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Poesia Livro O Amor.pmd 19/10/2005, 17:02 1

Livro O Amor - ueangola.com

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Poesia

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“Muiômbo wa Kabinje”Lembra este desenho que os menos afortunados têm igualmentedireito a ser tratados com humanidade.

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O AMOR TEM ASAS DE OUROAntologia da Poesia Feminina Angolana

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Copyright © 2005, Seomara Santos & Filomena Gioveth,by Vários Autores & UEACapaDesenhos na areiaCokwe/SoniaTítuloVerso tirado de um poema de Natália Correia(Escritora Portuguesa)Designer Gráfico e ImpressãoZoomgraf-kDeposito Legal N.º 2731/05Tiragem1.000 exemplares1.ª Edição: Luanda, 2005Colecção «Guaches da Vida» N.º 21Todos os direitos desta edição à UEAEmail: [email protected]@yahoo.com.brSite: www.uea-angola.orgTel. 322421/323202 Fax. 323205

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FILOMENA GIOVETH & SEOMARA SANTOS

O AMOR TEM ASAS DE OUROAntologia da Poesia Feminina Angolana

União dos Escritores Angolanos«Guaches da Vida»

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Índice

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· Ana Branco (1967)

Do Livro:«A Despedida de Mim»Edição/UEA2004

- Amor Insano ........................................... 31- Perpetuação do Amor ............................. 32- Talvez Numa Noite …............................. 33- Ilusão ....................................................... 34

· Ana de Santana (1960)

Do Livro:«Sabores Odores & Sonho»Edição/UEA1985

- Xicala ....................................................... 37- Ralhete .................................................... 38- Canção Para Uma Mulher ..................... 39- Aos Homens da Noite ............................ 40- Longe da Cidade .................................... 41- Desafio .................................................... 42

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· Anny Pereira (1951)

Do livro:«14 Poemas em Abril»Edição/UEA1998

- Perdão .................................................. 45- (Inter) textualidades ............................ 46- não me peças sorrisos .......................... 47- De tudo, às nossas vidas (…) .............. 48- Posse .................................................... 49- Sinestesia ............................................. 50

· Alda Lara

Do Livro:«Antologia no Reino de Caliban II»

- Revolta ................................................ 55 1948

- Presença .............................................. 56 Lisboa, 1952

- Circulo ................................................ 57 1954

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· Alice Palmira (1944)

Do livro:«Mulemba da Saudade»Edição/UEA2004

-A Mulemba da Esperança ....................... 61- Minha Poesia .......................................... 62- Uma Menina Divertida ......................... 63- Nem mesmo o céu (…) .......................... 64

· Carla Queiroz (1968)

Do Livro:«Os Botões Pequenos Sonham com o Mel»Edição/INIC2001

- Insulto ................................................... 67- Eternas Vítimas ..................................... 68- Fixa-te em mim… ................................. 69- Discurso com Cachimbo ...................... 70- Confissão ............................................... 72- Lamento ................................................ 73

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· Cecília Ndanhakukua (1975)

Do livro:«Insónias Líricas»Edição/Nzila2002

- Relembrar ............................................... 75- Canção do amor .................................... 78- Divórcio definitivo ................................. 79- Traição .................................................... 80- Consolação ............................................. 81- Desespero ............................................... 82

· Chô do Guri (1959)

Do Livro:«Vivências»Edição/Autor1996

- África ..................................................... 85- Teu Destino Minha Mãe ....................... 86- Porquê Fingir ......................................... 87

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Do Livro:«Morfeu»Edição/Autor2000

- Voltei ...................................................... 88- É O Sonho Lúgubre da Vida ............... 89- Vem! ....................................................... 90

Inéditos

- Ser Mulher ............................................ 91- Rainha dos Prazeres ............................... 92 24-01-99

- Ó Poesia ................................................. 93- Chove na Quibala ................................. 94- Minhas Lágrimas ................................... 95

· Deolinda Rodrigues (1939)

Do Livro:«Diário De Um Exílio Sem Regresso»Edição/Nzila2003

- À Mamã ................................................. 99

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· Isabel Ferreira (1960)

Do livro:«Nirvana»Edição/Kilombelombe2004

- Vou embora .......................................... 103- Desilusão .............................................. 104- Marginal do teu corpo ........................ 105(a confissão do outro)- Do homem para homem .................... 106- (Des)abafos .......................................... 107- Entre alma e lençol .............................. 108

Kanguimbo Anánaz (1959)

Do Livro:«Seios do Deserto»Edição/BJLA2002

- O Tempo ............................................. 111- Noite de Luar ...................................... 112- Sozinha ................................................ 113- Coração .............................................. 114

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· Leila dos Anjos (1981)

Do Livro:«Anjels»Editor/ UEA2005

- Meu Lindo Amor ............................... 117- Lamentos De Uma Vida Descalça ...... 118- Anjo Meu ............................................ 119- Levanta-te E Vai .................................. 120- Um Grito No Escuro .......................... 121

· Lília da Fonseca (1961)

Do Livro:«Antologia No Reino de Caliban I»Edição/Ciara Nova1979

- Uma Canção na Noite ........................ 125- Bandeira Branca ................................ 127- S o b r e s s a l t o ................................ 138

Do Livro:«Antologia No Reino de Caliban I»Edição/Ciara Nova1976

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· Maria Alexandre Dáskalos (1957)

Do livro:«Do Tempo Suspenso»Edição/Caminho1998

- Talvez o nosso corpo ............................ 133- Ternura de um pequeno .................... 134- Amor é fiel .......................................... 135- Primeiro Amor .................................... 136- Quando não há mentira .................... 137

Do livro:«Lágrimas e Laranjas»Edição/Caminho2001

- Fugi do ouro….................................... 138- Saudade ............................................... 139- Trouxeram-me as cartas ..................… 140- Aquelas mulheres do Huambo .......... 141- Escoava-se toda a chuva ..................... 142

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· Maria Celestina Fernandes (1945)

Do livro:«Poemas»Edição/UEA1995

- Dia da mãe .......................................... 145 Luanda, Maio 1993

- Março Mulher .................................... 146 Luanda, 08 de Março de 1992

- Solitária ............................................... 148- Amar ................................................... 149- Canto ao amor .................................... 150

Do livro:«O Meu Canto»Edição/UEA2004

- Felicidade ............................................ 151- Angústia .............................................. 152- Minha mãe .......................................... 153- Lágrimas Invisíveis .............................. 154

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· Maria Amélia Dalomba (1961)

Do livro«Ânsia»Edição/UEA1995

- A Saudade ........................................... 157- Aos teus olhos ...................................... 158- Dedicação ........................................... 159- Aquele sorriso ..................................... 160 Cabinda, 1998

- Sem palavras ....................................... 161 Nov, 92

- Saudade .............................................. 162

Do livro:«Noites Dita à Chuva»Edição/UEA2005

- Herança de morte ............................... 163- Ai de amor .......................................... 164- Mulher de dor e flor ........................... 165

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· Maria Eugénia Neto (1934)

Do livro:«Foi Esperança e Foi Certeza»Edição/UEA1979

- Hoje decidi… ...................................... 169- Asas Brancas dos Confinsdo Meu Sonho ...................................... 170 Brazzaville, 25-08-1966

Do Livro:«O Soar dos Kissanges»Edição/NZILA2002

- Amor ................................................... 172 Luanda, 1989

- Chuva ................................................. 173 Luanda, 22 de Março de 1989

- Paisagem .............................................. 174 Luanda, 1989

- Ser Mar ............................................... 175 Luanda, 1989

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· Maria Fernanda Baião (1961)

Do livro:«Minhas Lágrimas»Edição/Nzila2003

- Ânsia ................................................... 179- Hoje sou ............................................. 180- Quem ................................................. 181- Finalmente ......................................... 182

- Paula Tavares (1952)

Do Livro:«Ritos de Passagem»Edição/UEA1985

- O Mirangolo ....................................... 185- A Nêspera ............................................ 186 Luanda, 84

- O Amor Impossível .............................. 187 Luanda, 84

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Do Livro:«Lago da Lua»Edição/Caminho1999

- No lago branco da lua… ..................... 189- MUKAI (3) .......................................... 190

Do Livro:«Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos»Edição/ Caminho2001

- Amada… ............................................ 191- O Cercado .......................................... 192- Mulher VIII ........................................ 193- As Viúvas ............................................. 194- A Mãe e a Irmã ................................... 195

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A poesia não tem rótulosFilomena Gioveth & Seomara Santos

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“Em sentido radical não há nada a dizer de um poema,

pois é ele mesmoo dizer supremo”,

deEduardo Lourenço,

in «Tempoe Poesia»

Assumimos que a colectânea «O Amor Tem Asas de Ouro»,é um projecto parcial e divulga o lado mais lírico das mulheresangolanas poetas, para que o leitor sinta essa peculiaridade devozes com alguma felicidade e deleite.

Queremos que a nossa selecção, apesar de ser abrangente,de maneira geral, mostre o incansável labor criativo, o traçorigoroso das metáforas e alegorias com grandes rasgos plásticoscapazes de sensibilizarem ou tocarem os egos dos leitores, melhorainda, um acervo que se constitui também como um elementode modernização da poesia angolana, manifestação literária quedomina o nosso panorama literário cultural e que faz cristalizaro epíteto de que «infalivelmente, somos um País de poetas».Acrescentaremos sem qualquer dúvida: de grandes poetas.

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Alguma generosidade passou pelo nosso aturado ofício deselecção, interessa confessar, apesar de, naturalmente, seguirmosos critérios mínimos de exigência estética e o gosto pessoal queentra sempre nos processos de selectividade dos diversosconteúdos. Muitas foram as vezes que ouvimos e registamos osgostos das escritoras em conversas distendidas aquando das suasvisitas ou participações nas diversas actividades da Instituição.Nunca tivemos a pretensão de pensar que, numa atitude deisolamento, pudéssemos conseguir fazer o trabalho com maioreficiência. Queremos que a presente colectânea seja um pontode partida; outros farão colectâneas com propósitos muito maisrestritivos que coloquem ênfase nas diversas correntes existentes.

Não pretendemos entrar na polémica sobre o «género» napoesia angolana. Se o fizéssemos, certamente ficaríamos emlugares-comuns que não podem enquadrar a poesia porque,como muitos poetas defendem, «A poesia não tem rótulos»; éalgo que faz parte das nossas entranhas. Ana Paula Tavares, poetae historiadora, em entrevista concedida a Cláudia Pastore daUSP, quando perguntada se a “poesia angolana pode serabordada como uma poesia de género”, respondeu o seguinte:“Até muito pouco tempo, isto não era preciso. A voz da mulherrealmente não tinha uma identidade, embora houvesse vozesfemininas que tinham construído seus trabalhos em determinadosmomentos, como a poesia sobre a terra... Mas eu penso que essasmulheres, incluindo dentre elas Alda Lara, não tinham ainda umaconsciência das particularidades do “eu feminino” dentro daqueleuniverso”. E conclui: “É muito difícil nós falarmos da poesia degénero...”. A entrevista pode ser lida integralmente no site daUEA (www.uea-angola.org), link «Entrevistas» que conta já commais de 40 entrevistas de escritores e ensaístas. Sabemos todos

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que existe uma temática que traz para o centro da poesiaangolana a problemática à volta das inquietações das mulheresnuma sociedade africana como a nossa. Olhamos para a vidapolítica e económica e concluímos que ainda não estamos bemrepresentadas. Interessa, acima de tudo, que, nos diversosdiscursos, esse mesmo «eu feminino» construa o seu verbo,partilhando espaços, interesses e fazendo convergir as utopias.

Como o País vai tomar gosto pelas antologias, outras escolhasmais selectivas virão, excluirão mais ou ampliarão esta colectâneapara que se possa sistematizar todos os possíveis conteúdos à voltada poesia angolana. Esta colectânea é quase o registo completo,um inventário incontornável da poesia assinada pelas mulheresainda pouco representadas na História da Literatura Angolana,se não, vejamos, só no ano de 2004, com a chancela da UEA,colecção Sete Egos, foi editado o segundo romance escrito poruma mulher, Celestina Fernandes, com a obra «Panos brancos».

É mais um desafio que, na verdade, tem um grande condãopara nós, o de levar-nos a fazer leituras constantes da nossapoesia, estarmos muito mais atentas e com um sentido deresponsabilidade que deixa sempre o seu lado positivo: uma vidade realizações, de projectos e essa aventura teve horas e horasinolvidáveis de convivência, conselhos, exigências e debates coma nossa incansável e afável orientadora, Prof. Dra. Laura Padilha,nossa «tia», e das oportunidades que nos foram dadasinstitucionalmente pela Direcção da UEA.

Obrigadas.

Filomena Geovethy e Seomara Santos

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Ana Branco*

· Ana Maria José Dias Branco nasceu na Lunda Norte aos 24 de Maio de 1967.Obras Publicadas: «Meu Rosto e Minhas Magoas» (1997) e «A Despedida deMim» (2004).

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Amor Insano

Ao amor todos os dias me refiro,Pois digo para mim: “Amo um amor insano”,Aquele que ministra minha vida traiçoeiroSurgindo com ímpeto, mas ameno.

Tu a quem recordas welwitschias* e violetasQue ferozes acariciam desejos sobre a mais bela crençaColeccionando teus amores frágeis e Pagões.

Tu que fazes de nós os melhores poetasQue te deitas ao mundo com toda a graçaE nem reconheces quem é, teu sangue e teu irmão.

Tu que a todos os que te amam inquietas,E com impulsos animais e cobiça,Entrelaças uma vida só em tuas mãos.

* Planta das regiões desérticas de África

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Perpetuação do Amor

Talvez um dia virá o amor para me salvar,E dar-me toda a sabedoria de onde começou a vidaE onde terminou a dor.Mas esse amor nunca andará só.Terá a paz num abraço…E no outro trará a inquietude e sossego.

Ninguém festejaráO fim do sonhar, porque;Perder-se-á a guerra.Morrerão os soldados,E finalmente perpetuar-se-á o amor…

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Talvez Numa Noite…

Talvez numa noite airosa,Poderás saber afinal…O quanto deixei minha vida fugir venenosa

Por medo que acabasse esfomeada,Seca das dores da entrada.Corri, fugi de tiPara outro ir namorar que linda era a brisa.Julguei que assim pudesse apagar,O fogo que arde em mim de tanto te amar.Mas não… Persiste esse amor a manejar minha vida.

Pobre atormentada sou eu,Porque assim quis,A quem o destino criou.Passaste por mim, meu amor, meu caminho,E eu mudei de direcção.

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Ilusão

Meu coração lágrimas em sangue,Ao ouvir a voz chamamento do diabo.

Amo-te e tu vês, não sentes, nem percebes.Que desejo enorme recorda-me…O fatal sabor de sangue e,O suicídio em cataratas que até me seduz.

Vontades loucas ao agarrar ilusões,Deste amor falso em competições amigáveis.Meu coração pobre enegrecido,Explodiu de saudade de não mais saber amar.

O carinho em teus olhos era quaseUma verdade.

O sono demorava a chegar.Era como se fosse alguma primeira vez…Que pena gasta-se a vida em nada,E corre-se por tão poucoQue no final, falta-nos a coragem de alcançar,O que mais raro nos é.

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· Ana Paula Santana nasceu no Kwanza Sul aos 20 de Outubro de 1941. ObraPublicada: «Sabores Odores & Sonho» (1985) Cadernos Lavra & Oficina n.º 53.

Ana de Santana*

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XICALA

Trazia o recortedas tuas ancasna mãopicotado

água docepelo olho do côco,foi-se o traçona palma esquecidapelo dentro da areia

enquanto o silêncio nos olhos.

Restou a bocaaberta ao mufetena ponta dos dedosea lembrançapara o contardas tuas conchasao vento,

ainda o mar na pele.

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Ralhete

Não me cobreshistórias de adormecerquando o obusrebenta no quintalnão me peças luzse as janelas estão trancadasnão me lembres dos traumasnem fales de fantasmasquando eu sonho comtodos os companheirosque sinto perder na batalhaa cada temponão me perguntes sobre o amorque não tivenem pelo coração, que esse,faz tempo, jaz geladona granada do meu peito.Porque procuras os meus olhosse há muito foram perfuradospelos estilhaços?Como te atreves a quererque te dê a mão se ainda agoraa ofereci em troca de pão?E, sobretudo, não me perguntespelo que não dissepois a minha bocahá muito se fechou à forçado fuzil do homemque em mim te semeou.

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Canção para uma Mulher

Nunca me falasteda tua músicaestuprada à força do falo,nem me contastedas partículas quepacientemente raspasteao sol para fecundar a terra.Apenas dizes dos braçoscruzados à volta do filhoou do milho a colher.

Sempre espero, pacientemente,tua boca liberta,pelas mãos mostrando o solepelos teus filhos contando-teda vida que semeaste.

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Aos Homens da Noite

Queria dizer-vosdo melhor retrato que colhido vosso mais querido fantasma.

Mas,eis que o escárnio irrompede dentro das vossas braguilhasdescaradas.

Vale-me a sensatez da músicadizendo em ritmo de semba,da mulata côr muambae lábios pitanga

e solta-se a minha gargalhadana noite.

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Longe da Cidade

Havia a felicidadeno alto do morro,do perfil da música

do bico do pássaro.

Assim mesmocomo em momentosnos guarda-jóiasbuscados apenasquando se deve

acreditar na semeadura.

Vai havendo a impotência,que é trágicaquando não comedida,

no montar do sorriso.

Assim tambémcomo o dente trincandoa maçã da imagem

na sacristia.

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Desafio

De sangue na pontalança desafio a palavrajorrada do colo tão nosso,tranzido.

Trata-se apenasde a encontrarneste saco placentárioem frasee a voz para a dizerpelo furacão em transe

cumprindo o tempodo poema parido assimem desesperoquando de paz se queralado, se desfazcomo suspiro na bocaao lado.

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Anny Pereira*

· Anny Pereira nasceu no Bié aos 2 de Janeiro de 1951. Obras Publicadas: «CatorzePoemas em Abril» (1998), Menção Honrosa do Grande Prémio Sonangol deLiteratura e «Uma Vez Só Não Basta» (1998), Prémio Literário António Jacinto.

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Perdão

A ti, meu irmãoque ainda ouves o canto das cigarrasa ecoar na noite que não desejaste.A ti, meu irmãoque a noite que não desejastese transformou no diaque não sonhaste

a ti, meu irmãoeu peço perdão.Perdão, por ser igual a tie não desejar sê-lo.

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46

(Inter) textualidades

(Para o Né,um dos paradoxos da Intertextualidade)

Eu queria escrever-te uma carta, amigouma carta que falassedesta vontade de correr e de voar,de agarrar as estrelas no céu,e de soltá-las na praia deserta de Santiago.

Eu queria escrever-te uma carta, amigouma carta que falassedos sonhos desfeitos que nas noites cálidasse cruzam, se misturam e se confundemcom sonhos utópicos não possíveisnem mesmo no reino encantado de Passárgada.

Eu queria escrever-te uma carta, amigouma carta que falasseda vontade de contigo dançar uma rumbacom o canto do «sim» a desafiartodos os «nãos» da minha actual existência.

Eu queria escrever-te uma carta, amigo.Mas porquê, porquê, porquê amigoque as palavras não ocorreme tu, oh desespero!Nunca mais poderás ajudar-me a fazê-lo.

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47

não me peças sorrisosque ainda ecoa no meu peitoo grito pungente da mãe que perdeu o filho

não me peças sorrisosque ainda sinto na carnea dor dilacerante do fogo a rasgar-me o seio

não me peças sorrisosque ainda vejo nas esquinaso sangue dos membros que a terra amputou

não me peças sorrisosque ainda trago nos sonhosas marcas dos obuses nos céus do meu imaginário

mas, sobretudo,não me peças sorrisosque ainda vislumbro no escuroos olhos sem brilho e sem esperançados meninos de rua,que não sonharam o sonhoque a tua mão lhes traçou

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48

De tudo, às nossas vidas estarei atentaantes, agora, depois, sempre e de tal jeito,que mesmo que a um de nós falte o alento,cada vez mais o nosso abraço será estreito.

E se por algum motivo e em algum momento,me faltar de algum modo a «tal» corageme a dureza dos dias me turvar o pensamento,possa eu ainda recobrá-los numa qualquer mensagem.

E assim, quando um dia me releresà sombra imensa do nobre embondeiro,que amaina o calor das gentes e da terra

tu possas ainda sentir-me toda inteira,e cortares as «amarras» com uma serrasem nem mesmo disso te aperceberes.

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Posse

Deitei-me sobre o teu cansaço,na esperança de trazer-te o descansoque há tanto tempo em vão procuras.

Cobri teu corpoe tive-te, e perdi-te ao alvorecer,quando tudo se confundee a noite é dia, e o dia é noite,e as estrelas são o instrumentodos nossos sonhos e dos nossos êxtases.

Encontrei-te depois,quando te perdeste e me encontraste também,e já o dia amanhecia outra vez…

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Sinestesia

À página «cento e vinte e sete» de Gedeão

A ti,que eu não conheço e amocom a intensidade das marésem dia de calema na restinga do Lobito

A ti,que eu não conheço e amocom as cores das queimadasque iluminam os planaltos do Huambo e do Bié

A ti,que eu não conheço e amocom o cheiro a mangas e maresia do Mussulo

A ti,que eu não conheço e amono café torrado do Kwanza Sul e Kwanza Norte

A ti,que eu não conheço e amocom a doçura de itebe e saka-foya de Cabinda

A ti,que eu não conheço e amoe ainda degusto no veado e na pacaça da Quiçama

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A ti, meu amoreu ofereço toda a sinestesiadesta terra onde nascie onde espero um dia conhecer-te.

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Livro O Amor.pmd 19/10/2005, 17:0252

53

Alda Lara*

· Alda Lara (1939 – 1962). Obras publicadas: «Poemas» (1966), «Poesias» (1979),«Tempo de Chuva» (1973).

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55

R e v o l t a

Quero, e não quero!...Creio… e Desespero!...Renego, mas Aspiro,E em cada vira-volta,Mais grito e mais me firo!...Aonde esperei, não espero!...Aonde Desejei, já não desejo,E se algum dia Vi,Hoje não Vejo!...

……………………………………

Deus,… ó Deus!...Para que lado ficam os teus céus?!...

……………………………………

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P r e s e n ç a

Não perguntes porque vim…trazendo não-flores nos dedos,falando línguas diferentes,dizendo em risos-segredos,todos os sonhos dementes…

Não perguntes porque vim…

Se pudesse entendereste pulsar sem medidaterias chegado ao fim…

Mas estou junto a ti,irmão,diz-me então,que mais te importa?

Não perguntes porque vim…

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Círculo

Todo o caminho é belo se cumprido.Ficar no meio é que é perder o sonho.É deixá-lo apodrecer, no resumidocírculo, da angústia e do abandono.

É ir de mãos abertas, mas vazias,de coração completo, mas chagado.É ter o sol a arder dentro de nós,cercado,por grades infinitas…

Culpa de quem, se fiz o que podia,na hora dos descantese das lidas?

Ah! Ninguém diga que foi minha!Ah! Ninguém diga…

Minha, a culpa,de ter dentro do peito,tantas vidas!...

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Alice Palmira*

·Alice Palmira nasceu em Brazzaville (R.Congo) aos 7 de Setembro de 1944. ObraPublicada: «A Mulemba da Saudade» (2004).

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A Mulemba da Esperança

A mulemba do HuamboÉ também a mulemba de renascerE vim replantar o meu sentido ao pé de tiHavemos de nos encontrar um dia para nos perdoar

A mulemba da saudadeÉ também a mulemba do nosso ponto de encontro semanalO homem vale o que vale pelas suas armasHavemos de nos encontrar um dia para nos unir

A mulemba da esperançaÉ também a mulemba do regresso ao país, da qual nosSentamos a contemplar a paisagem para escrever aLiteratura e o jornalismo da nossa terra AngolaHavemos de nos encontrar um dia para dar-nos kandandu

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A Minha Poesia

Dá-me a tua luzA verdade do teu olharNão é mal nenhum escrever meu nomeNão é mal nenhum escrever poesiaNão é mal nenhum escrever teu nomeNão é mal nenhum escrever teu gozoNão é mal nenhum escrever liberdadeA pazO amorA bondadeA mansidãoA temperançaDá-me a tua luzA verdade do teu olharOnde vai a poesia?Onde pára a poesia?Se a sinceridade e a poesia dói, isto éEscrever um poema.

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Uma Menina Divertida

Eu, Palma,Tinha perdido a segurança de criançaEm troca não tinha ganho nada

Entretida com a incessante novidade das coisasEu era uma m’bundu divertidaEu, Alicita, para além dos meus estudosA leitura era uma das grandes paixões da minha vida

Apesar de todas as dificuldadesÉ uma grande alegria escreverO sabor da aventura literária é louca

Ter um entendimento radicalCom alguém muito especialÉ um enorme privilégioTinha tanta confiança neleQue ele me garantia uma segurança definitiva

Devido à vida dramática no início de JulhoEu sabia que ele nunca mais sairia da minha vida

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Nem mesmo o céuNem as estrelasNem mesmo o marPodem ter tempoPara fazer-me sofrerQuero sentir no peitoO calor tropical

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Carla Queiroz*

· Carla Queiroz nasceu no Kwanza-Sul em 1968. Obra Publicada: «Os BotõesPequenos Sonham com o Mel» (2001). Prémio António Jacinto.

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Insulto

Insultei o insulto às coisas tortasA voz estridente dos vivosViolou a surdina dos anjosE a perícia dos que amamos

Mas,Não aceitei a chapada desajeitada daquelesPerdi a certeza e a vontade de largaro aperto ao meu ventre constipado e doentioE senti o paladar da voz que tristemente ia perdendo

No entanto,Adorei o sentido tétrico do cognus e da pedraE me ri do rio nuque desnuda o corpo da águadas aves espertas que chafurdama crueldade dos troncosonde resmunga o salalé

Por isso,Assumi a lembrança daquela festaO encontro dos amigos que aplaudiam os guerrilheirosA glória e a marcha ao novo reino

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Eternas Vítimas

Acorrentem as vozesde quem não tem bicoFeiticeira horaque julga os insepultosCastiguem a mancha berranteretida nos olhosSuspirem os sonhosComo louca maniaSob os auspícios da lua e da poesia

Violentem as epopeias mestiçasCuspidas nas heces-fecais dos DeusesOdisseias e prosopopeiasDarão corpo À mística corrosãoDe que sois, afinal, Eternas vítimas

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Fixa-te em mimna vozna luzna cruzReclamando um aviãoque rompa teu ventoe irrompa de mimà boa mania de animalque deseja erguer-se no vôo da andorinha

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Discurso com Cachimbo

I

Entre o pódioE o discurso sábio do carcamanoExiste o cachimboSímbolo dourado da febre dos queijosDiálogo da metáfora com o sorriso malandroDa culatra dos cavalheiros

II

Desdobrem a esteiraBoas-vindas visitante!Bom delírio!Sobras ou sombrasOferecidas ao infinito desejoSílabas da dança do rioCompondo a melodia da frase augusta

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III

Bom-dia!Bom destino!Pódio, carcamanoCastigo à gramática do sonhoA paixão pelo transe e pela flor do desamparoDecomposição célebre Do espírito do sapo Que mata a magia do cachimbo.

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Confissão

ConfessoQue vivo no olho da mágoaSuspirando o ardor da foliaCastiça senhora das águas errantesEmbalada na florEnfeitada no jardim do moço bonito que já não amoConfessoQue vivo na pureza insensível do meu mosquiteiroRetratando a doençaQue renasce do meu retratoDesenhada como o diamante que me rouba o sustentoEsbugalhando a sina dos peregrinosIncorporando na cena a taquicardia da sobrevivência

ConfessoQue vivo sem o pequeno concensoSem a pesquisa e sem a força do papagaio e dos arcanjosQue protegem a razão omnipotente dos meus jornais e baloiçosConfessoNo fundo, no fimQue vivo no texto cônscio e sábio do heróiNa tagarelice das vísceras da minha desilusãoCosturada ironicamenteComo fardo trivial dos outros compadresNa comoção bastarda do meio-dia.

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Lamento Ao PepetelaI

Lamento ser a corQue mais não sou que um talvezSou um vazio num espaçoSou uma agulha num deserto.Sem terra me consideramSem identidade me julgamSou um por quêDentro do que é.

II

Lamento serQuem mais não sou do que o talvezSou o sonho em dia quenteSou a ilusão no vazioSou o desejo que procura fundamentoSou o que mais queroDentro de tudo que não tenhoSou o que souA pequena e bela dúvidaQue inspira a poesiaA mulher e o desejoQue torturam a esperaCom a ânsia e a lamentaçãoSou o que souDentro de tudoQue já é

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Cecília Ndanhakukua*

· Cecília Ndanhakukua nasceu no Ondjiva aos 9 de Janeiro de 1975. Obra Publicada:«Insónias Líricas» (2002).

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Relembrar

São meus aindaOs fragmentos de aromaDeixados por tiEm meus lençóis

São viventes aindaAs tuas cançõesCantadas no meu ouvidoDe mulher apaixonada

Sem ecoSem vibraçãoNem expressão de rimaSão meus minhas aindaOs gemidos soltos de mim Na madrugadaDuas horas antes de partiresCom destino sem regresso

São enfim ainda minhasEstas vivências sem retracto

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Canção de amor

Alimentam a madrugadapresente na paixãoDe uma eterna fogueiraCantandoCanções do tempoRelembrado nos abraços de amor

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Divórcio definitivo

Canto-vos esta cançãoDe dorDe prazer

O seu interior tem ecoVoz da voz caladaNo âmago do meu ser mulher

Esta canção ardeEm combustão de dorPaixão do meu viver

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Traição

Amores traídosPromessas falsasFilhos esquecidosNo destino do tempoEsquecidos no tempoFúnebre da tempestade

Eu sou a solidão do tempoVento sem ecoVento sem vozVento sem rebentoExposto ao sol ardente

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Consolação

Como Pérola saciávelAlma encantadoraEu canto-te esta canção de nostalgiaAudácia de um percurso de amor

De uma mulherVibração e encanto da vida Esta canção que em cada se renova Esta, Esta canção tem sabor de amor puro

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Desespero

Não suporto as horasOs diasAs semanasOs meses

Não suporto a tua ausênciaPerdida neste tempoFingindo estares de volta para breveSem previsão do tempo

Não suporto a tua demora

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Chó do Guri*

· Maria de Fátima (Chó do Guri) nasceu no Kwanza-Sul aos 24 de Janeiro de 1959.Obras Publicadas: «Vivências» (1996), «Bairro Operário» (1998) e «Morfeu» (2000).

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África

Abraça-te a luacheia de luz macia e nua

cálice dos amores furtivoscor do arco-írisfluido de risos

na dança dos cristaisdescobre o rosto grinalda

natureza solene floridalicores dos vales pântanos e florestasde pernas entreabertas

nas montanhas do teu corpo ébrioo misticismo dos deuses insalubrescom desejos dilatadoslevam o verde esperançaao mercado da ignorância

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Teu Destino Minha Mãe

O teu olhar triste e sereno em cada esquinasão lágrimas que fluem do teu rostopor um coração cheio de dorapagaram dos teus lábios a palavra amorque por uma vez se agigantoudeixando marcas de temor

Quantos cantos ao luarquantas promessas conjugaisquanta poesia sexualquantos ciclos sentimentais

O tempo apagou as feridasmas deixou o destino às escurasde quantas meninas paridasdiz-se de negro olhar

Foram muitos os temporaisporque passaram muitas mãesmas o mais negro temporalveste-te de preto minha Mãe

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Porquê Fingir

Fingir!!!

Fingir que não sinto…quando tuas mãos correm subtis no meu corpo

Fingir?

E esvaír-me nos sentidos obscurosda minha alma invisíveldepauperadacarne consumidadivididaou estro sem fim?

Porque fingir?

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Voltei

Voltei!Voltei para dizer tequanto mordes te meus lábios

ainda insufladosde tanto te amar se ave ludaramansiando os teus

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É o Sonho Lúgubre da vida

Uma lágrima teimosa escorre aponta a música sombria no interior da alma

rangem os dentes que rasgam o ar em cada poço da vida amedrontada

as tumbas mais profundasescondem os frutos desgastados da terra

a terra em homilia liberta o incenso p’ras almas fustigadas como se fossem extraterrestres …é o sonho lúgubre da vida

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Vem!

Vem! Toca-me de mansinho ainda te sinto na força interior do meu desejo

Sente! Sente o teu cheiro que ficou em mim e vem Vem socorrer-me dos mil beijos de vento das correntes das águas que acariciam o meu corpo

Deixa! Deixa novamente penetrar o teu desejo ardente ainda que ausente meu corpo ainda o sente

Mas vem! Vem, sente e deixa-me jazer somente nos braços da brisa que me beija docemente

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Ser mulher

Ser mulheré amar a vidano útero do universo

na humanidadea esperançaviver certezas

é vomitar prosperidadefecundar sem espermaamar amar amarcom o beijo fértil da terra

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Rainha dos prazeres

À minha mãe (Maria Quibala)

Negra!Rainha dos prazeresSorria encabuladaJá comi tua moambaTraz maruvo ou kissânguaP‘ra engolir as malambas

Despi o cansaçoNo teu loandoP‘ra dar vida a mulataQue trazias nas entranhas

… que nome deste a garota?

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Ó poesia!

Ó poesia!A aura do teu sorrisoTira o queixume do mundoquando se abre emaculadoPr’o parto plúmeo das palavras

Deusa de belezas ocultasNo mundo florescesDás força à vida

Deixa-me!Deixa-me só(mente) sorverO fluído das palavras luzidiasAspergi-las como água bentaPara irmandade entre os homensÓ poesia!

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Chove na Quibala

Lá aonde a chuva é mais fortegrita a pedraesmerilandobatuque dos trovõesnos quimbos da Quibala

Sorrina carapinhada negra escarumbaque rogacom preces e cantigas

Cai chuvachora pedraaos caçadorespescadorese a gente da machambanão dá tréguas

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Minhas Lágrimas

Minhas lágrimas são ondas da saudade que o tempo cristaliza

no cálice da tua ausência engulo dor vomito suspiroporque as nuvens espessas nos meus olhos o destino dissolveu-as em Julho

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Deolinda Rodrigues*

· Deolinda Rodrigues de Almeida (1939 – 1967). Obras publicadas: «Diário deUm Exílio Sem Regresso», (2003), «Cartas de Languidila» (2004).

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À Mamã

ÁfricaMamã ÁfricaGeraste-me no teu ventrenasci sobre tufão colonialchuchei teu leite de corcresciatrofiada mas crescijuventude rápidacomo a estrela que correquando morre o nganga.Hoje sou mulherNão sei já se mulher se velhinhaMas é a ti que venhoÁfricaMamã África.

Tu que me gerastenão me matesnão praguejes um rebento teu,senãonão tens futuro.Não sejas matricidaSou Angola, a tua Angola.

Não te juntes ao opressorao amigo do opressornem a teu filho bastardo.Eles caçoam de ti.Caíste na ratoeira

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enganadanão distingues o verdadeiro do falsono teu cândido e secular vigorcegaste,e agora és tuÁfricaMamã Áfricaque dás força ao irmão bastardopara asfixiar-me azagaiar-me pelas costas.O opressor, o amigo do opressoro teu filho bastardo(também tu, Mamã África?)divertir-se-ãoao ouvir-me expirar.

Mas ÁfricaMamã ÁfricaP’lo amor da coerênciaInda quero crer em ti.

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Isabel Ferreira*

· Isabel Vicente Ferreira nasceu em Luanda aos 24 de Maio de 1960. ObrasPublicadas: «Laços de Amor» (1995), «Caminhos Ledos» (1997), «Nirvana» (2004)e «Ternando D‘Aqui» (2005).

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Vou embora

Vou embora amanhãlevo a cratera, o frémito…A neblina dos meus olhosdeixo-ta como lembrança

Nos dias de solidãonão terás a minha mãosuave como a sedana tua fronte furacão!

Vou embora amanhãlevo apenas os chinelosaqueles que me desteno dia dos namorados

Vou embora amanhãdeixo tua soturna sombra…No teu quarto a penumbranão apagará o meu penedo…

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Desilusão

Caí em letargia…Meu sonho adormeceu profundamente…Ficou num par de fronhas virgens…Estreadas em noites de volúpia…

Sonho bordadoNas fronhas dum hotelVidas aneladasPontos cheios de suspiros sem gemidos…

Juntos dormimosMas nossos sonhosEsses!AdormeceramNum par de fronhas…

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Marginal do teu corpo(a confissão do outro)

No teu corpo adormeçoHoras longas permaneçoNo asfalto da noite…Revejo cenas do dia

Repasso actos alheiosExtasiado!Vejo-te…virgem… Beijo-te nuaSerena só para mim!

Viro-me todo… Abro tudo…Cuidados me cercamTuas curvas lânguidas… imagino:– invejo o prazer alheio:– deixo fluir as mágoasBeijam-me águas luandinasNa curva da madrugada…

Sinto a maresiaA farfalhar-me o ouvidoSolto-me…Venho-me…Esqueço-me de tudo!Tudo esqueçoAté minha condição precária!

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Do homem para homem

Busquei com ardor a liberdadeConstruí castelos de esperançaRasguei vendavais abri atalhosQuebrei galhos…

– Fiz-me herói: – Ganhei!Os rios cederam meus anseiosManhãs a tudo anuíramA cada dia novos manjares

Cada sonho…Meu real elevado!Esqueci-me dos pedintesDos mendigos outrora…

Agora…Meus inimigosSou dono do mundo

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(Des)abafos

Murmuro-te com olhar:– Oh suplício infindo…Dias vazios sem pãoNoites cheias de solidão

Trago minhas mãos vaziasTrago a dolência no rostoTua mansão de muros altosCheiro a rico manjar

Caminho entontecido sem dorAonde me leva o olfacto:– Dizem que sou um pária…

– Que importa?Se no teu desdémEu tiro a barriga da fome…

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Entre alma e lençol

Uma noite eclipsada amante (in)discretaAnte o espelho encena o enredo idílicoPousa nua rodopia de desejoUm piano de gemidos

Em plena doação nada recusa…Oh,! Quanta loucura em noites escuras!

Enquanto isso…

Angustiante espera da musa fielEntre tecto e tédioMora a aliançaEntre alma cheia e lençol vazio!

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Kanguimbo Ananaz*

· Kanguimbo Ananaz nasceu no Namibe aos 3 de Fevereiro de 1959. ObraPublicada: «Seio do Deserto» (2002).

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O Tempo

Passando pensandoamor aumentandoamando

Como fazerFazendo desfazendoNão sei se souSerei

A noite chegandoa estrela apagandosilênciotédiono meu quarto

Sou duro espinhono jardim da tua casapicandolindo cravo

Deixa o tempopassarpara dar fimmeu castigo de amor

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Noite de Luar

Olho para o céuEstrelinhas perfiladas

Na noite de luarminha terra iluminadameninas do bairrofazendo roda rolandoeu no comando

Que noite deslumbrantenamorados juntinhosna esquina do botequimeu comandoa rodaque rola

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Sozinha

O teu caminhochegou tardejá não ardeem mim a febre

Sozinhano equilíbrio dos passosviviana esperança das promessaso fogo do amoralegria do esperar

Sozinhano equilíbrio dos passosna cela 12vivia quatro paredessuspirava os sons perdidosna esperançana febre do amorna alegria do esperar

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Coração

Abre o teu coraçãopara mimfala para mimmansinhocomo luz do luarou de rompantecomo o sol

Quero chorarquero chorar para tinão fiques caladoabre-meo coração em alegriaem satisfaçãotudo te perdoarei

Não fiquesnão me faças sofrerabre-te coraçãotira esta dorimploro-te

sinto a tua sensaçãoa tua emoçãosou tua

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Leila dos Anjos*

· Leila dos Anjos Morais da Costa nasceu na Província do Kwanza Norte aos 25 deFevereiro de 1981. Obra publicada: «Anjels» 2005

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Meu Lindo Amor

Como posso eu viver? Se o que maisquero a meu lado não está.Como posso eu sorrir? Se o motivodo mesmo já nem sentido faz.Como posso eu te chamar? Se a minha bocasecou, a minha língua colou-se aocéu da boca e a minha voz foi engolidapelo moinho das minhas emoções.

Onde posso te buscar? Se a distânciaque nos separa parece a mesmaentre o céu e a terra.

Mesmo assim meu lindo amornão te esquecerei, porque a tuaimagem cravou-se no altar domeu coração e firmou raízes tãoprofundas que só a morte asarrancará.

Se é que podes ler o meu pensamento,se é que estás a ouvir a minha prece,se me podes ver e sentir aintensidade do meu sentimento,por favor não me ignores nemte afastes de mim, pois desseamor depende a minha existência.

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Lamentos de uma vida descalça

Sentada na sombra do sobreiro descansei,pensando na vida, vi inúmeras nuvens passar,que vida… que vida.

Pensei nestes pés que desesperados deambulampor este mundo afora a busca de sustento,neste corpo que cansado é arrastado pelaforça do vento, nesta cabeça tão oca e vazia,porque os conhecimentos que possuía foramdevastados pela desgraça, nestas mãos calejadase envelhecidas pelos anos de trabalho.

Oh Deus!Preencha de alegria a minha vida tãocarente de amor, ilumine o meu caminhoescurecido pela falta de esperança…torne leve a minha cruz.

Nesta vida descalça se nada de espanto,à sombra do sobreiro descanso,sobrepondo os meus pensamentosperdidos num passado distante,esperando um futuro enriquecidode felicidade… torne mais leve a minha cruz.

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Anjo Meu

Existem muitos anjos…,no céu e no alémmas na terra também.

E um destes anjos, o Cupido do Amorfechou o meu coração.

E agora estou apaixonado,fechado por um anjo e apaixonado por outro,que ironia do destino!

Mas este anjo é realmente um anjo,um amor de pessoa que conquistouo meu coração e os meus olhos.

Quisera eu que este anjo fosse meu,Anjo meu…, anjo meu …

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Levanta-te e Vai

Porque, aqui parada estou, sem forçaspara me poder levantar?Porque aqui vim para, depois de váriosportos caminhar?

Porque, não sei porque, ainda vou terque descobrir, o motivo da minha vida,a incerteza do meu presente e aesperança do meu futuro.

Tenho medo e não sei porquê,tenho fome e não me apetece comer,tenho sede, no entanto, água não quero beber,tenho frio e nem sequer o sinto.

Minhas pálpebras pesam, por causade uma lágrima insistente, que seapossou do meu olho e exige sairacompanhada de outras.

Pare!...Não consigo mais respirar,não consigo mais viver assim,não sou o espelho do mundonem tão pouco a resolução dosproblemas dos outros, se te queresafundar, levanta-te e vai,mas minha companhia não terás.

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Um Grito no Escuro

Na escuridão da noite o silêncioé sepulcral na boca daquele quenem uma palavra pode pronunciar,no peito, o bater descompassado doseu coração, nas mãos os calosmanchados pelo trabalho forçado,nos pés, o tique-taque do cansaçoda caminhada do dia, na mente,a esperança dividida da salvação.

Um suspiro prolongado, denuncia asaudade que sente da pessoa amada,uma lágrima caída, fortifica a esperançade vitória, no sono um sonho cheio dealegria floresce, e ao acordar a realidadeirradia-o com o raiar do sol.

No peito a pergunta incessante dofuturo que se anuncia. Conto osdias, conto as noites, conto as horasque ainda faltam. Fala ao sol, falo àlua, falo à água que por aqui corre,serei eu ou serás tu que romperás asalgemas do silêncio e anunciarás aminha e a tua liberdade de expressão?

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Lilia da Fonseca*

· Lília da Fonseca (1961 – 1992)

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Uma Canção na Noite

Anda subtilmente no aruma canção qualquer…vem do escuro, do vago, da noite…porque lá fora é noitee a história da noite,da vida, do mundo,freme na voz dessa canção.

E eu quero ser voz e ser acção!Na minha frente o papel brancoespera, espera, espera…por tudo quanto eu tenho p’ra dizer-lhe,e que o pode tornar numa canção de gestado mundo que há-de vir,num ai de amor,numa blandícia, num suspiro,numa bandeira ao ventoa rasgar o ventocom o traço de uma ideia…

Mas lá do escuro da noitevem uma canção…em que parte da alma é que dói,quando se é novo e triste e se está só,e há uma voz que resvalapor remotos caminhos, p´ra nos dizeraquilo que a nossa boca sem falacalou?

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E a inspiração morreu…Papel, caneta e tintafogem-me na sombra. A canção é a vida, a canção é o mundo, a canção é o amor.

Anda subtilmente no arUma canção qualquer… a canção sou eu!

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Bandeira Branca

Java, Borneu, Coreia, Indochina,não há mares que nos separem…na ponta das vossas lanças há um grito!

E esse gritofloresce nos nossos olhos,baila no nosso peitoe como bandeira brancapalpita nas nossas mãos…

Java, Bornéu, Coreia, Indochina,a que distância estais vós?tão pertoque uma linguagem nos basta:a de uma bandeira branca…

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S o b r e s s a l t o

Amor,as luas mortascaíram no segredo deste amor;fujamos pela praiaembarquemos no vento!

As luas mortassão mundos apodrecidos…

O nosso amor balbuciacantigas da era novae nas mãostemos o húmus adubado e quentepara o jardim redolentepara a seara de pãopara a seara de amor…

Nada nos serve fugirpior que fantasmassão os miasmasdos mundos apodrecidos…

Amor,nos vales ermos, esquecidosde toda a flor,de todo o riso,do amor ao amor,

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das madrugadas e dos pássaros,(fechadas todas as portasao susto e à escuridão,com um beijo verde de esperançacantando no coração)

Amor,enterremos as luas mortas…

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Maria Alexandre Dáskalos*

· Maria Alexandre Dáskalos nasceu no Huambo em 1957. Obras Publicadas: «OJardim das Delícias» (1990), «Do Tempo Suspenso» (1998) e «Lágrimas e Laranjas»(2002).

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talvez o nosso corposeja pequenopara ser a casado amor

que não guarda só indíciosenão troque só sinais e entregasque não seja tranquilonem fiel à rosae ao da lâmina

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A ternura de um pequeno adeustem o saborde um vinho adamascado sem idade.

O teu olhar lembra-meo cheiro do seu mosto.

Cantamos o vinhobebemos despedidas.

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O amor é fielà saudadee a arteé colher do sonho delaaçucenas

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Primeiro amor. Vivi aí.Casa grande de janelas abertaspara o verde, chave do nosso coração.Meninos de bom Deus com histórias diferentese o mesmo temor e segurança.Tudo tinha muita corcomo as asas pitandas de frescoe as ruas debaixo da sombra das árvores.Dos jardins víamos os novos modelos dos carros dos anos setenta.Havia concertos para piano sem orquestra.E, às vezes, mulheres, loiras muito loirascantavam músicas de nós desconhecidas.

Posávamos para os fotógrafos,moças virgens esperadas à saída das aulase ouvíamos «If you are going to San Francisco».As fotografias dessa época estão em casa das tiase os nossos olhos de terra ou de água ou de noitenão são o que eram: por isso, continuam os mesmos.

Ondularam as cortinas levementecomo a última brisapara lá da sebe junto aos muros baixosoiço o barulho das árvoresimensas e antigase lembra-se um andamentodas Fantasias de Schumann.Primeiro amor. Vivi aí.

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Quando não há mentiramas a razão no mistério,como na mais antiga loucura,nem os meus cabelos brancosme impedem de ser gregaao abrir a caixa do correio.

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Fugi do ouro dos teus sonhos eperdi a juventude

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Saudadedaquela noite em Parisem que um amigo judeunos trouxe laranjas para o jantar

Candura –sonhar o futuro,esquecidos das laranjas.

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Trouxeram-me as cartas de amor de Fernando Pessoa.Se estivesses vivaficarias como eu surpresacom o poeta das nossas vulgatascomentadas à revelia da madre supeior.Com a guerraperdi as cartas de amor

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Aquelas mulheres do Huamboensinaram-me os segredosdo licor de pitanga, dos bilros, da poesia e do pão.Elas continuaram ao meu ladoquando fui mãe- folhos de ternura no teu berçolãs macias, cantigas antigas.

No vosso regaço para sempre a minha dor.Mulheres do Huambo.

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Escoa-se toda a chuvanum dia de sol.

Um violino na chanae uma mulher fazendo-o Chorar.

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· Maria Celestina Fernandes nasceu no Lubango aos 12 de Setembro de 1945.Obras Publicadas: «A Borboleta Cor de Ouro» (1990), «Kalimba» (1992), «Retalhosda Vida» (1992) «A Árvore dos Gingongos» (1993), «A Rainha Tartaruga» (1997),«A Filha do Soba» (2001), «Poemas» (1995), «Presente» (2003), «O Meu Canto»(2004) «Os Panos Brancos» (2004) e «A Estrela Que Sorri» (2005).

Maria Celestina Fernandes*

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Dia da Mãe

Mãe,Que carregas no ventre por nove luasSem queixume,O peso de nosso corpinhoIntrinsecamente ligado a tiPelo cordão umbilical;

Que libertas de tuas entranhasCom coragemEntre suor e dorA vida anunciadaPelo nosso primeiro choro de desapontamento;

Que nos ofereces o nutritivo suco de teus seiosCom prazer,Vigiando entre mil cadilhosNosso desenvolver.

Para ti mãe,Fontanário da vida,Um bouquet de rosas cor da humanidade,Neste teu dia.

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Março Mulher

Manhã cedo,Portas e janelas de nossas almasSe abriramPara da brisa matutina,Nossos pulmõesSe alimentarem.

A brisaQue nossos pulmões saciaram,Tinha sabor diferente.O gosto era mais temperado sem dor!O gosto era melhor degustadoPorque servido fora dos horroresDos campos de batalha!

Esta brisa diferente,Porque de harmonia condimentada;À alva pombaSímbolo de PazSe assemelha…

– E,Tal como o vôo livre da ave,Nossos cânticos,Nossas preces de mulheres,Clamando por Paz e AmorRomperão as teias de ódioQue engravidam aindaOuvidos rancorosos.

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A paz ora anunciada,Porque gerada com fé e esperança,Como a brisa suaveDesde 8 de Março,– Março Mulher –Ficará para sempre!

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Solitária

Só, perdidamente só,Enclausurada entre paredesDo recanto nocturno,Regelado, entretanto,Pela angústia da solidão.

Noite adentro,Pensamento obstinado em alguém,A criatura desejada– Ausente/presente pela cumplicidade do seu odor,Entranhado no vasto leito– Inconfortável, contudo,Pela ausência de partilha…

Da mente doentia,Passam e repassam em dessincronia desfile de ideias.Descartam-se desilusõesPelo tempo queimado em busca do desejado;Sedimentam-se frustrações:Avizinha-se um futuro de solidão...

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Amar

Amar é dar-seainda que silenciosamente.Ama-se:quem se quer,quando se quer,onde se quer.

Amar é sentimento livre de dois gumes,ora magoa,– se incompreendido e rejeitado;ora reconforta,– se retribuído e partilhado.

Amar é como o alimento da chamaque exige constânciapara mantê-la acesa,senão ela se extinguedeixando atrás de si a fria cinza.

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Canto ao Amor

Haverá alguémque nunca sentiu o calor do amor,alguém que não tenha amadouma vez que seja?

Amar é vivere quem não descobriu o amor,ainda que não creia,está encurralado nas trevas.– dissociado, por isso,da própria vida.

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Felicidade

És feliz agora?Então goza intensamente cada segundodisto que pensas ser a tua felicidade,pois pode ser momento efémero e singulartal qual a água do rioque apenas uma única vez transcorrepelo curso que lhe é naturalmente traçado,sem retorno possível…

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Angústia

A minha angústianão é mera ilusãopara espantar os kazumbisque ensombram as infindáveis noites de insónia;

é tão somente a grande desilusãode viver/andar em permanência de mãos dadascom a dor/sofrimento,dor que não é só minhadiferente só, talvez, na forma de sentir;

é essa ansiedade obstinadade ver os meus irmãosrenunciar a destruição generalizadaque se propuseram edificar,dessa forma tão obstinada…

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Minha Mãe

SonhoSonhos tão doces, mãe!

SonhoComo se de mim nunca te tivesses apartado:Falas comigo, ris comigoSempre me protegendo como anjo de guarda!

Minha Mãe!Se lá onde estás for permitidoCaptar mensagens da terraQuero que saibas que quanto maisNo tempo se distancia o dia em que partisteMais sinto a tua falta,E não te entristeças com as minhas lágrimas de [saudade.– Às mães deveria ser interdito morrer…

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Lágrimas Invisíveis

Minhas lágrimasSe tornaram invisíveis para o mundo.Eu, somente eu,As vejo jorrar pelos olhos abaixoFrente ao macerado espelho da velha cómoda,– resquício de mobiliário há muito herdado –,E, ao desaguarem em minha boca,Oh, quão amargo é o sabor do seu condimento!

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Maria Amélia Dalomba*

· Maria Amélia Dalomba nasceu em Cabinda aos 23 de Novembro de 1961.Obras Publicadas: «Ânsia» (1995), «Sacrossanto Refúgio» (1996), «Espigas doSahel» (2004) e «Noites Ditas à Chuva» (2005).

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A Saudade

A saudadedesse amorque sintomolda-meO olharque hojesei tristeponha-mea afirmarqueo amor existe

Esconde-mena almaexalatorturaexpressãoinsanaa saudadedesse amorque sinto

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Aos Teus Olhos

Por serem meus aindaos olhosque em teus olhos vejo

Não preocupaa saudadenem mesmoa maldadede saberquem dirá

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Dedicação

Tiraste-meo coraçãocom tua miradaousadanão queirasdevolvê-loagoracom timidezdisfarçada

Não o queroeu já de volta

Amor meueu o dispenso

Por sabê-lotão clementededicadoe persistentesei que a tifará mais falta…

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Aquele Sorriso

Quando a nuvem passara chuvaDesprender sobre os camposSeus pingos que entoamBaladas autênticas queabafem meu pranto

Voltarei

E sei que teus lábiosSe abrirão naquele sorrisoAh! aquele sorrisoQue encanta tão bem

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Sem Palavras

Para ti

MãePalavras não cobremesse ardor tão estranho

esse pesar tamanhoquandoPenso em ti

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SaudadeMal de Amor

Que saudadeDo teumeigoOlharSaudadeDa imensidãoestreitadaem cadaabraço

Sintoamarguraao tactear o vácuoImensoque ontemcobriastãoapaixonadamenteem minhamenteseestendeum mantoenormeDe saudade

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Herança de Morte

Lírios em mãos de carrascosPombal à porta de ladrõesFilho de mulher à boca do lixoFeridas gangrenadas sobre pontes quebradasAssim construímos África nos cursos de herança e morteQuando a crosta romper os beiços da terraO vento ditará a sentença aos deserdadosUm feixe de luz constante na paginação da históriaCada ser um dever e um direitoNa voz ferida todos os abismos deglutidos pela esperança

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Ai de Amor

O vagabundo rebusca nos bolsos da compaixãoUm ai de amorAinda que a estrela da manhã seja um saco

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Mulher de Dor e Flor

Essas mulheres que aí vedes suturam lanhos profundosao romper criançaRegeneram cada fibra rubra de dorDeliciam-se com os cadáveres das plantas arrancadas semdóA que chamam flor

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Maria Eugénia Neto*

· Maria Eugénia Neto nasceu em Trás-os-Montes (Portugal) aos 8 de Março de1934. Obras Publicadas: «E nas Florestas os Bichos Falaram», Prémio de Honra daComissão Cultural da então RDA (1977), «Foi Esperança e Foi Certeza» (1976)e «O Soar dos Kissanges» (2000).

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Hoje decidi-me minha folha brancaFalar-te da tristezaQue me turba os olhos

Há tanto tempo que esta angústiaSe vem acumulando dentro de mimComo em sedimentosQue com o tempo e o pesoSe tornaram rochasCristalizando a dor

A angústia das horas solitáriasTodas iguaisE a necessidade de ver o verde dos camposDe sentir o cheiro das floresO barulho das torrentesO remexer das águasO renovador que traz a Primavera

Oh esta solidão esta angústiaO desespero à minha voltaNas horas solitárias

Esta solidão em todos os olharesE a crescer dentro de mimA crescerA crescerA crescerA ânsia enorme duma vida nova

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Asas Brancas dosConfins do Meu Sonho

Dos confins do meu sonhoEu estendo asas brancasSobre o ódio sobre a dorSobre a tristeza e o desespero

Dos confins do meu sonhoEnvio-te o elo da amizadeQue faz palpitar os homens justosE os faça unir as mãosE construir já o porvirE venham torrentes e vendavaisPlenos de vida e de energiaMostrar como é puro o meu anseio

Eu estendo asas brancasSobre o desespero de querer ser audazE ser vencido pela timidezDevendo avançar e não dar o passoFechando-se e metamorfoseando-seComo crisálidas em casulos

Eu estendo asas brancasIntercalando-as no caminho dinâmico da vontadeE sobre a impotência de não poder libertar-seDos elos que amarram os homens aos seus erros

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Asas brancas dos confins do meu sonhoPara que a fraternidade seja uma conquistaE os homens verdadeiramente sejam homens

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Amor

Meu amormeu amado.

Tanto tempo jáque a noite solitáriaé minha companheira.

Tanto tempo jáque a tua ausênciase insinuae me amarguraainda que resistaà tua busca.

Se te procuroa tua voz é silenteos lábios mudosas mãos paradas

Ah! Meu bem amadoporque partistenesse silênciodeixando-me assimneste desamparo?

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Chuva

Chove.É um descer de lágrimascaindo de mansinhocomo se o céume beijasse…

É um tecto de águaem fragmentosque acariciae penetra fundosão flores rebentos.

É a primaveraa crescer, alémpara lá do mare das Colunas de Hérculesque me está a chamar…

Ah! meu amadoesta chuva poderia serum beijo de amorbem aconchegadonum leito ansiado.

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Paisagem

Amora terra abre-seem curvas de ovala insinuar calotasao fundoo rio cantandoa canção eternade ser água.

Tudo verdeas chuvasressuscitaram as sementese à vistaé uma orgia de esperança.

Estendo as mãosa querer tocar a seivae o verde e o amarelo e o azulda erva e das florescorrem nas veiaspalpitantescintilantesao sonho do olhar.

Meu amortudo isso é teu.

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Ser Mar

As ondasiam e voltavame as areias fulvasabriam regatosque se reuniamao voltar da onda.

Os búzioslá nas profundezasretêm o bramidodas ondas do mar.

As correntes passame arrastamgolfinhospeixes – luabaleiassereias…

Ah! ser ondapara cantara imensidão do maras suas correntesas algas e as conchas.

Ser mare a sua vozteu nome murmurarnuma cançãode embalar.Ser mar…

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Maria Fernanda da Silva Baião*

· Maria Fernanda da Silva Baião nasceu em Luanda aos 2 de Agosto de 1961. ObraPublicada: «Minha Lágrima» (2003).

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Ânsia

Porque não te sinto amor?Nem sexoNem orgasmoNa compaixão do meu corpo!

Fervilha nas veiasMeu desejoCorre pelo corpo dentroÂnsia de ser possuída

Rebento nas veiasMe sinto em suspenseNa fraqueza trémulaDas articulações

Morra eu e meu desejoSe ser possuídaCom sucessões de orgasmoNo juízo final

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Hoje Sou

Hoje sou!No meu diaMergulhoNo orgasmo da indecisão.Prematura! Remota

Não choroTenho glóriasNa volúpia que ascendeMasturbação do cérebro

No meu diaSou!Mergulho vespertinoEnsaio do desejo

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Quem

Quem me fará sorrirQuem me fará gritarO grito calado do meu peito?!

O peito rejeita a almaAngústia transborda e somaNo rosto surrado de dor

Quem me fará falar?As palavras engolidasNo intimoQuando elas flutuamSem sentido no leito

Quem me fará pensarNa consciência rasgadaDos meus diasSem glória e sem luz

Escrevo nova históriaSorrisos e glóriaNa tristeza de ontemNasci de novoSem passado

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Finalmente

Do canto RobustoSaltei o arbustoQue se fez sinistroNa foz do maestro

Melodia intactaHarmonia cantadaQual estrada cortadaNos pés. Caminhada

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Paula Tavares*

· Ana Paula Ribeiro Tavares nasceu na Huíla aos 30 de Outubro de 1952. ObrasPublicadas: «Ritos de Passagem» (1985), «O Sangue da Buganvília» (1998), «OLago da Lua» (1999) e «Dizes-me Coisas Amargas Como Frutos» (2001).

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O Mirangolo

Testículo adolescente

purpurino

corta os lábios ávidos

com sabor ácido

da vida

encandesce de maduro

e cai

submetido às trezentas e oitenta e duas

feitiçarias do fogo

transforma-se em geleia real:

ILUMINA A GENTE.

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A Nêspera

Doce rapariguinha-de-brincos

amarelece o sonho

deixa que o orvalho

de manso

lhe arrepie a pele

SABE A POUCO.

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O Amor Impossível

a flamingo cor-de-rosa

saiu do mangal

alisou as penas uma por uma

pintou de azul, o bico

e

de brincos

pousou no sol às seis da tarde

passeou o Lobito com

passinhos breves

e cansada, perfilou-se

num pé só

à sombra da distância…

ABRIU O OLHO, TORNOU-SE BÍPEDE

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CORREU

MUITO APRESSADA ATRÁS DO PEIXE PRATA

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O Lago da Lua

No lago branco da lualavei meu primeiro sangueAo lago branco da luavoltaria cada mêspara lavarmeu sangue eternoa cada lua

No lago branco da luamisturei meu sangue e barro brancoe fiz a canecaonde beboa água amarga da minha sede sem fimo mel dos dias claros.Neste lago depositominha reserva de sonhospara tomar.

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Mukai (3)

(Mulher à noite)

Um soluço quietodescea lentíssima garganta(rói-lhe as entranhasum novo pedaço de vida)os cordões do tempoatravessam-lhe as pernase fazem a ligação terra.

Estranha árvore de filhosuns mortos e tantos por morrerque de corpo ao altonavega de tristeza as horas.

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Amadavestiste os passos de chuvapara assistir ao meu fim.Vens com os mesmos passosdas noites antigasquando, vestida para o amor,me preparavas o tempocom os óleos sagrados da espera.Amadatens os olhos vermelhosdo sal e da culpa.Os celeiros estão vaziosas crianças sem leite.

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O Cercado

De que cor era o meu cinto de missangas, mãefeito pelas tuas mãose fios do teu cabelocortado na lua cheiaguardado do cacimbono cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãea das três pernase asa partidaque me deste antes das chuvas grandesno dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãequando anunciava a manhã junto à cascatae descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p’ra viver, mãese tudo se guarda e recolhe no tempo da esperap’ra lá do cercado

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Mulher VIII

Que avezinha posso ser euagora que me cortaram as asasQue mulherzinha posso ser euagora que me tiraram as trançasQue mãe grande mãe posso ser euagora que me levaram os filhos

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As Viúvas

Devorei a carne do boi do fogotudo até ao fim e o coração

No entantoKalunga, oh Kalunga,como estou necessitadacomo preciso de sorte.Aqui a fome é tantaque as mulheres devoraram a carne dos bois dos homense as que eram virgens envelheceramninguém cumpriu os preceitos e agora somos viúvas da floresta e temos os sonhos perdidos

E o pai no princípiotinha amarrado os peixese o pai no princípiotinha soltado a chuvaa vaca voltava todos os diase não estava sozinhatinha as tetas cheiase os passarinhos.Agora, Kalunga, oh Kalunga,traz-nos o sossego, o sonoa gordura das rãsos nossos ciclos de sanguee os passarinhos.

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A Mãe e a Irmã

A mãe não trouxe a irmã pela mãoviajou toda a noite sobre os seus próprios passostoda a noite, esta noite, muitas noitesA mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumadoa garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas [ vermelhasA mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites [ todas as noitescom os seus pés nus subiu a montanha pelo lestee só trazia a lua em fase pequena por companhiae as vozes altas dos mabecos.A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de protecçãono plano mal amarradonas mãos abertas de dorestava escrito:meu filho, meu filho úniconão toma banho no riomeu filho único foi sem boispara as pastagens do céuque são vastasmas onde não cresce o capim.

A mãe sentou-sefez um fogo novo com os paus antigospreparou uma nova boneca de casamento.Nem era trabalho delamas a mãe não descurou o fogoenrolou também um fumo comprido para o cachimbo.

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As tias do lado do leão choraram duas vezese os homens do lado do boiafiaram as lanças.A mãe preparou as palavras devagarinhomas o que saiu da sua bocanão tinha sentido.A mãe olhou as entranhas com tristezaespremeu os seios murchosficou caladano meio do dia.

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