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Livro Medeiros Ferreira

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Estudos em Homenagem a Jos Medeiros Ferreira

O Longo Curso

Pedro Aires Oliveira e Maria Incia Rezola

Coordenao:

lisboa:tintadachina MMX

2010, e Edies tintadachina, Lda. Rua Joo de Freitas Branco, 35A, 1500 627 Lisboa Tels: 21 726 90 28/9 | Fax: 21 726 90 30 E mail: [email protected] www.tintadachina.pt

Ttulo: O Longo Curso: Estudos em Homenagem a Jos Medeiros Ferreira Coordenadores: Pedro Aires Oliveira e Maria Incia Rezola Autores: AAVV Reviso: Paula Almeida Composio e capa: Tintadachina 1. edio: Dezembro de 2010 isbn Depsito Legal n.

ndice9 21 25 Introduo Carta a um amigo Antnio Reis Jos Medeiros Ferreira: histria dos militares e da descolonizao Pedro Pezarat Correia Os militares nos Aores durante o cerco do Porto Jos Guilherme Reis Leite Hintze Ribeiro e a sua poca V alentim Alexandre A aliana lusobritnica nas vsperas da guerra anglober (1899 1902): a declarao secreta de Windsor de 14 de Outubro de 1899 Fernando Costa Dos Aores a Belm: percurso biogrfico de Manuel de Arriaga e Tefilo Braga Elsa Santos Alpio Tancos: a gnese de um milagre Helena Pinto Janeiro Afonso Costa e as consequncias polticas do Tratado de Versalhes Filipe Ribeiro de Meneses A Nova Repblica (1919 26) Fernando Rosas A defesa da raia: a estratgia militar e a poltica militar do Exrcito portugus entre as guerras mundiais Antnio Paulo Duarte Une vision folklorique et morbide de lURss dans lentre deux guerres Franois Garon Corporatisme au Portugal, 193374 Manuel de Lucena L administration portugaise au contact de lindgena angolais (1960) Ren Plissier 1945 As eleies para ingls ver David Castao

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O cidado Borges Coutinho nas malhas da PIDE Carlos Enes A PIDE/DGs, polcia poltica e internacional. O relacionamento com servios secretos da Europa e dos EUA Irene Pimentel O exlio portugus na sua (196274) Victor Pereira Homenagem a Medeiros Ferreira: teses com futuro Lus Farinha Le concordat Bidault (195354): une victoire occulte Lus Salgado de Matos Uma relao conturbada: os americanos nos Aores e a questo colonial portuguesa nos anos 50 Daniel Marcos E pur si muove. Oliveira salazar e a questo da autodeterminao das Provncias Ultramarinas (196263) Fernando Martins The salazar regime and European integration, 194772 Nicolau Andresen Leito O Comit de Descolonizao da Organizao das Naes Unidas e os movimentos de libertao das colnias portuguesas: 196176 Aurora Almada e Santos A transio portuguesa e a institucionalizao de um regime democrtico numa perspectiva comparada Lawrence S. Graham Melo Antunes e a descolonizao: uma histria de paixes Maria Incia Rezola O Partido Comunista e a revoluo portuguesa Carlos Gaspar Antnio de spnola e o contexto internacional da descolonizao Lus Nuno Rodrigues O apoio internacional durante a transio portuguesa para a democracia: o caso da RFA Ana Mnica Fonseca Estratgia e circunstncia: opo europeia e competio polticopartidria Francisco Castro From soft power to hard power? The transformation of the common foreign and security policy, 1970 2009 Jos Magone Ensaio histrico sobre a poltica externa portuguesa Nuno Severiano Teixeira Bibliografia de Jos Medeiros Ferreira

Agradecimentos

Um livro com estas caractersticas dificilmente poderia ter sido dado estampa sem o contributo muito generoso de vrias pessoas e insti tuies, que os coordenadores gostariam de destacar. Fernando Rosas acarinhou este projecto desde a primeira hora e, atravs do Instituto de Histria Contempornea (IHC), garantiu nos o indispensvel apoio institucional e facilidades de secretariado. Outro amigo e colega, Carlos Gaspar, foi, tambm ele, uma impor tante fonte de encorajamento e conselhos oportunos. A Fundao Calouste Gulbenkian, a Fundao para a Cincia e a Tecnologia, a Direco Regional da Cultura do Governo Regional dos Aores e a DirecoGeral do Livro e das Bibliotecas foram deci sivas para a viabilizao da obra. Uma palavra de agradecimento nes te domnio tambm devida ao Prof. Doutor Joo sgua, Director da FCsH, que no quis deixar de associar a este livro a instituio qual Jos Medeiros Ferreira esteve ligado durante quase trs dcadas. Brbara Bulhosa e Ins Hugon apostaram na edio deste livro e, como sempre, foram inexcedveis no acompanhamento de todas as fases da sua produo. No IHC, Cristina sizifredo e Natlia Manso responderam sem pre com eficincia e prontido s inmeras solicitaes inerentes a um projecto deste tipo. Para alm do contributo dos vrios autores, gostaramos ainda de deixar uma nota de apreo s vrias pessoas do meio universitrio que fizeram questo de se associar em homenagem. Foram elas:Adriano Duarte Rodrigues (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Alberto Arons de Carvalho (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Alexandra Pelcia (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Alice Cunha (Instituto de Histria Contempornea) Alice samara (Instituto de Histria Contempornea)

Amlia Andrade (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Ana Isabel Buescu (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Ana santos Pinto (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL e IPRIUNL) Antnio Costa Pinto (Instituto de Cincias sociais) Bernardo Vasconcelos e sousa (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Clia Reis (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Cludia Ninhos (Instituto de Histria Contempornea) Cristina Montalvo sarmento (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Cristina Ponte (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Daniel Alves (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Fernando Ribeiro (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Filipa subtil (Escola superior de Comunicao social IPL) Francisco Caramelo (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Helena Trindade Lopes (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Isabel Baltazar (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Iva Miranda Pires (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Jaime Reis (Instituto de Cincias sociais) Joo Alves Dias (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Joo Alves Dias (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Joo Paulo Oliveira e Costa (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Jorge Cabao (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Jorge Crespo (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Jos Augusto Mouro (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Jos Bragana de Miranda (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Jos Custdio Vieira da silva (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Jos Reis santos (Instituto de Histria Contempornea) Jos subtil (Instituto de Histria Contempornea) Lus Vieira de Andrade (Universidade dos Aores) Lusa Couto soares (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Madalena Resende (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL e IPRIUNL) Maria Cndida Proena (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Maria do Carmo Vieira da silva (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Maria Fernanda Rollo (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Maria Francisca Xavier (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Maria Lusa Couto soares (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Mrio Vieira de Carvalho (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Mrio Mesquita (Escola superior de Comunicao social IPL) Teresa Ferreira Rodrigues (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL) Tiago Brando (Instituto de Histria Contempornea) Tiago Moreira de s (Faculdade de Cincias sociais e Humanas UNL e IPRIUNL) Pedro Aires Oliveira Maria Incia Rezola

Jos Medeiros Ferreira: um percurso cvico e acadmicoEm Novembro de 2008, ao fim de vinte e sete anos de ensino uni versitrio em Portugal, Jos Medeiros Ferreira aposentouse como professor associado na Universidade Nova de Lisboa. Agora que uma distinta gerao de acadmicos portugueses vira essa pgina das suas vidas, bom que se recupere a tradio dos volumes de homenagem que na lngua alem, e no mundo acadmico anglosaxnico, so co nhecidos como Festschrifts, literalmente, celebraes pela escrita. Foi nesse esprito que os coordenadores deste volume, em finais de 2008, resolveram lanar um desafio a um conjunto de historiadores e cientistas sociais cujos percursos, de uma forma ou outra, se cruzaram com o do nosso homenageado. Com a sua ajuda, identificmos uma srie de nomes que poderiam manifestar interesse em se associarem a esta iniciativa, a partir de um elenco de tpicos previamente definido. Esses nomes correspondiam, grosso modo, a trs geraes: a do pr prio Medeiros Ferreira, a que se formou entre finais dos anos 80 e in cios de 90 (e na sua maioria completou j o doutoramento), e aqueles que tm hoje aproximadamente 30 anos e esto em vias de iniciar um projecto de doutoramento. Apesar da especificidade dos seus dom nios de especializao, esses autores apresentam um interesse comum pela contemporaneidade portuguesa, e pela histria poltica em par ticular. Uns optaram por contribuir com testemunhos de ordem mais pessoal, outros por artigos eruditos versando temas trabalhados por Jos Medeiros Ferreira. A dimenso que o volume apresenta superou, em larga medida, as nossas expectativas iniciais, o que constituiu um sinal inequvoco de amizade e admirao pelo nosso homenageado. A todos eles, os pontuais e os mais indisciplinados nos prazos, o nosso sentido agradecimento. Num balano de quase quatro dcadas de vida universitria (com algumas interrupes pelo meio), impossvel estabelecer uma separa

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o rgida entre a dimenso cvica e o labor historiogrfico de Jos Me deiros Ferreira. O interesse pela relao entre os militares e a poltica, o estudo das relaes internacionais, o destino de Portugal num cen rio psimperial, tudo isso lhe ter sido em parte sugerido pelas vicissi tudes de um incio de vida adulta marcado pelos combates contra um regime ditatorial e obscurantista. O gosto pela histria surgiu cedo, nos bancos do liceu de Ponta Delgada, graas influncia de um professor, Joo Bernardo de Oli veira Rodrigues, a quem, alis, dedicar o oitavo volume da Histria de Portugal. Na biblioteca do liceu, uma das outras instituies cultu rais de referncia nos Aores daquela poca, tomar contacto com al guns dos autores do cnone da sua juventude: entre os portugueses, Camilo, Ea, Antero; na literatura universal, shakespeare (nas tradu es do rei D. Lus), Camus, Dostoivski, Tolstoy, steinbeck, Hemin gway, mas tambm brasileiros contemporneos, como Jos Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Erico Verssimo (Machado de Assis, hoje um dos seus autores de eleio, apenas conhecer mais tarde, por recomendao do pintor, e companheiro de cela no Alju be, Nikias skapinakis). Na rea da histria, evoca como referncias Herculano, Rebelo da silva, Oliveira Martins (O Prncipe Perfeito e o Portugal Contemporneo, acima de todos), e alguns dos historiadores oitocentistas da Revoluo Francesa, como Michelet e Edgar Qui net. A preferncia pelo perodo contemporneo, psrevolues liberais, impsselhe muito cedo o Antigo Regime pareceulhe sempre um universo demasiado estrangeiro, muito embora a Anti guidade Clssica, nomeadamente a histria de Roma, lhe tenha sem pre merecido particular interesse. O gosto pelos jornais (hbito que ainda conserva, quer como lei tor quer como cronista) levouo a encetar uma colaborao, na quali dade de crtico de cinema, com o Correio dos Aores, dirio micaelense fundado pelo poltico autonomista Jos Bruno Carreiro, em 1920. Essa apetncia pela interveno na esfera pblica atravs da impren sa ser, de resto, um trao constante na sua vida, como adiante vol taremos a assinalar. O teatro foi outra das suas paixes de juventu de, tendo inclusivamente recebido uma Meno Honrosa dos Jogos Florais da Universidade do Porto, em 1961, com uma pea intitulada Da Discusso Nasce a Luz, inspirada em Pirandello. A mudana para Lisboa ocorre em 1960, quando se matricula no cur so de Filosofia da Faculdade de Letras. Do ponto de vista acadmico,

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porm, a experincia foi simplesmente decepcionante um deser to, a expresso que lhe ocorre para definir o tipo de ensino ento ministrado em Letras. Tirando duas ou trs figuras (o padre Manuel Antunes, Osvaldo Market e o professor de Lgica Matemtica, Tiago Oliveira), incapaz de citar algum cujas aulas lhe tenham causado uma impresso mais favorvel. Desse perodo, consegue apenas re ter como positivo, em termos de oferta universitria, a descoberta do Centro de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras, fundado por Vitorino Nemsio e Ruben Andresen Leito. Num pas onde a censura era frrea, aquele era um local onde se podiam ler jornais em lngua portuguesa produzidos no contexto de liberdade e democracia do Brasil do incio dos anos 60. De resto, Lisboa foram as tertlias de caf, o convvio com colegas e a fruio de uma vida cultural mais rica do que aquela que Ponta Delgada lhe podia proporcionar. Bem mais memorvel para o bem e para o mal foi o seu en volvimento associativo. Por indicao do seu colega e amigo Mrio sottomayor Cardia (com quem havia fugido de uma carga policial, na Avenida da Liberdade, no decurso de uma cerimnia evocativa do Armistcio da Primeira Guerra Mundial, em Novembro de 1961), convidado para a direco da PrAssociao de Estudantes da Fa culdade de Letras, a qual, devido s restries legais ento vigentes, funcionava sem estatutos, em regime ad hoc. Vicepresidente numa direco liderada pelo estudante de filosofia Jos Trindade dos san tos, foilhe confiado o pelouro das relaes externas (uma incumbn cia premonitria). No sendo esta a ocasio para evocar o relevante papel de Jos Medeiros Ferreira no movimento estudantil e na crise acadmica de 1962, assinalemse contudo as duras consequncias que viriam a resultar desse seu empenhamento: uma deteno de trs meses no Aljube, sendo um deles em regime de solitria. Tendose distinguido como orador e estratego da Reunio InterAssociaes, despertou, naturalmente, a ateno das figuras antisituacionistas mais atentas ao despontar de novos talentos polticos, como Mrio soares e Fran cisco salgado Zenha, que em 1965 o convidaro para integrar as listas da oposio democrtica s eleies legislativas. Data desse ano, alis, o processo disciplinar que o ministrio da Educao lhe instaura e que conduzir sua expulso, por um perodo de trs anos, de todas as universidades portuguesas (antema que, mais tarde, viria a enca rar como uma espcie de bno). Tinha ento 23 anos.

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Graas solidariedade de algumas figuras da oposio, consegue obter uma bolsa do Congresso para a Liberdade na Cultura, que du rante cerca de um ano lhe proporciona um meio de subsistncia limi tado. Dedicase tambm publicidade, mas, ao fim de algum tempo, opta por regressar a so Miguel. Em 1967, chamado a cumprir o servio militar, no chegando contudo a ser mobilizado para uma das colnias em guerra visto ter tomado a deciso de abandonar o exrci to e exilarse. Escolheu a sua como destino, respondendo a um rep to do seu companheiro de lutas associativas, Eurico de Figueiredo, ento estudante de Medicina em Genebra. Na cidade de Rousseau, ir encontrarse com outros estudantes portugueses antifascistas, tais como Ana Benavente, Antnio Barreto, Carlos Almeida, com os quais dinamizar a revista Polmica, um importante peridico de an lise e reflexo de exilados portugueses no incio da dcada de 70 (da redaco fazia tambm parte um outro antigo companheiro das lutas estudantis lisboetas, Manuel de Lucena). Invocando a Conveno Internacional de 1951, relativa aos refugia dos, requer s autoridades suas o estatuto de exilado poltico, o que lhe concedido, para surpresa dos seus companheiros, a quem tal hi ptese nunca tinha ocorrido, aparentemente por acharem demasiado amistoso o relacionamento entre a Repblica Helvtica e o Portugal de salazar. No se ficaria por aqui, alis, a compreenso das autorida des suas, j que em finais de 1968 serlhe concedida, atravs dos ser vios sociais da Universidade de Genebra, uma bolsa de estudos, que usufruir at completar os seus estudos superiores naquele pas. Na Universidade fundada por Calvino, muito influenciada, como seria de esperar, pela cultura protestante, consegue o reconhecimento de uma parte das disciplinas que frequentara em Lisboa. No obstan te, prefere matricularse no primeiro ano da licenciatura em Histria (j com uma especializao no perodo moderno e contemporneo), na Faculdade de Cincias Econmicas e sociais, que completar ao fim de quatro anos. Alcana sempre classificaes elevadas, motiva do no apenas por um natural sentido de brio, mas, tambm, pelas excelentes condies de estudo e pelo ambiente estimulante que foi encontrar nas aulas, seminrios e conferncias. Entre os docentes da Faculdade, destaca os nomes de Fran ois Crouzet, Paul Bairoch, Jean Franois Bergier, mas, sobretudo, JeanClaude Favez, um historiador sintonizado com o movimento de renovao da histria das relaes internacionais iniciado algum

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tempo antes por figuras como Pierre Renouvin e JeanBaptiste Du roselle. Mais tarde eleito reitor da Universidade de Genebra, Favez distinguiuse, no plano historiogrfico, como editor de vrias compi laes de documentos diplomticos suos, e por estudos sobre a his tria da sua, as relaes francoalems no perodo de entre as guer ras, ou o papel do Comit Internacional da Cruz Vermelha face ao Holocausto. Foi ele quem orientou a tese de licenciatura de Medei ros Ferreira, uma investigao original acerca dos jornais genebrinos na segunda metade do sculo xix, acabando tambm por desafilo a apresentar as suas principais concluses perante a muito selecta e prestigiada sociedade de Histria e Arqueologia de Genebra. O tra balho viria a ser galardoado com o prmio Gustave Ador da Univer sidade de Genebra, tendo sido escolhido para figurar na biblioteca da Association Universitaire pour la Diffusion Internationale de la Recherche, com sede em Paris. Desta primeira experincia de investigao, Medeiros Ferreira vai retirar duas ilaes importantes: em primeiro lugar, a percepo de que o estudo da histria nacional poderia ser especialmente enrique cido com o contributo de um olhar estrangeiro, algo que o levar sempre a valorizar os testemunhos exteriores sociedade portugue sa, com especial destaque para a documentao produzida por agen tes diplomticos; depois, a percepo da imprensa enquanto uma das fontes privilegiadas do historiador para compreender uma sociedade, os seus cdigos e sistemas de valores. Mesmo com as limitaes que decorriam do regime de censura prvia a que estava sujeito, o Dirio de Notcias permaneceu uma fonte a que recorreu regularmente para seguir a evoluo poltica e social em Portugal ( poca, recordese, o jornal mantinha o hbito de reproduzir na ntegra os discursos e intervenes dos decisores polticos, o que o tornava um mostrurio precioso do pensamento oficial). Para alm do seu cosmopolitismo (a que no era alheia a presen a em territrio suo de inmeros organismos internacionais), uma cidade como Genebra oferecia ainda a um estudante de histria con tempornea, com apetncia pelas relaes internacionais, uma outra oportunidade de pesquisa mpar: os ricos arquivos da defunta socie dade das Naes. Foi a que, em 1972, j na qualidade de assistente da Universidade de Genebra, Medeiros Ferreira iniciou as suas pes quisas para o que pensava poder vir a ser o seu tema de doutoramen to, a histria da prpria sDN. Por razes que se prenderam com a

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evoluo poltica em Portugal, esse projecto teve de ser posto de lado, mas as muitas horas de estudo entre os papis da Liga no fo ram tempo desperdiado; proporcionaramlhe uma srie de perspec tivas sobre temas como a participao portuguesa na Conferncia da Paz de Paris, ou as negociaes relativas ao grande emprstimo que a ditadura militar tentou obter junto da sDN em 1926 27, que mais tarde ir desenvolver em trabalhos acadmicos. Ainda antes do seu regresso a Portugal aps o 25 de Abril, teve ocasio de, num contexto no universitrio, o terceiro Congresso da Oposio Democrtica, em Aveiro (onde no esteve presente fisica mente, por razes bvias), formular um conjunto de reflexes sobre a evoluo do pas cujo carcter premonitrio justamente analisa do por Lus Farinha num dos contributos para este volume. Em Da Necessidade de Um Plano para a Nao, esboa pela primeira vez o seu interesse pelo estudo das relaes entre a instituio militar e o poder poltico, um tpico que lhe parecia ser muito mais complexo e sinuoso do que era habitualmente admitido na cultura oposicionista portuguesa, e que vir mais tarde a constituir um dos eixos funda mentais da sua pesquisa. A mudana de regime em Portugal e os combates polticos travados pelo Ps, partido em que se viria a filiar em 1975, para a instaurao de uma democracia multipartidria, determinaram a interrupo da sua carreira acadmica. Depois de cumprir o tempo que lhe faltava do servi o militar, na 5.a diviso do EstadoMaior do Exrcito, ser eleito deputa do Assembleia Constituinte, para de seguida desempenhar as funes de secretrio de Estado dos Negcios Estrangeiros do sexto Governo Provisrio (era ento ministro Ernesto Melo Antunes), e, aos 33 anos de idade, as de ministro dos Negcios Estrangeiros do Primeiro Governo Constitucional. Desta sua passagem pelo governo, de salientar o im pulso que deu normalizao das relaes diplomticas com os pases africanos de expresso portuguesa, bem como o seu protagonismo no desenho e execuo da manobra diplomtica conducente apresenta o do pedido de adeso de Portugal s Comunidades Europeias, cen rio que havia j preconizado na sua tese ao Congresso de Aveiro (e que examinado com algum pormenor neste volume por Francisco Castro). O regresso s lides acadmicas dse em 1978, aps uma sada algo extempornea do executivo, motivada por um desentendimento com o primeiroministro, Mrio soares. Com Antnio Barreto, tam bm ele de sada do governo, e depois seu companheiro no projecto

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poltico do Manifesto Reformador, aceita um convite de Mrio Pinto para desenvolver, na Universidade Catlica, um projecto de investi gao sobre o 25 de Abril, projecto esse que lhe permite recolher o material emprico que viria a servir de base a um dos primeiros es tudos histricos sobre a transio democrtica publicados em Por tugal (Ensaio Histrico sobre a Revoluo do 25 de Abril: O perodo pr constitucional, 1983) e, mais tarde, para o seu trabalho de maior flego acerca desse perodo. Em Outubro de 1981, por iniciativa de A.H. de Oliveira Marques, en trar, como assistente convidado, na recmcriada Faculdade de Cin cias sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Anos antes, logo aps o seu regresso da sua, havia sido convidado para leccionar em alguns institutos superiores (IsCsP, IsEG), e na Faculdade de Le tras (no pela direco, ao contrrio do que se poderia esperar, mas pelos estudantes, cuja influncia nas contrataes era ento determi nante). O ambiente altamente ideologizado que ento se vivia, contu do, no era de molde a entusiasmlo, sobretudo depois da atmosfera racionalista e exigente da Universidade de Genebra. Na Avenida de Berna, iniciar uma actividade docente que se prolongar por quase 30 anos, de forma praticamente ininterrupta (e por vezes graciosa), no obstante os mandatos de deputado que cumpriu em finais da dcada de 80, no parlamento europeu, e depois, entre 1995 e 2005, na Assem bleia da Repblica. Admitido j com o ano lectivo em curso, toma a iniciativa de organizar um seminrio livre sobre Histria das Relaes Internacionais, verdadeira experinciapiloto que, de algum modo, antecipa o lanamento do mestrado em Histria Contempornea da FCsH, ao qual se encontrar ligado desde a primeira hora. A dcada de 80 ser, de resto, um perodo frtil na sua carreira, tanto ao nvel da investigao como da publicao e participao em colquios e conferncias. Os grandes eixos da sua pesquisa e refle xo analtica organizamse em torno de temas como os militares e a poltica, a histria da poltica externa, os estudos sobre segurana e estratgia, e a anlise prospectiva. Datam deste perodo o seu j referido ensaio histrico sobre o 25 de Abril1, um livro de problema tizao histrica das relaes lusoespanholas nos sculos xix e xx21 Ensaio Histrico sobre a Revoluo do 25 de Abril: O perodo prconstitucional, Lisboa, coedio INCMsREC da Regio Autnoma dos Aores, 1983. 2 Um Sculo de Problemas. As relaes lusoespanholas da Unio Ibrica Comunidade Europeia, Lisboa, Livros Horizonte, 1989.

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e um estudo de prospectiva sobre a evoluo de Portugal num hori zonte de 20 anos, encomendado pela Fundao Calouste Gulbenkian3, assim como um nmero aprecivel de artigos dispersos por revistas acadmicas, ou em suplementos culturais de jornais como o Dirio de Notcias, onde, durante mais de 20 anos, manter uma colaborao regular na seco de opinio. Mas ser na dcada seguinte que, aproveitando uma sabtica da actividade poltica, lograr publicar os seus trabalhos de maior flego. Em 1992, d estampa dois livros que correspondem tese de dou toramento (orientada por A.H. de Oliveira Marques), por um lado, e s ento obrigatrias provas complementares, por outro lado. O pri meiro, O Comportamento Poltico dos Militares: Foras Armadas e regimes polticos em Portugal no sculo xx (Editorial Estampa), uma anlise sobre o comportamento da instituio militar perante os diversos re gimes polticos que o pas conheceu no sculo xx, da fase final da mo narquia constitucional ao perodo fundacional da actual democracia. No registo problematizante que uma das marcas de gua do seu trabalho, o livro questiona o mito do pronunciamento endmico das foras armadas, sobretudo no perodo de 1870 1930, e mostra como os militares frequentemente adoptaram atitudes diferenciadas face ao mesmo regime poltico. Rejeitando leituras essencialistas ou teleo lgicas, Medeiros Ferreira sublinha a importncia de se analisarem as intervenes polticas dos militares no em funo de modelos ou ti pologias rgidas, mas de situaes histricas bem concretas. susten tado por uma ampla gama de fontes (incluindo materiais de arquivo norteamericanos, franceses, espanhis e britnicos), o livro oferece uma srie de interpretaes originais para alguns episdioschave da histria poltica de Portugal no sculo xx, tais como o fracasso da gesto financeira da ditadura militar, a poltica de neutralidade na segunda Guerra Mundial, a adeso de Portugal NATO, os putschs falhados contra salazar, e os equvocos entre as chefias militares e o regime na fase final das guerras de frica. O segundo, Portugal na Conferncia da Paz de Paris (Quetzal), cor responde, no fundo, ao reatar do seu velho interesse pelo organismo genebrino e pelo tipo de diplomacia multilateral que este promoveu. Abordando um tema at quela data completamente indito entre3 Portugal: Os prximos vinte anos Posio de Portugal no mundo, Lisboa, Fundao Gulbenkian, 1988.

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ns, a obra estuda de forma rigorosa e penetrante as vicissitudes da participao portuguesa na Conferncia da Paz, estabelece a im portncia do novo direito pblico internacional na poltica colonial portuguesa e formula uma srie de interrogaes sugestivas acerca dos fracassos somados pela diplomacia portuguesa naquele concla ve. De certa forma, algumas das suas pistas esto ainda espera de algum para as explorar. Dois anos mais tarde, integrado na Histria de Portugal dirigida por Jos Mattoso (Crculo dos Leitores e Editorial Estampa), lanado Portugal em Transe, o volume que corresponde ao perodo ps1974 e que sintetiza alguns anos de investigao em torno do processo de fundao do regime democrtico em Portugal e das mltiplas trans formaes ocorridas na sociedade portuguesa desde ento. Num re gisto que procura um equilbrio entre o narrativo e o analtico, Por tugal em Transe privilegia uma leitura polticoinstitucional da dcada que se seguiu ao derrube da ditadura, apresentando como particula ridade uma especial ateno interaco entre a evoluo poltica domstica e o contexto internacional mais amplo. O ngulo privile giado, porm, no significa que a obra ignore outras facetas do que designou como o perodo gentico do Portugal democrtico, ha vendo captulos sobre economia, cultura e mentalidades, religio, o papel dos militares, e a emergncia dos regimes autonmicos dos Aores e da Madeira. Especial prazer deulhe ainda a redaco das le gendas que acompanham as muitas ilustraes do volume, um aspec to que procurava fortalecer a dimenso pedaggica prpria de uma obra deste cariz. Reeditada em 1999 num formato mais acessvel, Portugal em Transe (um ttulo a que muito se afeioou) seria tambm publicado em lngua castelhana, sob a chancela da prestigiada editora mexicana Fondo de Cultura Econmica. A primeira metade da dcada de 90 igualmente um perodo significativo na sua actividade docente, pois ento que desponta uma nova gerao de historiadores do Portugal do sculo xx, sen do alguns seus alunos no mestrado de Histria da FCsH. sempre muito apreciado pela sua clareza expositiva e apurado sentido de hu mor, Jos Medeiros Ferreira foi especialmente procurado por quem pretendia realizar trabalhos de investigao sobre assuntos que envol vessem uma dimenso internacional. O seu talento para identificar problemas, sugerir temas de pesquisa, ou encorajar abordagens menos bvias, bem conhecido por entre aqueles que puderam beneficiar

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das suas lies ou orientao ( o caso de muitos dos colaboradores deste volume). Entre meados dos anos 1990 e 2005, a actividade parlamentar e os diversos compromissos lectivos roubamlhe tempo precioso in vestigao. Para alm de ter iniciado uma colaborao com a Univer sidade dos Aores, no mestrado de Relaes Internacionais, esteve envolvido na criao da licenciatura em Cincia Poltica e Relaes Internacionais da FCsH, tendo depois assumido, a convite de Jos Esteves Pereira, a docncia de algumas disciplinas do novo, e muito procurado, curso. Devido a estas contingncias, mais a sua faceta de analista poltico (de temas nacionais e internacionais), e de confe rencista, que sobressai neste perodo. Muitas das suas colaboraes podem ser encontradas em revistas de referncia portuguesas (Nao e Defesa, Poltica Internacional, Relaes Internacionais), tendo algumas delas sido coligidas em livro4. Para os estudiosos da poltica externa portuguesa, dois dos seus artigos tornaramse referncias indispens veis5, tanto pela sntese de conhecimentos que proporcionam como pelas intuies e pistas que incitam prossecuo de novas pesqui sas. Uma vez mais, o seu gosto pela desmontagem da sabedoria insta lada fica patente na anlise que faz s atitudes do regime autoritrio e dos seus agentes diplomticos perante o movimento de construo europeia, ou nas observaes que dedica suposta primazia atempo ral do factor colonial nas decises estratgicas das elites governantes portuguesas. De regresso a tempo inteiro universidade em 2005, tira parti do de uma licena sabtica para ultimar um projecto que vinha de senvolvendo h algum tempo, uma contribuio para a histria da Fundao Calouste Gulbenkian, no mbito de uma obra coordenada por Antnio Barreto6. Embora tratandose de uma encomenda, o vo lume ostenta a marca do esprito crtico e da iseno dos seus vrios colaboradores, sendo que a tarefa de Medeiros Ferreira at se pode ria revestir de um maior melindre, visto abordar alguns episdios ain da hoje controversos da histria da Fundao, como todo o processo4 A Nova Era Europeia: De Genebra a Amesterdo, Lisboa, Editorial Notcias, 1999. 5 Caractersticas Histricas da Poltica Externa Portuguesa entre 1890 e a Entrada na ONU, in Poltica Internacional, 6, 1993, e Os Regimes Polticos em Portugal e a Organizao Internacional da Europa, in Poltica Internacional, 22, Lisboa, 1995. 6 Captulo A Instituio, in Antnio Barreto (coord.), Fundao Calouste Gul benkian: Cinquenta anos, 19562006, Lisboa, FCG, 2007.

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que conduziu ao seu estabelecimento em Portugal, nos finais da d cada de 50. O recurso a mltiplas fontes arquivsticas e o seu inegoci vel sentido crtico permitiramlhe, no entanto, superar o desafio de forma inteiramente satisfatria. Num plano mais pessoal, destacase o seu livro Cinco Regimes na Poltica Internacional (Editorial Presena, 2006), no qual sistematiza os contributos de muitas investigaes que teve ocasio de induzir ou orientar, e sintetiza algumas das suas hipteses interpretativas. Tratase, no fundo, de uma introduo a um sculo de poltica externa portuguesa (1890 1986), na qual se re visitam alguns episdios e pocaschave, do ultimatum britnico adeso de Portugal CEE. Nele reencontramos, afinal, alguns dos atributos fundamentais do historiador: o seu gosto pela problema tizao, pelo questionar dos consensos fceis, assim como algumas mistificaes. Na senda de outros textos, Cinco Regimes procura recu perar os passados esquecidos da histria da poltica externa portu guesa, e sugerir que a vocao ultramarina ou imperial esteve longe de ser to constante quanto muitas vezes se supe. Como escreveu um dia: Temos vrios passados e a possibilidade de vrios futuros. Como se pode ler o passado de vrias maneiras assim pode haver diferentes vises do futuro essa a essncia de uma socieda de aberta e democrtica. No h assim um destino nacional pr determinado mas antes a possibilidade aberta de vrios futuros pos sveis. A identidade nacional que se baseie em mitos estreis sobre o passado no nos ser de socorro algum para vencer os desafios do futuro.7 Aos coordenadores deste livro, Medeiros Ferreira confessou re centemente que encarava Cinco Regimes como uma espcie de tes tamento universitrio. Compreendendo embora o sentido de tal observao, fazemos votos para que no deixe de nos continuar a esclarecer e interpelar com futuros trabalhos.

7 Cf. Jos Medeiros Ferreira, Conferncias de Matosinhos. Histria e liberdade no Portugal democrtico, Matosinhos, Contempornea Editora/CM Matosinhos, 1995, pp. 8 9.

Carta a um amigoAntnio ReisMeu caro Jos Medeiros Ferreira: sei que no curial o uso da forma epistologrfica nos contributos para um volume de homenagem acadmica. Mas confesso que no encontrei melhor forma de te expressar a minha admirao e a cum plicidade que nos tem unido em tantos palcos por que se desdobra a vida. Poderia ter optado pela publicao de um qualquer indito sobre uma das temticas que nos so caras, fosse ela a da Revoluo de 25 de Abril ou a republicana do 5 de Outubro. senti, porm, que um contributo desse tipo seria demasiado frio e formal, tu que nada tens de frio, e de formal apenas o quanto baste quando em funes de Estado ou em actos acadmicos Homenagear um amigo e colega implica, do meu ponto de vista, reflectir em tom de conversa cmpli ce sobre um percurso de vida e de pensamento em que tantas vezes nos cruzmos. Verifiquei que na apresentao de um dos teus currculos acad micos te interrogavas se devias ou no incluir nele a parte poltica da tua actividade, acabando por te decidires uma vez mais pela negati va, embora reconhecendo que a experincia a adquirida constitui um elemento importante para a sntese dos saberes adquiridos. sem o suspeitares, estavas a darme o mote para a primeira reflexo desta car ta, que julgo ser, alis, a primeira que te escrevo, mais de 40 anos depois de ter sido portador da sua, onde acabaras de te exilar, para Portugal, da tua Carta Aberta ao Exrcito portugus, que acabaras de abando nar em vsperas de mobilizao para a guerra colonial na Guin. Com efeito, se h algo que nos tem unido ao longo da vida esta dificuldade em criar um compartimento estanque entre o empenha mento em causas polticas e a atraco pelo estudo e investigao da aco de tantos que, como ns, a elas se entregaram ao longo da

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histria. Uma tal comum dificuldade tornanos de imediato suspei tos aos olhos de muitos dos nossos colegas do terrvel crime de mis turarmos nas nossas carreiras motivaes e propsitos extra e at antiacadmicos ou anticientficos. Em suma, tornanos academi camente incorrectos, porque, afinal de contas, no h apenas nos dias de hoje o politicamente incorrecto Da a tua compreensvel deciso, que foi sempre tambm a minha, de omitires essa parte da tua vida nos teus currculos. E, no entanto, tanto tu como eu sempre soubemos que no tera mos sido capazes de compreender to bem os fenmenos polticos e institucionais que investigmos sem esse outro saber adquirido no combate poltico, do mesmo modo que, em tantas ocasies, o nos so saber acadmico foi precioso para melhor intervirmos no palco das lutas que travmos ao longo da vida. Entre a experincia ganha nos nossos combates cvicos e polticos e a vida acadmica gerouse sempre uma benfica sinergia, diria mesmo um verdadeiro crculo virtuoso! Perguntome, por isso, se a tua formao acadmica nessa su a, onde tambm estudei, e com a distncia que o exlio permite, na sequncia da tua experincia de soldado fora no servio militar obrigatrio, no te ajudou nesse teu olhar clarividente sobre o futu ro prximo de Portugal, que to incisivamente plasmaste na clebre tese dos trs D (Democratizar, Descolonizar, Desenvolver) apre sentada no Terceiro Congresso da Oposio Democrtica de Aveiro, em Abril de 73, e na qual antevias o papel histrico das Foras Arma das no derrube da ditadura. Foras Armadas que, alis, dos trs D acabariam por fazer o guio do programa do MFA! Tambm me pergunto at que ponto a tua experincia militante ao longo do PREC, desde logo no interior das prprias Foras Ar madas, a que coerentemente regressaste logo aps a Revoluo de Abril, no te condicionou na viso que dessa Revoluo nos deste no teu pioneiro Ensaio Histrico sobre a Revoluo do 25 de Abril: O perodo prconstitucional, de 1983, cuja segunda edio, alis, promovi na Co leco Testemunhos Contemporneos, que dirigi para as Publicaes Alfa em 1992. Tal como, certamente, a minha viso do PREC tambm foi de certo modo condicionada pelo modo como o vivi por dentro e me levou, curiosamente, a divergir de ti na avaliao que fizemos da importncia relativa da instituio militar e dos partidos polticos no perodo prconstitucional, como deixei expresso no meu artigo

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A Dialctica entre as Componentes Civil e Militar no Processo Re volucionrio do 25 de Abril na Revista de Histria das Ideias, em 1995. Tendo ambos sido deputados Assembleia Constituinte, tambm isso, em compensao, decerto nos levou a estarmos de acordo na valorizao que ambos fizemos sobre a sua importncia na e para a transio para a democracia, contrariando, assim, o menosprezo a que tantos a tm votado. Condicionados teremos sido, pois, pelas nossas experincias polticas, embora no determinados. Porque o aturado trabalho de pesquisa das fontes e as exigncias do mtodo cientfico nos do sempre a possibilidade de superarmos os constran gimentos e as limitaes da empiria e de nos elevarmos a um pata mar de reflexo superior. Cmplices em tantos momentos da nossa vida poltica, a comear pela j referida operao de distribuio clandestina da tua Carta Aberta, a que procedi em Lisboa sob a experiente orientao do Lus salgado de Matos, divergentes, certo, noutros momentos, cmplices tambm na nossa vida universitria no Departamento de Histria da FCsH e nas actividades do Instituto de Histria Con tempornea, partilhando at um mesmo gabinete nos ltimos anos que precederam a nossa aposentao quase simultnea, nunca escon di a admirao intelectual que sempre nutri por ti, como nunca es condi as crticas que uma vez ou outra me suscitaram as tuas anlises. Por sobre tudo isto, como esquecer o prazer do nosso convvio, com as tuas piadas certeiras, as tuas estrias, o teu humor to fino quanto sarcstico, a tua propenso para as profecias histrico conjunturais, tantas vezes, alis, certeiras Caro Z, sei que a aposentao, para ti, tal como para mim, no foi mais do que a libertao do fardo do professor universitrio ps Bolonha, e que continuas a aproveitar muito bem o tempo extra que ela nos tem dado. Espero poder continuar a desfrutar do teu saber e do teu convvio ainda por muito tempo. Fazes falta a este Portugal to pobre em valores e sempre to ingrato. O abrao solidrio de sempre do Antnio Reis Lisboa, 9 de Janeiro de 2010, ano do centenrio da Repblica

Jos Medeiros Ferreira: histria dos militares e da descolonizaoPedro Pezarat CorreiaCruzamse, na multifacetada personalidade de Jos Medeiros Ferreira, diversas dimenses do cidado interventivo e do intelectual atento e, porque atento, preocupado com o mundo que nos rodeia. Do historiador por vocao e por formao acadmica ao poltico mili tante por opo de vida, do investigador por necessidade de encontrar respostas para as suas inquietaes ao divulgador, ensasta, professor, conferencista, colunista, comentador, tem sido sempre um homem do seu tempo. Quando estudante universitrio na dcada de 60, o perodo ureo da contestao estudantil no apenas em Portugal mas em todo o mundo e, com particular visibilidade, na Europa, Medeiros Ferreira no lhe seria indiferente. Mais, mergulhou nele a fundo e isso marcaria a sua vida. Desde ento activo oposicionista a uma ditadura que no deixava outra opo de luta poltica queles que no pactuavam que no fosse a da conspirao, viria a conhecer a priso e, mais tarde, a expulso das universidades portuguesas. Assumindose, sem ambigui dades, pelo direito independncia dos povos das colnias, viuse sub metido a uma apertada vigilncia da polcia poltica e, quando prestava servio militar por lhe ter sido interrompida a licena de estudo e esta va mobilizado para a guerra colonial, optou pela desero e emigrao, vindo a fixarse e a prosseguir os seus estudos em Genebra em 1968, quando a Europa fervilhava ainda em resultado do Maio francs, de onde s regressaria depois do 25 de Abril de 1974. Medeiros Ferreira faz parte da gerao mais jovem daqueles a quem, em vrias oportunidades, me tenho referido como os pre cursores do 25 de Abril. Fui escrevendo em textos dispersos, alguns dos quais, em 1994, inclu no meu livro Questionar Abril1, que o 25 de1 Pedro Pezarat Correia, Questionar Abril..., Lisboa, Crculo de Leitores, 1994; e Lis boa, Editorial Caminho, 1994.

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Abril de 1974, para alm das suas causas imediatas de natureza mais ni tidamente militar e conjuntural, foi produto cumulativo da luta de 48 anos contra a ditadura, conduzida por sectores polticos e castrenses, quer atravs de uma actividade permanente, conspirativa e clandestina de forma continuada e sistemtica, ou legal e s claras nos escassos e limitados perodos das farsas eleitorais, quer atravs de tentativas de golpes de estado que sucessivamente se foram frustrando mas que dei xavam mossa e contriburam para desgastar o regime e agravar as suas contradies. Todos os cidados, militares e civis, annimos ou mais ou menos conhecidos, que se sacrificaram nessa resistncia prolonga da, tiveram o seu papel, algumas vezes decisivo, para o xito final da revoluo dos cravos. Os capites de Abril, os homens do Movimento das Foras Armadas (MFA), mais afortunados e que souberam apro veitar convenientemente as condies mais favorveis da sua poca, vieram a ser os intrpretes dos anseios das anteriores geraes. Jos Medeiros Ferreira integrou as fileiras da ltima dessas geraes e, atra vs da sua obra literria e da sua militncia poltica, assumese intei ramente como tal. Cidado de Abril avant la lettre, acabou por ser um militar de Abril de facto quando foi reincorporado no Exrcito depois do 25 de Abril e se integrou no processo revolucionrio que se seguiu. No vou aqui traar a sua biografia, outros o faro com melhor conhecimento de causa, mas deixo estas breves notas biogrficas de abertura porque elas servem de base aos aspectos que me interessa salientar daquilo que, nele, mais suscita o meu interesse. Desde 1986, depois de ter posto termo minha carreira militar activa e ter passado a dedicarme plenamente a ocupaes cvicas e culturais, tenho colaborado frequentemente com o Instituto de His tria Contempornea, sempre com total agrado e da recolhendo excelentes contributos para a satisfao das minhas preocupaes de natureza intelectual. Colaborao que me tem proporcionado a grata oportunidade de participar em eventos diversos com Medeiros Ferreira que, alis, tambm tem ocorrido em outras iniciativas , dos quais guardo sempre boas recordaes e me do direito presun o de conhecer razoavelmente o seu pensamento. Das vrias reas em que investiu na sua qualidade de investigador e ensasta, h trs que me interessa destacar em especial: a da participao poltica dos militares em Portugal, com especial incidncia durante o sculo xx; a do 25 de Abril entendido no s como o golpe de estado militar em si mas tambm como o processo revolucionrio que se lhe seguiu;

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a da descolonizao das colnias portuguesas. o que tentarei fazer nas consideraes que se seguem.

so vrios os autores que em Portugal se tm debruado sobre a pro blemtica do relacionamento entre os militares e a poltica, melhor dizendo a interveno poltica dos militares, nomeadamente a partir da Revoluo Liberal, quando pode comear a falarse de uma insti tuio militar, instrumento armado de um Estadonao, caracteri zado por uma estrutura funcional e hierarquizada, assente numa lide rana e num enquadramento fundamentados na competncia tcnica e experincia profissional. Esses autores tm procurado compreen der o porqu dos militares (leiase os quadros graduados das Foras Armadas) terem revelado atraco pela interferncia na poltica, de tal forma que, em largos perodos, a vida poltica nacional tenha sido mesmo dominada pelos militares. Medeiros Ferreira um dos investigadores com obra muito merit ria nesta rea e flo, como o prprio revela e a reside uma das suas singularidades , com a preocupao de melhor entender o 25 de Abril de 1974. Mas faz incidir a sua investigao apenas a partir do sculo xx porque considera, o que no parece abusivo, que s com a instaurao da Repblica as Foras Armadas Portuguesas passaram a constituir um corpo unificado. At ento estavam divididas em Exrcito Metropoli tano e Exrcito Colonial e a misso fundamental era a de interveno almmar, j que no se colocavam problemas de soberania na metr pole e era em frica, na sequncia da partilha colonial decorrente da Conferncia de Berlim, que as potncias europeias com ambies im periais se confrontavam. As campanhas militares em frica dos finais do sculo xix e princpios do sculo xx, em Portugal eufemisticamen te chamadas campanhas de pacificao, inscreveramse nesta lgica, pela necessidade de penetrao e fixao no interior do continente para assegurar a presena efectiva, que a Conferncia de Berlim im pusera como legitimao da posse. As aces tcticas no terreno eram contra os africanos, mas o jogo estratgico era entre Estados europeus. O seu livro O Comportamento Poltico dos Militares: Foras Armadas e regimes polticos em Portugal no sculo xx2, que resulta da sua tese de2 Jos Medeiros Ferreira, O Comportamento Poltico dos Militares: Foras Armadas e re gimes polticos em Portugal no sculo xx, Lisboa, Editorial Estampa, 1992.

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doutoramento, rene e sistematiza vasta reflexo anterior sobre esta matria e, como sempre, com um cunho de originalidade e at con trariando alguns tabus estabelecidos. sem deixar de reconhecer essa tendncia interventiva dos militares, pe em relevo que ela no foi assim to permanente como alguns pretendem. salienta, nomeada mente, que no perodo de estabilizao da monarquia constitucional, a partir de 1870, os militares se abstiveram de interferncias enquan to instituio. E sublinha tambm que, no derrube da monarquia, os militares primaram pela ausncia, pois nem o 5 de Outubro de 1910 foi, de facto e ao contrrio do 28 de Maio de 1926 e do 25 de Abril de 1974, um golpe de estado militar, apesar de ter contado com a participao de alguns militares, nem as foras armadas institucio nais se bateram pela monarquia. Curiosa ainda a sua constatao de que, na maior parte dos casos, as intervenes militares, quando se verificaram, o foram a solicitao de variados sectores da sociedade civil, deixando implcito o entendimento de que os militares no agiam como corpo separado da nao. Muito interessante a anlise que Medeiros Ferreira faz das cises que a participao na Primeira Guerra Mundial cavou num exrcito que, paradoxalmente, se pretendia republicano e de cidados, mas que estava ainda muito fragilizado pela influncia de quadros de ofi ciais monrquicos. A proliferao de juntas militares justificou a pretensa aco regeneradora e unificadora de Gomes da Costa em 28 de Maio de 1926, que viria a estar na origem da ditadura militar, j antes aflorada no apoio a sidnio Pais e que tivera o seu ensaio geral em 1925. Estas contradies so reveladoras da forma como o 28 de Maio, que se apresenta inicialmente com esse esprito regenerador, em que a instituio militar intervm a pedido de sectores polticos, intelectuais, corporativos do poder econmico, mas mesmo popu lares e operrios, ultrapassa e afasta os seus lderes e se transforma rapidamente em ditadura militar, anticonstitucional, antidemocrti ca e de certo modo at antirepublicana. Vai durar at 1932, tendo de vencer vrias intervenes de militares democratas e constitucionais que se propunham derrubla (perodo sousa Dias) e, quando acaba, termina a ditadura militar mas no a ditadura. Como muito bem escreve Medeiros Ferreira, A ditadura militar gerar outra ditadura (p. 165) e, acentua, essa nova ditadura, civil, contar com o apoio militar institucional e ter sempre militares em lugares de fachada, mas o poder j no era militar. salazar desprezava os militares e, pouco

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a pouco, foilhes retirando poder, no s pela domesticao da insti tuio, como pela criao de outros organismos como a Legio Portu guesa, a Polcia de Vigilncia e Defesa do Estado (PVDE, antecessora da Polcia Internacional e de Defesa do Estado PIDE) e a Unio Nacional que, nas palavras de Medeiros Ferreira, cercavam a institui o militar (p. 197). As hierarquias das Foras Armadas acabaram por aceitar a subordinao ditadura civil numa atitude cmplice e pas saram a constituir, at ao seu derrube, um dos seus principais pilares. Mas, ao mesmo tempo, foi tambm nos militares que se deposi taram as maiores esperanas da oposio para derrubar o regime e, para muitos dos sectores democrticos, o principal alvo a abater era tambm o militar mais em evidncia no poder, santos Costa. Quanto s iniciativas dos militares, as presses para derrubar salazar partem quer da prpria estrutura da instituio, junto do presidente da Re pblica scar Carmona e, depois, Craveiro Lopes, quer de sectores identificados com a oposio. Curiosa a maneira como Medeiros Ferreira mostra que a adeso Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN/NATO) se traduziu num perodo de neutralizao da contestao militar mas, ironicamente, viria a ser um dos militares mais influentes na entrada na Aliana Atlntica, o general Humberto Delgado, a protagonizar a mais severa ameaa ao regime. Afinal foi o fenmeno Delgado e dois acontecimentos cujas origens, no sendo protagonizadas por militares portugueses, foram de natureza militar e interferiram directa e profundamente com a instituio militar, a ter enormes repercusses no meio militar, o incio da guerra colonial e a queda da ndia, que estiveram na base do crepsculo final da dita dura e constituem os antecedentes prximos do 25 de Abril. Com o incio da guerra em Angola, salazar teve de confrontarse com a hierarquia militar que o ajudara a neutralizar Delgado. Mas, com um simples contragolpe de caneta derrotou o golpe prepara do por quase toda a estrutura militar para o afastar (Botelho Moniz, Abril de 1961), tornando assim inevitvel a guerra prolongada em frica e a invaso militar de Goa, Damo e Diu pelas Foras Arma das Indianas. A derrota de Botelho Moniz tinha significado a vitria, dentro das Foras Armadas, dos apologistas da guerra em frica, mas os militares portugueses na ndia recusaram sacrificarse no altar da poltica colonial salazarista ao ignorarem a mensagem do ditador que soava como uma condenao morte: [] sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos (p. 272). Contra a corrente

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fica a declarao premonitria de Costa Gomes quando demitido de subsecretrio de Estado do Exrcito:O problema angolano, como alis o de todas as provncias africanas, no um problema simples, mas um complexo de problemas de que o militar uma das partes, que est longe de ser a mais importante (carta ao Dirio Popular de 19 de Abril de 1961).

Mensagem que, 13 anos depois, viria a constituir uma das principais palavras de ordem que mobilizariam os capites do MFA. Medeiros Ferreira vem a sustentar, noutras suas obras futuras e nomeadamente no oitavo volume da Histria de Portugal dirigida por Jos Mattoso, de que autor3, como se v com razo, que apesar da afirmao de que a soluo para a guerra colonial era poltica e no militar ter consti tudo mote do MFA, alguns generais o precederam nessa denncia. Entre outros, Costa Gomes e Antnio de spnola. O que se inscre ve, alis, na minuciosa anlise que faz das inmeras contradies que corroam a estrutura militar nos ltimos anos do Estado Novo e tanto contriburam para a gnese do MFA.

Nesta rea de preocupaes, intelectuais e acadmicas, envolvendo a interveno dos militares na poltica, Medeiros Ferreira dedica um lugar particular ao 25 de Abril, no sentido de procurar compreend lo e caracterizlo como fenmeno sociolgico e acontecimento histrico, ainda que tenha sempre o cuidado de esclarecer que o seu estudo e investigao se inscreve na rea da histria e no da socio logia. Eu acrescentaria mesmo que, no conjunto das suas obras, tem sempre o 25 de Abril como referncia. No livro que at aqui vem servindo de base a estas minhas conside raes, O Comportamento Poltico dos Militares: Foras Armadas e regimes po lticos em Portugal no sculo xx, o 25 de Abril constitui mesmo o essencial do ltimo captulo, Da ditadura democracia. Defende aqui uma tese curiosa e algo inovadora, segundo a qual o MFA foi uma metamorfose da instituio militar que, espontaneamente, gerou no seu interior um mo vimento destinado a derrubar a ditadura e gerir o perodo revolucionrio3 Jos Medeiros Ferreira, Histria de Portugal, direco de Jos Mattoso, vol. viii, Lisboa, Crculo de Leitores, 1993.

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que se seguiu. E, uma vez que este movimento teve o seu ncleo decisivo nos capites e majores, com larga experincia da guerra colonial no co mando de companhia, tece judiciosas consideraes sobre a forma como a guerra, que no campo operacional era, acima de tudo, uma guerra de capites em que a companhia era a unidade tctica fundamental, foi agente dessa metamorfose influenciando a formao dos jovens oficiais, a sua consciencializao poltica, o seu esprito de deciso, vindo a de terminar o esprito do MFA. um ponto de vista que acolho plenamen te e que eu prprio procurei desenvolver no meu livro Questionar Abril. A, no captulo ii, Capites de Abril, inseri um subcaptulo a que dei, exactamente, o ttulo Guerra colonial, o factor decisivo, onde, alis, no deixo de citar o livro de Medeiros Ferreira. Tambm me parece me recer destaque a forma como ele define, muito a propsito, a separao entre o Movimento dos Capites originrio e o MFA, recusando algu mas teses simplistas de que o 25 de Abril tenha resultado de meras moti vaes corporativas. Estas tiveram influncia na gnese do Movimento dos Capites, sem dvida, mas o MFA j foi, em absoluto, animado por preocupaes mais avanadas de natureza poltica nacional. Mas num seu outro livro, Ensaio Histrico sobre a Revoluo do 25 de Abril: O perodo prconstitucional4, que desenvolve, de forma bem funda mentada, o que se passou durante o perodo revolucionrio que ficou conhecido por Processo Revolucionrio em Curso (PREC). Fornece aqui uma til divulgao do como e do porqu dos episdios que le varam ruptura entre spnola e o MFA, o isolamento progressivo de spnola face ao Conselho de Estado, ao Governo Provisrio, na prpria Junta de salvao Nacional (JsN), tudo o que culminou inevitavelmen te no 28 de setembro e na sua resignao da Presidncia da Repblica. Medeiros Ferreira no foge polmica da caracterizao do PREC em termos da tipologia dos conflitos internos e incluise no nmero dos que pensam que o perodo prconstitucional foi uma revoluo. Mas acrescenta que foi uma revoluo imperfeita, no sentido de inacabada, justificando o termo na medida em que considera que uma revoluo um processo continuado, numa concepo estrutu ralista da histria, e que a revoluo de Abril ficou a meio caminho. Mais uma vez estou de acordo com ele, tese que desenvolvi em Ques tionar Abril, se bem que, exactamente por a considerar inacabada,4 Jos Medeiros Ferreira, Ensaio Histrico sobre a Revoluo do 25 de Abril: O perodo prconstitucional, Lisboa, Publicaes Alfa, 1990.

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tenha preferido caracterizla como um processo revolucionrio que no chegou a ser uma revoluo, porque foi interrompido no seu percurso sem consolidar as transformaes que encetou. , ainda, dos poucos analistas civis que faz uma leitura estratgica da Operao Fim de Regime (a aco militar que, no dia 25 de Abril, comandada do posto de comando da Pontinha e envolvendo foras de todo o pas, derrubou a ditadura) e do PREC que se lhe seguiu, afirmando mesmo queHouve de facto um pensamento estratgico bem expresso, alis, nas cor reces de comportamento poltico do prprio MFA e na sucesso de protagonistas adequados aos diferentes momentos e contextos (p. 125).

Essa leitura revelase com nitidez nas suas abordagens dos momentos decisivos, da crise do governo Palma Carlos e das tentaes de poder pessoal de spnola, do 28 de setembro e das manobras da maioria si lenciosa, do 11 de Maro e da consequente radicalizao do PREC, do Vero quente de 1975 com o Documento dos Nove e as Assem bleias de Tancos, do 25 de Novembro e o fim do PREC, da indispensabi lidade dos Pactos MFAPartidos para a institucionalizao democrtica. Estratgia que tinha por objectivo central instaurar em Portugal um re gime democrtico constitucional e que veio a alcanar esse objectivo. Medeiros Ferreira que, de resto, se encontrava ento num palco de observao privilegiado, pois prestava servio militar na 5. divi so do EstadoMaior General das Foras Armadas, um dos centros nevrlgicos do PREC, revela uma singular capacidade para compre ender as complexidades deste perodo. Compreenso que me parece exemplarmente clara quando escreve que[] o trnsito efectuado pelas Foras Armadas Portuguesas entre o regi me da ditadura derrubado a 25 de Abril e a promulgao da Constituio a 25 de Abril de 1976 , sem dvida, notvel e sem exemplo na histria das passagens de regimes ditatoriais a regimes de democracia poltica (p. 85).

Por isso creio que justo quando, e regresso ao seu livro O Comporta mento Poltico dos Militares: Foras Armadas e regimes polticos em Portugal no sculo xx, salienta e justifica que no seu objectivo democrtico que reside [] a diferena especfica e essencial entre o MFA e outras inter venes castrenses em Portugal (p. 317).

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Por ltimo, penso estar em condies de confirmar que faz uma observao correcta do papel soft do Conselho da Revoluo no pero do constitucional at sua extino em 1982, designadamente pela sua perda de influncia na rea militar, opo que foi, em grande parte, autoassumida, o que no quer dizer que tenha sido unanimemente assumida (p. 315). Medeiros Ferreira demonstrou sempre, quer como actor poltico quer na sua diversa actividade intelectual, uma confessada atraco pela poltica externa, tendo sido mesmo secretrio de Estado dos Negcios Estrangeiros no sexto Governo Provisrio e ministro dos Negcios Estrangeiros no Primeiro Governo Constitucional. nes ta sua rea de interesse que se pode inscrever a sua reflexo sobre a descolonizao, na qual tem registos dispersos, mas cujo trabalho de fundo se encontra no oitavo volume da Histria de Portugal que aqui j referimos. Neste livro retoma e aprofunda os temas e teses dos dois anteriormente aqui citados e estuda o perodo que vai at entrada de Portugal na Comunidade Econmica Europeia (CEE) em 1985, a que chama Portugal em transe, porque em transfigurao e transformao de identidade. Mas a que, pela primeira vez, investe desenvolvidamente no tema da descolonizao. Aqui residir, porventura, o aspecto em que encontrarei algum dis tanciamento terico com ele. Penso que sou, passe a imodstia, em Portugal, das pessoas com mais espao de interveno analtica, es crita, televisiva, radiofnica e presencial em seminrios, conferncias, colquios, debates, cursos, sobre a matria da descolonizao. Entre outras batalhas que venho travando tenhome batido pela tese de que muito comum, entre as expotncias coloniais e, particularmente, em Portugal, confundir a fase especfica da transferncia do poder com o processo global da descolonizao que, englobando obviamente aque la fase, a transcende. Desta confuso resultam muitos equvocos: por exemplo, a tendncia para atribuir ao colonizador o protagonismo da descolonizao quando o protagonista , decisivamente, o colonizado; por outro lado, a desvalorizao do perodo prolongado e muitas vezes pouco visvel da resistncia anticolonial que, na realidade, constitui a origem da descolonizao; ou ainda o erro vulgar de fazer coincidir o fim da guerra colonial com o incio da descolonizao quando, bem ao contrrio, a guerra j uma etapa avanada da descolonizao que vem sendo conduzida pelo colonizado; enfim, para encarar a indepen dncia como uma ddiva do colonizador e no como uma conquista

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do colonizado, quando a verdade que nenhuma independncia foi conseguida sem luta, sem sacrifcios e nunca nenhum colonizador se desfez dos seus imprios sem constatar que j no tinha condies para os manter ou que os benefcios que deles recolhia j no compensavam os prejuzos. Reconheo que tenho encontrado pouco eco nesta minha campanha na arena conceptual. No diria que Medeiros Ferreira cai flagrantemente nos vcios que atrs denunciei porque, de facto, o no faz, mas creio que no se demarca objectivamente deles. No posso, no entanto, deixar de salientar a importante abordagem que faz da temtica da descoloni zao e de pr mesmo em destaque alguns aspectos que, em relao descolonizao das colnias portuguesas, aprofunda e desenvolve com bvio interesse. Na obra em causa mostra compreender bem a importncia que a questo africana, ou seja a descolonizao, teve na origem do 25 de Abril e como viria a constituir o cerne da grande clivagem entre spnola e o MFA. E ajuda a perceber como a oposio republicana tradicional, condicionada pelo seu comprometimento com a ideo logia imperial que esteve na base da conspirao antimonrquica e do nacionalismo republicano do 5 de Outubro, teve dificuldade em entender que, com o fim da segunda Guerra Mundial, chegara a hora do encerramento do ciclo colonial, realidade para a qual s com o arrastamento da guerra colonial viria a tomar conscincia. Afinal no foi apenas o regime, mas tambm a oposio tradicional que contri buiu para lhe dar razo quando escreve, com muita lucidez, queA partir da emergncia da luta armada nas colnias, Lisboa estava prisionei ra do que se passava em frica. De facto Lisboa, desde a dcada de 60, mais do que capital de um imprio colonial, estava subjugada por este [] (p. 95).

Jos Medeiros Ferreira, no deixando de reconhecer a importncia das presses externas na acelerao do processo de transferncia do poder para os movimentos nacionalistas, considera, e bem, que os factores endgenos da realidade africana que foram determinantes. Neste particular faz uma correcta leitura da progressiva deteriorao da situa o militar nas colnias, o que foi perfeitamente compreendido pelas comisses locais do MFA em contacto directo com essas situaes, co misses que viriam a ter um papel decisivo no avano das negociaes e que foram pioneiras no reconhecimento dos movimentos de libertao

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como nicos interlocutores legtimos para negociar o fim da guerra e os consequentes processos de transferncia do poder. Mrio soares e Almeida santos, os primeiros governantes a encetarem conversaes, vieram a reconhecer como inevitvel a acelerao dos passos para a transferncia do poder. O destaque que Medeiros Ferreira d neste livro passagem do Primeiro para o segundo Governo Provisrio e aprovao da lei constitucional 7/74, de 28 de Julho, que formalizava o reconhecimento do direito dos povos das colnias autodetermi nao e independncia, justo e historicamente correcto. Foi a e nas conversaes que, dias depois, se seguiram entre o governo portugus e o secretriogeral da Organizao das Naes Unidas que, de facto, se desbloqueou a entrada de Portugal no processo de descolonizao. Foi o momento de viragem que rompeu o crculo vicioso em que se ti nha cado, com a JsN fixada nas teses de spnola e do seu livro Portugal e o Futuro5 a pretender que os movimentos de libertao aceitassem um cessarfogo incondicional para depois se negociarem as solues pol ticas para as colnias, enquanto os movimentos de libertao exigiam que Portugal reconhecesse o direito independncia dos povos das co lnias como condio prvia para negociarem o cessarfogo. O MFA, em especial as suas delegaes nas colnias, era mais favorvel a esta posio do que da JsN e este era um dos grandes obstculos ao seu relacionamento com spnola, cujas teses, como o prprio viria poste riormente a reconhecer, eram j anacrnicas, irrealistas e estavam ul trapassadas pelos acontecimentos. As anlises de Medeiros Ferreira revelam uma correcta interpre tao das imensas dificuldades e obstculos que se ergueram nos perodos da transferncia do poder, de um lado com os riscos de agra vamento e alastramento das frentes de guerra com os movimentos de libertao, do outro com as tentativas de golpes separatistas das minorias brancas com apoios na frica do sul e Rodsia, mas tam bm em Portugal. E, a propsito, ajuda a compreender estas tenta tivas desesperadas de alguns sectores das minorias brancas, como as manobras frustradas de Marcelo Caetano no passado recente, para encontrar solues neocoloniais que permitissem sadas para uma guerra sem soluo militar. Faz tambm uma anlise pormenorizada e fundamentada das con sequncias da descolonizao, do regresso dos nacionais, das disputas5 Antnio de spnola, Portugal e o Futuro, Lisboa, Arcdia, 1974.

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externas por reas de influncia nos novos Estados independentes in seridas no quadro da Guerra Fria, das vantagens que a Unio soviti ca inicialmente conseguiu, porque foi mais consequente nos apoios a movimentos de libertao e porque beneficiou das ambiguidades da poltica dos Estados Unidos, que alternou apoios s lutas de libertao e compromissos com o colonialismo portugus e o apartheid sul africano. E evidencia uma correcta compreenso das portas que, com a forma como decorreram as negociaes para a transferncia do poder, se abriram para a cooperao futura entre Portugal e os novos Estados que haviam sido suas colnias. Foi o 25 de Abril que permitiu, assim, ultrapassar os traumas de uma relao que tinha as sentado na explorao colonial e na represso violenta e que nos lti mos anos ascendera a uma guerra colonial que podia ter sido evitada.

Foi com muito gosto que acedi ao convite do Instituto de Histria Contempornea para participar nesta homenagem ao professor dou tor Jos Medeiros Ferreira, a quem me ligam laos de amizade e cujo trajecto, cvico e cultural, me merece, como aqui evidencio, muito respeito e admirao. se certo que decidiu pr termo sua actividade docente, nos lcito esperar que possamos continuar a contar com a sua contribui o pedaggica na investigao e divulgao em reas do conheci mento que tm sido as suas e nas quais tanto h ainda para desbravar, ou noutras em que se proponha mergulhar. Por isso, estas minhas palavras no podero ser entendidas como o elogio de um esplio, mas apenas como a constatao de uma obra em curso e cujos contributos futuros aguardamos com bvia expectativa. Lisboa, Maio de 2009

Os militares nos Aores durante o cerco do PortoJos Guilherme Reis LeiteO regente D. Pedro, antes de abandonar os Aores testa do Exr cito Libertador, referendou um decreto1 (n. 28, de 4 de Junho de 1832) que extinguia formalmente a velha CapitaniaGeral e criava a Provncia dos Aores, com capital em Angra, transformando assim as ilhas em parte integrante do Reino e consequentemente territrio onde se passava a aplicar a legislao metropolitana. No ficava, contudo, ao contrrio de outras reas da administra o, clarificada a orgnica militar no arquiplago. Optavase ainda pela nomeao de um governador das armas, funo que na orgnica da capitaniageral pertencia ao capitogeneral, e de governadores mi litares nas ilhas. Na prtica mantinhase assim, nesta rea, o figurino da capitaniageral que se extinguia. A causa para esta excepo nascia decerto da incapacidade de se destacarem efectivos suficientes para se estabelecer uma estrutura do Exrcito nos Aores, o que se relegava para mais tarde. At Julho de 1833, ou seja, at conquista de Lisboa, a situao militar no arquiplago era de facto muito precria. Convm acrescentar que muitos dos oficiais que ficavam nas ilhas e no acompanhavam o Exrcito Libertador eram indesejveis adeptos do radicalismo poltico liberal, que haviam seguido salda nha no exlio francs e que conforme iam alcanando os Aores, a partir de 1829, a regncia tratava de os afastar para a ilha de s. Jor ge, transformada numa espcie de limbo. Isto acontecia porque os referidos oficiais no garantiam qualquer fidelidade aos governos de D. Pedro, mas ficando nas ilhas no se conformavam com o papel secundrio da defesa da retaguarda.1 Toda a legislao citada, salvo informao contrria, pode ser consultada na Collec o de Decretos e Regulamentos Publicados durante o Governo da Regncia do Reino, Lisboa, Imp. Nacional, 1834.

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O governo, por outro lado, pretendia ultrapassar este escolho no meando para governador das armas um oficial general da sua con fiana, pressupondo que assim ultrapassava as dificuldades de maior monta. Enganavase. Mas atentemos mais em pormenor nesta organizao militar provisria. O governador das armas, que estendia a sua autoridade, nominal, evidentemente, a todas as ilhas, era um oficial general, tinha a sua sede em Angra, ainda no do Herosmo, na fortaleza de s. Joo Bap tista. Os governadores militares das ilhas, a ele subordinados, eram por sua vez oficiais superiores, coronis e tenentescoronis, quase todos e pelo menos dois deles majores. A nvel de comandos juntavamse a estes os governadores de duas das mais importantes fortalezas da provncia: a fortaleza de so Joo Baptista em Angra e o forte de s. Braz, em Ponta Delgada, tambm oficiais superiores. O forte de santa Cruz, na Horta, mais pequeno e secundrio, ficava pelo comando do oficial da guarnio. Convm, para se entender as dificuldades futuras, abordar sucin tamente as biografias2 daqueles oficiais que ocuparam estes coman dos e que, como j se frisou, eram aqueles que haviam ficado nas ilhas. O governador das armas foi o brigadeiro3 Joo de Vasconcelos e s (17851846), prestigiado pela sua participao na Guerra Peninsular e promovido mais de uma vez por distino. Era cartista conserva dor e apoiante do governo dos amigos de D. Pedro e dos aristocratas, decidido a conter os radicais insulares. Na ilha de s. Miguel ficava como governador o major4 Florncio Jos da silva (1789 ?), ele tambm um conservador, que ir ter vida difcil na ilha, como veremos, mas que singraria na carreira militar atingindo o generalato em 1851.2 Para as biografias dos oficiais citados neste trabalho reportome a trs obras da es pecialidade que se podem considerar complementares. so elas a Enciclopdia Aoria na (coord. de Lus Arruda), consultvel em pg.azores.gov.pt/drac/cca/enciclopedia/ index.aspx, onde eu prprio escrevi uma srie de biografias de oficiais do Exrcito com interesse para a histria aoriana; Os Generais do Exrcito Portugus (coord. do coronel Antnio Jos Pereira da Costa), Lisboa, Bibl. do Exrcito, 3 vols., 2005; e o Dicionrio Biogrfico Parlamentar 18341910 (coord. de Maria Filomena Mnica), Lis boa, AR, 3 vols., 2004. Daqui em diante citados por Enciclopdia, Generais e Dicion rio, volume e pgina. 3 Enciclopdia; Generais, vol. iii, tomo i, p. 160; e Dicionrio, vol. iii, p. 514. 4 Enciclopdia; Generais, vol. iii, tomo i, p. 339.

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Na ilha do Faial foi nomeado (06/08/1832) governador o tenente coronel5 Emdio Jos Lopes da silva (1776 1845), um velho e pres tigiado militar, formado no Colgio dos Nobres e combatente na Guerra Peninsular. Fez toda a sua carreira posterior nos Aores, onde participou na campanha de Vila Flor para a conquista das ilhas e veio a morrer na Horta, no posto de brigadeiro, promovido em 1838 e re formado. Era um moderado pouco dado a aventuras polticas. Alm destas duas ilhas, uma vez que a Terceira, como sede do co mando geral, no necessitava de um governador militar, s s. Jorge e santa Maria tinham governadores. Em s. Jorge, depois da conquista de Vila Flor, ficara o j nosso conhecido Emdio Jos Lopes da silva, que foi depois mudado para o Faial e a quem sucederia (12/10/1832) o tenentecoronel6 Antnio Fernandes Camacho (17621834), um ma deirense, oficial de artilharia, de carreira apagada e relegado para um comando secundrio, do qual, depois de muitos protestos, se viu livre e autorizado a regressar sua ilha natal. Em santa Maria, foi estabelecido um depsito de prisioneiros de guerra e exilados polticos e por isso para essa ilha se nomeou um go vernador militar, o major7 graduado Francisco de Paula Bastos (1793 1881), que viria a ter uma carreira militar brilhante que o levaria ao posto de general de brigada (1864) e ao governo da Praa de Elvas, ao comando de vrias divises, entre elas a 10. diviso, nos Aores (18511865), depois de ter ocupado o governo de Cabo Verde. Passou uma parte substancial da sua carreira nos Aores e acabou por morrer em Angra do Herosmo, onde casou, cumulado de honrarias, baro e visconde de Bastos, carregado de condecoraes e riqussimo. Era tambm cartista, mas avesso a incurses na poltica. Nas fortalezas, foram nomeados para s. Joo Baptista de Angra, de longe a mais importante, o tenentecoronel8 Joaquim Pereira Ma rinho e para a de s. Brs, em Ponta Delgada, o major9 Pedro Nolasco Bicudo Borges da Cmara. Joaquim Pereira Marinho (17821854) era um oficial notvel pela sua formao acadmica e percurso intelectual, mas um indisciplinado e um exaltado, que em todos os lugares se envolvia em situaes5 6 7 8 9 Enciclopdia; Generais, vol. iii, tomo i, p. 314. Enciclopdia. Enciclopdia; Generais, vol. iii, tomo i, p. 330; e Dicionrio, vol. i, p. 330. Enciclopdia; Generais, vol. iii, tomo i, p. 300. Enciclopdia.

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pouco claras, que lhe valeram julgamento em conselho de guerra, de misses e repreenses. Contudo, alcanou o posto de marechalde campo. Em poltica era um extremista exaltado, chefe da Carbonria e um agitador inconformista. Teve nos Aores um percurso turbulento na poltica local, como se analisar, que o levou a ser expulso das ilhas em 183310. Foi, por portaria de 25 de Abril de 1832, nomeado gover nador do Castelo de so Joo Baptista, cargo que ocupou por trs escassos meses, sendo substitudo pelo tenentecoronel Ricardo Jos Coelho (17821847), outro saldanhista que ficara nos Aores, membro da Maonaria e que acabou os seus dias no comando de s. Jorge, de pois de passar por comandante de s. Miguel (1835), santa Maria (1836) e Faial (1838), considerandose sempre prejudicado pelas suas opes polticas. Pedro Nolasco Bicudo Borges da Cmara (1760 1838) era o nico aoriano a deter um posto de comando nesta orgnica do Exrcito. Morgado, fidalgo cavaleiro da casa real, devia a proeminncia mili tar mais sua generosidade com os exilados aristocratas da corte de D. Pedro, que recebeu no seu solar do Parto, do que a qualquer carrei ra notvel. Desempenhou tambm papel apagado na poltica local. Mas a verdadeira fraqueza do sistema estava nas modestas guarni es disponveis nas ilhas mais importantes, na Terceira e em s. Mi guel, o que deixava os comandos de mos atadas e fragilizados para resistirem a qualquer chantagem. Em Angra11, acantonados no castelo, como na gria se designa ainda hoje a fortaleza de so Joo Baptista, o batalho dos Leais Fusileiros e um destacamento de artilharia e no forte de s. Brs, em Ponta Del gada12, uma pequena guarnio de 25 homens da mesma arma, sada do destacamento de Angra e um depsito de convalescentes e praas que o Exrcito Libertador dispensara, todos comandados, desde 23/03/1832, pelo major13 de artilharia Joaquim Guilherme da Costa (17851859). Para o forte de santa Cruz, na Horta, o nomeado governador, o coronel Emiliano Jos Lopes, levou tambm uma guarnio de arti lharia (25 homens) sada do destacamento de Angra.10 Enciclopdia. 11 Manuel Faria, Regimento de Guarnio de Angra do Herosmo, Herana Hist rica, in Enciclopdia Aoriana. 12 Idem, ibidem. 13 Enciclopdia; Generais, vol. iii, tomo i, p. 370.

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De tropas regulares, s este escasso nmero, divididas por trs ilhas e manifestamente insuficientes e incapazes de assegurarem a guarnio regular das fortalezas, quanto mais resistirem a qualquer eventualidade de um ataque ou de uma revolta interna que impos sibilitasse a garantia de uma retaguarda segura para uma retirada de emergncia do Exrcito Libertador cercado no Porto e cuja possibi lidade ganhava credibilidade com as notcias das dificuldades encon tradas na guerra. neste cenrio que os batalhes cvicos14, ou batalhes de vo luntrios, ou tropas auxiliares ou l o que lhes queiram chamar, as sumiram proeminncia ao assegurarem as falhas das guarnies de tropa regular. Em Angra, instalaramse na prpria fortaleza e na Hor ta tambm, aqui entre a sada de Caadores 12 para se integrar nas foras expedicionrias de D. Pedro e a chegada dos artilheiros. Em Ponta Delgada, aquartelados no convento da Graa ou dispersos pe las vilas principais, eram a face visvel do poder militar. Estes cvicos ou voluntrios15, inspirados na Frana revolucion ria, eram cidados armados para a defesa das liberdades, no caso por tugus para a defesa da Carta e dos inauferveis direitos da rainha. Nasceram primeiramente em Angra, nos dias hericos da reposio da legalidade cartista, em 1828, de gerao espontnea e s em 1831 (D. n. 50, de 7 de setembro) a regncia legislou a sua orgnica. Com a conquista das ilhas por Vila Flor estenderamse aquelas que iam sen do ocupadas e acabaram por praticamente cobrir todo o arquiplago. Foram desde sempre da responsabilidade dos radicais do regime, que os organizaram, politizaram e dirigiram, assumindo os comandos a todos os nveis e deles se serviram para tentarem alcanar o poder e manobrar para a imposio dos seus desgnios. Os oficiais do Exrci to, tambm de ideologia esquerdista liberal, foram os seus instruto res, se bem que os batalhes cvicos dependessem hierarquicamente do poder municipal. Tal realidade levou a que os radicais continua mente provocassem situaes de perigo para as instituies liberais, a fim de justificarem e valorizarem a aco dos voluntrios. Um relatrio annimo, mas certamente vindo do radicalismo, intitulado Notcia da ilha de s. Miguel depois do embarque da expedio16, enumera uma srie de intervenes dos cvicos para a14 J.G. Reis Leite, Voluntrios, in Enciclopdia Aoriana. 15 V. Pulido Valente, Os Militares e a Poltica (18201856), Lisboa, INCM, 1997, p. 37 e seg. 16 In Arquivo dos Aores, vol. vi, Ponta Delgada, 2. ed., UA, pp. 136 39.

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defesa das liberdades contra reais ou imaginrias situaes de peri go provocadas por absolutistas em vrias ilhas. Na Terceira, no Pico, nas Flores, na Graciosa e sobretudo em s. Miguel, passaramse cenas mais ou menos dramticas em que os voluntrios intervieram e, se gundo a retrica da esquerda, salvaram as instituies e a liberdade, castigando e derrotando a hidra da reaco e do despotismo. Trs dessas aces merecem ateno, porque so exemplares dos mtodos usados pelos dirigentes polticos do radicalismo. Na Terceira circulava a notcia de que se preparava, no Outono de 1832, uma revoluo absolutista, diz a citada notcia e que era sua cabea e inspirador o coronel de artilharia17 Jos silva Reis (1787 1832), o comandante das foras miguelistas derrotadas por Vila Flor em s. Miguel e que estava prisioneiro no castelo de s. Joo Baptis ta, cumprindo a pena de quatro anos, que o conselho de guerra lhe impusera. segundo a mesma fonte, ao saberse isto, um tumulto do povo o assassinou. Ora, o que aconteceu de facto foi que o assassinato do infeliz co ronel foi decidido numa reunio da Carbonria e executado por um grupo de voluntrios numa situao encenada durante a mudana de prisioneiros, em que os acusaram de tentativa de fuga18. Em s. Miguel, diz a notcia que, depois da sada do Exrcito Li bertador e devido a sinais de perigo iminente, o municpio de Ponta Delgada, cujo presidente ou provedor, na linguagem orgnica, era o chefe dos radicais, Manuel da Costa Albuquerque, o futuro baro das Laranjeiras, organizou uma fora que pudesse repelir qualquer insulto e manter a ordem pblica. Nasceu assim o 1. batalho de vo luntrios micaelense, no nmero de 400 cidados, que a no se ter constitudo estava tudo perdido, sublinha a notcia e acrescenta que foram eles que, patrulhando a cidade e a ilha e assegurando guardas, garantiram o sossego. De facto, quando o Exrcito Libertador zarpou do porto da cida de, em Junho de 1832, deixou na ilha um nmero indeterminado de desertores que se esconderam em zonas pouco acessveis do interior, principalmente para os lados do Pico da Vara. Provocaram assaltos e foram aproveitados pelos miguelistas para criarem instabilidade na17 Enciclopdia. 18 J.G. Reis Leite, Teotnio de Ornelas, Angra do Herosmo, Inst. Aoriano de Cultu ra, 2007, p. 82 e seg.

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ilha19. Foi alis da responsabilidade de dois desses desertores o assas sinato nas Furnas, a 2 de setembro de 1832, do jovem oficial20 Manuel Homem da Costa Noronha (180732), mas possivelmente num ajuste de contas de velhos dios que vinham dos excessos deste exaltado radical, que j os praticara em s. Jorge e os continuara em s. Miguel. seja como for, as aces dos desertores, a quem se juntaram outros populares micaelenses descontentes com a situao e todos eles ma nobrados pelos miguelistas, criavam de facto um clima de insegurana em parte da ilha. Os radicais aproveitaram a ocasio para, empolando a situao, consolidarem o seu poder. Exigiram do comandante mi litar uma actuao mais firme de perseguio e que disponibilizasse efectivos, dos poucos que dispunha, lembremos, para perseguio aos rebeldes. Queriam sobretudo que este, o nosso conhecido Florncio Jos da silva21, aceitasse pr sob o comando dos voluntrios a tropa da linha, o que ele recusou. Foi ento acusado de colaboracionista com os prprios rebeldes e de apoiante declarado dos miguelistas e, por isso, numa deciso arbitrria da cmara de Ponta Delgada, preso, expulso da ilha e enviado para o Porto, deixando o comando nas mos do tenente coronel Joaquim Guilherme da Costa, que por sua vez se acomodou s exigncias dos voluntrios, passando estes a praticarem os maiores excessos na perseguio aos rebeldes, chegando a queimarem as casas dos familiares para que eles se apresentassem. Assim, expulsando a autoridade militar que lhes era desfavorvel e moderada, empolando os factos e criando uma situao artificial de perigo imente para as instituies liberais, usando do terror como arma, mtodo caracterstico das esquerdas jacobinas, passaram, pe rante a incapacidade do governo e do governador das armas para res tabelecerem a ordem e a legitimidade, a governar s. Miguel com a conivncia do novo governador militar e do subperfeito, ele tambm de inspirao do radicalismo. Foi, visto agora distncia, um clssico golpe de tomada de poder. A terceira aco dos radicais para consolidarem as suas posies decorreu na ilha do Faial, para onde foi enviado, sob o patrocnio da19 F.A. Machado Faria e Maia, Novas Pginas da Histria Micaelense (18321895), Pon ta Delgada, 2. ed., Jornal de Cultura, 1994, p. 109 e seg. 20 Jorge Forjaz e Antnio Mendes, Genealogias da Ilha Terceira, vol. vi, Lisboa, Disli vro, 2007, ttulo de Noronhas, p. 478. 21 Justificao Que Faz o Major Governador Militar da Ilha de s. Miguel, Florn cio Jos da silva, in Arquivo dos Aores, vol. vii, Ponta Delgada, 2. ed., UA, pp. 389 400.

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Carbonria de Angra, em Agosto de 1832, o nosso conhecido Joaquim Pereira Marinho, com a misso de animar os bons primos da Horta e, nomeado coronel da legio dos voluntrios do Faial, de discipli nar e exercitar aquele corpo. Flo com excessivo zelo, pretendendo aquartellos no convento de s. Joo, estabelecendolhes soldo, o que permitia a lei s em caso de ataque ou perigo eminente das institui es. Uma aclamao na vila da Madalena, na vizinha ilha do Pico, foi aproveitada para justificar as medidas tomadas e para tornar os vo luntrios indispensveis, enviando uma fora quela vila que resta belecero a boa ordem, e dero hum castigo exemplar aos culpados, diz a notcia j citada. Contudo, o excesso de zelo do coronel Marinho, de rigorosa dis ciplina, desgostou os voluntrios, que se rebelaram, abandonando o aquartelamento e obrigando o coronel a conformarse e a desistir, re gressando a Angra em Dezembro desse ano22. Enfim, o que interessa nestas trs passagens o fio condutor co mum do plano usado pelos radicais para consolidarem o seu poder atravs dos batalhes cvicos. Na Terceira, o governador das armas foi tambm acusado pelos radicais de colaboracionismo com os rebeldes e com os miguelistas. Conseguiram expulslo da ilha, em 24 de Agosto de 1832, enviandoo para o Porto com o libelo de traidor, coisa que D. Pedro no acre ditou agora em relao a Vasconcelos e s como no acreditara em relao a Florncio da silva. substituram interinamente o governa dor das armas pelo coronel de cavalaria23 Pedro de sousa Canavarro (17711836), at ento governador militar de Angra e dos seus fortes, ele prprio bom primo na barraca da Carbonria de Angra e evi dentemente simptico aos radicais, que assim imperavam por todo o arquiplago. Em finais do ano de 1832, o governo, ainda fraco, cujo ministro de guerra era Agostinho Jos Freire, decidiuse finalmente a reagir e a ten tar restabelecer a ordem nas ilhas, optando por reforar os poderes do prefeito da provncia, que at ento assistia impotente ao que se pas sava. Era prefeito o brigadeiro24 Francisco saraiva da Costa Refoios

22 A.L. da silveira Macedo, Histria das Quatro Ilhas Que Formam o Distrito da Horta, vol. ii, Angra do Herosmo, 2. ed, sREC, 1981, pp. 12425. 23 Enciclopdia; Generais, vol. iii, tomo i, p. 257. 24 Enciclopdia; Generais, vol. iii, tomo i, p. 162; Dicionrio, vol. iii, p. 425.

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que, por decreto25 de 05/12/1832, passou a acumular as funes de go vernador das armas dos Aores, o que parece ter conseguido impor uma certa moderao, ainda que no tenha tido fora suficiente para alterar os comandos subalternos. Contudo, expulsou das ilhas o co ronel Marinho, seu inimigo feroz, que se havia deslocado a s. Mi guel e foi acusado de promover a uma desobedincia formal contra a ordem do prefeito numa questo de administrao civil relacionada com a sede do Tribunal da Relao. saiu tambm dos Aores o coronel Canavarro, fazendo diminuir a presso da Carbonria, que perdeu dois membros importantes. Com a melhoria da situao militar no continente, com as suces sivas vitrias do Exrcito Libertador e por fim com a conquista de Lisboa, o governo tinha possibilidades de atender periferia. Mudou de tctica, decidindo no s alterar a orgnica administrativa, dando resposta s aspiraes micaelenses, dividindo o arquiplago em duas provncias (D. 28/06/1833), mas aproveitando para incluir os Aores, como ilhas adjacentes, na organizao metropolitana do Exrcito. Esse mesmo decreto criava a diviso dos Aores, com quartelgeneral em Angra, comandado por um oficialgeneral, com a misso de or ganizar a guarnio das ilhas, refazer a dignidade do Exrcito e dos seus comandantes, extinguir os batalhes cvicos e criar as Guardas Nacionais. Terminava assim um ciclo da histria do Exrcito nos Aores.

25 A.L. da silveira Macedo, op. cit., vol. ii, doc. 66, pp. 51516.

Hintze Ribeiro e a sua pocaV alentim AlexandreA importncia histrica de Hintze Ribeiro pode medirse, an tes de mais, em termos puramente quantitativos: deputado de 1879 a 1881, par do Reino a partir de 1886, foi ministro cerca de quinze anos, mais de oito como presidente do Conselho nas suas pr prias palavras, proferidas em discurso na Cmara dos Pares, a 6 de Novembro de 1906, no qual fez o balano da sua vida poltica. Durante este longo tempo, passaram pelas suas mos algumas das mais candentes questes do ltimo perodo da monarquia constitucional. Lembraremos aqui trs delas, que marcaram o re gime nesta sua derradeira fase: a dos melhoramentos materiais, a seu cargo na condio de ministro das Obras Pblicas, de 1881 a 1883; a das finanas, que geriu como ministro da Fazenda, de 1883 a 1886, e de novo, em acumulao com a presidncia do Conselho de Ministros, de 1893 a 1897; e a do imprio, com que se defron tou, na sua vertente diplomtica, em 1890, logo aps o ultimatum britnico, na qualidade de ministro dos Negcios Estrangeiros. so trs questes paradigmticas, que marcam profundamente o destino poltico de Hintze Ribeiro como marcam o prprio regime que serviu.

A poltica dos melhoramentos materiais: Hintze e a salamancada bem conhecida a importncia central da poltica dos melhora mentos materiais (traduo directa da expresso usada pelo econo mista francs Michel Chevalier, de fundo sain