciplinou como era indispensável na ciência gramatical". Tomava o autor criticado, por desconhecê-lo, como um
Parecer. Revista da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, v. 10.
principiante. Afirmações como essas sao totalmente despropositadas para quem conhece a carreira intelectual de Firmino Costa.
O aparente caráter ambíguo — doutrina gramatical e guia pedagógico - nada tem de negativo. Deve ser mesmo tomado esse aspecto como uma antecipação da orientação mais recente dos livros didáticos da matéria, que combinam os capítulos expositivos com exercício e orientações para a aprendizagem.
Passados mais de sessenta anos, é difícil avaliar, a esta altura, a efetiva influência que terá tido essa gramática na formação de educandos em Minas e no Brasil em geral. Não sabemos qual a tiragem de sua edição única. É quase certo de que o livro tenha circulado bastante nas escolas mineiras.
Firmino Costa não quis ou nao conseguiu reeditá-lo. É possível que os múltiplos afazeres de educador não lhe tenham propiciado vagares para esse trabalho ;é possível que, tendo verificado a necessidade de aprimorá-lo, foi sempre adiando a tarefa. Vários anos depois, publicou o texto da gramática em forma de Léxico Gramatical.
Duas opiniões consoladoras
O educador mineiro, ao que tudo indica, contava receber um dos prêmios da Academia. Ele se queixou de ter sido preterido, a julgar por uma carta que recebeu de Afonso Pena Jr., e que está reproduzida como anexo desta monografia.
Ao refutar, muito depois, as críticas que lhe foram feitas, ele se sentia confortado pelas opiniões de dois escritores muito diversos entre si, Monteiro Lobato e Laudelino Freire, representantes, afirma, respectivamente, de orientação renovadora e da linha clássica.
Na Revista do Brasil, que dirigia, número de abril de 1921, Monteiro Lobato dedica a primeira de suas resenhas a essa gramática. Afirma:
"Em matéria de língua caminhamos no sentido de criar uma língua nova. filha da portuguesa.
A língua brasileira positivamente está a sair das faixas, e coexiste no Brasil ao lado da língua portuguesa - como filha que cresce ao lado da mãe que envelhece. E tempo virá em que veremos publicar-se a 'Gramática Brasileira'. Pois bem: a gramática de F. C, sem que o autor pensasse nisso, é já um bom passo à frente para criação da gramática brasileira.
Inúmeras peculiaridades do nosso falar, que as gramáticas anteriores, rigorosamente portuguesas, consignavam condenando como crimes horríveis, F. C. consigna ino-centando-as, isto é, registrando-as como fatos consumados da língua. Fez, pois, a mais brasileira das gramáticas portuguesas."5
Naturalmente Firmino Costa pôde assim agir porque sempre fora atento observador do falar cotidiano e comum das pessoas e porque utilizara, para seus exemplos, tanto a literatura clássica como a contemporânea, às vezes até recorrendo a autores pouco conhecidos, como o seu conterrâneo Augusto Silva, de quem menciona trecho de um romance inédito e transcreve um texto sobre o valor da leitura.
Diz depois Monteiro Lobato: "O seu sistema gram aricante é bastante inteligente. Foge de muito do pedantismo consagrado e apresenta-se com uma clareza e uma singe-leza extremas. O seu sistema decorre do conceito com que abre o livro: a palavra não
5 MONTEIRO LOBATO, José Bento. Firmino Costa: gramática portuguesa. Revista do Brasil. São Paulo. (64): 63, abr. 1921.
vale tanto pela sua forma, mas principalmente porque exprime idéias e pensamentos; a alma da palavra é o sentido, e a sua forma apenas matéria perecível."
Por sua vez, Laudelino Freire, depois de uma digressão em torno a freqüente dissociação entre gramáticos e bons escritores, declara: "Não conhecemos o Prof. Firmino Costa como escritor. Lemos, porém, a sua Gramática, e dela nos ficou ótima impressão; é completa, elaborada num ponto de vista original, e apresenta feição nova, a nosso ver conveniente ao ensino."
Termina por afirmar que o autor do compêndio prestara "à língua portuguesa não pequeno serviço, e nenhum favor lhe faremos em o incluir no grupo dos nossos mestres, e mais notáveis gramáticos". A despeito de tão rasgados elogios, Laudelino Freire, conhecido por suas opiniões conservadoras, discorda bastante da gramática analisada. Quanto a considerar descabida a identificação do pronome como substantivo, não havia novidade, pois tal classificação não foi em geral bem aceita. Mas não concorda com uma orientação do livro, que constitui seu grande mérito. Na "Biblioteca Literária", proposta por Firmino Costa, entende que só uma dúzia dos quarenta escritores recomendados merece a escolha; os demais "são escritores notoriamente incorretos, e nocivo é indicá-los como modelo de linguagem...".6
Antecedentes e conseqüentes
Antes de publicar a gramática, ele havia divulgado artigos e ensaios sobre temas correlatos. Em 1909, comentou o programa e a bibliografia utilizados no Pedro II (então Ginásio Nacional), criticando algumas das diretrizes estabelecidas, dentre as quais a leitura dos clássicos portugueses mais antigos (a seu ver imprópria, por dificultosa) por parte dos ginasianos iniciantes no estudo da língua materna. Anteriormente a esse, publicara dois outros artigos no Almanaque Brasileiro Gamier, edições de 1905 e 1909, respectivamente.
No final de 1916, prolongando-se pelo ano seguinte, publica na Revista do Brasil, dirigida por Monteiro Lobato, uma série de estudos sob o título geral de "Vocabulário Analógico". Esses mesmos trabalhos seriam, anos depois, reproduzidos pelas páginas do Minas Gerais e, posteriormente, reunidos como capítulos do livro do mesmo nome. Se, no início da década de 30, quando se edita o volume, tratava-se de completa novidade esse tipo de estudo, em língua portuguesa, com muito maior razão poderia ser considerado como pioneiro nos idos de 1916.0 apresentador da série, na revista, o gramático Eduardo Carlos Pereira, tece altos elogios ao trabalho e ao respectivo autor, cuja obra pedagógica, em Lavras, dá mostras de conhecer pessoalmente.7
A publicação em livro era precedida de um prefácio de Afonso D. Taunay, uma das mais felizes apreciações, de quantas foram feitas até hoje a respeito da personalidade e do trabalho de Firmino Costa.
Nesse livro, foi mais longe do que na gramática: utilizou-se de autores regionais e até de noticiário da imprensa. com ele pretendia ajudar o estudo do vocabulário através da analogia. Modestamente, tinha consciência de que era um primeiro passo na construção de dicionários analógicos em português.
FREIRE, Laudelino. Gramática portuguesa de Firmino Costa. Revista de Língua Portuguesa, / / . 183-4. maio 1921.
COSTA. Firmino. Vocabulário analógico. Revista do Brasil. São Paulo, 7(3), dez. 1916.
A repercussão do livro foi bastante favorável na imprensa: saíram registros e resenhas no Jornal do Brasil, no Diário de Notícias, ambos do Rio de Janeiro; na imprensa de Fortaleza; em Juiz de Fora (assinada por Henrique Hargreaves);em Lavras, artigo de J.B. Alvarenga; no Diário Popular de São Paulo.
Das apreciações feitas, destaquem-se as de João Ribeiro e de Mário Casassanta: o primeiro, na imprensa do Rio e o segundo, no Minas Gerais.
Do artigo de João Ribeiro, lembrando a antiga ligação sua com o autor: "Desde muito conhecemos Firmino Costa e admiramos sua vasta cultura e erudição
em matéria do nosso idioma. Este livro bastaria para consagrá-lo, se outras provas não existissem do seu admirável cabedal lingüístico.
Escreveu, não há muitos anos, uma gramática originalíssima, onde se percebem já a orientação e a superioridade do seu saber vernáculo de primeira água. O Vocabulário é uma amostra excelente da plenitude do seu espírito."
Assinalando que eram muito raios esses trabalhos em língua portuguesa, lembra um manuscrito elaborado por Bilac e nunca editado, "talvez incompleto ou lacunoso". E afirma depois: "Pessoalmente falando ao autor, agradeço a nimia gentileza de Firmino Costa em dedicar-me o seu Vocabulário, e sinto que isso não afeta a imparcialidade com que, aliás, sempre considerei o professor mineiro (...)
Desde muito, foi Firmino Costa um dos mais preciosos colaboradores da minha Gramática Portuguesa, para a qual enviou notas que já se encontram nas páginas da sintaxe com o fulgor da sua valiosa erudição."8
É difícil dar uma idéia sintética da riqueza de conteúdo do Vocabulário quanto à sinonímia e à linguagem coloquial. Há um grupo de elementos informativos sobre designações de animais domésticos, respectivas cores e sobre linguagem sertaneja; há um outro sobre "expressões diversas", englobando, por exemplo, expressões de tempo e referentes à embriaguez; outro sobre graus de nomes; um capítulo para locuções, outro para onomatopéias, e outros, respectivamente, para substantivos e sinônimos.
No domínio puramente filológico, o último livro editado pelo mestre foi Léxico Gramatical. Nele ordenou em verbetes, por ordem alfabética, os conceitos e informações contidos na sua Gramática. Esse livro, cuja excelente justificativa vai publicada em apéndice da presente monografia, é citado por outros autores que realizaram trabalhos semelhantes, como Antenor Nascentes e Celso Luft.
Nos últimos anos de trabalho. Firmino Costa produziu ainda aulas e conferências sobre temas gramaticais; provavelmente compõem o livro inédito Memorial da Linguagem.
Um desses trabalhos, "Dificuldades da língua", enumera e examina o seguinte: a "anarquia ortográfica" então reinante; a ausência de um dicionário analógico; a inexistência de um léxico de regência verbal, também à época, pois essa lacuna foi posteriormente suprida; o estudo dos sinônimos parónimos; os neologismos; e dicionário de sinônimos. A conferência foi publicada na Revista do Ensino, 1930. Outro trabalho relevante foi de 1929, não publicado em livro: a série de aulas dadas no Curso de Aperfeiçoamento para Assistentes Técnicos do Ensino. O título geral foi: Língua Portuguesa: como Resolver Casos Controversos.9 Para a solução dos mesmos, remonta a seus 8 RIBEIRO, João. Crítica; filólogos. Rio de Janeiro, ALB, 1961, p. 262-5; CASASSANTA,
Mário. Vocabulário Analógico. Minas Gerais; Belo Horizonte, 12 out. 1933. p. 8.
Língua Portuguesa, aulas no Curso de Aperfeiçoamento para Assistentes Técnicos do Ensino; casos controversos. Revista do Ensino. Belo Horizonte, 4(36), ago. 1929. Veja-se, BOLLNOW, Otto Friedrich. Dificuldades da língua. Revista do Ensino, Belo Horizonte, 5(49), 1930.
"princípios" no estudo dos fatos de linguagem: " 1 . A forma das expressões subordinar-se-á ao sentido delas, constituindo este o
princípio orientador dos fatos da linguagem. O pronome, por exemplo, terá que ser classificado como substantivo, porque designa os seres, pouco importando que continue com a mesma denominação.
2. Não se deve decompor na análise a expressão que na idéia adquiriu unidade indissolúvel. Estão nesse caso as locuções e as palavras compostas.
3. Se a proposição, por demasiado sintética em sua forma, tornar-se irredutível à análise, desentranhar-se-á dela o sentido correspondente, que será analisado. Da proposição chove desentranha-se cai chuva."
Passa a examinar os casos controversos: verbos pronominais, o pronome se e particularidades sintáticas. Nessa mesma série de aulas, fala sobre como organizar o próprio estudo, sobre a aula na escola ativa, o grupo de disciplinas do núcleo da "língua pátria", a prática da língua no curso primário (onde discute, segundo Piaget, a questão da idade mais adequada ao início da aprendizagem da leitura), o ensino do vocabulário, os exercícios de redação e o uso da biblioteca escolar.
Pedagogia da linguagem
Mais importantes que as questões filológicas, e para além delas, existiram as preocupações do mestre com os problemas de pedagogia da leitura, da escrita e da linguagem.
Foi um desafio que resolveu enfrentar desde o início. Em seu primeiro relatório do Grupo de Lavras, publicado pela Vida Escolar em 1908, afirma: "Pelo que pude observar, suponho ser o ensino da língua pátria o mais difícil de ministrar aos pequenos. Ele requer, além do mais, grande conhecimento do vocabulário popular e certa habilidade de fazer os alunos falar desembaraçadamente, de modo que a aula se torne interessante para eles, que nela tomarão parte ativa, oferecendo-se desta maneira freqüentes ocasiões de corrigir suas expressões incorretas ou impróprias."10
Não se trata, pois, de ditar normas formalizadas em gramáticas ou segundo padrões congelados da língua culta. Trata-se antes de estabelecer o diálogo com os educandos, numa atitude atenta à expressão espontânea.
Muitos anos depois, ao examinar a questão da leitura, afirma: "Está na leitura o ensino da instrução metódica. Sem a aquisição desse meio pode
roso, ficam desaproveitadas todas as conquistas importantes do passado, que são transmitidas por intermédio do livro.
O problema da educação popular já tem definido o seu objetivo supremo, que não é outro senão este : ensinar o povo a 1er para que ele tire da leitura o máximo de proveito social e econômico. Não basta ensinar a 1er. Isso seria simplesmente instrução, nada mais do que uma ferramenta, cujo valor depende de seu acertado emprego."1
Segundo ele, para ensinar leitura, é preciso amar os livros. Expõe uma série de princípios sobre o ensino intuitivo, em número de dez, nem to
dos formulados por psicólogos. Há este, por exemplo, de Kant: "O melhor meio para aprender é produzir. Aquilo que, mais ou menos, se aprende por si mesmo, é o que se aprende mais solidamente e o que melhor se conserva."
10 VIDA ESCOLAR. Lavras, n. 18, p.4.
11 COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 157.
Outro é proposto por J. Roget: "O método de leitura ideovisual ou global está de acordo com a tendência da criança, cuja memória é globalizante, porquanto sua percepção é global. Chama-se ideovisual porque a imagem gráfica está sempre intimamente ligada à cena ou objeto; global, porque apresenta o todo."12
O ensino da leitura deve iniciar-se pelas proposições, embora os alunos possam responder com proposições elípticas (não plenas como as das perguntas). Trata-se de um passo adiante ao método da palavração da reforma João Pinheiro.
Firmino Costa apresenta uma série de sugestões para aulas, com diálogos sobre os objetos existentes na própria sala da escola.
Examina depois a questão da cartilha. Toma, para isso, uma das que considera melhores, a de Mariano de Oliveira. 0 defeito fundamental que critica nesse livro é o fato de se usarem palavras fora do universo cognitivo das crianças (pelo menos das crianças com quem lidava Firmino Costa). Ê importante que os termos a serem lidos correspondam a termos familiares, na linguagem oral das crianças.
Entende que, sem prejuízo da expressividade a ser adquirida depois na leitura interpretativa ou do sentido das expressões, o ensino da leitura nos dois primeiros anos deve ser mecánico. "O trabalho dos alunos consistirá em 1er a linguagem escrita, cujo sentido já conhecem bastante pela linguagem oral correspondente."
Cita, dentre outros termos da referida cartilha, estes: corcel, maca, peloiro, roca, sege, saguim, gamo, dorna, lagosta, lhama, ema, guedelha, cavaca.
O mais interessante é esta proposta: "A cartilha ideal seria aquela que, adstringindo-se aos princípios e conceitos já apre
sentados, fosse composta pela professora de colaboração com a classe, para poder adaptar-se melhor à mentalidade desta, ao meio escolar e aos interesses do momento. Em tais circunstâncias, a colaboração entre a professora e os alunos desdobrar-se-ia com maior eficiência dentro do ensino da leitura, combinado este não somente com a escrita, senão também com o desenho, a modelagem e a língua pátria. No primeiro ano, pelo menos, essas disciplinas se associariam para iniciar a classe na aprendizagem da leitura.
Observando, falando, escrevendo, lendo, desenhando e modelando, a classe estaria imprimindo a seu trabalho a plenitude do método intuitivo, e mais que de leitura, a aula seria de expressão total do pensamento."
Sem discutir os aspectos técnicos dessa proposta, parece positiva a idéia inicial de uma cartilha nascida do diálogo entre educador e educando.
como Ensinar Linguagem, como já se assinalou acima, é o livro mais organicamente elaborado de quantos publicou Firmino Costa. Não é gramática nem um curso de Português, mas sim um guia para os docentes dos cursos elementares. Destina-se a discutir e orientar o ensino da língua pátria (que abrange a escrita, a leitura e a linguagem, significando esta, no contexto, a expressão oral e escrita) para os alunos desse nível. O núcleo do trabalho é um programa analítico, elaborado, semestre por semestre, para o antigo curso primário. Não apresenta modelos de aula, mas sugestões sobre os assuntos a serem tratados. Trata-se de um repertório de lições ou, para usar o modelo mercantil de Firmino Costa, "um sortimento de assuntos, em relação ao qual o professor deverá proceder qual o comerciante, que não impõe a mercadoria ao freguês, antes satisfaz a
Idem, ibidem, p. 158.
Idem, ibidem, p. 171.
este, procurando vender-lhe o que deseja". Não estamos diante de um tratado de metodologia, mas apenas de um roteiro. Depois do programa analítico, são propostos exercícios de elocução, exercícios de redação, histórias para crianças, sempre com muita observação prática colhida na experiência do autor.
Sobre as festas escolares, inclusive as dramatizações, observa: "Desde que se deixe às crianças a espontaneidade de dramatizar, usando elas de sua
linguagem e de seus gestos naturais, admitindo-se depois a crítica amistosa dos colegas serenamente produzida sob a orientação do professor, terá a escola desvendado novos horizontes ao ensino da língua. Isso constitui ao mesmo tempo a condenação das festas escolares; antiescolares é que deveriam chamar-se, onde as crianças são tratadas como bonifrates, cada qual vindo a desempenhar, com afetação, uns papéis que lhes foram distribuídos, sem terem elas sido consultadas a respeito. Desaparece a escola nessa hora, os alunos viram seres artificiais, a vaidade os domina num exibicionismo lamentável.
Festa escolar é festa dos alunos, oriunda da iniciativa deles, como criação que projetaram em suas linhas principais. Se porventura não quiserem fazer festa, deixem de fazê-la, e não é isso que sucede aos adultos?"14
Discute, a seguir, outros aspectos relevantes, sempre na perspectiva de fazer sugestões à preparação do professor primário para o ensino da linguagem. Fala sobre o uso da "conjugação dialogada", sobre o ditado, o estudo do vocabulário, a pontuação. O capítulo "Análise Interpretativa" é bastante sugestivo, a respeito de como aprofundar o exame de um texto orientado para as crianças. Seguem-se capítulos sobre a pontuação, a correção dos exercícios, e o uso da gramática no ensino fundamental; propõe-se, afinal, uma série de sugestões para exercícios de redação sobre a vida social no ambiente da escola.
Todo esse "roteiro" é precedido de um capítulo introdutório em que se apresentam determinados pressupostos:
"O ensino da linguagem ainda não tem, entre nós, orientação segura, nem visa a uma finalidade educativa. A memorização e o artificialismo dominam-no quase inteiramente, produzindo por tôda a parte composições uniformes. O fim do ensino da linguagem é, no entanto, dar ao aluno capacidade de exprimir seu próprio pensamento com palavras suas, que demonstrem conhecimentos e observações por ele adquiridos de modo consciente. Importa conduzir o aluno a pensar e a manifestar-se com expressões que sejam dele. As imitações decoradas ou copiadas, que constituem geralmente as composições dos alunos, de nada valem e nem ao menos conseguem iludir-nos com sua correção aparente."15
Daí a proposta de exercícios constantes. Nada de dedutivo, da gramática abstrata. Dois aspectos chamam a atenção nesse livro. O primeiro é o ensino da linguagem co
mo aprendizagem do pensamento e como estímulo a que os alunos se expressem não através de clichês pretensamente literários, mas com palavras suas, de modo genuíno.
O segundo aspecto é o da concepção instrumental da linguagem. Ela é aqui considerada como ferramenta da comunicação interpessoal e das relações sociais em geral. Por isso, os educandos deverão aprender a exprimir-se adequadamente, de modo oral e por escrito. Desde o início de sua prática, Firmino Costa atentou para esse ângulo: fê-lo
COSTA, Firmino. como ensinar linguagem no curso primário, p. 97.
Idem, ibidem, p.l 1.
através da valorização da conversação, do uso da linguagem eficaz na correspondência (desde o simples bilhete até formas elaboradas de cartas), do uso na atividade comercial, do elogio aos profissionais alfabetizados e com bom domínio da expressão. Esse modo de ver é anterior ao conhecimento da visão pragmática de Dewey e à familiaridade com o pensamento desse autor;este, sem dúvida, se conjugou bem, nesse terreno, às antigas intuições ocorridas em Lavras, reforçando-as.
"A linguagem - pondera - é um instrumento de que o professor necessita a tôda hora, cabendo-lhe conservá-lo e aperfeiçoá-lo, sob pena de achar-se incapaz de desenvolver o ensino com clareza, correção e proficuidade."
A dimensão estética
Foi talvez a formação literária que o salvou do reducionismo : o da linguagem considerada exclusivamente como instrumento da interação ou da atividade profissional. A bela literatura clássica portuguesa e a vitalidade dos textos brasileiros levaram-no a considerar sempre, explicitamente ou não, o valor intrínseco da linguagem.
Antes de mostrar o seu amor aos livros literários, acentuemos os traços de sua formação nesse terreno. Já se mencionou a anotação de leitura de Goethe, feita aos dezessete anos. Num discurso a adolescentes, lê um poema de Lamartine, do livro Jocelin, "vertido em nossa língua por um distinto poeta brasileiro", provavelmente João Cardoso de Menezes e Souza, o Barão de Paranapiacaba.16
A grande soma de exemplos que arrolou em seus estudos gramaticais dá-nos testemunho da variedade de leituras efetuadas ao longo da vida. Desde as palestras com Monsenhor Aureliano que se iniciara na leitura dos clássicos portugueses.
Aos seus primeiros alunos de Português e Literatura, no Instituto Evangélico, aconselhava que cultivassem o gosto da leitura, começando pelos autores contemporâneos, daí passando para os românticos. Deviam assim proceder para, desse ponto, "já com o espírito devidamente preparado", poderem "versar com proveito as obras dos autores clássicos, desabrochando-se então (...) tôda a exuberante florescência de suas páginas donde surgiu esta linguagem de nossos dias, tão vibrante e majestosa na prosa de Rui Barbosa e Oliveira Martins, tão formosa e sedutora nos romances de Eça de Queirós e José de Alencar, tão artística e senhorial nas poesias de Guerra Junqueiro e Vicente de Carvalho!"17
Num antigo texto, denominado Notas de Leitura, faz um levantamento de conceitos e de frases do Padre Manuel Bernardes que lhe chamaram a atenção. Segundo ele, esse autor e Camões seriam os clássicos de sua preferencia.
E, denotando como o lado ético sempre se superpunha a outros aspectos, afirma de Bernardes: "É este realmente um grande prosador, um profundo conhecedor da língua, um escritor sincero e primoroso na sua admirável singeleza. E, além disso, é Bernardes um hábil moralista, um insigne conhecedor da vida humana, sobre a qual ele passou longo tempo a meditar, no silêncio de seus estudos e de suas orações."18
Outro exemplo da prevalência ética encontra-se no referido discurso de paraninfo
COSTA, Firmino. O ensino primário, p. 203.
COSTA, Firmino. O ensino popular, p. 105.
Idem, ibidem, p. 99.
aos estudantes do Instituto Evangélico. Afirma que o seu próprio ideal de vida é alcançar a prática da bondade. Define esse sentimento em dois longos parágrafos. E depois aponta Machado de Assis como o escritor brasileiro que mais se distinguiu pela bondade, ilustrando a assertiva com trechos de discurso de Rui Barbosa diante do túmulo do autor de Dom Casmurro.
É muito provável que a identificação com Manuel Bernardes derivasse da admiração pela singeleza, qualidade que busca exprimir tanto no seu discurso como em suas ações.
Na orientação que dá aos professores do curso primário, em como Ensinar Linguagem, não exige que eles próprios leiam os clássicos, "nem dentro deste plano cabe formar literatos ou filólogos". Aconselha-os, entretanto, a escrever sempre, invocando o lema de muitos escritores: nulla dies sine linea, quer dizer, não deixar passar um só dia sem escrever. Os mestres devem afiar na prática o seu instrumento de trabalho, que é a linguagem.19
Ele próprio seguiu esse lema, mesmo quando não tinha intenção literária. Pois escreveu, no pórtico do livro O Ensino Popular, que, "nos escritos que se seguem, não procure o lejtor um estilo forte, nem uma bela forma literária, mas que aí se lhe depare em relevo a instante necessidade de cooperação do povo e do governo para tornar a escola primária a instituição mais bem organizada e querida no Brasil".20
O longo trato, com espírito de observação, com crianças e adolescentes, permitiu-lhe avaliar bem o gosto infantil e juvenil quanto à leitura. Por esse motivo, fez anotações ainda hoje corretas sobre a necessidade de que os livros para crianças sejam atraentes na apresentação e no conteúdo das histórias. No fundo, preocupava-se mais com o prazer da leitura do que com o respectivo hábito.
Restringindo ao estritamente necessário o uso das seletas, propôs a constituição, nas escolas, de uma biblioteca infantil básica. Dela faziam parte, ao lado de textos, um tanto convencionais (as alternativas não eram muitas então), como os de Olavo Bilac e Afonso Celso, e outros certamente de maior atração sobre o espírito infantil: Júlio Verne (Cinco Semanas em um Balão), Collodi (Pinochio), Daniel Defoe (Robinson Crusoé), além de contos escolhidos das Mil e uma Noites.
Admirava, sob esse aspecto das leituras infantis, o esforço realizado, em Portugal, pelo agrônomo Mota Prego, que compusera uma série de livros para crianças, tratando da vida quotidiana das famílias, especialmente a relacionada com o trabalho rural.21
Assevera que o professor primário deve ser "o compêndio vivo da escola", substi-tuindo-se ao livro. "0 livro de leitura é o único executado, o único de que não é dado ao professor preencher às vezes. Tanto basta para que presida o máximo escrúpulo na escolha do mesmo."22
Deve ser composto exclusivamente para o uso pelo aluno, dispensando-se prefácios, notas, pareceres, explicações : "tudo isso é descabido". É necessário cuidado com a forma, "demandam bonita aparência, impressão bem nítida, gravuras escolhidas e perfei-
19 COSTA, Firmino. como ensinar linguagem no curso primário, p. 22-3.
COSTA, Firmino. O ensino popular, p. 4.
21 COSTA, Firmino. Aprender a estudar, p. 74.
22 COSTA, Firmino. Pela escola ativa. p. 45.
ta revisão". Expõe depois as qualidades de linguagem: clareza, concisão, graça e expressões coloquiais.
O próprio Firmino Costa fora convidado por João Ribeiro a escrever livros escolares destinados ao curso primário. Numa longa carta, foi-lhe proposta a colaboração conjunta numa série de volumes com essa finalidade. Recusou a oferta da parceria, por nao se considerar habilitado a esse tipo de tarefa. Talvez não se julgasse capaz do uso de uma expressão mais solta e, por isso, mais eficaz para atrair a atenção das crianças.
Realmente, todos os seus escritos — com exceção de uma saudação â criança - se dirigem à leitura ou à audiência dos adultos. Mas a estes, notadamente aos professores, ofereceu notáveis e preciosos ensinamentos e sugestões de como lidar com os públicos infantis por escrito ou pela palavra viva.
Anotações finais: memória e resgate
Derradeiros dias
Todas as reminiscências dos contemporâneos, que nos foram transmitidas oralmente e por escrito, a respeito desse educador, convergem para dar-nos a convicção de que os seus sofrimentos derradeiros - sempre encarados com ânimo forte - constituem o coroamento de um profundo processo de purificação pessoal.
Firmino Costa faleceu no dia 2 de julho de 1939. Pouco antes da morte, causada por uma crise de uremia, dirigiu-se aos filhos. Sentindo muita dificuldade para falar, escreveu a lápis, num pedaço de papel, o seguinte: "Palavras de Leonardo da Vinci'1. Compreenderam, pela conversa anterior, o desejo do pai de ouvir a frase do grande artista, a qual ele havia citado no seu livro Edifício da Vida: "Assim como um dia inteiro bem ocupado dá prazer ao dormir, assim a vida bem empregada dá alegria ao morrer." Era a última lição. O pedaço de papel foi conservado até hoje e a frase, inscrita no túmulo do mestre, no Cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte.
No dia seguinte, às 17 horas, foi sepultado. Houve cerimônia religiosa, oficiada pelo Rev. Wilson Fernandes, da Igreja Crista Presbiteriana. Todo o mundo oficial estava representado. Havia também representações da Escola Normal, da Escola de Aperfeiçoamento, da Academia Mineira de Letras, dos colégios Isabela Hendrix, Batista Mineiro, Afonso Arinos, da Federação dos Escoteiros, do Instituto Sao Rafael, do Grêmio Helena Keller. Falou o Prof. Ildefonso Falcão.
O falecimento de Firmino Costa teve muita repercussão em Minas. Em Lavras, houve missa de exéquias no dia 7 de julho, mandada celebrar pelo grupo escolar. Em agosto, o jornal do estabelecimento, A Primavera, circulou em edição especial de homenagem. Na imprensa local, saíram vários artigos, escritos por antigos alunos, em preito à sua memória.
Em Belo Horizonte, a Secretaria da Educação promoveu homenagem especial, constante de romaria ao túmulo e de sessão cívica na Escola Normal, a que compareceu o secretário Cristiano Machado. Em outros municípios, como Juiz de Fora, Formiga e São Gonçalo do Sapucaí, o nome de Firmino Costa foi lembrado. A família recebeu numerosas manifestações de solidariedade.
Naquele tempo, na pequena Capital provinciana e nas outras cidades, os acontecimentos do mundo escolar repercutiam intensamente.
Legado espiritual
As novas gerações nao conhecem Firmino Costa. A afirmação é válida tanto para as pessoas comuns, como para os especialistas. Ignoram os novos a importância desse educador; muitos desconhecem até mesmo de quem se trata.
No entanto, não era um nome local. Provinciano nos afetos à terra e à gente, era um homem universalmente aberto às conquistas do espírito, sem qualquer estreiteza nacio-
nalista. Alguém que participava com sabedoria dos acontecimentos de cada dia no Brasil e no mundo.
É claro que os antigos alunos e colegas - onde quer que estejam agora, em Belo Horizonte, nas demais localidades mineiras ou pelo país afora — lembrarão sempre a figura, as idéias, os atos do mestre. Nos últimos anos não circulou em livro. Apenas um de seus trabalhos foi reeditado: a conferência sobre Pestalozzi, proferida em 1935. Qual a atualidade do pensamento pedagógico de Firmino Costa? Por que o esquecimento?
Mais do que qualquer proposta teórica ou doutrina acaso formulada, vale mais, no caso, o exemplo de uma vida consagrada por inteiro à educação. Mais do que os livros, valem as atitudes de compreensão ante o novo.
Do ponto de vista histórico, é inquestionável o pioneirismo dele em vários setores da prática educativa. Seu papel foi também decisivo em momentos cruciais da evolução recente do ensino. Tudo isso, acreditamos, ficou bem demonstrado nos capítulos antecedentes deste trabalho.
Seus textos pedagógicos não são lidos ou relidos hoje em dia. Dá-se o fato por diferentes motivos. O primeiro deles é que se encerram em livros atualmente raros, encon-tráveis em poucas bibliotecas e ausentes naquelas onde deveriam existir, as bibliotecas especializadas. Muitos deles são escritos circunstanciais, elaborados, por exemplo, com o intuito de facilitar a aplicação de dispositivos regulamentares ou debater inovações legais; surgiram em contextos históricos bastante diferentes da realidade atual. Assim, a natureza conjuntural de muitos capítulos dos livros de Firmino Costa retira-lhes a atualidade. Podem ser lidos, todavia, como testemunhos sempre valiosos para que se compreendam os problemas então aflorados. Possuem, em qualquer caso, o sabor e a validade de depoimentos históricos.
Existem, é preciso que se ressalte, temas e tratamentos, na obra do grande educador, que possuem interesse constante, para não dizer perene.
Relembremos, a esse respeito, certas preocupações que sempre alimentou: a de conferir caráter nitidamente profissional à atividade do magistério em todos os seus níveis; a de aprimorar as escolas normais, em virtude dos reflexos que exercem sobre o ensino fundamental; a de estabelecer fecunda interação da comunidade com a escola; a de superar o verbalismo na aprendizagem, substituindo as preleções enfadonhas e as exigências de memorização mecânica por aulas vivas, com emprego de técnicas participativas; e a de usar a linguagem como recurso para aprender a pensar.
Todas essas preocupações continuam atualíssimas, especialmente em face da prioridade que se pretende conferir à expansão e ao aprimoramento da educação fundamental.
De modo sistemático, Firmino Costa colocou como altíssimo valor a dignidade do trabalho humano, quer seja manual, quer seja intelectual. Privilegiou, nessa perspectiva, o trabalho de artesão e a atividade do professor. Cremos vislumbrar, nessa apreciação, a idéia implícita de que esses afazeres, quando conscientemente executados, levam a uma integridade psicológica e ética dos trabalhadores.
como decorrência de sua valorização do trabalho do professor, deriva uma nítida noção da responsabilidade social do mesmo. Acima de todas as facetas desse sentir-se responsável, está o de cuidar da formação dos cidadãos em nossa sociedade.
Os estudos gramaticais que realizou - também estes de caráter sempre pioneiro -encontram-se igualmente esquecidos. Mas esse não foi apenas o destino dos trabalhos de Firmino Costa; do mesmo modo, gramáticas contemporâneas à sua (por exemplo, a de Eduardo Carlos Pereira) não são mais adotadas nas escolas brasileiras. Será talvez
uma questão ligada à renovação mais recente dos estudos filológicos, intensificada desde que se criaram, no final da década de 30, várias Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. Surgiram autores novos, que se impuseram pela pesquisa e por revitalizada metodologia. Assim, usam-se hoje mais os textos de Celso Cunha, para citar apenas um nome, do que os de João Ribeiro ou Antenor Nascentes, este mesmo um inovador, ligado à antiga Faculdade Nacional de Filosofia.
Evidentemente, a verificação - mais do que uma queixa - de que o nome de Firmino Costa não seja lembrado hoje não se aplica aos lavrenses. A memória coletiva de Lavras mantém viva a lembrança do mestre querido. O nome está sempre presente, nos nomes do Grupo e de uma rua; no acervo e nos trabalhos do Museu de Lavras, fundado por Silvio (Bi) Moreira e hoje vinculado à Escola Superior de Agricultura (ESAL);nos trabalhos escolares da Faculdade de Filosofia local; nos escritos da imprensa, dos historiadores e cronistas; no busto que foi mandado erguer na Praça Dr. Augusto Silva; e, principalmente, na conversa dos mais antigos, que vão passando, pela tradição oral, a recordação do professor bondoso e enérgico. Quando o Grupo Escolar Firmino Costa, em 1957, comemorou seu cinqüentenário, foram muitas as festas.
Memória a recuperar
Apresentaremos, a seguir, algumas sugestões para o resgate da memória de Firmino Costa e de sua obra. Poderiam participar desse trabalho órgãos como o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), no plano federal; no estadual, as Secretarias da Educação e da Cultura, de Minas Gerais; em Lavras,o Museu da ESAL e os órgãos da municipalidade, isto é, a prefeitura e a câmara locais. E ainda o Curso de Pedagogia local e as universidades mineiras. Lembre-se que certos temas, ligados à sua obra, seriam de interesse de estudiosos ligados aos programas de pós-graduacão.
Começando por esse último aspecto, ressaltemos a oportunidade de dissertações e teses nas quais se aprofundasse a análise de qualquer dos temas versados aqui, quer sejam questões educacionais, quer sejam problemas filológicos/lingüísticos. Há ainda a explorar certos assuntos tratados aqui lateralmente e que são de evidente interesse intelectual; por exemplo, o do estudo sistemático da obra e da ação de Mário Casassanta.
Por sua vez, poderiam os órgãos estaduais ligados à educação e à cultura promover reedições de trabalhos de Firmino Costa. Dadas as características circunstanciais de muitos deles, conforme se salientou acima, impõe-se uma seleção, contemplando os textos de caráter mais permanente e revestidos ainda de atualidade. Entendemos do maior interesse uma reedição crítica e preparada por especialistas, de todo o livro Como Ensinar Linguagem. Lembramos, a propósito, que são mineiros e residentes em Minas alguns dos mais conhecidos especialistas em questões de metodologia do ensino do Português na escola elementar.
Gostaríamos de deixar em aberto - do ponto de vista da oportunidade e da conveniência — uma sugestão: não seria o caso de se constituir, em Minas ou em Lavras, particularmente, uma fundação Firmino Costa? Teria como finalidade, por hipótese, o estímulo ao estudo e ao desenvolvimento do ensino fundamental, e/ou o incentivo ao aprimoramento do ensino do idioma nacional nas escolas. Levantamos essa possibilidade de forma bastante preliminar e com ressalvas, para que fique bem claro não se tratar de proposta de mais uma fundação. Que os poderes públicos aceitem considerar esta proposta caso a considerem relevante e viável. Em caso positivo, a escolha do nome do patrono seria a mais adequada, merecida e justa.
Especificamente ao poder público municipal e às instituições culturais de Lavras, desejamos oferecer uma sugestão mais concreta : a de que se organize um livro com os escritos - até agora dispersos - do professor Firmino Costa, sobre os diferentes aspectos de seu querido município. Poderiam compô-lo textos como os apontamentos da história de Lavras; as anotações corográficas, publicadas na Vida Escolar; os perfis de personalidades lavrenses, editados no mesmo jornal; as reminiscências esparsas (por exemplo, o capítulo Recordação, do livro Aprendendo a Estudar; e os depoimentos sobre as instituições locais de ensino. Se enriquecido com desenhos leves dos velhos logradouros e edifícios lavrenses, seria um livro muito atraente e útil. Propomos que se pense numa edição comemorativa;por exemplo, do 80° aniversário do Grupo Escolar Firmino Costa, em maio de 1987.
Bibliografìa
Trabalhos de Firmino Costa
1. Livros e Opúsculos
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* Excluíram-se, com uma ou duas exceções, os números dos trabalhos aparecidos na imprensa e depois reduzidos em livro.
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1934. p.13. Instituto modelar (sobre o Instituto "São Rafael"). Minas Gerais, Belo Ho
rizonte, 15 mar. 1930. p.4. Um livro indispensável (sobre Introdução ao estudo da Escola Nova, de
Lourenço Filho). Revista do Ensino, Belo Horizonte. 5(48):92, ago. 1930. . Livros recomendáveis. Revista do Ensino, Belo Horizonte, 5(42),fev. 1930. . Metodologia da História e da Instrução Moral e Cívica; Aulas. Curso de
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3. Relatórios*
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Relatório do Grupo Escolar de Lavras ao Secretário do Interior, 1909. Minas Gerais, Belo Horizonte, 1909.
Trabalhos sobre Firmino Costa
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Queiroz Breiner, 1946. p.91-8. AVELAR, Antônio Ribeiro de. Figuras da Casa de Minas. Belo Horizonte, Imprensa
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1968.24p. LEÃO, Múcio. Prefácio a Joio Ribeiro. Crítica, v.5, p.5-6. LOURENÇO FILHO, M.B. Prefácio. In: COSTA, Firmino. como ensinar linguagem no
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MONTENEGRO, Maria Eugênia. Saudade, teu nome é menina, s.n.t p.46. NASCENTES, Antenor. Léxico de nomenclatura gramatical brasileira. Rio de Janeiro,
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Outras obras citadas ou consultadas
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ANDRADE, Carlos Drummond de. Cadeira de balanço. 13. ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1981.
ANTUNHA, Heladio César Gonçalves. Tendências da educação brasileira durante a República. In: INTRODUÇÃO ao estudo da educação brasileira. São Paulo, USP, IEB, 1971. p. 97-111.
ÁVILA. Affonso, org. Modernismo. São Paulo, Perspectiva, 1975. AZEVEDO, Fernando de. Figuras de meu convívio; retratos de família e de mestres e
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2. Publicações em periódicos
ALMEIDA, Jacinto. Ensino agrícola. Vida Escolar, Lavras (28), 15 ago. 1908. Ensino Profissional. Vida Escolar, Lavras (26):3, 15 jul. 1908.
FUNDAÇÃO JP; análise e conjuntura. Belo Horizonte, v.l 1, n.4/6, maio/jun. 1981. MONTEIRO, Norma de Góis. Francisco Campos: trajetória política, RBEP, Belo Ho
rizonte (53): 183, jul. 1981. MOREIRA, Vivaldi. João Pinheiro, místico da ação. Revista do IHG Minas Gerais,
Belo Horizonte, 8, 1961. RENAULT, Abgar. Francisco Campos. Digesto Econômico, São Paulo (215): 17-20,
1970. Z. (Zoroasto Alvarenga). Carvalho Brito. Vida Escolar, Lavras (13): 1,1 nov. 1907.
Em oito meses. Vida Escolar, Lavras ( 18), 15 jan. 1908. 5 jan. 1908.
Documentos e coleções de periódicos
Além dos relatórios oficiais de Firmino Costa, relacionados anteriormente, foram consultados outros documentos: SILVA, João Pinheiro. Mensagem ao Legislativo referente às sessões de 1907 e 1908.
1907 e 1908. sji.t. MINAS GERAIS. Leis, decretos, etc. Lei nº 434, de 28 de setembro de 1906. Au
toriza a reforma do ensino público, s.n.t.
MINAS GERAIS. Governo do Estado. Administração João Pinheiro da Silva. Decreto nº 1 .960, de 16 de dezembro de 1906. Regulamento do ensino primário e normal.
Decreto nº 7.970-A, de 16 out. de 1927. Aprova o Regulamento do Ensino Primário; Decreto nº 8.162, de 20 de janeiro de 1928. Aprova o Regulamente do ensino nas escolas normais. Acompanhados ambos de exposições de motivos, pelo Secretário do Interior, Francisco Luis da Silva Campos, respectivamente a 14 de outubro de 1927 e 20 de janeiro de 1928.
Decreto nº 8.094, de 22 de dezembro de 1927. Instruções e Programas do Ensino Primário do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado de Minas, 1927. 406 p.
LAVRAS. Prefeitura. Câmara de Vereadores. Relatório do Agente Executivo Álvaro A. de Andrade Botelho apresentado à Câmara em janeiro de 1903. Lavras, Tipografia de O Município, 1903.
.. Relatório do Dr. Paulo Menicucci à Cámara. Papelaria e Tipografia Menicucci, 1927, 34 p.
Foram consultadas coleções do Minas Gerais, da Revista do Ensino (Belo Horizonte) e da Vida Escolar (Lavras), além de números avulsos dos jornais publicados pelo Grupo Escolar "Firmino Costa". A maior parte das referências da imprensa se basearam em recortes do Arquivo da Família Firmino Costa, em Belo Horizonte.
Correspondência
No arquivo da família Firmino Costa, encontram-se, dentre outras, as seguintes correspondências a ele dirigidas:
De João Ribeiro. Carta datada do Rio de Janeiro, 19 jun. 1913. Refere-se a O Ensino Popular e propõe a elaboração com FC de livros de leitura encomendados pelo editor Garnier. De Monteiro Lobato. De São Paulo, 10 dez. 1918. Envia exemplares da Revista do Brasil. Fala do interesse despertado pela publicação do Vocabulário Analógico, inclusive entre os estudiosos norte-americanos. De Ramiz Galvão, duas cartas do Rio, respectivamente de 10 de set. e 18 de out. 1933, agradecendo a dedicatória do Léxico Gramatical. Do mesmo, carta de fevereiro de 1935. De Fernando de Azevedo. São Paulo, 20 mar. 1934. Discute a possível publicação de trabalhos de FC na col. Biblioteca Pedagógica Brasileira, que o missivista dirigia em São Paulo. Discute também questões de direitos autorais. Do Ministro Edmundo Lins. Do Rio de Janeiro, 9 ago. 1935. Faz uma consulta gramatical sobre o uso da expressão "o mais acérrimo dos inimigos". Timbre: "Gabinete do Presidente da Corte Suprema". Da Prof? Cynira de Carvalho, então diretora do Grupo Escolar "Firmino Costa", carta datada de Lavras, 14 abr. 1937. Comunica a próxima celebração do 309 Aniversário do Grupo, convida o ex-diretor e envia o programa das festas. De Cristiano Machado, Secretário da Educação e Saúde Pública, agradecendo remessa de livros de autoria de FC. De João Carvalho, então presidente da Câmara Municipal de Lavras. Telegrama co-
inimicando sessão da Câmara em homenagem ao 309 Aniversário do Grupo. De José Oswaldo Araújo. Telegrama. Comovida saudação ao professor que se aposenta (1937). De Afonso Pena Jr., Secretário do Interior, 1921, sobre a Gramática e comentando a nao concessão a ela do Prêmio da ABL. Refere-se a que muitos estranharam o fato. "Sempre é melhor isto do que a estranheza contrária. Nao sou dos que fazem ques-tâ"o do selo oficial e entendem que o 'pavilhão cobre a mercadoria'. Gostei muito de sua obra e mantenho meu juízo que será incompetente, mas é muito sincero". De Gustavo Capanema, Ministro da Educação: "Rio de Janeiro, 20 de abril de 1936. Meu caro professor Firmino Costa : Ocupações de tôda sorte impediram-me, até agora, o cumprimento de um suave dever: o de agradecer-lhe o oferecimento de seu livro Pela Escola Ativa. Mas, nem por serem tardios, os meus agradecimentos perdem em cordialidade e em justo apreço pela obra de repousada sabedoria que o Sr. acaba de proporcionar aos nossos educadores. Há um belo sentido nessas páginas, escritas por mão experiente e que põe no ensinar uma grande doçura de sentimento. Faço os votos mais afetuosos pela sua saúde e mando-lhe um abraço muito cordial, de admiração e sincera estima. ass.) Capanema."
Apêndices
1. Fotografía da hora da leitura na biblioteca do Grupo Escolar de Lavras. 2. Fotografía de uma classe de meninas no Grupo Escolar de Lavras no começo do sé
culo. 3. Reprodução da primeira página do Cine-Jornal, na edição comemorativa do aniver
sário da cidade de Lavras, em 20 de julho de 1914. 4. Reprodução de página do diário de uma estagiária do Grupo de Lavras, em 1919. 5. Fotografia de alunos do Grupo Escolar de Lavras antes da prática de jardinagem e
agricultura. 6. Fotografia de uma aula de horticultura no Grupo Escolar de Lavras por volta de
1910. 7. Fotografia do mestre de marcenaria do Grupo Escolar de Lavras entre seus alunos. 8. Fotografia do término das aulas do Grupo Escolar de Lavras. 9. Textos e Documentos
9.A Instruções para execução do ensino primário, aprovada por decreto baixado por João Pinheiro da Silva, Presidente de Minas, e referendado pelo Secretário do Interior.
9.B Efemérides Lavrenses - registro das datas de interesse escolar e da comunidade de Lavras.
9.C Programa de Prática Profissional — reprodução do relatório referente ao ano de 1916, apresentado por Firmino Costa, como Diretor do Grupo Escolar de Lavras, ao Secretário do Interior de Minas, Américo Lopes, em 1917.
9.D Transcrição de trechos do diário de uma estagiária de Prática Profissional do Grupo Escolar de Lavras.
9.E Transcrição do prefácio da obra Léxico Gramatical, de autoria de Firmino Costa.
uma classe de meninas no Grupo Escolar de Lavras no começo do século.
Hora de leitura: a biblioteca do Grupo.
Cine-Jornal :ediçáo comemorativa do aniversário da cidade.
Antes da prática de jardinagem e horticultura.
Do diário de uma estagiária do Grupo de Lavras em 1919.
O mestre de marcenaria (de gravata) entre seus alunos.
Aula de horticultura no Grupo Escolar de Lavras por volta de 1910.
As aulas terminaram: a saída do Grupo.
Textos e documentos
São reproduzidos aqui alguns textos e documentos em forma de apéndice. A razão é que ajudam a complementar as informações e a elucidar os argumentos contidos em diversos capítulos desta monografia.
O primeiro desses apêndices é o das instruções que acompanham o programa do ensino primário baixado no início do governo João Pinheiro. Tratando-se de disposições pioneiras, com emprego do ensino intuitivo, revestem-se de caráter histórico; no caso presente interessa também conhecê-las pelo fato de que Firmino Costa propôs, num dos seus primeiros escritos como professor, uma complementação dessas instruções.
O segundo apêndice contém as efemérides lavrenses, isto é, o registro das datas de interesse escolar e de interesse daquela comunidade. As notas foram extraídas do Calendário Escolar, elaborado por Firmino Costa. As referências a Lavras fazem parte da primeira versão, constante do relatório do ano de 1916. Era propriamente o calendário composto para o uso do Grupo de Lavras. Tais referências foram depois excluídas do livro do mesmo nome, que engloba as datas universais e nacionais.
O terceiro contém o programa de Prática Profissional, proposto por Firmino Costa e encaminhado ao Secretário do Interior de Minas. Ele iria organizar o estágio das alunas da Escola Normal Nossa Senhora de Lourdes, em Lavras, a ser feito junto ao Grupo Escolar. E, por esse motivo, organizou previamente a estratégia da execução dessa nova tarefa. Ë muito provável que esse esquema tenha sido seguido em muitas outras localidades mineiras onde houvesse escolas normais.
O seguinte é uma pequena amostra do diário de uma dessas estagiárias, D. Judith Correia Dias, normalista do mesmo colégio, no ano de 1919, e que realizou a prática profissional no segundo semestre desse ano. De julho a dezembro, vai anotando as orientações de Firmino Costa, o seu próprio desempenho e o de seus colegas, o conteúdo das preleções do orientador, as coisas bem-humoradas que ele relatava, a vida quotidiana na Escola Normal, as visitas que o Grupo recebia, as impressões dos visitantes. Em muitos dos seus trechos esse diário dá idéia de como a personalidade de Firmino Costa e sua autoridade moral calavam fundo no espírito de suas jovens alunas.
O último texto transcrito é o prefácio do Léxico Gramatical, de Firmino Costa. É reproduzido aqui para melhor ilustrar a concepção de ensino da gramática por ele adotada, com muitas antecipações a seu próprio tempo. Escrito no início da década de 30, esse prefácio antevê algumas diretrizes que seriam adotadas, no fim da mesma década, depois dos primeiros resultados dos cursos de Letras nas Faculdades de Filosofia, especialmente a Faculdade Nacional.
Instruções para execução do programa do ensino primário*
Leitura
Para as primeiras lições de leitura, o processo adotado neste programa é novo no nosso ensino; reclama, por isso, a atenção dos professores.
I. Em vez de decorar sons e valores de letras, para depois formar as combinações que produzam o vocábulo, a criança começará por este último, ligando desde logo a idéia expressa pela palavra ao corpo de letras que a formam.
II. Familiarizados que estejam, pelas primeiras lições, com um certo número de palavras simples, os alunos acharão facilidade e até diversão em decompô-las para a formação de novas.
III. É conveniente que as primeiras palavras estudadas representem cousas concretas.
IV. Partindo das sílabas fáceis para as mais complicadas, até percorrer-se todo o silabario da língua, ter-se-á preparado o aluno para as lições de leitura do 2º semestre.
V. Seria de grande vantagem que os srs. professores adotassem, desde logo. este método, de preferência ao de silabação e soletração. Este último deverá abolir em absoluto, por ser hoje universalmente condenado, no ensino moderno.
VI. Habitue-se o aluno, desde as primeiras lições, a pronunciar bem a sílaba final das palavras. Nisto consiste, em grande parte, a boa dicção.
VII. Não o deixem 1er apressadamente, deturpando sons e palavras, mas pausada e meditadamente, de modo a mostrar que entende o assunto da leitura.
VIII. Para se conseguir boa leitura, as lições devem ser pouco extensas, e nao se deve passar ao capitulo ou trecho seguinte, sem que o anterior tenha sido corretamente lido.
Escrita
O programa exige o tipo de letra vertical redonda, para o ensino da escrita. Fácil será adotá-lo, com os primeiros modelos fornecidos. Este tipo de letra, que vulgarmente se chama letra em pé, além de ser fácil, é rápido, econômico e higiénico.
I. Nao se permita que as crianças fiquem entregues a si mesmas, ao traçarem as primeiras letras; devem ter a mão educada no modo de pegar a pena e manejá-la de acordo com o tipo de letra adotado.
II. No primeiro semestre desta disciplina, os alunos usarão ardósias ou lápis e papel, em vez de pena, porque assim vencerão melhor as dificuldades mecânicas da primeira aprendizagem.
Lingua Pátria É a disciplina que mais requer o zelo e a atenção dos professores. Em todas as ou
tras classes ela estará sempre atestando o modo mau ou bom com que é ensinada. Na
* Apêndice ao capítulo "Novo ensino público".
familia, nos seus brinquedos, na rua, em público, nas suas pequenas correspondências, o menino revelará sempre os conhecimentos que adquire na escola, para a prática da sua língua. Por isso mesmo nenhuma outra oferece tanta oportunidade para ser ensinada. A todo momento o professor tem ocasião de corrigir as expressões defeituosas, erros de forma e faltas de ortografia de seus alunos.
I. Exercícios freqüentes de ditado, trabalhos escritos diariamente e recitações quanto possível.
II. Para a prática de composições e redação, habituem-se os alunos a observar bem o que vêem; narrar a princípio, depois reproduzir por escrito tudo que lhes passou peles olhos, exigindo-se que as frases sejam simples, as sentenças curtas, com o emprego freqüente do ponto final, nos primeiros exercícios.
III. É preferível que os vocábulos invariáveis, as formas gramaticais e até a conjuga-cao dos verbos sejam aprendidos com exercícios no quadro negro.
IV. As regras gramaticais serão deduzidas dos exercícios, nunca aprendidas de cor sem terem sido antes aplicadas.
Aritmética
No estudo da aritmética tenha-se em vista que o menino precisa desta disciplina para agir com prontidão e segurança nos cálculos comuns da prática da vida.
I. É necessário grande exercício de memória com os números simples, repetindo-os com exemplos numerosos, freqüentemente.
II. Os cálculos, a princípio, devem ser por meio de dados concretos, até que cheguem às abstrações. É recomendável o uso dos tornos de sapateiro, contadores mecânicos, cartas de Parker.
III. Não se deve passar às operações seguintes enquanto a anterior não estiver completamente aprendida.
IV. Evitem-se cálculos que não estejam na capacidade mental da criança, e questões penosas que a façam tomar aversão a este ensino.
V. As dificuldades devem ser prolongadamente graduadas, procurando-se que os exercícios sejam mais numerosos do que extensos.
Geografia
I. Parta-se do particular para o geral: dos elementos geográficos conhecidos para os desconhecidos, dando-se aos alunos, inteligentemente, as idéias de lugar, de orientação e de direção.
II. Desde logo devem os alunos se habituar a esboçar os elementos geográficos, contornando a princípio as cartas do mapa, e depois traçando os acidentes geográficos mais salientes.
III. Os alunos não devem fazer estudo de mapas, senão depois de bem familiarizados com os mesmos.
IV. Não se ensine, em geografia, senão o substancial, para que o ensino além de útil seja agradável.
V. Aconselha-se a adoção dos tabuleiros de areia para o ensino intuitivo dos acidentes geográficos.
História do Brasil
I. Dos fatos e coisas da nossa história deve-se fazer seleção do que for mais grandioso e importante, transmitindo a princípio em forma de anedota e depois em descrição e narração simples, por conversa com os alunos.
II. Poucas idéias, claramente expressas, tendo em vista familiarizar os meninos com os fatos históricos do país, apreciar o valor dos grandes homens e inspirar o sentimento da pátria.
Somente no 3ºano se permitirá a adoção de um pequeno compêndio.
Instrução Moral e Cívica
I. Destinada a dirigir a conduta do menino, a inspirar-lhe bons hábitos e o cumprimento do dever, esta disciplina deve ser ministrada nas horas determinadas e em todas as ocasiões em que se oferecer oportunidade, aproveitando-se fatos e exemplos, de que se deduzam os preceitos de moral e dever cívico, mais com exemplos do que com palavras.
II. A discussão entre os alunos, habilmente dirigida, produzirá excelentes resultados. III. com muito proveito serão recitados, de cor, pequenas poesias e trechos literá
rios, que facilitem a retenção de boas noções. IV. Exemplos, exemplos e mais exemplos.
Geometria e Desenho
I. Todas as noções devem basear-se em coisas concretas, utilizando-se os objetos da classe, do prédio, para o estudo das linhas, dos ângulos, das extensões lineares, quadradas e cúbicas, etc.
II. O desenho tenderá especialmente a habilitar o aluno à reprodução de objetos, a princípio por linhas retas, depois por curvas, aumentando-se gradualmente as dificuldades.
História Natural, Física e Higiene
I. Não se exigem, nestas matérias, senão breves noções gerais, que facilitem aos alunos o conhecimento do corpo humano, das coisas que o cercam, animais, plantas, etc, auxiliando-os nos demais estudos da classe, além de fornecer-lhes o vocabulário preciso na exposição das suas idéias.
II. De higiene o professor aproveitará tudo quanto possa ministrar-lhes noções precisas para a conservação da saúde e seu bem-estar físico, ensinando-lhes cuidar da sua própria pessoa.
Exercícios Físicos
Não se descuide desta parte da educação das crianças na escola, porque dela depende o desenvolvimento físico dos futuros cidadãos, muitos dos quais não terão em suas casas os meios e ocasião dos exercícios que a escola lhes pode proporcionar.
Trabalhos Manuais
I. Familiarizem-se as meninas, desde o primeiro dia, com os utensílios do trabalho doméstico, ensinando-lhes somente o que for útil e prático. Os trabalhos de fantasia devem ser banidos, ficando esses aos cuidados da família.
II. Faça-se com que a menina, ao deixar a escola, possa se servir pelas próprias mãos, na execução das peças do vestuário e mais trabalhos comuns da vida doméstica, para ser desde logo útil a si e à familia.
III. Deverão as alunas conservar em coleção graduada todos os trabalhos, ou uma peça de cada um que forem executando, para os exibirem como prova final.
Os trabalhos manuais que se exigem para os rapazes, até o 39ano, têm por objetivo habituá-los ao exercício do trabalho metódico, familiarnando-os ainda com peças e instrumentos de que tenham de fazer uso, no curso de Ensino Técnico Primário.
Música Vocal
I. Esta disciplina será ministrada por um artista especial, nos Grupos Escolares, em hora apropriada. Tomarão parte na classe todos os alunos, ou quantos couberem na sala para isso designada.
II. Nas Escolas Singulares, o canto se fará no primeiro e no último intervalos do horário das aulas. O próprio professor se encarregará de dirigir o canto, escolhendo hinos apropriados ou os que se determinarem oficialmente.
Museu Escolar
No ensino de Geografia, História do Brasil, História Natural, Física, etc, os professores terão muitas vezes necessidades de apresentar aos seus alunos, como exemplos ou provas, coisas e objetos de que trata a lição.
Para isso deverão, com o material fornecido pelo governo e com o concurso de donativos dos próprios alunos, organizar o museu escolar, onde poderão fazer pequenas exposições de produtos agrícolas e industriais, plantas, animais, minérios etc, conseguindo desse modo um elemento dos mais importantes para o ensino intuitivo das crianças.
Horário
Em seguida ao programa de cada ano do curso dos grupos escolares, encontra-se o horário respectivo, pelo qual se regularão os trabalhos escolares, durante cada dia da semana.
As aulas começarão às 10 horas da manhã, em ponto, encerrando-se às 2 horas da tarde. Os alunos do quarto ano, porém, terão das 2 às 3 da tarde o curso de Ensino Técnico Primário.
Nas escolas singulares o dia escolar começará às 10 da manhã e terminará às 2 horas da tarde, em ponto. Os trabalhos escolares guardarão a ordem determinada no diário
que se encontra no fim deste Programa. Os srs. professores destas escolas distribuirão as disciplinas de cada dia, de modo a não darem a cada classe mais de 25 minutos de trabalho.
As horas designadas para trabalho, no diário das escolas singulares, serão destinadas às alunas somente. Os rapazes preencherão esse tempo com trabalhos de escrita, desenho, contabilidade ou outro qualquer, que não tenham podido executar em outras horas de ensino.
As matérias serão ensinadas de acordo com a distribuição por semestre, dos grupos escolares.
Belo Horizonte, 28 de setembro de 1906.
Efemérides lavrenses *
Janeiro
Dias
15. Fundam-se, em 1893, o Instituto Evangélico de Lavras e, em 1899, o Colégio La-vrense.
21. Organiza-se na cidade de Lavras, em 1912, a Caixa Escolar Dr. Augusto Silva. 26. Em 1910, instala-se no Grupo Escolar de Lavras o curso técnico complementar.
Fevereiro
5. Falece, em 1880, o Dr. José Jorge da Silva que, além de reais serviços prestados à Pátria, foi um grande propugnador pelo progresso de Lavras.
13. Em 1887, publicação do primeiro jornal de Lavras, que se chamou O Lavrense, fundado pelo ilustre jornalista Dr. Francisco Martins de Andrade.
20. Em 1895, é sepultado em Juiz de Fora o desembargador Barbosa Lima, que foi juiz de direito de Lavras, onde promoveu a construção do atual prédio do Grupo Escolar.
Março
24. Organiza-se em 1913, o serviço de merenda para os alunos pobres do Grupo Escolar de Lavras.
25. Inaugura-se, em 1912, a Rede Telefônica de Lavras. 26. Em 1898, rende a alma ao Criador a dedicada professora pública D. Guilhermina
Brasileiro, que durante longos anos fez de sua escola, na cidade de Lavras, uma verdadeira casa de educação.
Abril
19 Inaugura-se, em 1895, a Estação de Lavras, da Estrada de Ferro Oeste de Minas. 3. É concluído, em 1853, o cemitério de Lavras, feito pelo povo em cinqüenta dias,
sob a direção de dois missionários. 10. Dia consagrado à comarca de Lavras: designação desta cidade para sede de co
marca, em 1872.
• Anotações extraídas do calendário escolar elaborado por Firmino Costa. Trata-se de apêndice ao capítulo "Comunidade e cidadania".
12. Falece, em 1752, o capitão-mor Francisco Bueno da Fonseca, natural de Sao Paulo, um dos principais fundadores de Lavras.
14. Em 1889, inaugura-se no município de Lavras a Estação de Ribeirão Vermelho, da Oeste de Minas.
20. Em 1885, falecimento do comendador José Esteves de Andrade Botelho, um dos maiores benfeitores da cidade de Lavras.
Maio
13. Libertação dos escravos em 1888, dia de festa nacional. Instalação do Grupo Escolar de Lavras em 1907, data de festa escolar.
25. Inaugura-se na cidade de Lavras, em 1908, a estação do telégrafo nacional.
Julho
15. Dia consagrado aos municípios limítrofes de Lavras: data da criação do município de Bom Sucesso, em 1872.
20. Festa da cidade, instituída pelo Grupo Escolar: elevação de Lavras à categoria de cidade, em 1868.
24. Inauguração da luz elétrica na cidade de Lavras, em 1909.
Agosto
4. Falece, em 1796, Francisco Inácio Botelho, um dos maiores beneméritos da cidade de Lavras.
Setembro
7. Diade festa nacional, consagrado à comemoração da Independência do Brasil. Festa das árvores, realizada pelo Grupo Escolar.
9. Em 1905, falece D. Maria do Carmo Goulart, exímia educadora lavrense, que em diversas cidades de Minas manteve seu importante colégio, educando gratuitamente centenas de crianças.
17. Em 1894, chega à cidade de Lavras o primeiro trem da Estrada Oeste de Minas. 21. Morre, em 1904, o Dr. José Esteves de Andrade Botelho, um dos filhos da cida
de de Lavras que mais se distinguiu pelo seu alto valor moral e intelectual.
Outubro
10. Funda-se no Grupo Escolar de Lavras, em 1913, a Biblioteca Infantil Custódio de Souza Pinto.
13. Dia consagrado ao município de Lavras: criação deste em 1831.
21. Efetua-se, em 1911, a inauguração da linha de bondes elétricos na cidade de Lavras.
27. Dá-se, em 1895, o falecimento do tenente Firmino Antônio Sales, a quem se deve, entre outros serviços, a canalização d'água potável de Lavras.
Dias
Novembro
23. Em 1909, realiza-se a entrega solene de certificados à primeira turma de alunos do Grupo Escolar de Lavras.
24. A Gazeta de Lavras, fundada pelo talentoso lavrense Cincinato de Pádua, publica, em 1889, um número especial dedicado à República.
Dezembro
19 Criação da biblioteca do Grupo Escolar de Lavras, em 1908. 5. Abre-se a exposição anual do Grupo Escolar de Lavras. 8. Sessão de entrega de certificados aos alunos do Grupo Escolar de Lavras. 19. Desaparece dentre os vivos, em 1905, o Dr. Augusto José da Silva, que muito se
distinguiu como médico, como escritor e como benemérito da cidade de Lavras.
Prática profissional*
como provavelmente, ano vindouro, os alunos da Escola Normal desta cidade virio exercer no grupo a prática profissional, lembrei-me de elaborar o seguinte programa, cuja execução poderá ficar a meu cargo, desde que V-Exa. se digne conceder-me sua necessária aprovação:
1 a Parte
1. Do cargo de professor: sua importância social; classificação, nomeação e acesso; concurso para a nomeação; posse e exercício ; permutas, remoções e designações de cadeiras; deveres e proibições; direitos e prêmios; disponibilidade e exoneração ; vencimentos, licenças e faltas.
2. Das escolas públicas: singulares e grupos; do período escolar e das férias;prédios escolares; instalação de uma sala de aula, formação do museu ; organização da biblioteca; higiene da escola; escrituração e correspondência ; inspeção escolar.
3. Dos alunos: matrícula e freqüência;exames e prêmios; notas escolares; disciplina; assistência infantil.
4. Do ensino: organização do curso primário; compêndios e livros de leitura adotados; horário e programa do ensino; instruções para a execução do programa; excursões; festas escolares.
5. Das caixas escolares: importância dessas instituições; sua organização legal; desenvolvimento de suas fontes de renda.
6. Do Grupo Escolar de Lavras: sua organização; seus cursos técnicos; seu programa de excursões; seu programa de higiene; serviço de assistência infantil; história e corografia de Lavras; galeria de retratos dos benfeitores de Lavras; festas escolares.
2? Parte
1. Percorrer todas as seções do Grupo Escolar. 2. Assistir às aulas de cada um dos anos letivos. 3. Comparecer às festas escolares. 4. Tomar parte nas excursões das classes. 5. Proceder à chamada dos alunos e apurar a freqüência. 6. Dirigir a aula de canto e a de ginástica. 7. Reger a aula de escrita em cada um dos anos. 8. Dar as primeiras aulas de leitura pelo método adotado. 9. Dar uma aula de leitura no segundo, terceiro ou quarto anos.
10. Ensinar um ou mais pontos de língua pátria. 11.0 mesmo trabalho em relação à aritmética.
* Apêndice ao capítulo "O magistério como profissão".
12. Desenvolver um ponto de instrução moral e cívica. 13. uma aula de história e de geografia local. 14. Aula de geografia para algum dos anos do curso. 15. Aula de história do Brasil. 16. Aula de história natural, de física e de higiene. 17. Ensinar um dos pontos de trabalhos manuais. 18. uma aula de geometria. 19. Aulas de desenho e de cartografia. 20. Reger durante o dia uma das classes. 21. Assistir ao exame dos alunos.
Compêndios adotados: regulamento geral da instrução; programa de ensino primário; Higiene escolar, pelo Dr. Zoroasto Alvarenga; Nono Relatório do Grupo de Lavras.
Do diário de uma estagiária de prática profissional*
30 de julho
"A atenção nada mais é do que a vontade no seu mais alto grau." (Firmino Costa).
Fomos para o grupo à uma e meia da tarde. Deram aula Zilda e Quetinha. Zilda deu primeiro; deu bem, só não tornou bastante interessante a sua aula; ela fa
lou sobre as partes da planta, mas falou das plantas em geral, e então, quando o senhor Firmino foi fazer a crítica, ele disse que se deve especificar uma planta, como a laranjeira, que é muito conhecida das crianças; como em tudo mais, partir sempre do conhecido para o desconhecido;disse também que o ensino de História Natural deve ser ligado à Higiene, porque a Higiene faz parte da mesma cadeira. Quetinha fez o mesmo que a Zilda, sendo que a Zilda deu sua aula com mais desembaraço, mais calma e com melhor voz.
Viemos às três horas e alguns minutos. O bonde vinha descendo...
Segunda-feira
O senhor Firmino falou hoje conosco sobre o ensino do desenho. Disse-nos ele que leva grande vantagem a pessoa (professora) que sabe desenhar e que muita gente confunde o desenho com a pintura; ele disse, convém que saibam desenhar; pintura, só na Escola de Belas-Artes e para os gênios principalmente... Falou sobre o desenho no Japão e outros países mais adiantados do que o Brasil.
Fez uma dissertação sobre a força de vontade, contando-nos fatos interessantíssimos que se deram na vida de um seu irmão (já falecido...)
Ainda, como sempre, falou sobre as falhas do programa de ensino das escolas normais, quando lhe dissemos que não ensinam desenho tirado do natural, mas, sim, cópia. O senhor Firmino muito nos fez rir com as comparações que ele fez de tal ensino.
A aula de hoje esteve, como todas, esplêndida. Amanhã, vamos à modelagem. O senhor Firmino nos incumbiu de fazer um desenho
para ele ver. Viemos às três horas e poucos minutos(...).
Quinta-feira, 20
A professora não pode, não deve improvisar a aula, disse-nos hoje o senhor Firmino; demais, é preciso que cada um de nós reflita primeiro no que vai fazer (...)
Apêndice ao capitulo "Formação pedagógica e paradigmas".
Terça-feira, 9 de setembro de 1919
"A peça principal da escola é o aluno." (Firmino Costa). Fomos para o Grupo à uma e meia hora da tarde. O senhor Firmino falou hoje sobre o programa de Aritmética no 29 ano. Diz ele que o problema não é superior à operação e nem esta é preferível ao proble
ma. Ambos sao bons e necessários; mas os problemas devem ser feitos pela professora e de acordo com a profissão do pai e da mãe de cada aluno. Deve também deixar de parte os milhóes.
No ensino de tabuada, o sr. Firmino disse que deve-se adotar o método antigo; é preciso decorar. O sr. Firmino determinou a mim para dar aula amanhã no segundo ano.(...)
Quarta-feira, l°de outubro de 1919
Fomos para o Grupo. Hoje também não houve aula pois havia lá muitas visitas. 0 senhor Firmino nos mostrou o l°número do Jornal do Comércio e o último, isto
é, o de anteontem. Ê notável a diferença! O Jornal do Comércio é hoje o maior não só do Brasil, mas da América. (...) O Sr. Firmino repetiu mais uma vez que cada uma de nós deve ser assinante de um jornal; que devemos 1er todos os dias um jornal, resultando daí o hábito da leitura, o que por si só já é bastante, que pelo jornal aprendemos Geografia, História, etc; disse ainda muitas outras cousas...
Prefácio*
O Léxico Gramatical, que ora apresento, nao passa de ser a minha gramática portuguesa dicionarizada nesta edição. Conforme se sabe, os índices remissivos facilitam extraordinariamente a consulta dos livros, e o dicionário substitui com vantagem qualquer desses índices. Por isso mesmo o dicionário goza geralmente de maior apreço do que a gramática. Dada a esta a forma daquele, é de esperar que ela se torne igualmente apreciada.
Além disso, o dicionário, pela sua própria organização, nao segue nenhum programa de ensino, ao passo que a gramática, devido à disposição das matérias, equivale a um programa. Ora, o ensino integral da língua nao pode ficar preso a um programa determinado, visto que deve atender às oportunidades oriundas do interesse da classe e do ambiente social.
Entre outros conceitos emitidos sobre a minha gramática, posso desvanecer-me de dois, que procedem de correntes literárias opostas.
A Revista do Brasil, pela palavra autorizada de Monteiro Lobato, que pertence à corrente renovadora dos estudos gramaticais, declara que meu compêndio "apresenta-se com uma clareza e uma singeleza extremas, e é já um bom passo à frente para a criação da gramática brasileira".
A Revista da Língua Portuguesa, dirigida pelo ilustre filólogo Laudelino Freire sob orientação clássica, julga que a minha gramática "é completa, elaborada num ponto de vista propriamente original, e apresenta feição nova, conveniente ao ensino".
Tais conceitos, provindos de origens tão diversas, são bastantes para recomendar o presente trabalho. Seguiu-se nele um plano realmente novo, o qual, pode-se dizer, oferece os seguintes relevos: o sentido das expressões como principal orientador do ensino da língua, o estudo do vocabulário por meio da analogia, a divisão da sintaxe em composição e análise, a leitura de obras constantes de uma biblioteca literária, o desenvolvimento dado à morfologia e à sintaxe, e o reconhecimento da emancipação de nosso idioma.
Tomando por base o sentido das expressões, teremos o melhor critério para resolver os casos gramaticais, ainda os mais controvertidos. A começar pela classificação das palavras e concluir pela debatida questão do se sujeito, tudo se resolverá, desde que nos guiarmos pelo sentido. Quando a este critério queremos superpor outros motivos, então complica-se a questão e surgem as contendas gramaticais, que servem quase sempre para desvirtuar o estudo da língua. Nenhum proveito estimável poderemos auferir da leitura, da análise e da composição, se nesses exercícios não atendermos antes de tudo ao sentido.
'Apêndice ao capítulo "Caminhos da linguagem".
O estudo do vocabulário por meio da analogia está de certo modo preenchido com o livro, que publiquei há pouco tempo sob o título Vocabulário Analógico. Representa ele apenas um subsídio para a elaboração do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, obra justamente reclamada pelo nosso idioma. Outro, que disponha de mais tempo e de maior competência do que eu, realizará algum dia trabalho de tão evidente utilidade.
É deveras estranhável que até hoje tenham as gramáticas menosprezado a composição para a qual não dão entrada em seu texto, quando ela constitui o fim imediato do estudo da língua. Ora, a gramática há de pôr em realce o seu objetivo, que consiste em ensinar a escrever e a falar bem, e daí o dever de metodizar os exercícios de composição, incluindo-se em seu texto. Tal a inovação que adotei.
Tratando da análise, este dicionário coloca a cláusula em seu lugar próprio, como expressão de idéia, e não como proposição, de que ela apenas possui a forma. Assim considerada a cláusula, o período será simples ou composto, não havendo motivo para classificá-lo como complexo. Se a proposição Estimo a tua felicidade forma período simples, também formará período simples a proposição Estimo que sejas feliz, por isso que ambas expressam um só pensamento. Este e outros pontos, elucidados pelo sentido, tornam racional e atraente o ensino da análise.
A leitura metódica de obras literárias ainda não faz parte obrigatória do curso da língua vernácula. Adota-se geralmente a seleta, que de qualquer modo é uma obra fragmentária sem completo valor literário. Por esta forma deixa-se a bel-prazer dos alunos uma das partes essenciais do estudo, e eles ou não se dedicam à leitura ou não aprendem a fazê-la frutiferamente. A biblioteca literária, que se recomenda, introduz no ensino de nossa língua a leitura metódica.
Sem desairar das outras partes, esse léxico ocupa-se amplamente da morfologia e da sintaxe. A copiosa exemplificação, que acompanha o estudo da morfologia, basta para torná-lo verdadeiramente proveitoso. Os fatos sintáticos são tratados com a máxima amplitude e completam-se com uma grande série de particularidades, entre as quais merece especial atenção o uso do infinito.
A língua portuguesa está emancipada. Seu conhecimento não requer o uso do latim. O ensino do vernáculo deve cingir-se à gramática expositiva. Lendo, analisando e compondo durante todo o curso, sob a direção do professor, independentemente do latim, conseguirá a classe falar e escrever com facilidade e correção a língua pátria. De outra sorte, ainda que estude a gramática histórica, não poderá manejar bem a língua aquele que concluiu o curso sem haver compulsado um certo número de boas obras literárias, sem ter feito muitos exercícios de composição, sem estar habilitado na análise.
E a gramática histórica, objetar-se-á. Semelhante estudo deverá fazer parte de um curso superior de letras, cuja criação está sendo exigida pelos créditos da cultura nacional. Freqüentando esse curso depois de haver passado pelo ensino secundário, o aluno estará preparado para compreender o estudo histórico-comparativo da língua vernácula.
Em uma das críticas a meu compêndio, encontra-se o seguinte: "O livro tem um caráter muito de gramática e de guia pedagógico, que lhe desconcerta a estrutura." Basta 1er o meu trabalho com ánimo desprevenido para reconhecer a exageração de tal afirmativa.
A gramática é realmente moldada nos princípios pedagógicos, mas, daí a ser um guia pedagógico vai grande diferença. O método, as classificações, a exemplificação, tudo isso não se adstringe ao fim imediato que reside no conhecimento da língua, mas
visou igualmente ao bom uso desse conhecimento para o bem da sociedade. A pedagogia, que é a teoria da educação, não pode desconcertar a estrutura de uma
gramática, porque esta deve ser um meio educacional. Um dos mais notáveis pedagogis-tas enunciou este conceito: "Não posso fazer idéia da educação sem instrução ;e, inversamente, não reconheço instrução que não seja educativa."
A gramática é instrução, e como tal é um meio educativo para a vida social, a qual não se resume no apuro das expressões, mas principalmente na execução do trabalho e na realização do dever.
Consideramos a gramática não só como a arte de ensinar a língua, senão também como a arte de pensar. Pensar melhor para melhor servir à sociedade.
Firmino Costa
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