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História Da Língua
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Governo FederalPresidenta da República: Dilma RousseffMinistro de Educação: Aloizio MercadanteSecretário de Ensino a Distância: Carlos Eduardo BielschowskyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa
Universidade Federal de Santa CatarinaReitora: Roselane NeckelVice-Reitora: Lúcia Helena Martins PachecoPró-Reitora de Graduação: Roselane de Fátima CamposPró-Reitor de Pesquisa: Jamil Assreuy FilhoPró-Reitor de Extensão: Edson da RosaPró-Reitora de Pós-Graduação: Joana Maria PedroPró-Reitor de Planejamento e Orçamento: Luiz AlbertonPró-Reitor de Administração: Antônio Carlos Montezuma BritoPró-Reitora de Assuntos Estudantis: Beatriz Augusto de Paiva
Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a DistânciaDiretor Unidade de Ensino: Felício Wessling MargottiChefe do Departamento: Rosana Cássia KamitaCoordenador de Curso: Sandra QuarezemimCoordenador de Tutoria: Cristiane Lazzarotto-Volcão
Comissão EditorialTânia Regina Oliveira RamosSilvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos Cristiane Lazzarotto Volcão
Equipe de Desenvolvimento de Materiais
Coordenação: Ane GirondiDesigner Instrucional: Daiana AcordiDiagramação: Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli MichelonCapa: Raquel Darelli MichelonIlustração: Kamilla SouzaTratamento de Imagem: Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli Michelon
Copyright © 2010, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.
Ficha Catalográfica
Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da
Universidade Federal de Santa Catarina.
G635h Gonçalves, Rodrigo Tadeu História da língua / Rodrigo Tadeu Gonçalves, Renato Miguel
Basso. – Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2010.190p. : il. Inclui bibliografia
UFSC. Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância ISBN 978-85-61482-32-9 1. Língua portuguesa – História. 2. Linguística histórica.
3. Sociolinguística. 4. Ensino a distância. I. Basso, Renato Miguel.II. Título.
CDD 806.90(091)
Sumário
Apresentação ...................................................................................... 7
Unidade A - Do Latim ao Português ........................................... 91 Do Indo-Europeu ao Latim: primórdios da história
das línguas ......................................................................................................11
Introdução ..................................................................................................................11
1.1 O desenvolvimento da linguística histórico-comparativa .................12
1.2 O protoindo-europeu e as línguas indo-europeias ..............................13
1.3 Do protoindo-europeu ao latim ..................................................................19
2 Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o português? ......21
2.1 Brevíssima história do latim ..........................................................................21
2.2 Características do latim clássico e do latim vulgar ...............................26
3 A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução .........................41
3.1 Conceituação de România .............................................................................41
3.2 Inovações panromânicas ...............................................................................43
3.3 Influências do substrato, superestrato e adstrato nas línguas românicas ............................................................................................................44
3.4 As línguas românicas .......................................................................................48
Unidade B - História do português ...........................................594 A Península Ibérica e sua formação linguística .................................61
Introdução ..................................................................................................................61
4.1. Catalão .................................................................................................................61
4.2. Espanhol ..............................................................................................................62
4.3 Formação histórico-linguística da Península Ibérica ...........................65
5 O português arcaico ....................................................................................77
5.1 Periodização .......................................................................................................77
5.2 O português arcaico ........................................................................................79
5.3 Textos comentados ..........................................................................................87
6 O português clássico ...................................................................................97
Introdução ..................................................................................................................97
6.1 Características do português clássico .......................................................98
6.2 Texto “Décadas da Ásia” ................................................................................103
7 O Português em Portugal depois de 1500 e a Língua
Portuguesa no mundo ............................................................................107
7.1 O português europeu depois de 1572 ....................................................108
7.2 Português no mundo ....................................................................................111
Unidade C - História do Português na América ................. 1178 Chegada do Português na América: a delimitação das
fronteiras e a periodização do português brasileiro ....................119
8.1 A formação do território nacional.............................................................124
8.2 Panorama linguístico da América portuguesa .....................................128
8.3 A periodização do português brasileiro .................................................133
9 O português brasileiro e suas características ..................................135
9.1 Fase formativa (1550 a 1700) ......................................................................136
9.2 Fase diferenciadora (1700 a 1800) ............................................................137
9.3 Fase de desenvolvimento da escrita e do ensino (1800 a 1950) ....141
9.4 Fase de nivelamento (1950 em diante) ...................................................144
10 Línguas indígenas e africanas na formação do português
brasileiro, sua unidade e diversidade .............................................149
10.1 Indígenas, africanos, europeus e brasileiros: o caldeirão do português do Brasil .....................................................................................149
10.2 Unidade e diversidade no português falado no Brasil....................157
Epílogo ............................................................................................. 167
Conclusão ........................................................................................ 171
Cronologia ...................................................................................... 173
Referências ...................................................................................... 177
Glossário .......................................................................................... 179
Apêndice – Atividades ................................................................ 181
Apresentação
E ste livro tem por objetivo introduzir o leitor ao vasto e diversifica-
do domínio da história das línguas. Nosso objeto aqui é a língua
portuguesa e sua história. Procuraremos entender um pouco so-
bre as origens do português, sua relação com o latim, sua fixação enquanto
língua de um Estado e, posteriormente, seu translado e fixação na América,
na Ásia e na África.
Talvez a característica que mais chame a atenção do leitor seja o fato de que
não é possível entender a história de uma língua sem levarmos em conta os
eventos políticos e históricos pelos quais passou o povo que falava essa língua.
Usando os termos da linguística histórica, para entender a história interna de
uma língua, é imprescindível que levemos em conta sua história externa. É por
isso que em vários momentos apresentamos a situação política de um determi-
nado país, seus interesses econômicos e suas dinâmicas populacionais.
O presente livro está dividido em três unidades. Na primeira delas, traçaremos
uma história da língua latina, de sua origem até o início das línguas români-
cas, salientando as principais características da língua latina, a expansão do
Império Romano e a formação e dissolução da România. Na segunda unida-
de, olharemos para a história da língua portuguesa desde os seus primeiros
documentos até a chegada do português ao Brasil, pontuando cada uma das
grandes mudanças estruturais detectadas ao longo de sua história. Finalmente,
na terceira unidade, apresentaremos a história do português no Brasil, algu-
mas das hipóteses sobre sua formação e ofereceremos um panorama da língua
portuguesa no Brasil de hoje.
Ao longo deste livro, apresentaremos vários excertos e textos antigos que serão
analisados, além de mapas e imagens, para ajudar o leitor a se situar no longo
percurso histórico que o espera nas próximas páginas. No fim deste livro, o
leitor encontrará uma série de atividades sugeridas para a sala de aula; procu-
raremos mostrar com as atividades que estudar a história de uma língua pode
servir como uma ponte interessante para as disciplinas de História e Geografia,
além de despertar o interesse dos alunos sobre as razões de o português ser
como é hoje, ter a ortografia que tem e suas características distintivas. Ain-
da para auxiliar nessas atividades, o leitor encontrará um Glossário com os
História InternaAspectos relacionados às mudanças estruturais que uma língua sofreu ao longo do tempo.
História ExternaEventos de ordem não linguística, políticos, econômicos, bélicos etc. que influenciaram uma dada língua.
principais termos técnicos utilizados e uma Cronologia com as datas mencio-
nadas no texto e outras que são importantes para a história do português.
Antes de terminar a Apresentação, gostaríamos de deixar registrado nosso agra-
decimento à leitura cuidadosa e às várias sugestões da profa. Izete Lehmkuhl
Coelho, que em muito contribuíram para este livro.
Boa leitura!
Rodrigo Tadeu Gonçalves
Renato Miguel Basso
Capítulo 01Do Indo-Europeu ao Latim...
11
1 Do Indo-Europeu ao Latim: primórdios da história das línguasO objetivo deste capítulo é compreender o processo de origem do latim,
a partir de uma análise da história da hipótese do indo-europeu. O capítulo
aborda o processo da história das línguas e da filologia, a fim de
compreender as origens históricas do latim.
Introdução
Ao dizermos que o português é uma língua latina, automaticamen-te indicamos a filiação do português ao latim e também a outras línguas românicas, isto é, às outras línguas que têm como origem o latim.
Do ponto de vista de sua estrutura gramatical e de seu léxico, dizer que o português é uma língua latina significa dizer que encontramos no latim as palavras que deram origem ao léxico do português, mas também que encontramos certas características sintático-morfo-fonológicas es-pecíficas do latim e das línguas românicas no português. Exploraremos a fundo algumas dessas características ao longo deste livro.
Do ponto de vista de sua história, dizer que o português é uma língua
latina, como vimos, significa dizer que o latim é a língua-mãe do portu-
guês. Essa constatação pode levar o leitor mais curioso a se perguntar
não apenas sobre como se deu a passagem do latim ao português, mas
também sobre a origem do latim. Ora, assim como o português se ori-
ginou do latim, podemos perguntar de qual língua se originou o latim.
A resposta a tal pergunta nos leva a um passado muito remoto, do qual
não temos praticamente nenhum registro escrito (e obviamente ne-
nhum falado!) e, portanto, a um terreno de bastante especulação. Não
obstante, a investigação sobre a origem do latim e de outras línguas de
cultura da antiguidade europeia levou linguistas, historiadores e arque-
ólogos a descobertas no mínimo fascinantes.
História da Língua
12
1.1 O desenvolvimento da linguística histórico-comparativa
Desde há muito tempo, diversos estudiosos viram semelhanças en-tre o latim e o grego clássicos que não podiam ser resultado do acaso. No entanto, os estudos dos períodos anteriores ao século XIX eram muito esparsos e baseados em suposições muitas vezes infundadas, como a de que o latim derivava diretamente do grego, e este diretamente do he-braico, a suposta língua original cujo dialeto mais antigo Adão teria fa-lado. Aos poucos, as hipóteses que ligavam o latim e o grego ao hebraico foram sendo descartadas, em grande parte devido ao interesse crescente pelas línguas do Oriente, que passaram a ser mais bem conhecidas pelo Ocidente europeu em virtude dos contatos crescentes entre os povos, derivados de um trânsito comercial e colonialista mais intenso, acirrado pelos movimentos expansionistas europeus.
Muitos estudiosos, principalmente aqueles que participaram dos estudos linguístico-comparativos entre o século XIX e começo do sé-culo XX, descobriram semelhanças também entre diversas línguas da Europa, organizando essas línguas em famílias linguísticas, que, por sua vez, também eram aparentadas entre si. Exemplos mais comuns são jus-tamente as línguas românicas, como o francês, o espanhol, o italiano, o romeno, o português etc., cujo percurso do latim até seu estado moder-no foi documentado através dos mais diversos tipos de texto (políticos, literários, jurídicos etc.), e também as línguas germânicas, como o in-glês, o holandês, o alemão, o islandês, o dinamarquês etc., que descen-dem de uma língua chamada de protogermânico.
O parentesco entre o grego, as línguas latinas (e o latim), as lín-guas germânicas e outras da Europa já estava razoavelmente estabele-cido quando um jurista, filólogo e humanista inglês, Sir William Jones, demonstrou, em 1786, que o sânscrito, uma língua bastante antiga da Índia, era inequivocamente próximo ao latim, ao grego, ao protogermâ-nico e também ao persa, língua falada no Irã. Seu discurso para a Socie-dade Asiática (fundada por ele mesmo em 1784), publicado em 1788, foi considerado o pontapé inicial da Linguística Histórico-Comparativa. Em uma passagem célebre, o filólogo afirmou que:
Para que você possa relembrar como os pes-quisadores estabelece-ram o parentesco entre as línguas, sugerimos a releitura do livro-texto de História dos Estudos
Linguísticos, de Heronides Moura e Morgana Cam-brussi, especialmente o
Capítulo 4 da Unidade A.
Capítulo 01Do Indo-Europeu ao Latim...
13
O sânscrito, sem levar em conta a sua antiguidade, possui uma estrutura
maravilhosa: é mais perfeito que o grego, mais rico que o latim e mais ex-
traordinariamente refinado do que ambos. Mantém, todavia, com estas
duas línguas tão grande afinidade, tanto nas raízes verbais quanto nas
formas gramaticais, que não é possível tratar-se do produto do acaso. É
tão forte essa afinidade que qualquer filólogo que examine o sânscrito,
o grego e o latim não pode deixar de acreditar que os três provieram de
uma fonte comum, a qual talvez já não exista. Razão idêntica, embora
menos evidente, há para supor que o gótico e o celta tiveram a mesma
origem que o sânscrito. (ROBINS, 1983, p.107)
Com tal descoberta, estava aberto o caminho para que o termo “indo-europeu” fosse cunhado, em 1813, pelo polímata inglês Thomas Young. O século XIX foi o período em que uma série de filólogos de-senvolveu gramáticas comparativas entre várias línguas indo-europeias, entre eles Rasmus Rask, Jakob Grimm, Franz Bopp, August Schlegel, Wilhelm Von Humboldt e August Schleicher. Trata-se do primeiro ca-pítulo da história da linguística moderna, que viria a culminar em abor-dagens cada vez mais cientificizantes, como a dos chamados neogramá-ticos do final do século, que abriram caminho para o estruturalismo no início do século XX.
1.2 O protoindo-europeu e as línguas indo-europeias
Entre as realizações mais interessantes dos filólogos/linguistas comparativistas do século XIX estão alguns estudos sobre mudanças fo-néticas das línguas indo-europeias, como as Leis de Grimm, e tentativas de reconstrução do protoindo-europeu, como a de August Schleicher, que inclusive chegou a tentar escrever textos na língua reconstruída.
Irmão de Wilhelm Grimm, com quem escreveu os famosos contos de fadas dos Irmãos Grimm.
Hermann Osthoff e Karl Brugmann são os mais conhecidos.
História da Língua
14
Box 1: Leis de Grimm
Vejamos alguns exemplos famosos de leis de mudança fonética de-
senvolvidas por Jakob Grimm em 1822, em seu livro Deutsche Gra-
-matik (Gramática Alemã):
Consoantes oclusivas surdas do PIE e/ou das línguas mais antigas da
família passam a fricativas surdas nas línguas germânicas, como em
p → f, t → θ.
Consoantes oclusivas sonoras do PIE e/ou das línguas mais antigas
da família passam a oclusivas surdas, como em b → p, d → t.
Consoantes oclusivas aspiradas sonoras do PIE e/ou das línguas
mais antigas da família tornam-se oclusivas sonoras, como em
bh → b e dh → d.
Alguns exemplos de aplicações das Leis de Grimm podem ser vistos
a seguir:
d → t: PIE *dékm(t) “dez”, latim decem, grego antigo déka, sânscrito
daśan → inglês ten, alemão zehn, pronunciado [tze:n]
p → f: PIE *póds “pé”, latim pēs, grego antigo poús, sânscrito pāda →
inglês foot, alemão Fuss
bh → b: PIE *bhréhater- “irmão”, sânscrito bhrātŗ → inglês brother, ale-
mão Bruder
Dos diversos estudos desses filólogos, linguistas, gramáticos com-paratistas e humanistas, foi possível descobrir que o latim e o sânscri-to eram aparentados o suficiente para terem uma origem comum, nos moldes em que dizemos que o francês e o português têm origem no la-tim. A suposta língua que deu origem ao latim, ao grego, ao sânscrito, ao protogermânico etc. foi chamada de “protoindo-europeu”. No entanto, como dissemos, não há praticamente nenhum resquício escrito da pas-sagem do PIE para as línguas da família indo-europeia e sua reconstitui-
Doravante, neste livro, abreviada como PIE.
Capítulo 01Do Indo-Europeu ao Latim...
15
ção é feita com base nas mudanças linguísticas atestadas historicamente e também na comparação entre as diversas línguas indo-europeias. Os estudiosos foram capazes de identificar os ramos da família indo-euro-peia mais antigos, como o anatólico, que se desenvolveu provavelmente por volta de 2000 a.C.; o indo-iraniano, por volta de 1400 a.C.; e o grego por volta de 1300 a.C. ou mesmo antes. Assim, o PIE foi falado prova-velmente antes de 2500 a.C., mas as datações são todas muito difíceis de estabelecer e muito hipotéticas. Para termos ideia da extensão cro-nológica envolvida nas transformações entre as línguas indo-europeias, pode-se dizer que o latim tem origem em torno do século XI a.C. e o sânscrito entre 1500 e 1000 antes de Cristo. Vejamos abaixo exemplos das semelhanças no vocabulário de algumas das línguas indo-europeias, lembrando que em linguística histórica, formas marcadas com asterisco são aquelas que não foram atestadas em documentos, mas reconstruídas a partir de dados da história da mesma língua ou das que derivaram dela; usaremos essa notação neste livro.
Português pai mãe irmão lobo
Latim pater mater frater lupus
Grego Antigo pater meter phrater lykos
Sânscrito pitar matar bhratar vrkas
Espanhol padre madre hermano lobo
Francês père mère frère loup
Inglês father mother brother wolf
Alemão Vater Mutter Bruder Wolf
PIE *phatér *méhater *bhréhater *wlkwos
Podemos ver como as palavras são semelhantes, e as reconstruções do PIE apresentadas, embora pareçam estranhas por causa da notação fonética, são muito próximas das línguas antigas apresentadas cujos da-dos foram atestados, o sânscrito, o grego antigo e o latim.
O quadro a seguir ilustra as principais famílias linguísticas que se originaram do protoindo-europeu:
O símbolo “†” indica que se trata de uma língua que não tem mais falantes nativos, ou seja, de acor-do com a terminologia corrente, trata-se de uma língua morta.
As inscrições mais antigas encontradas datam do século VII, embora Roma tenha sido fundada por Rômulo, segundo as len-das, em 753 a.C.
História da Língua
16
Protoindo-europeu
(†) ramo anatólico (†) assírio, (†) hitita
ramo helênico (†) grego antigo grego moderno
ramo indo-iraniano persa, (†) sânscrito
ramo itálico (†) latimfrancês, romeno, italiano, português, espanhol etc.
ramo céltico galês, gaélico irlandês, gaélico escocês, bretão
ramo balto-eslavo (†) antigo prussiano, (†) proto-eslavo
letão, lituano, russo, tcheco, polonês, ucraniano, croata etc.
ramo germânico (†) protogermânicoislandês, norueguês, sueco, alemão, inglês, holandês, faroês etc.
ramo armênio armênio
(†) ramo tocário
ramo albanês albanês
Podemos ver a extensão da cobertura das línguas indo-europeias em seus espaços de ocupação originais no Mapa 1:
Indo-europeia - Românica
Indo-europeia - Germânica Setentrional
Indo-europeia - Germânica
Indo-europeia - Eslava
Indo-europeia - Báltico
Indo-europeia - Helênica
Altaica- Turcomana
Urálica
Afro Asiática - Semítica
Mapa – As línguas indo-europeias em seus espaços originais. (Adaptado do mapa disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7f/L%C3%ADnguas_da_Europa_por_Fam%C3%ADlia.jpg>. Acesso em: 05 abr. 2010.)
Perceba que outras famí-lias linguísticas também
aparecem no mapa.
Capítulo 01Do Indo-Europeu ao Latim...
17
O indo-europeu não é, obviamente, a única família de línguas do planeta. Línguas como o árabe, o chinês e o turco não são indo-euro-peias e cada uma pertence a uma família linguística, respectivamente, o semítico, o sino-tibetano e o altaico. Os métodos de comparação e reconstituição de línguas que foram empregados para o caso da famí-lia indo-europeia e que resultaram no protoindo-europeu poderiam, a princípio, ser aplicados às outras famílias linguísticas do mundo, in-cluindo certamente as línguas indígenas brasileiras e do resto do conti-nente americano. Qual seria o resultado de tal aplicação? Seria possível reconstituir todas as protolínguas? Se sim, o que isso nos mostraria? Teriam todas as línguas uma mesma origem? Ou talvez não haja paren-tesco entre as protolínguas e a linguagem surgiu em momentos, lugares e com estruturas diferentes nos vários grupos humanos?
Essas são perguntas extremamente interessantes, mas também extre-
mamente complexas e qualquer resposta a elas seria nada mais do que
especulação. Aqueles que defendem a hipótese de que todas as lín-
guas (e protolínguas) descenderam de uma mesma língua ancestral
são chamados de monogenistas; em oposição aos monogenistas estão
os poligenistas, que defendem a ideia de que as línguas não tiveram
um único ancestral. Para complicar ainda mais o quadro, há paleontólo-
gos, linguistas, biólogos e historiadores que defendem que a origem da
língua não está sequer na língua falada como a conhecemos, mas sim
na língua de gestos talvez próxima a que as comunidades de surdos
usam atualmente. Essa hipótese, bastante interessante, abre também
mais um leque de perguntas: seriam as atuais línguas de sinais próxi-
mas a uma ou mais protolínguas? Como proceder a tal investigação?
Supondo que a origem da língua é gestual, como e por que se deu a
passagem para a língua falada?
Como é possível ver, há ainda inúmeras perguntas a serem respondidas
(e feitas) sobre a história e a origem das línguas.
O estabelecimento do turco na família altaica é incerto, mas esta família inclui também o coreano e o japonês, entre outras.
História da Língua
18
Box 2: A fábula de Schleicher
Transcrevemos a fábula que Schleicher escreveu em protoindo-eu-
ropeu, intitulada Avis akvāsas ka (A ovelha e os cavalos):
Avis, jasmin varnā na ā ast, dadarka akvams, tam, vāgham garum
vaghantam, tam, bhāram magham, tam, manum āku bharantam.
Avis akvabhjams ā vavakat: kard aghnutai mai vidanti manum
akvams agantam. Akvāsas ā vavakant: krudhi avai, kard aghnutai
vividvant-svas: manus patis varnām avisāms karnauti svabhjam
gharmam vastram avibhjams ka varnā na asti. Tat kukruvants avis
agram ā bhugat.
Uma tradução aproximada para o português seria:
Uma ovelha que não tinha lã viu cavalos, um puxando uma carro-
ça pesada, um carregando um grande fardo, e um carregando um
homem rapidamente. A ovelha disse aos cavalos: “meu coração me
dói ao ver um homem conduzindo um cavalo”. Os cavalos disseram:
“ouça, ovelha, nossos corações nos doem ao vermos isto: um ho-
mem, o senhor, transforma a lã de uma ovelha em uma vestimenta
quente para si e a ovelha não tem lã”. Tendo ouvido isto, a ovelha
foge para o campo.
Embora vários pesquisadores tenham refinado o tratamento lin-
guístico dado aos termos do protoindo-europeu por Schleicher,
apresentamos esta versão, de 1863, para mostrar que, uma vez que
a reconstituição é feita a partir dos dados das línguas derivadas que
podem ser atestadas através de inscrições (no caso das línguas mor-
tas que deixaram material escrito, como o latim, o grego antigo e o
sânscrito) e daquelas que ainda possuem falantes (como é o caso do
português, inglês, russo, romeno, entre outras), algumas palavras e
morfemas apresentam semelhanças tanto com o latim como com o
português, uma língua já mais afastada. Alguns exemplos são: *avis
do PIE assemelha-se muito com ovis em latim e mesmo com “ovelha”
em português. *Magham, “grande”, deriva o latim magnum, que resul-
ta em formas eruditas portuguesas como “magnitude” e “magnífico”.
Capítulo 01Do Indo-Europeu ao Latim...
19
*Manum assemelha-se com o radical latino homin- “homem”, mas
mais ainda com o inglês man e o alemão Mann. *Agram, “campo”,
deriva a forma latina agrum, que em português também é radical
erudito que podemos encontrar em “agricultura”, “agrícola”, entre
outros. Das formas morfológicas, podemos verificar a terceira pes-
soa do singular do presente do indicativo em *ast, “tem”, que apre-
senta o morfema –t assim como em habet no latim, ou ainda em hat
no alemão. Um estudo sobre o PIE estaria longe do escopo deste
livro, mas maiores informações podem ser encontradas em biblio-
grafia especializada sobre o indo-europeu e línguas derivadas dele
(veja-se, por exemplo, Mallory; Adams, 2006).
1.3 Do protoindo-europeu ao latim
Uma história do protoindo-europeu demandaria muito mais do que pretendemos com este livro, mas algumas características impor-tantes da passagem dos dados hipotéticos reconstruídos para o que conhecemos do latim serão importantes para entender alguns para-lelos entre esse movimento e os movimentos posteriores da passagem do latim ao português.
Na morfologia, podemos verificar alguns fenômenos interessantes de simplificação ocorridos no percurso PIE-latim. Por exemplo, o PIE declinava seus substantivos em número e gênero, como em português, mas também em caso, como em latim, grego, sânscrito e algumas lín-guas modernas como o russo e o alemão. Trata-se da flexão morfoló-gica relacionada com funções sintáticas, como a que vemos ainda nos resquícios de morfologia casual em português nos pronomes pessoais “eu” (forma de sujeito) e “me”. Dizemos “eu vi o cachorro” e “o cachorro me viu” com formas diferentes para o pronome “eu” por causa do mes-mo fenômeno. Considera-se que o PIE possuía oito casos gramaticais, sendo eles o nominativo (caso basicamente de sujeito), acusativo (caso do objeto direto, como o “me” do português), o vocativo (o caso usado quando chamamos um interlocutor), o genitivo (caso de posse, como o genitivo woman’s “da mulher” do inglês), o dativo (caso do objeto indi-
Forma átona que serve, por exemplo, como obje-to; no próximo capítulo exploraremos mais a fundo o conceito de caso e suas manifestações.
História da Língua
20
reto), o ablativo (caso usado geralmente para denotar afastamento espa-cial, proveniência, entre outras coisas, como em “ele veio da fazenda”), o locativo (caso que se usava para dizer algo como “estou em casa”) e o instrumental (caso usado para especificar o meio ou o instrumento que se usou para fazer algo, como em “ele quebrou a porta com o machado”).
No próximo Capítulo, explicaremos melhor o funcionamento dos casos
em latim, mas, por ora, é importante saber que é seguro afirmar que o
PIE possuía esses oito casos, mas na passagem para o latim sobrevive-
ram apenas os seis primeiros, de modo que o locativo e o instrumental
tiveram seus usos acolhidos pelo ablativo, que passou a ser um caso
bastante polivalente. Alguns poucos exemplos esparsos de locativo
são encontrados em latim, mas basicamente o sistema de casos latino
apresenta: o nominativo, o vocativo, o acusativo, o genitivo, o dativo e
o ablativo. Como um exemplo de derivação diferente do PIE para uma
língua clássica, o sânscrito antigo manteve os oito casos listados acima.
Outra característica interessante para este panorama é a da flexão de número dos nomes. O PIE, assim como o grego antigo, flexionava os nomes em singular, plural e dual. Este último número denota dois obje-tos ou elementos. Assim, se “casa” significa basicamente “uma casa” em oposição a “casas”, que podemos entender como “mais de uma casa”, o PIE e o grego ainda tinham uma flexão para dizer “duas casas”. O latim não conservou a categoria do dual como flexão dos nomes, que sobre-viveu apenas em formas como duo, “dois”, ambo, “ambos”, que também temos em português e que denotam somente pares de objetos.
Há várias características do PIE que foram transmitidas ao latim diretamente, como a terminação -m de acusativo singular, que deriva do *-m PIE. Outro exemplo seria o *-a, terminação de neutro plural do PIE que aparece exatamente dessa forma em latim. Se você já estudou latim, seria interessante lembrar ou retomar o que viu.
Isso não significa, de modo algum, que essas
sejam as mudanças mais importantes nem as úni-
cas que ocorreram do PIE para o latim.
Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?
21
2 Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o português?Neste Capítulo, fazemos uma breve história do latim, identificando as
diferenças básicas entre o que chamamos de latim clássico e latim vulgar, bem
como entre seus períodos históricos, como o latim arcaico e o latim tardio.
Além disso, avaliamos algumas diferenças básicas entre as estruturas do latim
clássico e vulgar.
2.1 Brevíssima história do latim
O latim era a língua falada na região central da Itália, chamada de Lácio, durante o primeiro milênio antes de Cristo e que, juntamente com o Império Romano, estendeu-se por grande parte da Europa, pelo norte da África e por diversas regiões da Ásia, até se transformar, através do curso natural das línguas, em dialetos incompreensíveis entre si, que acabaram dando origem às línguas românicas. Para entendermos a his-tória do português, será necessário compreender o percurso que o latim trilhou até se diferenciar em línguas românicas, especialmente porque a língua que resultou nos romances e nas línguas românicas modernas
Bretanha
Espanha
Africa
Italia
RomaMacedonia
Grecia
Asia Menor
Mar Negro
Judeia
Egito
Rio Nilo
Mar Mediterraneo
Gália Mar Cáspio
Mar Vermelho
Oceano Atlantico
Mapa – O Império Romano no seu apogeu. (Adaptado do mapa disponível em: <http://wps.ablongman.com/wps/media/objects/262/268312/art/figures/
KISH106.jpg>. Acesso em: 05 abr. 2010.)
História da Língua
22
não foi o mesmo latim que chamamos de clássico hoje, mas sim o latim falado pelas pessoas comuns, no dia a dia, nas mais diversas interações: o chamado latim vulgar.
Para termos uma ideia do ímpeto expansionista do Império Roma-no e de seu poderio, vejamos no mapa da página anterior as regiões que pertenceram a ele durante seu apogeu; nunca é demais dizer que o latim era levado a todas as regiões conquistadas.
O latim que normalmente aprendemos hoje corresponde à variante literária e estilizada de um período muito importante para a história do Ocidente: o período que, de maneira geral, compreende os séculos I a.C. e I d.C. Nesse período, grandes autores escreveram obras literárias que ajudaram a moldar as bases culturais, políticas, sociais, filosóficas e religiosas da Europa e, consequentemente, do mundo ocidental. Den-tre esses autores, podemos destacar o poeta Virgílio, que, entre outras obras, escreveu a Eneida no final do século I a.C. Nesse poema, Virgílio narra as origens históricas e mitológicas da grandiosa Roma, governada, no seu tempo, por Augusto. Após longas décadas de guerras civis, havia sido declarado imperador em Roma, e criaria um período de paz e pros-peridade para a capital de um Império que, se já vinha se expandindo enormemente ao longo dos séculos precedentes, levaria as fronteiras de seus domínios para lugares tão distantes quanto as Ilhas Britânicas, a costa do Norte da África (incluindo o Egito), e vários territórios do atual Oriente Médio, até as bordas do Mar Negro.
Estudamos o latim por meio de seus registros escritos, que são dos mais
variados tipos, como inscrições em muros, monumentos fúnebres, do-
cumentos transcritos e copiados em várias épocas, citações de textos
mais antigos em textos de autores mais recentes, entre outras fontes.
Assim, há documentos de vários períodos, e há, obviamente, escassez
maior de registros escritos de estágios mais antigos da língua. A história
do latim que faremos aqui é, portanto, bastante resumida e de caráter
didático.
Virgílio sentado entre as musas Clio, da história, e Melpômene, da tragédia. Sousse, séc. III d.C.
De nome Gaio Júlio César Otaviano, Augusto rece-
beu esse título quando se tornou o primeiro impera-
dor de Roma. Nasceu em 63 a.C. e morreu no ano 14
da nossa era. Sob seu im-pério, cessam quase cem
anos de guerras civis entre os romanos, em especial a
mais importante, travada entre seu tio, Júlio César, e
Pompeu.
Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 a.C.
perto de Mântua, na Gália Cisalpina, e morreu no ano
19 a.C.
Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?
23
2.1.1 Latim arcaico
Os primeiros registros do latim escrito encontrados datam de VII ou VI a.C. Mais tarde, por volta do século III a.C., começam a ser pro-duzidos textos literários em latim, em grande parte através de um pro-cesso de assimilação da cultura e literatura gregas do período.
Roma, já então uma potência, conquistava territórios de vários fun-dos culturais diferentes, e, em pouco tempo, por volta do século II a.C., o Mar Mediterrâneo já era praticamente dominado pelos romanos.
É desse período, por exemplo, o texto literário mais antigo do qual temos notícia escrito em latim: uma tradução da Odisseia de Home-ro feita pelo escravo grego Lívio Andronico para propósitos educacio-nais. Do texto de Lívio sobreviveram apenas alguns fragmentos, e temos acesso a menos de cem versos da obra completa. Nesse período, ainda, outros autores produziram textos mais ou menos adaptados da tradição grega, como as comédias de Plauto e Terêncio, de gosto popular, que se-guem a tradição da Comédia Nova grega, e as tragédias (em grande par-te perdidas) de Névio e Ênio, por exemplo. Seguindo o caminho aberto por Lívio, Névio e Ênio também escrevem os primeiros textos épicos em latim, dos quais, infelizmente, também restaram apenas fragmentos. O latim desse período é ainda considerado menos polido e estilizado do que o que viria a ser utilizado no período seguinte, quando a língua literária é levada ao seu ápice criativo.
2.1.2 Latim clássico
Convencionou-se chamar de latim clássico o estilo literário culto da língua ao longo do primeiro século a.C. até o início do primeiro século da Era Cristã. São desse período a prosa elaborada do político, filósofo e orador Cícero; a poesia lírica e a épica nacional de Virgílio, com as suas Bucólicas e a sua Eneida; e a lírica amorosa de Catulo, Propércio, Tibu-lo, Horácio e Ovídio, além de textos de historiadores como Tito Lívio. Em geral, o latim que ensinamos hoje em dia é a língua literária desse período, tanto por causa da beleza do estilo cuidadosamente trabalha-do desses autores quanto pelo fato de que grande parte do corpus mais substancial dos textos clássicos é literário, o que nos deixou sem muito
A Comédia Nova grega surge no período da virada do século IV para o III antes de Cristo e baseia--se em tramas familiares, convencionais, com perso-nagens caricaturais, como o velho imbecil, seu filho sem responsabilidades e, em geral, apaixonado por uma moça que não pode se casar com ele, o escravo sagaz do velho que ajuda o filho em suas desventu-ras etc. O principal autor grego dessa tradição é Menandro.
Estátua do imperador Augusto. Museu do Vaticano
História da Língua
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acesso aos outros registros linguísticos do período. Ao contrário do que se pensa, não é do latim clássico que as línguas românicas se desenvol-veram, mas sim das variantes faladas ao longo da história do latim.
2.1.3 Latim culto
O latim culto era a variedade falada pela classe culta de Roma. Esse dialeto era a base do latim clássico, a variante literária, mas não se confunde com ela. O latim culto era regido pelas mesmas regras gramaticais através das quais estudamos latim, mas certamente muito menos estilizado do que a língua literária. Documentos escritos nessa variedade linguística são menos comuns, mas é possível encontrar esse tipo de registro, por exemplo, em cartas de autores antigos, como as de Cícero para seu irmão ou as de Sêneca para sua mãe, nas quais a estilização e o trabalho estético consciente com a linguagem são menos intensos, ainda que presentes. Nas cartas, portanto, temos acesso ao dialeto que as pessoas cultas escreviam quando não estavam preocupa-das com a criação estética.
2.1.4 Latim vulgar
A variedade do latim chamada de latim vulgar é a língua do povo romano em geral. Os registros dessa língua são mais difíceis de encon-trar, pois não se escrevia nessa variante de propósito, mas dão testemu-nhos muito interessantes da evolução do latim. As inscrições encontra-das em muros, em banheiros públicos, e até mesmo em obras literárias que tentavam retratar a variedade linguística nos mostram uma língua viva, muito frequentemente aberta às mudanças que ocorrem natural-mente nas línguas, especialmente em se tratando da língua de um im-pério que se espalhou por regiões com substratos linguísticos bastante diferentes.
Um texto extremamente interessante é o chamado Appendix Pro-bi, anônimo, provavelmente datado do século III a.C., que se constitui simplesmente de uma lista na forma de “X non Y”, que funcionaria para evitar que os falantes usassem as formas consideradas incorretas, Y, e usassem as formas cultas, X. Um dos exemplos interessantes do Appen-dix é a linha: auris non oricla. Essa linha nos diz muita coisa sobre como
Um exemplo de obra literária que retrata varian-
tes do latim é o romance chamado Satyricon, de
Petrônio, autor do século I d.C., que apresenta longas
passagens que tentam simular a língua do povo
de Roma.
Sobre os substratos linguísticos das regiões romanizadas, veja-se o
Capítulo III.
Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?
25
as pessoas falavam e sobre como a língua seguia seu curso de mudança natural. A forma auris, em latim culto, que significa “orelha”, na fala po-pular possivelmente recebia o sufixo diminutivo –cula, resultando em auricula, “orelhinha”. Daí para a forma oricla, que deveria ser evitada, temos a mudança do ditongo au para simplesmente o, e a queda da vo-gal u entre c e l.
Ao estudarmos a passagem do latim para o português, veremos que
é sistemática e regular essa mesma mudança de ditongos a vogais
plenas. Além disso, veremos que frequentemente formas como –cla
resultam em “-lha” e que vogais como i podem resultar em e. Assim,
“orelha” em português descende diretamente de auris ou de oricla?
Parece claro que, ao menos nesse caso, a instrução do Appendix não
funcionou. Quase vinte séculos depois, sobrevive a forma “errada”!
Curiosamente, como vimos acima, oricla já era uma forma diminuti-
va, então, etimologicamente, quando dizemos “orelha”, remetemo-
-nos historicamente ao jeito de dizer “orelhinha” em latim, seguindo
o estilo do dialeto popular latino. O mesmo se dá com a nossa pala-
vra “abelha”, que deriva do latim apicula, diminutivo de apis, o que
mostra que o diminutivo em latim vulgar era bastante utilizado e
que várias formas das línguas românicas derivam de substantivos
em sua forma diminutiva.
Curiosamente, a pronúncia de au como o, que já ocorria em latim, como quando o próprio Cícero escreveu oricula em suas cartas, em tom jocoso, portanto já fazendo parte do chamado sermo vulgaris ou plebeius (língua vulgar ou do povo, denominação do próprio Cícero), acaba se transformando em um fato fonético na passagem do latim vulgar para as línguas românicas.
É fundamental, portanto, entender que o conceito de latim vulgar ul-
trapassa fronteiras temporais ou geográficas e que os exemplos de tex-
tos escritos nessa variante do latim são colhidos ao acaso, já que não
se escrevia dessa forma de propósito. Assim, o material do qual tiramos
conclusões é esparso, inconstante e muito variado em sua natureza.
De onde vem, por exem-plo, “auricular” em portu-guês. Essa é uma palavra que, como foi muito frequente na história do português, foi empresta-da do latim muito tempo depois de a forma “orelha” já estar em uso pelos falantes de português. Esse tipo de empréstimo é considerado “erudito”, pois os falantes voltam ao latim para recuperar formas que, quando de-pois acolhidas pela língua, vivem lado a lado com as formas populares que já existiam. Os exemplos são muitos, como a forma popular “maduro” e a for-ma erudita “maturidade”, vindos do latim maturus, e a forma popular “pai” que sobrevive juntamen-te com a forma erudita “patronímico”, ambos do latim pater, patris.
História da Língua
26
2.1.5 Latim tardio
Após o período do latim clássico, o latim continuou sendo usado como língua do Império Romano, que cresceu cada vez mais, e poste-riormente tornou-se a língua oficial da Igreja Católica ocidental. Assim, ao longo de muitos séculos, o latim foi usado como língua universal para relações internacionais, para a ciência, para administração do Império e da Igreja, e, durante a Antiguidade e a Idade Média, tudo que fosse importante era escrito em latim. Aos poucos, as comunidades foram de-senvolvendo seus dialetos de forma que se afastassem mais e mais do la-tim, dando origem a línguas diferentes, mas a língua escrita continuava a seguir, na medida do possível, os padrões do latim culto, de forma que temos muito material escrito em latim “culto” por falantes nativos de outras línguas ou de outras variedades do latim. Esses registros escritos são bastante abundantes. Como exemplo, temos desde a tradução latina dos textos bíblicos, a Vulgata, vertida por São Jerônimo para o latim nos fins do século IV, até os documentos portugueses de administração e legislação, passando pela filosofia medieval e renascentista.
Muito do que se considera latim tardio, com certa frequência, foi es-
crito por falantes de dialetos já bastante afastados do latim culto
ou falantes de outras línguas plenamente desenvolvidas. Assim, é
muito comum encontrarmos traços de latim vulgar nos textos des-
ses períodos, mesmo quando os autores pretendiam escrever em la-
tim culto. As fontes do latim vulgar incluem, portanto, textos tardios
como a Vulgata, as vidas de Santos, os textos de Editos e Concílios
da Igreja, entre outros. Mais uma vez, é importante ressaltar que as
fronteiras entre as variedades linguísticas do latim são muito difu-
sas, por isso muito cuidado é necessário ao tratar dessa questão.
2.2 Características do latim clássico e do latim vulgar
Uma vez que seria muito complexo e muito distante dos objetivos desse livro apresentar um panorama vasto da estrutura do latim clás-
Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?
27
sico, esta sessão apresentará as características mais importantes do la-tim vulgar em contraste com o clássico para entendermos a história das línguas românicas, especialmente a do português. Os fenômenos com que lidamos aqui são relativamente comuns a quase todos os testemu-nhos do latim vulgar encontrados, e serão ilustrados na sequência com algumas passagens do já citado Appendix Probi. Selecionamos apenas algumas características do latim vulgar para comparar com o latim clás-sico, e mais detalhes poderão ser obtidos em Castro (2006), Ilari (1992) e Renzi (1982), por exemplo. As características serão apresentadas nos domínios da sintaxe, morfologia, fonologia e léxico.
2.2.1 Sintaxe
a) A ordem de palavras do latim clássico era relativamente livre, uma vez que a estrutura da língua permitia variações comple-xas, que se aliavam à estilização dos textos literários, resultando em textos que apresentam bastante variedade de ordem. Isso se devia ao fato de que a sintaxe não dependia apenas da ordem das palavras na oração, mas também da característica morfo-lógica dos casos. No entanto, a ordem básica, ou não marcada, da oração era sujeito – objeto/complemento – verbo, ou SOV. Assim, ao dizer uma frase como “Pedro vê Paulo”, um romano escrevendo em latim clássico utilizaria a ordem Petrus Paulum videt. A ordem fundamental das palavras no latim vulgar passa a ser sujeito – verbo – objeto/complemento, ou SVO. Essa ten-dência será adotada por todas as línguas românicas.
b) A ordem de palavras no sintagma nominal não marcada no latim clássico era determinante – determinado, como quando um substantivo é modificado por um adjetivo: felix homo, “ho-mem feliz”. No latim vulgar e nas línguas românicas derivadas, a ordem básica passa a determinado – determinante, como em homo felix. Assim como com relação à ordem fundamental da frase, o latim clássico apresentava algumas variações nas pos-sibilidades dessa ordem, dependendo do tipo de determinante. Contudo, no latim vulgar a ordem passa a ser mais fixa.
c) O latim clássico, como já dissemos, apresentava seis casos gra-maticais para as palavras das classes nominais (substantivos,
História da Língua
28
adjetivos e pronomes). Os casos se realizavam através de termi-nações morfológicas específicas que funcionavam para marcar as funções sintáticas das palavras na oração. Para exemplificar-mos o funcionamento dos casos, vejamos as seguintes orações:
1) Pedro vê Paulo.
2) Paulo vê Pedro.
Essas duas orações dizem coisas bastante diferentes, pois cada uma representa um evento diferente: na primeira, não se pode afirmar que Paulo também vê Pedro; e, na segunda, o contrário se dá. Isso acontece em português em virtude da ordem das palavras, pois a estrutura do evento de o sujeito ver o objeto depende em grande parte da posição do sujeito antes do verbo e do objeto depois do verbo. Em línguas com sistemas de casos plenamente desenvolvidos, como o latim, o sujeito da oração terá que ser marcado com o caso nominativo e o objeto com o caso acusativo. Assim, em latim clássico, as duas orações vão apresentar terminações diferentes para os nomes, como podemos ver a seguir:
1a) Petrus Paulum videt.
2a) Paulus Petrum videt.
Como se pode observar, temos duas formas para cada nome, Petrus (sujeito) e Petrum (objeto), nos casos nominativo e acusativo, respecti-vamente. A consequência básica desse sistema é que a ordem de pala-vras não determina sozinha a estrutura sintática da oração, de modo que (1a) pode ser reescrita em várias ordenações diferentes sem alterar o significado básico da oração:
1a) Petrus Paulum videt = Paulum Petrus videt = Paulum videt Petrus = videt Paulum Petrus = “Pedro vê Paulo”.
Em português, o único resquício do sistema de casos é encontrado nos pronomes pessoais, de modo que “eu” é a forma de nominativo e “me” é a forma de acusativo, seguindo a declinação nominal latina, em que havia ego (nominativo), me (acusativo), e mihi (dativo, que resultou em mim no português). Não temos problema para formar frases como “Pedro me viu” e “Eu vi Pedro”, por exemplo, e perceber que “eu” é o su-jeito da primeira e “me” é o objeto da segunda. Também não trocamos as formas, como “Pedro eu viu” e “Me vi Pedro”. A única diferença é que, em latim clássico, todos os substantivos, adjetivos e pronomes se flexio-
Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?
29
navam em seis possíveis casos, no singular e no plural, em um sistema um pouco mais complexo do que esse descrito.
Os outros casos, já mencionados no capítulo anterior, eram o voca-tivo, usado para interpelar o interlocutor, como em Petre, huc veni!, “Ó Pedro, venha cá!”; o genitivo, para indicar basicamente posse, como em exercitus Petri fortis est, “O exército de Pedro é forte”; o dativo, que deno-ta normalmente complementos indiretos do tipo Petro donum do, “Dou um presente para Pedro”; e o ablativo, que pode significar várias coisas, entre elas afastamento a partir de um local visto como ponto de referên-cia, como em abi Petro, “sai de perto do Pedro”, instrumento/modo, como em hoc scivi Petro, “eu soube disso através de Pedro”. Apesar de a forma de dativo e ablativo serem a mesma para o substantivo Petrus, diferentes classes de substantivos apresentam formas diferentes para os casos.
A questão relevante aqui é que o latim vulgar foi perdendo os qua-
tro últimos casos, de modo que o sistema básico passou a ser uma
oposição entre nominativo e acusativo. Os casos anteriores foram
sendo substituídos pelo acusativo com preposições, como de + acu-
sativo no lugar do genitivo, a + acusativo no lugar do ablativo, por
exemplo. Esses dois usos preposicionados anteciparam também o
desenvolvimento das línguas românicas, que utilizam preposições
em substituição aos casos tradicionais. O latim clássico também
apresenta preposições, e, normalmente, cada uma delas deveria ser
acompanhada de um caso específico. Nos casos das preposições de
(que significava basicamente “a respeito de”) e a (ou ab, antes de
palavra iniciada por vogal, significando “para longe de”), o caso obri-
gatório seria o ablativo. Assim, uma explicação possível para a perda
dos casos é que, na passagem para o latim vulgar, anteriormente
a essa perda, as preposições tiveram suas regências alteradas, com
uma generalização do uso do acusativo após a maioria das prepo-
sições. Isso gerou confusão nos usos de ablativo, genitivo, dativo e
acusativo, o que causou progressivamente a menor necessidade da
existência dos casos morfologicamente marcados, resultando no
uso cada vez menos frequente de casos que não fossem nominativo
e acusativo.
História da Língua
30
Assim, o sistema casual do latim vulgar apresentava-se muito mais enxuto com relação ao do latim clássico, como podemos ver na compa-ração entre dois paradigmas do mesmo substantivo:
Latim clássico dominus, i (segunda declinação, masculino, “senhor”):
Caso Singular PluralNominativo dominus domini
Vocativo domine dominiAcusativo dominum dominosGenitivo domini dominorumDativo domino dominis
Ablativo domino dominis
Latim vulgar dominus, i, “senhor”:
Caso Singular PluralNominativo dominus dominiAcusativo dominum dominos
d) O latim clássico não possuía a classe de palavras dos artigos definidos e indefinidos como temos em português. Os subs-tantivos poderiam receber determinação através de pronomes, e alguns deles significavam coisas próximas àquelas que signi-ficamos com os artigos, como o pronome quidam, “um certo”, como em quidam Petrus, “um certo Pedro”, “um tal de Pedro”. No latim vulgar, contudo, alguns pronomes demonstrativos co-meçam a ser usados com funções próximas às do artigo defi-nido, como o pronome ille, illa, illud (“aquele, aquela, aquilo”), que passa a cumprir a função de artigo definido “o, a, os, as”, ipse, ipsa, ipsum (“o mesmo, a mesma”), que também é encon-trado com o sentido mais próximo de “o, a, os, as”; e o pro-nome unus, una, unum, anteriormente numeral, que passa a ser usado como artigo indefinido “um, uma, uns, umas”. Como veremos nos próximos capítulos, é a partir desses usos específi-cos do latim vulgar que as línguas românicas desenvolvem seus artigos definidos e indefinidos.
Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?
31
2.2.2 Morfologia
a) Declinações nominais são conjuntos de nomes com a mesma característica morfológica, como os nossos nomes cujo radical termina em –a, –o, ou –e (“casa”, “carro”, “estudante”). As decli-nações nominais em latim clássico eram cinco:
Ӳ a primeira, dos nomes de tema em –a, normalmente femini-
nos, mas também alguns masculinos (ex. luna, “lua”, feminino,
e poeta, “poeta”, masculino);
Ӳ a segunda, de tema em –o, normalmente masculinos, mas
também neutros e alguns femininos (ex. dominus, “senhor”,
masculino, ficus, “figo”, “figueira”, feminino, somnium, “sonho”,
neutro);
Ӳ a terceira, nomes de tema terminado em consoantes ou em
–i, dos três gêneros (ex. fur, “ladrão”, masculino, aedis, “tem-
plo”, “casa”, feminino, nomen, “nome”, neutro);
Ӳ a quarta, de tema em –u, dos três gêneros, com neutros mais
raros (ex. exercitus, “exército”, masculino, manus, “mão”, femini-
no, cornu, “chifre”, neutro;
Ӳ a quinta, de tema em –e, normalmente femininos e raramen-
te masculinos (ex. res “coisa”, feminino, dies, “dia”, feminino ou
masculino).
Na passagem do latim clássico para o latim vulgar, observa-se uma simplificação dos paradigmas de declinação, antecipando os sistemas nominais das línguas românicas, que manteriam as declinações vulga-res. Assim, temos o desaparecimento da quarta e da quinta declinações e o fim dos femininos em –us, simplificando o sistema para algo mais próximo do que temos em português:
Ӳ femininos em –a;
Ӳ masculinos e neutros em –us;
Ӳ comuns (masculinos e femininos) em –e.
História da Língua
32
b) Juntamente com a simplificação das declinações nominais, desaparece o terceiro gênero dos nomes, o neutro, como pu-demos perceber pelo resultado da declinação nominal simpli-ficada acima. O gênero neutro distinguia-se morfologicamen-te do masculino e do feminino, mas, com a simplificação das declinações e com a dificuldade de separação formal entre o gênero neutro em oposição ao masculino e ao feminino, houve a incorporação daquele às declinações restantes. Assim, nomes como templum, neutro da segunda declinação em latim, pas-sam a masculino no latim vulgar, já que os temas em –o, que se realizam no nominativo como –us ou –um, se generalizam como fundamentalmente masculinos.
c) Quanto ao sistema verbal, várias mudanças foram percebidas na passagem para o latim vulgar. Entre as mais importantes, podemos mencionar a simplificação dos paradigmas de conju-gação verbal. O latim clássico possuía cinco modelos de conju-gação, como podemos ver:
Ӳ a primeira conjugação, dos verbos com vogal temática a:
amo, amas, amare (amar);
Ӳ a segunda, dos verbos com vogal temática e: habeo, habes,
habere (possuir, ter);
Ӳ a terceira, dos verbos sem vogal temática, como: dico, dicis,
dicere (dizer);
Ӳ a quarta, dos verbos com vogal temática i, como: audio, au-
dis, audire (ouvir);
Ӳ a mista, dos verbos sem vogal temática, mas com conju-
gação parecida com a quarta: capio, capis, capere (tomar,
capturar).
As diferenças fundamentais entre as cinco conjugações são o fato de que as conjugações temáticas ou vocálicas (primeira, segunda e quar-
Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?
33
ta) possuem vogais longas na posição final do tema, o que faz que ela seja acentuada quando paroxítona (ou seja, habére tem acento tônico na segunda sílaba, enquanto dícere tem na primeira). Alguns verbos de conjugações que não possuíam vogal temática (a terceira e sua deriva-da, a mista) foram sendo incorporados pelas temáticas, de modo que, no latim vulgar, o sistema de conjugação verbal se simplifica para três modelos: os verbos de tema em a, os de tema em e e os de tema em i, com alguns verbos ainda na terceira conjugação. Outros verbos, ante-riormente não pertencentes a nenhuma conjugação por causa de suas irregularidades, regularizam-se e passam a pertencer a alguma das con-jugações. Podemos citar como exemplos:
Ӳ fídere (confiar), de fido, da terceira conjugação, passa a fidá-
re, da primeira;
Ӳ cádere (cair), da terceira conjugação, passa a cadére, da se-
gunda;
Ӳ fúgere (fugir), da terceira conjugação, passa a fugíre, da
quarta;
Ӳ posse, do verbo irregular possum (poder), regulariza-se
como pótere, da terceira conjugação.
d) Quanto à categoria de voz verbal, o latim possuía as vozes ativa, passiva e depoente. A voz depoente, derivada da voz média do PIE, apresentava-se com morfologia de voz passiva e significa-do de voz ativa, e os verbos da voz depoente não poderiam ser flexionados em duas formas, ativa e passiva, como os verbos normais. Assim, um verbo regular como amo, “amo”, poderia receber morfologia de voz passiva, amor, para significar “sou amado”. Os verbos depoentes, por sua vez, só apresentavam a forma depoente, como minor, “eu ameaço”, ou morior, “eu mor-ro”, mori, “morrer”. No latim vulgar, a voz depoente desapare-ce, e os verbos que anteriormente se apresentavam nesta voz regularizam-se, como morio, “eu morro”, e moríre, “morrer”.
O acento tônico não era marcado ortograficamen-te em latim, e o utilizamos aqui apenas para fins didáticos.
História da Língua
34
e) A morfologia dos tempos verbais também sofre mudanças substanciais, como o desenvolvimento de um futuro perifrásti-co no lugar do futuro sintético do latim clássico. Em latim clás-sico, o futuro dos verbos se fazia da seguinte forma: para um verbo como amo, o futuro do presente do modo indicativo era feito com o infixo modo-temporal –bo, –bi, como em amabo, amabis, amabit, “amarei, amarás, amará”. Esse modelo era apli-cado aos verbos da primeira, segunda e quarta conjugações. Para a terceira conjugação e sua derivada mista, o futuro era feito com os infixos –a e –e, como em dicam, dices, dicet, “direi, dirás, dirá”. O latim vulgar deixa de usar essas flexões para o futuro e desenvolve um futuro analítico (com perífrase verbal) formado por infinitivo + habeo: amare habeo substitui amabo e dicere habeo substitui dicam. É desse futuro analítico do latim vulgar que as línguas românicas desenvolverão seus tempos futuros, como ocorreu em português, inicialmente com o au-xiliar “hei” (derivado de habeo) após o infinitivo, como “cantar hei”, passando a formas como “hei de cantar”, até chegar em “cantarei”.
f) Várias outras mudanças ocorreram, como a perda da voz passi-va sintética, a perda de alguns tempos em alguns modos (como o perfeito do subjuntivo), o desenvolvimento do modo condi-cional, que não existia em latim clássico, através da perífrase amare habebat, “deveria amar”, “amaria”.
2.2.3 Fonologia
a) Em latim clássico, as vogais poderiam ser, além de átonas ou tônicas, longas ou breves. Assim, uma vogal a longa seria per-cebida diferentemente de sua correspondente breve, como se se tratasse de uma nota musical mais longa em oposição a uma mais breve. Convenciona-se marcar essa diferença na escrita através dos sinais diacríticos “mácron” para as longas (ā, ē, ī, ō, ū) e “braquia” para as breves (ă, ĕ, ĭ, ŏ, ŭ). A diferença en-tre as vogais longas e breves era fonológica, ou seja, um par de palavras como ĕst e ēst apresentava significados diferentes (a primeira, “é”; a segunda, “come”).
De amor, “sou amado”, o latim vulgar fez amatus
sum, “sou amado”, forma que anteriormente signifi-
cava “fui amado”.
Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?
35
O latim vulgar perde a característica fonológica da duração das vo-gais e simplifica o sistema vocálico da seguinte maneira:
Latim Clássico ă ā ĕ ē ĭ ī ŏ ō ŭ ū
Latim Vulgar a
ε (e aberto)
e (e fechado) i ɔ
o (o fechado) u
O sistema vocálico do latim vulgar é aquele que vai servir de base
para as línguas românicas, e, especialmente no caso do português,
excluídas as vogais nasais que irão se desenvolver em outro mo-
mento, o sistema vocálico do latim vulgar pouco se altera.
Com relação ao sistema fonológico como um todo, a consequência da perda da quantidade é a fixação do acento de intensidade com valor distintivo, como na distinção entre pérvenit e pervénit, do latim vulgar, que, em latim clássico, se dava em termos de vogal longa versus breve: pervĕnit e pervēnit (“chega” e “chegou”).
b) Com relação ao sistema consonantal, ocorreram mudanças muito profundas. Isso fica claro ao compararmos o sistema do latim clássico com o sistema postulado como sendo o do latim vulgar, conforme apresentado por Ilari (1992, p.77-87):
Latim Clássico
bilabiais lábio-dentais dentais-alveolares palatais velares uvularesoclus. surdas p t k, kw
oclus. sonoras b d g, gw
nasais m nlaterais l
vibrantes rfric. surdas f s h
fric. sonorassemivogais w j
*[kw] e [gw], grafados como qu e gu são consoantes labiovelares.
História da Língua
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Latim Vulgar
bilabiais lábio-dentais dentais-alveolares palatais velares uvularesoclus. surdas p t k
oclus. sonoras b d g nasais m n
laterais lvibrantes r
fric. surdas f s hfric. sonoras vsemivogais w j
O contraste entre as duas tabelas acima apenas mostra uma pri-meira diferenciação entre o sistema consonantal do latim vulgar com relação ao latim clássico; mas, obviamente, as mudanças não pararam por aí. Podemos dizer, grosso modo, que as línguas românicas alteram o sistema do latim vulgar representado logo acima e fixam cada uma o seu próprio sistema consonantal. Não obstante, algumas outras mudanças podem ser apontadas como tendo ocorrido, em diferentes graus, por toda a România; são elas:
a) Palatalização das velares antes de vogais anteriores: ou seja,
o fone [k] e o fone [g] seguidos de [e] e [i] passaram a ser re-
alizados com palatalização, evoluindo diferentemente nas
línguas românicas. Por exemplo, temos em português [s]
e em espanhol [ө] como resultado dessa evolução de [k]: k
(e,i)>kj(e,i)>[tʃ]>[s]>[ө] [kinkwe] > [sinko]
b) Perda do apêndice labial nas labioalveolares: as consoantes
latinas [kw] e [gw] perderam seu apêndice labial, resultan-
do apenas em [k] ou [g]: [kinkwe] > [sinko], [kwere] > [kεr]
c) Africação da labial sonora /b/: como em caballu > cavalo
d) Desenvolvimento de consoante palatal a partir de /j/: como
em iugu > jugo
e) Passagem de /w/ a consoante bilabial sonora: como em
vinu [uinu] > vinho
Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?
37
f) Desaparecimento da aspirada /h/: do latim herba, pronun-
ciado como [herba], chega-se ao português erva, pronun-
ciado [εrva]
g) Sonorização das consoantes surdas intervocálicas: como
em jocat > joga, maturu > maduro
h) Queda das consoantes finais: como em hominem > omene,
lumen > lume
Não podemos esquecer que também houve mudança e evolução na realização dos vários grupos consonantais latinos, como:
a) Grupos iniciais em s-, como sc-, st-, sp-;
b) Grupos de consoantes seguidas de -l, como pl-, cl-, tl-, fl-;
c) Consoante + [j] (com grafia “i”): ti, di, ki, li, ni, pi, bi etc.;
d) Consoante + dental: pt-, ps-, ct-, cs-, gn-, mn-, rs-, ns.
Novamente, cada língua românica evolui de modo próprio, mas é possível identificar características gerais. Para o caso do grupo a), a so-lução adotada pelo português, por exemplo, foi a inserção de uma vogal antes do grupo, e assim temos “escrever” do latim scribere. Para os gru-pos b) e c) a solução foi, via de regra, através de palatalização; assim, em português temos:
b) plenu > cheio
c) folia [folja] > folha
Por fim, para o grupo d) há às vezes queda e às vezes vocalização:
d) fructa > fruta; derectu > direito
2.2.4 Léxico
Também quanto ao léxico, o latim vulgar apresenta tendências claras de mudanças com relação ao latim clássico. O léxico das línguas românicas deriva muito mais substancialmente do latim vulgar. Além disso, muitas palavras do léxico vulgar que, embora existissem, eram menos comuns em latim clássico, foram as formas que resultaram no
História da Língua
38
léxico das línguas românicas. São exemplos desse fenômeno termos como casa, do latim vulgar, que, em latim clássico, significava um tipo muito específico de habitação, um casebre, enquanto que as formas mais tradicionais como domus ou aedis significavam “casa” de maneira mais geral. É, todavia, da forma vulgar que deriva o português “casa”, e não do léxico clássico. Outros exemplos podem ser citados, como “cavalo”, que deriva do latim vulgar caballus, e não do latim clássico equus; ou “campo”, que vem de campus do latim vulgar, que significava “campina” em latim clássico, e não do termo mais comum do latim clássico ager. É importante apontar também para o fato de que, ao longo da história da língua, quando necessário, foram sendo feitos empréstimos de termos mais eruditos para preencher funções semânticas diferentes. Assim, ao lado de “casa”, temos “domicílio” e “edificação”, de domus e aedis; ao lado de “cavalo” temos “equitação”, de equus; e ao lado de “campo” temos “agricultura”, de ager.
Através desse panorama das alterações ocorridas do latim clássico para
o latim vulgar, pretendemos mostrar que foi a partir deste último, mais
dinâmico e vivo do que a língua literária erudita de Roma, que se de-
senvolveram o romance e seus dialetos, que mais tarde se transforma-
ram nas línguas românicas como as conhecemos hoje.
Box 3: Texto comentado
Para verificarmos algumas características do latim vulgar relevan-
tes para a história do português, listaremos algumas das linhas do
Appendix Probi, o documento anônimo citado anteriormente que
apresenta um catálogo de formas “incorretas” à direita e a forma
“correta” iniciando a linha. O Appendix é uma das fontes mais inte-
ressantes do latim vulgar, pois revela características da linguagem
popular que muitas vezes evidenciam tendências de mudanças lin-
guísticas que não seriam controladas pela vontade dos gramáticos
e acabariam se mantendo na passagem para as línguas românicas.
Vejamos algumas das linhas interessantes:
Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?
39
3. speculum non speclum
A queda da vogal breve ŭ na forma clássica specŭlum resultava em
speclum, que já antecipa a forma do português “espelho”, com o
acréscimo do e inicial para evitar sílaba iniciada por sp e com a mu-
dança regular de cl em lh.
5. vetulus non veclus
Aqui ocorre o mesmo que com speculum, apenas com o acréscimo
da etapa vetulus > vetlus > veclus.
25. formica non furmica
A mudança do timbre da vogal aqui é semelhante à que ocorre em
alguns dialetos do português, em que o o pretônico é pronuncia-
do mais alto no ponto de articulação, como ocorre, na fala popular,
quando dizemos “durmir” no lugar de “dormir”. O processo também
foi produtivo em mudanças do latim para o português, como em
locus > “lugar”.
53. calida non calda
Mais uma vez, a queda de uma vogal breve pós-tônica parece ser
comum no léxico do latim vulgar, e se trata de uma tendência que
vai ser produtiva na passagem do latim para as línguas românicas.
58. umbilicus non imbilicus
77. flagellum non fragellum
Aqui vemos exemplos de “erros” ortográficos comuns também em
português moderno, que revelam tendências de mudanças fonoló-
gicas. No segundo caso, a passagem da líquida l para o tepe r, fe-
nômeno comum de mudança que caracteriza barbarismo para os
gramáticos tradicionais, mas que foi muito produtivo na passagem
do latim para o português, como vimos em ecclesia > “igreja”.
História da Língua
40
174. rivus non rius
Neste exemplo, vemos a perda da semivogal v (pronunciada, em la-
tim clássico, como o w em “kiwi”), criando um hiato na forma vulgar
da qual derivaremos “rio”.
201. viridis non virdis
Mais uma vez, uma queda de vogal átona breve produz um resul-
tado que é claramente a origem das formas românicas derivadas,
como “verde”.
203. sirena non serena
Aqui, a forma criticada dá testemunho de processos de mudança
bastante comuns também na passagem do latim para o português.
A mudança da vogal i > e vai se seguir da perda do n intervocálico
gerando *serea, que se resolverá no português “sereia”.
219. numquam non numqua
A queda da consoante nasal final aqui resulta em uma forma vulgar
já bastante próxima do resultado em português, “nunca”, faltando
apenas a perda da palatalização [kwa] > [ka].
220. noviscum non noscum
221. vobiscum non voscum
Essas duas entradas dão testemunho importante do uso vulgar de
noscum e voscum no lugar de nobiscum e vobiscum, formas agluti-
nadas da preposição cum com os pronomes “nós” e “vós” no ablativo,
que, em latim vulgar, estavam sendo substituídas pelas formas nos
e vos no acusativo. Na passagem dessas formas para o português
contemporâneo, foi adicionado ainda um segundo “com”, dessa vez
como prefixo, de modo que retemos “com” + “nosco” e “vosco”, eti-
mologicamente acumulando duas preposições de mesmo sentido
na mesma palavra “cum + vos + cum”.
Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução
41
3 A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução
Aqui, investigamos o conceito de România, enquanto unidade linguístico-
-cultural instaurada pela dominação romana em sua extensão de alcance
máximo. Avaliamos algumas características das inovações comuns encontra-
das em toda a România, e também apresentamos informações básicas sobre
algumas das línguas românicas.
3.1 Conceituação de România
O termo romanus foi usado originalmente como sinônimo de ha-bitante da cidade de Roma. Mais tarde, com a expansão do império, o termo foi estendido a todos os cidadãos romanos sob proteção do impe-rador, em todas as províncias. Com o tempo, o termo passou a significar “aquele que não é bárbaro”, ou seja, todos os não estrangeiros. O império atingiu seu apogeu no início do século II d.C., como se pode ver no mapa da página 21, Capítulo 2. Após esse período, por vários motivos, que incluíam a própria vastidão do império, os romanos passaram a ser atacados frequentemente por povos de origem germânica que vinham do norte da Europa, pressionados pela invasão de outro império ao les-te, o dos hunos. Ao conjunto de províncias que constituíram o Império Romano neste período dá-se o nome de România Antiga.
Com as invasões germânicas no Ocidente e eslavas no Oriente, ocorreu uma grande fragmentação política e linguística, e os povos fa-lantes de latim localizados em províncias tão distantes como a Dácia e a Lusitânia mantiveram traços de romanização em graus variados, que de-pendiam, basicamente, da antiguidade da romanização, do período em que ficaram submissas ao Império, e da profundidade dos contatos; es-sas províncias, então, acabaram desenvolvendo dialetos mais ou menos próximos ao latim vulgar. O desenvolvimento da România posterior, ou România Medieval, deu-se em parte por causa desses fatores, mas tam-bém dependeu dos contatos linguísticos com os povos falantes de outras línguas que já se encontravam nos territórios conquistados (falantes das chamadas línguas de substrato), com os falantes das línguas dos povos
História da Língua
42
que vieram a conquistar os territórios romanizados (falantes das línguas de superestrato) e com os povos falantes de línguas como o grego, que conviveram com os falantes de latim em várias regiões em situação de bilinguismo por muito tempo (falantes de línguas de adstrato).
Com a queda do Império Romano, em 476 da nossa era, o conceito de România passou, então, a ser mais cultural e linguístico do que geo-político, e as regiões que tiveram mais contato com a romanização aca-baram por desenvolver dialetos derivados do latim vulgar, que viriam a se transformar nas línguas românicas como as conhecemos. As regiões do Império que foram fracamente romanizadas, como a Inglaterra, a região dos bascos, parte da Bélgica, o norte da África e os Bálcãs, aca-baram desenvolvendo línguas não românicas, ainda que mantivessem influências do latim vulgar como língua de substrato.
A România Moderna compreende todos os territórios de fala ro-mânica após o desenvolvimento das línguas românicas propriamente ditas, que inclui todos os territórios dominados pelos países de fala românica, como a América do Sul, parte do Canadá, alguns países da África e da Ásia, onde vemos o português, o espanhol e o francês como línguas oficiais até hoje.
Podemos ter ideia de como os falantes dos romances já não enten-diam latim por volta do século IX através, por exemplo, do texto do Con-cílio de Tours, convocado por Carlos Magno em 813, que apresenta a de-cisão dos bispos de que se traduzissem as homilias (sermões religiosos) para a rusticam romanam linguam aut Theodiscam, quo facilius possint intellegere quae dicuntur, ou seja, para a “língua romana rústica ou para
Como vimos no capítulo anterior, não há uma fronteira clara entre o la-
tim clássico e o latim vulgar. Da mesma forma, entre o latim vulgar e os
dialetos românicos não se pode estabelecer limites cronológicos claros.
Os dialetos que chamamos de romances têm seu nome derivado da
expressão latina romanice fabulare, ou “falar à maneira dos românicos”,
em oposição a expressões já consagradas, como latine loqui, “falar la-
tim”, que era o modo como os romanos do período clássico se referiam
à sua própria língua.
Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução
43
a língua germânica, para que se possam entender mais facilmente as coi-sas que são ditas”. Isso já mostra a diferença radical entre a língua latina oficial da Igreja, artificial, e as línguas faladas na região da França.
Já em 842 temos o texto dos Juramentos de Estrasburgo, documen-to mais antigo escrito em uma língua românica, que são juramentos de ajuda mútua pactuados pelos netos de Carlos Magno, Carlos, o Calvo, e Luis, o Germânico, contra seu irmão Lotário. Esse é o primeiro testemu-nho do romance então mais claramente diferenciado do latim, que viria a se tornar a língua francesa. Vejamos um trecho dos Juramentos:
Pro deo amur et pro christian poblo et nostro commun salva-ment, d’ist di in avant, in quant deus savir et podir me dunat, si salvarai eo cist meon fradre Karlo et in aiudha et in cadhuna cosa, si cum om per dreit son fradra salvar dist, in o quid il mi altresi fazet, et ab Ludher nul plaid nunquam prindrai, qui meon vol cist meon fradre Karle in damno sit.
Pelo amor de Deus e pelo povo cristão e nosso bem comum, a par-tir deste dia, enquanto Deus me dará sabedoria e poder, eu darei socorro a meu irmão Carlos com minha ajuda e toda outra coisa, como se deve ajudar seu irmão por igualdade, à condição que ele faça o mesmo por mim, e não passarei nenhum acordo com Lotário que, de minha vonta-de, possa ser prejudicial a meu irmão Carlos.
Já se podem notar certos desenvolvimentos românicos que virão a se confirmar nas línguas românicas todas, como o futuro sintético salva-rai > salvare habeo e a sonorização de oclusivas como em fradre > frater.
3.2 Inovações panromânicas
Embora o desenvolvimento do latim vulgar para as línguas româ-nicas tenha dependido de muitos fatores, como a duração da romaniza-ção nos territórios conquistados e o momento em que a romanização se deu em cada local, é possível verificar certa uniformidade em algumas características das línguas românicas, que se deve a determinados fenô-menos de inovação que chamamos de panromânicos. Entre eles, pode-mos destacar os seguintes (cf. CASTRO, 2006, p.52):
Localidades muito dis-tantes, como a Dácia ou a Lusitânia, tendem a desenvolver dialetos mais arcaizantes, por exemplo.
Texto disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Oaths_of_Stras-bourg>. Acesso em: 05 abr. 2010. Imagem dispo-nível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/29/Sacramen-ta_Argentariae_%28pars_brevis%29.jpg> Acesso em: 05 abr. 2010. Tradução nossa).
História da Língua
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1. Todas as línguas românicas desenvolveram o artigo definido a
partir do pronome ille (com exceção do sardo e do catalão, que
o desenvolveram a partir de ipse);
2. Todas as línguas generalizaram os usos das preposições de e a para substituir as funções dos casos oblíquos, ou seja, o genitivo,
o dativo e o ablativo;
3. Todas formaram comparativos analíticos a partir de magis ou
plus, enquanto o latim clássico fazia o comparativo sintético
com desinências como –ior ou –ius;
4. Todas as línguas românicas desenvolveram tempos verbais
analíticos baseados nos verbos auxiliares habere, tenere e esse
(“ser”).
5. Todas utilizam o pronome pessoal para marcar as pessoas ver-
bais (em latim, o padrão era não usar os pronomes, que apare-
ciam apenas para dar ênfase ao sujeito);
6. Todas formaram o novo futuro a partir das formas vulgares ha-bere + infinitivo (com exceção do romeno, com volo (“quero”) +
infinitivo, e do sardo, com debeo (“devo”) + infinitivo);
7. Todas desenvolveram advérbios a partir do ablativo mente afi-
xado aos adjetivos (o latim clássico formava advérbios com os
sufixos –e ou –iter);
8. Todas usam sufixos e prefixos estranhos ao latim clássico
3.3 Influências do substrato, superestrato e adstrato nas línguas românicas
Muitas das influências locais que o latim falado recebeu nas regiões romanizadas se deveram às línguas já existentes nessas regiões anterior-mente à chegada dos romanos. A essas línguas chamamos de “línguas de substrato”. É natural percebermos que as populações preexistentes ao
Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução
45
domínio romano falavam outras línguas e acrescentaram ao latim que passaram a falar diversas características de suas línguas, algumas fono-lógicas, outras lexicais. As influências foram maiores em regiões onde o latim ficou mais tempo em contato com as línguas de substrato.
O substrato da península itálica foi basicamente o das línguas itá-licas, faladas pelas populações que ali habitavam quando os romanos começaram as conquistas territoriais. Trata-se de línguas do ramo itá-lico, aparentadas do latim, como osco, o umbro e o sabélico. Uma das características incorporadas dos itálicos na passagem para as línguas românicas foi a assimilação de -nd- e -mb- em -nn- e -mm-, em regiões onde antes se falava osco, como o centro-sul da Itália.
O substrato do mediterrâneo ocidental foi basicamente o conjunto
das línguas faladas pelos povos não romanos que ali estavam, como
os lígures (dos quais quase nada se sabe), os iberos (não indo-euro-
peus, dos quais deriva a língua basca), os sardos, entre outros. Uma
das características mais importantes derivadas de substrato ibérico,
por exemplo, é a passagem de f a ø no espanhol (fabulare > hablar,
com h não pronunciado), característica derivada do basco. Outras
línguas importantes de substrato para o mediterrâneo ocidental fo-
ram as indo-europeias grego e celta.
Os substratos mais importantes da região da França, na região dos Alpes e na região do vale do Pó foram as línguas celtas dos gau-leses. Os celtas invadiram grande parte da Europa por volta do sé-culo VI a.C. e se estabeleceram nas Ilhas Britânicas, na Ibéria (onde se mesclaram com os iberos, dando origem ao povo que conhecemos como celtiberos), no norte da Itália e até na Galácia, na Ásia Menor. Do celta antigo não restou nada a não ser pelo testemunho que deixou no vocabulário das línguas influenciadas, mas as línguas celtas que se desenvolveram a partir dele sobrevivem ainda hoje no irlandês, esco-cês, galês, manques e bretão.
Os superestratos mais importantes para as línguas românicas fo-ram, de um lado, os “bárbaros” (germânicos no ocidente e eslavos no
História da Língua
46
oriente da România) no período de queda do Império Romano, e os árabes, que invadiram e conquistaram o norte da África, a Ibéria e parte da Sicília por volta do século VIII.
Dos povos germânicos que constituíram reinos em lugares onde anteriormente se falava latim, os mais importantes foram os visigodos, os vândalos, os burgúndios, os alamanos, os ostrogodos, os ânglios e saxões, os francos, os normandos e os longobardos.
Os vândalos vieram da Hungria e conquistaram uma região na Ibé-ria na qual ainda sobrevive o nome Andaluzia (derivado de Vandalucia). Os visigodos conquistaram grandes porções das atuais Itália, França e Espanha, e foram aliados dos romanos por um período, até serem em-purrados para a Ibéria pelos Francos, que os tiraram da região da França em 507. Ali, o reino romano-gótico dos visigodos resistiu aos outros rei-nos bárbaros até ser dominado pelos árabes em 711. A presença dos visi-godos na Ibéria exerceu muita influência no léxico dos romances locais, como na antroponímia (Álvaro, Fernando, Afonso, Rodrigo, Gonçalo), nomes comuns (gans > ganso, fat > fato, raupa > roupa, entre outros).
Outro reino germânico importante como superestrato foi o dos francos (de cujo nome derivou o atual termo “França”), que conquistou grande parte da Gália e posteriormente, vencendo os visigodos, parte da Ibéria. No século VIII, Carlos Magno instaura o Sacro Império Ro-mano, um Estado franco, numa tentativa de reunificar o Império, que abrangeu a França, grande parte da Itália e da Espanha.
Alguns empréstimos notáveis dos povos germânicos foram ter-mos como werra > port. guerra, fr. guerre, borg > port. burgo, fr. bourg, it. borgo.
O superestrato árabe foi importante pela presença desse povo por vários séculos em grande parte da Península Ibérica e do Mediterrâneo. Após conquistar o Egito e o norte da África do Império Bizantino, os árabes lá se instalam e conquistam grande parte da Península Ibérica, onde ficaram do século VIII até o século XV, e de onde só saíram após longas guerras instauradas pelo chamado movimento de Reconquista (do qual falaremos no próximo Capítulo). Muitas palavras dos roman-ces dessa região vieram como empréstimos do superestrato árabe, e eles
Também chamado Im- pério Romano do Oriente, que se inicia em 330 com
a fundação de Constan-tinopla pelo imperador
romano Constantino, para servir como capital da
seção oriental do Império e que segue existindo
independentemente da queda do Império do
Ocidente até a tomada de Constantinopla pelos
turcos em 1453.
FatoVestimenta, em portu-
guês europeu.
Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução
47
são reconhecidos normalmente pelo início al-, como álcool, álgebra, al-caide, entre muitas outras.
O superestrato eslavo foi mais importante na seção oriental da ro-mânia, especificamente na região onde se desenvolveu o romeno. O ro-meno foi escrito com o alfabeto cirílico por muito tempo e grande parte do seu vocabulário é de origem eslava, em virtude das invasões eslavas na região.
A noção de adstrato, como vimos, tem a ver com a coexistência de
línguas em situação de bilinguismo. Assim, para a formação das
línguas românicas, foi importante a presença constante do grego e
mesmo do latim literários, especialmente com relação aos emprés-
timos lexicais. Assim, podemos ver um caso bastante citado, como o
do grego parabolé, “parábola”, que substitui o latim verbum, “pala-
vra”, inicialmente no contexto bíblico, e resultou em formas das lín-
guas românicas como port. palavra, esp. palabra, fr. parole, entre
outras. A influência do grego também foi muito grande no emprés-
timo de prefixos e sufixos como –logia, “estudo de”, que vemos em
biologia, fisiologia, entre outros.
A influência do latim culto nas línguas românicas se deu de modos diferentes, em épocas diferentes, como os períodos do Renascimento Carolíngio (do império de Carlos Magno), o Renascimento propria-mente dito a partir do século XIII, entre outros. Desse modo, em alguns períodos, formas vulgares foram substituídas por formas cultas, como a forma antiga portuguesa chor, que foi substituída pela forma latina flor. Dependendo do modo como o empréstimo é feito, a língua mantém a palavra e recebe a outra em contextos específicos, como quando utiliza-mos cultismos como “magnitude”, do latim magnitudo, “grandeza”, mas mantemos os vocábulos derivados de formas mais populares, como as derivadas de grandis, do latim vulgar.
História da Língua
48
Assim, em virtude de vários fatores diferentes, como a ação de su-
perestratos, a distância com relação aos grandes centros, o tempo
maior ou menor de romanização, as invasões bárbaras, a queda do
poder do Império, o declínio das atividades intelectuais, entre ou-
tros, diferentes regiões desenvolvem os romances em diferentes
épocas, que se transformam em línguas incompreensíveis entre si
já por volta do século IX. Desse modo, a România onde se falava
latim se fragmenta e dá origem à România onde se falarão as línguas
românicas, que apresentaremos brevemente a seguir, na ordem ge-
ográfica do Extremo Oriente (romeno) até o Extremo Ocidente (por-
tuguês).
3.4 As línguas românicas
PortuguêsEspanhol
Catalão
Occitano Galo-Itálico
Frânces
Italiano
Rético
Sardo
Romeno
Franco-Provençal
Português
Espanhol
Catalão
Occitano
Frânces
Franco-Provençal
Galo-Itálico
Legendas
Italiano
Rético
Romeno
Sardo
Mapa – Os sistemas dialetais na România Antiga. Adaptado de Ilari (1992, p. 169).
Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução
49
3.4.1 Romeno
A província romana da Dácia foi conquistada pelo imperador Tra-jano entre 101 e 106 da nossa era e foi abandonada pelo imperador Au-reliano em 270, sob pressão dos visigodos e dos sármatas. Embora a ocupação romana tenha sido muito breve, ela foi profunda o bastan-te para que um dialeto românico se desenvolvesse ali. Dessa forma, as outras regiões continuaram a ter contato com o latim medieval, mas a Dácia foi sendo ocupada por vários povos, especialmente eslavos, o que explica grande parte das características bastante conservadoras do romeno. O eslavo foi a língua de contato mais importante, pois a Igreja a adotou como língua escrita, enquanto a população falava o romance que viria a se tornar o romeno. Os primeiros textos em romeno são muito recentes, traduções de textos religiosos do século XVI.
O romeno apresenta quatro dialetos principais, o daco-romeno, falado hoje na Romênia e em algumas localidades próximas, na Bulgá-ria e Hungria; o macedo-romeno, ou aromeno, encontrado em algumas regiões na Grécia, Bulgária e Macedônia; o megleno-romeno, falado na região da Tessalônica, na Grécia, e em algumas localidades isoladas da Ásia Menor; e o ístrio-romeno, falado na península da Ístria. O molda-vo, língua da Moldávia, é uma variedade bastante próxima do romeno.
3.4.2 Dalmático
Uma língua românica morta, o dalmático foi falado na antiga re-gião da Dalmácia, província romana situada na península balcânica, e seu último dialeto, da ilha de Veglia, foi extinto no século XIX. O dal-mático mostraria que há uma continuidade dialetal entre o romeno e os dialetos românicos da península itálica, mas foi suplantado pelo servo-croata e por outros dialetos românicos. Os documentos escritos em dal-mático são pouco numerosos e os estudos se deveram principalmente a esforços de romanistas como Mateo Bartoli, que documentou todo o material existente nessa língua.
3.4.3 Italiano
O grupo dos dialetos da região da Itália é muito variado, e o ita-liano padrão hoje na Itália é o dialeto da Toscana, que foi estabelecido
História da Língua
50
como dialeto principal pelo esforço de autores como Dante, Boccacio e Petrarca, que o elevaram à categoria de língua nacional. No entanto, na península itálica, bem como na Córsega, Sardenha e Sicília, muitos dialetos bastante variados ainda convivem com o toscano. É possível classificar esses dialetos em três grandes grupos:
Ӳ O italiano setentrional: piemontês, lombardo, lígure, venezia-no, entre outros;
Ӳ O italiano central: toscano, corso, úmbrico;
Ӳ O italiano meridional: campaniano, apuliano, calabrês, siciliano.
Os dialetos italianos começam a se desenvolver separadamente do romance por volta do século IX, e a profusão de manifestações literárias a partir do século XII levou a um impasse, já que o grau de diferenciação entre os dialetos da Itália sempre foi bastante grande. Dante, contudo, inspirado na língua literária comum dos provençais, promoveu uma tentativa de identificar o dialeto italiano que tivesse a maior quantida-de de características comuns entre todos os dialetos, e acabou elegendo uma mescla de dialetos de prestígio, como o toscano e o florentino, para compor a sua Divina Comédia. Apesar da grande quantidade de polê-micas sobre a influência que o toscano-florentino passa a ter depois, é por causa desse mesmo prestígio literário que esse dialeto acaba se tornando o dialeto preponderante da Itália, diferentemente de outras regiões, em que a eleição do dialeto-padrão acaba seguindo critérios políticos, de prestígio ou de localização.
3.4.4 Rético
O que chamamos de rético hoje é, na verdade, um conjunto de dialetos falados na região do extremo-norte da Itália e na Suíça, rela-tivamente semelhantes entre si, e que foram identificados como rema-nescentes de uma antiga faixa de dialetos reto-romance falados na pro-víncia romana da Récia (Raetia), invadida pelos alamanos no século V. Os dialetos ali restantes acabaram sofrendo pressão das línguas germâ-nicas ao norte e dos dialetos do italiano ao sul e acabaram se isolando em três pequenas regiões na fronteira entre Itália, Suíça e Áustria. A variedade mais oriental do rético, localizada no cantão dos Grisões, na
Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução
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Suíça, compreende os dialetos chamados engadino e sobressilvano. A partir de 1938, a Suíça reconhece o rético dos Grisões (também chama-do de romance) como língua nacional, ao lado das três línguas oficiais, alemão, francês e italiano. A variedade central do rético, o ladino, é fala-da no norte da Itália e o friulano é o dialeto rético mais oriental, no nor-deste da Itália. O rético foi abordado num importante estudo de 1873 de G. Ascoli, chamado Saggi Ladini, que expôs a questão da unidade dos dialetos e sua caracterização. Linguisticamente, os dialetos réticos não se distinguem muito dos dialetos galo-itálicos e demais dialetos români-cos, mas há uma característica em especial que é bastante interessante, e que afasta o rético do romance oriental (italiano, romeno e dalmático): a manutenção do –s final latino nos substantivos (pectus > pez, mas port. peito, it. petto e tempus > temps, mas port. tempo, esp. tiempo), cuja queda, na maior parte dos dialetos orientais, gerou plurais em –i (cf. italiano ragazzi, “meninos”, e romeno lupi, “lobos”).
3.4.5 Sardo
O que chamamos de sardo é um conjunto de dialetos falados na ilha da Sardenha, a oeste da Itália. A Sardenha e a Córsega foram conquista-das pelos romanos já em 238 a.C., que lá permaneceram por muito tem-po. Como a romanização foi lenta, os dialetos do romance que se desen-volveram ali se mantiveram mais próximos ao latim em vários quesitos, de modo que o sardo é uma das línguas românicas mais conservadoras e arcaizantes. Podemos verificar, por exemplo, através do desenvolvi-mento de algumas palavras do sardo, que ele não desenvolveu certas mudanças que a maioria dos dialetos românicos desenvolveu, como lat. domum > sar. domo, “casa”, quando a maioria das línguas românicas de-rivou “casa” do latim vulgar casa, como já vimos, e lat. scire > sar. ski-re, “saber”, que as outras línguas românicas derivaram do latim vulgar sápere, “provar, sentir o sabor de algo”. Vários traços fonéticos gerais corroboram esse caráter arcaizante, como a manutenção da semivogal ‘i’ em palavras como iugum > iugu (o português palatalizou a semivogal e fez “jugo”, assim como maior parte das outras línguas românicas), a conservação da articulação velar de c, mesmo antes de ‘e’ e ‘i’ (Cicero, em latim, era pronunciado “Kikero”; a maioria das línguas românicas fricativizou o c antes de ‘e’ e ‘i’, de modo que temos o som /k/ antes de
Diferentemente do –s final do nominativo latino presente na ortografia do francês, que não é pronunciado, cf. fr. temps, pronunciado “tã”.
História da Língua
52
a, o, e u e /s/ antes de ‘e’ e ‘i’). Outra característica interessante do sardo é o desenvolvimento do artigo definido a partir do demonstrativo ipse, ipsa, ipsum, do latim, ao invés do pronome ille, illa, illud, como ocorreu nas outras línguas românicas. Assim, em sardo temos so, sa, sos, sas, e em português, o, a, os, as.
Os dialetos mais importantes do sardo são o logudorês, o mais re-presentativo; o campidanês, do sul da ilha; o galurês, no território da Gallura, no nordeste; e o sassurês, ao redor da região da Sassura, no noroeste.
ALEMÃES
RÉTICOS
FRANCO-PROVENÇAIS
PROVENÇAIS
ITALIANOS SETENTRIONAIS
TOSCANOS
ITALIANOS CENTRO-MERIDIONAIS
GALURIANOS
CORSICOS
ESLAVOS
SARDOS
campidaneses
logudoreses
toscanos
italianos setentrionais (IS)
córsicos galurianos
sardos
provençais (Pr.) franco-provençais (FPr.) catalães (C)
réticos
albaneses (Al)
gregos (G)
eslavos (E)
alemães (A)
romenos (R)
italianos centro-merdionais
calabreses
salentinoslucanos
campanianos
apúlicos setentrionais
abruzesesmolisanos
marquigianovsv
úmbrios
lacais
genoveseslunigianos
piemontesesvênetos
lombardos friulanoseslovenos
croatasromenos
Carloforte (Gen.)
Alghero
Cargese
Bonifácio (Gen.)
Guardia (Pr.)
S. Fratello(IS)
Nicosia(IS)Piana dei Creci (Al)
S. Michele di Ganzaria (Al)
NovaraPiazza (IS)
Bova (G)
Faeto
Badessa (Al)
(Al)
(Al)
(C)
(C)
(A)(A)(A)
(A)
(Al)(E)
(G)
(Al)
(FPr)
Aosta
Gressoney
VII Comuni
XIII Comuni
Canton Ticipo
Veglia
EmilianiRomagnoli
limite político anterior à guerra
limite dialetais maiores
limite dialetais menores
Mapa – Línguas e dialetos na Itália do século XX. Adaptado de Ilari, (1992, p. 186).
Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução
53
3.4.6 Francês
O francês é a língua românica desenvolvida na região da antiga Gá-lia, derivada do conjunto de dialetos medievais identificados como lan-gue d’oil, em oposição ao grupo identificado como langue d’oc (dialetos do provençal). A oposição se dá a partir do vocábulo utilizado para di-zer “sim”, oil ou oc, e a distribuição dos dois conjuntos é geograficamente marcante. A langue d’oil se desenvolveu no norte da França e Bélgica de fala românica e apresentava muitos dialetos diferentes, que acabaram por sucumbir à força política e cultural do dialeto de Paris. Assim, o francês padrão culto hoje é basicamente equivalente ao dialeto de Paris, assim como o italiano padrão, que se identificou com o dialeto toscano-florentino. No entanto, isso se deu principalmente pela importância po-lítica da França ao longo dos últimos séculos, fazendo com que muitos dialetos d’oil fossem incorporados pelo francês literário.
O francês é uma das línguas românicas que apresentaram mais inovações com relação ao latim. Isso se dá em grande parte pela rapi-dez com que certas mudanças, típicas de todas as línguas românicas, se deram em francês. Um exemplo é a tendência das oclusivas surdas a se sonorizarem e depois se transformarem em fricativas. O francês apre-sentou essas mudanças mais rapidamente, de modo que uma nova etapa frequentemente se encontra após a fricativização: a perda da consoante, seguida de encontros vocálicos que se monotongam. Um exemplo ca-racterístico é aqua > eau (pronunciado “ô”).
Uma das características inovadoras do francês que decorrem da rapidez nas inovações fonéticas é a obrigatoriedade da presença do pronome pessoal na conjugação dos verbos: como muitas desinências número-pessoais têm a mesma pronúncia, é fundamental a presença do pronome – j’aime, tu aimes (sem pronunciar o “s”), il aime, ils aiment, todos pronunciados igualmente, exceto pelo pronome.
Também em virtude dessas inovações fonéticas rápidas, a ortogra-fia do francês é uma das mais peculiares entre as línguas românicas, pois muitas palavras mantêm ortografias mais antigas que não dão conta de representar a pronúncia da palavra de modo mais aproximado.
História da Língua
54
3.4.7 Provençal
O provençal, do antigo grupo chamado de langue d’oc, é um dos dialetos do ocitânico, com o qual muitas vezes se confunde, e é falado ainda hoje em uma extensa área do sul da França. As diferenças prin-cipais com relação ao grupo das línguas d’oil é que, enquanto o norte foi dominado pelos francos, o sul foi dominado pelos visigodos. No sul provençal, predominou o direito escrito, em oposição ao consuetudiná-rio do norte, o que favoreceu um contato maior com o latim culto no sul, propiciando características mais conservadoras em oposição às mu-danças fonéticas mais radicais no norte. Várias características de con-servadorismo fonético podem ser vistas nas comparações a seguir: lat. caprum “cabra” > prov. cabro, fr. chièvre, lat. canem, “cão” > prov. can, fr. chien, lat. cor, “coração” > prov. cor, fr. coeur.
O provençal se desenvolve muito cedo, e já é possível encontrar tra-ços do léxico e frases soltas em documentos dos séculos VII a IX, e o pri-meiro documento totalmente em provençal é um testamento de 1102. No entanto, uma grande tradição literária iria se desenvolver a partir das poesias líricas dos trovadores, cujo auge se deu entre os séculos XI e XIII. Uma das características mais interessantes do movimento literário dos trovadores é o uso de uma espécie de koiné (língua comum) literá-ria, com pouca variação dialetal entre as regiões e autores diferentes, e mesmo trovadores de outras regiões, como da Itália ou da Catalunha, escreviam nessa koiné literária provençal. A popularidade do provençal durou até meados do século XIV, por causa de guerras contra os albin-genses. Houve pelo menos dois grandes movimentos de renascimento literário do provençal: um no século XVI e outro no século XIX, e a língua ainda é falada no sul da França, ainda que em um território bem menor do que aquele ocupado entre os séculos XI e XIV.
3.4.8 Franco-provençal
O franco-provençal é um conjunto de dialetos falados no centro-leste da França na fronteira com a Itália e a Suíça, países em que tam-bém há alguma extensão coberta por eles. Não é possível caracterizar o franco-provençal como francês ou como provençal porque ele apresenta características de ambos, e constitui uma língua diferente. Há vários do-
São conhecidos nomes de mais de 400 poetas líricos
provençais!
Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução
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cumentos escritos já nos séculos iniciais da independência do romance, mas pouca literatura foi escrita em franco-provençal.
Como características linguísticas importantes, temos o vocalismo, que se aproxima do provençal, e o consonantismo, que se aproxima do francês. Assim, do latim pane temos em franc.prov. pan, em prov. pan, mas em francês pain, e do latim casa temos franc.prov. chieu, fr. chez, mas prov. casa. O franco-provençal mantém o o final latino, enquanto que o provençal e o francês, não, por exemplo lat. vulg. quattro > franc.prov. quatro, fr. quatre e prov. quatre. Outra característica do franco-provençal é a grande quantidade de elementos pré-romanos no léxico, em virtude do isolamento geográfico da região, em geral montanhosa.
Langue d’oil
Bretão
Basco
Angevino
Valão
Picardo
Normando
D. de Berry
Borgonhês
Alemão
Flamengo
Romando
Lyon
Italiano
Provençal
Bearnês
Linguadócio
Bordéus
Limosino
Pictavo
Auvernês
Saboiano
LorenêsParisfrâncico
Franco provençal
Langue doc
Mapa – Os dialetos galo-românicos antes da absorção pelo francês. Adaptado de Ilari (1992, p. 183).
História da Língua
56
Trataremos das línguas ibero-românicas, o catalão, o castelhano e o português, no próximo capítulo, em virtude da maior afinidade temáti-ca. Por ora, vejamos a tabela e os mapas apresentados a seguir como um resumo das línguas românicas, suas filiações e sua geografia.
Classificação das Línguas Românicas
Balcano-Românico Italo-Românico Galo-Românico Ibero-Românico
Romeno
DalmáticoItalianoRéticoSardo
FrancêsProvençalFranco-provençal
CatalãoEspanholPortuguês
Mar Mediterrâneo
Mar Mediterrâneo
Mar Negro
Daco-Romeno
Megleno-Romeno
Catalão
Galego
PortuguêsCastelhano
Basco
Gascão
Frânces
Provençal(Occitano)
África
Sardo
Corso
Maltês
Italiano
GréciaTurquia
Bulgária
MoldavoHungria
Iugoslávia
MacedôniaMácedo-RomenoAlbânia
Croácia
BósniaVeglioto
Eslovênia
Áustria
AlemanhaBélgica
Inglaterra
Irlanda
Suíça
Franco-Provençal
Oceano Atlântico RéticoCentralRético
Ocidental
RéticoOriental
Mar Tirreno
Mar Adriático
Dalmático
Limites políticosLimites linguísticos
Istrio-Romeno
Mapa – As línguas românicas e alguns de seus dialetos na Europa atual. Adaptado de Basseto, (2005, p. 379).
Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução
57
Resumo
Nesta unidade, fizemos um percurso sobre a história do latim, in-vestigando suas origens no protoindo-europeu, suas diferentes fases e sua fragmentação nos vários dialetos que posteriormente resultaram nas línguas românicas. Vimos também algumas noções-chave da lin-guística história como a história interna e a externa, regras de mudanças fonético-fonológicas etc. É com essas ferramentas que abordaremos a história do português nas próximas unidades.
Leia mais!
Se você quiser se aprofundar sobre a linguística românica, ou seja, sobre o estudo da formação e estrutura das línguas românicas, há vários livros muito bons sobre o assunto, alguns dos quais citamos nas Referências. O leitor interessado pode começar, por exemplo, por Lingüística Româ-nica, de Ilari (1992), que é um manual introdutório voltado a um só tempo à história externa e interna das línguas românicas. De um ponto de vista mais filológico, o leitor pode consultar Elementos de Filologia Românica, de Bassetto (2005), no qual encontrará mais informações sobre a história externa. Há ainda o importante manual de Lausberg (1974), intitulado Lingüística Românica; e Introducción a la Filología Ro-mânica, de Renzi (1982), ambos bastante amplos e ao mesmo tempo profundos. Certamente há inúmeros outros livros e artigos que lidam com a linguística românica e com a formação das línguas românicas, mas o leitor pode começar pelos livros citados e, a partir deles, um ver-dadeiro mundo de estudos se abrirá.
Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística
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A Península Ibérica e sua formação linguística O objetivo deste capítulo é abordar a Península Ibérica como um todo,
apresentando as principais línguas que ali se desenvolveram. Também proce-
demos a uma história específica do desenvolvimento linguístico das línguas
românicas da Península.
Introdução
Continuando o capítulo anterior, voltaremos agora nossa olhar para as principais línguas românicas da Península Ibérica. Na sequên-cia, apresentaremos um histórico da formação da Península e do desen-volvimento dessas línguas.
4.1. Catalão
O catalão é, hoje, a língua nativa de mais de 5 milhões de pessoas. É a língua oficial de Andorra e de várias regiões da Espanha, especial-mente da comunidade autônoma da Catalunha, no nordeste, além de alguns territórios na França e na Itália, nas proximidades da fronteira com a Espanha.
O catalão é uma língua derivada do chamado pan-ibero-romance, o romance falado na Península Ibérica que, por volta do século X, ainda era relativamente uniforme ao longo da península. Ao longo do período da Reconquista, o catalão acaba se diferenciando bastante do espanhol e do português. A história do catalão se divide em três fases: a fase nacio-nal, dos primórdios até o século XV; a fase da decadência, até o século XVIII; e a fase do renascimento, do século XIX em diante. Durante a fase nacional, o catalão era falado pela maioria dos habitantes do reino de Aragão e rivalizava com o latim literário e com o provençal, língua que, como vimos, nos primeiros séculos do segundo milênio, gozou de bastante prestígio na România.
Após a união política de Aragão com Castela, o catalão entra em declínio, e a liberdade dos falantes foi sendo restrita em favor do caste-
Veremos esse período mais pormenorizadamen-te na seção 4.3, que deta-lha a formação histórico--linguística da Península Ibérica.
4
História da Língua
62
lhano, até que, no século XIX, com o renascimento literário do catalão, o estatuto da língua foi restaurado e o reconhecimento da língua foi sendo conquistado, de modo que hoje é uma das línguas oficiais da Espanha, além de ser a língua oficial de Andorra, como vimos.
Em virtude de suas características linguísticas, bem como de sua história, o catalão foi considerado por vários romanistas como uma língua pertencente ao grupo das línguas galo-românicas, mas hoje é considerada como parte do grupo das ibero-românicas. Algumas des-sas características são as seguintes: (i) diferentemente do espanhol, o catalão não ditonga as vogais e e o breves latinas, como em septem > set, diferentemente do espanhol siete; (ii) assim como o provençal, o catalão perde o e e o o átonos finais, como em lat. vulg. parte > part, mas esp. e port. parte; o catalão mantém o f inicial, como em português e proven-çal, diferentemente do destino dessa consoante em espanhol: lat. vulg. furmica > formiga, port. e prov. formiga, esp. hormiga; (iii) cl e li são pa-latalizados como em português e em provençal, mas não em espanhol: lat. vulg. veclu > cat. vell, prov. vielh, port. velho, esp. viejo.
Algumas características do catalão o aproximam, no entanto, do espanhol e o afastam do provençal, como o destino do u, que em pro-vençal e francês passa a ü: lat. vulg. luna > cat. lluna, port. lua, prov. lüna, ou do ditongo au, que nas línguas ibéricas passa a o, diferentemente do provençal, que o mantém: lat. auru > cat. or, esp. oro, port. ouro.
Uma outra característica interessante do catalão é que, assim como o sardo, ele também desenvolve o artigo definido a partir do latim ipse, ao invés de ille. Assim, os artigos definidos do catalão são es, as, sos, ses.
4.2. Espanhol
O espanhol, como grupo de dialetos, compreende o castelhano, a variante de maior prestígio, mas também o galego, falado mais na região da Galiza; o leonês, falado no noroeste da Espanha; o aragonês, mais ao nordeste; o estremenho e o andaluz. O castelhano foi uma das principais línguas faladas no norte da península durante o período da Reconquis-ta, e o desenvolvimento da retomada dos territórios conquistados pelos árabes foi levando a língua para o sul, assim como ocorreu com o portu-guês, mas de forma a ocupar uma área bastante extensa da península.
Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística
63
As influências do substrato ibérico, além do substrato basco, deram ao castelhano uma feição diferenciada com relação às outras línguas de-senvolvidas a partir do pan-ibero-romance. Além disso, a latinização posterior da região de Castela, de substrato ibérico e incorporada ao império em 19 a.C., torna o castelhano mais livre da influência do latim, que se deu de forma mais intensa no caso do português, por exemplo. Várias dessas características tornaram o castelhano uma língua com ino-vações diversas das que encontramos no português e no catalão. Uma delas é a passagem do f latino a h, posteriormente não pronunciado, característica que se costuma atribuir ao substrato basco.
Algumas outras características peculiares do castelhano são:
1. ditongação do e e do o latinos, como em bono > bueno, porta
> puerta, terra > tierra;
2. palatalização em ll /λ/ dos grupos latinos formados por conso-
ante + l, como plenum > lleno, flamma > llama;
3. sonorização das oclusivas surdas intervocálicas e posterior frica-
tivização, como em lúpus > lobo /loβo/, digitus > dedo /ðeðo/;
4. palatalização das consoantes geminadas ll e nn, como ad illic >
alli /aλi/ “ali”, ante anno > antaño “então”;
5. passagem dos grupos ct e lt à africada /tʃ/: multum > mucho
/mutʃo/.
O castelhano já possui documentos escritos desde meados do sécu-lo X, ao menos com palavras e expressões em meio a textos latinos, e sua literatura, de grande relevância para o período medieval, se desenvolve a partir do século XII. O poema épico de autor desconhecido Cantar del mio Cid, composto por volta do final do século, de quase quatro mil versos, narra a história de Rodrigo Díaz de Vivar, ou El Cid Campeador, importante personagem histórico do período.
Vejamos um trecho da obra:
História da Língua
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De los sos oios tan fuertemien-tre llorando,Tornava la cabeça e estavalos catando;Vio puertas abiertas e uços sin cañados,alcandaras vazias, sin pielles e sin mantos,e sin falcones e sin adtores mu-dados.Sospiro Mio Cid, ca mucho avie grandes cuidados.Fablo mio Cid bien e tan mesu-rado:«¡grado a ti, Señor Padre, que es-tas en alto!»Esto me an buelto mios enemi-gos malos.»Alli pienssan de aguiiar, alli suel-tan las rriendas;ala exida de Bivar ovieron la cor-neia diestrae entrando a Burgos ovieronla siniestra.Meçio Mio Cid los ombros e en-grameo la tiesta:«¡Albricia, Albar Fañez, ca echa-dos somos de tierra!»[»Mas a grand ondra tornaremos a Castiella.»]
De seus olhos tão fortemente chorando virava a cabeça e os estava ven-do viu portões abertos e portas sem cadeados cabides vazios, sem peles nem mantos e sem falcões e sem açores mu-dados.Suspirou Meu Cid, pois tinha muitas preocupações.Falou Meu Cid bem e com muita serenidade:“Obrigado a ti, Senhor Pai, que estás nas alturas! Isto meus maus inimigos fize-ram a mim.” Ali pretendem esporar, ali sol-tam as rédeas; Ao sair de Bivar viram o corvo à direita, e ao entrar em Burgos, viram-no à esquerda. Meu Cid deu de ombros e balan-çou a cabeça: “Boas notícias, Álvar Fañez, pois fomos banidos da terra! Mas logo retornaremos a Caste-la”.
Tradução livre/nossa
Manuscrito disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/cid/80283852878795052754491/ima0000.htm>. Acesso em: 05 maio 2010.
Neste trecho, já é possível perceber várias características que viriam a se fixar no castelhano posterior, como a ditongação do o em puertas, do e em tierra e Castiella, a sonorização das oclusivas como em mutados > mudados, Pater > Padre. Algumas características do castelhano mo-derno ainda não aparecem, como o a perda do f inicial, por exemplo em fablo “falou”, que hoje se escreve habló, com h mudo.
Em 2010, o espanhol contabiliza cerca de 500 milhões de falantes no mundo todo, sendo 390 nativos e 110 milhões falantes de espanhol
Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística
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como segunda língua. Nas Américas, é língua oficial de 20 países, mas também é falado em vários estados norte-americanos, em diversos paí-ses africanos (Guiné Equatorial, Ilhas Canárias, Ceuta), no Pacífico, na Ilha de Páscoa, e em comunidades de imigrantes na Austrália e em vá-rios países europeus.
O castelhano se firmou como o dialeto principal entre os dialetos
restantes principalmente por causa da literatura produzida ao longo
dos séculos XIV a XVI. Mas foi especialmente o século XVII, chamado
siglo de oro, que viu grandes autores como Miguel de Cervantes,
autor de Don Quijote, Lope de Vega e Calderón de La Barca, autores
de peças teatrais desenvolverem a língua espanhola literária a um
nível de excelência antes inalcançado. Também por causa da expan-
são territorial decorrente da colonização das Américas, no século
XVI, o castelhano foi levado para as colônias, onde convive como
língua oficial em todos os países da América Latina, com exceção do
Brasil. Nas Américas, o castelhano entrou em contato com as línguas
indígenas, como o guarani, no Paraguai, o quéchua, no Peru, Bolívia
e Equador, e o nauatl, no México, enriquecendo-se em cada um des-
ses países de maneira diferente. Hoje em dia, o espanhol europeu e
os espanhóis latino-americanos apresentam diferenças decorrentes
dos séculos de desenvolvimento e empréstimos, mas ainda se man-
têm como uma só língua.
4.3 Formação histórico-linguística da Península Ibérica
Os romanos chegam à Península Ibérica por volta de 218 a.C., du-rante a Segunda Guerra Púnica, contra os Cartagineses, seus maiores rivais no momento. Os cartagineses ocupavam parte da península, mas, em 209 a.C., os romanos os derrotam na Espanha e iniciam a ocupação do território. Inicialmente, a península é dividida em Hispania Citerior (literalmente, “Hispânia mais próxima”, na região nordeste) e Hispa-nia Ulterior (literalmente, “Hispânia mais distante”, na região sudeste), como podemos ver no mapa a seguir:
Povo fenício que ocupava o norte da África, com ca-pital em Cartago, no atual território da Tunísia, e que começou a se mostrar ameaçador aos romanos ao iniciar a conquista de vários territórios ao redor do Mediterrâneo, especial-mente a Sicília, a partir do século III a.C.
História da Língua
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Pallantia
Cauca
Segovia
Pompaelo
Salmantica
Scalabis
Olisipo
Pax Iulia
Italica
Gades
Corduba Castulo
Sexi
Libisosa
ValentiaSaguntum
Ebusus
Palmariu
Pollentia
Tarraco
Emporion
Cartago Nova
Lucus
Bracara
LegioGemina
HispaniaUlterior
HispaniaCiterior
Mapa – Hispania Romana. Adaptado de: <http://www.cprcalahorra.org>
Sob o império de Augusto, a Hispania Ulterior é dividida em duas províncias: a Lusitania, ao norte, e a Baetica, ao sul. Posteriormente, a Hispania Citerior é transformada na província Tarraconensis, e separa-se da província da Gallaetia, ao norte. As conquistas na península foram demoradas, já que, do final do século III a.C., quando os romanos der-rotaram os cartagineses, até a pacificação completa da Hispania, foram necessárias várias campanhas, incluindo as de Júlio César em 61 a.C., que prepararia a província para a pacificação completa por Augusto, em 27 d.C. O resultado, no império de Diocleciano, é a seguinte configura-ção de províncias:
Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística
67
Limite de provincia
Limite de convento jurídico
Gallaecia
Lusitania Carthaginensis
Tarraconensis
Baetica
Balearica
Mapa – Hispania Romana sob o império de Diocleciano (244-311 d.C.). Adaptado de: <http://bachiller.sabuco.com/historia/images/Hispania%20romana.jpg>. Acesso em: 10 jun. 2010.)
O resultado desse laborioso processo de conquista romana são os diferentes graus de romanização das províncias. Naquelas em que os ro-manos chegaram primeiro, os dialetos românicos desenvolvidos foram mais conservadores. Contribui para isso também a distância em relação a Roma e a dificuldade de acesso a essas regiões. O tipo de romanização que se deu nas províncias também foi diferente. Na Baetica, por exem-plo, pelo isolamento, falava-se um latim mais conservador e purista, em oposição ao falado no nordeste, na província Tarraconensis, que era rota de legionários, o que gerou mais instabilidade e mudança na língua fala-da na região, em virtude da variedade mais popular de latim falada pelos legionários. Assim, os centros mais urbanizados da península acabaram por se influenciar pelo latim culto da Baetica, e a Tarraconensis acaba por desenvoler inovações típicas do latim vulgar, que se refletiriam nas línguas desenvolvidas ali posteriormente, como o catalão.
História da Língua
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Ao longo dos séculos V, VI e VII da Era Cristã, como parte do movi-
mento de invasões bárbaras que deram fim ao Império Romano do
Ocidente, os visigodos sobrepujaram vários outros reinos germâni-
cos e tentaram unificar a Península Ibérica, dominando grande parte
dela. Ao longo de todo esse período de instabilidade política, que se
inicia já no século IV d.C., o latim permanece sendo a língua de cul-
tura da península, de modo que os dialetos germânicos visigodos
pouco contribuíram para o desenvolvimento das línguas românicas
que ali viriam a se desenvolver, com exceção de empréstimos lexi-
cais, toponímia e antroponímia, como vimos no Capítulo anterior.
Um dos reinos germânicos conquistados pelos visigodos ao longo desses séculos foi o dos suevos, que constituíram um reino cujas frontei-ras eram quase coincidentes com as da anterior província da Gallaecia. A permanência deles nessa região, até a conquista dos visigodos, ape-nas em 574, permitiu um relativo isolamento linguístico que acabou por propiciar certos desenvolvimentos no latim vulgar, que depois viriam a diferenciar o romance falado ali, o galego-português, que estudaremos no próximo Capítulo, dos outros dialetos românicos da península. Isso teria grande influência no desenvolvimento do galego-português, pois algumas dessas mudanças, como as quedas de l e n intervocálicos (luna > lua, soles > sóis, por exemplo) e a mudança dos grupos cl, pl e fl para ch (como em pluvia > chuva, clavis > chave, por exemplo) já se manifes-tavam no período romano (por influência dos substratos linguísticos da região).
O domínio visigodo mantém-se por algum tempo, até que no iní-cio do século VIII, mais precisamente em 711, os árabes invadem a pe-nínsula. Esses árabes muçulmanos, comandados pelo governador da província da África, Tarik Ibn-Ziad, associam-se ao visigodo Ágila II, a seu pedido, contra seu oponente Rodrigo, último rei visigodo de Toledo, na disputa pelo trono do reino visigodo. Com a vitória de Ágila, este recebe o trono, mas os árabes conquistam outros territórios, e acabam por dominar grande parte da península, com exceção de uma parte das Astúrias, ao norte, que resistiu sob o comando do visigodo Pelágio, que
Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística
69
iniciou, a partir de 722, o longo movimento denominado de Reconquis-ta, que só viria a se consolidar em 1492, com a conquista de Granada.
Assim, os árabes representam um momento crucial na história das línguas ibero-românicas, já que, com a resistência dos reinos cristãos ao norte, o movimento de Reconquista precisou retomar todo o centro-sul da península, e, como vimos, isso demorou sete séculos, nos quais ocorreram diversas batalhas e também a convivência pacífica entre os cristãos e os muçulmanos em diversos territórios.
Os dialetos românicos da península, no início do século VIII, já se
delineavam em uma faixa setentrional, em três grupos difusos, que
viriam a se tornar as três línguas românicas principais: no noroeste,
o galego-português, no centro, em contato com o substrato basco,
o castelhano, e, no leste, o aragonês e o catalão. No centro e no sul,
com a permanência dos árabes no território chamado de Andaluz,
a ocupação basicamente era de muçulmanos e mouros (berberes
conquistados pelos árabes e parcialmente islamizados), falantes de
árabe, e um grupo de hispano-godo-romanos subjugados pelos
muçulmanos, falantes do dialeto chamado moçárabe (derivado do
árabe, “submetido ao árabe”), além dos judeus, que, na época, eram
vistos pelos árabes como merecedores de direitos iguais, pois eram
considerados um “povo do livro” (a Bíblia).
Desses dialetos românicos moçárabes pouco restou além de alguns testemunhos poéticos escritos tardiamente, chamados de hardjas ou jar-chas. No entanto, algumas características desses dialetos serviram de superstrato posterior para os dialetos dos reinos católicos após a Recon-quista, basicamente na toponímia. O árabe, por sua vez, foi um supers-trato importante na formação das línguas românicas da península, e muitas palavras do português contemporâneo são empréstimos diretos do árabe, como vimos no Capítulo anterior. Apresentamos, a seguir, um exemplo de hardjas, retirado de Ilari e Basso (2006, p.19):
História da Língua
70
Vayse meu corachón de mib:ya Rab, ¿si me tornarád?¡Tan mal meu doler li-l-habib!Enfermo yed, ¿cuánd sanarád?
Meu coração se parte de mim:Oh Deus, acaso vai voltar?Esta dor pelo meu amado dói tanto!Está doente, quando há de sarar?
O movimento da Reconquista, como vimos, foi muito len-to e levou os reinos católicos para o sul, juntamente com suas línguas, ao longo dos sete séculos que foram necessários para a reconquista integral. No entanto, é exatamente ao longo des-se período que se desenha o mapa geopolítico e linguístico da península, já que os reinos cristãos de Portugal, a oeste, Leão e Castela, no centro, e Aragão, a leste, cada um a seu modo, ao conquistarem territórios árabes, repovoavam o local e amplia-vam os limites de seus reinos, gerando grandes mudanças po-pulacionais e reestabelecendo as monarquias de modo bastante diverso das tendências de formação de Estados germânicos an-teriores à chegada dos árabes. É assim que vemos, progressiva-mente, a Reconquista levar os dialetos românicos para o sul, definindo as fronteiras finais das línguas portuguesa, espanhola e catalã, conforme podemos ver na sequência de mapas, apre-sentada a seguir. O primeiro deles, retirado de Teyssier (1997, p.8), apresenta uma cronologia das regiões tomadas dos árabes durante algumas das batalhas da Reconquista, os outros mapas, retirados de Ilari (1992, p.175-178), ilustram como a composi-ção linguística da Península Ibérica foi se alterando:
Área primitiva do Galego-Português
DouroPorto
Coimbra
Santarém
Mondego
Lisboa
Tejo
Guad
iana
1064
1147
1168
Faro(1249)
Évora
Mapa de algumas das batalhas da Reconquis-ta. Fonte: Teyssier (1997, p. 8).
Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística
71
Castelhano
Lisb
oa
Coimbra
Porto
Santiago
Galaico-português
Aragonês
Basco
Toledo
Valência
Granada
Cordoba
Sevilha
Badajoz
Tarragona
BarcelonaSaragoça
Dialetos moçarabes
BurgosLeónAstorga
CatalãoLérida
Leonês
Mapa – Línguas da Península Ibérica por volta de 930. Fonte: Ilari (1992, p. 175).
Nos anos iniciais do movimento da Reconquista, como se pode ver pelo mapa acima, o galego-português ocupa uma área bastante avanta-jada com relação aos outros dialetos. No entanto, os movimentos polí-ticos vão determinar outra configuração em pouco mais de um século, como podemos ver a seguir:
História da Língua
72
Castelhano
Lisb
oa
Coimbra
Porto
Santiago
Galaico-português
AragonêsBasco
Toledo
Valência
Granada
Cordoba
Sevilha
Badajoz
Tarragona
BarcelonaSaragoça
Dialetos moçarabes
BurgosLeónAstorgaCatalãoLérida
Leonês
Mapa – Línguas da Península Ibérica por volta de 1072. Fonte: Ilari (1992, p. 172).
O reino de Leão e Castela inicia um movimento que não vai apenas ao sul, mas também acaba por conquistar parte das faixas verticais que deveriam ser conquistadas pelos outros reinos, gerando uma divisão que acaba por diminuir o território aragonês, relegado às faixas mais orientais da península, como podemos ver abaixo:
Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística
73
Lisb
oa
Coimbra
Porto
Madri
Galaico
Toledo
Valência
Cordoba
Badajoz
Tarragona
Barcelona
Burgos
León
AstorgaCatalão
Lérida
Leonês
Aragonês
Basco
Saragoça
Santiago
Castelhano
Granada
Dialetos moçárabes
Sevilha
Portu
guês
Algarve
Mapa – Línguas da Península Ibérica por volta de 1300. Fonte: Ilari (1992, p. 177).
É possível perceber que, por volta de 1300, o desenho político da península já apontava para o estado atual da distribuição das línguas românicas ali, como podemos ver no mapa seguinte:
História da Língua
74
Lisb
oa
Coimbra
Porto
Madri
Valência
Cordoba
Barcelona
Dialetos aragoneses
Basco
Castelhano
Sevilha
Portu
guês
Málaga
Dialetos leoneses
La Coruña
Área bilínguegalego/castelhano
Área bilínguecastelhano/catalão
Limites do castelhanocomolíngua de cultura
Mapa – Línguas da Península Ibérica na atualidade. Fonte: Ilari (1992, p. 178).
Além dos movimentos linguísticos esboçados, a Reconquista foi um período muito importante para o estabelecimento das unidades po-líticas da península, como o Estado monárquico de Portugal.
Um dos momentos mais importantes da história de Portugal se deu em virtude das alianças políticas derivadas dos movimentos de Recon-quista. Assim, em virtude de seu sucesso na luta contra os árabes, D. Raimundo e seu primo D. Henrique receberam, respectivamente, de D. Afonso VI, rei de Leão e Castela, sua filha Urraca e a região da Galiza, e sua filha bastarda Tareja e a região desmembrada da Galiza chamada Condado Portucalense. D. Henrique administra o condado sob a tutela de D. Raimundo, de modo que o condado ainda fosse submisso à Gali-za. No entanto, D. Henrique, ao morrer, deixa o comando do condado a
Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística
75
sua mulher, Tareja. Seu filho, D. Afonso Henriques, descontente com a nova vida amorosa de sua mãe, em 1128 vence a batalha de São Mamede e se proclama rei. Em 1143, Afonso VII, rei de Leão, reconhece sua rea-leza, que foi ratificada pelo papa Alexandre III em 1173. Portugal passa a ser, então, independente da Galiza, e D. Afonso Henriques continua a expansão em direção ao sul, que D. Afonso III completa em 1250, com a conquista do Algarve, de modo a fixar as fronteiras atuais de Portugal. Durante todo esse período, até o século XIV, a língua de Portugal e da Galiza era a mesma, o galego-português, do qual trataremos no próxi-mo capítulo.
Capítulo 05O Português Arcaico
77
O português arcaicoEste capítulo tem como objetivo apresentar o primeiro período históri-
co da língua portuguesa, desde suas manifestações iniciais, quando temos a
diferenciação com relação aos dialetos panromânicos, até finais do século XIV
e inícios do século XV.
5.1 Periodização
Ao lidarmos com a história de uma língua, é imprescindível que lancemos mão de alguma periodização, seja simplesmente para nos lo-calizarmos cronologicamente, seja para isolarmos, com interesses cien-tíficos, determinados estágios. Apesar de sua grande importância, as estratégias de periodização não são, contudo, nem um pouco óbvias.
Tomemos alguns casos. Como determinar, por exemplo, quando a lín-
gua portuguesa nasceu? Em outras palavras, quando exatamente as
pessoas que habitavam a atual região de Portugal deixaram de falar
latim (ou algum estágio do latim) e passaram a falar português? Há uma
data exata para tanto? Certamente, não. Por mais útil que possa ser, não
encontraremos nenhuma afirmação do tipo “A língua portuguesa nas-
ceu no dia 06 de janeiro de 1112, precisamente às 14 horas e 23 minu-
tos”. A razão para tanto é simples: as línguas são dinâmicas, assim como
seus falantes e sua história. Não há nenhum momento ou ponto preci-
so no tempo que sirva como um marco para uma mudança linguística
específica. Sendo assim, é necessário que os pontos que delimitam um
dado período sejam escolhidos pelos pesquisadores. Em geral, as da-
tas escolhidas são aquelas que têm alguma relevância histórica, seja
do ponto de vista político, cultural ou outro. Isso significa, entre outras
coisas, que diferentes pesquisadores usam diferentes marcos históricos
em suas periodizações da história de uma língua, o que resulta então
em diferentes periodizações para diferentes pesquisadores.
5
História da Língua
78
Para o caso da história do português, podemos citar as periodiza-ções a seguir (adaptadas de ILARI; BASSO, 2006, p. 20-21); na primeira coluna, indicamos datas e na primeira linha o nome do pesquisador responsável pela periodização logo abaixo de seu nome:
Leite de Vasconcelos
Serafim da Silva Neto
Pilar Vásquez Cuesta
Luís-Felipe Lindley-Cintra
Até o século IX (882)
português pré-his-tórico (até 882)
português pré-his-tórico (até 882)
português pré-lite-rário (até 1216)
português pré-lite-rário (até 1216)
900-10001000-1100
português proto-histórico (882 até
1214/1216)
português proto-histórico (até 1214/1216)1100-1200
1200-1300
português arcaico (1216 até 1385-
1412)
português trova-doresco (1216 até
1420)
galego-portu-guês (1216 até
1385/1420)
português antigo (1216 até
1385/1420)
1200-1300
1400-1500português co-mum (1420 até
1536/1550)
português pré-clássico (1420 até
1536/1550)
português mé-dio (1420 até 1536/1550)
1500-1600 português moderno
português moderno
português clássico (1550 até o séc.
XVIII)
português clássico (1550 até o séc.
XVIII)
1600-1700
1700-1800
1800-1900 português moderno
português moderno
1900-2000
Seguindo Ilari e Basso (2006), usaremos neste livro uma periodização
mais “solta”, mas nem por isso menos interessante quando se trata de
organizar os fatos de língua. Lançaremos mão de uma periodização
que divide a história do português em “português arcaico”, “português
clássico” e “português moderno”.
Neste livro, consideraremos que o português arcaico abrange o período que vai do nascimento da língua portuguesa, ou seja, fins do século XII e início do século XIII, até o início das grandes navegações portuguesas, em torno de 1415.
Data da tomada de Ceuta, no norte da África,
pelos portugueses.
Capítulo 05O Português Arcaico
79
Por sua vez, o português clássico tem início justamente por volta de 1415 e consolida-se na impressionante obra Os Lusíadas, de Camões, datada de 1572. Nesse período relativamente curto, várias inovações e consolidações importantes ocorreram na língua portuguesa, aproxi-mando-a bastante da língua que falamos hoje. E, finalmente, o portu-guês moderno inicia-se em 1572 e segue seu curso – de modo diferente no Brasil, em Portugal, na África e na Ásia – até os dias de hoje.
Vale sempre lembrar que, apesar de usar consistentemente essa pe-
riodização, ela não é a única alternativa possível e, a depender dos ob-
jetivos em questão, ela pode nem sequer ser a mais adequada. Essa
e outras características formam o caminho das pedras de quem quer
estudar a história de uma língua e servem para exemplificar como é
complexa a interação entre fatores linguísticos e extralinguísticos ao
longo do desenvolvimento histórico de uma língua.
5.2 O português arcaico
O período aqui compreendido abrange desde a passagem do latim ao romance falado na região da Galiza e cobrirá as primeiras manifes-tações escritas do português até fins do século XIV e início do XV. Mui-tas mudanças foram reconhecidas nesse período, e pontuaremos nossa análise com trechos de alguns textos reconhecidos e estudados como parte desse período, como a Carta de Fundação da Igreja de Lardosa, e os textos escritos em galego-português propriamente dito, que datam do final do século XII e início do XIII, como a Notícia de Torto, datado entre 1210 e 1216, e a Demanda do Santo Graal. Há pelo menos dois outros textos importantes com relação ao nascimento da língua portu-guesa: a Notícia de Fiadores, datada de 1175, e o Testamento de Afonso II, de 1214.
5.2.1 Características da fase pré-literária (até finais do século
XII)
Algumas inovações fonéticas específicas do noroeste da península ibérica acabam por tornar os dialetos ali falados bastante diferenciados
Escrita em uma mistura de latim vulgar e romance galego-português, de 882.
Demanda do Santo GraalTexto literário tradu-zido dos romances de cavalaria franceses, escrito ao longo da primeira metade do século XIII.
História da Língua
80
com relação aos falares moçárabes do sul e em relação aos dialetos leo-nês e castelhano, do centro-norte da península. Esses desenvolvimentos começam a se dar no período da passagem do latim vulgar para o ro-mance, mas são atestados apenas nos esparsos documentos do período, escritos no chamado latim bárbaro, que misturava o latim vulgar com características específicas do romance do local. Desses traços de inova-ção, três são reconhecidos como os mais importantes, a saber:
• Os grupos consonantais cl-,pl- e fl- passam a ch, então pro-
nunciado[tʃ]:oprocessosedáatravésdapalatalizaçãodo letambémocorreunosterritóriosdoleonêsedocastelhano.No
entanto,nogalego-português,àpalatalizaçãoseseguiuatrans-
formação da consoante inicial em t, gerando uma alteração
maisprofundadoquenosoutrosdialetos.Assim,temosclavem
>chave[tʃave],pluvia>chuva,flamma>chama.Emcaste-
lhano,porexemplo,aconsoanteinicialdogrupodemoroumais
acair,eoresultadofoiogrupo ll,comoemllave,llama,coma
consoantepalatalinicial/λ/.Háexceçõesaessalei,naturalmen-
te.Algumas,especialmenteempalavrasmenospopulares,pas-
saramapr-,cr-efr-,comoplacere>prazereflaccu>fraco.Em
portuguêsmoderno,váriaspalavrasqueforamreimportadasdo
latimposteriormente comoempréstimoseruditosmantêmos
gruposlatinosoriginais,muitasvezesladoaladocomasformas
derivadasdogalego-português,comoéocasodeclavícula,do
latimclavicula[chavinha],inflamar,pluvial,entreoutras.
• O-ℓ -intervocálicocainamaioriadoscasos.Essamudançafoné-
ticafoimuitoimportantenesseperíodo,poiscriouumasériede
palavrascomhiatos,queseresolveriamapenasmaistarde.Te-
mos,dessaforma,palavrascomodolor>door,calente>caen-te(“quente”),voluntate>voontade,diabolu>diaboo,soles>soes(pluralde“sol”;éaquedado-ℓ -quenosexplicaessetipodepluralemportuguês).Naturalmente,empalavrasmaiseruditas
eemempréstimoslatinostardios,mantém-seo-ℓ -intervocáli-co,comoéocasodaformacalor,derivadadecalere,calente,deondeanteriormentederivamoscaente>quente.Ocastelhano
Capítulo 05O Português Arcaico
81
• eo leonêsnãoapresentaramessamudança,etemoshojeem
espanhol,porexemplo,caliente,dolorevoluntad.
• O-n- intervocálicocainamaioriadoscasos.Assimcomoofe-
nômeno anterior, essa queda traz consequências importantes
paraogalego-português,que,maisumavez,odiferenciamdos
outrosdialetos românicosdaPenínsula Ibérica.Oprocesso se
deuprovavelmenteatravésdanasalizaçãodavogalanteriorao
-n-,easetapaspodemserresumidasemluna>lũna>lũ-a (ohífen,utilizadoaquicomoelementodidático,representaohia-
to)>lua(portuguêsmoderno).Maisexemplospodemservistos
aseguir:manu>mãnu>mão,bonus>bônu>bõo (bom),
arena>arẽa(areia),vinu>vĩo(vinho),lana>lãa(lã),homi-nes>homẽes.Essamudançacausagrandeimpactonogalego-
-português,pelacriaçãodeumagrandequantidadedehiatos
comvogaisnasais,queseresolveriamapenasposteriormente.
Alémdisso,osoutrosdialetosromânicosnãotiveramessaper-
da, comopodemosver comos termosemespanhol:mañana
“manhã”,luna“lua”,mano“mão”.
As características morfológicas do galego-português seguem as tendências do latim vulgar; são, portanto, semelhantes às dos outros dialetos românicos da península, como o castelhano. Podemos ver, por exemplo, que a declinação nominal latina se simplifica ao ponto do desaparecimento, e os substantivos acabam por apresentar somente as formas de singular e plural, derivadas do acusativo latino. Os gêneros reduzem-se a dois, com a perda do neutro e incorporação das palavras deste gênero ao masculino. O sistema verbal segue a tendência de sim-plificação do latim vulgar e apresenta várias formas perifrásticas novas, como o novo futuro a partir do auxiliar habere + infinitivo (amare ha-beo > amar hei > amarei). O artigo definido é desenvolvido a partir do demonstrativo latino ille, illa, illud: inicialmente, tínhamos lo, la, los, las, que, frequentemente após palavras terminadas em vogal, acabavam por seguir a tendência da perda do -l- intervocálico, o que resultou em nossos artigos atuais, o, a, os, as. Seguindo também a tendência do la-
História da Língua
82
tim vulgar, a perda das declinações resultou no uso de preposições para marcar as funções sintáticas dos antigos genitivo, dativo e ablativo, e, consequentemente, a ordem de palavras ficou mais rígida.
O léxico do português
A grande maioria das palavras que formam o léxico do português
originou-se do latim e adquiriu sua forma atual ao longo de diversos
processos fonéticos, que envolvem desde a erosão de certos fones
até a inclusão de vogais para evitar encontros consonantais. Contu-
do, ao lado dos processos naturais ou populares através dos quais
as palavras latinas adquiriram sua forma portuguesa, encontramos
também outros processos que testemunham diferentes fases dos
processos históricos que envolvem a forma do léxico.
Se tomarmos como exemplo a palavra latina planum temos como
resultado de sua derivação popular ou natural a palavra portuguesa
chão e temos, através de uma derivação erudita, a palavra plano.
A diferença entre a derivação popular e a erudita está no fato de
que temos na primeira um processo vernacular e na segunda uma
importação consciente de um étimo latino, em geral para fins literá-
rios. O mesmo se dá com o par olhos e óculos, ambos derivados da
palavra latina oculos através de derivação natural e erudita respecti-
vamente. Devido ao fato de que o latim, mas também o grego, estão
sempre disponíveis para deles emprestarmos étimos e formarmos
novas palavras ou termos (basta pensar, no caso de étimos gregos,
nos usos recentes da raiz bio, como em biocombustível, biosfera,
biodegradável, etc.), essas línguas podem ser chamadas de adstra-
tos permanentes.
Ao lado das derivações natural e erudita, encontramos às vezes uma
derivação semierudita, na qual uma forma intermediária entre as
duas é usada. Os étimos latinos macula e articulum resultaram, res-
pectivamente, nas formas populares, semieruditas e eruditas ma-lha, mancha e mágoa, mácula, e artelho, artigo e artículo.
Capítulo 05O Português Arcaico
83
5.2.2 De 1200 em diante
Conforme vimos no capítulo anterior, é no século XII que Portugal se torna independente da Galiza e de Leão, e os fatos políticos do perí-odo acabam por diferenciar os dois territórios, dando origem à fase do português propriamente dito. Dessa separação se seguem as conquistas dos territórios mouros ao sul, de modo que, em pouco tempo, o terri-tório de Portugal já estaria praticamente idêntico ao de hoje. A língua portuguesa, nascida do galego-português medieval ao norte, é levada ao sul com os movimentos da Reconquista, e com a capital transferida para Lisboa em 1255 a fixação da língua culta não mais derivará dos falares do norte, mas sim da zona de influência da capital e de Coimbra.
Os textos desse período são variados, e os principais gêneros po-dem ser classificados em:
1. Poesia lírica trovadoresca: a poesia lírica provençal influen-
ciará um período bastante fértil de produção de literatura em
galego-português. Os três cancioneiros editados desse período
são o Cancioneiro da Ajuda (de fins do século XIII), o Cancio-neiro da Vaticana e o Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa. São compilações de poesias de trovadores classificadas
em: cantigas d’amigo, poemas de amor com eu lírico feminino;
cantigas d’amor, mais eruditas, com eu lírico masculino; canti-
gas de escárnio e maldizer; poemas satíricos de invectiva, mais
grosseiros que os anteriores. Os poemas trovadorescos mais an-
tigos datam do início do século XIII e o gênero desaparece em
meados do século XIV, com o último trovador, D. Pedro de Bar-
celos, filho bastardo de D. Dinis.
2. Documentos oficiais e particulares: trata-se de leis, forais, tes-
tamentos, títulos públicos, entre outros. Desse grande gênero
temos os dois textos mais antigos escritos em galego-português
que restaram até hoje, o Testamento de Afonso II e a Notícia do Torto, ambos com datação mais provável de 1214. Além disso,
há grande quantidade de documentos escritos em latim mes-
História da Língua
84
clado com romance galego-português desde finais do século XI
até os séculos XIII e XIV, quando a maioria dos textos já era escri-
ta apenas em português.
3. Prosa literária: O século XIII viu o início da tradição da prosa li-
terária em português. Os romances de cavalaria franceses do ci-
clo arturiano foram traduzidos para o português provavelmente
a partir do final do século XIII e ao longo do século XIV. Desse
ciclo, temos em português os romances Demanda do Santo Graal, Merlim, Livro de José de Arimateia e Livro de Tristan.
Além disso, ao longo do século XIV temos os documentos Livro
de Linhagens, de D. Pedro, conde de Barcelos, e a Crônica Geral de Espanha, de 1344, primeiros textos da historiografia escrita
em português.
4. Textos religiosos: Há diversas vidas de santos e obras de espi-
ritualidade nesse período, como a Regra de S. Bento, do início
do século XIV, Vida de S. Nicolau de Myra, e Vida de Cristo, do
início de meados do século XV.
5.2.3 Características do português arcaico
Para essa seção, nos guiaremos pela apresentação de Teyssier (1997), devido à brevidade com que ele apresenta as características do período.
a) Fonética e fonologia
O quadro de vogais do português arcaico já era bastante próximo do português moderno, com as sete vogais orais tônicas derivadas do latim vulgar (após a perda da duração das vogais do latim clássico): /a/, /e/, /ɛ/, /o/, /ɔ/, /i/, /u/. As vogais átonas finais do português arcaico eram bastante reduzidas: /i/ (pleno, não reduzido como no português moderno), /a/, /e/ e /o/. Em posição não final, as vogais átonas eram /a/, /e/, /i/, /o/ e /u/.
O sistema consonantal era bastante próximo do moderno, com as importantes exceções dos pares /ts/, /dz/ e /tʃ/ e /dʒ/, como em çapato
Para informações mais aprofundadas, leia Castro
(2006) e Hauy (2008).
Capítulo 05O Português Arcaico
85
/tsapato/, fazer /fadzer/, chaga /tʃaga/, já /dʒá/. O primeiro par de con-soantes apresentava-se em oposição a /s/ e /z/, como em cen /tsen/ X sem /sem/, e cozer /codzer/ X coser /cozer/. Já /tʃ/ apresentava-se em oposição a /ʃ/, grafado com x. A africada /dʒ/, por sua vez, apresentava flutuação em alguns casos em que a oclusiva inicial não era pronunciada, e acabou por perder a oclusão por completo, resultando em /ʒ/ apenas no portu-guês moderno. Assim, o português de então apresentava um sistema de consoantes que opunha: /ts/, /dz/, /tʃ/, /dʒ/, /s/, /z/, /ʃ/ e /ʒ/.
A criação das cinco vogais nasais se deu pela perda de consoantes nasais que as seguiam, o que foi grafado inicialmente pelo til, que era inicialmente um n abreviado acima da vogal como sinal diacrítico. Em muitos casos, as consoantes nasais não caíram na ortografia, e o predo-mínio inicial do n final foi sendo substituído por um m final, que aca-bou sendo a consoante nasal final em todos os casos. Os hiatos nasais criados pela queda do -n- intervocálico acima geraram instabilidade em muitos casos, como em vĩ-o e pĩ-o, que se resolve com a epêntese da palatal /ɲ/ em vinho e pinho, ou com a queda da nasalização, como em bõ-a > boa. Em outros casos de palatalização, ocorre ainda a epêntese da semivogal /j/, como em alheo > alheio.
A grande quantidade de hiatos criados pelas quedas de consoantes intervocálicas como -n-, -l-, -g- (como legere > leer) e -d- (sedere > seer) irão permanecer durante esse período, resolvendo-se posteriormente nas formas que vimos no parágrafo anterior, ou ainda em crase das vo-gais, como leer > ler e seer > ser.
b) Morfologia e sintaxe
Apresentamos na sequência algumas das características morfossin-táticas mais importantes desse período:
Ӳ A queda de -l- e -n- intervocálicos tem consequências para a morfologia dos plurais: assim, os nomes terminados em l man-têm a consoante no singular mas a perdem no plural, como vemos em sol > sol, mas soles > soes (port. arc.) > sóis (port. moderno);
Ӳ Os nomes derivados das terminações -anus, -anis, e –onis têm seus singulares e plurais formados a partir dos seguintes movi-
História da Língua
86
mentos: manus > mano > mão X manos > mã-os (port. arc.) > mãos; leo > leon(e) > leon (port. arc.) > leão X leones > leõ-es (port. arc.) > leões. Podemos perceber, aqui, que a queda do -n- intervocálico criou os hiatos arcaicos, que iriam se resolver em ditongos nasais posteriormente. No singular, o n final não cai, sendo pronunciado como consoante por um bom tempo, vin-do a se transformar em ditongo nasal somente muito depois;
Ӳ Os pronomes possessivos possuíam formas diferentes tônicas e átonas no feminino, como se pode ver abaixo:
Masculino Feminino
Tônicos Átonos
meu mia, mĩa, minha mia, mha, ma
teu tua ta
seu sua sa
O sistema de pronomes dêiticos (demonstrativos e advérbios de lugar) organizava-se da seguinte forma: este/aqueste X esse X aquel(e), já antecipando a forma atual de distinção entre este, esse e aquele; aqui/acá/acó X ali/alá/aló.
Havia, também, dois advérbios anafóricos derivados do latim que eram muito frequentes em português arcaico: (h)i, “aí/ aqui”, derivado do latim ibi, e ende/en, “daí, a partir de”, derivado do latim inde.
O sistema verbal já era praticamente idêntico ao do português mo-derno, com algumas peculiaridades do período, como:
• O infinitivo flexionado, um traço específico do galego-portu-
guês,jáeraencontradoemformascomoteer,teerdes,teermos,entreoutras.Essacaracterísticanãosedesenvolveunoleonêse
nocastelhano;
• Asformasetimológicasdasegundapessoadopluralem–des,derivadasdolatim–tis,aindasemantinham:amades,seerdes(futuro)eleixedes(subjuntivo);
Capítulo 05O Português Arcaico
87
• Asterceiraspessoasdosingulardoperfeitoapresentavamflu-
tuaçãode formas,comoemfizoe fez,de“fazer”,disso/dixoedisse,de“dizer”,entreoutras;
• Os verbos da segunda conjugação formavamparticípio em–
udo, como creúdo, de creer, conheçudo, de conhocer, entreoutros;
• Asformasdetratamentoeramapenasasdesegundapessoa,tu
(pessoal)evós(dedeferência),demodoqueaindasedesconhe-
ciamformascomovossa mercede >vosmecê>você.’’
5.3 Textos comentados
Para podermos ver em síntese as características arroladas anteriormente,
nada melhor do que olharmos para trechos de textos do período galego-
-português. Juntamente com os trechos, tecemos alguns comentários a
fim de ilustrar as características da língua do período. Iniciaremos com
um trecho do documento mais antigo escrito em latim bárbaro na re-
gião, a Carta de dotação e fundação da Igreja de S. Miguel de Lardosa,
de 882, que já apresenta alguns termos em romance galego-português
e algumas das tendências que se consolidarão na língua. Logo após, ve-
remos um trecho da Notícia do Torto, de 1214, e concluiremos com um
trecho de A Demanda do Santo Graal, de fins do século XIII.
5.3.1. Carta de dotação e fundação da Igreja de S. Miguel de
Lardosa, de 882
(P03) [...] damus adque concedimus ad deum et ad ipsa baselica que nos
fundamus in nomine sancti petri et pauli et sancti migaeli arcangeli [...]
Além dos vulgarismos esperados em um texto latino do século IX,
História da Língua
88
já se percebem neste texto alterações específicas do galego-português, como a redução do ditongo ae no pronome quae > que, e a sonorização da oclusiva no nome do arcanjo Miguel, michaeli > migaeli.
(P06) [...] et uia moastica obtinuerint in ipso loco sibe pro luminaria al-
tariorum u[e]strorum uel elemosias pauperum sicut lex et canonica se-
tentia doce [...]
Aqui podemos ver um dos mais antigos exemplos da queda do -n- intervocálico, em monastica > moastica e elemosynas > elemosias, “es-molas”.
(P08) [...] sint dimersit in baradro inferni ubi fletus et ullulatus et ana-
thema marenata accipiat et in conspectu domini et non abeant cum
domino in prima resurectione ressusitandi nisi perc[usu]s [...]
Mais uma vez, podemos perceber a tendência à sonorização de oclusivas no exemplo barathrum > baradro, “báratro, inferno”.
O texto latino, recheado de vulgarismos, seria um interessante
ponto de análise do percurso do latim clássico ao latim vulgar na
Península Ibérica, mas limitações de espaço e o escopo deste livro
impedem um aprofundamento neste Capítulo. Por ora, basta perce-
ber que algumas das características que o galego-português viria a
ter já se encontravam no latim vulgar, ou, neste caso, bárbaro, dos
documentos desse período, recheados de termos do romance e de
alterações que apontavam para a especialização dialetal.
5.3.2. A Notícia de Torto
A Notícia de Torto é um documento que apresenta queixas for-muladas pelo fidalgo Lourenço Fernandes da Cunha contra os filhos de um nobre que era seu vizinho e parente, Gonçalo Ramires. As queixas foram escritas pois os filhos de Gonçalo Ramires, que deveriam dividir a herança de seu pai também com Lourenço Fernandes da Cunha, não o fizeram, e além disso lhe inflingiram uma série de ofensas, chamadas de tortos, descritas no documento. Leremos apenas as primeiras linhas do documento, datado de cerca de 1210 a 1216.
Fonte do texto: Transcri-ção interpretativa estreita
do texto, publicada pelo Projecto Origens do Por-tuguês, da Faculdade de Ciências Sociais e Huma-
nas da Universidade Nova de Lisboa. Disponível em:
<http://www2.fcsh.unl.pt/philologia/CARTA882.
html>. Acesso em: 05 maio 2010.
Editado por Luís Felipe Lindley Cintra em: “Sobre o mais antigo texto não-
-literário português: A Notícia de Torto (Leitura
crítica, data, local da reda-ção e comentário linguís-
tico)”, Boletim de Filologia, Lisboa, 1990, XXXI (1986-
1987, p. 21-77).
Capítulo 05O Português Arcaico
89
1. De noticia de torto que fecerũ a Laurcius Fernãdiz por plazo qve
fece Gõcauo
2. Ramiriz antre suos filios e Lourẽzo Ferrnãdiz quale podedes sa-
ber: e oue auer, de erdade
3. e dauer, tãto quome uno de suos filios, daquãto podesẽ auer de
bona de seuo pater; e fiolios seu
4. pater e sua mater. E depois fecerũ plazo nouo e cõuẽ uos a saber
quale; in ille seem1
5. taes firmamentos quales podedes saber Ramiro Gõcaluiz e Gõ-
caluo Gõca [luiz e]
6. Eluira Gõcaluiz forũ fiadores de sua irmana que o[to]rgase aqu[e]
le plazo come illos
7. Super isto plazo ar fe[ce]rũ suo plecto. E a maior aiuda que illos
hic cõnocerũ, que les
8. Acanocese2 Laurẽzo Ferrnãdiz sa irdade per plecto que a teuese
o abate de Sancto Martino
9. que, como uẽcesẽ3, que asi les dese de ista o abade. E que nun-
qua illos lecxasẽ
10. daquela irdade4 d[.] sẽ seu mãdato. Se a lexarẽ, ĩtregarẽ ille de
octra que li plaza.
11. E dauer que ouerũ de seu pater, nu[n]qua le li5 ĩde derũ parte
Segue a reconstrução aproximada para o português moderno en-contrada em Castro (2006, p. 131 e ss.):
1seem: o segundo e foi acrescentado na entrelinha.2 acanocese: no ms. acanocerse, com r ras-pado mas ainda visível.3 uẽcesẽ: seguido de várias letras riscadas.4 irdade: seguido de uma mancha que pare-ce esconder uma letra.5 le li: le parece cortado com um traço muito leve.
História da Língua
90
1. De notícia do torto que fizeram a Lourenço Fernandes pelo pacto que fez Gonçalo
2. Ramires entre seus filhos e Lourenço Fernandes, o qual podedes saber: e havia de ter, de herança
3. e de haver, tanto como cada um de seus filhos de quanto pudessem ter dos bens de seu pai; e
foram-lhe fiadores deles seu
4. pai e sua mãe. E depois fizeram pacto novo e convém-vos saber qual: em ele constam
5. tais disposições quais podedes saber. Ramiro Gonçalves e Gonçalo Gonçalves e
6. Elvira Gonçalves foram fiadores de sua irmã, para que outorgasse aquele pacto com eles.
7. Sobre esse pacto fizeram seu preito. E para maior prova de que eles o reconheceram, que lhes
8. Reconhecesse Lourenço Fernandes a sua herança por preito, que a detivesse o abade de São Mar-
tinho,
9. que, conforme adquirissem outra, que assim lhes desse o abade parte dela. E que eles nunca alie-
nassem
10. parte daquela herança em seu consentimento. Se a alienassem, dar-lhe-iam outra a seu prazer.
11. E dos haveres que tiveram de seu pai, nunca deles lhe deram parte [...]
Fonte: MARTINS, Ana Maria. Emergência e generalização do portu-guês escrito: de D. Afonso Henriques a D. Diniz. In: BIBLIOTECA NACIONAL (Org.). Caminhos do Português: expo-sição comemorativa do ano europeu das línguas – Catálogo. 1.ed. Lisboa: BN, 2001 [reprodução da página 25, por escaneirização]. Disponível em: <http://cursodefilologiaportuguesa.blogspot.com/2008/08/2-manuscrito-portugus-sculo-xiii-notcia.html>. Acesso em: 05 abr. 2010.
Capítulo 05O Português Arcaico
91
Breve comentário:
Os comentadores e editores do texto apontam para o caráter de confusão ortográfica que provavelmente se deve à falta de familiaridade com a escrita do escriba responsável pelo texto. Vemos, então, troca de u por v, como em qve, grafia generalizada da sibilante surda intervocá-lica como s, como em asi e dese, e variações ortográficas para o mesmo vocábulo, como lecxasẽ e lexarẽ (a grafia x latina correspondia ao encon-tro /xs/, que se simplificaria no português, neste vocábulo, em /ʃ/ com a posterior ditongação da vogal anterior, resultando em leixar > dei-xar). Percebe-se também o frequente uso de termos latinos, como pater, mater, bona (“bens”), ĩde (inde, cf. vimos acima, “daí”). Além disso, os processos de assimilação das consoantes nasais pelas vogais são marca-dos pelo til, que não estavam todos apontados no manuscrito, mas que foram inseridos pelos editores.
O efeito mais importante que esperamos conseguir com esse pequeno
trecho é o de apresentar ao leitor o primeiro documento escrito em por-
tuguês de modo a mostrar como ele já é relativamente fácil de compre-
ender para um falante de português contemporâneo. As questões or-
tográficas são secundárias, e já é possível perceber que a língua, em sua
estrutura geral, se aproxima bastante do português de hoje e se afasta
radicalmente do latim vulgar que vemos no texto comentado anterior-
mente, praticamente ilegível para quem não estudou história do latim.
5.3.3. A Demanda do Santo Graal
A Demanda do Santo Graal é uma tradução para o português, da-tada do final do século XIII, de uma das novelas francesas que tinham como tema as aventuras do Rei Artur e dos cavaleiros da Távola Re-donda. Entre esses cavaleiros, destacam-se Lançarote do Lago, Boors, Perceval e Galaaz, filho de Lancelote, e que estava destinado a encontrar o Santo Graal. A edição que seguimos aqui é a de Augusto Magne, de 1944. O trecho que leremos é o início da obra como sobrou para nós. Dado que ela foi editada e copiada em vários manuscritos do século XIII ao XV, algumas características vistas no texto já são da fase seguinte do português, a fase de transição entre o português arcaico e o clássico.
Para uma análise mais aprofundada, veja-se CASTRO, Ivo. Introdução à história do português. 2.ed. Lisboa: Colibri, 2006.
Santo GraalCálice usado por Cristo na Última Ceia e no qual foi recolhido seu sangue quando Ele estava na Cruz.
MAGNE, Augusto (Ed.). A Demanda do Santo Graal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional / INL - Ministé-rio da Educação e Saúde, 1944. v. I e II.
História da Língua
92
1. Véspera de Pinticoste foi grande gente assũada em Camaalot,
assi que podera homem i veer mui grã gente, muitos cavalei-
ros e muitas donas mui bem guisadas. El-rei, que era ende mui
ledo, honrou-os muito e feze-os mui bem servir; e toda rem
que entendeu per que aquela corte seeria mais viçosa e mais
leda, todo o fêz fazer.
Aquel dia, que vos eu digo, direitamente quando queriam poer as
mesas – êsto era ora de noa – aveeo que ũa donzela chegou i,
mui fremosa e mui bem vestida; e entrou no paaço a pee, como
mandadeira. Ela começou a catar de ũa parte e da outra, pelo
paaço; e perguntavam-na que demandava.
Eu demando, disse ela, por dom Lançalot do Lago. É aqui?
Si, donzela – disse ũu cavaleiro. Veede-lo: stá aaquela freesta,
falando com Dom Galvam.
Ela foi logo pera el e salvou-o. Ele, tanto que a viu, recebeu-a mui
bem e abraçou-a, ca aquela era ũa das donzelas que moravam na
Ínsoa da Lediça, que a filha Amida del-rei Peles amava mais que
donzela da sua companha.
2. Ai, donzela, disse Lançalot, que ventura vos adusse aqui? Que
bem sei que sem razom nom veestes vós?
Senhor, verdade é; mais rogo-vos, se vos aprouguer, que vaades
comigo aaquela foresta de Camaalot; e sabede que manhãa,
ora de comer, seeredes aqui.
Certas, donzela, disse el, muito me praz; ca teúdo soom de vos
fazer serviço em tôdalas cousas que eu poder.
Entam pedio suas armas. E quando el-rei vio que se fazia armar a
tam gram coita, foi a el com a raĩa e disse-lhe:
Como? Leixar-nos queredes aatal festa, u cavaleiros de todo o
mundo veem aa côrte, e mui mais ainda por vos veerem ca
Capítulo 05O Português Arcaico
93
por al: deles por vos veerem, e deles por averem vossa compa-
nha?
Senhor, – disse el – nom vou senam a esta foresta com esta don-
zela que me rogou; mais cras, ora de terça, seerei aqui.
Este trecho apresenta o momento em que a donzela entra no palá-cio em busca de Lancelote, para levá-lo ao seu castelo, onde ele tornaria Galaaz cavaleiro. Galaaz, como dissemos anteriormente, era o cavaleiro mais virtuoso, que conseguirá encontrar o Graal, após muitas aventuras.
O sentido, em geral, é bastante claro, apesar de algumas dificulda-des lexicais. A passagem mais complexa, que necessita de explicação, talvez seja: “Como? Quereis deixar-nos em tal festa, para onde cavalei-ros de todo o mundo vêm à corte, muito mais ainda para vos ver do que por outra coisa? Alguns deles para vos ver, e outros deles por ter vossa companhia?”
Do ponto de vista linguístico, há muita interferência de períodos posteriores do português, mas podemos perceber várias características específicas do período arcaico. Os trechos em negrito serão comentados a seguir.
• assũada:reunida.
• homem: o substantivo é usado aqui comoon em francês ou
Manemalemão: trata-sedeumuso impessoal,quepodeser
parafraseadocomo“alguémpodiaver”ou“podia-sever”.
• i:comodissemosacima,oanafóricoi,derivadodolatimibi,sig-nifica“aí”,“ali”,“nesselugar”.
• veer:vemosaquiumadassíncopesconsonantaistípicasdope-
ríodoarcaico:dolatimvideretemosveer,comaquedadodin-tervocálico.
História da Língua
94
• ende: conforme discutido acima, o ende, derivado do latim
inde,significa“daí”,ouainda,“porisso”.
• ledo:dolatimlaetus,“feliz”.
• rem:dolatimres,“coisa”,“propriedade”.
• seeria: do latim sedere,“estar sentado”,paraoportuguês seer,temosmudançafonéticatípicacomasíncopedodintervocálicoemudançadesentido,emqueoverboseersemesclaaoverbo
esse,“ser”,assumindoosentidomaisespecíficodoverbo“ser”em
português,opostoaoverbo“estar”,derivadodestare,“estarem
pé,estarparado”.
• poer:dolatimponere,temosaquiumdosexemplostípicosda
síncopedonintervocálicodiscutidaacima.
• ora de noa:“horanona”,comsíncopedon:equivaleàstrêsho-
rasdatarde.
• aveeo:dolatimhabere,comfricativizaçãodobecrasevocálica,
resultariaposteriormenteemhouve.Osentidoaquiépróximo
de“ocorreuque”.
• ũa:dolatimuna.Temosaquiumexemplodamudançadefun-
çãodopronomenumerallatino,quejáéusadocomoartigoin-
definido,alémdemaisumexemplodesíncopedonintervocáli-coseguidadenasalizaçãodavogalanterior.
• paaço:dolatimpalatio,comsíncopedolintervocálicoepala-
talizaçãodasequência–tio.
• pee:dolatimpedes,“pé”,comsíncopedodintervocálico.
• mandadeira:dolatimtardiomandatarius,“mensageiro”.
• catar:osentidoarcaicodoverboaquiépróximoaode“procu-
rar”.
Capítulo 05O Português Arcaico
95
• veede:doimperativolatinovidete,temosaformaveede,com
síncopedod intervocálicoemanutençãodo–decomoflexão
desegundapessoadoplural.
• ca:derivadodolatimquia,trata-sedeumaconjunçãoquesig-
nifica“pois”,“por isso”.Ofrancêsmantémumaformaparecida:
car.Emportuguês,esseusodesapareceu,sendosubstituídopor
outrasconjunções.
• ínsoa:dolatiminsula,“ilha”.Temosaquimaisumasíncopedel
intervocálico,resultandoemhiato.
• adusse:dolatimadduxit,“conduziu”.
• manhãa:do latimvulgar*maneana,derivadoda formaclás-
-sicamane.Temosaquidoisfenômenosdistintoscomrelação
aonintervocálico:elesepalatalizaemnh(/ɲ/)provavelmente
depoisdasíncopedosegundon,resultandoemhiatocomvo-
galtônica.
• teúdo:particípiopassadoem–udodasegundaconjugação,do
verbotenerelatino.
• soom:formadeprimeirapessoadosingulardoverbosum la-
tinoemsua formavulgar.Funcionacomoauxiliar juntamente
comteúdoparaformaravozpassiva:“souobrigado”.
• raĩa:dolatimregina,comsíncopesdogedonintervocálicos,criandohiatocomvogalnasal,quedepoisviráaseresolvercom
aconsoantepalatal/ɲ/em“rainha”.
• queredes:doverbolatinoquaerere,“procurar”,queespecializaseusentidonolatimvulgarenoportuguêsarcaico,chegando
aosentidode“querer”.Dopontodevistafonético,note-seama-
nutençãodo-d-nadesinênciadesegundapessoadoplural.
• u:dolatimubi,“onde”.Provavelmenteobcaiuemsíncopein-
tervocálicaeoadvérbiosimplificou-separaumasílabaapenas.
História da Língua
96
Trata-se de uma forma que ainda sobrevive, por exemplo, no où
francês, mas que não sobreviveu em português.
• ca por al: “do que por outra coisa”. Al é uma forma derivada do
advérbio latino alius, aliud, “outro”, “outra coisa”. Essa forma so-
brevive em português apenas em empréstimos eruditos, como
“alternar” e “alteridade”.
• averem: do latim habere, com perda da oclusiva e passagem a
fricativa. O verbo aqui tem o sentido de “ter”.
• cras: latinismo, cras significava em latim “amanhã”, de onde te-
mos em português, por exemplo, o verbo “procrastinar”.
Capítulo 06O Português Clássico
97
O português clássicoNeste capítulo, olharemos para algumas características do português
clássico. É nessa fase do português que se encontram importantes obras literá-
rias, como “Os Lusíadas”, assim como importantes consolidações da estrutura
da língua.
Introdução
Conforme apresentamos em nossa periodização, a fase do portu-guês clássico engloba o período que vai de 1415 até 1572, coincidindo com o início das grandes navegações portuguesas e culminando com a publicação do épico Os Lusíadas. Em 1415, com a conquista de Ceu-ta, no norte da África, inicia-se um processo que levará o português para muitas regiões para além do mar, como o Brasil e vários territó-rios na costa da África, além da Índia e de outros territórios asiáticos. Mas esse período também foi muito importante para a consolidação de uma língua literária de forte expressão, especialmente com o advendo da dinastia de Avis, ou melhor, com a chamada Ínclita Geração, dos três filhos de D. João I, que viveu entre 1385 e 1433: D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique. Os três, em graus variados, foram responsáveis por uma pro-dução erudita inspirada por autores clássicos como Arisóteles, Cícero e Sêneca, escreveram obras importantes, como o Leal Conselheiro, de D. Diniz, e várias obras traduzidas dos clássicos.
Nesse período, a Universidade de Coimbra, fundada em 1290, é instalada em Lisboa e depois retorna a Coimbra, exercendo papel im-portante na produção e disseminação das letras, da gramática, da dia-lética e da retórica. Ao longo do século XV, também floresce a prosa historiográfica, com nomes importantes como Fernão Lopes. Todo esse movimento culminaria com o estabelecimento do português clássico, especialmente em virtude da produção renascentista, no qual a língua viria a se consolidar e retomar vários aspectos do latim, perdendo diver-sas alterações vulgares que vinham se desenvolvendo desde o período galego-português.
6
História da Língua
98
O período aqui compreendido, portanto, é aquele em que vemos o
centro de cultura de Portugal ser transportado do norte conservador
galego-português para o sul, no eixo Coimbra-Lisboa. O resultado disso
é uma mudança no modo de desenvolvimento da língua do sul, que
se baseia nos clássicos para desenvolver uma língua literária comum
(como uma koiné), supradialetal, que exercerá uma forte influência nos
períodos posteriores. A ruptura com o galego-português se dá com a
independência de Portugal e com o deslocamento da corte para o sul,
além do declínio natural na atividade literária trovadoresca (e a ruptura
com a influência provençal), ocorrendo assim uma mudança geral no
panorama linguístico-literário em Portugal.
6.1 Características do português clássico
As conquistas territoriais também foram importantes para a consoli-dação da língua portuguesa. Por volta de 1500, muitas das grandes navega-ções portuguesas já haviam ocorrido, frutos do impressionante movimento expansionista português. Nessa altura, Portugal já conhecia, além das ilhas da Madeira, os Açores, bem como Cabo Verde, a América, a África e tam-bém vários domínios na Ásia, como Damão, Macau, Ceilão (Sri-Lanka), Bombaim etc. O contato com diferentes realidades, povos, culturas e lín-guas exerceu algum impacto na língua portuguesa, principalmente em re-lação ao seu léxico, que incorporou inúmeras palavras originárias desses locais então exóticos – o português teve contato, durante a sua fase clássica, com diversas línguas, literalmente das mais diferentes partes do globo. Al-guns exemplos dessas incorporações lexicais são: zebra (do etíope), canja (do malabar, língua falada no Sri-Lanka), chá (mandarim), condor e lhama (do quéchua), chocolate (azteca), manga (indonésio), sagu (malaio), várias palavras de origem tupi, como ananás, amendoim, mandioca etc.
É sempre bom lembrar que o processo de empréstimos e enriqueci-
mento do léxico nunca para; posteriormente, o português também se
enriqueceu de palavras provenientes de outras línguas europeias, como
o francês, o italiano, o espanhol e, bem mais recentemente, do inglês.
Capítulo 06O Português Clássico
99
Para além de empréstimos das mais variadas línguas, o léxico so-freu grandes mudanças. Como vimos, com a perda do gênero neutro, muitas palavras apresentaram flutuações de gênero, de modo que ora eram masculinas, ora femininas. Nos períodos anteriores, inclusive, di-versas formas terminadas em consoante não possuíam formas diferen-tes para o masculino e o feminino. Uma dessas formas, muito frequente no período galego-português, é a forma de “senhor”, usada tanto para o masculino quanto para o feminino. Ao longo do século XV, no entanto, inicia-se um movimento de regularização dos gêneros, de modo que, possivelmente por causa da influência da nova forma “senhora” para o feminino, vários nomes terminados em consoante começam a receber uma forma feminina em –a. Assim, esse processo analógico se estende a outras formas, como as terminadas em –agem, que flutuavam em gêne-ro, e passarão a ser femininas (“linguagem” e “linhagem”, por exemplo, eram masculinas anteriormente).
Ainda do ponto de vista lexical, como dissemos anteriormente, o
século XV começa a receber muitos empréstimos latinos, em vir-
tude da chegada do Renascimento a Portugal. Da Ínclita Geração
dos príncipes de Avis até Camões, o português recebe um grande
influxo de latinismos, muitos dos quais virão a se fixar como formas
principais, enquanto outras sobreviverão lado a lado com as formas
mais antigas, que derivaram do latim vulgar.
Algumas das principais mudanças desse período de transição ini-ciado no século XV, que levaria ao português clássico, podem ser perce-bidas mais facilmente no plano fonológico. Vejamos algumas das mu-danças mais importantes:
• Síncopedo-d-nasegundapessoadoplural:emD.DinizeFer-
nãoLopesjáépossívelperceberqueo‘d’dasegundapessoado
pluralestavaseresolvendodaseguintemaneira:estades>esta-
es>estais,vendedes>vendees>vendeis.Umdadoimportante
éofatodeque,naspeçasdodramaturgoGilVicente(c.1465–c.
1536),o-d-intervocálicodesegundapessoadopluralaparece
comomarcadearcaísmonafaladepessoasmaisvelhas,oque
História da Língua
100
demonstra que, para o público do período, essa característica
era percebida como um traço de arcaísmo.
• Eliminação dos hiatos: como vimos no Capítulo anterior, uma
grande quantidade de hiatos foi criada com as quedas dos l, n, d
e g intervocálicos. Além disso, a recente perda do d na segunda
pessoa do plural aumentou a quantidade de hiatos. Esse período
de transição que inicia o período clássico resolveu o problema
dos hiatos através de três processos básicos: a monotongação, a
ditongação e a epêntese. Vejamos alguns exemplos:
1. Monotongação:
• quando o hiato consistia de vogais idênticas, ocorria a crase:
dolore > door > dor;
• quando o hiato consistia de vogais diferentes, em alguns
casos houve inicialmente a assimilação de uma das vogais,
com posterior crase: palumbu > pa-ombo > poombo >
pombo.
2. Ditongação:
• Uma das vogais do hiato passa inicialmente a semivogal,
com posterior ditongação: deus > /dɛos/ > /dɛws/ > /dews/.
3. Epêntese:
Há dois tipos de epêntese para resolver os hiatos: a vocálica,
criando ditongos, e a consonantal.
• A epêntese vocálica inicial permite a criação de ditongo
posteriormente: credo > cre-o > creio
• As epênteses de consoantes preenchem o hiato com uma
consoante diferente da que havia sido sincopada anterior-
mente: vinu > vĩ-o > vinho (epêntese de //), uma > ũ-a >
uma (epêntese de /m/).
Capítulo 06O Português Clássico
101
Outro fenômeno importante do período foi a unificação das ter-minações em ditongo nasal. Formas variadas como leõ (leão) e cã (cão), entre outras, resultariam no ditongo –ão /ɐw/. Vejamos o quadro a se-guir, de Castro (2006, p. 161):
Latim Português arcaico Português clássico
tam -am
-ã
tã
-ɐw
dant -ant dã
pane -ane pã
sum -um
-õ
sõ
sunt -unt sõ
oratione -one oraçõ
multitudine -udine multidõe > multidõ
veranu -anu-ã-u
verão
vadunt adunt vão
O sistema de sibilantes também apontava para uma simplificação. Nesse período, as sibilantes /ts/ e /dz/ já começavam a perder a oclusiva inicial, gerando algumas confusões por causa de homofonia com formas em /s/ e /z/. No século XV, no entanto, é possível afirmar que o sistema de quatro sibilantes ainda era /ts/, /dz/, /s/ e /z/, devidamente marcadas ortograficamente, gerando as seguintes oposições:
/ts/-/dz/ aceite – azeite
/s/ - /dz/ assar – azar
/ts/ - /s/ cela – sela
/s/ - /z/ cassa – casa
/ts/ - /z/ caça – casa
/dz/ - /z/ cozer – coser
A mudança para um sistema com apenas duas sibilantes, /s/ e /z/, completou-se em torno do século XVII.
Do ponto de vista morfológico, as mudanças mais importantes no século XV são:
História da Língua
102
• odesaparecimentodosparticípiosem–udodasegundaconju-
gação,queseregularizamem–ido,comoosoutros;
• regularizaçãodosparadgimasverbaisdeverboscomocrescer,
parecer, arder e perder. O subjuntivo desses verbos (paresca,nasca) e o indicativo (arço eperço) foram substituídos pelas
formaspareçaenasça,eardoeperdo(aformaatualéperco).
Com o nascimento de uma literatura mais sólida e com o forta-lecimento do Estado nacional, vemos na fase do português clássico as primeiras gramáticas portuguesas, assim como preocupações com o idioma nacional.
É interessante, neste ponto, citar um trecho do Leal Conselheiro, de D. Duarte, no qual ele discute o procedimento de tradução de palavras latinas para o português. Nota-se um cuidado grande em preservar as palavras da própria língua, evitando decalques latinos:
nom ponha pallavras latinadas ou de outra lynguagem; mas todo em
nossa lynguagem scripto, mais achegadamente geeral ao bom costu-
me de nosso fallar que se pode fazer. (Leal Conselheiro, cap. 99)
Como exemplos, podemos citar as seguintes gramáticas e textos dedicados à lingua portuguesa:
Ӳ 1536 – Gramática da linguagem portuguesa, de Fernão de Oli-veira;
Ӳ 1540 – Gramática / Diálogo em louvor da nossa linguagem, de João de Barros;
Ӳ 1576– Ortografia da língua portuguesa, Duarte Nunes de Leão.
Além de redigir uma gramática da língua portuguesa, João de Bar-ros era filho de um nobre português e foi comandante militar e tesou-reiro real em províncias portuguesas na África e na Ásia. João de Barros relatou sua estadia na Ásia, bem como a história das expedições por-tuguesas até lá, em seu livro Décadas da Ásia. Trata-se não apenas de um importante e rico documento histórico, mas apresenta também a língua portuguesa em sua fase clássica. O trecho a seguir, extraído das
Capítulo 06O Português Clássico
103
Décadas, é de fácil compreensão a um leitor de hoje, principalmente se comparado aos textos da fase arcaica.
6.2 Texto Décadas da Ásia
Fac-símile do texto Décadas da Ásia – capítulo VII, p.322-323, de João de Barros. Disponível em: <http://purl.pt/7030/1/l-79443-p/l-79443-p_item1/P370.html> e <http://purl.pt/7030/1/l-79443-p/l-
79443-p_item1/P371.html>. Acesso em: 09 abr. 2010.
A seguir, apresentamos uma transcrição do texto apresentado na figura acima; os trechos entre parênteses são formas atuais de certas pa-lavras.
Livro IV, Capítulo VII
Em que se descreve o sitio da terra, a que propriamente chama-
mos India dentro do Gange (Ganges), na qual se contém a Pro-
vincia chamada Malabar, um dos Reynos (reinos) da qual he (é) o
(ou) em que está a Cidade Calecut, onde Vasco da Gama aportou.
A Região, a que os Geografos propriamente chamam India, he (é)
a terra que jaz entre os dous (dois) ilustres, e celebrados rios Indo,
e Gange, do qual Indo ela tomou o nome; e os póvos do antiquís-
-simo Reyno Delij, cabeça per (por) sítio, e poder de toda esta região,
História da Língua
104
e assi (assim) a gente Parsea (persa) a ela vezinha, ao presente per
(por) nome próprio lhe chamam Indostan (Indostan). E segundo
a diliniação (delineação) da Tábua, que Ptolomeu faz della, e mais
verdadeiramente pela notícia que ora com o nosso descobrimento
temos, per (por) excelência bem lhe podemos chamar a grão Me-
sopotamia. Porque se os gregos deram este nome, que quer dizer,
entre os rios, áquela (àquela) pequena parte da região Babylonica,
que abraçam os dous (dois) rios Eufrates, e Tigres; assi (assim) pela
situação desta entre as correntes dos notaveis Indo e Gange, que
descarregam e vasam suas aguas em o grande Oceano Oriental, por
fazermos diferença della mais notavel do que se faz em dizer india
dentro do Gange, e Índia além do Gange, bem lhe podemos chamar
a grão Mesopotâmia, ou Indostan, que he (é) o próprio nome que
lhe dão os povos que a habitam, e vizinham, por nos conformarmos
com eles. A qual região as correntes destes dois rios per (por) huma
(uma) parte, e o grande Oceano Indico per outra, a cércão (cercam)
de maneira, que quasi (quase) fica huma (uma) Chersonezo (quer-
soneso, península) entre terras de figura de lisonja, a que os Geo-
metras chamam rhombos (rombos), que he (é) de iguales (iguais)
lados, e não de angulos retos. Cujos angulos oppositos em maior
distancia jazem Norte Sul: o do angulo desta parte do Sul faz o cabo
Comorij, e o da parte do Norte as fontes dos mesmos rios. As qua-
es (quais), peró que (por) sobre a terra arrebentem distinctas em os
montes, a que Ptholomeu chama Imáo, e os habitadores (habitan-
tes) deles Dalanguer, e Nangracor, são estes tão conjunctos huns aos
outros, que quasi querem esconder as fontes destes dous (dois) rios.
Apesar da grande familiaridade com que se nos apresenta o tex-to original, ainda há diversos traços que os diferenciam do português de hoje. As principais diferenças se referem à modalidade escrita e à ortografia; sobre isso, é interessante notar o uso de h, que pode servir para indicar abertura vocálica (he) ou ser simplesmente mudo (hum), e também a pontuação: a colocação de vírgulas e pontos finais é bastante distante do que temos hoje. Outras diferenças ocorrem em relação à marcação do acento, que, comparado ao português de hoje, ora está au-
Capítulo 06O Português Clássico
105
sente, ora difere do que temos e ora simplesmente continuou até os dias de hoje. Um exemplo interessante aqui é a notação da crase (preposição “a” + palavra iniciada por “a-”) em àquela.
Mas muito mais interessantes são algumas características do portu-guês arcaico que ainda são possíveis de detectar. Podemos ver na grafia da palavra iguales (iguais) que a queda dos -l- finais intervocálicos ainda não estava completa e na grafia da palavra cércão (cercam) que a escrita para nasalização também não estava completa. Em cércão, o acento no “e” marca a sílaba tônica da palavra e o -ão marca a nasalização. Atual-mente, as palavras não oxítonas que terminam com vogais ou ditongos nasais não são grafadas com -ão, com exceção de “órgão”, “órfão” e simi-lares, que também leva acento agudo em “ór-”.
Como comentário final, é interessante notar o ótimo domínio de João de Barros da linguagem escrita e sua argumentação sobre a “grão Mesopotamia”.
Capítulo 07O Português em Portugal depois de 1500
107
O português em Portugal depois de 1500 e a Língua Portuguesa no mundo
Veremos, neste capítulo, as principais mudanças sofridas pelo portu-
guês europeu depois de 1500. Num segundo momento, olharemos para a
situação da língua portuguesa no mundo de hoje, para os países que a têm
como língua oficial, o número total de falantes e outros dados globais sobre a
língua portuguesa.
Como já mencionamos anteriormente (ver Capítulo 5), estabelecer precisamente os períodos relevantes para a história de uma língua não é tarefa fácil. Na divisão que propomos, utilizamos como marco para a passagem do português clássico ao português moderno a data de publi-cação da obra Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, que é 1572.
Nunca é demais lembrar que isso não significa que as mudanças que
ocorreram na língua portuguesa esperaram essa data para acontecer
ou se solidificar. É justamente devido a esses limites movediços que
podemos também tomar a data de 1500, a virada do século XV para o
XVI, como um marco histórico importante a partir do qual considerare-
mos não apenas as mudanças que o português europeu (de Portugal)
sofreu, como também a partir do qual as diferenças entre o português
brasileiro e o europeu podem ser consideradas como conservadoris-
mos ou inovações deste em relação àquele.
Neste capítulo, veremos num primeiro momento quais foram as maiores mudanças estruturais pelas quais passou o português europeu depois do século XVII; muitas dessas mudanças ocorreram apenas em Portugal e respondem pela grande diferença que percebemos entre o português brasileiro e o europeu. Em um segundo momento, olharemos para a situação da língua portuguesa no mundo hoje, para os países em que ela é considerada língua oficial e para as localidades que têm criou-los de base portuguesa.
7
História da Língua
108
7.1 O português europeu depois de 1572
Em 1572, durante a batalha de Alcácer-Quebir, parte de uma cam-panha frustrada de conquistar o Marrocos, Portugal perdeu seu rei, Dom Sebastião, sem deixar herdeiros. Devido aos meandros dos direi-tos da sucessão de Dom Sebastião, oito anos depois, o rei Felipe II da Espanha reivindicou a sucessão real portuguesa e fez de Portugal uma província espanhola de 1580-1640. A independência foi devolvida a Portugal somente com o movimento conhecido como “Restauração”, sob o domínio da dinastia de Bragança, tendo Dom João IV à frente.
Os sessenta anos de dominação espanhola se fizeram sentir na língua
portuguesa de diversas maneiras, tanto estruturais quanto cultural-
-literárias. Do ponto de vista estrutural, podemos citar o uso da pre-
posição a antes de objeto direto (como em amar a Deus ao invés de
amar Deus), bem como a assimilação de palavras espanholas em de-
trimento a palavras portuguesas já existentes (por exemplo, a substi-
tuição do português castelão pelo espanhol castelhano). Do ponto
de vista cultural, era possível encontrar obras literárias portuguesas
escritas diretamente em espanhol, que passou então a ter, muito pro-
vavelmente, um prestígio bastante elevado, entre outras coisas, por
ser a língua da Coroa. Contudo, mesmo a influência espanhola não
barrou o desenvolvimento e a consolidação de mudanças profundas
na língua portuguesa que tiveram início ainda no século XVI.
Essas mudanças tiveram como centro irradiador a região centro--sul de Portugal e apenas algumas delas são compartilhadas pelo portu-guês brasileiro. Citamos, a seguir, algumas dessas mudanças em relação, primeiramente, à estrutura fonético-fonológica do português (cf. ILA-RI; BASSO, 2006; TEYSSIER, 1997):
Capítulo 07O Português em Portugal depois de 1500
109
1. o ditongo /ow/ sofreu monotongação para /o/, além de alter-
nar-se, às vezes, com /oj/, como em touro – toro, louro – loiro;
essas mudanças também ocorreram por volta do século XVII;
2. ainda no século XVII, a africada [tʃ] simplificou-se em [ʃ]; tal mo-
dificação aplica-se a casos como macho, chave;
3. passando ao século XVIII, encontramos a pronúncia “chiante” de
/s/ e /z/ em finais de sílaba e de palavras, como em dois [‘doiʃ], mesmo [‘meʒmu], paz [‘paʃ].
Das mudanças enumeradas até agora, as duas primeiras também ocorreram no português do Brasil de maneira generalizada. A realiza-ção “chiante” de /s/ e /z/ em finais de sílaba e de palavra é o caso, atual-mente, em duas situações:
a) de maneira bastante generalizada: Rio de Janeiro, Belém, algu-mas cidades litorâneas em diferentes graus (Piçarras, Garopa-ba, Florianópolis, Recife);
b) de maneira tendencial, mas não generalizada: região Nordeste, entre a Bahia e o Maranhão.
As mudanças enumeradas a seguir não são registradas no portu-guês brasileiro (ou ocorrem apenas em nichos bastante localizados):
1. do século XVIII em diante, o português sofreu uma redução das
vogais átonas, tanto das pretônicas quanto das postônicas. Atu-
almente, em Portugal, temos como vogais postônicas não finais
/i/, /e/ (realizado como [ɛ] ou [ə]), /a/ (realizado como [ɐ]), /o/
(realizado como [u] ou [ɔ]) e /u/. As formas [ə] e [ɐ] são reduções
postônicas não finais que o português do Brasil desconhece. Em
posição final, temos também a redução de /e/, /a/ e /o/ para,
respectivamente, [ə], [ɐ] e [u]. Em posição pretônica, temos as
seguintes vogais: /i/, /e/ (realizado como [ɛ] ou [ə]), /a/ (rea-
lizado como [ɐ]), /o/ (realizado como [o], [ɔ] ou [u]) e /u/. No
português europeu, justamente devido a essa evolução de
História da Língua
110
seu sistema vocálico, há ainda diferenças entre “pregar”, fixar com
pregos, que se pronuncia como [prə’gar ], e cuja origem remon-
ta ao latim plicāre, e “pregar”, dar um sermão, que se pronuncia
como [prɛ’gar], e cuja origem remonta ao latim praedicāre. O
português europeu diferencia o presente e o pretérito perfeito
da primeira pessoa do plural através da oposição entre [a] e [ɐ], como em cantamos no presente (a vogal tônica é [ɐ]) e cantá-mos no pretérito perfeito (a vogal tônica é [a]). É principalmente
essa redução das vogais do português europeu que dá a impres-
são aos ouvidos brasileiros de que eles “comem as sílabas” ou
“falam mais rápido”; o enfraquecimento das vogais átonas deu
mais saliência às vogais tônicas, fazendo com o português euro-
peu tenha sua prosódia particular;
2. ainda com relação às vogais, a partir do século XIX, os ditongos
/ej/ e /ej/ evoluem para /aj/ e /aj/ n português europeu (assim,
é possível rimar bem com mãe; e pronuncia-se “peito” como
[‘pɐjtu]);
3. redução /e/ diante de palatal, como na pronúncia [iʃ’pɐʎu] para
espelho.
Alguns pesquisadores relatam também a africação das plosivas so-
noras /b/, /d/ e /g/, resultando em /β/, /δ/, /γ/, no português euro-
peu, quando entre vogais. Ao longo deste livro, voltaremos a essas
características em contraste com o português brasileiro, tanto para
buscar sua origem quanto para salientar a especificidade das varie-
dades de português europeu e brasileiro.
Ainda sobre o português em Portugal, é interessante notar que encontramos lá uma série de dialetos de português, cada um com ca-racterísticas particulares. O mapa abaixo, extraído do site do Instituto Camões, ilustra as regiões dialetais de Portugal.
Capítulo 07O Português em Portugal depois de 1500
111
Área dos dialectos galegos
Área dos dialectos portuguesescentro-meridionais
Área dos dialectos portuguesessetentrionais
Mirandês
Mapa – Regiões dialetais de Portugal. Fonte: Instituto Camões. Disponível em: <http://cvc.instituto-camoes.pt/cpp/acessibilidade/capitulo1_1.html>. Acesso em: 05 maio 2010.
Vejamos a seguir a condição da língua portuguesa no mundo, com exceção de Portugal e do Brasil.
7.2 Português no mundo
O sucesso das navegações portuguesas está não apenas na econo-mia e nas conquistas materiais, mas também na expansão da cultura portuguesa por todo o globo. E um desses legados culturais principais é justamente a língua portuguesa, que é língua oficial de diversos países.
Em 17 de julho de 1996, foi criada a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP, por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bis-
História da Língua
112
sau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Em 2002, com sua independência da Indonésia, o Timor Leste foi também acolhido como país integrante. Apesar de os países citados terem o português como lín-gua oficial, excetuando-se Portugal e Brasil, há diferentes graus em que o português é de fato sua língua vernácula: muitas vezes, ele está lado a lado com línguas locais e outras tantas vezes é aprendido apenas na escola, tendo como centro áreas urbanas. Não obstante, a CPLP tem um importante papel político, social e econômico, estreitando, através da língua portuguesa, laços entre países em quatro diferentes continentes. O mapa abaixo localiza os países membros da CPLP:
Países Membros
Países Associados
Cabo Verde
Portugal
Países Membros da CPLP (Comunidade de Países de Lígua Portuguesa)
Brasil
Guiné-BissauGuiné-Equatorial
Angola Ilhas MaurícioTimor-Leste
Senegal
São Tomée Princípe
Moçambique
Mapa – Países membros da CPLP. Mapa disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Comuni-dade_dos_Pa%C3%ADses_de_L%C3%ADngua_Portuguesa>. Acesso em: 05 maio 2010.
Além dos países já citados, são também membros efetivos da CPLP os territórios de Goa (pertencente à Índia) e Macau (pertencente à China).
Os países da CPLP, conforme dissemos, têm o português como lín-gua oficial. Porém, a expansão marítima portuguesa também resultou na formação de inúmeros crioulos de base portuguesa, espalhadas ao redor do mundo. O mapa abaixo ilustra alguns desses crioulos.
Capítulo 07O Português em Portugal depois de 1500
113
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9
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História da Língua
114
A população dos países que compõem a CPLP (juntamente com Macau e Goa) totaliza mais de 240 milhões de pessoas.
País População
Angola 16.900.000 (em 2007)
Brasil 191.480.630 (em 2009)
Cabo Verde 499.796 (em 2008)
Guiné-Bissau 1.472.446 (em 2008)
Moçambique 20.069.738 (em 2008)
Portugal 10.627.250 (em 2008)
São Tomé e Príncipe 157.000 (em 2005)
Timor-Leste 1.100.000 (em 2007)
Goa 1.347.668 (em 2001)
Macau 538.000 (em 2007)
Além disso, há um grande número de falantes de português que não estão nesses países, como é o caso do elevado número de brasileiros na América do Norte, na Europa e no Japão, e de portugueses e afri-canos (falantes de português) em países que não falam português. Al-gumas vezes, a população de imigrantes é tão grande e organizada que muitos costumes são levados junto com eles, bem como a língua portu-guesa; algumas dessas comunidades contam inclusive com publicações em português em países que não o têm como língua oficial.
Não obstante essas dificuldades para estabelecer o número exato
de falantes do português, o certamente grande contingente popu-
lacional de falantes faz com que o português seja a sétima língua
mais falada no mundo, e isso o reveste de prestígio. Por exemplo, o
português é língua oficial das seguintes organizações: União Afri-
cana, União Europeia, UNASUL (União de Nações Sul-Americanas),
Mercosul, OEA (Organização dos Estados Americanos), CPLP, União
Latina; há um movimento que reivindica o português como língua
oficial da ONU; a língua portuguesa é ensinada obrigatoriamente no
Uruguai, na Argentina e em Zâmbia.
Note que é sempre difícil realizar tais estimativas,
pois muitas vezes o por-tuguês não é a primeira
língua de muitos dos habi-tantes dos países listados e é aprendido (quando o
é) em diferentes graus.
Capítulo 07O Português em Portugal depois de 1500
115
Uma população tão grande de falantes revela-se também um im-portante mercado consumidor, o que leva, em consequência, os comer-ciantes, empresas e outros a veicular seus produtos em língua portugue-sa, principalmente através de propagandas. Mais interessante ainda, do ponto de vista comercial, seria se os meios de comunicação, em especial aqueles escritos, fossem uniformes – numa situação como essa, um ma-nual de um produto qualquer poderia ser escrito numa ortografia pa-dronizada para todos os membros da CPLP e igualmente circular por todos. Assim, não é difícil ver na atual reforma ortográfica portuguesa, para além da unificação da escrita de alguns países de fala portugue-sa, também um interesse comercial. Sofreria um impacto imediato, por exemplo, todo o mercado editorial, pois as publicações não teriam mais que ter suas ortografias revistas a depender do país em que vão circular.
Resumo
Nesta unidade, investigamos a história do português antes de sua chegada à América. Apresentamos, num primeiro momento, a forma-ção linguística da Península Ibérica e os conceitos de substrato, supers-trato e adstrato. Depois de apresentarmos o problema da periodização de uma língua, exploramos as várias fases do português e suas caracte-rísticas principais. Vimos também que as línguas são dinâmicas e que as mudanças que atribuímos a determinadas fases ou períodos não têm, na verdade, limites tão bem definidos, ou seja, podem ser encontradas an-tes ou depois dos limites que impomos enquanto pesquisadores. Anali-samos uma série de textos antigos, justamente com o intuito de capturar as características que enquadram, para além de sua data, um determina-do texto num dado período da história do português.
Leia mais!
Como sugestões de leitura, podemos citar as obras de Castro (2006), Spina (org., 2008), Mattoso-Camara Jr. (1976), Teyssier (1997) e Ilari e Basso (2006), que apresentam uma visão geral sobre a formação da lín-gua portuguesa desde os seus primórdios até sua fase moderna. Sobre o português arcaico, podemos citar os trabalhos de Mattos e Silva (1991, 1991a). Novamente, a partir desses textos o leitor encontrará inúmeros outros que possam saciar sua curiosidade.
Os dados completos des-sas obras se encontram nas Referências.
Unidade CHistória do Português na América
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Capítulo 08Chegada do Português na América
119
Chegada do Português na América: a delimitação das Fronteiras e a periodização do português brasileiro
Neste capítulo, exploraremos algumas questões sobre a fixação da língua
portuguesa na América. Olharemos para a variedade histórica de português
que chegou ao território brasileiro e para o substrato linguístico que havia
aqui. Por fim, discorreremos sobre os problemas relativos à periodização do
português brasileiro.
No capítulo anterior, analisamos as mudanças que o português eu-ropeu sofreu depois do século XVI. Neste capítulo e no seguinte, vamos regressar novamente ao século XVI para analisarmos a história do por-tuguês no Brasil, suas características e seu desenvolvimento, assim como sua formação para, por fim, contrastá-lo com o português europeu.
Apesar de o Brasil ter sido descoberto em 1500 por Pedro Álvarez Cabral e sua frota, a ocupação efetiva do território se deu a partir de 1532, com a expedição de Martim Afonso de Souza e a fundação da Vila de São Vicente. Logo após essa expedição, entre 1534 e 1536, Dom João III doou as 12 capitanias hereditárias do Brasil para altos funcionários da corte e comandantes militares. Tem então início a colonização por-tuguesa da América.
Poderíamos tomar a carta de Pero Vaz de Caminha como um bom
exemplo da língua que chegou ao Brasil. Ao lado dessa carta, que é
também considerada o texto fundador da literatura brasileira, po-
demos situar o texto de Os Lusíadas, de Luis de Camões. Esse gran-
de épico poético foi terminado por volta de 1556 e publicado em
1572, justamente a data que tomamos como o início do português
moderno. Podemos então concluir que o português que chegou ao
Brasil era o clássico, já em transição para o português moderno.
8
História da Língua
120
Tomemos um trecho da Carta de Caminha, na qual ele descreve os habitantes nativos do Brasil, mantendo as linhas como no original:
afeiçam deles he seerem pardos maneira dauerme
lhados de boõs rrostros e boos narizes bem feitos. / am
dam nuus sem nenhuu[m]a cubertura. nem estimam n
huu[m]a coussa cobrir nem mostrar suas vergonhas. e
estam açerqua disso com tamta jnocemçia como
teem em mostrar orrostro. / traziam ambos os beiços
de baixo furados e metidos por eles senhos osos
doso bramcos de compridam dhuu[m]a maão travessa
e de grossura dhuu[m] fuso dalgodam e agudo na põta
coma furador. mete[m] nos pela parte de dentro do bei
ço e oque lhe fica antre obeiço eos demtes he feito
coma rroque denxadrez. e em tal maneira o trazem
aly emcaxado que lhes nom da paixã nem lhes tor
ua afala nem comer nem beber. / os cabelos seus
sam coredios e andauã trosqujados de trosquya
alta mais que de sobre pemtem deboa gramdura
e rrapados ataa per cjma das orelhas. e huu[m] deles
trazia per baixo da solapa de fonte afonte pera detras
huu[m]a maneira de cabeleira de penas daue ama
rela que seria decompridam dhuu[m] couto. muy
basta e muy çarada que lhe cobria otoutuço eas ore
lhas. aqual amdaua pegada nos cabelos pena e
pena com huu[m]a comfeiçam branda coma cera e
nõ no era. demaneira que amdaua acabeleira
muy rredomda e muy basta e muy jgual que nõ
fazia mjngoa mais lauajem peraa leuantar.
(Fonte: : <http://cms-oliveira.sites.uol.com.br/1500_carta_de_caminha.html>. Acesso em: 05
maio 2010.)
Provavelmente você teve alguma dificuldade para ler este trecho, mas – e isso é bastante interessante – tal dificuldade deve-se, sobretudo, à orto-grafia, que na época estava longe de cristalizar-se. Tente ler novamente o trecho, agora numa transcrição com a ortografia ora usada no Brasil:
Capítulo 08Chegada do Português na América
121
afeiçam deles he seerem pardos maneiradauermelhados de boõs rrostros e boos narizes bem feitos. / amdam nuus sem nenhuu[m]a cubertura. nem esti-mam n huu[m]a coussa cobrir nem mostrar suas vergonhas.e estam açerqua disso com tamta jnocemçia comoteem em mostrar orrostro. /traziam ambos os beiços de baixo furados e meti-dos por eles senhos ososdoso bramcos de compridam dhuu[m]a maão tra-vessae de grossura dhuu[m] fuso dalgodam e agudo na põta coma furador. mete[m] nos pela parte de dentro do beiçoe oque lhe fica antre obeiço eos demtes he feito coma rroque denxadrez.e em tal maneira o trazem aly emcaxado que lhes nom da paixã nem lhes tor ua afala nem comer nem beber. /os cabelos seus sam coredios e andauã trosquja-dos de trosquya alta mais que de sobre pemtem deboa gramdura e rrapados ataa per cjma das orelhas. e huu[m] deles trazia per baixo da solapa de fonte afonte pera de-tras huu[m]a maneira de cabeleira de penas daue amarela que seria decompridam dhuu[m] couto. muy basta e muy çarada que lhe cobria otoutuço eas orelhas.aqual amdaua pegada nos cabelos pena e pena com huu[m]a comfeiçam branda coma cera e nõ no era. demaneira que amdaua acabeleira muy rredomda e muy basta e muy jgual que nõ fazia mjngoa mais lauajem peraa leuantar.
A feição deles é serem pardos, maneirade avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. / andam nus, sem nenhuma cobertura. nem estimam n um a coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas.
e estão acerac disso com tanto inocência comotêm em mostrar o rosto. /traziam ambos os beiços de baixo furados e meti-dos por eles seus ossos brancos de compridão de uma mão travessa
e de grossura de um fuso de algodão e agudo na ponta como um furador. metem-nos pela parte de dentro do beiçoe o que lhe fica entre o beiço e os dentes é feito como roque de xadrez.e em tal maneira o trazem ali encaixado que lhes não dá paixão nem lhes estorvam a fala nem comer nem beber. /os cabelos seus são corredios e andavam tosquia-dos de tosquia alta mais que de sobre-pente de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. e um deles
trazia por baixo da solapa de fonte a fonte por detras uma maneira de cabeleira de penas de ave amarela que seria da compridão de um coto. mui basta e mui cerrada que lhe cobria o toutiço e as orelhas.a qual andava pegada nos cabelos pena e pena com uma confeição branda como cerae não o era. de maneira que andava a cabeleira mui redonda e mui basta e mui igual que e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
Se levarmos em conta que se trata de um texto escrito em 1500, é bastante espantoso o quanto ainda podemos entender. Obviamente, há muitas coisas que nos soam estranhas, mas trata-se principalmente de certos usos de palavras ainda vivas que diferem do que temos hoje (por exemplo, ao invés de “maneira” usaríamos talvez “tipo” ou “espé-cie”); contudo, não há nenhuma construção que nos impeça de entender o conteúdo deste trecho da Carta de Caminha. Ainda como exercício, compare a simples transcrição para a ortografia contemporânea que apresentamos anteriormente com a adaptação que mostramos a seguir:
História da Língua
122
A feição deles é serem pardos, maneira de aver-melhados,de bons rostos e bons narizes, bem feitos. /andam nus, sem nenhuma cobertura.nem estimam n um a coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas.e estão acerac disso com tanto inocência comotêm em mostrar o rosto. /traziam ambos os beiços de baixo furados e meti-dos por eles seus ossos brancos de compridão de uma mão travessae de grossura de um fuso de algodão e agudo na ponta como um furador.metem-nos pela parte de dentro do beiçoe o que lhe fica entre o beiço e os dentesé feito como roque de xadrez.e em tal maneira o trazem ali encaixado que lhes não dá paixão nem lhes estorvam a fala nem co-mer nem beber. /os cabelos seus são corredios e andavam tosquiados de tosquia alta mais que de sobre-pente de boa grandurae rapados até por cima das orelhas. e um deles trazia por baixo da solapa de fonte a fonte por detras uma maneira de cabeleira de pe-nas de ave amarelaque seria da compridão de um coto. mui basta e mui cerrada que lhe cobria o toutiço e as orelhas. a qual andava pegada nos cabelos pena e pena com uma confeição branda como cera enão o era. de maneira que andava a cabeleira mui redonda e mui basta e mui igual que e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
A feição deles é serem pardos, um tanto averme-lhados,de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma.Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhasdo que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência.Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro,de comprimento de uma mão travessa,e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador.Metem-nos pela parte de dentro do beiço;e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentesé feita a modo de roque de xadrez.E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber. Os cabelos deles são corredios.E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza,rapados todavia por cima das orelhas. um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela,que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas.E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira eramui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
(Fonte: <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatu-ra/carta.html>. Acesso em: 05 maio 2010)>
Capítulo 08Chegada do Português na América
123
As principais diferenças são estilísticas, ainda mais se comparar-mos o trecho em questão da Carta com o português coloquial.
Mas a Carta também apresenta elementos de um português mais antigo, que podemos depreender apenas através da escrita e de sua oscila-ção. Como exemplo, temos o uso de <u> por <v>, o que pode indicar que a pronúncia /v/ ainda não estava totalmente solidificada, as várias formas de marcar nasalização (com <m>, <n> e <~>), a oscilação do uso de <h>, e a repetição de certas vogais, provavelmente para marcar o acento.
Tomemos agora o texto de Camões:
As armas, & e os barões assinalados,
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos, & guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana.
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
A língua de Camões é ainda mais próxima para nós que a de Caminha,
pelo menos em sua forma escrita. Isso mostra, entre outras coisas, como
a mídia impressa força a padronização do texto, e essa pressão à padro-
nização segue seu curso até hoje. De uma forma ou de outra, foi essa
variedade de português que aportou ao Brasil em 1500 por meio dos
colonos que chegaram mais intensamente a partir de 1532.
“[...] traziam ambos os beiços de baixo furados e metidos por eles seus ossos brancos de compri-dão de uma mão travessa e de grossura de um fuso de algodão e agudo na ponta como um furador” vs. “ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossu-ra de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador”.
História da Língua
124
Vejamos então como se deu a colonização brasileira para podermos entender como essa língua se manteve num território com dimensões continentais.
8.1 A formação do território nacional
Os portugueses fundaram diversos núcleos de povoa-mento na costa brasileira, seguindo as capitanias hereditá-rias cedidas pelo rei Dom João III. A grande maioria dessas fundações se deu a partir de 1530, começando pela Vila de São Vicente, em 1532. Entre 1530 e 1570, foram fundados os povoamentos de São Vicente, São Bernardo da Borba do Campo, Recife, Ilhéus, Olinda, Santos, Salvador, Santo An-dré, São Paulo, Vitória, Rio de Janeiro, entre outros.
É bom lembrar, contudo, que em 1494, Portugal e Es-panha firmam o Tratado de Tordesilhas. Segundo o tratado, deveria ser traçada uma linha imaginária situada a 370 lé-guas a oeste de Cabo Verde, que dividiria os territórios a
serem ainda descobertos. Sabe-se hoje que tal linha imaginária passaria por Bélem, no Pará, e Laguna, em Santa Catarina. De acordo com esse Tratado, apenas a região situada ao leste dessa linha Belém-Laguna per-tenceria a Portugal.
O Brasil foi, no entanto, palco de um grande movimento de ex-ploração de seu interior, sempre partindo dos povoamentos litorâneos. Esses movimentos tiveram um papel fundamental na delimitação do que é hoje o território brasileiro e violaram completamente o Tratado de Tordesilhas, pois aprofundavam-se no território para além da linha traçada pelo Tratado.
Um dos resultados diplomáticos imediatos da expansão portugue-sa para o interior do território recém-descoberto foi a redação de diver-sos tratados entre Portugal e Espanha para a resolução dos conflitos de possessão de terras e definição de limites e fronteiras. Apenas para se ter uma ideia, somente no século XVIII, entre 1710 e 1780, houve ao menos três tratados dessa natureza, que descrevemos brevemente abaixo:
Fonte: mapa de Luis Teixeira, por volta de 1586.
Capítulo 08Chegada do Português na América
125
a) Tratado de Utrecht – 1715: devolveu aos portugueses a Colô-nia de Sacramento, disputada desde o começo do século XVI por portugueses e espanhóis; atualmente pertence ao Uruguai (1828);
b) Tratado de Madri – 1750: este foi o mais importante dos tra-tados sobre as fronteiras brasileiras e espanholas na América, vindo a substituir o Tratado de Tordesilhas. No Tratado de Ma-dri, as fronteiras foram delimitadas a partir de características geográficas (montanhas, rios, depressões) e não simplesmente em função da distância a partir de algum ponto. Para sua ela-boração prevaleceu um princípio do direito conhecido como uti possidetis, ita possideatis (quem possui de fato, deve possuir de direito); com este Tratado, o mapa do Brasil aproxima-se bastante do atual. Vale notar que sua negociação foi feita pelo brasileiro Alexandre Gusmão;
c) Tratado de Santo Idelfonso – 1777: este Tratado lidava com a situação das missões jesuíticas nos lados português e espa-nhol, principalmente com relação aos Sete Povos das Missões, no sul do Brasil, fazendo fronteira com Argentina, Uruguai e Paraguai.
Obviamente, a implementação desses tratados – quando eles sim-plesmente não eram o efeito tardio de uma ocupação já ocorrida – foi muito mais problemática do que a assinatura de um documento político deixa transparecer, e muitas vezes bastante sangrenta. Em especial, vale mencionar as “Guerras Guaraníticas”.
À altura da implementação do Tratado de Madri, várias missões jesuíticas estavam fixadas tanto do lado português quanto do lado es-panhol; porém, com esse Tratado, algumas missões estavam agora do “lado errado”, ou seja, missões de jesuíticas portuguesas estavam agora em território espanhol e vice-versa, e ninguém estava disposto a sim-plesmente “trocar de lado” (se é que isso era realmente uma possibi-lidade). O resultado dessa situação foi várias décadas de conflitos ex-tremamente violentos entre índios e colonizadores, com um resultado
História da Língua
126
invariavelmente trágico para os índios. A posição dos jesuítas também não foi confortável nesses conflitos: se apoiassem os índios, estariam se rebelan-do contra seu país; se apoiassem seu país, seriam considerados traidores pelos índios.
O resultado final de todos os acordos e batalhas foi o estabele-cimento de fronteiras da Amé-rica portuguesa que em muito lembram as fronteiras atuais do Brasil. Como apresentamos à es-querda, o mapa do Brasil no fim do século XVIII já é muito pró-ximo do mapa atual, as maiores diferenças estão na região Ama-zônica, como a da ausência do Acre, território que foi adquiri-do da Bolívia em 1903, e na con-figuração da região Sul.
Os diversos movimentos expansionistas para exploração e povoamento protagonizados pelos portugueses a partir da
costa brasileira, que foram de extrema importância para a constituição do território nacional e para a delimitação de suas fronteiras, partiram todas as vezes do litoral, onde estavam os primeiros núcleos de povoa-mento. O mapa da página seguinte representa alguns desses movimen-tos principais:
Ӳ De Salvador parte um movimento, ainda no século XVI, que terá como resultado a fundação da Vila de São Vicente, bem como influenciará a fundação de São Paulo. Um pouco mais tarde, também de Salvador, parte o movimento que fará os pri-
O Brasil está representado pela linha verde. Autor: Daniel Adams (1832). (Disponível em: <http://www.davidrumsey.com/luna/servlet/detail/RUMSEY~8~1~28016~1120159:South-America--Published-by-Lincoln?sort=Pub_List_No_InitialSort%2CPub_Date%2CPub_List_No%2CSeries_ No&qvq=q:south+america;sort:Pub_List_No_InitialSort,Pub_Date,Pub_List_No,Series_No;lc:RUMSEY~8~1&mi=19&trs=1396>. Acesso em: 05 maio 2010).
Capítulo 08Chegada do Português na América
127
meiros assentamentos na região da Serra do Curral, em Minas Gerais, e também um movimento que chegará ao centro do Piauí.
Ӳ Da região de São Paulo e São Vicente, partem vários movimen-tos liderados por bandeirantes, mais ao fim do século XVI. Es-
Forte de São Sebastião
Forte dos Reis Magos
Forte de S. Felipe
Fortaleza
Olinda
Recife
Salvador
Rio Contas
Porto Seguro
CurralDel Rei
Rio Grande
Vila Boa(Goiás)
Rio Guaporé
Forte Principe da Beira
Vila Bela da SS. Trindade(Mato Grosso)
Vila Real do SenhorBon Jesus do Cuiabá
Brejo do Salgado(Januária)
Vila Rica(Ouro Preto)
Rio de Janeiro
São Paulo
SantosSão Vicente
CananéiaParanaguá
São Francisco
N S. do Desterro(Florianópolis)
S Antônio dosAnjos de Laguna
Viamão
Rio
Para
guai
Rio
Urugua
i
Rio Paraná
Tape
Uruguai
Guairá
Itatim
Assunción Curitiba
Iguape
Rio Grande deSão Pedro
MontevidéuBuenos
Aires
Colônia doSacramento
TijucoDiamantina
Salto Grande
Ilhéus
Palmares
Felipéia de N. S.das neves
Aquiráz
Rio piranha
Forte de São Joséde Marabitanas
Reduto de São FranciscoXavier de Tabatinga
Rio Solimões
Rio Madeira
Barra doRio Negro
Capitania de São Josédo Rio Negro
Rio Amazonas
N. S. de Belém
Vila Mocha(Oeiras)
Rio Piauí
Rio Jequitinhonha
Francisco
S. Luís
Capitania do Cabo Norte
Rio Negro
Rio
Bran
co
Forte de São Joaquim
Natal
Rio
Parn
aíba
Rio
Itabicu
ru
Rio Itapicuru
Rio Paraguaçu
Rio Velhas
Rio
Cuiab
á
Rio
Gurg
ueia
Expansão do Núcleo Paraense
Expansão do Núcleo Baiano
Expansão do Núcleo Vicentino-Paulistano
Expansão do Núcleo Maranhense
Expansão do Núcleo Pernambucano
Ciclo de aprisionamento de indígenas
Ciclo de sertanismo de contrato
Grande ciclo do ouro
Focos de expansão
Áreas de mais forte atuação do sertanismo de contrato
Fortes e reduto
Sedes de Governos Gerais
Outras cidades ou vilas
PastosBons
OCEANO ATLÂNTICO
Rio Mamoré
Mapa – Expansão Territorial Brasileira no Período Colonial. Fonte do mapa: MEC (1973, p. 83).
História da Língua
128
ses movimentos, que tinham como objetivo inicial a captura e o apresamento de índios, acabaram levando colonos para o inte-rior do País, através, principalmente, dos rios Tietê, Paraná e Pa-raguai, chegando até o Mato Grosso e o Uruguai. Com o ciclo do ouro, há uma nova onda desses movimentos partindo da região de São Paulo que atinge não apenas Minas Gerais, mas também Goiás e o Mato Grosso; e, finalmente, há um movimento que segue o curso do rio São Francisco e chega até o Piauí. De Recife, partem os movimentos que fundarão Natal e Fortaleza; e de Be-lém, os movimentos que culminarão com a ocupação do Amapá.
Esse pequeno histórico nos dá alguma ideia de como ocorreu a forma-
ção e a ocupação do território nacional. Interessa-nos principalmente
saber como se deu a formação do português brasileiro, mas para tanto
é imprescindível que saibamos como o vasto território do País foi ocu-
pado. Vimos que podemos considerar que o português que chegou ao
Brasil já possuía todas as características distintivas do português mo-
derno, mas o português é, de fato, apenas uma das muitas línguas que
compunham o mosaico linguístico da América portuguesa do século
XVI em diante. Vejamos a seguir um pouco mais desse mosaico.
8.2 Panorama linguístico da América portuguesa
As estimativas variam entre si, mas considera-se que havia em torno de 1000 línguas indígenas diferentes, segundo Rodrigues (1993, p. 91), quando os portugueses desembarcaram no Brasil. Atualmente, considera-se que esse número tenha caído para apenas 180 – um teste-munho triste do massacre da população indígena e da não conservação de sua cultura por vários séculos. Os dados sobre a população indígena
Capítulo 08Chegada do Português na América
129
também são alarmantes: estima-se que em 1500 havia de 2 a 6 milhões de habitantes nativos; atualmente, segundo a FUNAI (2005), esse núme-ro fica entre 350 e 400 mil.
Para poder lidar com esse número estonteante de línguas diferentes que havia quando chegaram à América, os portugueses lançaram mão da estratégia das “línguas gerais”. Essas línguas serviam como lingua franca, ou seja, uma língua de contato usada em contextos específicos e com fun-ções também específicas, como o comércio. A prática portuguesa da lín-gua geral foi usada também na África e na Ásia e trata-se de usar a língua ora com maior número de falantes ora de maior circulação numa dada po-pulação, justamente para as interações necessárias. Como ocorre com os pidgins, quando uma geração mais nova nasce no seio de uma comunida-de perpassada por uma língua geral, essa geração acaba tendo como língua materna justamente a língua geral, dando origem a línguas crioulas.
No caso brasileiro, os portugueses usaram duas línguas gerais, uma para o Sul, conhecida como língua geral paulista, e uma para o Norte, conhecida como nheengatu. A língua geral paulista tinha como base a língua dos índios tupinambás e foi usada pelos bandeirantes a partir do século XVII, sendo rapidamente levada para diferentes partes do país. Ela está totalmente extinta e dela não temos praticamente nenhum vestígio. Sua extinção foi resultado, entre outras coisas, das medidas adotadas pelo governo português, na figura do Marquês de Pombal, de ensinar apenas o português e punir quem falasse outras línguas (ver Capítulo IX).
O nheengatu foi a língua usada pelos jesuítas para a catequese e também pelos portugueses na conquista e nas relações com os habi-tantes do Norte do Brasil. Diferentemente da língua geral paulista, o nheengatu continua vivo até hoje e é uma das línguas oficiais da cidade de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas. Tem por base também línguas do tronco tupi. Apresentamos, a seguir, uma amostra do nheengatu, com a tradução para o português:
História da Língua
130
Iautí osacemo: “Ce anama-itá! Ce anama-itá iure!”Iaureté ocenõ, osó aketé, opuranú: “Maata resa-cemo reikó iautí?”Iautí osuaxára: “Xacenoin xa icó ce anáma-ita ou arama ceremiara uausú tapira”Iaureté onheê: “Reputari xamuí tapiira indé ara-ma?”Iautí onheê: “Xaputari; remunuca iepé suaxara iné arama; ami ixé arama”.Iaureté onheê: “Aramé resó reiuca iepeá”.Iautí osó, pucusáua iaureté osupiri iximiara, oiauáu.Iautí ocyca ramé uacemo nhunto-ana tiputí, aiacáu iaureté irumo onheê: “Tenupá! Amú ara xaiuiuanti cury ne irumo.
O jabuti gritou: “Meus parentes! Meus parentes, vin-de!”A onça ouviu, foi lá e perguntou “Por que estás gri-tando, jabuti?”O jabuti respondeu: “Estou chamando meus paren-tes para comer minha grande presa, a anta.”A onça disse: “Queres que eu cozinhe a anta para ti?”O jabuti disse: “Quero; corta uma metade para ti, ou-tra para mim.”A onça disse: “Então vai buscar lenha.”O jabuti foi; enquanto isso, a onça ergueu a presa e fugiu.Quando o jabuti voltou, achou só fezes. Zangou-se com a onça e disse: “Deixa estar! Um dia eu me en-contro contigo.”
Fonte: Recolhida pelo Dr. Couto de Magalhães. In: STRADELLI , E. Vocabulário Nheengatu/Portu-guez - Portuguez/Nheengatu., Ver. Inst. Geog., 1920. Encadernação., 724. Disponível em: < http://www.aborj.org.br/museu/informativos/info_0800.htm>. Acesso em: 04 mar. 2010).
Mais à frente, analisaremos como as línguas indígenas e as línguas
gerais contribuíram para a formação do português brasileiro. Antes,
porém, devemos pôr à mesa mais uma peça do mosaico linguístico
da América portuguesa, a saber, as línguas africanas trazidas ao Brasil
como consequência do comércio de escravos.
O tráfico negreiro inicia-se oficialmente no Brasil em 1559 e os es-cravos eram provenientes principalmente da região compreendida entre a Nigéria e a Angola, mas também vinham de Moçambique e de regiões mais ao norte, do litoral do Oceano Índico. Com relação às línguas trazi-das ao Brasil por conta do tráfico negreiro, é certo que havia, entre os es-cravos, falantes de ewe, iorubá (tronco kwa), quicongo, quinbundo, um-bundo (tronco bantu), mandinga, hauça (tronco mande) e provavelmente outras, sem contar o árabe que era falado por escravos muçulmanos.
No mapa ao lado, apresentamos as famílias linguísticas africanas
Capítulo 08Chegada do Português na América
131
(cf. ILARI; BASSO, 2006, p. 75):
Mapa das famílias linguísticas africanas. Fonte: Ilari e Basso (2006, p.75).
É bastante difícil estimar quantos falantes de cada uma dessas lín-guas vieram ao Brasil e em quais locais se concentraram. Para se ter uma ideia da dinâmica populacional brasileira, apresentamos a tabela a seguir (MUSSA, 1991):
Marrocos
TunísiaMAR
MEDITERRÂNEO
OCEANOATLÂNTICO
OCEANOÍNDICO
Muritânia
Senegal
MaliNíger Chade
SudãoGuiné
Serra Leoa
Libéria
Costa do MarfimGana
Camarões
NigériaRepública
Centro-Africana
UgandaQuêniaCongo
Gabão
Angola
Zaire
Zâmbia
Tanzânia
Moçambique
MadagástarZimbábue
África do Sul
BotsuanaNaníbia
Lesoto
ArgéliaSaaraOcidental
LíbiaEgito
Eritréia
Somália
Etiópia
Afro-Asiática
Niger-Congo
Khoisiano
Nilo-Saarinanas
Outras famílias
História da Língua
132
1538-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890
africanos 20% 30% 20% 12% 2%
negros brasileiros -- 20% 21% 19# 13%
mulatos -- 10% 19% 34% 42%
brancos brasileiros -- 5% 10% 17% 24%
europeus 30% 25% 22% 14% 17%
índios integrados 20% 10% 8% 4% 2%
Mais adiante, quanto tratarmos da formação do português brasileiro,
voltaremos a essa tabela, analisando-a com mais cuidado. Por ora, basta
dizer que “negro brasileiro” e “branco brasileiro” se referem, respectiva-
mente, aos negros e brancos nascidos no Brasil.
Sobre a população africana, sabe-se, contudo, que sua presença foi predominantemente urbana, ao passo que as zonas rurais tinham um maior convívio com populações indígenas. Esse quadro é sobremaneira transparente a partir do ciclo do ouro (que se iniciou no fim do século XVII), quando um enorme número de pessoas deslocou-se para Minas Gerais e seu interior em busca do precioso metal.
Não por acaso, é em Minas Gerais, em meio a esse verdadeiro boom de urbanização, praticamente desconhecido ao Brasil, que floresce a li-teratura, bem como outras formas de arte que, quando existentes, eram bastante incipientes, como a música, a escultura etc.
Podemos concluir, portanto, que a América portuguesa foi, desde o
início do século XVI, um território multilíngue e é o multilinguismo
uma das chaves para entender a formação e o estabelecimento do
português no Brasil, assim como boa parte das diferenças entre o
português brasileiro e o europeu.
No próximo Capítulo, trataremos da formação do português bra-sileiro e de sua história. Como vimos para o caso da língua portuguesa
Capítulo 08Chegada do Português na América
133
como um todo, é necessário que tenhamos à mão uma periodização, por mais problemática que ela possa ser, para que possamos organizar em torna dela a história da língua. Vejamos abaixo a questão da periodiza-ção do português brasileiro.
8.3 A periodização do português brasileiro
Diversos pesquisadores já propuseram periodizações, baseadas nas mais diferentes estratégias, cada uma – como não podia deixar de ser – com seus méritos e deméritos. Por exemplo, Silva Neto (1946) distingue as seguintes fases do português brasileiro:
1. de 1532 a 1654: do início da colonização até a expulsão dos ho-
landeses do Nordeste (os holandeses se estabeleceram na re-
gião Nordeste, em Pernambuco, de 1624 a 1654);
2. de 1654 a 1808: a família real portuguesa, fugindo das tropas de
Napoleão, chega ao Rio de Janeiro em 1808;
3. 1808 em diante.
Ora, essa classificação leva em conta uma data que não tem rele-vância linguística alguma – a expulsão dos holandeses, além de genera-lizar demais, afinal, é possível encontrar mais de uma fase ou período entre 1808 e 2000, por exemplo.
Um famoso estudioso da língua portuguesa, Paul Teyssier, propõe a seguinte periodização (1997, p. 93-97):
1. período colonial até 1808 (chegada da família real portuguesa
ao Brasil);
2. de 1808 até 1822 (ano da Independência do Brasil);
3. de 1822 em diante.
História da Língua
134
Novamente, há mais distinções a serem feitas entre 1822 e o presen-te. O segundo período (1808-1822) é muito mais simbólico e político do que linguístico, afinal nenhuma mudança linguística significativa pode ocorrer num período de 14 anos.
Neste livro, adotaremos a proposta de periodização de Noll (2008, p. 269-275):
a) 1500 a 1550: fase inicial, traslado da língua portuguesa para o Brasil;
b) 1550 a 1700: fase formativa, surgimento e fixação de algumas das características marcantes do português do Brasil;
c) 1700 a 1800: fase diferenciadora, nesta fase acentuam-se as di-ferenças entre o português falado dos dois lados do Atlântico e começa o reconhecimento do português brasileiro;
d) 1800 a 1950: fase de desenvolvimento da escrita e do ensino, nesta fase há implantação de políticas de ensino no Brasil e da publicação de documentos diretamente em território nacional;
e) de 1950 até o presente: fase de nivelamento, através dos meios de comunicação, como rádio e televisão, e do avanço da urba-nização, ocorre certa homogeneização do português no terri-tório brasileiro.
A nosso ver, essa periodização permite um bom entendimento das mu-
danças pelas quais o português passou no Brasil, bem como dos seus
conservadorismos e inovações em relação à língua portuguesa em Por-
tugal. Até agora, vimos com certo detalhe a fase inicial, apresentando
as línguas que atuaram no Brasil. No próximo Capítulo, analisaremos as
demais fases e a constituição e formação das principais características
do português brasileiro
Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características
135
O português brasileiro e suas características Neste capítulo, exploraremos as diversas fases do português brasileiro,
indicando suas principais características, de modo a entender como se deu o
percurso histórico do português em território nacional.
Neste capítulo, veremos como se deu a formação das principais ca-racterísticas do português brasileiro, apresentando os documentos nos quais elas são primeiramente citadas. Nem sempre isso é possível, como será mostrado mais adiante, e muitas vezes as conclusões precisam de mais embasamento.
No Capítulo anterior, discorremos sobre o que podemos chamar de “pano de fundo” da formação do português, apresentando algumas das línguas que o compunham. Com relação a documentos sobre o portu-guês falado no Brasil entre 1500 e 1600, há muito pouco material, mas em meio a essa escassez há o relato de três viajantes naturalistas que aqui passaram, estando tanto com os colonos portugueses quanto com os indígenas, e que registraram em diários e descrições de viagem algumas palavras usadas no Brasil. Trata-se dos relatos de Hans Staden (1550-1555), André Thevet (1557) e Jean de Léry (1578) (cf. NOLL, 2008).
Nesses relatos, encontramos o primeiro registro histórico de di-versas vozes indígenas que até hoje são usadas no português brasileiro, como biju, cipó, guará, paca, pajé, tatu, mandioca, tucano, caju, canin-dé, jacaré, aipim, arara, jaguar, entre muitas outras. Vale ressaltar que o material composto por Thevet não relata apenas convivência com in-dígenas: para compor seu relato, Les Singulatirés de la France Antarcti-que, ele utilizou o depoimento de franceses já residentes no brasil, o que confirma que a entrada de vozes indígenas no português deu-se desde o início da colonização. Léry, por sua vez, escreveu uma espécie de “guia de conversação” de mais de dez páginas, em forma de diálogo, em tupi e francês, com várias explicações gramaticais.
9
História da Língua
136
A conclusão que tiramos quanto ao português da fase inicial (1500-
1550) refere-se apenas ao léxico da língua, que se enriqueceu de mui-
tas palavras indígenas nesse período. Vejamos, a seguir, algumas das
características diferenciadoras do português brasileiro detectadas na
sua fase formativa.
9.1 Fase formativa (1550 a 1700)
Entre 1550 e 1700, a fase formativa, já é possível vislumbrar di-ferenças entre as duas variedades de português que vão além de em-préstimos vocabulares e têm a ver, principalmente, com a estrutura fonético-fonológica do português falado no Brasil. Todos os fenômenos que descrevemos abaixo têm como pano de fundo o contraste entre o português brasileiro e o europeu notados e documentados durante o período em questão.
Com relação às vogais tônicas, o português brasileiro diferencia-se do português europeu no não desenvolvimento da oposição entre /a/ e /ɐ/ para marcar a distinção entre pescamos no presente (a vogal tônica é [ɐ]) e pescámos no pretérito perfeito (a vogal tônica é [a]). Em Portugal, essa distinção já havia sido notada por João de Barros em 1540.
É interessante lembrar que a diferença entre esses tempos grama-ticais é marcada no português brasileiro coloquial, principalmente no chamado “dialeto caipira”, através da oposição “pescamos” (presente) vs. “pesquemos” (pretérito perfeito).
Sobre as vogais pretônicas, o naturalista Markgraft nota, em 1648, na sua Historia Naturalis Brasiliae, o alçamento de /e/ e /o/ para /i/ e /u/, como nas pronúncias do primeiro <e> de menino e do <o> de dormir. Nos séculos seguintes, esse processo ganhou ainda mais força e pode-se dizer que é generalizado no Brasil (com exceção de certas regiões do Nordeste que têm /ɛ/ e /ɔ/ pretônicos). Ainda nesse período, constata-se a manutenção da nasalização heterossilábica – grosso modo, a nasaliza-ção assimilada regressivamente, como em cama [ˈkɐ.ma], que em Portu-gal pronuncia-se [ˈkɐ.ma]. Sobre as consoantes, nota-se que a africação em Portugal de /d/ entre vogais (RHYS, 1569, apud NOLL, 2008).
Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características
137
É importante salientar que os jesuítas chegaram ao Brasil em 1549,
fundando as primeiras missões para ensinar catequese aos povos
indígenas. Todos os indícios levam a crer que essa educação religio-
sa era feita por meio de uma das línguas gerais brasileiras; como
veremos abaixo, foi apenas a partir das primeiras décadas do sécu-
lo XVIII que o governo português publicou medidas efetivas para a
promoção do português no Brasil.
9.2 Fase diferenciadora (1700 a 1800)
Neste período, encontramos diversos documentos que assinalam as diferenças que há entre o português brasileiro e o europeu. Como exemplo, podemos citar a peça de teatro O periquito do ar, de Rodrigues Maia, escrita por volta de 1800 (cf. NOLL, 2008). Uma dos personagens dessa farsa é um brasileiro, estereotipicamente caracterizado por sua fala e procedência: seu nome é Dom Periquito das Alturas do Serro do Frio – na região da Comarca do Serro do Frio, em Minas Gerais, local em que foram encontrados os primeiros diamantes, em 1729.
Dom Periquito é caracterizado como café com leite e carioca, termos que, à epoca, se referiam a “pessoas de cor”, mulatos. Sua fala na peça é recheada de traços que têm por objetivo o humor e também identificar Dom Periquito com o português falado no Brasil, ainda que possivel-mente de modo exagerado. É bastante notável a escrita das vogais que são alçadas, principalmente <e> para <i>, indicando a pronúncia [i], como em: mi diga (me diga), sinhorinho (senhorinho), sinhorinha (senhori-nha), mitêlo (metê-lo), virdade (verdade), di (de). Encontra-se também a pronúncia [l] para [ʎ], como em li (lhe). A certa altura da peça, Dom Pe-riquito usa a forma sinhazinha, que pode indicar indiretamente a queda de <r> em fins de palavra: senhor > sinhor > sinhô; sinhá > sinhazinha.
Passando à morfologia, há um uso exacerbado de diminutivos, como em: mimozinho, coquinho, molestinha, mancinho, sinhorinho. Do ponto de vista sintático, registra-se a ocorrência maior de próclise com relação ao português europeu: mi deixe, le diga, mi consterna. A forma de tratamento você aparece também como típica do português brasileiro.
História da Língua
138
Em outras obras de teatro, há menção a personagens brasileiros que “falam carioca”, o que indica como já era claro entre 1700 e 1800 para os portugueses e brasileiros que havia diferenças bastante notáveis entre as duas variedades de português.
Na obra Compendio de orthografia, de Monte Carmelo, de 1767, o autor nota a diferença entre pregar (fixar, [prə’gar ]) e pregar (dar um sermão, [prɛ’gar]), que sobreviveu apenas em Portugal.
Outras características importantes do português brasileiro são identificadas nas normas educacionais do Seminário Episcopal de Nos-sa Senhora da Grasa, de Olinda – PE, e do Recolhimento de Nossa Se-nhora da Gloria do Lugar de Boa-Vista, de Recife – PE, escritas pelo bispo de Pernambuco, José J. da Cunha de Azeredo Coutinho, 1798. Nessas normas, o bispo aponta a necessidade de corrigir vários “vícios de linguagem” praticados pelos alunos. Muitos desses “vícios” já foram mencionados anteriormente; além deles, o bispo enumera:
• amudançade[ʎ]para[j]:telhadocomo[‘teja.do],milhocomo
[‘mijo],filhocomo[‘fijo];
• amonotongaçãode [ej] para [e]: janeiro como [ʒɐ neru],pri-meirocomo[priˈmeru];
• aquedado/l/final:Portugalcomo“Portugá”;
• afaltadeconcordâncianosintagmanominalparaaformação
doplural:os menino;muitas flor.
Quase todas essas características documentadas durante os séculos XVIII e XIX são ainda atestadas em maior ou menor grau no Brasil, principalmente na fala coloquial.
Também neste período, encontramos alguns movimentos políticos efetivos partindo de Portugal para a promoção da língua portuguesa. Em 1702, o governador-geral João de Lencastro propôs ao rei a criação de seminários para os índios “com condição de que nos Seminários se não
Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características
139
havia de fallar outra lingoa mais do que a Portugueza” (CASTRO, 1986, p. 303). Alguns anos depois, em 1727, o rei de Portugal ordenou ao governador do Maranhão que proibisse a língua geral nos povoados e nas aldeias dos índios. A medida mais importante foi o Diretório dos Índios, promulgada pelo Marquês de Pombal, em 1757. Esse diretório foi proposto como uma “medida civilizatória” que tinha por objetivo, entre outras coisas, que os índios pagassem impostos e que fossem todos de fato convertidos ao Cristianismo. Em meio a esses abu-sos agora absurdos, o diretório se expressa em relação à língua do seguinte modo:
Para desterrar este perniciosissimo abuso, será hum dos principáes
cuidados dos Directores, estabelecer nas suas respectivas Povoaço-
ens o uso da Lingua Portugueza, naõ consentindo por modo algum,
que os Meninos, e Meninas, que pertencerem ás Escólas, e todos
aquelles Indios, que forem capazes de instrucçaõ nesta materia,
usem da Lingua propria das suas Naçoens, ou da chamada geral;
mas unicamente da Portugueza, na forma, que Sua Magestade tem
recõmendado em repetidas ordens, que até agora se naõ observá-
raõ com total ruina Espiritual, e Temporal do Estado.
Fonte: Disponível em: <http://www.lai.at/wissenschaft/lehrgang/semester/ss2005/rv/files/pom-bal.directorio.1755.pdf>. Acesso em: 04 abr.2010.
Apresentamos abaixo dois exemplos de textos escritos no Brasil du-rante a fase diferenciadora. O primeiro deles é uma carta escrita por uma escrava em 1770 – fato, aliás, bastante notável, devido à enorme taxa de analfabetismo da época, principalmente entre mulheres e mais ainda en-tre escravas. O documento é proveniente do Arquivo Público do Estado do Piauí (cf. NOLL, 2008, p. 169-170, para análise e mais comentários; cf. MOTT, 1979, p. 8-9, para a primeira apresentação dessa carta):
Eu Sou hua escrava de V. S. dadministração de Capam Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que oCapam pa Lá foi adeministrar, q. me tirou da fazda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira
O Marquês de Pombal expulsando os jesuítas, de Louis-Michel van Loo e Claude-Joseph Vernet, 1766
Fonte: Disponível em: <http://tinyurl.com/39uasrr> Acesso em: 04 abr. 2010
História da Língua
140
de sua caza, onde nella passo mto mal.
A Primeira hé q. há grandes trovoadas de pancadas enhum Filho meu sendo uhã criança q lhe fez estrair sangue pella boca, em min não poço esplicar q. Sou hu colcham de pancadas, tanto q cahy huã vez do Sobrado abacho peiada; por mezericordia de Ds esCapei.
A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar.
Pello q Peço a V.S. pello amor de Ds e do Seu valimto ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Porcurador que mande p. a Fazda aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e Batizar minha Filha
de V.Sa. sua escrava
EsPeranCa garcia
O segundo exemplo é um trecho do texto do Bispo de Pernambuco, Jozé J. da Cunha de Azeredo Coutinho, que comentamos mais acima (cf. NOLL, 2008, p. 170-171; CASTRO, 1986, p. 381-382):
Quanto á Arte de Lér.
§. 2. Deve o Profesor ensinar aos seus Dicipulos a conhecer as le-tras, ou caratéres de que se áde||servir, fazendo diferensa das vogaes, e das consoantes, e do sôm de cada uma delas separadas, ou juntas umas com as outras, naõ lhes consentindo que pronunciem umas em lugar de outras: v. gr. v em lugar b, nem b em lugar de v, como vento em lugar de Bento, e Bento em lugar de vento, nem acresentar letras aonde naõ á, como v. gr. aiagua em lugar de a agua, naõ aiá em lugar de naõ a á; nem tirar letras onde á, como v. gr. Janero em lugar de Janeiro; teado em lu-gar de telhado; mio em lugar de milho; nem inverter a ordem das letras, pondo em primeiro lugar as que se devem pôr em segundo, como v. gr. treato em lugar de teatro; cravaõ em lugar de carvaõ; virdasa em lugar de vidrasa; breso em lugar de berso; provezinho em lugar de pobrezinho &c. Deve ensinar-lhes a pronunciar os ditongos com clareza, e em toda sua forsa: como v. gr. meu Pai, e naõ me Pai; pauzinho e naõ pazinho; naõ, e naõ num &c.
Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características
141
É com o português falado no Brasil já bastante próximo da língua que
temos hoje que chegamos ao penúltimo período da história do portu-
guês brasileiro, a fase de desenvolvimento da escrita e do ensino.
9.3 Fase de desenvolvimento da escrita e do ensino (1800 a 1950)
Do ponto de vista estritamente linguístico, os principais fenômenos encontrados a partir de 1800 e exclusivos do português brasileiro são:
• aquedado /r/final,principalmentenosverbos,mas também
emalgunssusbtantivos:buscarcomobuscá,recebercomore-cebê,calorcomocalô,etc;
• amonotongaçãode[aj]antesde[ʃ]:baixocomobaxo,encaixocomencaxo,etc;
• abreviações(aférese)como:táporestá,praporpara,seuporsenhor,etc;
• aepêntesede[i]antesde/s/final:emportuguêsbrasileiro,na
maioriadosdialetos,épossívelrimarpaiscompaz,ambospro-
nunciadoscomo/pais/,omesmovaleparaseisetrêsquetermi-
namcomo/eis/,mêscomo/meis/etc.
A africação de /t/ e /d/ antes de /i/ no português brasileiro – como na pronúnica tio [ˈtʃiʊ] e dia [ˈdʒiɐ] –, bastante generalizada, parece ter se iniciado no começo do século XIX e é mencionada por Soares Barbo-sa em sua gramática de 1822. Por volta da mesma época, documenta-se também a existência do chamado “erre caipira”, o <r>-retroflexo, marca registrada do interior de São Paulo, mas que ocorre também no Paraná, em Santa Catarina (nas cidades colonizadas por paulistas), em Minas Ge-rais e no Mato Grosso. A pronúncia chiante de /s/ e /z/ em fins de palavras e de sílaba, característica do Rio de Janeiro e de Bélem e várias cidades litorâneas, é também documentada desde as primeiras décadas do século XIX no Brasil, apesar de ter se desenvolvido muito antes em Portugal.
História da Língua
142
Aliás, a realização chiante de /s/ e /z/ foi muitas vezes ligada – tal-vez de modo direto demais – à vinda da Família Real Portuguesa e sua corte ao Brasil em 1808, fugindo de Napoleão e suas tropas. Entre os vários hábitos e exigências metropolitanas que essa vinda impôs à então capital brasileira Rio de Janeiro, conta-se também a língua falada pelos recém-chegados. Não é de se espantar que alguns pesquisadores tenham assumido que os moradores brasileiros viam vantagens em falar como a corte portuguesa, afinal, deve haver muito prestígio em falar como o rei. E assim, constrói-se a hipótese de que a pronúncia chiante resultou justamente da imitação da fala dos portugueses que chegaram em 1808. Como mostra Noll (2008, p. 229-235), contudo, não é possível fazer uma relação tão direta entre a pronúncia chiante e a vinda da corte portugue-sa ao Brasil, apesar de ser possível pensar que há alguma relação entre elas. Seus argumentos, muito resumidamente, são:
1. Por volta do início do século, a pronúncia portuguesa chiante
era criticada no Brasil e vista com maus olhos;
2. Não existe nenhuma outra característica do português europeu
que tenha passado ao português brasileiro com a vinda da cor-
te, e seria no mínino surpreende que apenas a pronúncia chian-
te tenha tido esse privilégio;
3. O encontro –sc– é realizado como [ʃs] em Portugal, mas não no
Brasil, onde ele é realizado como [s];
4. Encontramos uma mesma pronúncia chiante em Belém do Pará
sem a presença de portugueses.
A hipótese então avançada por Noll é a de que a pronúncia chiante
no Brasil e em Portugal desenvolveu-se de modo independente. Essa
é uma hipótese bastante interessante, mas que ainda carece de mais
estudos e documentos para ser plenamente aceitável.
Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características
143
Para a fixação do português brasileiro como o conhecemos hoje, a vinda da corte contribuiu de outras maneiras, um pouco menos diretas do ponto de vista estritamente linguístico, mas não menos importantes para a história da língua. Junto com a família real, chegou ao Brasil a primeira prensa tipográfica e a partir de então o País contava com pu-blicações feitas diretamente em seu território, sem ter que passar por Portugal. Com isso, o Brasil teve o seu primeiro jornal, fundado em 10 de setembro de 1808, a Gazeta do Rio de Janeiro.
A política educacional brasileira também foi alvo de alterações. O ensino, por muito tempo nas mãos dos jesuítas, desenvolveu-se grande-mente no século XIX. Através de um decreto-lei de 1827, foram criadas no Brasil várias escolas, bem como colégios técnicos, academias e pos-teriormente faculdades.
De 1808 em diante, o Brasil passou a contar com a impressa, com
políticas educacionais e com uma urbanização cada vez mais inten-
sificada. Com a imprensa escrita, foi possível pela primeira vez fixar
normas estilísticas exclusivamente brasileiras, sem as amarras da
“sintaxe lusa”. As políticas educacionais tiveram um reflexo imediato
no número de analfabetos, que cai a partir de então. E a urbaniza-
ção, juntamente com tudo o mais que ela traz, como veremos na se-
quência, foi um fator decisivo para a uniformização e o nivelamento
do português brasileiro em nosso vasto território.
Desta fase, há uma quantidade bastante grande de textos que chega-ram até os dias de hoje. Exemplos interessantes podem ser encontrados no livro E os preços eram commodos..., organizado por Guedes e Ber-linck (2000), que traz anúncios de jornais de todas as regiões do Brasil publicados durante o século XIX. Deste livro, retiramos dois anúncios: o primeiro deles foi publicado em 1809, no Rio de Janeiro, pelo jornal Gazeta do Rio de Janeiro; o segundo, também analisado por Ilari e Basso (2006, p. 154-155), é da cidade de São Paulo, e foi publicado no jornal O Farol Paulistano, 1830. Abaixo, os textos:
Disponível em: <http://tinyurl.com/3ys6pu9>. Acesso em: 04 abr.
2010.
História da Língua
144
Na cocheira da rua Santa Tereza por detraz do Imperio da Lapa há duas
seges muito asseadas, e com boas parellas, as quaes se alugão pelo pre-
ço de 5 patacas, tanto de manhã como de tarde, até a distancia da praia
do Botafogo, ou de São Cristovão: adverte-se ás pessoas, que as manda-
rem alugar, que ensinem os seus domésticos, que no caso de acharem a
dita Cocheira fechada, se dirijão ao tendeiro Manoel Gonçalvez de Bas-
tos, que tem venda na rua das Mangueiras com frente para o Largo da
Lapa. (GUEDES; BERLINCK, 2000, p. 198)
Hontem pela manhãa se me enviou um negro do gentio de Guinè, mui-
to boçal, e trajado à maneira dos que vem em comboi, e se me dice, foi
pegado, vagando como perdido. Por intérprete apenas pude colher que
ainda não era baptisado, e que saindo a lenhar se perdeu: queira por
tanto V.m. inserir este annuncio em sua folha, a fim de apparecer dono,
sobre o que declaro, que se não apparecer por 15 dias, contados da
publicação da folha, heide remetel-o á Provedoria dos Resíduos; a quem
pertence o conhecimento das coisas de que se não sabe dono. – São
Paulo 9 de Abril de 1830. – O Juiz de Paz Supplente da Freguezia da Sè –
José da Silva Merceanna. (GUEDES; BERLINK, 2000, p. 329)
9.4 Fase de nivelamento (1950 em diante)
De 1900 em diante, o Brasil conheceu uma urbanização impres- sionante. Apenas para se ter uma ideia, em 1940, aproximadamente 69% da população brasileira vivia no campo e em áreas rurais e a população urbana estava em torno de 31%; somente 30 anos depois, em 1970, a porcentagem da população urbana girava em torno de 82%, ao passo que a população rural caía para 18%. Se somarmos a isso a taxa de nata-lidade crescente e a de mortalidade infantil decrescente nesse período, constatamos que o contingente urbano era realmente enorme – e ele continua a aumentar.
Tomemos, por exemplo, a construção de Brasília, fundada em 21 de abril de 1960. Para sua construção, houve o deslocamento de inúmeras pessoas, principalmente provenientes da região Nordeste, mas também de outras, que se reuniram num mesmo local. Obviamente essas pessoas tinham que se comunicar e cada uma delas trazia de sua região uma experiência e uma série de marcas linguísticas peculiares. Não é difícil imaginar o “caldeirão linguístico” então formado e como certo “nivela-
Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características
145
mento” ocorreu, justamente devido às trocas e interações linguísticas. Podemos pensar também no grande número de pessoas que se deslo-caram do Nordeste para a região de São Paulo e do Rio de Janeiro em busca de trabalho e de melhores condições de vida. Juntamente com esses migrantes, vieram diversos costumes e um linguajar típico que não raramente foi incorporado pela região que recebeu os migrantes. Um bom exemplo é o forró, que veio juntamente com os migrantes da região Nordeste, atualmente comum em diversas regiões de São Paulo, junta-mente com seu “vocabulário técnico”, ou seja, os termos usados para de-signar a dança, seus passos, sua execução etc.
Para efeitos de “nivelamento”, os meios de comunicação desempe-
nharam um papel fundamental, não apenas a imprensa escrita, mas
também o rádio e a televisão; afinal, um mesmo canal poderia ser
ouvido no Brasil inteiro, transmitindo para qualquer lugar as carac-
terísticas linguísticas da região de origem.
A preocupação com uma norma ou um padrão para o rádio e a televisão foi tão forte a ponto de sua promoção e estabelecimento moti-var dois grandes “congressos” para discutir a questão. O primeiro deles ocorreu em 1936, o Congresso Brasileiro da Língua Cantada, realizado em São Paulo; em 1957, teve vez o Congresso Brasileiro de Língua Fa-lada no Teatro, em Salvador. Atualmente, é possível ouvir praticamen-te todas as variedades de português na televisão e no rádio, o que se distancia do ideal culto e aristocrático com que sonhavam os envolvi-dos nos congressos citados, que eram figuras como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Antenor Nascentes, Antonio Houaiss, Celso Cunha, entre outros. Os trechos abaixo dão uma ideia do tipo de preocupação que essas pessoas tinham em mente (apud ILARI; BASSO, 2006, p. 222):
Quem quer que freqüente o teatro nacional ficará desagradavelmen-
te ferido ante a diversidade de pronúncias que se entrechocam no ar.
Essa diversidade deriva em parte de atores estaduanos que, trazendo
consigo suas pronúncias regionais e não fazendo nenhum esforço para
unificar essas pronúncias em benefício do equilíbrio e unidade fonéti-
ca, tornam a obra-de-arte um mistifório malsoante, irregular de estilo e
de sonoridade, muitas vezes, por isso, de penosa compreensão para o
ouvinte.
História da Língua
146
E que dizer-se da quantidade de artistas, Portugueses, Espanhóis e Ita-
lianos, ou ainda mesmo Brasileiros filhos de estrangeiros, que surgem
numerosamente no palco nacional, num desprezo cego do bem dizer,
e que carreiam para a nossa linguagem sons espúrios, sutaques (sic) es-
trambóticos, desnorteando a naturalidade e a pureza da língua! (AN-
DRADE, Anteprojeto da Língua Nacional Cantada, 1936, p. 4).
O problema da língua comum [...] apresenta no Brasil a tendência es-
pontânea de realizar-se naturalmente, que deve ser apoiada por uma
política lingüística consciente. A força do Recife para certa área, desta
soberba Salvador para outra, do Rio, de São Paulo, Porto Alegre, Belo
Horizonte, cada um para sua periferia, mostra que tendemos para certos
padrões regionais amplos e pouco numerosos. Graças aos modernos
meios de comunicação viva, à distância, aliados a uma população que
se multiplica em permanente fusão de nacionais de todos os pontos
em todos os pontos é possível para a intercomunicação de âmbito uni-
versalista no nosso terrirório adotarmos lúcida e conscientemente uma
média de falar equidistante de todos os padrões regionais básicos. O
nosso Congresso, porém creio eu, não aspira a servir tão-somente à lín-
gua falada no teatro. Ao contrário, aspira à língua falada culta no Brasil
todo inteiro. Se chegarmos a um padrão culto aceitável para o teatro,
este se imporá, por vir de conseqüência, ao rádio e à televisão, ao ci-
nema e ao magistério, ao parlamento e à tribuna em geral, em suma a
todas as categorias profissionais que fazem da técnica da língua uma
finalidade, ou pelo menos um instrumento cuja finalidade seja na medi-
da do possível pan-brasileira. (CUNHA, 1959)
Podemos ainda citar como características linguísticas mais recen-tes do português brasileiro as seguintes:
• amplousodeobjetonulo,comoem“Compreiumboloecomi”
aoinvésde“Compreiumboloeocomi”;
• usoquaseexclusivodaordemsujeito-verbo,comoem“eleera
viciadoemanfetaminas”aoinvésde“eraeleviciadoemanfeta-
minas”;
• prevalecimentodasoraçõesrelativas“cortadoras”e“copiadoras”
frenteàformapadrão,comoabaixo:
Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características
147
1. forma padrão: a mulher com quem divido a casa;
2. forma “cortadora”: a mulher que eu divido a casa;
3. forma “copiadora”: a mulher que eu divido a casa com ela.
Como vimos, urbanização, impressa e fluxo migratório estão entre os
principais fatores do nivelamento e, por conseguinte, da unidade do por-
tuguês brasileiro. No próximo capítulo analisaremos mais a fundo como
se deu a formação do português brasileiro, sua relativa unidade e diver-
sidade e sua relação com as outras línguas faladas no território nacional.
Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro
149
Línguas indígenas e africanas na formação do português brasileiro, sua unidade e diversidade
O objetivo deste capítulo é investigar como se deu a formação do português
brasileiro e a contribuição para tanto das línguas indígenas e africanas que esta-
vam no território nacional e que aqui chegaram. Apresentaremos também um
rápido panorama das principais variedades de português encontradas no Brasil.
Até agora, descrevemos o cenário linguístico que recebeu o portu-guês, suas diferenças em relação ao português de Portugal, compostas tanto por conservadorismo como por inovações, e como as dinâmicas populacionais e econômicas, como a ocupação do território e a urbani-zação, desempenharam um importante papel para “forjar” a língua que hoje falamos.
No presente Capítulo, veremos com mais vagar a contribuição e as influências das línguas africanas e indígenas no que tange à formação do português brasileiro. Feito isso, analisaremos o português brasileiro hoje: ele é um só? Há dialetos? Quantos? Onde? E as línguas indígenas e africanas, elas têm lugar na política linguística nacional? Não podemos esquecer também as línguas das comunidades de imigrantes que vivem hoje no Brasil, às vezes em grande número e bastante organizadas.
10.1 Indígenas, africanos, europeus e brasileiros: o caldeirão do português do Brasil
Há pelo menos dois motivos principais para falarmos em influên-cias linguísticas indígena e africana na estrutura do português brasi-leiro: (1) o convívio durante séculos de populações indígenas e africa-nas com os europeus colonizadores, que, como vimos no Capítulo VII, eram em número muito maior do que o de europeus; e (2) diferenças linguísticas significativas entre as variedades de português faladas no
10
História da Língua
150
Brasil e em Portugal. Conclui-se, a partir de (1), do convívio durante tanto tempo de populações com línguas bastante diversas, num quadro em que o português era língua nativa de uma minoria, que o português que prevaleceu seria influenciado pelas línguas faladas por indígenas e negros africanos. A partir de (2), conclui-se que as peculiaridades do português brasileiro, em confronto com a variedade europeia, são jus-tamente o resultado das influências desencadeadas por (1). Assim, (2) é resultado – mais ou menos direto, a depender do pesquisador e de sua análise – de (1).
As motivações (1) e (2) levaram alguns pesquisadores a conside-rar que no seio da formação do português brasileiro havia uma língua crioula, e foi sobre esse crioulo de base portuguesa que se formou o português brasileiro, nesse crioulo está a raíz das principais caracterís-ticas linguísticas que opõem as variedades de português dos dois lados do Atlântico. Essa é, em linhas bastante gerais, a hipótese da criolização prévia ou inicial para a formação do português brasileiro, cuja versão mais radical é comumente atribuída ao filólogo português Francisco Adolfo Coelho, a partir de afirmações como:
Diversas particularidades características dos dialectos crioulos repetem-
se no Brasil; tal é a tendência para a supressão das formas do plural, ma-
nifestada aqui, que, quando se seguem artigo e substantivo, adjectivo
e substantivo, etc., que deviam concordar, só um toma o sinal do plural
(COELHO, 1880-86, p. 170-171).
De fato, Coelho mais chama a atenção para paralelos entre o que ocorre no português brasileiro e nas línguas crioulas do que estabelece uma relação causal entre (1) e (2).
Outros pesquisadores falam na existência de um “semicrioulo” que era falado ao lado do português, e era a “adaptação do português no uso dos mestiços, aborígines e negros” (SILVA NETO, 1950, p. 48). Contu-do, é extremamente difícil definir uma língua semicrioula. O que seria isso? Como apontam alguns, esse termo parece simplesmente acomodar a falta de documentação sobre a origem do português e preencher a la-cuna que existe entre (1) e (2) com uma relação causal mais fraca.
Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro
151
Mais recentemente, alguns pesquisadores investiram na ideia da
“transmissão linguística irregular” ou “imprópria” para explicar (2),
relacionando-o com (1). Segundo Naro e Scherre (2007, p. 137), a
“transmissão linguística irregular”, grosso modo, é aquela que se dá
“entre adultos e/ou com base em fala não suscetível de uma análise
ordenada, talvez por ser caótica, ou por ser em quantidade insufi-
ciente, ou ainda por outras razões”.
No caso brasileiro, podemos pensar em uma transmissão linguística
que se deu entre falantes em sua imensa maioria analfabetos e sem
escolarização; ou seja, distantes de uma norma linguística ditada
por uma gramática ou mesmo de instituições de regulamentação
linguística que poderiam atuar como órgão regulador sobre a lin-
guagem, sem esquecer que esses falantes provavelmente falavam
outras línguas, como as indígenas e as africanas.
A depender de como a caracterizamos, é certamente plausível que houve “transmissão linguística irregular” no território brasileiro à epoca da formação do português do Brasil. Mais importante ainda, essa ideia nos faz considerar uma quarta personagem atuante no contexto de for-mação do português brasileiro, a saber: o brasileiro nativo – ao lado dos indígenas, dos escravos e dos europeus, cada um presumivelmente com sua língua, a pessoa nascida no Brasil aprendia uma língua, mas prova-velmente não apenas a de sua comunidade, dado que tinha que interagir também, obviamente em diferentes graus, com indígenas, escravos afri-canos e europeus. É na figura do nativo do Brasil que podemos encon-trar a chave para a formação de nossa língua.
Tomemos o quadro que apresentamos no capítulo VII, sobre a den-sidade demográfica brasileira:
História da Língua
152
1538-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890
africanos 20% 30% 20% 12% 2%
negros brasileiros – 20% 21% 21% 13%
mulatos – 10% 19% 19% 42%
brancos brasileiros – 5% 10% 10% 24%
europeus 30% 25% 22% 22% 17%
índios integrados 20% 10% 8% 8% 2%
A faixa que podemos entender como “brasileiro nativo” correspon-de à soma das faixas de “negros brasileiros”, “mulatos” e “brancos bra-sileiros”; deixamos de lado os índios integrados, pois é sabido que essa integração se deu sobretudo fora das áreas urbanas e que o Brasil conhe-ceu, a partir de 1700, um incessante e rápido processo de urbanização. Podemos então refazer a tabela como abaixo, indicando em amarelo a porcentagem de brasileiros nativos:
1538-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890
africanos 20% 30% 20% 12% 2%
brasileiros nativos – 35% 50% 70% 79%
europeus 30% 25% 22% 14% 17%
índios integrados 20% 10% 8% 4% 2%
A tabela acima certamente não condiz totalmente com a realidade dos fatos – é implausível pensar que não havia brasileiros nativos entre 1538-1600, por exemplo –, mas mostra como o brasileiro nativo desem-penhou um papel importante na formação de nossa língua: de 1600 em diante, um número maior do que 30% da população brasileira adquiria sua língua no território brasileiro, provavelmente através de algo como uma transmissão linguística irregular.
Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro
153
Supondo que tudo isso esteja correto, qual é a melhor maneira de ca-
racterizar a formação do português brasileiro? Os dados que temos
sobre população e os documentos históricos nos permitem dizer que
houve uma crioulização prévia ou mesmo um “semicrioulo” no Brasil?
Como a transmissão linguística imprópria pode explicar as diferenças
entre o português brasileiro e o europeu?
A dinâmica populacional apresentada no quadro anterior é um dos argumentos de Noll (2008, p. 190) para rejeitar a hipótese da criouli-zação prévia e da existência de um semicrioulo. Estudos recentes so-bre línguas crioulas consideram que seja necessário, para a formação de uma língua crioula baseada numa língua A num dado país, que não mais do que 20% de sua população tenha a língua A como língua mater-na. O momento que mais se aproxima de tal situação é o período entre 1538-1600, no qual apenas 30% da população tinha o português como língua materna. Daí em diante, quando entra em cena a figura do bra-sileiro nativo, que, como dissemos, ou tinha o português como língua materna ou travou contato com essa língua desde cedo, o número de pessoas que têm o português como língua materna só cresce.
Essa discussão sobre a população enfraquece o primeiro dos dois motivos que apresentamos acima com relação à existência de influên-cia de línguas indígenas e africanas no português falado no Brasil. Há ainda, contudo, uma série de argumentos estritamente linguísticos que enfraquecem o ponto (2) (i.e., as diferenças linguísticas significativas entre as variedades de português faladas no Brasil e em Portugal podem ser explicadas apelando-se a tal influência).
Para podermos apreciar o ponto (2) e avaliar sua solidez, é neces-sário, antes de mais nada, que arrolemos sumariamente algumas dessas diferenças (NOLL, 2008, p. 213-218):
História da Língua
154
1. a entoação brasileira, bastante diferente da portuguesa;
2. a nasalização heterossilábica que há apenas no Brasil
[kɐ.ma];
3. a passagem de [ʎ] para [j], como no caso de milho ([mi.ʎu]
para [miju]);
4. a africação de /t/ e /d/ diante de /i/;
5. assimilação [nd] > [n], como em falando e falano;
6. queda de /r/ final;
7. queda de /l/ e /s/ finais;
8. neutralização de /r/ e /l/, como na pronúncia caipira de sol
(“sor”), animal (“animar”);
9. quebra de encontros consonantais, como advogado por “adivo-
gado”; técnico por “téquinico” (grafia, aliás, que não é incomum
encontrar);
10. a aférese, como em “tá” por está, “cê” por você;
11. uso dos pronomes ele e ela como objeto direto, como “você viu
ele?”;
12. a repetição da negação, como em “não quero não”.
Atribui-se aos itens de (1) a (5) uma influência tanto indígena quanto africana, ao item (6) atribui-se uma influência indígena, e aos itens de (7) a (12), uma influência africana.
Noll (2008, p. 213-218) apresenta uma série de problemas bastante complexos com a ideia de buscar uma explicação para os fenômenos de (1) a (12) em influências indígenas e africanas; tomemos alguns exemplos:
Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro
155
• hámuitaslínguasindígenaseafricanasqueestiveram(ealgu-
masaindaestão)noBrasil,portanto,sequisermosexplicarofe-
nômenoXdevidoà influênciadeumaoutra língua,devemos
serclarossobrequallínguaestamosfalandoecomosedeutal
influência–dizerqueX resultado contato comuma sériede
línguasindígenaseafricanasnãorelacionadasentreeintrasié
algomuitocômodo,maspoucoexplicativo;
• alémdadiversidadedelínguas,háumadiferençanadensidade
populacionalentreindígenaseafricanosemcontextosruraiseur-
banosqueprecisamoslevaremconta.Issosecomplicasobrema-
neiraquandolembramosqueosfenômenosarroladosacimasão
encontradospraticamenteemtodooterritórionacional;
• não encontramosna estrutura das línguas que alegadamente
influenciaramoportuguêsbrasileiroosfenômenosqueencon-
tramosemportuguês(notadamenteasquedasdeconsoantes
emfinaisdepalavraeausênciadecertostiposdeconcordância);
• todososfenômenosarroladosacimasãoatestadosemdiferen-
tesperíodosnahistóriadalínguaportuguesa,enãoénecessá-
riorecorrerainfluênciasexternasparaexplicá-los.
A posição de Noll (2008) é controversa, mas, mais do que tudo, mostra como é complicado saber as origens do português brasileiro e como ainda há trabalho a ser feito.
Ao negar a ideia de crioulização e de semicrioulização, nada dissemos
sobre a transmissão linguística imprópria. Esse tipo de transmissão tor-
na-se bastante interessante para explicar a formação do português bra-
sileiro quando consideramos o último quadro imediatamente acima,
juntamente com a antiga ideia de deriva linguística.
História da Língua
156
Durante a década de 20, o linguista americano Edward Sapir lan-çou a ideia de que as mudanças linguísticas de curto e longo prazo são condicionadas estruturalmente pelas línguas e que seguem certo cami-nho ou certo padrão, e é justamente esse caminho ou padrão que ele chamou de “deriva linguística”. Essa é uma ideia bastante intuitiva, mas também bastante poderosa, pois segundo ela as línguas não mudam ale-atoriamente e nem caoticamente, mas quando há alguma mudança, ela se conforma à deriva da língua, que tem a ver com sua estrutura.
Com esses três elementos – deriva linguística, transmissão linguística
imprópria e a constatação de que o que ocorre no português brasilei-
ro já foi registrado de maneira oscilante em momentos antigos da lín-
gua portuguesa –, podemos lançar a seguinte hipótese: o português
brasileiro é simplesmente uma variedade de português que sofreu
modificações (tanto conservando características quanto as inovan-
do) diferentes do caso do português europeu, mas ainda assim con-
soantes com sua deriva linguística, que foi, por sua vez, “acelerada” ou
“catalisada” pelo processo de transmissão linguística imprópria.
Novamente, essa é uma hipótese controversa, mas não deixa de ser bastante interessante: dá conta da ausência de uma documentação his-tória sobre uma suposta língua crioula falada no Brasil; dá conta, ain-da, das diferenças que há entre o português do Brasil e o de Portugal e atribui um papel de suma importância às populações que não tinham o português como língua materna e aos primeiros brasileiros nativos, que é justamente a aceleração ou catalisação da deriva linguística. Ecos de uma hipótese similar já podem ser encontrados nos trabalhos de Se-rafim da Silva Neto (1950, p.96), que afirmava, na década de 50, que “no português brasileiro não há, positivamente, influência de línguas africanas ou ameríndias”. Os trabalhos de Naro e Scherre (2007) e de Noll (2008) podem ser também lidos como apontando para direções próximas à que a hipótese esboçada acima aponta.
Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro
157
Como terá notado o leitor, e como mencionamos pouco acima, há
muito trabalho ainda a ser feito para desvendarmos e entendermos a
formação do português brasileiro. Não é nosso objetivo aqui dar uma
palavra final sobre essa questão, mas apenas chamar a atenção para sua
importância e complexidade, bem como indicar como procede esse
tipo de investigação da história de uma língua e de sua formação.
Antes de encerrarmos este Capítulo, vejamos na sequência a situa-ção do português no Brasil de hoje.
10.2 Unidade e diversidade no português falado no Brasil
Há dois slogans muito comuns relacionados ao português brasilei-ro: um deles diz que o Brasil é o maior país de língua portuguesa – e está perfeitamente correto; o outro, menos comum hoje em dia, é aquele segundo o qual o Brasil é o maior país em que se fala apenas uma língua – e isso não está correto, por mais de um motivo.
O primeiro slogan é incontestável diante de um país de dimensões continentais que conta com mais de 190 milhões de habitantes (em 2009). Mas isso não exclui duas coisas: (1) que há diversidade no inte-rior do português brasileiro, e (2) que o português não é a única língua falada no Brasil, algo que vai contra o segundo slogan.
Sobre a veracidade do ponto (1) todos estão de acordo. Afinal, basta conhecermos pessoas de diferentes regiões do país, ou ligarmos o rádio ou a televisão que veremos (ou melhor, ouviremos) facilmente a diver-sidade dos “falares portugueses” no Brasil – o que comprova, aliás, que somos excelentes “linguistas amadores”, principalmente foneticistas, e percebemos imediatamente o sotaque das pessoas.
É documentado no Brasil, desde o século XIX, que certas regiões têm sotaques diferentes de outras. Um bom exemplo foi estudado por Oliveira (2004) e trata-se de um texto de 1816, um documento poli-cial, escrito por policiais de Florianópolis (então Desterro), que relata o
Ver também Ilari e Basso (2006, p. 160-161).
História da Língua
158
encontro com oficiais de São Paulo. Os policiais de Florianópolis identi-ficaram os paulistas, entre outras coisas, pela maneira de falar:
encontramos /
pelas onze horas mais ou menos da /
mesma noite na Rua do Vinagre junto /
à porta de um tal Fayal, bem de fronte /
da travessa que toma para a Rua Augusta /
uns oito vultos, dois ou trez dos quaes com /
borretinas do uniforme de cavallaria /
de S. Paulo, ao presente destacada nesta Vª
[corroído]
os mais vestidos de ponxes com chapeos /
desabados, os quaes fomos reconhecer da par- /
te da Justiça, como era da nossa obrigação /
declarando serem soldados do Regimto /
d. São Paulo – como com effeito erão, e se /
conhecerão pela diferença e singularidad.e
da sua voz e pronúncia – que ali se acha - /
vão com licença do seu Then.e Cor.El comand.Te
[MIRANDA, F. G..; SARAIVA, J. P. A.; VIEIRA, S. F. Ofícios dos Juízes de Fora para o Presidente da Província (1814-1821), Florianópolis: Núcleo de Estudos Portugueses, 1996. Série Filológica].
Depois da virada do século XIX para o século XX, encontramos vá-
rios trabalhos que descrevem uma ou outra variedade do português
brasileiro e alguns que têm por objetivo mapeá-los; podemos citar
os seguintes trabalhos: O dialeto caipira, de Amadeu Amaral (so-
bre São Paulo, 1920 / 2a. ed. 1953); O linguajar carioca, de Antenor
Nascentes (1922); A linguagem dos cantadores, de Clóvis Monteiro
(sobre o Ceará, 1934); A língua do Nordeste, de Mário Marroquim
(sobre Alagoas e Pernambuco, 1938); Alguns aspectos da fonética sul-riograndense, de Elpídio Ferreira Paes (1938); O falar mineiro e Os estudos de dialetologia portuguesa, de J. A. Teixeira (sobre
Goiás, 1944), entre muitos outros.
Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro
159
O trabalho de Antenor Nascentes, de 1922, traz o primeiro atlas linguístico brasileiro, classificando as variedades regionais do português do Brasil. Mesmo contando com quase cem anos, esse mapa é ainda re-lativamente fiel à realidade variacional do português brasileiro e identi-fica as seguintes variedades: Sulista, Mineiro, Fluminense, Baiano, Nor-destino, Amazônico:
Limites com o estrangeiro
Limites estaduais
Limites dos subfatores
Amazônico
Sulista
Mineiro
BaianoTerritório Incaracterístico
NordestinoFluminene
Mapa – Atlas linguístico brasileiro. Fonte: Nascentes (1922).
Apesar de sua atualidade, o trabalho de Nascentes merece alguns retoques. O primeiro deles se refere ao que o autor classificou como “Território incaracterístico”, que compreende uma região aproximada-mente do tamanho da França (cf., ILARI; BASSO, 2006, p. 170-171).
História da Língua
160
A razão para a taxação “território incaracterístico” é majoritariamente a falta de população nessas regiões, algo que mudou e muito nos últimos anos, principalmente com a migração de paulistas e gaúchos. Sobre a variedade Sulista, assim como para o caso da Amazônica, haveria mais subdivisões a fazer, opondo, por exemplo, a varidade de São Paulo à de Florianópolis e à de Porto Alegre, assim como a variedade de Manaus à de Belém. Obviamente, a depender do grau de detalhe da análise, as outras varidades de Nascentes também podem ser subdivididas.
Ilari e Basso (2006, p. 167-169) arrolam alguns fenômenos regionais do português brasileiro, que apresentamos abaixo. Antes de olharmos para tais fenômenos, é importante salientar, porém, que não se trata de uma exposição exaustiva, ou seja, pode ser que mais regiões apresentem os fenômenos que citamos ou que certas regiões os apresentem com mais frequência e de maneira mais robusta que outras:
1. fenômenos de ordem fonética:
• Palatalização de /s/ e /z/ finais de sílaba e de palavra:
<mais> pronunciado [maj∫], <rapaz> pronunciado [Rapaj∫] etc.
Encontrado principalmente na fala carioca, mas também em alguns locais do Espírito Santo, em algumas regiões de Minas Gerais e em certos falares do Pará, do Amazonas e também de Pernambuco (Recife);
• Realização de /s/ final como /h/
<mais> pronunciado [majh]
encontrado no Nordeste e no Rio de Janeiro;
• Realização de /v/ e /ʒ/ como /h/ em início de palavra.
<vamos> pronunciado [hamʊ]
<gente> pronunciado [het∫׀]
encontrado em regiões do Nordeste, principalmente no Ceará;
Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro
161
• Diferentesrealizaçõesdo/R/(o<r>decarro):
apical múltipla na Região Sul (churrasco, espeto corrido e chi-marrão na voz dos gaúchos);
uvular [] na pronúncia carioca ([kaʊ]);
fricativa velar surda [h] no resto do País;
• Ausênciadapalatalizaçãode/t/e/d/antesde/e/e/i/:
a palatização (<dente, pratinho, disco> pronunciados [det∫׀],
[prat∫iɲʊ], [dʒiskʊ]) é fenômeno generalizado em todo o ter-
ritório brasileiro, com exceção do interior de São Paulo e da Re-
gião Sul (<leite quente> pronunciado [lejte kete]); encontrado
também em regiões de PE, do CE, do MA e do PI;
• Palatizaçãode/t/,/d/antesde/a/e/o/:
<oito, muito> pronunciados [ojt∫ʊ], [mujt∫ʊ]
encontrado em regiões do sertão, Pernambuco, Paraíba e Mato
Grosso;
• Pronúncias[o]e[e]emfinaldepalavra:
<leite quente> pronunciado [lejte kete]
encontrado em localidades da Região Sul e em localidades do
interior de São Paulo. A não ser nesta área, a oposição /e/-/i/ se
neutraliza em posição pós-tônica; idem para /o/-/u/;
• “entoaçãodescendente”:
<sei não> pronunciado com um “contorno descendente longo”
encontrado no Nordeste, acima do estado da Bahia;
• aberturadasvogaispré-tônicas:
<decente> pronunciado [dset∫׀]
encontrado na região Nordeste;
História da Língua
162
• pronúnciaretroflexado/r/,ex.<porta>pronunciado
[pɔt]:
esta pronúncia é uma das características do “dialeto caipira”, que
costuma ser associado à região não costeira de colonização mais
antiga, em São Paulo. A pronúncia retroflexa do /r/, como de res-
to muitas outras características do dialeto caipira, alcançam de
fato algumas regiões do sul de Minas Gerais, do Mato Grosso, do
norte do Paraná, de Goiás e de Tocantins. A mesma pronúncia é
dada no “dialeto caipira” ao primeiro [l] de <álcool> e ao [l] de
<sol> e de <animal>.
• pronúnciacomo[w]ou[]do-lquefechasílaba:
a primeira pronúncia é generalizada pelo Brasil afora, o que
leva à confusão de palavras como mal e mau, e a grafias erradas
como <autofalante> e <altomóvel>. A segunda pronúncia é
encontrada no Sul. Outros falares regionais, entre eles o dialeto
caipira, apresentam uma terceira alternativa de pronúncia, que
é a queda pura e simples do /l/ final;
• quedado-rfinaldosinfinitivosverbais/quedado–rfinal
dossubstantivos:
<andar>, <lugar>, <flor>, <morador> pronunciados respecti-
vamente [ãda] e [luga], [flo], [morado] ou [mɔrado]
encontrado principalmente em Minas, São Paulo, Espírito Santo,
mas também, com maior ou menos intensidade, em todo o ter-
ritório nacional;
• pronúnciadofonema/λ/:
áreas: na região do “dialeto caipira” e em muitas outras, a pro-
núncia é [j]: filho [fijo], milho [mijo]; nessas regiões, uma reação
de hipercorreção leva eventualmente a pronunciar desentupi-
dor de pia como desentupidor de pilha. Em outras regiões (par-
te do Nordeste), a pronúncia é [l]: mulher pronunciado [mulɛ];
Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro
163
2. fenômenos morfossintáticos:
• usoouomissãodosartigosdefinidosantesdenomespró-
priosedosnomesdeparentesco:
O assunto de que mais se falou na casa de mainha / da mãe foi o casamento de /do Luís.
a omissão se dá principalmente na região Nordeste;
• usodetuevocêcomopronomesdesegundapessoa:
há, realmente, em português brasileiro, três formas de expressar
a segunda pessoa: (i) pronome tu + verbo de segunda pessoa:
tu és / tu vais; (ii) pronome tu + verbo de terceira pessoa: tu é / tu vai; (iii) pronome você e verbo de terceira pessoa: você é / você vai. As duas primeiras soluções prevalecem nos três esta-
dos da região Sul; na fala carioca, encontramos a segunda e a
terceira; na região norte e nordeste também encontramos (i) e
(ii). A solução com você + verbo de 3ª pessoa prevalece no resto
do País.
• tendênciaaomitiropronomereflexivocomverbosprono-
minais:
Já tinha acontecido antes, por isso não preocupei (em vez de me preocupei).
encontrado em Minas Gerais, e ampliando sua área a partir de lá.
O leitor terá notado que alguns dos fenômenos acima também ocor-
rem em sua região, apesar de ela provavelmente não fazer parte da
região à qual associamos esses fenômenos. Isso se dá porque muitos
deles têm origem nos diferentes graus de escolaridade dos falantes e
não necessariamente em sua procedência geográfica; tal constatação
nos mostra que a variação linguística não se dá apenas na dimensão
geográfica (chamada de variação diatópica), mas também na dimensão
História da Língua
164
econômico-social (variação diastrática) que no Brasil está diretamente
ligada ao nível de escolaridade, e ao acesso a ela. Sobre esses pontos,
você pode consultar o material de Sociolinguística e retomar seu con-
teúdo para mais detalhes.
Diante da existência das variedades e das diferenças entre elas men-
cionadas acima, convém perguntar se é possível falar que há diferentes
dialetos do português no Brasil. Essa não é uma pergunta fácil de res-
ponder, pela simples razão de que não há definição de dialeto que seja
trivial e isenta de problemas – como decidir quanto estamos diante de
dois dialetos? Pela impossibilidade de entendimento? Pelas fronteiras
políticas? Por uma combinação de fatores? Quais?
É certo que, no Brasil, um manauense pode entender um gaúcho e as maiores dificuldade de comunicação serão encontradas no léxico, mas a questão da legitimidade político-social de variedades e dialetos é bastante delicada e que não aprofundaremos aqui. Assim, o português brasileiro de fato apresenta-se bastante homogêneo, mesmo com as di-ferenças que apresentamos logo acima.
A constatação da homogeneidade do português brasileiro, contu-do, não nos autoriza a endossar o segundo dos slogans que vimos acima, a saber: que o Brasil é o maior país em que se fala apenas uma língua. Atualmente, o Brasil tem como língua oficial o português e a língua brasileira de sinais (Libras), reconhecida oficialmente desde 2002; além disso, o município de São Gabriel da Cachoeira tem como línguas ofi-ciais, reconhecidas pelo governo brasileiro, as línguas indígenas tucano, nheengatu e baniwa.
Quanto às línguas indígenas ainda faladas no território nacional, nas diversas reservas espalhadas pelo País, encontramos cerca de 180. Não podemos esquecer também das línguas de comunidades de imigrantes que vieram mais recentemente ao Brasil e que também influenciaram o português brasileiro, como o italiano, o alemão, o japonês, entre outras.
Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro
165
Resumo
Nesta Unidade, investigamos a história da língua portuguesa na América. Começamos com a chegada do português ao território ame-ricano e a delimitação de suas fronteiras, mostrando novamente como não é possível estudar a história de uma língua sem levar em conta sua história externa. Num segundo momento, investigamos as possibilida-des de periodização do português brasileiro e, depois de nos decidirmos por uma delas, exploramos as características de cada uma de suas fases. Lembramos também que o português brasileiro é composto por diferen-tes variedades; uma imagem que, por vezes, pode ficar distorcida pela ideia de que falamos “uma mesma língua”. Por fim, apresentamos e ana-lisamos algumas das hipóteses sobre a formação do português brasileiro. Essa parte é confessadamente mais especulativa e, talvez justamente por isso, mais instigante: há ainda inúmeras perguntas a serem respondidas.
Leia mais!
Há vários livros e artigos sobre a formação do português brasileiro e suas diferenças frente ao português europeu (e também africano e asiático). O leitor interessado pode começar, por exemplo, pelos textos já clássi-cos de Silva Neto (1946, 1950), Melo (1986) e Mendonça (1948). Mais recentemente, podemos citar os textos de Ilari e Basso (2006), Naro e Scherre (2007) e Noll (2008) – esses dois últimos defendem propostas específicas sobre a formação do português brasileiro. Sobre as varieda-des do português brasileiro, é sempre interessante consultar o texto de Nascentes (1922), Ilari e Basso (2006) e os diversos trabalhos mais re-centes que você deve ter visto na disciplina de Sociolinguística.
Os dados completos dos livros, cujos autores são mencionados nesta seção, podem ser encontrados nas Referências.
Epílogo
167
Epílogo: conservadorismos e inovações do português brasileiro
Em vários momentos deste livro, tratamos as diferenças do portu-guês brasileiro em relação ao português europeu como conservadoris-mos e inovações do primeiro em relação ao segundo. Tomaremos como marco cronológico para avaliar se uma dada diferença deve ser tratada como uma inovação ou um conservadorismo a data de 1500, ou seja, se uma característica que o português europeu tinha em 1500 foi mantida no português brasileiro, mas não no europeu, tal característica será con-siderada um conservadorismo do português brasileiro; se, por sua vez, um dado fenômeno não for encontrado no português de 1500 e nem no atual português europeu, mas sim no português brasileiro, podemos dizer que tal fenômeno é uma inovação do português brasileiro.
Ao longo deste livro, já nos deparamos com as diferenças entre o português europeu e o brasileiro que podem ser distribuídas entre ino-vações e conservadorismos. Como resumo, apresentamos abaixo, de modo adaptado e resumido, algumas das conclusões de Noll (2008), Ila-ri e Basso (2006) e Teyssier (1997).
Conservadorismos do português brasileiro:
1. a nasalização heterossilábica, como em cama [ˈkɐ.ma] e não [ˈkɐ.ma];
2. a ausência de oposição entre /a/ e /ɐ/, como no português euro-
peu cantámos vs. cantamos;
3. a repetição da negação, como em não sei não;
4. a manutenção das vogais pretônicas e postônicas [e], [o] e [u],
que se reduziram no português de Portugal;
História da Língua
168
5. conservação de [e] antes de palatal ([ʎ ɲ ʃ ʒ]), que em Portugal
se realiza como [ɛ ɐ ɐj];
6. conservação dos ditongos [ej ej], que em Portugal se realizam
como [aj aj];
7. conservação do gerúndio como está fazendo, e não a fazer;
8. conservação da próclise em sentenças afirmativas com sujeito
substantival anteposto.
Um conservadorismo bastante interessante, mas ainda a ser melhor estudado, refere-se à prosódia e à estrutura fonética do português. Se pedirmos para um falante nativo de português europeu para que leia os versos do poema Os Lusíadas, de Camões, ele certamente não respeitará a métrica, ou seja, ao invés das dez sílabas com as quais são construídos os versos, um português pronunciará oito ou sete. Como dissemos mais acima, isso se deve às profundas mudanças pelas quais as vogais do por-tuguês europeu passaram, possibilitando a redução drástica de sílabas. Se um brasileiro ler os mesmos versos, encontraremos, todavia, as dez sílabas em sua pronúncia. Isso pode ser uma evidência de um conserva-dorismo prosódico do português brasileiro; mas, é sempre importante lembrar, esse exemplo é apenas a ponta de um enorme iceberg a ser ain-da estudado para somente depois podermos tirar quaisquer conclusões.
Inovações do português brasileiro:
1. perda da distinção pretônica entre /e/ e /ɛ/;
2. a africação de /t/ e /d/ diante de /i/;
3. a epêntese de /i/ antes de /s/ final;
4. a vocalização de /l/ final;
5. rompimento de encontros consonantais, como na pronúnica
“adevogado” para advogado;
Epílogo
169
6. inserção de vogais finais, como na pronúncia [ˈmɛ.kɪ] e não
[mɛk] para sigla MEC;
7. o <r>-retroflexo;
8. redução de [ʎ] para [l] ou [j];
9. generalização da próclise;
10. uso dos pronomes ele e ela como objeto direto;
11. monotongação de /ou/, principalmente no sistema verbal,
como em [fa.ˈlo] por [fa.ˈlow];
12. desnasalização em finais de palavra, principalmente no sistema
verbal, como em [ˈfa.lɐ] por [ˈfa.lɐm];
13. queda de /r/, /l/ e /s/ finais.
Podemos ainda mencionar o uso mais generalizado do pronome você, a falta de concordância numeral no sintagma nominal, a simplifi-cação do sistema verbal, o uso generalizado de perífrases verbais, e ain-da uma menor resistência a empréstimos estrangeiros que o português europeu (usamos, por exemplo, frízer e não arca frigorífica).
Conclusão
171
ConclusãoEste livro apresentou o percurso histórico do latim ao português e
abordou em seguida questões sobre a formação e a consolidação do por-tuguês brasileiro. Em paralelo aos fenômenos linguísticos analisados, apresentamos também a história externa que propiciou ao português várias de suas características linguísticas e também geopolíticas; afinal, foi devido às grandes navegações portuguesas que a língua de Portugal – um pequeno país – chegou aos quatro cantos do mundo e é hoje a sétima língua em número de falantes.
Como não podia deixar de ser, há inúmeros assuntos sobre os quais nada falamos. Ao leitor mais versado em história do Bra-sil, certamente fará falta comentários mais aprofundados sobre a imigração açoreana ao Brasil e as possíveis marcas que essa imi-gração deixou no português falado, por exemplo, em Santa Ca-tarina e em Belém do Pará. Fica aqui um convite à pesquisa e à leitura sobre esse tema. O leitor interessado encontrará nos livros arrolados nas Referências e nos sites citados no corpo do texto um bom começo.
Outros temas bastante importantes na história das línguas, prin-cipalmente quando se trata da consolidação e fixação de uma norma linguística para uma determinada língua em um dado país, são aqueles ligados à ortografia, lexicologia e gramática normativa, seu estabeleci-mento e implementação. O trabalho de lexicógrafos, gramáticos e de-mais estudiosos das línguas é de suma importância para que as línguas passem a representar Estados nacionais, funcionando, às vezes, como símbolo patriótico, ao lado de sua função como símbolo cultural e polí-tico. Esses certamente são temas muito interessantes, mas nosso espaço aqui já se acaba. Fica assim, mais um convite à leitura e à pesquisa.
Cronologia
173
CronologiaPor volta de 4500 a 2500 a.C. – Desenvolvimento do protoindo-europeu
2000-1100 a.C. – Desenvolvimento do ramo anatólico (hitita, assírio)
2000-1400 a.C. – Desenvolvimento do ramo indo-ariano (sânscrito, persa)
1600-1100 a.C. – Datação aproximada do grego micênico (linear B)
1000 a.C. – Datação provável do início do desenvolvimento do latim e do grego antigo
753 a.C. – Fundação mítica de Roma
509 a.C. – Fim da monarquia etrusco-romana, início da República
390-387 a.C. – Invasões celtas na península itálica
343 – 282 a.C. – Expansão romana na península itálica
275 a.C. – Roma conquista as colônias gregas no sul da Itália
264-146 a.C. – Guerras púnicas
218 a.C. – Os romanos chegam à Península Ibérica
149 a.C – Roma conquista a Grécia após derrotar Corinto
146 a.C. – A Macedônia torna-se província romana
106 – 83 a.C. – Campanhas de Mário e Silas levam ao primeiro grande conflito interno em Roma
59-50 a.C. – Primeiras campanhas militares de César
59 a.C. – Primeiro triunvirato: César, Pompeu e Crasso
49 a.C. – César cruza o rio Rubicão e marcha contra Roma; Pompeu ordena o abandono de Roma
48 a.C. – Pompeu é derrotado na batalha de Farsália na Guerra Civil contra César; César torna-se ditador de Roma
44 a.C. – Republicanos infelizes com o poder unificado nas mãos de César o assassinam no senado
História da Língua
174
43 a.C. – Segundo triunvirato constituído pelo sobrinho de César, Ota-viano, além de Marco Antônio e Lépido
42 a.C. – Marco Antônio e Otaviano derrotam os assassinos de César na batalha de Filipos
31 a.C. – Nova guerra civil entre Otaviano e Marco Antônio, que o pri-meiro vence na batalha de Ácio
27 a.C. – Otaviano se proclama César Augusto, imperador de Roma.
14 d.C. – Morte de Augusto; seu sobrinho Tibério torna-se imperador
101 – 106 – Conquista da província da Dácia por Trajano
285 – Diocleciano divide o Império em ocidental e oriental
330 – Constantino estabelece Constantinopla como capital do Império
395 – Com a morte de Teodósio, o Império se divide permanentemente
476 – Com a pressão das invasões bárbaras e a instabilidade imperial, Rômulo Augusto, último imperador, é deposto, e o Império tem seu fim
507 – Expulsão dos visigodos da França para a Península Ibérica
711 – Invasão árabe na Península Ibérica
722–1492 – Movimento da Reconquista da Ibéria
800 – O Sacro Império Romano é instaurado com Carlos Magno, numa tentativa de reviver o Império Romano
813 – Concílio de Tours
842 – Juramentos de Estrasburgo
882 – Carta da Fundação da Igreja de Lardosa, documento latino-por-tuguês mais antigo do qual temos notícia
1173 – D. Afonso Henriques é reconhecido como Rei no condado Por-tucalense, desmembrado da Galiza
1175 – Notícia de Fiadores
1210 – 1216 – Datas prováveis da escrita da Notícia de Torto
1214 – Testamento de Afonso II
Cronologia
175
1250 – D. Afonso III completa as conquistas que definem as fronteiras de Portugal praticamente como as de hoje.
1255 – Capital de Portugal transferida de Coimbra para Lisboa
1290 – Fundação da Universidade de Coimbra
1385 – 1433 – Ínclita Geração dos nobres eruditos portugueses: D. Du-arte, D. Pedro e D. Henrique
1415 – Tomada de Ceuta, no norte da África, que inicia o movimento expansionista de Portugal
1453 – Os otomanos tomam Constantinopla, pondo fim ao Império Bi-zantino, antigo Império Romano do Oriente
1492 – Conquista de Granada, que põe fim à dominação árabe na Ibéria
1500 – Descobrimento do Brasil
1532 – Expedição de Martim Afonso de Souza
1534-1536 – Criação do Regime de Capitanias Hereditárias e doação aos governadores-gerais
1536 – Gramática da linguagem portuguesa, de Fernão de Oliveira
1540 – Gramática / Diálogo em louvor da nossa linguagem, de João de Barros
1549 – Chegada dos jesuítas ao Brasil
1559 – Legalização do tráfico de escravos para o Brasil
1572 – Publicação de Os Lusíadas
1572 – Batalha de Alcácer-Quebir, com derrota dos portugueses e morte do rei Dom Sebastião
1624 – Chegada dos holandeses ao Nordeste do Brasil
1654 – Expulsão dos holandeses
1697 – Início do Ciclo do Ouro
1715 – Tratado de Utrecht
História da Língua
176
1750 – Tratado de Madri
1757 – Diretório Geral dos Índios
1759 – Expulsão dos jesuítas
1777 – Tratado de Santo Ildefonso
1808 – Chegada da família real portuguesa ao Brasil
1808 – Fundação do jornal Gazeta do Rio de Janeiro
1816 – Fundação da Academia de Belas Artes
1822 – Independência do Brasil
1838 – Fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
1850 – Fim oficial do tráfico negreiro
1865–1870 – Guerra do Paraguai
1879 – Início do Ciclo da Borracha
1888 – Lei Áurea e abolição da escravidão
1889 – Proclamação da República
1891 – Promulgação da primeira constituição republicana
1897 – Fundação da Academia Brasileira de Letras
1903 – O Brasil compra o Acre da Bolívia
1932 – Revolução Constitucionalista em São Paulo
1937-1944 – Implementação do Estado Novo por Getúlio Vargas
1957 – Aprovação da lei que recomenda o uso da NGB (Norma Gra-matical Brasileira)
1956-1961 – Mandato de Juscelino Kubitcheck
1960 – Fundação de Brasília
1964 – Início do Regime Militar
1970-1984 – Atuação do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização)
1985 – Eleição de Tancredo Neves, pondo fim ao Regime Militar
REfERênCias
177
Referências
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História da Língua
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glossáRio
179
GlossárioAdstrato: língua que vigora ao lado de outra numa dada comunidade, como nas situações de bilinguismo.
Aférese: queda de um ou mais fonemas do interior de uma palavra.
Africação: processo pelo qual um fone plosivo tem seu fechamento des-feito lentamente.
Alçamento: realização de vogais baixas ou médias em posição mais alta, como acontece na primeira e terceira sílabas da palavra menino /mininu/.
Assimilação: aproximação ou identidade de dois fonemas.
Caso: marcação morfológica do papel sintático de sintagmas nominais.
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): associação fun-dada em 1996, assinada por países lusófonos para promover a amizade entre eles e também promover a língua portuguesa.
Crioulos, língua crioula: quando uma geração de crianças nasce no seio de uma comunidade que usa um pidgin, pode ser o caso que essa gera-ção tenha o pidgin como língua materna. Nesse caso, o pidgin é acres-cido de uma gramática, tem seu léxico ampliado e apresenta todas as características de uma língua natural.
Grau: o aumentativo e o diminutivo são duas possibilidades de mani-festação da categoria gramatical de grau. Em português, por exemplo, azulão e amarelinha são exemplos de aumentativo e diminutivo, respec-tivamente.
Ênclise: colocação de um pronome átono depois do verbo, como em “dá-me um cigarro”.
Epêntese: adição de um ou mais fonemas no interior de uma palavra.
Estruturalismo: O estruturalismo foi uma corrente de pensamento que se desenvolveu no início do século XX, cujos representantes principais foram Claude Levi-Strauss, na antropologia, e Ferdinand de Saussure, na linguística.
História externa: fatores extralinguísticos que influenciaram a evolução de uma língua ao longo da história.
História interna: mudanças ocorridas na estrutura de uma língua ao longo da história.
Koiné: língua comum a toda uma população que resulta do contato de diversos dialetos inteligíveis entre si.
História da Língua
180
Lingua franca: língua usada em um território entre pessoas que falam diversas línguas.
Língua geral: língua franca usada pelos portugueses, principalmente durante as navegações e as primeiras colonizações, baseadas nas línguas dos locais em que aportavam.
Língua morta: língua que não tem mais falantes nativos.
Mesóclise: colocação de um pronome átono entre o verbo e sua desi-nência temporal, como em “tê-lo-ia feito”.
Nasalização heterossilábica: passagem da qualidade nasal para uma vo-gal situada antes ou depois do segmento nasal.
Neutralização: perda de valor de oposição num sistema linguístico.
Pidgin: uma língua que serve para interações específicas entre falantes que não têm línguas em comum; em geral composto de sentenças avul-sas, úteis para a atividade em que o pidgin é empregado, e sem sistema-tização ou gramática próprias.
PIE: Ver protoindo-europeu.
Próclise: colocação de um pronome átono antes do verbo, como em “me dá um cigarro”.
Protoindo-europeu: língua hipotética, que deu origem às línguas indo--europeias.
Substrato: língua anterior falada por um povo que é abandonada em função de uma outra língua imposta a esse povo. Como exemplo, pode-mos pensar nas línguas dos povos que foram dominados pelos romanos e que passaram a falar, num primeiro momento, a língua dos romanos. Nesse contexto, a língua falada originalmente pelo povo em questão era o substrato do latim ali imposto.
Superestrato: em linguística história, entende-se superstrato como a lín-gua imposta a um determinado povo que não é falante dessa língua, ou seja, é a língua do povo conquistador que será imposta à região conquis-tada. Como exemplo de superstrato, podemos pensar no latim que foi imposto aos povos conquistados que não eram falantes de latim.
Tema: unidade morfológica que consiste de radical seguido de vogal te-mática, sem as desinências de número, pessoa, tempo, modo e voz.
apêndiCE
181
Apêndice – Atividades sugeridas para a sala de aula
Nesta parte, apresentaremos algumas propostas de atividades, que en-
volvem o conteúdo discutido neste livro, as quais podem ser desen-
volvidas em sala de aula. O professor pode, obviamente, usar, alterar
e propor outras atividades; esperamos apenas que as sugestões, apre-
sentadas a seguir, sirvam de inspirações para a elaboração de maneiras
instigantes de apresentar e discutir tópicos sobre a história da língua
portuguesa e sobre linguística histórica em geral.
Atividade 1
Como esperamos ter mostrado, a disciplina de linguística história é fundamentalmente multidisciplinar, mobilizando, a um só tempo, con-ceitos linguísticos, geográficos, históricos, políticos, econômicos e ou-tros. Essa característica da linguística história pode ser aproveitada para salientar que o conhecimento, apesar de estruturado em disciplinas, as transcende, e também para trabalhar em conjunto com outros profes-sores. Nesse sentido, você pode pensar em bolar um projeto que una os professores de português, história e geografia para analisar um período específico da história da língua portuguesa. Como exemplo, podemos pensar no período das grandes navegações e no seu impacto histórico, geográfico e linguístico. Quais as motivações históricas (políticas e eco-nômicas) por trás dessa grande época de descobrimentos? Como ela mudou o nosso conhecimento geográfico do mundo? Quais impactos ela causou à língua portuguesa?
Uma investigação desse tipo pode ser bastante profícua para alunos e professores, pois conteúdos aparentemente distintos podem ser tra-balhados sob um mesmo tópico, e os próprios professores, ao trocarem diferentes informações, podem aprender mais com seus colegas.
História da Língua
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Atividade 2
Analise o trecho abaixo do Testamento de Dom Afonso II, de 1214. Transcreva o texto e compare com o português de hoje, indicando quais são as principais diferenças gramaticais. Há uso de perífrases verbais? O uso de artigos e demonstrativos é o mesmo que temos hoje em portu-guês brasileiro? Os pronomes pessoais são usados do mesmo modo que no português brasileiro de hoje? Quais características da ortografia do texto chamam mais atenção? Você pode também trabalhar em conjunto com um professor de história e tentar questões como: Quem foi Dom Afonso II? Qual é a importância histórica de seu testamento? Seus pedi-dos foram atendidos? Sim ou não? Por quê?
En o nome de Deus. Eu, rei Don Afonso, pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e salvo, temete o dia de mia morte, a saúde de mia alma, e a proe de mia molier, raina Dona Orraca, e de meus filios e de meus vassalos e de todo meu reino, fiz mia mãda, per que, de pós mia morte, mia molier e meus filios e meu reino e meus vassalos e todas aquelas cousas que Deus mi deu en poder sten en paz e en folgãcia. Pri-meiramente, mãdo que meu filio, infante Don Sancho, que ei da raina Dona Orraca, agia meu reino entegramente e en paz. E, si este for morto sen semel, o maior filio que ouver da raina Dona Orraca agia o reino entegramente e en paz. E, si filio barõ no ouver-mos, a maior filia que ouvermos agia-o. E, si no tepo de mia morte meu filio ou mia filia que deiver a reinar no ouver revora, segia en poder da raina sã madre, e meu reino segia en poder da raina e de meus vassalos ata quando agia revora. E, si eu for morto, rogo o apostóligo, come padre e sénior, e beigio a terra ante seus pees, que el recebia en sã comèda e só seu difíndeméto a raina e meus filios e o reino. E, si eu e a raina formos mortos, rogo-li e prego-li que os meus filios e o reino segia en sã comeda. E mãdo da dezima dos moravidiis e dos díeiros que mi remaserü de parte de meu padre, que sü en Alcobaza, e do outr’ aver móvil que i posermos porá esta dezima, que segia partido pelas manus do arcebispo de Bragaa e do arcebispo de Santiago e do bispo do Portu e de Lixbona e de Coïbria e de Viseu e de Lamego e da Idania e d’ Évora e de Tui e do tesoureiro de Bragaa. E outrossi mãdo das dezimas das luctosas e das armas e d’outras dezimas que eu tenio apartadas en tesouros per meu reino que eles as departiã,
apêndiCE
183
assi como vire por derecto. E mãdo que o abade d’Alcobaza lis dê aques-ta dezima que el ten ou teiver, e eles as departiã segúdo Deus, como vire por derecto. E mãdo que a raina Dona Orraca agia a meiadade de todas aquelias cousas movils que eu ouver a mia morte, exetes aquestas dezi-mas que mãdo dar por mia alma e as outras que tenio en voontade por dar por mia alma e no’ nas uver a dar. Et mãdo que, si a raina morrer en mi vida, que de todo meu aver móvil agia ende a meiadade. Da outra meiadade solten ende primeiramente todas mias devidas. E do que re-maser fazam en três partes, e as duas partes agia meus filios e mias filias, e departiã-se ontr’ eles igualmente. Da terceira, o arcebispo de Bragaa e o arcebispo de Santiago e o bispo do Portu e o de Lixbona e o de Coibria e o de Viseu e o d’Évora fazã desta guisa: que u quer que eu moira, quer en meu reino, quer fora do meu regno, fazam aduzer meu corpo per mias custas a Alcobaza. E mãdo que den a meu sénior, o Papa, iij.mr.; a Alcobaza, ij. mr. por meu aniversario; a Santa Maria de Rocamador, ij. mr. por meu aniversario; a Santiago de Galícia, ij. ccc. mr. por meu ani-versario; ao cabidoo da see da Idania, mille. mr. por meu aniversario; ao moesteiro de Sangurge, d. mr. por meu aniversario; ao moesteiro de San Vicete de Lixbona, d. mr. por meu aniversario; aos caonigos de Tui, mill. mr. por meu aniversario. E rogo que cada ün destes aniversários fazam sépre no dia de mia morte e fazam três comemorazones en três partes do ano, e cada dia fazam cantar una missa por mia alma por sepre.
Atividade 3
Usando as análises de textos e apontamentos linguísticos que vi-mos neste livro, identifique classes de palavras: substantivos, adjetivos, advérbios, artigos, verbos, preposições, pronomes, conjunções, nume-rais e interjeições, nas versões do Pai Nosso apresentadas a seguir. Ten-te explicar como cada um pode ser classificado, através dos dados. Por exemplo: “as preposições sempre aparecem antes dos substantivos”.
Uma atividade consiste em buscar palavras parecidas através das línguas e, com o resultado dessa busca, identificar a língua que não faz parte do grupo. Ou seja, você verá que há entre as línguas arroladas abaixo uma que não é românica, e poderá identificá-la através de uma comparação entre as palavras usadas.
História da Língua
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Português:
Pai nosso, que estais nos céus,
santificado seja o Vosso nome;
venha a nós o Vosso reino;
seja feita a Vossa vontade,
assim na terra como no céu.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje;
e perdoai-nos as nossas dívidas,
assim como nós perdoamos aos nossos devedores.
E não nos deixeis cair em tentação,
mas livrai-nos do mal. Amém.
Latim:
Pater noster, qui es in caelis,
sanctificetur nomen tuum.
Adveniat regnum tuum.
Fiat voluntas tua, sicut in caelo et in terra.
Panem nostrum quotidianum da nobis hodie,
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris.
Et ne nos inducas in tentationem:
sed libera nos a malo. Amen.
Italiano:
Padre nostro,
che sei nei cieli,
sia santificato il Tuo nome.
Venga il Tuo regno.
Sia fatta la Tua volontà
anche in terra com’è fatta nel cielo.
Dacci oggi il nostro pane quotidiano.
Rimetti a noi i nostri debiti,
come noi li rimettiamo ai nostri debitori.
e non esporci alla tentazione,
ma liberaci dal maligno.
perché tuo è il regno, la potenza e la gloria. Per sempre. Amen.
apêndiCE
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Espanhol:
Padre nuestro, que estás en los cielos: santificado sea tu nombre.
Venga tu reyno. Hágase tu vontad, así en la tierra como en el cielo.
Danos hoy nuestro pan cotidiano.
Y perdónanos nuestras deudas, así como nosotros perdonamos á nues-
tros deudores.
Y no nos metas en tentación, mas líbranos de mal. Porque tuyo es el
reyno y la potencia y la gloria por los siglos.
Francês:
Notre père, qui es aux cieux: que ton Nom soit sanctifié.
Que ton règne vienne. Que ta volonté soit faite sur la terre comme au
ciel.
Donne-nous aujourd’hui notre pain quotidien.
Et pardonne-nous nos offenses, comme nous pardonnons à ceux qui
nous ont offensés.
Ne nous conduis pas en tentation, mais délivre-nous du mal. Car c’est à
toi qu’appartiennent le règne et la puissance et la gloire aux siècles des
siècles.
Romeno:
Tatăl nostru carele eşti în ceruri: sfinţească-se numele Tău.
Vie împărăţia ta. Facă-se voia ta, precum in cer aşa şi pe pămînt.
Pâinea noastră cea spre fiinta dă-ne-o nouă astăzi.
Şi ne iartă nouă greşalele noastre, precum şi noi iertăm greşiţilor noştri.
Şi nu ne duce pe noi in ispită, ci ne izbăveşte de cel rău. Că a ta este
împărăţia şi mărirea in veci.
Ocitânico/provençal:
Paire nòstre que siès dins lo cèl,
que ton nom se santifique,
que ton rènhe nos avenga,
que ta volontat se faga
História da Língua
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sus la tèrra coma dins lo cèl.
Dona-nos nòstre pan de cada jorn,
perdona-nos nòstres deutes
coma nosautres perdonam
als nòstres debitors
e fai que tombèm pas dins la tentacion
mas deliura-nos del mal.
Atal sia!
Galego:
Noso pai que estás no Ceo,
Santificado sexa o teu Nome,
Veña a nós o teu Reino,
e fágase a túa vontade,
aquí na terra como no Ceo,
O noso pan de cada día, dánolo hoxe,
E perdóano-las nosas ofensas,
coma tamén nós perdoamos a quen nos ten ofendido,
e non nos deixes caer na tentación,
mais ceibanos do mal,
Amen.
Inglês:
Our father, who art in heaven;
hallowed be Thy name;
Thy kingdom come;
Thy will be done on earth as it is in heaven.
Give us this day our daily bread;
and forgive us our trespasses
as we forgive those who trespass against us,
and lead us not into temptation;
but deliver us from evil. Amen.
Fonte: Convent of Pater Noster. Disponível em: <http://www.christusrex.org/www1/pater/index.html (1221 línguas e dialetos)>. Acesso em: 05 maio 2010.
apêndiCE
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Atividade 4
De modo semelhante à Atividade 3, identifique as línguas abaixo, e tente encontrar uma diferença significativa entre, de um lado, as versões em francês e inglês, e, de outro, todas as outras.
“Je peux manger du verre, cela ne me fait pas mal.” - francês
“Posso mangiare il vetro, non mi fa male.”
“Vitrum edere possum; mihi non nocet.”
“Consigo comer vidro. Não me machuca.”
“Pòdi manjar de veire, me nafrariá pas.”
“Pot minca sticla. Nu ma doare.”
“Puedo comer vidrio, no me duele.”
“I can eat glass, it doesn’t hurt me.” – inglês
Fonte: “The I can eat glass project”. Disponível em: <http://web.archive.org/web/20040201212958/http://hcs.harvard.edu/~igp/glass.html>. Acesso em: 05 maio 2010.
Atividade 5
Como vimos neste livro, o Appendix Probi é uma lista que conde-na a pronúncia popular e está organizado do seguinte modo “FORMA CULTA non FORMA POPULAR”; assim, na linha 3, speculum é a forma culta e speclum é a forma popular. Vimos também que as formas popu-lares (e condenadas) do Appendix Probi antecipam e exemplificam mui-tas das mudanças pelas quais o latim culto passou até resultar, através do latim vulgar, nas línguas românicas.
Assim sendo, analise as entradas selecionadas do Appendix Probi abaixo e identifique regras de mudança linguística que também se apli-quem à história do português. Analise as palavras vulgares em sua re-
História da Língua
188
lação com as formas tidas como corretas, traduza as palavras que você conseguir através do conhecimento do português e das discussões pro-postas nos capítulos e tente identificar regras de mudança do latim ao português. Para tanto, você pode usar o capítulo em que discutimos o latim vulgar e também vários livros citados nas Referências.
3) speculum non speclum
4) masculus non masclus.
5) vetulus non veclus.
7) vernaculus non vernaclus.
8) articulus non articlus.
9) baculus non vaclus.
10) angulus non anglus.
11) iugulus non iuglus.
14) vacua non vaqua.
16) cultellum non cuntellum.
20) columna non colomna.
25) formica non furmica.tis.
27) exequiae non execiae.
29) avus non aus.
36) barbarus non barbar.
37) equus non ecus.
38) coquus non cocus.
42) pauper mulier non paupera
mulier.
44) bravium non brabeum.
53) calida non calda.
54) frigida non fricda.
55) vinea non vinia.
56) tristis non tristus.
58) umbilicus non imbilicus.
59) turma non torma.
64) senatus non sinatus.
70) alveus non albeus.
75) formosus non formunsus.
77) flagellum non fragellum.
78) calatus non galatus.
80) solea non solia.
apêndiCE
189
83) auris non oricla.
84) camera non cammara.
86) cloaca non cluaca.
88) ales non alis.
89) facies non facis.
92) vates non vatis.
95) apes non apis.
104) fames non famis.
111) oculus non oclus.
123) occasio non occansio.
126) effiminatus non
imfimenatus.
130) tabula non tabla.
140) amycdala non amiddula.
142) stabulum non stablum.
145) turma non torma.
149) persica non pessica.
152) tensa non tesa.
154) auctor non autor.
155) auctoritas non autoritas.
159) terrae motus non
terrimotium.
163) passer non passa.
174) rivus non rius.
201) viridis non virdis.
203) sirena non serena.
205) labsus non lapsus.
211) rabidus non rabiosus.
219) numquam non numqua.
221) vobiscum non voscum.