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Livro - Ater Indígena

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Presidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministro de Estado do Desenvolvimento AgrárioGuilherme Cassel

Secretário Executivo do Ministério do Desenvolvimento AgrárioDaniel Maia

Presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma AgráriaRolf Hackbart

Secretário de Agricultura FamiliarAdoniram Sanches Peraci

Diretor do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento RuralJoaquim Calheiros Soriano

Diretor do Departamento de Assistência Técnica e Extensão RuralArgileu Martins

Coordenador de Formação de Agentes de ATER e Projetos EspeciaisFrancisco Roberto Caporal

Equipe do Núcleo de ATER IndigenistaAndré Araujo, Sílvia Ferrari e Ruth Henrique

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André Luis de O. Araujo & Ricardo Verdum (orgs.)

Experiências de Assistência Técnica e Extensão Rural junto aos Povos Indígenas: O

Desafio da Interculturalidade

MDABrasília, DF

2010

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2010 dos autores

Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA Secretaria da Agricultura Familiar – SAF Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural – DATER

1ª Edição Tiragem: 1.500 exemplares

É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que não seja para venda ou qualquer fim comercial.

Os autores são unicamente responsáveis pelo conteúdo dos artigos, os quais podem não necessariamente refletir a visão ou opinião oficial do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

A versão eletrônica desta obra é ilustrada com fotos sobre os projetos, enviadas pelos autores, e está disponível no site do Ministério do Desenvolvimento Agrário para acesso gratuito.

Site: www.mda.gov.br

Organizadores: André Araujo & Ricardo VerdumImagens da Capa: André AraujoArte da Capa: Allan de Oliveira AraujoDiagramação: Pedro LimaRevisão: André Araujo

c

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E96 Experiências de Assistência Técnica e Extensão Rural junto

aos Povos Indígenas: O Desafio da Interculturalidade / organizado por

Ricardo Verdum; André Araujo. Brasília, DF: NEAD / SAF, 2010.

334 p. : il. ; color. ; 24 cm ; (NEAD Experiências)

ISBN: 978-85-60548-73-6

1. Assistência técnica e extensão rural. 2. Políticas públicas - Brasil.

3. Povos indígenas- Brasil. 4. Interculturalidade. I. Verdum, Ricardo

(Org.). II. Araújo, André (Org.). III. Série.

CDD: 631.981

CDU: 631.5(81)

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SUMÁRIO

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Apresentação Adoniran Sanches Peraci

Breve Esboço do Indigenismo à Brasileira e o Desafio da Interculturalidade Ricardo Verdum

Contribuições a uma Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) Indigenista André Luis de Oliveira Araújo

A Experiência de Assistência Técnica e Extensão Rural junto aos Povos Indígenas: uma Visão do Gestor da Política Sílvia Helena de Souza Ferrari

Reinventando Tradições em busca de Soberania Alimentar Dinah Rodrigues Borges

Francisco Ralph Martins da Rocha

Capacitação dos Agricultores e Agricultoras Xavante no Uso e Conservação da Agrobiodiversidade no Cerrado Hiparidi D. Top’ Tiro

Maria Lucia C. Gomide

Daniela Lima

Manejo Sustentável: Uma Questão de Sobrevivência Marcio José Alvim do Nascimento

Assistência Técnica e Extensão Rural na Comunidade Indígena Tupinambá de Serra do Padeiro: Experiência, Desafios e Possibilidades da Capacitação sob a Ótica Agroecológica Aurélio José Antunes de Carvalho

Carla Teresa dos Santos Marques

Erasto Viana Silva Gama

Marta Timon Frias

Miana Barbosa

Magnólia Jesus da Silva

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Execução e Gestão de Projetos Indígenas: Ater Indígena no Semiárido Brasileiro, Território Indígena Pankararé, Raso da Catarina, Bahia Marina S. de Castro

Lílian S. Barreto

Lilane S. Rêgo

Maria de Fatima B. Dantas

Miguel Ângelo da S. Colaço

Felipe O. Nunes

Camila O. Nunes

Amia Carina Spineli

Espaço de Revitalização da Cultura na Promoção da Saúde: Uma Experiência em ATER na TI Guarita Noeli Teresinha Falcade

Sandro Luckmann

Limites e Possibilidades de Articulação das Políticas Públicas de Agricultura com o Sistema Agrícola Guarani Ledson Kurtz de Almeida

Jean Carlos de Andrade Medeiros

Caxêkwyj : Educação Agroambiental na Terra Indígena Krahô Carlos Antônio Bezerra Salgado

É Possível Construir uma Ater Indígena Diferenciada? - O Caso dos Guarani no Estado do Rio Grande do SulMariana de Andrade Soares

Fortalecimento dos Laços de Coesão Social como Efeito da Produção de Alimento na Aldeia Indígena Guarani Yynn Moroti WheráWagner Fernandes de Aquino

ANEXO: Projetos apoiados entre 2004 e 2009

200

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APRESENTAÇÃOAdoniram Sanches Peraci

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A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 13 de setembro de 2007, contém um conjunto de princípios e normas que reconhece e estabelece internacionalmente os direitos fundamentais indígenas. Colocando a promoção dos direitos dos povos indígenas como um desafio prioritário ao conjunto dos Estados e sociedades nacionais. Na Declaração, busca-se eliminar progressivamente a discriminação, os preconceitos e a exclusão de que são vítimas.

No Artigo 20 da Declaração é dito que os povos indígenas têm o direito de manter e desenvolver seus sistemas ou instituições políticas, econômicas e sociais, para terem assegurados o aproveitamento de seus próprios meios de subsistência e desenvolvimento e se dedicarem livremente a todas as suas atividades econômicas tradicionais e de outro tipo.

Mais à frente, o Artigo 26 dispõe que os povos indígenas têm o direito de possuir, utilizar e controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional ou de outra forma tradicional de ocupação ou utilização, assim como aquelas que tenham adquirido de outra forma, cabendo ao Estado assegurar reconhecimento e proteção. Por fim, destacamos da Declaração que aos povos indígenas deve ser reconhecido e garantido o direito à conservação e proteção do meio ambiente e da capacidade produtiva das suas terras ou territórios e recursos, cabendo ao Estado estabelecer e executar (com a participação dos povos indígenas, por meio das suas instituições) programas de assistência para assegurar essa conservação e proteção.

É com base no estabelecido na Declaração das Nações Unidas, que se complementa com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais (1989), e no estabelecido na nossa Constituição de 1988, que buscamos orientar a atuação da Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), e consequentemente a preparação desta obra.

Ao longo dos últimos cinco anos o MDA financiou projetos de assistência técnica para povos indígenas. Estes projetos foram propostos e implementados por órgãos governamentais e organizações não governamentais: prefeituras,

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associações indígenas, organizações indigenistas, ambientalistas, e por empresas estaduais de ATER. De caráter nacional, o apoio a estes projetos configura-se como um esforço de implementar a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER) junto aos povos indígenas do país.

Ainda que alguns projetos não tenham alcançado o sucesso inicialmente almejado por seus proponentes e executores, partimos do princípio de que todos têm aprendizados e várias lições a serem extraídas e transmitidas para outras pessoas, comunidades e instituições, aprimorando futuras iniciativas. Em vista disto, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) – por intermédio do núcleo de Assistência Técnica e Extensão Rural Indigenista da Secretaria da Agricultura Familiar (SAF) – selecionou através de uma Chamada Pública propostas de artigos que proponham uma reflexão sobre as práticas, os aprendizados e as lições geradas a partir da execução dos projetos apoiados pelo MDA.

O objetivo da Chamada de Artigos de ATER Indígena foi estimular uma reflexão crítica sobre a ação de assistência técnica e extensão rural desenvolvida pelos parceiros do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) junto a diferentes povos indígenas. Valorizando a produção escrita de indígenas, indigenistas, organizações, aliados e demais colaboradores. Visa também colocar as lições, os aprendizados e as reflexões sobre a prática indigenista, gerados a partir destas iniciativas, à disposição do público em geral.

Para o MDA, a sistematização destas reflexões é oportuna para aprofundar e qualificar as especificidades do trabalho com povos indígenas. Permitindo a reunião de subsídios e argumentos para constantes aperfeiçoamentos na forma de viabilizar as experiências de assistência técnica, incluindo diretrizes, metodologias, critérios, procedimentos, formas de funcionamento, etc.

Das propostas de artigos pré-selecionadas a partir da Chamada, dez artigos chegaram até a etapa final, estando aptos a serem publicados. A eles foram somados outros três artigos com propósito de ampliar a escala de análise e aprofundar a discussão mais conceitual e operacional da Ação prevista em Plano Pruri Anual, “ATER em Áreas Indígenas”.

Nossa avaliação é de que esta publicação se configura como uma

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referência muito interessante em vários aspectos, a começar pela proposta e pelo conteúdo que traz. Embora existam outras iniciativas na esfera pública brasileira de assessoramento técnico e financeiro ao desenvolvimento social, cultural e econômico dos povos indígenas, é no âmbito da ATER que essas inciativas de assessoramento chegam mais próximo da configuração de uma Política Pública.

De forma que é positivo que a construção dessa política esteja sempre assentada na reflexão e crítica dos aprendizados por ela gerados, buscando seu aprimoramento. Importante mencionar que dificuldades oriundas da operacionalização administrativa dos projetos, enunciadas em alguns artigos desta obra, são compartilhadas por um coletivo ainda maior de parceiros e gestores e, foram referência para a elaboração do novo marco legal da ATER, viabilizada por meio da Lei Nº 12.188, de 11 de janeiro de 2010 que institui a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária e o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária.

Nossa expectativa é que essa publicação, ao buscar descrever e interpretar o que foi feito, por quem e como; seja capaz de fornecer ao leitor elementos que viabilizam ou dificultam uma dada experiência em ATER indígena; trata-se de uma discussão que vai além do cumprimento ou não do objeto pactuado em contrato. A reação dos diferentes atores envolvidos na experiência (técnicos, lideranças indígenas, comunidade, etc.) aos desafios de ordem técnica, econômica, social, política e/ou cultural, por exemplo, é uma ótima fonte para reflexões.

Importa-nos saber como foram (e são) tratadas as questões que derivam das peculiaridades do encontro intercultural no contexto dos projetos, em suas diferentes etapas – no processo de diagnóstico, nas tomadas de decisão, definição sobre o que e como fazer, na execução das atividades, o monitoramento e avaliação das ações pelas comunidades, etc. Como a maneira de trabalhar a assistência técnica e a extensão rural teve que se adaptar ao modo de ser, ou ao ethos do público alvo. Importa-nos saber também como é possível apoiar as iniciativas de fortalecimento dos conhecimentos tradicionais relacionados às atividades produtivas, e como podem ser introduzidos novos conhecimentos e desenvolvidas

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novas habilidades entre a população indígena. Avaliando (auto)criticamente os resultados alcançados e sustentação no médio e longo prazo. Além de outras questões e aspectos considerados relevantes pelos autores dos artigos que podem continuar a ser destacados e problematizados.

Desejamos uma boa leitura,

ADONIRAM SANCHES PERACI

Secretário de Agricultura Familiar do MDA

Brasília-DF, 30 de outubro de 2010

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Breve Esboço do Indigenismo à Brasileira e o Desafio da Interculturalidade

Ricardo Verdum

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Breve Esboço do Indigenismo à Brasileira e o Desafio da Interculturalidade

Ricardo Verdum1

O indigenismo tem sido considerado um dos principais e mais originais movimentos culturais surgidos nas primeiras décadas do século XX na América Latina, com impactos nos campos literário, artístico, filosófico e político que se estendem até nossos dias. De uma perspectiva mais ampla, nos parece possível considerar o indigenismo como uma “invenção cultural”; como um ambiente cultural forjado, em grande medida, por setores intelectualizados das elites regionais que buscavam, de um lado, criar uma personalidade coletiva própria e diferenciada dos valores e princípios de racionalidade originários e importados do Velho Mundo; e de outro, dar conta de uma questão fundamental, principalmente nos países onde havia um grande contingente populacional de origem indígena: qual o lugar destinado a estas populações no projeto republicano no Novo Mundo?

O indigenismo, enquanto movimento sociocultural com características próprias, surge num contexto de crise de legitimidade dos modelos culturais racionalistas de origem europeia. Ao mesmo tempo, recebe a influência de movimentos culturais europeus que almejam preservar e resgatar valores que, sentia-se, estavam se perdendo no Velho Mundo em decorrência do avanço do processo de urbanização e industrialização nas grandes metrópoles. Segundo Eduardo Devés Valdés (2000), o denominado pensamento latino-americano oscilava nos séculos XIX e XX entre dois eixos: de um lado o afã modernizador, de outro a busca de uma identidade nacional e regional própria.

O século XX inicia com uma predominância do que Devés Valdés

1 Doutor em Antropologia Social pelo CEPPAC - Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas, Universidade de Brasília, é assessor de políticas socioambientais no INESC - Instituto de Estudos Socioeconômicos, em Brasília. [email protected]

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(2000) chamou de “eixo identitário”, que se estendeu até os anos quarenta. Nesse período se desenvolvem as três principais correntes de caráter identitário: uma mais culturalista, que predomina nas duas primeiras décadas; uma segunda, ao longo dos anos vinte, marcada por preocupações sociais; e uma terceira, entre os anos trinta e quarenta, com um viés mais econômico, que de certa forma prepara as bases para a onda modernizadora que passaria a predominar principalmente nos anos cinquenta.

Não obstante a importância das três correntes da “onda identitária”, a social foi a que teve maior destaque e projeção entre as elites intelectuais latino-americanas, particularmente no México e no Peru, onde predominou nos setores urbanos e rurais mais politizados sob influência das correntes libertário-anarquista e socialista. É nestes países que, durante o período 1915-1930, se produz um conjunto de escritos que reivindica o próprio do continente, o “indígena”, como marca cultural diferencial da região em relação aos mundos europeu e norte-americano anglo-saxão.

O indigenismo social entendido como uma política social dirigida à população indígena teve seu apogeu na América Latina entre as décadas de 1920 e 1970. Sua principal inspiração foi sem sombra de dúvida o processo Revolucionário e Pós-Revolucionário Mexicano, que constituíram numa referência para vários governos. Oriundo do contexto político mexicano das primeiras décadas do século XX, esse indigenismo passou por um processo inicial de descontextualização, migrando e disseminando-se por praticamente toda a América Latina. Vários conceitos, objetivos e estratégias ali desenvolvidos transformaram-se em referência e espelho na formulação de políticas indigenistas tanto nacionais quanto transnacionais2.

Como conjunto de saberes e modos de exercício do poder, o indigenismo social assume a forma de uma ideologia administrativa que estrutura a política estatal destinada a integrar os povos indígenas na formação de um Estado republicano uninacional; também está na origem

2 Sobre as várias faces ou modalidades de indigenismo ver Bretón (2000); Díaz-Polanco (1991); Favre (1998); Souza Lima (2002); Verdum (2006).

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da formação de verdadeiras tradições antropológicas nacionais no século XX. Souza Lima (2002) chama atenção para o papel de destaque que os antropólogos aí desempenharam, participando e apoiando na formulação da política indigenista dos Estados, no exercício concreto de seus poderes, na criação de canais de comunicação entre os diferentes indigenismos e políticas indigenistas dos Estados e na estruturação de um aparato político-administrativo transnacional a partir dos anos 19403.

O Indigenismo à Brasileira e suas Conexões

No Brasil, o indigenismo tem sua história fundada na chamada tradição sertanista4, que vai se cruzar com o indigenismo mexicano nos anos 1950, que por essa época estava em acelerado processo de expansão na América Latina via organizações multilaterais. No contexto do indigenismo à brasileira, o sertanista torna-se o personagem chave, o especialista que domina as técnicas de atração e de pacificação dos indígenas arredios, que detém os conhecimentos necessários para atraí-los, pacificá-los e induzi-los a caminhar no sentido da civilização e do interesse nacional5.

3 No uso dos termos indigenismo e política indigenista tomei como referência inicial a distinção estabelecida por Souza Lima (1995: 14-15). Para ele, o termo indigenismo se refere ao conjunto de ideias e ideais relativo à inserção de povos indígenas em sociedades subsumidas a Estados nacionais, com ênfase especial na formulação de métodos para o tratamento das populações originárias, operados segundo uma definição do que seja índio. Já política indigenista refere-se às “medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas”. Ainda que se possa dizer que as políticas indigenistas de organizações não-governamentais (ONGs), instituições religiosas e organismos multilaterais (BIRD e BID, por exemplo) se orientam de modo geral pela noção do Estado como ente “responsável”, em última instância, pela proteção e promoção dos povos indígenas situados no território sob seu domínio, esses agentes também formulam e implementam políticas de natureza indigenista, o que nos leva a pensar que essa definição de Souza Lima deva ser revisada considerando os múltiplos contextos empíricos em que se manifesta tal política. Minha percepção é de que há muito, ainda, a ser pesquisado sobre os indigenismos e às políticas indigenistas para-estatais, em especial no Brasil.4 Convenção utilizada no uso de aspas e de itálico: quando alguma palavra estiver entre aspas, isso indica que é um termo de significado ambíguo ou problemático, sendo utilizada essa convenção, no mais das vezes, para ressaltar esse aspecto ou pela falta de outro termo mais adequado; as aspas também são utilizadas para marcar uma citação, geralmente formada por mais do que uma palavra; o uso de itálico foi adotado para indicar tratar-se de uma categoria nativa, ou seja, utilizada pelas pessoas e grupos sociais integrantes do campo indigenista ou da assistência técnica rural.5 Cf. Freire (2005, 2008)

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A institucionalização do indigenismo brasileiro tem início com a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 20 de junho de 1910, no âmbito do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio - Decreto 8.072/1910. A criação do SPILTN significou, entre outras coisas, o início do projeto republicano de substituir a catequese religiosa, como forma de incorporar os indígenas no “processo civilizatório” e engajá-los nas estratégias de promoção do “progresso nacional”, pela “proteção leiga do Estado”. Sobre este período, ver Gagliardi (1989).

Em janeiro de 1918, em meio à pressão política de setores anti-indígenas, e também da Igreja Católica, que perdia espaço e poder na “administração dos índios”, o SPILTN foi dividido. O setor que cuidava da localização de trabalhadores nacionais foi deslocado para o Serviço de Povoamento do Solo, ficando constituído o Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Não que o projeto de integração dos indígenas à sociedade nacional já não estivesse em curso, mas em abril de 1936, por ocasião da assinatura do Decreto no 736/36, esta perspectiva se explicita claramente. Este decreto estabelece o novo Regulamento do Serviço de Proteção aos Índios que inclui “a nacionalização dos silvícolas, com o objetivo de sua incorporação à sociedade brasileira” (letra “b” do art. 1º). Para isso, são previstas “medidas” e “ensinamentos” destinados a incorporá-los “economicamente produtivos, independentes e educados para o cumprimento de todos os deveres cívicos”; isso inclui, entre outras coisas, “ensinos de aplicação agrícola ou pecuária”. No livro recentemente publicado por Antônio Carlos de Souza Lima (2009), que traz a legislação relativa à política indigenista brasileira de 1910 a 1967, é possível evidenciar que, do ponto de vista normativo, a política de “extensão” agrícola e a escolarização dos indígenas estavam no centro da estratégia do Estado de integração das comunidades indígenas6.

6 A resenha de teses e livros sobre educação escolar indígena no Brasil no período de 1975-1995, de autoria de Marta Valéria Capacla (1995), é uma boa fonte de referência para pesquisas sobre o papel das escolas nas aldeias indígenas, que em regiões como no estado de Santa Cataria remonta a década dos anos 1940; ou na Terra Indígena Uaça, no hoje estado do Amapá, nos anos 1930. Segundo Gersem Luciano (2007), além das escolas missionárias, o SPI organizou 66 “escolas indígenas” até 1954, que se caracterizavam fundamentalmente por apresentar currículos e regimentos idênticos aos das escolas rurais, incorporando rudimentos de alfabetização em português, além de atividades de aprendizagem de ofícios (corte e costura e marcenaria, entre outros).

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Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), o SPI passou sucessivamente por três ministérios e teve sua legislação diversas vezes alterada. Três anos após a constituição do SPI, em novembro de 1939, às vésperas da “Grande Marcha para o Oeste”7, foi criado o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), com a função de “assessorar” o SPI no exercício da sua função de “assistência e proteção aos índios”. Foram criados, em 1942, a Seção de Estudos do órgão e, em 1954, o Museu do Índio/RJ. Foram também estabelecidas parcerias e intercâmbios acadêmicos e profissionais com o Museu Nacional/RJ e a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Para custear as pesquisas de campo, nos anos 1950 o SPI estabeleceu convênios com a UNESCO, que por esta época estava presente em outros países sul-americano, comprometida com o desenvolvimento das respectivas políticas indigenistas nacionais e a implementação de uma estratégia política de abrangência regional, a denominada Missão Andina8.

Além de planos e estratégias conjuntas para “modernizar” a atuação e o aparato político-administrativo do indigenismo oficial brasileiro, os etnólogos e os sertanistas do CNPI mantinham, por intermédio do Instituto Indigenista Interamericano (I.I.I.), contatos com o indigenismo interamericano então dominado pelos mexicanos. A partir desses contatos a categoria indigenismo efetivamente passaria a fazer sentido no Brasil. Desde então começam a ser introduzidas no órgão tutelar brasileiro as teorias e as práticas elaboradas pelo indigenismo mexicano. A partir dos anos 1940, o Brasil adota algumas das deliberações do indigenismo continental, como a comemoração do dia 19 de abril como Dia do Índio, instituído no Brasil por Getúlio Vargas, por intermédio do Decreto-Lei n. 5.540, de 02 de junho de 1943.

Demorou mais dez anos para que o Brasil se vinculasse oficialmente ao Instituto Indigenista Interamericano. Foi em 1953, quando o Congresso

7 Cf. Garfield (2000).8 Cf. Verdum (2006: 46-70).

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Nacional aprovou a convenção sobre o I.I.I. (Diário do Congresso Nacional de 23/07/1953), após esse tornar-se um organismo especializado da Organização dos Estados Americanos (OEA). No ano seguinte uma delegação dos órgãos do indigenismo à brasileira participou pela primeira vez de um Congresso Indigenista organizado pelo Instituto. Realizado na Bolívia, a delegação brasileira era composta pelo então diretor do SPI José Maria da Gama Malcher e dois técnicos integrantes da Seção de Estudos do órgão, um dos quais o etnólogo Roberto Cardoso de Oliveira9.

Entre a segunda metade da década de 1950 e os primeiros anos da década seguinte a noção de “desenvolvimento sócio-econômico integral” aparece no centro da pauta dos governos nacionais e dos organismos internacionais no Continente Americano. Segundo Leon-Portilla, então diretor do Instituto Indigenista Interamericano: “Pode se afirmar que em todo o mundo, e de maneira muito especial no âmbito americano, se concede cada vez mais atenção aos programas e projetos de desenvolvimento comunitário, assim como ao adestramento de pessoal técnico de desenvolvimento, com vistas a lograr o objetivo de colocar em marcha os planos nacionais de desenvolvimento nos respectivos países” (1962:05). Leon-Portilla está fazendo referência à Primeira Reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social, celebrada na Cidade do México, em outubro de 1962. No primeiro ponto da resolução aprovada em 16 de outubro, recomenda-se que os governos dos Estados membros promovam programas nacionais, regionais e locais de desenvolvimento integral das comunidades, inclusive indígenas, tentando lograr a participação ativa e consciente da população na sua execução, especialmente nos campo da reforma agrária, moradia, saúde pública, cooperativas, escolas, biblioteca, estradas, serviços públicos e educação da comunidade. Em uma mesa redonda organizada pelo Banco Interamericano de

9 O I.I.I. atuava como agência de articulação, intercâmbio e fomento das agências indigenistas nacionais; além de congressos, promove a realização de cursos de formação e capacitação, a publicação de estudos e trabalhos de pesquisa, especialmente da produção gerada pela antropologia aplicada, a organização de reuniões e oficinas de avaliação de projetos e programas específicos, a articulação com outras agências dos sistemas OEA e ONU, entre outras atividades. Ver Freire (2000); Oliveira Filho & Souza Lima (1983).

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Desenvolvimento (BID) em 1966, para debater a teoria e a prática do “desarrollo de la comunidad”, Gonzalo Aguirre Beltrán, então diretor do Instituto Indigenista Interamericano, explicita suas posições, deixando visível sua compreensão sobre a importância da intervenção técnica dos cientistas sociais nos rincões de pobreza, onde estariam alojadas as populações indígenas, e o papel complementar dessas populações na aplicação do modelo:

(...) uma tendência dos planos de desenvolvimento é deixar fora os setores pré-industriais da população, acentuando a distância que os separa dos mais desenvolvidos. Esta situação de sociedade dual exige uma solução rápida e efetiva e um corpo teórico que explique o processo; deve, portanto, ter uma solução integral que inclua a participação da população envolvida na mesma. México, estruturado como sociedade dual, deu ao problema soluções isoladas, com a característica de que estes ensaios foram de índole unilateral. O resultado destas experiências permitiu aos cientistas sociais elaborar um conjunto unificado de ideias e práticas, que recebe a designação de ação integral e que constitui a teoria que deu forma às agências de melhoramento e integração, chamadas Centros Coordenadores. Esta é a versão mexicana de projetos de desenvolvimento da comunidade para regiões chamadas de refúgio, porque nelas persistem estruturas coloniais e arcaicas. (In America Indígena, (1968) Vol. XXVIII, No. 1, pp. 295-296).

A implementação da política de integração indígena avança também no registro e sistematização de informações sobre a “população alvo”. A primeira iniciativa de consolidação de dados demográficos, de distribuição geográfica, de “ocupação”, de legislação, e da atuação dos organismos indigenistas nacionais e outras organizações, abrangendo a totalidade dos países do continente onde se identificava a presença de indígenas, aparece em dezembro de 1961, em um número especial do Boletim Indigenista, órgão de divulgação oficial do Instituto Indigenista Interamericano. Trata-se do Guía de la Población Indígena de América, que traz “dados recentes obtidos de fontes de primeira mão”. Segundo o editorial da revista (1961:

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170), os dados permitiriam tomar consciência da magnitude do problema indígena no continente e da necessidade de uma ação coordenada muito mais ampla, que permita realizar efetivamente “o desenvolvimento socioeconômico destes milhões de indígenas”.

Em dezembro de 1962, agora como Anuário Indigenista, nome que se manteria até os anos 2000, o Instituto lança o segundo Guía de la Población Indígena de América, com dados atualizados para o ano de 1960. Os dados oficiais da população indígena no Brasil para este ano apontam número aproximado de 99.700 indivíduos.

A “etapa romântica do indigenismo foi superada”, anuncia o editorial do volume XXIV do Anuário Indigenista de dezembro de 1964. Com base nas Ciências Sociais e, sobretudo, nos métodos e técnicas da Antropologia Social Aplicada, é dito que a teoria e a prática do indigenismo interamericano se constituíam numa realidade operante que se expandia pelo continente. O aparente entusiasmo dos seus promotores está sustentado na avaliação dos resultados alcançados no V Congresso Indigenista Interamericano, realizado em Quito, de 19 a 25 de outubro de 1964. Esse congresso teve um enfoque eminentemente técnico-científico e de avaliação do corpus doutrinal e da prática do indigenismo no que se refere ao desenvolvimento socioeconômico indígena, ao treinamento de pessoal, aos problemas sanitários e educacionais, ao fomento e proteção do artesanato, etc. A julgar pelos relatos, análises e avaliações do período, está se passando por um dos momentos áureos do indigenismo integracionista; um momento quando se crê possível e viável levar a termo o objetivo da promoção do “desenvolvimento econômico e social dos indígenas”, não mais como um sonho, mas como uma realidade palpável, com base nos conhecimentos, métodos e técnicas da moderna Ciência Social.

Por intermédio do Projeto 208 do Programa de Cooperação Técnica, envolvendo o Instituto Indigenista Interamericano e o Departamento de Assuntos Sociais da OEA, são colocados em funcionamento no México e Bolívia centros de formação de “pessoal em técnicas de desenvolvimento

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da comunidade indígena”. A finalidade do Projeto é treinar o maior número possível de profissionais (agrônomos, médicos, educadores, etc.) nas técnicas da antropologia social aplicada e do desenvolvimento comunitário: “para que possam aplicar de forma adequada seus conhecimentos em áreas em que se conservam elevados os percentuais de traços e instituições culturais indígenas” (editorial do Anuário Indigenista, 1964, XXIV: 3).

A crítica de Guillermo Bonfil Batalla ao “conservadorismo” do pensamento reinante na Antropologia Aplicada e o problema do “dualismo ético” e do “dualismo nas formas de desenvolvimento” assinalado por Richard Adams, identificados por Enrique Valencia em 1968, se amplifica na década de 1970 com a crítica à postura paternalista e assistencial dominante no discurso e na prática do indigenismo dos governos dos Estados nacionais e à atuação de antropólogos e sociólogos nos projetos desenvolvimentistas10.

Ainda em 1971, antropólogos e indigenistas dissidentes do indigenismo integracionista, junto com alguns representantes de organizações indígenas latino-americanas, esforçam-se por traçar os princípios e métodos de um novo indigenismo. Esta nova corrente não deixa de colocar em discussão a intervenção dos governos, os interesses particulares, as investigações dos antropólogos e a ação dos missionários. Por ocasião do simpósio sobre conflitos interétnicos realizado em Barbados em janeiro de 1971, numerosos antropólogos, entre os quais G. Bonfil Batalla, G.C. Cardenas, M.Ch. Sardi, G. Grunberg, M.A. Bartolomé, Darcy Ribeiro e Stefano Varesa preparam um documento, a Declaração de Barbados. O documento tem um tom de denúncia. Declara que as populações indígenas das Américas permanecem em uma situação colonial de subordinação, e que a política indigenista adotada pelos governos latino-americanos está dirigida à destruição das culturas autóctones. Em 1978, realiza-se a 2ª Reunião de Barbados, onde os neo-indigenistas propõem, pela primeira vez, conceitos alternativos ao

10 Enrique Valencia faz parte do grupo auto-intitulado de “antropólogos críticos”, integrado por Arturo Warman, Margarida Nolasco, Guillermo Bonfil e Mercedes Oliveira.

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indigenismo integracionista, são eles: etnodesenvolvimento, diversidade cultural, pluralismo cultural e o etnocídio – ver Grupo de Barbados (1979).

De outro lado, os indígenas criticam os governos por estarem adotando modelos de desenvolvimento construídos a partir dos processos históricos vividos pelos países “já desenvolvidos”; por estarem reduzindo o conceito de desenvolvimento indígena à dimensão econômica e comunal. Criticam a estreiteza do discurso desenvolvimentista, que visualiza os indígenas ora como um “obstáculo” ora como “força de trabalho” a ser integrada e explorada no processo de ocupação territorial e geração de renda11.

No Brasil, o protecionismo e o assistencialismo foram seguidos de perto pelo produtivismo, configurando – como afirmaria Gagliardi (1989) e Souza Lima (1995) – a marca do sistema tutelar do indigenismo implementado sob a batuta do Estado nacional brasileiro. Na prática isso implicou, em grande medida, a introdução de mecanismos de controle e governabilidade da população nas comunidades locais; a criação e fortalecimento de hierarquias sócio-políticas locais; a criação e fortalecimento de diferenciações econômicas internas e intercomunitárias; a integração política e econômica das famílias e comunidades locais nos arranjos de poder e de mercado regional; e a liberalização dos territórios indígenas e recursos naturais ali existentes para a exploração comercial via arrendamento, exploração de florestas nativas por madeireiras, entre outras, estabelecendo o que Edgard de Assis Carvalho (1981: 17) chamou de “os nexos econômicos determinantes da participação indígena na sociedade nacional”.

Aos postos indígenas – dado o seu contato direto e cotidiano com a população – coube o papel de unidade responsável localmente

11 A importância que a chamada “renda indígena” teve na política indigenista governamental brasileira (SPI e FUNAI), e a relação de dominação e exploração a que foram sujeitos os índios por parte de funcionários do órgão tutor foram duramente criticadas nos anos setenta e oitenta. Em 1968, Roberto Cardoso de Oliveira já apontava criticamente os equívocos do modelo de “crescimento econômico dos grupos silvícolas” baseado em relações do tipo patrão-empregado.

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pela administração da população e pela gestão econômica do chamado patrimônio indígena. Envolver as famílias indígenas em atividades que proporcionassem algum tipo de renda – como a lavoura, a pecuária e o extrativismos madeireiro – era visto como uma atividade “educativa”, bem como um meio para viabilizar a sustentabilidade econômica das unidades e do sistema político-administrativo de proteção. Roberto Cardoso de Oliveira, em depoimento registrado em 2003 informou que quando a renda do patrimônio indígena foi criada pelo SPI nos anos 1950, ela era chamada internamente de dízimo, que denominava o percentual da produção indígena (e renda gerada) que ficava com a instituição.

Sobre a importância e a influência que tiveram ou possam ter tido as políticas e ações do sistema Extensão Rural nas políticas indigenistas do SPI e da FUNAI e no meio indígena há, ainda, um vazio enorme no campo do conhecimento a ser preenchido; um conhecimento de extrema importância inclusive no campo político, para colocar em questão habitus que persistem no tempo e que ainda são estruturantes do indigenismo e das políticas indigenistas no país. É importante lembrar que o SPI esteve vinculado ao Ministério da Agricultura em grande parte dos 56 anos de sua existência, e de forma contínua de 1939 a 1967, quando se estrutura e expande pelo país o Sistema de Extensão Rural. Além disso, a FUNAI esteve vinculada ao Ministério da Integração nos seus primeiros vinte e dois anos de existência.

É difícil deixar de supor que não tenha havido fluxos de ideias, estratégias, instrumentos, técnicas e pessoal, e que comunidades indígenas não tenham sido envolvidas em ações do extensionismo rural pelo Brasil a fora, que estava orientado pela ideia de promoção do desenvolvimento comunitário. Contribui para isso a lembrança que tenho de relatos de indígenas, de diferentes faixas etárias, do Nordeste e da Região Sul, e também na Amazônia, como Roraima, que em conversas nada estruturadas mencionaram ter participado de cursos formação e de capacitação em “escolas agrícolas” e “escolas agrotécnicas”; ou de visitas recebidas em

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suas aldeias ou locais de moradia de técnicos ligados a agências de extensão rural do estado ou da EMBRATER – Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural12.

Como é de conhecimento daqueles que vivenciaram ou conhecem a histórico do chamado Serviço de Extensão Rural no Brasil, nas décadas de 1950 e 1960 a temática “rural”, a “questão agrária” e a necessidade de “levar modernização e progresso aos agricultores” foi objeto de disputas conceituais e políticas entre diversos atores e agências sociais: movimentos e organizações de esquerda, especialmente o Partido Comunista; a Igreja Católica, com um viés marcadamente conservador; acadêmicos e funcionários ligados a órgãos estatais de promoção do desenvolvimento; agrônomos e técnicos agrícolas vinculados ao Estado ou a empresas agroindustriais; antropólogos e outros cientistas sociais, entre outros. Vêm desse período também as interpretações clássicas sobre campesinato no Brasil (Welch et al. 2009).

Não é demais lembrar que a primeira experiência de trabalho com extensão rural no país remonta ao ano de 1948, em Minas Gerais, com a criação da Associação da Associação de Crédito e Assistência Técnica Rural (ACAR). Ela foi criada sob o patrocínio da entidade chamada American International Association for Social Development (A.I.A.), do empresário norte-americano Nelson Rockfeller, então interessado em expandir sua Revolução Verde nos países latino-americanos, e com grande interesse na região Centro-Oeste. Sintonizado com o “Programa do Ponto IV” da Doutrina Truman (1949) – de “trabalhar para vencer a pobreza e o atraso dos latino-americanos” – fazia parte da política de extensão promovida pela ACAR e a A.I.A. fomentar, além do aumento da produtividade, mecanismos como o crédito rural, o associativismo e o cooperativismo, a sindicalização e um sistema de educação agrícola adequado aos objetivos de “modernização do campo”. Essa experiência piloto serviu de base para, em 1954, Juscelino

12 Reinaldo Lindolfo Lohn (2008) diz que no Brasil, desde a década de 1940, eram implementadas diversas ações do tipo “desenvolvimento de comunidades”, com as Campanhas de Educação Rural, Serviço Social Rural, Movimento de Educação de Base, entre outras. Sobre o ensino agrícola no Brasil ver Mendonça (2006).

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Kubitschek assinar um acordo de “cooperação técnico-financeira” com o governo norte-americano, que por sua vez deu origem ao Projeto Técnico de Agricultura (ETA), que tinha entre seus objetivos disseminar os princípios, critérios e instrumentos pelo país e coordenar as ações de extensão rural. No mesmo ano é criada a ANCAR (CE, PE, BA); no ano seguinte a ASCAR-RS e a ANCAR (RN, PB); em 1956, a ACARESC, e assim por diante. As demais ACAR foram sendo criadas em cada estado, totalizando 23 no ano de 1974. Ainda em 1956 foi criada a Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural – ABCAR, que substituiu o ETA, formando o então chamado Sistema ABCAR. No estado do Amazonas, a ASCAR foi criada em 196613.

O golpe militar de 1964 trouxe mudanças mantendo, no entanto, a orientação geral do aparato político-institucional do Estado nacional responsável pela “administração” dos assuntos indígenas. O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) tinha chegado aos anos 1960 imerso numa crise, derivada de problemas de má gestão, corrupção etc.. Em 5 de dezembro de 1967, por meio da Lei 5.371, o governo militar extinguiu esse órgão e criou, no seu lugar, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A constituição do novo órgão significou também a criação da chamada “renda anual do patrimônio indígena”, em que a dimensão econômico política da ação indigenista é renovada e fortalecida, e se institucionaliza a ideia de que os custos de manutenção do aparato burocrático, de pacificação e proteção dos indígenas, deveriam ser parcialmente custeados pela exploração e comercialização das terras e dos recursos naturais presentes nos territórios indígenas.

A partir dos anos 1970, o “saber indigenista” é um campo em disputa

13 Como não se trata aqui de detalhar o processo de instituição do Sistema Brasileiro de Extensão Rural (SBER), menciono somente mais dois fatos: que em julho de 1970 o governo federal criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA); e que em 1974 o SBER começa a ser estatizado por intermédio da Lei nº 6.126, de 06 de novembro, que autorizou o Poder Executivo a instituir a Empresa Brasileira de Assistência técnica e Extensão Rural (EMBRATER), vinculada ao Ministério da Agricultura, ao mesmo tempo em que promovia sua integração com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), autorizando-as a dar apoio financeiro e técnico às instituições estaduais oficiais de ATER e pesquisa agropecuária. Ver Lohn (2008); Oliveira (1999); Peixoto (2008).

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entre os que ficaram no órgão indigenista oficial, e aqueles que seguiram para ou surgiram de outros espaços de ação e formação: de instituições de ensino e pesquisa; de instituições ligadas à Igreja Católica; de organizações não governamentais (ONGs) nacionais e internacionais; de agências multilaterais e bilaterais de cooperação técnica e financeira no Brasil, entre outras (ver Cardoso de Oliveira 1988). Nesse momento o indigenismo interamericano fundado na tradição mexicana, assim como a chamada antropologia aplicada a ele associada estão em crise, particularmente pelo seu envolvimento com processos de colonialismo interno14.

No campo da política indigenista oficial, tivemos nos anos 1970 a “nova utopia indígena”, como denominou Betty Mindlin Lafer uma série de “projetos econômicos destinados a comunidades indígenas” (ver Junqueira & Carvalho 1981). Nos primeiro anos de existência da FUNAI, entre 1967 e 1973, no campo do chamado “desenvolvimento do patrimônio indígena”, além do prosseguimento dos arrendamentos de Terras Indígenas, foram implantados vários projetos de “desenvolvimento econômico” envolvendo o cultivo de soja e trigo, a bovinocultura, a rizicultura e a instalação de serrarias, todos no Sul do país.

A partir de 1973, orientado pelo objetivo da “integração progressiva e harmônica à comunhão nacional” definido no Estatuto do Índio (1973), o órgão indigenista oficial voltou-se para o Norte, acompanhado o “boom desenvolvimentista” que se volta de forma planejada para a região15. A “nova utopia” são os chamados projetos socioeconômicos ou de desenvolvimento comunitário, que acompanham o avanço da fronteira desenvolvimentista16.

Promover o “desenvolvimento econômico comunitário” é tomado, afirma-se, como meio para “emancipar” os indígenas da tutela do Estado, da pobreza e da situação de exploração da sua força de trabalho por terceiros. Segundo Joana Fernandes Silva (1982: 84), a FUNAI anuncia em 1979 que

14 Sobre a gênese sócio-histórica da noção de colonialismo interno e sua aplicação na etnologia brasileira ver Cardoso de Oliveira (1978); González Casanova (2007).15 Cf. Davis (1978); Leonel (1992).16 Cf. Almeida (2001); FUNAI (1975); Oliveira Filho (1979); Verdum (1996).

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está desenvolvendo 55 projetos agrícolas em todo o território nacional, contra 10 de 1973, abrangendo uma área de 11.9443 ha, com plantações de arroz, feijão, milho, café e soja, entre outros “produtos”. Ainda segundo Joana Fernandes, dentro desta linha de promover a integração e emancipação econômica dos indígenas, em 1980 o órgão indigenista anuncia 132 projetos em execução e uma produção esperada pela FUNAI e Ministério do Interior de 34.000 toneladas de arroz, feijão, soja e mandioca. José Gabriel Silveira Corrêa (2008) mapeia 70 projetos, planos e programas de “desenvolvimento indígena” entre 1970 e 1987, alguns de impacto local, outros de abrangência étnica e geográfica mais ampla, como: o Projeto Yanoama (1975); o Projeto de Emergência para as Comunidades do Alto Rio Negro (1976); o Projeto Parque Nacional do Xingu (1978); o Programa Grande Carajás (1982-1984); o Programa Alimentos (1982-1984), entre outros. O termo projeto já era então, anos 1970, parte do vocabulário indigenista oficial17.

A Constituição Federal brasileira de 1988 trouxe novos ares ao indigenismo nacional. Reafirma os direitos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam; a competência da União de demarcá-las e proteger e fazer respeitar todos os seus bens; o dever do Estado e o direito dos indígenas de serem consultados quando da execução de atividades de exploração de recursos naturais que impactem os seus territórios e população; e a competência civil dos indígenas, individual e coletivamente ingressar em juízo contra o Estado em defesa de seus direitos e interesses. Ao processo constitucional, que envolveu as chamadas entidades ou organizações de apoio e um conjunto de indígenas alçados à cena nacional na qualidade de representantes da indianidade genérica ou de grupos indígenas específicos, segue um período de efervescência organizativa no meio indígena, criando as bases do que veio a se constituir no movimento social organizado de povos indígenas, estruturado em diferentes níveis, do local ao nacional (Albert 1997, 1998, 2001; Athias 2002; Matos 1997; Ricardo 1996b).

17 Sobre a vinculação das ações de saúde da FUNAI com programas e projetos de desenvolvimento no período 1968-1988 ver Selau (1992).

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Ao mesmo tempo, entra em crise a hegemonia política, ideológica e administrativa da FUNAI sobre a gestão oficial da população e dos territórios e recursos naturais indígenas. Até o final dos anos 1980 a FUNAI era o espaço privilegiado da disputa sobre a administração dos “assuntos” e “problemas” indígenas; julgou-se por um período, que se estendeu até bem recente, que ali residiria a solução dos “problemas dos índios”. Dessa perspectiva, a FUNAI era vista e representada como um espaço de poder a ser tomado, ocupado e transformado num espaço “a serviço dos índios” (Cardoso de Oliveira, 1988). Os últimos 15 anos têm revelado, no entanto, que os processos são mais complexos e os resultados inseguros. Em 1991 algumas das suas funções passam a ser compartilhadas ou mesmo repassadas para outros órgãos da administração pública federal. Com a publicação dos Decretos número 23, 24, 25 e 26, de 04 de fevereiro de 1991, são repassadas respectivamente para os Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente, da Agricultura e da Educação ações da “política de assistência ao índio” que estavam até então sob a alçada da FUNAI executar e o poder de conceder a terceiros a co-responsabilidade pela implementação (Barroso-Hoffman et al. 2004; Ricardo 1996a, 2000; Souza Lima & Barroso-Hoffman 2002; Verdum 2003, 2005a, 2005b).

Esta é, em linhas bastante gerais, a narrativa que prevalece sobre o indigenismo no Brasil. Como no México e em boa parte da América Latina, o indigenismo à moda brasileira surge ligado ao projeto de expansão, integração e modernização do capitalismo do meio rural, onde a noção de desenvolvimento comunitário tem papel central no corpo de ideias, práticas e instituições voltadas para a incorporação econômica, política e cultural das sociedades indígenas aos projetos de “desenvolvimento nacional”.

Antônio Carlos de Souza Lima já indicava, em 1998, que a expressão projetos econômicos designa uma multiplicidade de formas de utilização do patrimônio indígena não estudada adequadamente até aquele momento (Souza Lima, 1998: 255). Apesar do tempo transcorrido, permanece o quadro de ausência de estudos e análises críticas desses processos que, de

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forma genérica, prefiro distinguir em dois tipos: de “desenvolvimento dos índios” e de “desenvolvimento indígena” – embora muitas vezes seja difícil estabelecer diferenças substantivas entre um e outro, especialmente no campo indigenista brasileiro18.

A publicação Povos Indígenas no Brasil, editada primeiramente pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), e depois pelo Instituto Socioambiental (ISA), é uma boa fonte de consulta e informações sobre “políticas de desenvolvimento” entre povos indígenas no Brasil (ver bibliografia). Ali são encontras inúmeras referências sobre projetos locais e programas de maior abrangência que surgem associados com os grandes projetos de infra-estrutura na Amazônia dos anos 1970-1990; iniciativas implementadas pela FUNAI, igrejas e ONGs em diferentes regiões do país; assim como iniciativas de projetos originados de entidades indígenas – são associações, cooperativas, organizações regionais que representam um esforço crescente de autodeterminação. Particularmente nos três últimos volumes, publicados respectivamente em 1996, 2000 e 2006, há inúmeras referências sobre as novas tendências discursivas e práticas do desenvolvimento, o dito sustentável, no meio indígena e indigenista governamental e não governamental, aos quais se associam e se estruturam novas modalidades do que poderíamos chamar de extensionismo indigenista multicultural. Como assinalado em outro lugar, são diversas as circunstâncias e demandas dos povos indígenas no tocante a controle território, gestão de recursos naturais e de apoio às atividades produtivas e de sustentabilidade alimentar (Verdum e Moreira, 2005), o que torna necessária uma maior abertura à participação e ao diálogo intercultural tanto no campo indigenista quanto dos extensionistas.

O Desafio da Interculturalidade

Na presente coletânea foram reunidos dez artigos nos quais os

18 Em 2003, Peter Schoder publicou um estudo sobre as economias indígenas na Amazônia Legal e as experiências de projetos concebidos em torno delas. Salvo engano, não há trabalho semelhante para outras regiões do país.

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autores compartilham suas reflexões sobre as práticas, os aprendizados e as lições geradas a partir da execução dos projetos apoiados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), por intermédio do núcleo de Assistência Técnica e Extensão Rural Indigenista da Secretaria da Agricultura Familiar (SAF). No período de 2004-2008 o MDA financiou projetos de assistência técnica para povos indígenas. Estes projetos foram propostos e implementados por órgãos governamentais e organizações não governamentais: prefeituras, associações indígenas, organizações indigenistas e ambientalistas e por empresas estaduais de ATER. De caráter nacional, o apoio a estes projetos se configurou como parte do esforço realizado pelo MDA para colocar em prática, junto aos povos indígenas, o estabelecido na Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER)19.

O objetivo que moveu a seleção dos artigos foi estimular a reflexão crítica da ação de assistência técnica e extensão rural desenvolvida pelos “parceiros” do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) junto a diferentes povos indígenas. Ao MDA, entendemos que a sistematização destas reflexões, com' base em experiências locais, é oportuna para aprofundar e qualificar as especificidades do seu trabalho com povos indígenas. Ela apresenta subsídios e argumentos para mudanças e refinamento na forma de viabilizar as experiências de assistência técnica, incluindo diretrizes, critérios, procedimentos, forma de financiamento etc. Cremos, também, que o conjunto dos artigos aporta elementos para desencadear dentro do MDA e nas empresas e agências estaduais de ATER um processo de discussão e o desenvolvimento de um sistema de ATER (com povos indígenas) bem mais amplo e ambicioso do que o existente.

Cremos que esta publicação também deverá interessar a um público mais amplo do que aquele que participa diretamente das ações de ATER do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Embora existam outras iniciativas na esfera pública brasileira de assessoramento técnico e financeiro

19 Sobre os antecedentes dessa política, ver Verdum (2005b).

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ao desenvolvimento social, cultural e econômico dos povos indígenas, pouco se tem refletido sobre o tema e menos ainda sido possibilitado que um público mais amplo possa conhecer e até aprender com as reflexões geradas20. Na nossa avaliação, os dez artigos de experiências locais de assistência técnica que integram esta publicação compõem um raro e interessante mosaico de situações, propostas e desafios para formulação de políticas, processos, projetos e práticas orientadas pelo conceito de interculturalidade.

Embora a discussão sobre interculturalidade não tenha sido colocada explicitamente aos executores dos projetos a partir do MDA, como o leitor poderá perceber os artigos refletem sobre as complexas relações, negociações e intercâmbios culturais ocorridos durante sua implementação e mesmo na fase de preparação; informam sobre a interação entre as pessoas, conhecimentos, práticas, lógicas e racionalidades; admitem e problematizam as assimetrias sociais, econômicas, políticas e de poder que caracterizam o contexto onde são desenvolvidas as experiências e apontam os constrangimentos institucionais que limitam e limitaram, em alguns casos, a possibilidade de maior protagonismo individual e coletivo indígena.

Abrindo a coletânea, temos o artigo de André Araújo, também organizador desta publicação, que se propõe a fazer uma discussão mais de fundo da política de ATER junto aos povos indígenas. Sua discussão inclui questões sobre como e em que medida a ATER nos moldes propostos atualmente pelo MDA pode se diferenciar das práticas indigenistas que tradicionalmente foram implementadas pelo Estado brasileiro, no passado e em certa medida no presente, a partir do órgão oficial responsável pela ação indigenista – o SPI – e especialmente, a partir de 1967, a FUNAI.

O autor apresenta uma relevante e necessária contextualização sobre o direito indígena a ATER, abordando a legislação vigente e as responsabilidades de diferentes esferas de governo. Por fim, propõe eixos

20 Cf. Inglez de Souza et al. (2007); Verdum (2002).

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norteadores para uma assistência inovadora nesse campo e as ações que considera devam ser priorizadas. Seu artigo reflete preocupações e anseios de uma pessoa que vive diretamente o desafio de gestar e gerenciar no dia a dia uma ação indigenista diferente daquela que critica.

Em seu artigo, Sílvia Ferrari apresenta um histórico dos processos que levaram à criação da ação de ATER em Terras Indígenas no MDA. Contribuiu para isso, lembra a autora, a mobilização social no ano de 2002, envolvendo pessoas e organizações governamentais e não governamentais, indígenas e não indígenas preocupadas com a situação de precariedade em que viviam vários povos e comunidades locais indígenas, inclusive do ponto de vista da sustentabilidade alimentar. A promoção de segurança alimentar e o etnodesenvolvimento eram então noções chave, sob as quais foram elencadas propostas integrando vários setores responsáveis por políticas públicas.

A estruturação da ação de ATER em 2003/2004 e as mudanças observadas desde estão e uma avaliação do período 2004-2009 são tratados por Sílvia de um ponto de vista particular, de quem vive, diretamente, o desafio de operacionalizar tal política com a almejada eficácia.

Dinah Rodrigues Borges e Francisco Ralph Martins da Rocha apresentam um balanço das transformações recentes na política e nas práticas de assistência técnica e extensão rural (ATER) do governo do estado do Acre, aos povos indígenas. A Extensão Indígena, como é denominada pelos autores, iniciou em 2001, como medida mitigadora e compensatória em Terras Indígenas “impactadas” pelo asfaltamento das rodovias BR 364 e 317. A noção de segurança alimentar e o propósito de assegurar aos indígenas uma “alimentação mínima e permitisse a subsistência dos povos indígenas” orientava, então, a atuação do estado, afirmam os autores. O apoio e incentivo à criação de galinha caipira, hortas domésticas, roçados etc., associados com a agrofloresta e o manejo da fauna silvestre foram as principais atividades introduzidas e potencializadas.

A partir dessa primeira experiência, e especialmente dos aprendizados

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extraídos dos resultados, alguns, pouco animadores, foi desenvolvida toda uma metodologia de planejamento e implementação. Os planos de ação são elaborados envolvendo a comunidade local na definição do que fazer e como fazer. Além da participação e do incentivo ao protagonismo da população, busca-se levar em consideração as especificidades socioculturais e ambientais locais.

Nessa nova estratégia de promoção do desenvolvimento local, orientado agora para a soberania alimentar, os agentes agroflorestais indígenas (AAFIs) desempenham um papel central. Fruto de uma experiência que surge e se desenvolve como parte da ação indigenista alternativa à FUNAI21, aos AAFIs é atribuído o papel de assistir tecnicamente às comunidades nas diferentes formas de manejo da fauna e flora locais e na implantação e cuidado dos sistemas agroflorestais e nas atividades de produção de alimentos.

Segundo os autores, aos agentes agroflorestais é dado mais do que uma atribuição técnica de assistência. Eles têm o importante papel político de estimular a coesão social e de ser o elo de comunicação entre a comunidade e as instituições governamentais e não governamentais envolvidos nessa política de “reinventar tradições em busca de soberania alimentar”.

Por fim, Dinah e Francisco chamam atenção para o papel e o poder simbólico das sementes tradicionais (entre os Jaminawá, Manchineri e outros povos indígenas no estado) e dizem por que elas são um importante elemento na estratégia do governo do Acre de promoção da soberania alimentar indígena. Valorizar as sementes tradicionais é valorizar os conhecimentos e as práticas indígenas de manejo e cultivo; é respeitar a lógica e as formas como ocupam e desfrutam dos territórios e dos recursos ali disponíveis; é valorizar as gerações passadas e futuras; é dar vida às histórias e aos relatos míticos desses povos. As sementes tradicionais são parte da sua identidade coletiva.

21 Cf. Vivan, Monte e Gavazzi (2002); Sena e Ochoa (2005).

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Ao relatar o projeto de capacitação dos Xavante no uso e conservação da agrobiodiversidade da Terra Indígena Sangradouro / Volta Grande, no estado do Mato Grosso, Hiparidi D. Top’ Tiro, Maria Lucia C. Gomide e Daniela Lima iniciam enfatizando uma questão central para a formulação e implementação de políticas de etnodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável com povos indígenas: de que, tanto na concepção quanto na aplicação de projetos envolvendo povos indígenas, devem ser levados em consideração o dinamismo e as relações temporais, culturais e sociais dessas sociedades. E mais, que essa perspectiva também deve ser adotada pelos órgãos financiadores de ações de ATER. Eles devem ter certa flexibilidade, estar abertos ao diálogo intercultural e considerar as peculiaridades socioculturais de cada povo indígena. Noções como “natureza” e “território” e o que parece ser algo simples, a construção de um “viveiro de mudas”, tem implicações culturais profundas. Como será percebida pela leitura do artigo, essa questão foi vivida como desafio concreto pelos autores durante a execução do projeto.

Os autores relatam transformações na vida desse povo. É feita uma digressão ao processo de expansão agro-pastoril e mineira dos waradzu sobre o território ocupado pelos Xavante, que ocasionou um crescente cerceamento na sua autonomia de livre trânsito, a sedentarização forçada e inúmeras restrições à utilização de recursos naturais do Cerrado. A atuação dos órgãos indigenistas do Estado (SPI e FUNAI) e os inúmeros conflitos havidos com essas frentes de ocupação e colonização são apresentados, de forma sintética, abarcando um período de mais de 60 anos. O que era antes um território contínuo, que permitia deslocamentos amplos e de longa duração até lugares de caça farta, associados com rituais e histórias que residem fundo na memória xavante, hoje está fragmentado em onze “Terras Indígenas”, descontínuas, no entorno das quais existe uma paisagem completamente alterada e degradada pelo agronegócio e a mineração.

Não obstante esse processo, os autores constatam que não houve a tão almejada (pelo projeto indigenista integracionista) assimilação

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completa dos Xavante a novos hábitos. Houve, sim, uma adaptação, um processo de reelaboração cultural a partir de elementos próprios da cultura ancestral. Daí por que o projeto adotar, como premissa, que na pretensa “capacitação” dos Xavante, no uso e conservação da agrobiodiversidade do Cerrado no contexto territorial atual, se devesse priorizar e valorizar o diálogo com os anciãos e anciães, os detentores do conhecimento das técnicas tradicionais de manejo dos recursos naturais. Esse entendimento e procedimento foram adotados por outras experiências relatadas nesta coletânea, com resultados bastante positivos.

O intercâmbio de experiências com outros povos aparece aqui como muito promissor. O intercâmbio promovido entre Xavantes e os agentes agroflorestais indígenas no Acre (no Centro de Formação dos Povos da Floresta, da Comissão Pró-Índio) possibilitou aos primeiros intercambiar e incorporar novos conhecimentos: manejo de hortas orgânicas, implantação de sistemas agroflorestais e a criação de tracajás (quelônio), além de técnicas não indígenas bem-sucedidas no campo do manejo.

No artigo seguinte, Noeli Teresinha Falcade e Sandro Luckmann relatam e refletem sobre a experiência que desenvolveram de revitalização e socialização dos conhecimentos e saberes tradicionais de mulheres, pessoas idosas e parteiras Kaingang no uso e manejo de espécies vegetais. O projeto foi executado na Terra Indígena Guarita, no Rio Grande do Sul, onde vivem cerca de 6.100 pessoas.

Como outros projetos que integram essa coletânea, este partiu da premissa de que a memória dos antepassados está viva e presente nas pessoas idosas da comunidade e que, aos poucos, com a morte dessas pessoas, ele está se perdendo. Assim, revitalizar e socializar tal memória foram tomados como um ato de reconhecimento de um saber que contribuiu para prevenção de enfermidades e no bem-estar comunitário ao longo de gerações e gerações.

Para elaboração da proposta de trabalho (o “projeto”) foram envolvidos vários segmentos da comunidade Kaingang (grupos de mulheres,

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docentes, agentes de saúde e saneamento, lideranças, universitários, entre outros), compondo um amplo espectro de visões, papéis e responsabilidades. A participação e o protagonismo dessas pessoas possibilitaram a construção coletiva, a desejada interculturalidade e o estabelecimento de um estado de confiança entre os envolvidos, Kaingang e não Kaingang, particularmente em relação ao destino dos conhecimentos e saberes que estavam sendo sistematizados.

O trabalho de revitalização incluiu a realização de visitas domiciliares e entrevistas com os detentores de conhecimentos tradicionais; visitas aos nichos de espécies tradicionais utilizadas como alimento e para fim medicamentoso; encontros de pessoas para intercâmbio de experiências e troca de saberes entre grupos de mulheres, com dinâmicas de grupo e oficinas; cultivo de hortas domésticas e comunitárias visando a capacitação em cultivo e uso de espécies que não eram de domínio tradicional indígena.

Os autores afirmam ter verificado que as pessoas detentoras do saber tradicional Kaingang têm as práticas antigas como esteio de força e vitalidade, e que a valorização dessas pessoas contribui para que esses conhecimentos sejam revitalizados dentro da cultura e da comunidade, potencializando dimensões não previstas ou não valorizadas na ATER convencional, centrada na produtividade. Verificam ainda, que o processo desencadeado pelo projeto oportunizou espaços para outras concepções, novas formas de interação social e o manejo de novas espécies vegetais em conformidade com a lógica e a ciência tradicional do povo Kaingang. Nesse sentido, fica evidente que uma ATER, para ser efetivamente alternativa, terá que orientar-se para o fortalecimento das dinâmicas sociais e os conhecimentos e saberes das comunidades e povos indígenas onde pretende atuar.

Os Guarani que vivem na Terra Indígena do Ribeirão Silveira, no estado de São Paulo, diante do desafio da crescente redução do palmito Juçara (Euterpe edulis), espécie nativa do bioma Mata Atlântica, e da necessidade de terem que elaborar um plano de manejo para explorar

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de forma sustentável essa palmeira, é a problemática tratada no artigo seguinte, de autoria de Marcio José Alvim do Nascimento.

A participação dos indígenas em todas as etapas do inventário florestal, inclusive na definição das metodologias de trabalho, diz o autor, foi de fundamental importância para que eles percebessem a situação ambiental da sua terra e, particularmente, a grave situação dos estoques de plântulas, matrizes e plantas adultas da palmeira Juçara. Essa participação e interação com o conhecimento técnico proporcionado pelo projeto deram, aos Guarani de Ribeirão Silveira, as condições necessárias para que participassem, em melhores condições, da elaboração do plano de manejo e da estratégia de repovoamento da Terra Indígena com o palmito.

O artigo escrito por Marina S. de Castro, Lilian S. Barreto e seis outros pesquisadores ligados à Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola e a Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) trata do desafio da ATER na região do semiárido nordestino, mais especificamente na Terra Indígena Pankararé, localizada no extremo nordeste do estado da Bahia. O projeto teve como propósito viabilizar um sistema agroecológico integrador de diferentes atividades e subsistemas (casa/quintal, roça/pasto, sistema agroflorestal de criação de animais silvestres e áreas de sucessão ecológica) adaptado ao modo de ser e viver dos Pankararé. Isso implicava um diálogo de saberes, expressão utilizada pelos autores. Além de proporcionar algumas pistas para o desenvolvimento de uma prática de ATER mais dialógica, o artigo trata da problemática da comercialização, dimensão nem sempre abordada com a devida importância pelo assistencialismo técnico, mais focado nos aspectos da produção.

Embora não explicitada como intenção, os autores do artigo de alguma forma atualizam o uso da categoria de “campesinato indígena” em relação aos povos indígenas no Nordeste brasileiro, cujo uso no Brasil remonta ao final dos anos 1960, com os estudos de Paulo Marcos Amorim (1970/1971; 1975) e a influência de Roberto Cardoso de Oliveira (1976; 1978). Nas palavras de Oliveira, “tratava-se de estimular a investigação de

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grupos indígenas remanescentes, praticamente destituídos de sua ‘cultura tradicional’ embora mantendo viva sua identidade étnica, o que os tornava quase despercebidos, enquanto índios, das populações regionais” (1976: 67-68).

É do Nordeste também o artigo seguinte, assinado por Aurélio José Antunes de Carvalho e cinco outros autores. A Terra Indígena Tupinambá fica numa região cacaueira, situada no município de Ilhéus, Bahia. O projeto surgiu como uma proposta multidisciplinar de ação que fortalecesse a identidade indígena Tupinambá e sua relação com o território onde vivem. A capacitação foi vista, então, como possibilidade de serem discutidas questões como territorialidade, produção, conhecimento tradicional, identidade cultural, religião, relações de gênero, ambiente, mercado e agregação de valor ao principal cultivo da aldeia, a mandioca. Tudo isso tratado de uma perspectiva sistêmica. Isso implicou num diálogo permanente com a comunidade e num cuidado permanente para que nessa relação, nesse diálogo fosse assegurado o protagonismo indígena.

Um dos grandes desafios enfrentados foi desenvolver com a comunidade técnicas alternativas a queimada associada com o plantio da mandioca. A implantação de sistemas agroflorestais na aldeia, como unidades demonstrativas (UDs), como o envolvimento da comunidade foi uma iniciativa que se mostrou promissora, pois associa a conservação do patrimônio natural existente no território Tupinambá e a produção agrícola para múltiplas funções: segurança alimentar; plantas medicinais, condimentares, ornamentais e para produção de fibras; a produção de espécies madeiráveis e energéticas; geração de trabalho e renda; conservação da água, solo e recursos genéticos; oferta de abrigo e alimento para a fauna.

Ressaltam que o projeto deu um impulso viabilizando que a comunidade vislumbre alternativas produtivas social e ambientalmente sustentáveis, lastimando, no entanto, que ainda não exista uma política pública que possibilite o acompanhamento da comunidade após o término

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do projeto. Um ano é muito pouco para garantir a consolidação dos novos conhecimentos e práticas adquiridos e das transformações desencadeadas na Terra Indígena Tupinambá.

Como contribuir para tornar realmente possível um tipo de política agrícola que contemple e incentive a variedade de sistemas agrícolas baseados na diversidade sociocultural dos povos indígenas, fomentando a produção de alimentos associada com a geração de recursos financeiros para esses grupos societários é um dos objetivos principais do artigo de Ledson Kurtz de Almeida e Jean Carlos de Andrade Medeiros. Sua reflexão toma como base o projeto que desenvolveram junto a 21 aldeias Guarani em Santa Catarina, localizadas em 11 municípios, que beneficiou cerca de 449 indivíduos e, indiretamente, 262 famílias.

A reflexão que empreendem está voltada para problematizar as possibilidades e limites da articulação entre os programas de ATER e o sistema agrícola Guarani, considerando o objetivo de mostrar os conhecimentos e valorizar os saberes e práticas indígenas. Nesse sentido, dizem os autores, o eixo dialógico para a execução do projeto deixou de ser fundado na biologia da planta, na qualidade do solo e no retorno financeiro da produção (típico da abordagem orientada ideologicamente pelo objetivo produtivista), passando a ser a ocupação simbólica do espaço e a percepção da roça em seus aspectos sociais, econômicos, filosóficos, psicológicos, religiosos etc.

Conhecer os aspectos fundamentais do sistema Guarani é, para os autores, fundamental para qualquer ação de ATER junto a esse povo e, de resto, com qualquer povo indígena. O local onde os Guarani escolhem residir não é qualquer local, deve conter idealmente certas condições geográficas e ecológicas que permitam a constituição da unidade político-religiosa-territorial básica da vida social Guarani: a família extensa; deve ser um local com terras propícias ao cultivo; e uma diversidade biológica que contemple as múltiplas funções do modo de ser Guarani. Hoje, ressaltam os autores, os Guarani reorganizam-se nos “espaços possíveis”, reinventado seus modelos de gestão de recursos naturais, incorporando elementos novos

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e fornecendo evidências de que necessitam de espaços maiores e melhores para viverem em plenitude seu modo de ser.

Os autores também sistematizam as formas de mediação utilizadas para operar o projeto, na relação com os Guarani e na relação com a equipe técnica no MDA. Aproveitam para chamar atenção para alguns problemas que tiveram com os critérios de elegibilidade de despesas, que como relataram, necessitariam adequar-se à situação intercultural.

Fortalecer a resistência sociocultural e reverter o processo de erosão genética das plantas alimentares cultivadas e dos conhecimentos tradicionais associados, tendo por base uma experiência de mais de 14 anos de trabalho junto aos Krahô, é o pano de fundo do artigo de Carlos Antônio Bezerra Salgado. Nele, o autor relata a experiência pedagógica de educação agroecológica desenvolvida com esse povo, a denominada Escola Agroambiental Caxêkwyj, que tem entre seus objetivos compreender e auxiliar na melhoria da segurança alimentar e nutricional desse povo indígena, aliando as tecnologias tradicionais e os cuidados agroecológicos. Com o apoio da ATER Indígena do MDA, o método pedagógico que vinha sendo experimentado em apenas uma aldeia ampliou seu leque de ação para oito aldeias.

O artigo também toca noutra questão importante, que é a valorização da perspectiva de gênero. Como existe certa divisão de trabalho no âmbito familiar, onde algumas atividades de produção alimentar são executadas mais pelos homens, outras pelas mulheres, alguns conhecimentos e práticas circulam e são mais bem conhecidos diferenciadamente. Promover atividades que dinamizem o fluxo de informações e conhecimento entre homens e mulheres, e entre diferentes gerações, mostrou resultados muito positivos. À mesma avaliação o autor chega com relação ao intercâmbio de experimentos e conhecimento, proporcionado aos Krahô pelo projeto, com outros povos indígenas e instituições do campo da agroecologia.

O autor também faz alguns comentários a respeito do mecanismo administrativo-financeiro, de critérios e procedimentos adotados pelo

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programa de apoio aos projetos, que devem ser considerados para um possível redesenho ou redimensionamento da iniciativa.

Já Mariana de Andrade Soares reflete sobre os desafios enfrentados para estruturar no âmbito EMATER/RS uma política de ATER diferenciada, visando superar dificuldades enfrentadas pela instituição no trabalho com povos indígenas, em especial os Guarani. A autora tem como referência principal a experiência recente da EMATER/RS, que por intermédio do Programa RS Rural implementou uma série de ações nas comunidades indígenas no Rio Grande do Sul. O eixo temático segurança alimentar foi priorizado em todas as comunidades Guarani, de forma associada com a valorização do seu sistema tradicional de agricultura.

Com base nessa experiência, Mariana ressalta que na ação de ATER são necessários esforços de mudança de distintas ordens. No caso da EMATER/RS, foram necessários esforços direcionados tanto para promover mudanças de ordem estrutural e funcional na instituição, como para desencadear mudanças no modo de ser, pensar e agir dos técnicos na relação com os indígenas. A capacitação dos técnicos para incorporar as mudanças desejadas foi entendida, acertadamente, como processo, que deve acontecer de forma sistemática e permanente.

Fechando a coletânea, Wagner Fernandes de Aquino trata no seu artigo da experiência vivida no auxílio à produção de alimentos na Aldeia Guarani Yynn Moroti Wherá. A aldeia está situada na área de abrangência da Serra do Mar, região de domínio do Bioma Mata Atlântica, no município de Biguaçu, no estado de Santa Catarina. Neste trabalho, o autor pode perceber o quão importante é articular revitalização da agricultura (e as formas de produção de alimentos) com o fortalecimento dos laços sociais de solidariedade, respeito e reciprocidade que dão vida à comunidade. Percebeu também o quão são importantes os vínculos existentes entre o social, a produção alimentar e a tradição espiritual Guarani. O grão produzido e colhido na lavoura traz consigo mais do que o alimento que nutre, traz alegria, auto-estima e dignidade. A experiência revelou ao autor

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que mesmo nas situações em que a produção foi insuficiente para atender as necessidades alimentares e nutricionais dos moradores da aldeia, elas se revelaram importante para os aspectos ligados à organização social do grupo. Isso porque foi privilegiado o processo, fortalecendo a vivência em grupo e a transmissão inter geracional de saberes.

Não poderia finalizar esse artigo sem mencionar a principal questão que, de um ponto de vista crítico, veio nos acompanhando ao longo do período de preparação dessa publicação. A questão é se podemos afirmar – como muitos acreditam ou querem fazer crer – que o indigenismo integracionista é coisa do passado. Os artigos que integram esta coletânea apontam para um cenário que, indiscutivelmente, gera certo otimismo. Por outro lado, o que se vê por ai é que mesmo quando nos discursos aparecem preocupações de ordem cultural e com a diversidade, persistem, no plano prático, as assimetrias sócio-políticas e a “coisificação” do ambiente e dos indígenas22.

Em tempos de multiculturalismo, considerado por alguns como a manifestação mais avançada de colonialidade em relação aos povos indígenas, o mais prudente parece ser considerar que o indigenismo, de fato, continua tendo mais fôlego do que imaginamos.

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Contribuições a uma Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) Indigenista

André Luis de Oliveira Araújo

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Contribuições a uma Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) Indigenista

André Luís de Oliveira Araújo1

Introdução

Ao longo dos últimos vinte anos vivenciamos mudanças significativas na forma como a sociedade nacional se relaciona com os povos indígenas e com o conjunto da agricultura familiar no Brasil. Ao abandonar progressivamente o etnocentrismo predominante na forma como as políticas públicas eram pensadas (ou negadas) a estes públicos, passamos a enxergar sob a ótica da sustentabilidade socioambiental e do conceito de autonomia, as contradições entre os modelos “vendidos” por agências de desenvolvimento, governos e organizações assistencialistas da sociedade civil, e os sonhos e a realidade concreta das comunidades.

Atualmente, é vasta a literatura que indica os efeitos perversos da “modernização conservadora” da agricultura e das iniciativas de “civilização” (sic) dos povos indígenas. Tanto indígenas quanto agricultores familiares sentiram na pele os efeitos colaterais das ações de um “aliado”, supostamente comprometido em trazer melhoras para suas comunidades, mas cujo pensamento e ações se contrapunham diametralmente ao seu modo de ser, porque assentados em uma lógica vertical de transferência de hábitos e tecnologia negavam os conhecimentos tradicionais locais. Estamos falando das experiências de extensão rural, na qual incluímos ações indigenistas, de assistência técnica convencionais, e da chamada “cooperação internacional”.

O cenário se transforma na medida em que o desenvolvimento local passa a ser pensado a partir do reconhecimento e fortalecimento dos saberes e da lógica destes grupos; quando as comunidades rurais passam

1 Geógrafo, especialista em Indigenismo e Desenvolvimento Sustentável pelo CDS/UNB. Atua desde outubro de 2006 na gestão técnica da Ação Orçamentária “ATER em Áreas Indígenas” do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

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a ser entendidas como sujeitos promotores do chamado Desenvolvimento Rural Sustentável. Este tipo de desenvolvimento, portanto, requer a potencialização do que é endógeno e o aporte de políticas públicas adequadas.

Neste novo contexto, o desafio a ser tratado por este artigo é reverter a distância e o preconceito estabelecidos para o atendimento dos povos indígenas no que tange a assistência técnica e extensão rural. Em outras palavras, é construir uma oportuna resposta ao paradigma estabelecido no senso comum, mas também presente entre técnicos e gestores públicos de que “os índios são problema da FUNAI” e os “agricultores das EMATERs”. Esta resposta se consolida através do conceito da Assistência Técnica e Extensão Rural Indigenista (ATER Indigenista).

O fosso constituído para o atendimento destes dois públicos pelas ações em prol do desenvolvimento desconsidera os avanços do ponto de vista legal no país e os intercâmbios históricos de conhecimento e tecnologias entre migrantes e indígenas desde os primeiros contatos. Todavia, não é de qualquer forma que esta (re)aproximação deve acontecer. Algumas experiências anteriores que pretendiam incorporar comunidades indígenas – suas terras, territórios e recursos naturais na lógica produtivista e nos sistemas de produção típicos da Revolução Verde, suscitam várias cautelas. A relação entre indigenismo e extensão rural é, de fato, ainda pouco estudada no Brasil. Embora haja experiências no país que tentam aglutinar estes dois focos tanto em torno de reivindicações políticas quanto em projetos de segurança alimentar, conservação ambiental e geração de renda, é notável como esta distância ainda é presente.

Portanto, este artigo é uma contribuição para a configuração do conceito e para o estabelecimento de diretrizes próprias da ATER Indigenista. As reflexões e sugestões que dão corpo ao texto partem de conceitos, reflexões, diálogos e práticas nesta área, os quais têm sido proporcionados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário através dos projetos de ATER nas áreas indígenas, envolvendo parcerias com

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organizações governamentais e não governamentais, bem como as demais atividades ligadas à implementação da Política Nacional de ATER.

Diante da amplitude e complexidade do tema, o presente texto deve ser encarado como mais um aporte para este debate. Mesmo porque, a ATER voltada aos povos indígenas é um conceito ainda em construção, apesar de décadas de experiências nas aldeias. Embora poucos autores se proponham a olhar conjuntamente ATER e indigenismo, são vários os posicionamentos, ensinamentos e bandeiras de instituições, intelectuais e indígenas.

Como pano de fundo está a intenção de elucidar que as práticas da nova ATER e do indigenismo precisam dialogar. Há muitas questões em comum e muitas experiências que precisam ser trocadas pelos seus promotores e públicos. Não há mais motivos para a ATER e o indigenismo serem tratados como algo totalmente alheios um ao outro, com públicos, agentes e metodologias aparentemente incompatíveis e que não dialogam. Na busca teórica ou na luta cotidiana por um modelo de desenvolvimento rural sustentável, os indígenas e os demais grupos sociais componentes da agricultura familiar no país, passam a compartilhar necessidades e dificuldades. O avanço do agronegócio, os resultados negativos da “modernização conservadora” da agricultura, a pressão fundiária e outros acirramentos socioambientais de um lado, e a mobilização social por outro fizeram com que a questão indígena e a assistência técnica e extensão rural de cunho alternativo se encontrassem.

Não serão discutidas aqui as causas desta separação, contudo esta divisória que aos poucos se tenta romper, chegando inclusive a propor o termo ATER Indigenista como o feliz encontro entre a extensão rural agroecológica e o indigenismo pós 1970, é uma das principais demandas nos dias de hoje dos povos indígenas e positiva para o conjunto da agricultura familiar.

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O Encontro da Extensão Rural Agroecológica e o Indigenismo pós-1970

O esgotamento do modelo de crescimento imposto ao setor agrícola brasileiro, via transformação da base técnica da agricultura com o aporte de pesquisa e crédito subsidiado para implantar a “modernização conservadora” da agricultura, trouxe consigo inúmeras consequências negativas e resultados econômicos questionáveis (CAPORAL & COSTABEBER, 1994). O incentivo à mecanização, ao uso de insumos externos da indústria e orientação para a monocultura de mercado, notadamente impulsionado pós Segunda Guerra Mundial, chega aos anos 1980 dando claros sinais da sua insustentabilidade. Esse modelo provocou além de graves efeitos colaterais ambientais, dependência econômica dos agricultores familiares, problemas de saúde e diferenciação social no campo.

A extensão rural oficial, baseada em metodologias difusionistas, ou seja, na irradiação de pacotes tecnológicos, entra em crise juntamente com o modelo que a impulsionou. Como resultado de seus dilemas, dados pela própria realidade, os promotores da ATER passaram a apontar as contradições do modelo, o que impulsionaria uma nova abordagem. Dos médios e grandes produtores, os quais teriam mais facilidade de incorporar as inovações agrícolas, se passa aos pequenos produtores como público prioritário, aos quais muitas vezes se relegava apenas um trabalho complementar de cunho social e assistencialista (ibidem, 1994).

Em termos metodológicos, o contexto difusionista, teve como grande pilar as faculdades de ciências agrárias, formadoras de profissionais que graduados aplicavam em campo um diálogo desigual. Tratava-se de uma transmissão vertical de conhecimento, do técnico, portador do “conhecimento científico”, para o agricultor, considerado um objeto de nenhum ou pouco saber. Exercendo no sentido mais literal o verbo estender2. Esta proposta será radicalmente criticada pelo movimento de renovação da ATER.

2 Para uma crítica mais aprofundada sobre esta forma de ver a extensão, e como entendê-la enquanto comunicação de iguais, ver Paulo Freire, 1977.

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A partir da sua autocrítica nos anos 1980, no sistema de extensão rural se passa a gestar outro discurso. Em relação ao seu público alvo, passa a afirmar a prioridade aos pequenos, e marginalizados do campo, deixando claro que o latifúndio e a empresa rural não deveriam ser público preferencial da ATER pública, até mesmo porque estes poderiam pagar por este serviço. A nova concepção se fundamenta no entendimento de que os indivíduos (técnico, pesquisador e produtor) com olhares diferentes são agentes da mudança. Somente através do diálogo e da troca de experiências, entendendo sob qual contexto vivem, é que se consolida uma prática libertadora (FREIRE, 1977). Para isto, se passa a entender este público como sujeito da história, potencializando sua cultura e seus conhecimentos, propondo abordagens participativas, que favoreçam iniciativas do grupo familiar e da comunidade, em detrimento do paternalismo e das soluções prontas (CAPORAL & COSTABEBER, 1994) em prol da construção da autonomia.

A incorporação da Agroecologia, como enfoque científico de uma nova extensão rural lastreada nas preocupações próprias do século XXI se dá por diversas razões. A própria compreensão de que a humanidade nos formou analfabetos ecológicos (CAPRA, 1999) é um importante referencial. Durante muito tempo o sistema de conhecimento ocidental só fez menção aos produtos econômicos e nunca à condição de seus processos ecológicos. O custo ambiental da produção material de nossa sociedade nunca é contabilizado. Porém quando se fala em Agroecologia, está se tratando de contribuições que vão para além dos aspectos biofísicos da produção, incorporando outras dimensões como as variáveis culturais, políticas, etc.

Como síntese desta proposta se define a Extensão Rural Agroecológica como um processo de diálogo transformador, baseado em metodologias participativas, proporcionando aos sujeitos do processo condições para decidirem conscientemente sobre seu futuro. Escolherem os passos que promovam as melhores condições de progredir em seus projetos de vida, de forma integrada às características específicas de cada ecossistema e de

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cada arcabouço cultural (CAPORAL, 1998).

Em relação à forma em lidar com os povos indígenas também veremos muitas transformações; e os avanços em termos legais são uma evidência disto. Inicialmente a orientação era da progressiva assimilação dos povos autóctones à sociedade nacional, onde os vários povos habitantes do continente perderiam suas características étnicas e culturais para dar corpo ao chamado povo brasileiro. Paulatinamente este pensamento passou a ser considerado ultrapassado, e se passa para o entendimento do respeito aos seus sistemas de vida, crenças e organização social. Não podemos afirmar que tenha sido uma transformação linear e tranquila, muito pelo contrário, para que ocorressem muitas ideias e práticas estiveram em disputa no campo do indigenismo. Na realidade há muito ainda a ser feito dado que os olhares e discursos sobre a temática são (re) construídos desde a referência dos primeiros tempos de contato, a chamada “descoberta”, cuja herança são visões estereotipadas e contraditórias sobre os indígenas, que perpassam até hoje o senso comum, o ambiente escolar e as políticas públicas.

Quando o Brasil se torna independente, fica latente a necessidade de se construir um ideário de nação. As teorias e políticas sobre a população do recente país ganham peso no intuito de construir o “povo brasileiro”. Um viés para o país aumentar suas forças era o acréscimo de sua população através da “civilização” e catequização dos povos indígenas, os quais ainda viveriam em “hordas errantes nas matas do solo do Brasil”. Algo iniciado desde os primeiros períodos coloniais pelas missões jesuíticas. Para isto, o Estado abandona em parte as políticas de combate aberto e direto aos povos indígenas, e passa a adotar uma série de práticas voltadas para provisão de ajuda e tratamento humanitário com o objetivo de “integrar o indígena”. O incentivo à adoção de métodos brancos de lavoura, o assentamento dos indígenas próximo a comunidades brancas, o casamento com brancos, e a educação dos filhos em separado da família eram algumas das estratégias utilizadas com a intenção de transformar ou mesmo erradicar aspectos da

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cultura original e promover hábitos sedentários de trabalho.

Uma das interpretações sobre a ação indigenista no país, afirma que a mesma teve espaço devido aos interesses e necessidades de expansão da sociedade dominante, que precisava resolver seu problema indígena (Little, 2002), essencialmente para consolidar o domínio territorial de forma homogênea do Estado-nação. Algo construído principalmente através da apropriação privada das terras.

Em um contexto em que os massacres e demais violências contra os povos indígenas não eram mais tão facilmente tolerados, cria-se o SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, por volta de 1910, para atender ao programa de interiorização e colonização da época. O objetivo era a progressiva transformação do índio, uma vez assimilado ao nosso meio, em trabalhador nacional. Em contrapartida, inaugura-se uma política estatal de proteção aos indígenas, com a missão de garantir o resguardo físico dos indígenas até sua assimilação. Com a extinção desse órgão, devido a inúmeras denúncias de corrupção e desvios, cria-se em 1967 a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que pouco altera o pano de fundo da ação estatal do indigenismo.

A missão de pacificar os indígenas promoveu uma relação de tutela entre esses e o Estado Brasileiro, o que embora tenha lhes garantido um mínimo de acolhimento, tolheu o reconhecimento dos mesmos como cidadãos plenos de direitos.

A criação das reservas e Terras Indígenas surge ao mesmo tempo como solução para as necessidades de expansão do Estado e como mecanismo de resposta à proteção das culturas indígenas. Em geral, as demarcações correspondem apenas a uma parcela do território tradicionalmente ocupado pelo povo, tratando-se em alguns casos de lugar totalmente novo, como ocorreram quando houve deslocamento de populações. A ação de “liberar terras” conduzida pelos órgãos estatais foi essencial para viabilizar as várias frentes de integração nacional através de estradas, telecomunicações, colonização agrícola e os grandes projetos agropecuários e de exploração

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mineral, com prejuízos incomensuráveis às populações indígenas. Às populações com área demarcada fica o desafio de enfrentar os problemas advindos de um “confinamento”, da redução de território, do sedentarismo e escassez de recursos naturais agravados com o aumento da população residente.

O movimento de renovação iniciado no final dos anos 1970, protagonizado por indigenistas do estado descontentes com a política oficial, organizações indígenas e demais organizações não governamentais, trouxe uma transformação essencial: ao se engajarem na luta pela causa indígena não perseguiram interesses outros senão a garantia aos indígenas do respeito a seus patrimônios e ao direito de viverem segundo suas crenças e tradições, além de se fazerem representar pelas suas comunidades e organizações. Não estavam interessados em prosseguir na colonização, torná-los produtivos, incorporá-los a comunhão nacional, conquistar suas almas ou suas terras. Ao contrário, combatiam essas ideias e práticas, mesmo conjugando como no passado os poderes estatais, eclesiásticos e sociais (Schiavini, 2006).

Como forma de garantir a autogestão dos territórios, autonomia e um diálogo mais equilibrado entre o mundo indígena e não indígena, o indigenismo atual preceitua uma ação contínua e de longo prazo, capaz de contextualizar social e historicamente os discursos da sociedade dominante para garantir uma efetiva autonomia dos povos indígenas. E isto só é possível com um conhecimento etnográfico do povo com o qual se trabalha, quando esse passa a ser entendido como outra civilização e quando é incentivado o seu protagonismo.

Tendo em vista os percursos muito brevemente relatados, percebe-se que no momento atual há o encontro das bases epistemológicas destes dois movimentos. Diante das necessidades contemporâneas de sustentabilidade dos territórios, seja de assentamentos rurais da reforma agrária, quilombos, agricultores familiares ou Terras Indígenas, é mister pensar em uma assistência técnica e extensão rural que seja pautada

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pelas novas referências trazidas pela renovação da ATER e do indigenismo. Através do encontro das atuais concepções elaboradas no seio de cada um destes campos de disputa, haverá maiores condições de se reverter os processos de insegurança alimentar, degradação ambiental e dependência econômica que assolam muitas destas populações.

Não foram poucos os casos, durante a existência do SPI e nos primeiros tempos da FUNAI que, após atrair, aldear ou transferir os chamados índios isolados e arredios, implantavam programas para “torná-los produtivos”. Tendo sido comum a criação de fazendas agropecuárias, serrarias nas Terras Indígenas e a exploração de produtos extrativistas florestais e minerais, como a borracha, a castanha-do-Brasil, o ouro e a cassiterita, com resultados no mínimo desastrosos. Também não foram raros os casos em que os agricultores ficaram à mercê da visão empreendedora de um técnico extensionista, que condicionava o fomento da produção a todo um sistema ligado ao crédito, composto por sementes, insumos e outras tecnologias totalmente diferentes das que os agricultores tradicionalmente utilizavam ou praticavam. O aumento da produtividade como finalidade máxima subsidiou uma ATER vinculada à tecnificação proporcionada pela Revolução Verde, que colaborou significativamente para a perda da biodiversidade dos agroecossistemas, da soberania alimentar e econômica das famílias produtoras.

A introdução de novos conhecimentos, de maneira vertical e sem diálogo, numa proposta de transferência de tecnologia, nunca é bem sucedida. Ou se constrói o conhecimento juntos ou está se impondo uma visão de mundo sobre outra. E no Brasil temos inúmeros casos assim, tanto com os indígenas quanto com os outros setores da agricultura familiar. A experiência da introdução das monoculturas da FUNAI, na década de 1970 é um caso típico. Conforme enfatiza Miguel Altieri e Clara Nicholls (2000:182), “no es posible la conservación y manejo de la biodiversidad sin la preservación de la diversidad cultural”.

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ATER Indigenista: Conceito em Construção

Uma importante ressalva deve acompanhar toda a leitura deste artigo: não existe uma concepção predefinida ou fechada do que é ATER Indigenista e de como deve ser praticada. É uma concepção que está em construção; que herda as diferentes experiências de experientes organizações indigenistas, de associações indígenas, de órgãos públicos de ATER e da própria FUNAI, e ganha relevância política e institucional em âmbito federal a partir da consolidação da ação Assistência Técnica e Extensão Rural em Áreas Indígenas nos Planos Plurianuais (PPA), chegando a aproximadamente R$ 4 milhões (quatro milhões de reais) anuais em 2008-2011.

Na prática, entendemos que deverá haver tantas ATER Indigenistas quanto for o número de povos indígenas no país. Desta forma esclareço que os esforços da Política Nacional de ATER (PNATER)3 devem dialogar localmente com os povos indígenas, porque para sermos coerentes não deve existir apenas uma única maneira de executar esta política. As instituições que têm responsabilidade legal e aquelas que se propõem a contribuir precisam aprender a lidar com a diversidade.

Como referência para a PNATER fica a indicação de que os planos e programas de ATER, adaptados aos diferentes territórios e realidade regionais, sejam construídos a partir do reconhecimento das diversidades e especificidades étnicas, de raça, de gênero, de geração e das condições socioeconômicas, culturais e ambientais presentes nos agroecossistemas.

Por isso, seminários e encontros para discutir a temática, mais do que bem-vindos, são necessários. Trata-se de um direito garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos

3 Em janeiro de 2010, os esforços de Ministério do Desenvolvimento Agrário, organizações de ATER e sociedade civil de todo o país, para a reconstrução da extensão rural pública no Brasil ganha a força de Lei. Ver Lei Nº 12.188, de 11 de janeiro de 2010 que institui a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária – PNATER e o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária – PRONATER, altera a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e dá outras providências.

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Indígenas e Tribais ratificado pelo Brasil em 2002. Nestes momentos espera-se dimensionar e qualificar a demanda real pelo serviço de assistência técnica das aldeias e estabelecer minimamente estratégias de atuação e convívio entre as partes. O que e como os técnicos deverão trabalhar junto ao público indígena deve ser definido em um comum e prévio acordo com as comunidades. Embora este processo seja dispendioso e às vezes logisticamente complicado para órgãos e organizações, é a maneira mais fácil de obter algum sucesso nas ações que se deseja.

Nestas ocasiões e durante a execução propriamente dita dos trabalhos de ATER, é preciso buscar o diálogo entre as partes em condição de igualdade de discursos. Conforme aponta Maria Helena Matos (2007), baseada em outros importantes intelectuais como Roberto Cardoso de Oliveira, nas conversas entre indígenas, entidades civis e órgãos governamentais, o diálogo, geralmente, está comprometido pelas regras do discurso hegemônico e/ou pelas disputas de poder. Por isso, a ideia é que dentro do possível, se promova uma “fusão de horizontes” entre os sistemas de significados indígenas e não indígenas; sem hierarquizá-los ou sobrepô-los. Este deve ser o sentido conceitual do que designamos por “diálogo com os povos indígenas”. Pelo menos, esta deve ser a utopia dos agentes envolvidos nas políticas e programas de promoção do etnodesenvolvimento.

Esta referência é relevante porque por décadas foram disponibilizados como “solução” e assistência técnica somente um conjunto limitado de possibilidades aos indígenas. Em geral, alternativas que só tinham o mundo dos brancos como fim, incluindo sua visão mercantilista das coisas. E, por isso, atualmente não basta chegar às comunidades e simplesmente perguntar o que querem, porque as respostas podem estar condicionadas ao que sempre foi oferecido como o “possível” advindo do mundo não indígena.

Neste contexto, é importante um alerta: para planejar e executar a ação extensionista deve haver mais do que boa vontade ou espírito humanitário em ajudar os indígenas (ARAUJO, 2009). É necessário ter um

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razoável conhecimento etnográfico, e principalmente ter como horizonte a perpetuação da identidade étnica no sentido mais profundo do termo, que não deve ser confundido com a simples caracterização fenotípica ou utilização de artefatos e indumentárias tradicionais dos povos.

O esforço deve ser para contrariar a ideia, muitas vezes subjetiva, de que os povos indígenas são capazes apenas de atitudes reflexas, de reações e não de ações, numa postura fetichista que frequentemente indigenistas e sociedade nacional tomam (LIMA, 1987). A elaboração, gestão e execução de projetos com (ou por) indígenas constituem encontros e desencontros de sistemas culturais distintos (MATOS, 2007).

Tendo por base de referência a experiência acumulada como gestor da política de ATER com povos indígenas no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), percebemos que projetos e programas de ATER atuais fazem parte do processo de construção e consolidação de espaços interculturais (políticos e de diálogo) no Brasil, algo que tem avançado após as conquistas constitucionais dos povos indígenas em 1988. Portanto, assim como para outros programas governamentais4, haverá problemas na implementação desses projetos que dizem respeito às condições do estabelecimento da interculturalidade, pois estão promovendo na prática a interação de sistemas culturais e sociopolíticos distintos. Desta forma, o conceito de ATER Indigenista não pode estar estabelecido sem que antes os diferentes povos indígenas se apropriem do conceito, o que pode levar algum tempo.

Entretanto a cultura de apoio aos indígenas não é algo novo e, segundo Andréas Kowalski (2007), adquire contornos próprios de acordo com a visão de mundo de cada povo indígena. A obra A Cultura Ramkokamekrá de Apoio aos Índios é uma boa referência para entender o que foi exposto nos parágrafos anteriores. Nela, o autor se esforça para conseguir sistematizar o “pensar da etnia” Ramkokamekrá, também conhecidos por Canela, no que concerne a sua relação com os não indígenas e, principalmente com

4 Ver MATOS, 2007.

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seus colaboradores não indígenas (muitos deles extensionistas). Foi um esforço para registrar o que o autor vinha “decifrando” da lógica cultural Canela, na relação deste povo com os projetos de ajuda humanitária, na busca por respostas para as ruínas de projetos que se viam nas aldeias, para a percepção de que a sustentabilidade dos projetos dependia diretamente da presença continuada de assessores não indígenas, e para a contradição entre uma alta estima étnica e um forte paternalismo.

As conclusões de Kowalski (2007) apontam para um descompasso de concepções entre o mundo indígena e não indígena; e muito nos serve para reforçar a ideia de como as engrenagens institucionais de apoio aos indígenas podem estar em desarmonia com o modo de ser da comunidade beneficiária. Um dos muitos elementos dessa diferença é que, em geral, para o extensionista o importante é o objeto do projeto em si (a construção, a roça, a escola), enquanto para os indígenas o importante são as relações que aquele objeto gera entre as famílias e entre o povo e os colaboradores de fora, algo que deveria estar apenas começando com um projeto.

A especificidade que é apresentada nos discursos e orientações para a ação com estas populações é algo bem palpável. Um bom acordo para os Pareci pode ser um desastre para os Enawenê-Nawê, para utilizar um exemplo do estado do Mato Grosso. As políticas e ações para os povos indígenas devem ser diferentes, segundo o conjunto de especificidades que os diferenciam, em que pese também cada história de contato e as estratégias indígenas para se relacionar com a sociedade envolvente. De fato, existe uma necessidade urgente de sistematizar melhor estas especificidades. Esperamos que a presente publicação seja um incentivo para novas contribuições neste sentido.

Deve estar claro tanto para os promotores da extensão rural quanto para os povos indígenas que a forma e os temas da ATER depende dos próprios indígenas, segundo seus usos, costumes, tradições e, principalmente, projetos de vida. Ou seja, a maneira de atuar em ATER junto ao público indígena, incluindo as ferramentas metodológicas que serão utilizadas,

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depende de cada etnia.

Para facilitar a compreensão, seguem alguns exemplos. No Rio Grande do Sul há dois grandes povos, Guarani e Kaingang. Com os Guarani, caso o extensionista chegue “falando demais”, já chega desrespeitando o valor que a “palavra” tem para este povo. Por isso “é necessário que os técnicos exerçam o ato de ouvir em detrimento do falar. Na língua Guarani, os não índios são chamados de juruá, que pode ser traduzido como ‘palavras ao vento’. Isso expressa claramente o significado atribuído por eles ao poder da palavra, que está relacionada à própria alma Guarani” (SOARES & TRINDADE, 2008:22). É bem possível que um pomar proposto pelo extensionista não tenha continuidade em algumas comunidades Guarani, porque, grosso modo, entendem que o homem não planta árvores, árvore é coisa de Nhanderú (divindade Guarani). O avati (milho) por sua vez é uma planta sagrada, que além de ser uma das principais fontes da alimentação tradicional é utilizada nos rituais de batismo das crianças, quando o filho ganha um nome Guarani. Suas sementes têm grande valor, e este povo é reconhecido pela diversidade dos seus agroecossistemas.

Já nas áreas Kaingang é possível observar uma interação maior com o entorno, há muitos hectares de plantação de soja e milho para comercialização e também participação político partidária das lideranças - acompanhando as idas e vindas da política municipal e estadual. Como fica o órgão de assistência neste estado? Obviamente se percebe a impossibilidade de se ter os mesmos comportamentos, procedimentos e estratégias para o trabalho com os dois povos.

Por não haver uma fórmula para a ATER Indigenista é preciso que até mesmo os técnicos indígenas que estejam envolvidos nos projetos e programas de ATER assumam o papel de investigador. Os cuidados, questionamentos e diretrizes apontados neste artigo se voltam a extensionistas indígenas e não indígenas. O que deve ser garantido para que as comunidades possam, assim como os Ramkokamekrá, manter a comunidade no estado de amjikin, que significa entre outras coisas, ter

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uma comunidade firme, em que todos seguem as regras sociais, e onde os rituais e trocas acontecem para manter o mundo em movimento? O que deve ser garantido aos Guaranis Mbya, para que possam reproduzir o seu modo de vida tradicional, o ñande rekó? Entendendo a cultura como algo dinâmico, em constante reelaboração da tradição diante de novas situações e contextos.

Portanto, o caminho sugerido como apropriado para orientar a construção coletiva da ATER é desvendar justamente como atender a lógica de reprodução social de cada povo beneficiário, agindo em prol do verdadeiramente necessário para os povos indígenas, algo que com certeza não se encerra na ATER, mas para o que ela pode contribuir significativamente, principalmente a partir do momento em que seja promovida pelos próprios indígenas.

O Direito Indígena a ATER

São vários os dispositivos legais que em conjunto garantem aos povos indígenas o direito à assistência técnica e extensão rural.

Inicialmente, abordaremos as duas noções básicas que vinham subsidiando a compreensão da ATER como direito dos povos indígenas, já que uma disciplina jurídica específica para o tema, assim como o próprio conceito da ATER Indigenista, ainda está em processo de construção5. Em seguida, trataremos da competência legal em promover a ATER junto aos povos indígenas e concluímos com os dispositivos jurídicos mais atuais sobre o tema, os quais não deixam nenhuma dúvida sobre o direito indígena à ATER e reforçam o papel do Estado em promovê-lo em cooperação e participação com os próprios indígenas.

5 Durante o ano de 2008/2009, no âmbito do esforço da Comissão Nacional de Política Indigenista em construir junto às regiões uma nova proposta de Estatuto dos Povos Indígenas, o tema do direito indígena a ATER foi pautado nas dez oficinas regionais realizadas. Resultando daí a redação de artigos a serem apreciados pelo congresso nacional que tratam mais diretamente do direito indígena a uma assistência técnica e extensão rural diferenciada.

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A primeira noção é que, assegurado os usos, costumes e tradições indígenas, a ATER é um mecanismo concreto para viabilizar o usufruto exclusivo indígena conforme prevê a Constituição Federal de 1988. Segundo o inciso 2º do artigo 231 “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Isto quer dizer que apenas aos indígenas cabe a utilização dos recursos naturais de suas terras. Portanto estamos entendendo a ATER como política pública capaz de oferecer aos povos indígenas brasileiros, diante dos desafios da interação com a sociedade nacional, apoio às suas próprias ações produtivas e de gestão. De modo a garantir o usufruto exclusivo não somente pelo viés da proteção e vigilância com a repressão às ameaças externas às Terras Indígenas, mas também pelo viés da promoção do que cada povo entender por qualidade de vida.

A segunda noção básica é aquela procedente da Lei Nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, o Estatuto do Índio6, que estende aos índios e às comunidades indígenas a proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e tradições indígenas. Assim, entendendo que a lei Nº 8.171 de 1991, que dispõe sobre a política agrícola, traz a ATER como direito para o conjunto da sociedade brasileira, nada mais coerente do que estendê-la aos povos indígenas.

Na lei Nº 8.171, que desde 1991 dispõe sobre a política agrícola7, há uma capítulo específico para a assistência técnica e extensão rural. Neste capitulo, conceitua-se em seu artigo 16 que a assistência técnica

6 Esclarecimento: As normas legais anteriores a 1988 devem ser interpretadas em conformidade com as atuais garantias constitucionais. Portanto, todos os dispositivos do até então vigente Estatuto do Índio (de 1973) que não ferem o disposto na constituição, continua valendo em todo seu vigor de lei.

7 A Constituição Federal de 1988 oferece as linhas gerais para a política agrícola. Em seu Capítulo III – Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, no inciso IV do art. 187, por exemplo, dispõe que a política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, a assistência técnica e extensão rural.

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e extensão rural buscará viabilizar, com o produtor rural, proprietário ou não, suas famílias e organizações, soluções adequadas a seus problemas de produção, gerência, beneficiamento, armazenamento, comercialização, industrialização, eletrificação, consumo, bem-estar e preservação do meio ambiente. Além disso, dispõe no artigo 17 que o Poder Público manterá serviço oficial de assistência técnica e extensão rural de caráter educativo, garantindo atendimento gratuito aos pequenos produtores e suas formas associativas. Por sua vez, o Estatuto do Índio de 1973, no seu artigo 2º estabelece que:

Passando à problemática da responsabilidade legal sobre a execução da ATER, observamos que o texto da Lei 6.001 de 1973 citado, deixa bastante explícito a competência legal concorrente sobre o tema. Em outras palavras significa dizer que é uma responsabilidade da União, mas também dos estados e municípios. Ademais, o Estado brasileiro não possui nenhum órgão de execução direta de assistência técnica e extensão rural em âmbito federal. Historicamente esta pauta ficou sob a responsabilidade das unidades federadas que instituíram órgãos ou secretarias próprias para tal atividade.

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Portanto, como a garantia do direito indígena a ATER é responsabilidade mútua de diferentes níveis governamentais fica evidente a necessidade de uma equilibrada e combinada distribuição dos serviços de ATER. Esta articulação, baseada no diálogo e cooperação entre as partes (governos federal, estadual, municipal e povos indígenas), deve ser eficiente o bastante para garantir o direito a ATER nas mais longínquas Terras Indígenas, caso assim desejarem os próprios indígenas.

Vemos que algumas unidades da federação têm se dedicado ao tema do direito indígena a ATER, especificando ainda mais o dever de assistir ao público indígena. É o caso do estado do Amapá, que na Lei Nº 0051, de 23 de dezembro de 1992, que dispõe sobre a Política Agrária, Fundiária, Agrícola e Extrativista Vegetal, prevê que o Serviço de Assistência Técnica e Extensão Rural Oficial intensificará seu programa de atendimento nas Terras Indígenas e nos assentamentos rurais, considerando as condições peculiares do público beneficiário e das áreas a serem exploradas, de forma a assegurar a viabilidade econômica e social (capitulo XI da assistência técnica e extensão rural, Art. 33).

Em relação à União frisamos que, embora exista um protagonismo da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), no que concerne a proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas, desde o início da década de 1990, a mesma não detém mais a exclusividade sobre o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro. Aos poucos se processou uma descentralização de atribuições que antes ficavam sob a responsabilidade da FUNAI. Na atualidade temos a responsabilização de ministérios, segundo suas pastas, na atenção aos povos indígenas. A atenção à saúde indígena sob a responsabilidade do Ministério da Saúde e a educação escolar indígena sob a responsabilidade do Ministério da Educação são exemplos disto.

Dessa maneira, segundo o decreto Nº 7.056 de 28 de dezembro de 2009, cabe à FUNAI formular, coordenar, articular, acompanhar e garantir o cumprimento da política indigenista do estado brasileiro, na interface com os diferentes órgãos. A ATER sob a lógica da descentralização citada

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anteriormente, e após ter passado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, desde 20038 está sob responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

Neste contexto, outras políticas do MDA também são abertas ao atendimento indígena, como é o caso do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Oficialmente, além dos agricultores familiares típicos, são também beneficiários os aquicultores, pescadores artesanais, silvicultores, extrativistas, indígenas, membros de comunidades remanescentes de quilombos e agricultores assentados pelos programas de acesso à terra do Ministério de Desenvolvimento Agrário (Decreto Nº 3.991, de 30 de outubro de 2001). A finalidade deste programa é promover o desenvolvimento sustentável do meio rural por intermédio de ações destinadas a implementar o aumento da capacidade produtiva, a geração de empregos e a elevação da renda, visando a melhoria da qualidade de vida e o exercício da cidadania dos beneficiários listados acima. E tem como princípio a preocupação de promover ações afirmativas que facilitem o acesso de mulheres, jovens e minorias étnicas aos benefícios do programa (Art. 4º, §VI).

Os avanços na esfera internacional repercutem de forma positiva no país e têm contribuído para a consolidação de um arcabouço jurídico mais sensível aos direitos dos povos indígenas, e mais propício à compreensão da multiculturalidade e da necessidade de políticas específicas. Estamos falando especialmente da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre os Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes e da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas que, junto com os demais instrumentos formadores do direito internacional dos direitos humanos, devem orientar as políticas, práticas e interpretações jurídicas do Estado na relação com as sociedades indígenas.

8 O Decreto Nº 4.739, de 13 de junho de 2003, transferiu a competência da ATER do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, incluindo a dotação orçamentária, coordenação e execução da ação assistência técnica e extensão rural em áreas indígenas.

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Os dispositivos internacionais também têm dedicado atenção à temática deste artigo. A Convenção 169, que tem caráter vinculante aos países que a adotam9, prevê que “os programas agrários nacionais deverão garantir aos povos interessados condições equivalentes às desfrutadas por outros setores da população, para (...) concessão dos meios necessários para o desenvolvimento das terras que esses povos já possuam” (Art. 19º,§ b). “A pedido dos povos interessados deverá facilitar-se aos mesmos, quando for possível, assistência técnica e financeira apropriada que leve em conta as técnicas tradicionais e as características culturais desses povos e a importância do desenvolvimento sustentado e equitativo” (Art. 23º,§ II). E de forma mais profunda, aponta que os povos indígenas “deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural” (Art. 7º, § I).

A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, por sua vez, prevê em seu artigo 29 que “os povos indígenas têm o direito à conservação e à proteção do meio ambiente e da capacidade produtiva de suas terras ou territórios e recursos. Os Estados deverão estabelecer e executar programas de assistência aos povos indígenas para assegurar essa conservação e proteção, sem qualquer discriminação”. E no inciso I, do seu artigo 32, prevê que “os povos indígenas têm o direito de determinar e de elaborar as prioridades e estratégias para o desenvolvimento ou a utilização de suas terras ou territórios e outros recursos”. Atualizando as duas noções abordadas no início deste capítulo.

Devido à luta dos movimentos sociais indígenas e ao processo de reorganização da ATER pública no Brasil, alguns dispositivos legais próprios

9 O governo brasileiro ratifica a Convenção nº169 da OIT sobre os povos indígenas e tribais em países independentes em 25 de julho de 2002. O Decreto Legislativo Nº 143 de 20 de junho de 2002, aprova o texto do instrumento. E o Decreto Nº 5.051, de 19 de abril de 2004 promulga o instrumento. Como uma Convenção Internacional, a mesma se vincula à lei dos países que a ratificam.

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do país têm expressado de forma mais explícita o direito indígena à ATER. Especialmente o decreto Nº 1.141, de 19 de maio de 1994, que dispõe sobre as ações de proteção ambiental, saúde e apoio às atividades produtivas para as comunidades indígenas, pontua claramente em seu artigo 10 que as ações voltadas para o apoio às atividades produtivas das comunidades indígenas serão fundamentadas em diagnóstico socioambiental e contemplarão atividades de assistência técnica e extensão rural, necessárias ao adequado desenvolvimento dos programas e projetos. Por outro viés, a Lei Nº 12.188, de 11 de janeiro de 2010 que institui a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária (PNATER) e o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária (PRONATER). Esta lei amalgama o esforço de restruturação da Assistência Técnica e Extensão Rural no país pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, ao longo da primeira década de 2000. Nela os povos indígenas são identificados claramente no artigo cinco como público beneficiário.

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Aspectos para uma ATER “desejada” em áreas indígenas

A diferença no atendimento aos povos indígenas é, além de um cumprimento da legislação em vigor no país, algo que deve ser almejado como parte das políticas públicas de “reconhecimento do outro”. Longe de ser considerado um privilégio, é mais uma contribuição ao país da importância e necessidade do conceito “igualdade na diferença”. É deixar de lado a antiga concepção de “civilizar os silvícolas” e reconhecer que sempre foram e continuarão sendo civilizações, as quais detêm um conjunto de conhecimentos, lógicas e saberes próprios que podem ser diferentes ou semelhantes aos da sociedade nacional, e que estiveram e estão em constante troca com o que há de diferente nas sociedades que estejam em seu entorno.

Como exposto anteriormente, os aspectos abordados abaixo derivam da necessidade cada vez mais crescente da ATER pelos povos indígenas, que pode ser observada pela manifestação ou pelas ações em curso de organizações indígenas, indigenistas, ambientalistas, órgãos de fomento e de cooperação internacional, e demais órgãos públicos nas aldeias e nos espaços institucionais de diálogo.

Visualizamos a ATER necessária aos povos indígenas a partir de três eixos norteadores que, na prática, são/estão inter-relacionados:

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a) Eixo Processo Produtivo

O primeiro eixo trata-se daquele mais óbvio quando pensamos em assistência técnica e extensão rural, é o que trata do apoio e acompanhamento técnico aos processos produtivos das comunidades. É aquele que foca os diferentes aspectos relacionados à produção agrícola e não agrícola das comunidades. Tem preocupação com a forma de produzir das famílias indígenas, com objetivo de melhorar a qualidade e quantidade de alimentos e demais produtos agropecuários, florestais, artesanais, etc.

Este eixo deve ser entendido prioritariamente como aquele do diálogo em torno das tecnologias apropriadas e ambientalmente sustentáveis. Isto porque estamos tratando tanto da disponibilização de novas técnicas, como da valorização do conhecimento e técnicas tradicionais.

O contexto atual dos povos indígenas obriga grande parcela deles a viver numa realidade ambiental e territorial bastante diferente das quais seus antepassados estavam acostumados; e a necessidade de bens manufaturados é um fato dado para um número significativos destes povos. Isso exige que o tradicional e o exógeno dialoguem. Embora isto ocorra o tempo todo nestas sociedades devido ao encontro de diferentes visões de mundo, é vital que o balanço deste encontro sinalize para as melhores condições de reprodução social do grupo, segundo seus critérios tradicionais. Atualmente podemos até mesmo afirmar que os povos indígenas e a sociedade envolvente são interdependentes, exigindo uma ação extensionista que busque um relacionamento mais justo, honesto e respeitoso entre estes.

Portanto, o técnico agrícola, o engenheiro de pesca, o veterinário, o zootecnista que se dirige a uma comunidade indígena para ensinar como

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plantar e cuidar de determinada espécie vegetal ou como lidar com algum tipo de rebanho animal deve entender que existe um histórico ali de relação com o objeto de seu ensino. Pode haver nenhuma ou muitas experiências em torno daquele tema; é possível que exista um conhecimento longínquo, que foi sendo repassado; é possível que tenham adotado técnicas não indígenas predatórias, enfim, uma infinidade de possibilidades as quais é preciso estar atento porque influenciarão nos resultados do trabalho. Até mesmo a piscicultura, que é uma atividade nova para os povos indígenas, requer este tipo de levantamento porque é possível que tenham existido formas de engorda, represamentos, manejo de lagos ou até mesmo de criação antecedentes; além é claro da forma como aquele determinado povo enxerga o mundo das águas e os peixes.

Embora possa estar disponibilizando técnicas e métodos ainda desconhecidos pela comunidade, associados a qualquer uma das etapas do processo produtivo, o que inclui a produção de mudas, conservação de sementes, cuidados sanitários, controle de pragas etc., o extensionista deve estar ciente de que não é o sujeito que tudo sabe, pois como dito anteriormente, para muitos cultivos já existe um know how de décadas e séculos. Portanto, o extensionista deve se dispor ao diálogo de conhecimento e de sistemas agrícolas para, em muitos casos, não intervir e apenas incentivar. Por melhor que sejam as técnicas e informações, elas não podem ser passadas como um modelo ou pacote fechado, sendo necessária a experimentação e decisão por parte das famílias indígenas quanto a sua adoção e adequação.

Um aspecto primordial é que as pessoas da etnia devem ser motivadas e valorizadas. Fazer daqueles indivíduos que ainda detêm o conhecimento sobre o cultivo naquele bioma, que entendem daquela cultura, que têm a sabedoria de alguma tecnologia apropriada, ou que conhecem algum rito associado àquele cultivo, referência para que ensinem aos demais. Em muitas comunidades o conhecimento que vem de fora (diplomado) passa a ser mais valorizado que o conhecimento endógeno, desvalorizando as técnicas

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e rituais locais ligados a agricultura e artesanato e, consequentemente, desvalorizando também as pessoas detentoras deste conhecimento. Quando o extensionista, normalmente identificado pelas comunidades como uma “pessoa que sabe das coisas”, formado por reconhecidas escolas e universidades, chega à comunidade revalorizando estas pessoas da etnia como professores, contribui bastante para valorizar a cultura local.

Acreditamos que as ações de assistência técnica neste eixo deverão estar preocupadas com a sustentabilidade. Por isso, primeiramente, todo o pensamento da ATER, o que inclui as novas técnicas e adaptações de técnicas indígenas, deve estar assentado nos princípios da ciência agroecológica, em busca de uma agricultura sustentável.

A agricultura sustentável, sob o ponto de vista agroecológico, é aquela que, tendo como base uma compreensão holística dos agroecossistemas, é capaz de atender, de maneira integrada, aos seguintes critérios:

a) baixa dependência de insumos comerciais;

b) uso de recursos renováveis localmente acessíveis;

c) utilização dos impactos benéficos ou benignos do meio ambiente local;

d) aceitação e/ou tolerância das condições locais, antes que a dependência da intensa alteração ou tentativa de controle sobre o meio ambiente;

e) manutenção a longo prazo da capacidade produtiva;

f) preservação da diversidade biológica e cultural;

g) utilização do conhecimento e da cultura da população local;

h) produção de mercadorias para o consumo interno e para a exportação.

Fonte: (GLIESSMAN, 2001)

A importância da agroecologia como via para a ATER Indigenista,

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no contexto da intercientificidade10 (LITTLE, 2002), está baseada no reconhecimento de que a complexidade dos sistemas de produção indígenas está estreitamente ligada à sofisticação dos conhecimentos daqueles que o manejam (ALTIERI & NICHOLLS, 2000). Significa dizer que os povos indígenas estabelecem diferentes relações com o meio ambiente e, possuindo outro tipo de organização dos saberes, constituem outra ciência. A Agroecologia se apresenta como um enfoque disposto a entender, absorver e trocar conhecimento com os variados povos, da forma como cada um deles mantém, preserva e maneja a biodiversidade. É um enfoque que entende que não há como separar a biodiversidade agrícola das culturas que a nutrem (ibidem, 2000).

Uma perspectiva concreta de transição agroecológica11 deve ser referência para o trabalho junto àqueles povos que já utilizam o pacote tecnológico proposto pela agricultura convencional.

Do quadro anterior, sob a perspectiva agroecológica, sublinhamos a preocupação com a autonomia dos agroecossistemas. Ou seja, é preciso encontrar alternativas locais, técnicas apropriadas, e aproveitamento energético eficiente para diminuir ao máximo a necessidade de insumos externos à aldeia para o sucesso dos empreendimentos agropecuários indígenas. É preciso pensar que a lógica produtiva não pode estar baseada safra a safra, nos recursos que entram de fora. As sementes, ração e matrizes são exemplos de recursos que são comprados no mercado regional, mas que, ao pesar a sustentabilidade em longo prazo da produção indígena, vimos que é preciso encontrar alternativas de produção/conservação interna às comunidades. Esta preocupação se reforça tendo em vista que dificilmente

10 A solução proposta por LITTLE (2002) para basear uma nova ação indigenista que considere os saberes tradicionais ambientais desses povos sem romantizá-los é a intercientificidade. Esse conceito tem sua base na etnoecologia, que por sua vez, tem origens na etnociência.

11 “Na Agroecologia é central o conceito de transição agroecológica, entendida como um processo gradual e multilinear de mudança, que ocorre através do tempo, nas formas de manejo dos agroecossistemas, que, na agricultura, tem como meta a passagem de um modelo agroquímico de produção (que pode ser mais ou menos intensivo no uso de inputs industriais) a estilos de agriculturas que incorporem princípios e tecnologias de base ecológica” (CAPORAL & COSTABEBER, 2004:12)

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encontramos sistemas agrícolas indígenas que bem funcionam na lógica empreendedora capitalista, de periodicamente acessar crédito para financiar sua produção e com os resultados da safra, pagar o empréstimo, cobrindo todos os custos da produção e ainda fazer renda.

É claro que este eixo também está preocupado com o escoamento, distribuição e comercialização da produção, a conhecida ATER da porteira para fora, porém já estará relacionada mais diretamente com os aspecto do eixo diálogo intercultural.

Os eixos norteadores diálogo intercultural e fortalecimento cultural e territorial que seguem estão relacionados a campos e áreas do conhecimento que em geral “o perfil clássico de quem lida com ATER” não consegue atuar com facilidade porque não teve uma escola que o preparou para tal, contudo são imprescindíveis para atender as especificidades da ATER em áreas indígenas.

b) Eixo Diálogo Intercultural

O segundo eixo norteador é o que aborda o diálogo intercultural, no qual se respeita e potencializa as diferenças culturais. O foco de ação deste eixo é a formação e capacitação dos indígenas e suas organizações para que entendam melhor o mundo não indígena, de forma a saberem transitar com tranquilidade na sociedade nacional, conscientes de seus direitos e das políticas públicas, tanto as específicas aos povos indígenas quanto aquelas universais que estão, teoricamente, disponíveis para o acesso de qualquer cidadão brasileiro. É, portanto, atuar na diminuição da marginalização e exclusão social dos grupos indígenas, em conjunto com os esforços da educação escolar indígena. Por outro lado, é também formar e informar os técnicos extensionistas e a sociedade brasileira das especificidades e contribuições indígenas à sociedade. Neste sentido, diferentemente do que muitas vezes se expressa nas discussões sobre a temática indígena, em grande medida os problemas dos povos indígenas, na verdade, apontam

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soluções para a nossa sociedade. É preciso relativizar os pontos de vista. No campo da educação escolar, por exemplo: “A ação pedagógica para a alteridade não é um descobrimento que fez a sociedade ocidental e nacional para oferecê-la aos povos indígenas, mas tudo ao contrário: é o que os povos indígenas podem ainda oferecer à sociedade nacional. Assim, não há um problema de educação indígena, há uma solução indígena ao problema da educação” (MELIÁ, 1997: 26).

Neste eixo a pauta é de processos, sobretudo sócio-econômicos, que contribuem consideravelmente para o início e o sucesso das iniciativas do primeiro eixo. Trata-se da comercialização, acesso a financiamentos, garantia de direitos e gerenciamento, cuja formalização ainda está fortemente assentada nos códigos da sociedade nacional.

Para ilustrar a questão, uma situação comumente reclamada pelas lideranças indígenas é quanto aos formulários e tabelas em demasiado complexas para aprovação e contratação de projetos.

Antes de uma comunidade submeter projetos, precisa ter ciência de que o governo só poderá aprová-los e contratá-los caso esteja tudo muito bem documentado legalmente e detalhado de forma a demonstrar viabilidade. Caso contrário, mesmo que haja recursos “carimbados” nos orçamentos federais ou estaduais para atuação com indígenas naquela área, o repasse não será efetivado. Portanto, o extensionista deve apoiar os povos indígenas nas dificuldades que tiverem nesta parte. Apenas para situar um pouco esta dificuldade, recordo que existem povos que até 15 anos atrás só contavam até cinco: um, dois, três, quatro, cinco e muitos. A matemática não tinha muito importância, a cosmologia se dava por outros elementos. Sendo assim, enquanto o repasse de recursos estiver assentado na lógica do estado nacional, o fortalecimento da autonomia indígena passa necessariamente por contínuas capacitações, que a médio e longo prazo, viabilizam os projetos pensados e geridos pelas organizações indígenas.

O fortalecimento das organizações tradicionais e não tradicionais

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indígenas é importante para dar direcionamento e solidez a uma participação ativa de povos indígenas nas várias instâncias decisórias do Estado. Embora para o extensionista as associações e coordenações indígenas possam aparentar maior relevância, devido à possibilidade concreta de formalizarem contratos, parcerias e contestações nos códigos da sociedade nacional, atenção especial é essencial às instituições políticas tradicionais de cada povo, que operam a nível local. Nem sempre são tão visíveis como a Casa dos Homens, entre os Kayapó ou o Conselho dos Velhos no pátio da aldeia, entre os Xavante, mas elas têm eficácia reguladora sobre as interferências externas (RICARDO, 1996). Constituem mecanismos internos de resistência ou de apoio às iniciativas implementadas nas aldeias.

Por conseguinte, o que está em jogo é a valorização e proteção dos conhecimentos tradicionais, algo que perpassa todos os três eixos, pois tem valor único para a humanidade. Significa dizer que a ATER baseada no diálogo intercultural reconhece os valores culturais, visões de mundo, modos de vida e concepções religiosas dos povos indígenas, e conhece os impactos negativos de enfoques extremamente materialistas e economicistas nestas sociedades.

Então este é o segundo eixo no qual a ATER deve atuar. O primeiro é fazer com que a produção agrícola das famílias indígenas dê certo, o segundo é que estas famílias indígenas consigam transitar no mundo dos brancos, exercendo seus direitos, gestão, comércio, etc. É gerar as condições para suas iniciativas diante do contexto interétnico.

c) Eixo Fortalecimento Cultural e Territorial

Partimos então para o terceiro e último eixo, que trata do Fortalecimento Cultural e Territorial. Como vimos anteriormente, os valores e visões de mundo dos povos indígenas devem ser levados em consideração pela ATER. Enquanto os povos indígenas incorporam a questão da ATER e constituam os seus próprios processos e organizações de ATER, incluindo

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a formação de técnicos, teremos organizações não indígenas parceiras atuando. E embora (por enquanto) seja um agente externo, o extensionista pode contribuir muito com o fortalecimento cultural de um povo.

A começar pelo básico, o aumento da produção de alimentos é um aspecto que pode reativar a ocorrência de festas e cerimônias coletivas, porque cria condições para uma aldeia convidar outras. Com a quantidade de comida suficiente para receber os parentes se retoma a vida ritual entre as aldeias. Contribuir para a recuperação de plantios e alimentos tradicionais é outro aspecto que faz reativar signos tradicionais devido à quantidade de rituais ligados aos momentos de plantio, colheita e confecção dos alimentos.

Entretanto, nem sempre a relação entre a cultura e a agricultura é tão fácil de ser visualizada pelo extensionista, e ele pode não se interessar pelos eventos culturais, pela língua, por um rito de cura ou uma dança. É neste momento que o extensionista precisa saber que não pode enxergar as coisas de forma estanque, porque tudo está relacionado. No caso Guarani, o modo de vida se organiza a partir da casa de reza, reconhecida por muitos como a verdadeira sala de aula daquele povo. Sem ela, o sistema Guarani não se organiza a contento, o que significa dizer que a produção agrícola não se organiza da forma tradicional, prejudicando o plantio de alimentos sagrados como milho e feijão, e as respectivas cerimônias de consagração e agradecimento. Muitos artesanatos indígenas comercializados atualmente advêm de artefatos rituais, os banquinhos indígenas produzidos por povos indígenas do Amazonas, Mato Grosso, Pará e Tocantins são um exemplo disso. Embora no cotidiano possam ser utilizados por qualquer um da aldeia, durante os rituais eles constituem objeto que diferencia socialmente os indivíduos. A comercialização deles pode ser um incentivo aos mais jovens de não apenas reativar a técnica de confecção dos banquinhos, mas todo o simbolismo em torno dele. Outro exemplo são os grafismos que através do artesanato podem ganhar força, resgatando padrões ancestrais e oportunizando novos desenhos.

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A língua é vista como um obstáculo por muito extensionistas, e por isso, sua inserção em determinado povo indígena fica limitada, o que pode comprometer a profundidade do seu trabalho de ATER. Apesar de haver falantes de português na maioria esmagadora dos povos brasileiros, não há tradução direta para muitas palavras, conceitos e noções. Além disso, a estrutura de uma língua influencia diretamente na forma como os falantes desta língua organizam seu pensamento. Portanto o esforço em entender minimamente a língua do povo beneficiário é vital. Isto inclusive tornará o seu cotidiano na aldeia muito mais agradável, e permitirá uma compreensão em um nível mais profundo das concepções e forma de vida daquele povo. Valorizar a língua pode significar também valorizar classificações e fisionomias do bioma local que são próprios daquele povo. Estas classificações tradicionais se diferenciam dos da ciência ocidental e são parte fundamental do conhecimento indígena para manejar o meio ambiente, organizar a agricultura, contatar o mundo metafísico, etc.

Mesmo nas sociedades em que o português se mostra predominante à língua materna é recomendável o incentivo do uso da língua, o que não necessariamente significa a presença de um intérprete durante toda a atividade. Antes de uma oficina ou um curso é possível incentivar cantos ou discursos tradicionais na língua. Em certos momentos da atividade pode se questionar sobre o nome ou expressão de coisas, sentimentos ou processos na língua indígena. São muitas as possibilidades. É importante não pensar que o ensino da língua (materna e o português) deva acontecer apenas dentro das salas de aula.

O conhecimento acerca da organização social de cada povo é importante porque nas sociedades indígenas, assim como na sociedade nacional, não há um indivíduo conhecedor de tudo. Nas diferenciações entre os indivíduos, há também uma divisão acerca dos conhecimentos tradicionais. Há saberes comuns a todos daquele povo, mas há saberes que apenas alguns detêm, os quais podem ser passados adiante somente segundo uma lógica determinada. Portanto, há conhecimentos que apenas

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algumas famílias, clãs ou indivíduos possuem. Assim, existe aquele “sábio” da agricultura, outro dos cantos, outro da reza, da caça etc. Então o extensionista tem que estar atento para perceber dentro do povo indígena se existe pessoa que se destaca pelo seu conhecimento tradicional da agricultura, e quais são as formas para que este saber possa ser disseminado.

O terceiro eixo então é aquele que prevê o apoio aos processos indígenas de fortalecimento cultural, porque é a partir daí que a ATER Indigenista se viabiliza. Acontece que para um povo se realizar culturalmente, necessita de um território. Necessita de uma base material que forja e nutre material e simbolicamente suas concepções. Ou seja, precisa dos recursos naturais que garantem a reprodução física e de marcos geográficos que dão sentido a uma cosmologia particular e a uma própria história enquanto povo. Neste sentido, os sítios sagrados, as antigas aldeias e os lugares mitológicos dos povos indígenas fornecem os elementos espaciais de identidade e pertença a um grupo e a uma história em comum. Evidenciam uma percepção única sobre a terra, algo muito distante da categoria mercadoria. Ilustram como as dimensões física e metafísica podem estar tão conectadas. As terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são o pilar da identidade cultural, e assim devem ser protegidas.

A proteção e o uso destas terras, a denominada gestão ambiental e territorial das Terras Indígenas, portanto, também deve ser uma preocupação do extensionista. Outrora autônomos, no sentido de sociedades autosuficientes em termos materiais e políticos, os povos indígenas tiveram que se adaptar a novos contextos que lhes impuseram consideráveis restrições territoriais, ambientais e logo, de saúde. Invariavelmente, na sua forma violenta ou pacífica, o contato com o “mundo civilizado” provocou depopulação, perda de território e transformação de seu ecossistema.

As terras atualmente demarcadas estão distantes de garantir o que é constitucionalmente reconhecido ao indígena, ou seja, as terras tradicionalmente ocupadas. Entendidas como aquelas habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as

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imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (CEF Art. 231). A pesquisa de Baines (1993) revela que as epidemias que dizimaram grande parcela da população Waimiri-Atroari foram consequência da Frente de Atração Waimiri-Atroari. Entre 1972 e 1977 o território dos Waimiri-Atroari passou a ser afetado pela estrada BR-174 que liga Manaus a Boa Vista, pela implantação de uma mina de estanho, pela construção da hidrelétrica de Balbina, e por projetos pecuários nos limites da área. A demarcação da Terra Indígena Enawenê-Nawê não incluiu o Rio Preto, local onde praticam sua pesca ritual de barragem, extremamente importante para a cosmologia deste povo. Os Pareci viviam segundo um calendário adaptado aos ambientes que ocupavam: no cerrado se dedicavam a caça e coleta de frutas e na floresta, à agricultura. Porém a demarcação das terras Pareci garantiu a parte desta população apenas as áreas de cerrado porque eram justamente o tipo de ambiente que à época não era valorizado pelo agronegócio. O solo das matas, mais fértil para a agricultura, onde exatamente os Pareci praticavam sua agricultura, ficou então liberado para o uso dos fazendeiros. Com o desenvolvimento de tecnologias adaptadas para o cultivo de grãos e fibras nos solos do cerrado, os Pareci passaram a ser intensamente assediados para arrendarem suas terras e realizar parcerias agrícolas. Parcelas consideráveis das terras Pataxó e Kaingang eram arrendadas para não indígenas pelo próprio órgão de proteção ao índio, desde a demarcação das mesmas, seguindo a lógica da integração.

Outros vários exemplos ainda poderiam ser citados para demonstrar como é complexo discutir o tema da autonomia indígena, diante das consequências do contato interétnico e do problema territorial. Com isso, o terceiro eixo deve possuir ações voltadas à gestão e ao controle territorial, contribuindo com a ocupação, defesa e usufruto dos territórios indígenas. Recuperação de áreas degradadas considerando os saberes tradicionais, manejo de áreas e espécies, apoiando o planejamento e organização daquele espaço, dando sentido produtivo às áreas indígenas dentro do contexto cultural de cada povo, e sob os preceitos do

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desenvolvimento sustentável no seu sentido mais primário. Satisfazer às demandas da atual geração sem comprometer as necessidades das futuras gerações.

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A Experiência de Assistência Técnica e Extensão Rural junto aos Povos Indígenas: uma Visão do Gestor da Política

Sílvia Helena de Souza Ferrari

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A Experiência de Assistência Técnica e Extensão Rural junto aos Povos Indígenas: uma Visão do Gestor da Política

Sílvia Helena de Souza Ferrari1

Processos que Levaram ao Trabalho da ATER em Áreas Indígenas no Âmbito do MDA

Nos últimos anos a política indigenista brasileira tem passado por diversos avanços, como o número de áreas do governo a se empenhar na construção de programas específicos para as populações indígenas, reconhecendo as especificidades das mesmas, e com uma considerável qualidade na formulação dos mesmos. Isso tem representado também uma nova forma de encarar os indígenas como agentes participativos na construção de sua cidadania. Podemos destacar o Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2.004, no qual o Brasil ratifica a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), como um marco nesse processo em que o Estado formaliza o reconhecimento dos grupos tribais com suas especificidades e direitos diferenciados, deixando de ser “a questão indígena” apenas atribuição da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Por outro lado, ainda continuam existindo dificuldades de diálogo e articulação entre os órgãos governamentais, especialmente no dia a dia da execução de suas ações, e também faltam maior participação e controle social por parte dos indígenas na construção e execução das políticas.

Nesse contexto de reflexões da política indigenista, a III Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas, realizada em maio de 2001, apontou que muitos dos problemas de saúde existentes nas populações indígenas tinham como origem fatores mais amplos e que não poderiam ser solucionados apenas pelo serviço de saúde. Na raiz estavam e estão os problemas territoriais (falta de demarcação, regularização, desintrusão,

1 Engenheira Florestal. Atua desde março de 2008 na gestão técnica da Ação Orçamentária “ATER em Áreas Indígenas” do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

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vigilância e áreas muito reduzidas), a degradação ambiental (no interior e entorno dos territórios indígenas), e relações conturbadas com a sociedade envolvente, que inclui todos os tipos de pressão, inclusive econômica, produtiva e cultural. Estes fatores geram insegurança alimentar e nutricional e instabilidade social nas comunidades indígenas. Frente a isso, era necessária a formulação e execução de políticas complementares que garantissem as condições necessárias para a melhoria da qualidade de vida dos povos indígenas, respeitando suas especificidades e de acordo com sua cosmologia.

Diante desse quadro, a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (CISI), instância assessora do Conselho Nacional de Saúde (CNS), tomou para si a responsabilidade por dar continuidade à discussão encaminhada pela conferência e no segundo semestre de 2002 constituiu uma comissão para promover uma série de consultas às comunidades indígenas e suas organizações. Essa comissão foi formada por representantes governamentais e indígenas, e teve como objetivo principal reunir subsídios para a elaboração de uma proposta de política nacional focada na promoção da segurança alimentar e no desenvolvimento sustentável dos povos indígenas.

Entre 2002 e 2003 foram realizadas 17 consultas aos Povos Indígenas, em forma de oficinas macro regionais. Essas oficinas foram coordenadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, em parceria com outros ministérios e organizações indígenas e indigenistas, são eles: Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar (MESA), atual Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS), Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ministério da Educação (MEC), Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Espírito Santo e Minas Gerais (APOINME), Conselho Nacional de Mulheres Indígenas (CONAMI), Pastoral da Criança e Warã Instituto Indígena Brasileiro.

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As oficinas foram realizadas nos estados de Tocantins, Espírito Santo, Alagoas, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rondônia, Roraima, Acre, Paraná e Amapá, e contaram com a participação de 680 lideranças indígenas representando 175 povos de todas as regiões do Brasil. Entre os temas debatidos pelas comunidades e organizações indígenas durante as consultas destacaram-se os seguintes:

• O reconhecimento e a garantia de seus territórios;

• A proteção, a recuperação e o uso sustentável dos recursos naturais;

• As atividades produtivas (auto-sustentação e renda);

• O papel da assessoria técnica no fortalecimento das capacidades locais;

• A situação alimentar e nutricional nas Terras Indígenas, assim como alternativas culturalmente adequadas para solucioná-las;

• A saúde indígena e os serviços de atenção a ela;

• A política de educação escolar indígena e sua implementação nos diversos níveis de formação;

• A necessidade de maior participação e controle social indígena sobre as políticas públicas que os afetam.

Em novembro de 2003 as oficinas culminaram no Fórum Nacional para Elaboração da Política Nacional de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Sustentável dos Povos Indígenas, da qual participaram 81 lideranças indígenas e representantes do governo federal e de entidades da sociedade civil. O fórum gerou um documento final que foi entregue ao Congresso Nacional no dia 27 de novembro de 2003, em audiência pública realizada com a Comissão de Agricultura e Política Rural da Câmara dos Deputados e a Secretaria Geral da Presidência da República, por uma comissão de

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representantes indígenas e técnicos governamentais. O documento versou sobre os temas provenientes das consultas, contendo seu detalhamento, e também indicou a forma como os Povos Indígenas do Brasil percebiam ser a maneira mais correta de promover ações integradas visando garantir a segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável de seus territórios.

As consultas e o fórum deram origem a diversas ideias que foram levadas a discussões internas nos órgãos do governo e entre os mesmos, impulsionadas pela leitura que os representantes indígenas fizeram de suas realidades, necessidades e formas de solução adequada para as mesmas. Pois é desse fervilhar de ideias que nascem ações específicas para as populações indígenas no MDA, MMA e MDS.

Ainda no ano de 2003, por intermédio do Decreto n° 4.739, de 13 de junho, foi transferida do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) a competência de coordenação e execução da Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), inclusive em áreas indígenas. No ano seguinte, a Assistência Técnica e Extensão Rural em Áreas Indígenas (ATER Indígena) torna-se realidade como ação orçamentária, incorporando a construção política e metodológica fruto do processo das consultas, e tendo como referência principal o documento final do Fórum de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Sustentável.

Estruturas de Gestão da Política

A Assistência Técnica e Extensão Rural em Áreas Indígenas, mais conhecida como ATER Indígena, com perfil de trabalho fruto das consultas e do Fórum Nacional, nasceu sob a coordenação da Assessoria Especial de Gênero Raça e Etnia (AEGRE), diretamente ligada ao gabinete do ministro do Desenvolvimento Agrário, por meio do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia (PPIGRE).

O PPIGRE tem a responsabilidade de atuar no desenvolvimento de

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políticas públicas que buscam promover a inclusão social e os direitos econômicos das trabalhadoras rurais, das populações indígenas e das comunidades quilombolas, por intermédio do apoio à produção e do acesso e garantia de uso da terra. Assim, durante o período dos anos de 2003 a 2008 o programa foi responsável por articular com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) o Programa Nacional de Reassentamento de Ocupantes Não Indígenas em Terras Indígenas, o Grupo Técnico Indígenas e a participação da representação indígena no âmbito do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF), como também a execução da ATER em Áreas Indígenas.

Nesse período também foram realizados estudos e discussões sobre as demandas de crédito e dificuldades de acesso pelas populações indígenas, chegando a serem feitos diálogos sobre a criação de uma linha do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) específica para essas populações. Como o crédito é um tema bastante polêmico, implicando em parte da produção ter de ser reservada para venda e pagamento do crédito, e essa lógica econômica conflitar com a realidade cultural da maioria dos grupos indígenas, as discussões não chegaram a um encaminhamento positivo, seja na criação da linha específica, seja no sentido da adequação para acesso às outras linhas então existentes.

No mês de março de 2008, a ação de ATER Indígena mudou de instância coordenadora dentro da estrutura do MDA, saindo da AEGRE para a Secretaria da Agricultura Familiar (SAF), após quatro anos sendo coordenada por aquela instância.

Na SAF, o Departamento da Assistência Técnica e Extensão Rural (DATER) foi o setor que passou a responder pela ATER Indígena. Foi levada à direção do departamento pelos técnicos que atuariam com o acompanhamento da ação uma proposta de realizar o trabalho exclusivo pelos mesmos com o tema através de um Núcleo de ATER Indigenista.

A proposta apresentada foi deferida pela direção e hoje é a mesma que orienta o trabalho da área técnica. O núcleo atua, então, com três

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eixos norteadores para suas atividades:

• Diálogo Intercultural e Garantia Territorial;

• Projetos Produtivos – subdividida em (a) conhecimento tradicional e (b) novos conhecimentos e tecnologias;

• Fortalecimento Institucional das Organizações Indígenas – que inclui os temas (a) garantia de direitos, (b) comercialização e (c) gerenciamento.

Breve Avaliação das Ações do Período 2004-2009

A ATER Indígena começou suas atividades no ano de 2004, já como ação orçamentária no Plano Plurianual (PPA) 2004-2007. Nesse ano e em 2005 o MDA dá apoio a projetos para comunidades indígenas por intermédio de dois mecanismos: da denominada chamada pública, lançada pela SAF e destinada à capacitação de agricultores familiares; e por demanda espontânea para ATER, recebida pelo PPIGRE.

Em dezembro de 2005, o MDA/AEGRE/PPIGRE realiza o seminário Arranjos Produtivos e Desafios Econômicos entre Populações Indígenas – Experiências e Perspectivas para as Políticas Públicas. Além de conhecer e analisar experiências então desenvolvidas por organizações indígenas, organizações não governamentais, universidades e por órgãos governamentais ou empresas públicas com projetos de apoio e incremento econômico entre populações indígenas, o seminário teve como objetivo específico reunir aportes para MDA/PPIGRE desenhar sua política etnodesenvolvimento indígena e também propor um modelo de chamamento público de ATER Indígena que se aproximasse das demandas das mais diversas etnias indígenas do país.

Nesse mesmo ano foi lançado pelo MDA, numa parceria entre o Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD) e a Editora Contra Capa, o livro Assistência Técnica e Financeira para o Desenvolvimento Indígena – Possibilidades e Desafios para Política Pública, o qual reuniu um

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conjunto de artigos de diferentes autores que trazem novos elementos ao debate da assistência técnica e financeira, assim como subsídios aos gestores de políticas e aos executores diretos da ação2.

No ano seguinte, em 2006, foi lançada a primeira chamada específica de projetos de ATER junto a Populações Indígenas, incorporando sugestões feitas por diversos setores da sociedade civil, por meio dos debates realizados até então. Procurando auxiliar na qualificação dos projetos concorrentes ao chamamento, foram realizadas duas oficinas: uma em Maceió, com participantes do Nordeste do país, e outra em Porto Alegre, com participantes das regiões Sudeste e Sul. Buscava-se, então, concentrar esforços nas regiões identificadas como as de populações indígenas com maiores carências e que apresentavam, de uma forma geral e naquele momento, maiores dificuldades na qualificação de projetos.

Em 2007, o Programa Territórios da Cidadania começa a ter suas áreas como prioritárias para atendimento pela ATER Indígena, assim como por outros programas do governo. São áreas consideradas de grandes necessidades, que precisariam de um conjunto de políticas públicas disponibilizadas de forma integrada. Dos 60 Territórios da Cidadania do programa, 33 incidiam sobre 156 Terras Indígenas.

O ano de 2008 foi de grandes mudanças na ATER Indígena. Logo no início do ano a ação passa a ser coordenada pelo Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural/ Secretaria da Agricultura Familiar (DATER/ SAF). Ao mesmo tempo em que gera um período de adaptação à nova estrutura e seus procedimentos internos, a transferência para a SAF abre novas oportunidades. A ATER Indígena passa a ter um diálogo mais próximo com a ATER pública, as chamadas Empresas Estatais de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER’s) nos estados e com as organizações pertencentes às chamadas Redes de Prestadoras de Serviços de ATER.

As Redes Temáticas são um instrumento criado pela SAF para

2 Cf. Verdum (2005).

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dialogar com as EMATER’s os temas prioritários de trabalho da Secretaria, influenciando assim na forma como os recursos vinculados aos projetos apoiados nessas instituições através de Termo de Referência são aplicados no trabalho de ATER. As redes temáticas hoje dialogam 14 temas com as EMATER’s, tendo como principal interlocutor os articuladores estaduais, que têm a função de introduzir, desenvolver e fortalecer os temas nas empresas. A formação de recursos humanos (“técnicos”) nos temas e a criação de uma política institucional de trabalho estão entre as principais tarefas dos articuladores. Os temas trabalhados pelas redes são os seguintes: Agroecologia; Formação de Agente de ATER; Produtos e Mercados Diferenciados: ATER e Pesquisa; Diversificação na Agricultura Familiar Fumicultora; Agroindústria Familiar; ATER para Mulheres Rurais; Metodologias Participativas; Comercialização; Biodiesel; Financiamento e Proteção da Produção; Leite; ATER em Turismo na Agricultura Familiar e ATER juntos aos Povos Indígenas.

A Rede Temática de ATER Indígena foi criada em agosto de 2008, durante reunião em que compareceram representantes de 21 estados (CE, PB, AL, MA, BA, PE, SP, RJ, ES, RS, PR, SC, RO, PA, RR, AC, AM, TO, MS, GO e MT), os articuladores indicados pelas EMATER’s para o tema. Nesse momento foi solicitado que as instituições apresentassem as experiências de trabalho já desenvolvidas com populações indígenas e quais as perspectivas de política institucional para trabalho no tema. Com o intuito de trazer a reflexão sobre as especificidades de uma ATER em Áreas Indígenas, foram realizadas palestras com temas referentes ao histórico da ação, seu funcionamento e também sobre etnodesenvolvimento, apresentado pela Coordenação Geral de Desenvolvimento Comunitário da FUNAI. Também houve participação de representante do Sistema de Vigilância em Saúde (VIGISUS/FUNASA), que falou das experiências de apoio aos projetos de medicina tradicional indígena.

Na ocasião foram acordadas com os articuladores estaduais as ações que deveriam ser priorizadas nos projetos das EMATER’s, considerando duas

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situações:

Para estados que não têm atuação junto aos Povos Indígenas:

• Apoiar a formação e capacitação de gerências, núcleos ou departamentos no interior das instituições, que respondam ao tema em diálogo com o MDA e outras instituições, além de organizar o trabalho em áreas indígenas junto às demais unidades do órgão no estado;

• Realizar seminários integradores com instituições que assessoram os povos indígenas no estado e órgãos de governo que tenham ações junto aos mesmos, visando à cooperação interinstitucional, evitando sobreposição de ações e potencializando as ações em andamento;

• Realizar formação de pessoal do quadro técnico da organização e de outras instituições parceiras para o trabalho com o público indígena. Necessariamente deve contar com apoio de antropólogos com experiência no tema e com as organizações representantes do movimento indígena;

• Intercâmbio dos técnicos com empresas estaduais e ou ONG’s de ATER de referência no trabalho de ATER Indígena. O programa e a metodologia dessas capacitações deverão necessariamente ser negociados com a SAF/MDA.

Para estados que já desenvolvem trabalho com os Povos Indígenas, também estavam previstos:

• Respeitando as características de cada etnia, possibilitar às comunidades acesso aos programas existentes, como: Agroindústria Familiar; Apoio à Comercialização dos Produtos e Serviços da Agricultura Familiar; Produtos e Mercados Diferenciados da Agricultura; Atividades Não-Agrícolas (artesanato), Crédito PRONAF e Programa de Aquisição de Alimentos (PAA);

• Incentivar a participação indígena no controle social do programa

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Territórios da Cidadania;

• Nos projetos de investimento firmados com o MDA, as Redes devem apoiar os empreendimentos produtivos indígenas (como casas de farinha, tanques de piscicultura, meliponicultura, dentre outros) seguindo estritamente a lógica indígena de apropriação de tecnologia. Foi estabelecido como critério básico que os projetos deveriam ser discutidos no pátio da aldeia, casa dos homens ou outro espaço de decisão pública/coletiva tradicional. Seguidas de ações continuas de formação e treinamento, além de acompanhamento de antropólogo ou indigenista conhecedor do povo;

• Recuperar sementes tradicionais de uso indígena e formar bancos coletivos de sementes.

Posteriormente, durante o processo de apresentação das propostas pelas empresas públicas, foram recomendados ajustes e complementações nos projetos no que se refere às especificidades socioculturais do público indígena alvo, na metodologia do trabalho, e na incorporação de estratégias de etnodesenvolvimento, levando em consideração a carência de formação dos técnicos no tema. No total foi aprovado o apoio financeiro a 17 estados, através das EMATER’s do AC, MS, SP, BA, CE, PA, PB, PR, RO, MT, SC, AM, PE, TO, AL, MA e RJ.

É importante destacar que o Termo de Referência para Convênio com as EMATER’s não contou com meta obrigatória para ser executada com relação a ATER em Áreas Indígenas. Foi previsto no Termo de Referência que as metas vinculadas às Redes Temáticas dentro dos projetos deveriam ser acordadas dentro da rede entre o articulador nacional e os estaduais. As atividades da meta de ATER Indígena foram pactuadas para ações a partir do estágio de trabalho em cada estado com o tema. De modo geral houve grande interesse das empresas em trabalhar com o tema, buscando essa parceria com o MDA de forma voluntária.

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Na maioria dos estados, os convênios firmados em 2008 tiveram um foco bastante estratégico, orientando-se para a estruturação de equipes afinadas com o tema. Notou-se também a busca da consolidação das condições necessárias para uma ação sistemática e continuada, solicitação que vem sendo feita há muito tempo pelos Movimentos de Luta pelos Direitos Indígenas.

Nesse mesmo ano ocorreu o primeiro evento fruto dessas discussões com as EMATER’s, o I Seminário Estadual de ATER Indígena de Pernambuco, organizado pelo Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA) e apoio financeiro da Secretaria Estadual de Agricultura de Pernambuco.

Tentando ampliar a discussão das especificidades do trabalho de ATER junto aos Povos Indígenas e contribuir na formação dos técnicos que atuam em campo, foram realizados dois cursos regionais de carga horária de 40 horas cada, em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA), no Norte e com a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), no Nordeste, que contou com a presença de agentes de ATER das EMATER’s, de organizações não governamentais, de lideranças indígenas e da FUNAI local e nacional. Foram iniciativas piloto que tiveram como fim orientar cursos de formação previstos para serem feitos nos estados, por meio dos convênios das EMATER’s. Cada curso teve a participação de aproximadamente 40 pessoas.

A execução orçamentária foi parcialmente prejudicada por várias razões nesse ano, entre elas verificou-se que houve grande dificuldade das entidades parceiras, que tiveram projetos selecionados na Chamada para Projetos, em se adequar ao sistema de cadastramento e credenciamento para estabelecer convênios com o Governo Federal, o denominado Sistema de Convênios (SICONV/Ministério do Planejamento), estabelecido pelo Decreto 6.170/2007 e a Portaria Interministerial 127/2008.

Apesar dessa dificuldade inicial – a qual se somou o processo transição da ATER Indígena da AEGRE para a SAF, com a decorrente necessidade de se adequar a dinâmica de execução da nova estrutura político-administrativa

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– houve um aumento significativo no recurso orçamentário da ação, passando de R$ 450 mil em 2007 para R$ 4,240 milhões a partir de 2008. O recurso financeiro disponível para ATER Indígena foi aumentado visando o atendimento dos novos desafios colocados pela implementação dos objetivos do Programa Territórios da Cidadania.

É importante destacar também que ocorreu nos dias 23 e 24 de junho de 2008 o Seminário Preparatório dos Delegados Indígenas. Esse evento ocorreu em Recife-PE como espaço de discussão dos delegados indígenas sobre o documento base para a I Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário - I CNDRSS, que ocorreu de 25 a 28 de junho, em que tiraram posições com relação aos temas afetos aos povos indígenas. Esse seminário foi organizado pela Secretaria da Agricultura Familiar (SAF) e Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) e coordenado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e pela Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), e ocorreu a partir de uma solicitação da representação indígena no Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF), pela necessidade de um encontro preparatório que oportunizasse aos representantes indígenas uma discussão coletiva antes do evento. Participaram da conferência 40 delegados indígenas e, apesar da pequena dimensão numérica perto dos aproximadamente 1600 delegados totais, a organização apresentada na participação dos indígenas nos espaços de discussão teve grande destaque, e o documento final incorporou diversas propostas dos mesmos.

Já no ano de 2009 houve a ampliação dos Territórios da Cidadania para 120, dos quais 63 incidem sobre 317 Terras Indígenas.

Esse ano contou com a utilização da totalidade do orçamento previsto, com a contratação de projetos e pagamento de parcelas de projetos de anos anteriores, sendo ainda necessário o aporte de recurso extra da ATER na Agricultura Familiar.

Houve também diversas atividades que vieram a fortalecer a ação

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da ATER Indígena. Cabe destacar o Chamamento Público para artigos sobre ATER Indígena, visando à publicação deste livro. Essa publicação, no nosso entendimento, será um passo a frente em relação à feita em 2005, pois seu conteúdo reflete, agora, sobre experiências levadas a cabo por projetos apoiados pela ATER Indígena do MDA.

Outra atividade importante desenvolvida em 2009 foi o Seminário “Acesso a Políticas Públicas e Segurança Alimentar e Nutricional para Povos Indígenas: PAA”, organizado por vários órgãos do governo federal (MDA, MDS, FUNAI, MMA e CONAB) em Brasília. Nesse seminário pretendeu-se estabelecer as bases para uma maior e melhor inserção dos povos indígenas no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Para isso, foram convidados parceiros e organizações regionais para discutir esta pauta e planejar uma agenda de reuniões e oficinas direcionadas ao PAA em algumas regiões.

A equipe de ATER Indigenista/DATER/SAF contribuiu também com a organização de eventos de formação de agentes de ATER que atuarão junto às comunidades indígenas e no diálogo no interior dos órgãos públicos de extensão rural sobre a ATER Indígena. Alagoas, Pará, São Paulo, Paraná e Bahia são exemplos de estados que tiveram eventos sobre a questão.

No período de julho e agosto foram realizadas, ainda, seis oficinas em parceria com a Carteira Indígena/MMA, para Pernambuco, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Amazônia Legal, Sul/Sudeste e Nordeste. Com apoio financeiro do MMA, tais oficinas tinham como objetivo o diálogo com os parceiros atuais e potenciais no trabalho de ATER Indígena e movimento indígena organizado, sobre os processos seletivos de ATER Indígena, com chamamento aberto pelo MDA e ATER aos projetos atuais e futuros apoiados pela Carteira Indígena/MMA. Essas oficinas foram de grande importância na contribuição para o sucesso do Chamamento Público 2009 para ATER em Áreas Indígenas, o qual trouxe várias novidades em relação aos chamamentos anteriores. Entre elas, a obrigatoriedade de apresentação da proposta via SICONV e o fortalecimento da Rede Temática ATER Indígena, que foi ampliada com a inserção de novos parceiros de organizações

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não governamentais que atuam com ATER Indígena e organizações de representação indígena. Assim conseguimos inovar no conceito das Redes Temáticas e criar um espaço de diálogo não só para o trabalho das EMATER’s, mas também na construção dos conceitos e métodos da ATER Indígena. Também se fortaleceu a ideia da importância do trabalho em rede entre as organizações nas regiões, e entre essas, o governo e o movimento indígena. Foi nesse contexto que tiveram início as primeiras Redes Estaduais de ATER Indígena, em Pernambuco e no Ceará.

O MDA se envolveu em parceira com a FUNAI e o MMA no processo de construção do Plano de Gestão Ambiental e Territorial Xavante. As oito Terras Indígenas (TI) Xavante se localizam no estado do Mato Grosso e sofrem intensa pressão do agronegócio, influenciando diretamente no dia a dia dessas comunidades e na sustentabilidade de seu território. As duas últimas décadas estão marcadas por números elevados de mortalidade infantil por desnutrição proteico calórica; altas taxas de hipertensão e diabetes entre os adultos; confinamento em territórios sob pressão ecológica dos plantios de soja e algodão em seu entorno; redução significativa do recurso de caça, fonte principal da alimentação tradicional desse povo. Além dos problemas causados pelas roças mecanizadas de arroz introduzidas pela FUNAI por meio do denominado Projeto de Desenvolvimento da Nação Xavante, durante os anos 1980, alterando significativamente muitos itens da alimentação dessas comunidades. Em algumas TI’s, projeto semelhante foi implementado pelas Missões Salesianas.

Além dessa situação de fragilidade nutricional, os Xavantes estão tendo que enfrentar propostas de plantio de soja dentro dos seus territórios. A sedução econômica é intensa e no entorno das Terras Indígenas tais plantios já ocorrem, com a invasão dos limites territoriais pelos fazendeiros vizinhos. É urgente elaborar um processo de gestão do território que os fortaleça social e culturalmente e lhes garanta o uso fruto do mesmo, o que é garantido na Constituição de 1988.

Diante desse quadro, a Associação Xavante Warã a partir de discussões

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internas nas aldeias apresentou para FUNAI, MDA e MMA a necessidade de construir uma parceira entre essas instituições do governo e as comunidades Xavante. Essa parceria visaria à construção e implementação de Planos de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas Xavante. Esse diálogo começou em meados do ano de 2009, e como primeiro passo dessa parceria foi realizado em novembro o Seminário de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Xavante de Sangradouro/Volta Grande e Marechal Rondon. Nesta ocasião foram debatidas demandas e possibilidades de apoio institucional para gestão dos recursos naturais, proteção territorial, comercialização da produção, entre outras questões. Ao final desse evento foi formada uma comissão para dar continuidade ao diálogo interinstitucional, tendo como referência os encaminhamentos tirados como linhas de trabalho prioritárias e a perspectiva de ampliação dessa discussão nas outras TI’s Xavante no ano de 2010.

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Quadro Síntese: Projetos e Recursos aplicados no período de 2004-2009

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Principais Desafios e Avanços

Muitos desafios têm sido vivenciados pela ATER Indígena nesses sete anos de trabalho. É importante que destaquemos alguns, que são motivo de reflexão interna e em diálogo com outros órgãos, instituições prestadoras de ATER Indígena, movimento indígena e comunidades indígenas beneficiárias, assim ampliando esse diálogo com a sociedade em busca de soluções para os mesmos.

Um grande desafio enfrentado nos projetos de ATER Indígena, assim como nas demais linhas de ação disponíveis nos órgãos de governo para acesso pelas comunidades indígenas é a legislação referente ao acesso e comprovação financeira da execução desses projetos.

A constituição de 1988 através do artigo 231 garante aos índios o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, mas o repasse de recursos oriundos da União para através de projetos é feito obedecendo à legislação de convênios, contratos e licitações o que entra em conflito com esse direito. A inexistência de uma legislação que atenda o respeito às formas de organização social dos povos indígenas e que propicie aos mesmos formas diferenciadas de acesso e comprovação do uso do recurso público para projetos em suas comunidades gera dificuldades no acesso, pois estes têm que se adequar a estruturas de organização da sociedade envolvente como as associações e cooperativas, além da dificuldade de gerenciar essas organizações. Esse tipo de obrigatoriedade vai contra o fortalecimento da autonomia dessas comunidades, contra o direito de gerenciarem o que querem de melhor para suas vidas e os recursos investidos para isso, sem depender de outras instituições. Tais formas de organização também geram em muitos casos conflitos dentro das comunidades indígenas, pois estabelecem outras instâncias de decisão e de poder dentro da organização social.

A dificuldade de gerenciar as documentações necessárias para comprovação do uso de recursos públicos nos moldes da legislação vigente por meio da estrutura dessas pequenas associações, em boa parte das vezes

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em áreas bastante isoladas, é uma preocupação constante dos órgãos do governo com ações voltas para populações indígenas. Há a necessidade de adequação dos instrumentos legais num país multicultural e multiétnico, em vez de exigir que esses povos se adequem as mesmas, uma vez que são políticas específicas, não podendo ser tratadas como políticas universais.

As organizações que lidam com o meio rural, de uma forma geral têm dificuldades com essa documentação exigida, tanto pela falta de empresas que forneçam as mesmas tais como exigidas, como em muitos casos devido a inexistência de concorrência e até mesmo à grande distância dessas em relação ao local das aldeias. No caso das organizações indígenas e indigenistas, existe o preconceito regional, existem empresas que se negam a fornecer o produto quando sabem que está vinculado a projetos indígenas. Principalmente nas situações em que o pagamento só pode sair da conta do projeto e ser feito mediante a apresentação da nota fiscal, ou seja, o produto tem que ser adiantado ao pagamento.

A estrutura do governo federal em grande parte de suas ações não faz execução direta dos recursos, mas por meio de parcerias, pois não possui capilaridade para realizar tal atribuição, como é o caso da ATER. Por isso, nos preocupamos quando chamamos instituições para essa parceira e, depois que as mesmas realizam o trabalho são obrigadas a devolver parte dos recursos por inadequação ou problema na documentação comprobatória apresentada, mesmo não comprovada má fé. Isso envolve questões que vão além de uma inadequação dos procedimentos legais para esse tipo de público e ação: falta capacitação pelos órgãos dessas instituições na prestação de contas, falta acesso das entidades aos acórdãos dos órgãos de controle, dentre outras questões.

Outra dificuldade encontrada pelos projetos de ATER Indígena é o perfil diferenciado que deve ter a instituição para realizar as atividades dessa ação, em que a mesma deve conhecer a cultura indígena e realizar os trabalhos com base nos princípios do etnodesenvolvimento.

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O etnodesenvolvimento significa que a etnia, autóctone, tribal ou outra, detém o controle sobre suas próprias terras, seus recursos, sua organização social e sua cultura, e é livre para negociar com o Estado o estabelecimento de relações segundo seus interesses (Stavenhagen 1984:57 apud Azanha 2002:31).

São princípios do etnodesenvolvimento:

• Objetivar a satisfação de necessidades básicas do maior número de pessoas em vez de priorizar o crescimento econômico;

• Imbuir-se de visão indígena endógena, ou seja, dar resposta prioritária à resolução dos problemas e necessidades locais;

• Valorizar e utilizar conhecimento e tradição locais na busca da solução dos problemas;

• Preocupar-se em manter relação equilibrada com o meio ambiente;

• Visar a autossustentação e a independência de recursos técnicos e de pessoal e realizar uma ação integral de base, [com] atividades mais participativas.

Devido à necessidade desse perfil diferenciado e de realizar atividades que muitas das vezes não serão de enfoque agropecuário, mas sim cultural, ambiental, de fortalecimento da organização local, entre outros, as organizações que tradicionalmente atuam com ATER não costumam se adequar e nem se propor ao trabalho. As próprias instituições indigenistas têm dificuldade de aderir à proposta da ação por não visualizarem que o trabalho que realizam é de ATER, pois se acostumaram a entender as atividades de ATER como ações pontuais de transmissão de conhecimento técnico e voltadas para a agricultura familiar não indígena. Isso implica uma dificuldade de encontrar novas parcerias para realizar o trabalho e mesmo a dificuldade de credenciamento como instituição prestadora de ATER quando algumas dessas organizações indigenistas aderem à proposta

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junto às comunidades que atuam, por causa do seu perfil diferenciado. Isso reflete uma série de desencontros nos entendimentos, apontando que a discussão tem que ser ampliada e incorporada nos espaços de debate indigenistas e de ATER.

Apesar dessas dificuldades o número de parcerias tem aumentado, refletindo que esse debate realmente já vem sendo ampliado, principalmente com espaços de discussão promovidos pelo MDA, como as oficinas realizadas em 2009.

Com relação ao perfil das atividades realizadas no dia a dia dos projetos ainda nos deparamos com situações que, apesar das propostas bem desenhadas pecam na execução metodológica, limitando-se a assistência técnica pontual e na falta de transparência no uso dos recursos envolvidos nas atividades frente aos beneficiários. Essa dificuldade envolve uma parte pequena dos projetos apoiados, mas não pode deixar de ser mencionada como uma situação problemática.

É importante também destacar resultados positivos que foram conquistados ao longo desses anos e que demonstram que, apesar das dificuldades encontradas, estamos avançando na construção de um trabalho de ATER que respeita as especificidades dos povos indígenas.

O diálogo mais próximo com as empresas públicas de ATER vem apresentando bons frutos, com alguns estados formando os técnicos para atuar junto aos povos indígenas e com maior interesse desses órgãos de atuar de forma diferenciada com esse público, apesar da dificuldade de manter um corpo técnico dedicado especificamente a esse trabalho.

Internamente o espaço de diálogo no MDA para trabalho específico vem se ampliando e ganhando força com diversas instâncias da estrutura entendendo a necessidade do atendimento diferenciado. Na SAF, a oportunidade de interação com as diversas diretorias e coordenações, assim como outras secretarias, vem sendo oportunizada e tem trazido ganhos para dar nova dimensão aos projetos de ATER em interação com outras políticas.

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O aumento dos recursos orçamentários da ação trouxe um claro diferencial nas possibilidades de trabalho, de apoio a um maior número de projetos e dos recursos dentro desses.

A maior clareza do funcionamento e dos procedimentos da ATER Indígena nos debates e maior espaço também na pauta do movimento indígena tem sido de fundamental importância para o atendimento das reais demandas das aldeias.

Aprendizados Importantes para o Avanço da Política de ATER juntos aos Povos Indígenas

Diversos aprendizados vêm se acumulando ao longo desses anos de trabalho, o mais importante é que eles não se restringem aos gestores, mas alcançam também as instituições executoras, o público beneficiário, as organizações de representação indígena e outros órgãos do governo com ações relacionadas. Isso nos leva a um crescimento real do trabalho, pois prova que sua discussão está sendo internalizada nas mais diversas instâncias e que assim avançaremos de forma coletiva nessa construção.

Os avanços metodológicos são tema de grande ênfase nesses aprendizados, cada vez fica mais claro para todos que não há receita de bolo, mas orientações básicas para o trabalho de ATER Indígena. E para que a construção da ação com cada povo seja desenhada, não haverá uma forma única, mas deve nascer da base, do diálogo e da construção de soluções junto com os indígenas. Tendo a equipe de ATER a função de dar suporte para que as próprias comunidades construam caminhos para enfrentar seus desafios, lembrando sempre de trabalhar a partir dos princípios do etnodesenvolvimento.

Os técnicos e agentes indígenas agrícolas, agropecuários, agroflorestais, ambientais, entre outros, têm sido um referencial importante para o trabalho. Quando os mesmos estão envolvidos em projetos nas suas comunidades, mesmo que os recursos dos projetos terminem, eles dão

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continuidade ao trabalho de ATER, pelo menos dentro da abrangência de sua aldeia. Também são grandes promotores da busca por novos apoios, parcerias e até mesmo que o projeto seja assumido pela associação indígena, e fundamentalmente ajudam a dar uma linha bem estruturada nos projetos de acordo com a realidade local.

Avançamos no entendimento de que ATER Indígena não remete só a atividade agrícola, agropecuária, mas a uma visão mais ampla da vida comunitária e uma atuação com esse enfoque. Entendendo que, visar a Segurança Alimentar e Desenvolvimento Sustentável em Terra Indígena tem como pressupostos o fortalecimento da comunidade, dos valores e hábitos culturais e que podem levar a atividades de enfoque cultural. Saber que não é só produzir alimentos, depende do tipo de alimentos, se fazem parte da dieta alimentar daquele povo, como produzi-lo, respeitando as técnicas tradicionais e os princípios agroecológicos e a organização social e economia indígena.

Deixar claro que nas sociedades indígenas o político, social e econômico estão intimamente ligados, como uma coisa só, sem divisões como na sociedade envolvente, e que não é possível pensar apenas um aspecto como comercialização, por exemplo, sem ver sua repercussão no global. As equipes devem estar preparadas para lidar com essa forma de pensar e se organizar e internalizar os processos sociais no seu trabalho.

Outro avanço importante é a desmistificação da ideia bipolar ”bom selvagem” e “índio aculturado” no processo de trabalho, compreender os processos tecnológicos locais e como as novas tecnologias se inserem nessa realidade, se são adequadas. Esses rótulos são dispensáveis ao fato de as comunidades quererem acessá-las ou não.

Como poderemos perceber ao longo dessa publicação, com o relato de algumas dessas experiências, muitos desafios foram postos e muito aprendizado foi construído na forma, na proposta e execução dos projetos. Também na gestão pública houve muitos avanços e outros mais são necessários, e pretendemos construir isso junto.

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Empenhamo-nos em apoiar e fortalecer uma ATER diferenciada e qualificada que atenda às condições socioculturais e econômicas dos diferentes povos.

Referências Bibliográficas

AZANHA, Gilberto. Etnodesenvolvimento, mercado e mecanismos de fomento: possibilidades de desenvolvimento sustentado para as sociedades indígenas no Brasil. In: LIMA, Antonio Carlos de Souza; BARROSO-HOFFMANN, Maria (orgs.): Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas: Bases para uma Nova Política Indigenista, pp. 29-37. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002.

VERDUM, R. (org.) Assistência técnica e financeira para o desenvolvimento indígena: possibilidades e desafios para políticas públicas. Rio de Janeiro/Brasília: Contra Capa Livraria/ Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2005.

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Reinventando Tradições em busca de Soberania AlimentarDinah Rodrigues Borges

Francsico Ralph Martins da Rocha

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Reinventando Tradições em busca de Soberania AlimentarDinah Rodrigues Borges 1

Francisco Ralph Martins da Rocha2

A agricultura indígena apresenta aspectos de nomadismo, o que implica a necessidade de grandes extensões de terras para o uso dos recursos naturais, como o cultivo de roçados e a caça de animais silvestres. Com o desgaste do solo cultivado, as comunidades abandonam as áreas já utilizadas, indo à busca de novas terras para o cultivo de suas sementes e de caça abundante. Essa forma itinerante de utilização do solo e dos recursos naturais garante a sustentabilidade do sistema produtivo e alimentar. Entretanto, com as demarcações das Terras Indígenas (TIs) estes povos encontraram-se restringidos a territórios delimitados, tendo que se adaptar à nova realidade – com limitações da oferta de alimentos e tendo que trabalhar a recuperação de áreas alteradas.

Aliados à elevada taxa de natalidade e às frequentes invasões dos moradores do entorno das TIs, concorreram para que o Estado interviesse, executando ações compensatórias que assegurasse uma alimentação mínima que permitissem a subsistência dos povos indígenas.

Atualmente os paradigmas que norteiam as ações Assistência Técnica e Extensão Agroflorestal e fomento em áreas indígenas é resultado dos esforços de vários atores, governamentais, não governamentais, sociedade civil organizada, movimentos sociais e principalmente o relacionamento paritário que veio sendo desenvolvido ao longo dos anos. O que contribuiu para uma mudança conceitual, haja vista que nos “tempos dos direitos”, momento em que foram elaborados o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973) e as demarcações das TI, percebe-se uma visão

1 Graduada em História e pós-graduação em Agricultura Familiar Camponesa e Educação do Campo; lotada na Secretaria de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar (SEAPROF) do Governo do Estado Acre. [email protected] Graduado em Ciências Sociais; Governo do Estado do Acre. [email protected]

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distorcida da condição dos indígenas, os quais eram concebidos como em um processo inexorável de assimilação pela sociedade não indígena.

Logo, as atividades que eram realizadas pautavam-se pela imediação, visando atender as demandas sem que houvesse um estudo das consequências do paternalismo que, em verdade, se empreendia. Isso resultava na renovação do ciclo vicioso de dependência e subestimação das capacidades e protagonismo indígena, concorrendo para a estigmatização e segregação coletiva e individual dos indígenas.

No estado do Acre, a Extensão Indígena começa em 2001, para atender as necessidades das comunidades indígenas impactadas pelo asfaltamento das rodovias BR 364 e 317, na área de produção agroflorestal. Contudo, devido à grande demanda e à necessidade de se trabalhar em bases sustentáveis, atualmente procura-se atender todos os povos indígenas no estado3.

Com esse objetivo, confeccionou-se o denominado Projeto Estruturante, que delineia os programas desenvolvidos pela Extensão Indígena: (i) resgate e reintrodução de sementes tradicionais; (ii) quintais e sistemas agroflorestais; piscicultura; (iii) manejo natural da fauna silvestre; (iv) manejo de recursos naturais florestais (flora); (v) assistência técnica e extensão rural; e (vi) formação de Agentes Agroflorestais Indígenas e organização comunitária (associativismo/cooperativismo). Atividades notadamente em estrita consonância com os estudos sociais, culturais e ambientais realizado em cada Terra Indígena (Zoneamento Ecológico e Econômico e Planos de Gestão).

Em 2008, inserimos em nosso contexto o Programa de Segurança Alimentar que visa proporcionar às comunidades indígenas, ribeirinhas e agricultores familiares de regiões isoladas alternativas na alimentação, por meio de ATER e fomento, em ações que perpassam pela melhoria do plantel

3 A população indígena do Acre está estimada em aproximadamente 16.288, pertencentes a 15 povos, de 3 famílias linguísticas (Pano, Aruak e Arawa), distribuídos em 35 Terras Indígenas, com uma extensão territorial de 2.439.695 hectares, cerca de 17% do território acreano.

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de galinha caipira, hortas domésticas, roçados sustentáveis, sistemas agroflorestais (SAFs) e/ou quintais florestais, melhoria dos derivados da cana-de-açúcar e melhoria da qualidade da farinha de mandioca.

Outra atividade é o manejo da fauna silvestre em comunidades indígenas, que trata do manejo natural dos animais, com sucessivas experiências exitosas como é o caso do manejo de tracajás realizado em Assis Brasil, que consiste no repovoamento do rio Yaco pela captura de ovos em locais distantes, inserção em tabuleiros com monitoramento dos berçários e eclosão de ovos, para posterior soltura dos tracajás no rio Yaco. Outros povos indígenas já manifestaram o interesse em manejar tracajás que vêm desaparecendo do meio ambiente em consequência da caça predatória, sendo atendidos da melhor forma possível, alguns dependendo apenas de ritos burocráticos para se realizar as orientações para o manejo.

As premissas que norteiam as atividades estão pautadas no empoderamento dos povos indígenas, que consiste em delegar competências às próprias comunidades, conscientizando-as de seu papel e importância na preservação do meio ambiente. Portanto, cada ação desenvolvida

Foto 01: Criança Hunikui no roçado de praia, aldeia Mucuripe, Terra Indígena Praia do Carapanã. Autora: Daniela Marchese.

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nas comunidades indígenas procura fomentar a sustentabilidade social e ambiental, com alternativas agroecológicas e da sensibilização para o uso adequado dos recursos naturais. Consequentemente, muda-se o foco das ações, que outrora eram concebidas como algo alheio aos costumes, conjugando os conhecimentos tradicionais com as técnicas agroecológicas, que preveem o uso harmônico da floresta com a produção de alimentos.

O avanço do conceito de segurança alimentar para o de soberania alimentar ocorreu devido à percepção de que apenas assegurar a alimentação não era o bastante. Diante das várias conceituações sobre soberania alimentar, procuramos adequar as definições a nossa realidade regional e principalmente aos povos indígenas do estado. Isso nos permitiu entender que soberania alimentar está além da qualidade ou da quantidade de alimentos disponíveis nas aldeias. Soberania alimentar está presente também na vida espiritual e ritualística dos povos indígenas. A soberania alimentar traz consigo a valorização regional, a sustentabilidade que se deseja e, consequentemente, a autonomia dos povos diante do mercado externo.

Uma definição que nos parece sintetizar o entendimento a que então chegamos fomos encontrar na declaração final do Fórum Mundial de Soberania Alimentar (Havana, Cuba, 2001), onde é dito que:

Soberania alimentar é a via para erradicar a fome e a desnutrição e

garantir a segurança alimentar duradoura e sustentável para todos

os povos. Entendemos por soberania alimentar o direito dos povos de

definir suas próprias política e estratégias sustentáveis de produção,

distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito a

alimentação para toda a população com base na pequena e média

produção, respeitando suas próprias culturas e a diversidade de modos

camponeses, pesqueiros e indígenas de produção agropecuário, de

comercialização e de gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher

desempenha um papel fundamental. A soberania alimentar favorece

a soberania econômica, política e cultural dos povos. Defender a

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soberania alimentar é reconhecer uma agricultura com camponeses,

indígenas e comunidades pesqueiras, vinculadas ao território;

prioritariamente orientada para satisfação das necessidades dos

mercados locais e nacionais.

Várias foram as tentativas de auxiliar as comunidades indígenas. Entretanto, esbarrava-se na dificuldade de compreender as especificidades dos diferentes povos indígenas e de identificar suas reais necessidades. Diante de ações que agravavam a dependência e oneravam o estado com resultados insatisfatórios, as entidades governamentais envolvidas com a questão indígena, seguindo paradigmas dialógicos, buscaram construir planos de ação para cada povo, respeitando as diferenças de cada região, os costumes milenares e atuando de forma integrada. Sempre atentos aos devidos cuidados no desenvolvimento das ações, com intuito de não impor o conhecimento técnico em detrimento das tradições indígenas, buscou-se, antes, uma cooperação mútua entre estado e comunidades.

Atualmente, diversas metodologias de trabalho vêm sendo executadas para contribuir com os conhecimentos tradicionais e subsidiar iniciativas das comunidades indígenas com ênfase no papel secundário desempenhado pelo estado. Confere-se aos povos indígenas a autogestão de seus territórios e dos recursos naturais, cabendo ao estado auxiliá-los na construção e implementação dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTIs). Posteriormente, busca-se apoiar atividades em estrita consonância ao que está previsto nestes planos, que por sua natureza dialética torna-se dinâmico e está em constante desenvolvimento. O objetivo final repousa na sustentabilidade e no empoderamento dos povos indígenas.

Essa distribuição de responsabilidades é de fundamental importância, tendo em vista que ambos têm suas limitações. Entretanto, a junção das aptidões faz com que as ações sejam promovidas não somente pelo estado, como também pela comunidade em parceria com outros atores imbuídos com a questão indígena. Dessa forma, acreditamos, está se consolidando “o tempo do empoderamento”.

Planos de Gestão Territorial e Ambiental: Um Plano de Vida

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Os Planos de Gestão Territorial e Ambiental consistem em realizar oficinas, in loco, contando com a participação de equipes interinstitucionais, governamentais e não governamentais, com o objetivo de fazer junto com as comunidades um levantamento das iniciativas presentes nas Terras Indígenas, indicando os anseios, a vocação produtiva de cada povo e as áreas destinadas a cada uma das atividades exercidas na Terra Indígena.

Nestas oficinas itinerantes, discute-se com as comunidades as ações realizadas na Terra Indígena, são abordadas as fragilidades, potencialidades, objetivos a serem alcançados em curto, médio e longo prazo, bem como identificados e delegadas competências a cada um dos envolvidos na consecução das ações.

Dos debates e discussões resulta a elaboração de “etno mapas”4, que depois de confeccionados, retornam às comunidades para revisão (validação), onde se processam as alterações e/ou possíveis adições. De posse desses verdadeiros planos de vida, assim intitulado pelo Povo Nuke Kui5, abandonam-se as velhas práticas de atender “demandas de balcão” em favor de políticas públicas que seguem diretrizes propostas pelos próprios povos indígenas.

Os Planos de Gestão Territorial e Ambiental desempenham um duplo papel. De um lado, busca dialogar com as comunidades indígenas, visando dimensionar seus planejamentos com a realidade das comunidades e da Terra Indígena, fornecendo-lhes a exata medida das ações do Estado, o que os ajuda a identificar as suas próprias responsabilidades e a buscar outras parcerias. De outro lado, instrumentaliza os entes governamentais com informações precisas de tudo aquilo que consta nas aldeias, e do que pretendem realizar em conjunto ou até mesmo se existem ações exclusivamente de âmbito interno da comunidade.

Dessa maneira, os recursos financeiros e humanos são otimizados,

4 Cartografias das Terras Indígenas constando os recursos naturais presentes.5 Conhecidos como povo Katukina da Terra Indígena Katukina do Campinas – Cruzeiro do Sul, Acre. Intitulam-se Povo Nuke Kui (gente verdadeira).

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além do amparo legal que tais documentos proporcionam aos técnicos de campo que visitam as aldeias, pois há um estudo prévio dos Planos, o que os ajuda a ter uma visão abrangente do que vem sendo trabalhado nas aldeias, e, no momento das demandas, compreendê-las e posicionar-se consoante os Planos de Gestão construídos.

Atualmente os PGTIs fazem parte das políticas públicas do Acre e, como tal, estarão sendo dialogados e construídos em todas as Terras Indígenas. Estão previstas ações de monitoramento e avaliação da efetiva execução das propostas existentes nos planos, e a definição de ações pontuais onde o governo do estado possa atuar como parceiro.

A Importância do Trabalho dos Agentes Agroflorestais Indígenas (AAFIs)

Os Agentes Agroflorestais Indígenas (AAFIs)6 são membros escolhidos pelas suas próprias comunidades para participarem de cursos de formação continuada de iniciativa da organização não governamental Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre) e pela Secretaria de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar (Seaprof), onde são capacitados em diversas técnicas de manejo agroflorestal.

Só estes agentes têm condições de prestar uma efetiva e eficiente assistência técnica em suas comunidades, pois somente eles são capazes de dialogar com os anciãos indígenas que ainda conhecem sementes, formas ancestrais de cultivo e coleta de produtos florestais. Os AAFIs superam uma dificuldade regional de deslocamento e longas distâncias percorridas pelos técnicos da Seaprof, o que demanda um tempo maior entre os escritórios regionais e as aldeias, além da logística que se emprega nas viagens.

Visando estabelecer verdadeiras políticas públicas respeitando a autonomia dos povos indígenas, os AAFIs representam um avanço na

6 Atualmente existem cerca de 126 Agentes Agroflorestais Indígenas, destes 69 recebem uma bolsa estudante pago através da Seaprof.

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relação entre as entidades governamentais e as comunidades indígenas, preenchendo lacunas que permitem atualmente uma maior interação das ações governamentais junto às comunidades indígenas. Hoje esses agentes representam o elo das ações de ATER e fomento em áreas indígenas, são as pessoas de referência no quesito produção, sendo envolvidos nos mais variados cursos, encontros e oficinas que são ofertados em âmbito estadual e nacional.

Em busca do fortalecimento dos AAFIs, foi instituída a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas (AMAAI-AC), entidade jurídica que luta pelo fortalecimento dos AAFIs e visa buscar meios de estabelecer um relacionamento interinstitucional com o Estado, com objetivo de ter o reconhecimento profissional de sua categoria. Neste ínterim, o atual governo do estado do Acre está convencido da importância das atividades desenvolvidas pelos Agentes Agroflorestais Indígenas, considerando-os parceiros na preservação e manejo sustentável do meio ambiente.

Como resultado desta parceria entre populações indígenas, sociedade civil, governo e principalmente graças à formação não só técnica, mas também política destas comunidades, muitas formas de manejo da fauna e da flora nativas foram desenhadas e estão sendo colocadas em execução. As comunidades estão se organizando em torno de ações de vigilância e fiscalização, na preservação da qualidade dos cursos d’água, procurando agregar valor às suas produções e atentos ao uso da terra. Mas todos estes processos se encontram em desenvolvimento e devem ser entendidos como nunca findos, multiplicando-se à medida que as comunidades conscientizam-se da importância do uso sustentável, inserindo neste contexto os habitantes do entorno de seus territórios.

Por também trabalharem como formadores de opinião dentro de suas comunidades, os AAFIs transmitem às novas gerações a real importância de sua cultura, do seu papel perante o Estado, seus deveres e direitos contidos nos instrumentos jurídicos, fomentando a autogestão de suas

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terras, tornando-os protagonistas de sua própria história.

Concebidos como verdadeiros defensores da floresta, os Agentes Agroflorestais Indígenas exercem suas atividades não somente para seu próprio sustento, mas também trabalham em prol da toda sua comunidade. Nesse sentido, o valor mensal recebido a título de bolsa-auxílio não fica somente com o titular, mas geralmente é repartido entre os seus “parentes” constituindo verdadeiro capital social, fomentando uma cadeia solidária de autogestão de seus territórios.

a) Atividades desenvolvidas pelos Agentes Agroflorestais Indígenas

A seguir, elencamos as principais atividades de responsabilidade dos AAI como agentes de promoção local:

• Acompanhamento em todas as atividades de produção de alimentos, assegurando a qualidade da alimentação das comunidades, como por exemplo, criação semi-intensiva de galinhas caipiras, piscicultura, produção de açúcar mascavo, rapadura e outros derivados da cana de açúcar, produção da farinha e derivados da macaxeira;

• Produção de mudas para implementação de Sistemas Agroflorestais;

• Aquisição e multiplicação de sementes tradicionais nos roçados e praias;

• Construção de barragens para a criação de peixes e tracajás.

• Manejo natural de tracajás;

• Manejo natural de animais silvestres;

• Vigilância e fiscalização do entorno da terra;

• Implantação de horta orgânica;

• Tratamento do lixo inorgânico;

• Manejo de caça e pesca.

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b) Critérios da Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas (AMAAIAC)

Os critérios estabelecidos pela AMAAIAC para indicação dos agentes agroflorestais indígenas são fruto de intensas discussões envolvendo as comunidades indígenas, as entidades que as representam e os parceiros governamentais e não governamentais. Os principais critérios que os indicados têm de atender são:

• Residir na aldeia;

• Ser escolhido pela comunidade;

• Ter bom relacionamento;

• Afinidades aos trabalhos de desenvolvimento social e ambiental;

• Exercer atividades integradas com os agentes de saúde, professores, lideranças, assim como os demais segmentos dentro da comunidade, em especial as mulheres, crianças e jovens;

• Apresentar resultados positivos tais como: implantação de SAFs (no mínimo 01 hectare), gestão ambiental integrada com a comunidade;

• Capacidade de articulação com a comunidade e as instituições governamentais e não governamentais, buscando melhorias para a sua comunidade.

Resgate de Sementes Tradicionais

O resgate de sementes tradicionais antecede quaisquer iniciativas governamentais ou não governamentais e já se configurava numa das principais preocupações e anseios dos povos indígenas. Assim como os indígenas, as sementes tradicionais representam a resistência contra as formas coloniais e liberais de dominação e instauração de desigualdades entre povos e culturas e a esperança de soberania alimentar num futuro

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próximo.

Dialogando com os povos indígenas, a Secretaria de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar (Seaprof), por meio do programa de resgate e reintrodução de sementes tradicionais, compreendeu que as sementes tradicionais e conhecimento associado representam muito mais do que um simples alimento. Seu aproveitamento se reporta à própria origem dos povos indígenas, configura-se num verdadeiro patrimônio cultural.

Devido ao contato com a sociedade envolvente, as formas tradicionais de cultivo foram proibidas pelos “colonizadores sulistas” (seringalistas) que os sujeitavam exclusivamente ao trabalho na extração do látex (matéria-prima da borracha), retirado de seringueiras7. Dois séculos de submissão resultaram em transformações na cultura dos povos indígenas; no que tange ao cultivo das sementes, as novas gerações já não contavam com várias espécies de sementes tradicionais, assim como o trato dos roçados não correspondiam com os costumes milenares.

Eu acho que o maior responsável pelas perdas das sementes foi o

contato mesmo, as correrias, a gente não tinha uma terra definida,

e passava, morava em vários lugares diferentes, em colocações, onde

tinha patrão. O patrão buscava outro patrão que levava para trabalhar

em outro seringal, em outra colocação, só podia levar uma quantidade

de sementes, muitas vezes deixa seus roçados pra trás. Acho que isso

foi a maior ameaça que perdeu, perdemos realmente muitas variedades

talvez algumas espécies, muitas variedades de muitos produtos, de

muitas plantas (Zezinho Yube, Agente Agroflorestal Indígena, da TI

Praia do Carapanã. Tarauacá-Acre. Entrevista concedida na Oficina de

Sementes Tradicionais, 2008).

A esperança dos povos indígenas em resgatar o máximo de sua tradição, encontrou amparo nos paradigmas agroecológicos desenvolvidos

7 Hevea brasiliensis (HBK) M. Arg. - Árvore medindo de 20 a 40 m de altura e caule cilíndrico. Seu principal produto consiste na resina que é retirada do tronco, que após processado resulta em borracha.

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pela Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER). Devido às especificidades de cada comunidade, foram propostos bancos de sementes tradicionais itinerantes, que consiste em doações e trocas de sementes entre diferentes comunidades indígenas. Estes têm o compromisso de que, tão logo estejam produzindo excedentes, disseminem as espécies em outras localidades.

O monitoramento das trocas, doações e cultivos ficaram ao encargo da Extensão Indígena que atualmente conta com um banco de dados consolidado, alimentado com auxílio dos Agentes Agroflorestais Indígenas.

Vem sendo realizado junto às comunidades indígenas o resgate e reintrodução de sementes tradicionais que algumas comunidades perderam ao longo do contato com a sociedade não indígena. Esse processo teve início com a solicitação das comunidades Manchineri da Terra Indígena Mamoadate, localizada no município de Assis Brasil, que solicitaram ao governo do Estado a reintrodução do amendoim tradicional que eles tinham perdido durante o contato. A reivindicação partiu dos mais velhos para os Agentes Agroflorestais Indígenas.

No ano de 2006, a Seaprof promoveu a primeira Feira de Sementes

Caboclas do estado do Acre. O evento contou com a participação de 69 Agentes Agroflorestais Indígenas, representantes de 14 Terras Indígenas

Foto 02: Juliana, jovem Hunikui, segurando amendoim no roçado de praia, Aldeia Mucuripe, TI Praia do

Carapanã. Autora: Daniela Marchese.

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e 69 aldeias. A feira aconteceu no pátio da Seaprof, em Rio Branco, com exposição de sementes resgatadas pelas comunidades, que ficaram à disposição para conhecimento e trocas entre os participantes.

Em 2007, a Seaprof, junto à Secretaria de Educação, realizou oficinas de regionalização da merenda escolar indígena na Terra Indígena Mamoadate com os povos Jaminawá e Manchineri. As discussões reafirmaram a importância do resgate das sementes tradicionais, como forma dos alunos terem alimentos saudáveis, ao mesmo tempo em que revivem as memórias e tradições dos antigos.

As sementes para os povos indígenas têm caráter sagrado. Além disso, as variedades tradicionais atendem a um dos princípios básicos da agroecologia: são capazes de tolerar as variações ambientais e os ataques de organismos prejudiciais e, sobretudo, consolidar a autonomia dos indígenas, que podem coletar as sementes destas variedades e replantá-las no ano seguinte. Com isso, adquirem maior independência do mercado de insumos e geram um material genético cada vez mais vigoroso e adaptado ao tipo de solo e clima.

A ação de troca e resgate de sementes tradicionais prevê a doação de sementes aos diferentes povos indígenas que manifestam interesse de participar do processo, firmando o compromisso de disseminá-las em outras comunidades tão logo colham em quantidade suficiente. O diferencial que torna esta ação única é a concepção dos bancos de sementes tradicionais. Distintamente do que é proposto pelas entidades afins, os bancos que estão sendo constituídos pelos povos indígenas estão localizados nos próprios roçados de suas comunidades. As sementes plantadas são cuidadas pelos Agentes Agroflorestais Indígenas, catalogadas e monitoradas pela Extensão Indígena que coordena a doação e a troca, permitindo um levantamento fiel das variedades e a localização das sementes. Desta forma, mesmo que a perda de determinadas sementes ocorra em determinadas áreas, a reintrodução destas variedades está garantida, auxiliando na soberania alimentar destas comunidades e perpetuando as variedades. Concomitantemente resgatando

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e valorizando as tradições dos povos indígenas.

Em dois anos foram doados 961Kg, de 21 variedades de sementes tradicionais, contemplando os povos indígenas Katukina (Cruzeiro do Sul), Manchineri e Jaminawa (Assis Brasil e Sena Madureira), Kaxinawá (Jordão e Tarauacá) e Yawanawá (Tarauacá), beneficiando em torno de 3.725 indígenas, além das 27 variedades trocadas entre os povos indígenas participantes do V Encontro de Culturas Indígenas e I Jogos da Celebração.

Essa é a forma que encontramos de respeitar e promover o conhecimento e as tradições dos povos indígenas, ao mesmo tempo que proporciona uma alimentação saudável de forma limpa e permanente, oportunizando às famílias condições para recriar suas próprias estratégias de alimentação e a tão sonhada soberania alimentar.

Todas as ações que buscamos realizar com as comunidades indígenas estão previstas tanto nos Planos de Gestão Territorial e Ambiental como também no Zoneamento Ecológico e Econômico (ZEE) e no Etnozoneamento. Esses materiais são os norteadores que seguimos, visando ofertar aos povos indígenas ações conjuntas, sustentáveis e duradouras.

Resgatar e reintroduzir sementes tradicionais representa uma síntese do cuidado que tem orientado as ações nos território indígenas no Acre: valorizar os conhecimentos, as histórias e as culturas dos povos indígenas; promover a sustentabilidade com inserção de espécies rústicas e resistentes a pragas; a autogestão com envolvimento dos membros das comunidades na inserção e acompanhamento dessas espécies; e, sobretudo, a soberania alimentar que decorre da vontade de autonomia.

Referências Bibliográficas

ACRE. Governo do Estado do Acre. Projeto Estruturante – Extensão Indígena. Secretaria de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar –

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SEAPROF: 2008.

ACRE. Governo do Estado do Acre. Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre. Zoneamento Ecológico-Econômico do Acre Fase II: documento Síntese – Escala 1:250.000. Rio Branco: SEMA, 2006.

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Capacitação dos Agricultores e Agricultoras Xavante no Uso e Conservação da Agrobiodiversidade no Cerrado

Hiparidi D. Top' TiroMaria Lúcia C. Gomide

Daniela Lima

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Capacitação dos Agricultores e Agricultoras Xavante no Uso e Conservação da Agrobiodiversidade no Cerrado

Hiparidi D. Top’ Tiro1 Maria Lucia C. Gomide2

Daniela Lima3

Introdução

O Projeto “Capacitação dos Agricultores e Agricultoras Xavante no uso e Conservação da Agrobiodiversidade no Cerrado” foi executado pela Associação Xavante Warã, entre os anos de 2005 e 2007, e teve como principal objetivo a capacitação dos agricultores Xavante, da Terra Indígena Sangradouro/Volta Grande no estado do Mato Grosso. Essa capacitação tinha como finalidade fortalecer a autonomia da população Xavante quanto à gestão dos recursos naturais do Cerrado, a partir do desenvolvimento de alternativas autossustentáveis.

Dentre os objetivos específicos do projeto, destacamos os seguintes: realizar um Diagnóstico Etnobotânico acerca dos conhecimentos dos recursos vegetais do cerrado e das áreas cultivadas; a construção de viveiros com tecnologia adaptada às condições locais; a coleta de sementes e mudas no cerrado e nas áreas agricultáveis; o manejo dos viveiros; a realização de oficinas sobre sistemas agroflorestais e outras estratégias de cultivo das principais espécies e a elaboração de materiais didáticos.

Uma das características ou diretriz geral que buscamos garantir ao longo da história desse projeto foi a de priorizar a autonomia dos Xavante, daí porque ele tenha sofrido alterações relativas ao tempo de execução das

1 Hiparidi D. Top’tiro - Membro da Associação Xavante Warã e Coordenador Geral da Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (MOPIC). [email protected] Maria Lucia Cereda Gomide, geógrafa consultora da Associação Xavante Warã [email protected] Daniela Batista de Lima – antropóloga consultora da Associação Xavante Warã e assessora da Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (MOPIC). [email protected]

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ações. Isso se deveu à necessidade do povo Xavante realizar diversos rituais que envolveram diretamente todos os membros das comunidades.

Assim, a primeira lição extraída da execução do projeto é a de que tanto na concepção quanto na aplicação de projetos envolvendo povos indígenas deve-se levar em consideração o dinamismo e as relações temporais, culturais e sociais dessas sociedades. Entendemos que essa perspectiva também deve ser adotada pelos órgãos financiadores, eles devem ter certa flexibilidade, estar abertos ao diálogo intercultural e considerar as peculiaridades que permeiam a lógica sociocultural dos povos indígenas.

Os A’uwe Xavante

O povo Xavante, pertencente ao tronco linguístico Macro Jê, se autodenomina como A´uwê (povo). Em decorrência da perseguição dos bandeirantes, os A’uwê foram submetidos a um processo migratório que desencadeou na travessia do Rio das Mortes e a chegada no estado do Mato Grosso, onde se encontram até os dias atuais situados em nove Terras Indígenas fragmentadas, a saber: Sangradouro, São Marcos, Areões, Pimentel Barbosa, Marechal Rondon, Parabubure, Ubawawe, Chão Preto e Marãiwatsede. Suas terras estão localizadas predominantemente em áreas dos cerrados.

No mapa a seguir pode-se visualizar a situação das Terras Indígenas Xavante na atualidade, depois de dois séculos e meio de história Xavante.

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Org.: Maria Lucia C. Gomide & Marcelo M. Silva (2007)

Fatos importantes da história desse povo, a partir do século XX, foram analisados por alguns autores, entre eles destacamos Oswaldo Martins Ravagnani e Aracy Lopes da Silva. A partir da década de 1930, o território Xavante vai sendo cercado, tanto pela expansão da pecuária como por garimpeiros. Nesta época iniciaram-se as primeiras tentativas dos salesianos de aproximação aos Xavante. Segundo Ravagnani (1991), o trabalho desses sacerdotes se caracterizou pela insistência. Praticamente forçaram o povo Xavante a aceitar o contato; reconstruindo roças, cruzes e ranchos que eram constantemente destroçados, como sinais evidentes de uma recusa a essa aproximação. Nessa época, os salesianos já haviam reunido os Bororo nas Missões de Meruri e Sangradouro, próximas ao território Xavante, e pretendiam expandir sua catequese anexando esse povo, antecipando-se ao SPI.

O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) fez uma primeira tentativa de contato em 1941, por intermédio da “frente de atração” Pimentel Barbosa. Todos os membros da equipe foram mortos. Após este episodio e com o objetivo de colonizar a região, Em 1943, o SPI firmou convênio com a

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Expedição Roncador Xingu e a Fundação Brasil Central, com o objetivo de “atrair” os Xavante. Assim, em 1944, tem início a ação de “pacificação” do povo Xavante, que se concretiza em 1946, com a expedição chefiada pela sertanista Francisco Meireles. Aos Xavante foi colocado o seguinte dilema: ou realizar uma política de aproximação com seus vizinhos ou se submeter à guerra (Ravagnani 1991).

A Expedição Roncador-Xingu (ERX) foi organizada em 1943, com o objetivo de colonizar a região. Em relação aos Xavante, verifica-se que seus territórios eram justamente áreas onde havia interesse na prospecção de minerais. Na região compreendida entre Aragarças até o rio das Mortes, a Expedição entra em território Xavante. Esse acontecimento foi amplamente divulgado pela imprensa. Ganha destaque a atuação dos irmãos Villas-Boas, que participam da atração dos Xavante.

Durante as décadas de 1950 e 60, fragmentos do antigo território são controlados por cada subgrupo Xavante (que são as unidades políticas), os quais vão sendo continuamente ameaçados pela intensa ocupação do entorno por fazendeiros, posseiros, além das empresas de colonização que desenvolveram núcleos urbanos que mais tarde se tornaram as cidades nos limites das Terras Indígenas (Gomide 2009).

Do final dos anos 1950 até final de 1960, as transformações foram intensas. Neste período os Xavante passam a viver o confinamento territorial e o contato constante com o branco, “o panorama antes vasto, fecha-se”. Assim seu “microuniverso” (LOPES DA SILVA op.cit.373) é caracterizado pela convivência cotidiana com os postos indígenas, primeiramente o SPI depois a Funai, e as missões salesianas de São Marcos e de Sangradouro (idem).

Neste contexto, o reconhecimento legal das terras Xavante e sua demarcação se depararam com grande oposição dos fazendeiros que tinham títulos de propriedade dados pelo governo do estado do Mato Grosso através do departamento de terras e colonização estadual. O estado do Mato Grosso “... serviam-se da terra como valorosa arma de manutenção do poder e de

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conquista de apoio político” (LOPES DA SILVA, 1992:372), por este motivo ocorreu uma expedição de títulos falsos de propriedade (Gomide 2009).

No início da década de 1970, os Xavante reconquistaram parte do território em meio a intensos conflitos e violências vividos desde a “pacificação”, entretanto nestes 50 anos a luta dos Xavante por seu território nunca cessou.

Em 1982, devido às reivindicações indígenas para a revisão da TI Sangradouro, a própria Funai foi contrária aos índios alegando que os Xavante pretendiam formar a “Grande Nação Xavante“. Esta posição nacionalista é recorrente entre os políticos e esferas de poder locais, próximas às Terras Indígenas, ou mesmo no imaginário brasileiro, que comumente é contrário ao direito indígena aos seus territórios4. Não é por outro motivo que o território Xavante foi demarcado em ilhas descontínuas. Esta situação resulta do avanço do capitalismo e da ganância sobre os territórios indígenas, onde o desrespeito a esses povos é o que predomina. O próprio Estado atua de modo ambíguo: ao mesmo tempo em que possui uma legislação que garante os direitos indígenas, patrocina projetos de colonização sobre os territórios indígena (vide a “Marcha para o Oeste”) e na atualidade é um dos principais apoiadores e incentivadores do agronegócio na região (Gomide 2008).

Nos anos 1980 e 1990 são criadas associações indígenas e inicia-se o desenvolvimento de projetos alternativos; lideranças Xavante disputam e conquistam cargos de vereadores nos municípios próximos às Terras Indígenas.

4 Essa mesma política e ideologia são ainda vigentes no país, basta observar o episódio sobre a contestação da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima, em 2008.

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Tabela 01: Situação fundiária das terras indígenas Xavante

Os Xavante viveram uma crise demográfica após o contato com a sociedade envolvente, a partir da década de 1940, decorrente de diversas epidemias e violência contra a população, a qual começa a ter um notável crescimento após a demarcação das Terras Indígenas. Os dados sobre a

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demografia indígena como um todo e a Xavante em particular apontam para as altas taxas de mortalidade infantil, muito acima da média nacional. Os povos indígenas estariam vivendo um “complexo processo de transição epidemiológico”, onde ao lado de doenças infecciosas e parasitárias, ocorre aumento importante de doenças crônicas não transmissíveis assim como outras causas externas (Souza; Santos; Coimbra Jr. 2004)

Comparando os dados da mortalidade infantil da população Xavante com aqueles do Brasil especificamente com o estado do Mato Grosso, observa-se uma grande disparidade. No Mato Grosso, a tendência histórica tem sido de queda contínua, passando de 26,70 óbitos por mil nascidos vivos em 1997, para 23,49 em 2000, e chegando a 17,75 mortes por mil em 2005. (Seplan, 2008). No Brasil a média é de 23,7 por mil, enquanto que entre os povos indígenas é de 56,5 por mil e 133,6 por mil entre os Xavante.

A média de mortalidade indígena é duas vezes maior do que a brasileira, enquanto que a Xavante é quase seis vezes maior, o que reflete a situação de colonização a que estão submetidos estes povos. (Gomide, 2009)

O Entorno das TI Xavante

A população do Mato Grosso teve um grande aumento em poucas décadas, com uma população de 2.854.642 habitantes em 2007. Segundo estimativa do IBGE, a taxa de crescimento populacional é de 1,89% ao ano, estando 76,95% desta população localizada na zona urbana.

Entre os municípios com maior população do estado do MT, estão Barra do Garças (8ª lugar) e Primavera do Leste (10 ª lugar), com populações de cerca de 53.243 e 44.729 habitantes respectivamente, ambos situados nas proximidades das terras Xavante. Destaca-se ainda Rondonópolis, que também está em área de influência das TIs Xavante. (SEPLAN,2008)

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Existem quatro Terras Indígenas Xavante localizadas na bacia do rio das Mortes: Sangradouro/ Volta Grande; São Marcos; Areões e Pimentel Barbosa. A despeito de estas TIs estarem fortemente ameaçadas pelas atividades do entorno, como a contaminação de solos e águas pelo uso intenso de agrotóxicos nas culturas de soja (pulverizadas por via aérea), desmatamentos e queimadas, estas áreas ainda guardam a rica biodiversidade dos cerrados no leste mato grossense.

Em decorrência da concentração da monocultura da soja, também ocorrem consequências indiretas do agronegócio5 no entorno das TIs, como o processo crescente de urbanização e implantação de infraestrutura como estradas, hidrovias e hidrelétricas.

Em relação à pecuária além dos desmatamentos e queimadas, há a introdução de gramíneas exóticas para a formação de pastagens, e a consequente extinção da vegetação nativa. A degradação das matas ciliares também está, em muitos casos, relacionada à criação de gado.

Com base no acima exposto, verifica-se que há uma forte situação de risco à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, em particular do povo Xavante.

Ações Waradzu6 X Ações A’uwe Xavante - Descompassos

Embora o projeto tenha sido elaborado com a participação efetiva dos Xavante, houve mudanças significativas no decorrer de execução do mesmo. Essas mudanças foram sugeridas pelos próprios indígenas, a partir da constatação de que parte das atividades planejadas não eram coerentes com determinadas práticas tradicionais.

Entre essas atividades “conflitantes” está a construção e manejo 5 Com o desenvolvimento do agronegócio no Mato Grosso, em vinte anos o aumento na produção agrícola foi 650%. Ou seja, de 2,75 milhões de toneladas produzidas de milho, soja, algodão, entre outros itens, em 1987, passou a 17,89 milhões de toneladas até o final de 2007. Os números são da Federação de Agricultura e Pecuária (Famato).[Fonte: Só Notícias - 07/04/2009 http://www.sonoticias.com.br6 Waradzu significa “estrangeiro”, “branco”, “não índio”.

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dos viveiros e a utilização das mudas na formação de quintais, práticas novas se considerarmos o padrão tradicional Xavante. Isso fica claro no que é dito a seguir por uma anciã Xavante:

A gente pega as coisas que comeu, a bocaiúva, jatobá e a gente atira

a semente e joga ai que dá, vai brotando ai cresce , ai vai e come. A

bocaiúva não foi plantada, a gente joga no quintal ai brota é só isso,

para nós não existe viveiro, plantar a gente joga no Cerrado ai nasce

ai dá fruta, é assim. Nós não fazemos a plantação, é só jogar. É só

isso. (Laura, Terra Indígena Sangradouro).

Os movimentos pelo território, tais como o zomori, ou caçada longa, eram de suma proeminência na manutenção dos aspectos culturais do povo A´uwê Xavante, todavia não são mais realizados como em tempos passados em decorrência da limitação territorial. Como mencionado, o modo de vida dos Xavante foi submetido a intensas transformações, com destaque para questão fundiária, onde a limitação territorial e a sedentarização ocasionaram mudanças bruscas.

O zomori caracterizava-se pelas atividades de caça e coleta no Cerrado, com duração de meses, e era acompanhado por toda a comunidade, a qual antes de partir para as expedições cultivava as roças de toco. Neste sentido, durante período integral do ano as coletas – de frutos, raízes – feitas em geral pelas mulheres, eram fundamentais na dieta alimentar Xavante, complementada com as colheitas da roça e a caça. As gerações mais antigas viveram nas amplitudes do cerrado, por conseguinte, detêm uma visão de mundo onde os limites demarcatórios são inexistentes.

Por outro lado, a sedentarização forçada, não significou a assimilação absoluta de novos hábitos, mas sim uma adaptação que vem sendo re-elaborada pelos Xavante, os quais se definem como guerreiros, caçadores e coletores e cultivam uma relação de extrema importância com o cerrado. Desta forma, a incorporação de novas técnicas, como a criação de viveiros, que a nós waradzu, remete a algo “simples”, tem diversas conotações socioculturais que necessitaram ser analisadas e refletidas por todos os

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envolvidos no projeto.

Os quintais tradicionais, por exemplo, sofreram alterações quanto à forma de cultivo, dimensões e espécies cultivadas. Como relatado pela anciã Laura, nos quintais eventualmente nasciam frutas que haviam sido consumidas e ali depositadas as sementes, estas frutas eram resultado das coletas feitas nos cerrados. Atualmente cultivam-se diversas espécies exóticas obtidas da FUNAI ou de projetos executados pelas próprias organizações indígenas. As grandes mangueiras existentes nas Terras Indígenas nos dias atuais foram plantadas na época do Serviço de Proteção ao Índio. No caso das Terras Indígenas Xavante Sangradouro e São Marcos também existem plantios feitos pelos missionários salesianos.

A finalidade dos quintais é contribuir para o abastecimento alimentar, porém a implantação dos mesmos, bem como as ações referentes à criação de viveiros, não ocorreu de forma homogênea nas Terras Indígenas.

Em suma, conclui-se que a pretensa “capacitação” dos agricultores e agricultoras Xavante, no uso e conservação da agrobiodiversidade existente no cerrado, deveria seguir outros rumos: priorizar a valorização das técnicas tradicionais Xavante, como os movimentos de caça e coleta pelos cerrados, que tanto caracterizam o modo de vida deste povo.

Contribuições do Projeto

Dentre os principais aspectos positivos do projeto destacam-se as discussões com anciãos, homens, mulheres e jovens Xavantes em torno de assuntos concernentes às práticas tradicionais relacionadas à “conservação da agrobiodiversidade” no Cerrado. Nesse contexto salientaram-se as histórias e mitos Xavante concernentes à agricultura, às roças de toco, à origem dos alimentos, assim como as histórias vivenciadas pós-contato, e as transformações advindas da introdução de técnicas agrícolas conflitantes com a cultura Xavante.

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O cultivo das roças de toco ganhou maior importância para os Xavante após o contato com a sociedade ocidental. Os projetos de “desenvolvimento comunitário” da FUNAI contribuíram para modificar a vida cotidiana e alterar as práticas agrícolas em algumas aldeias, ocasionando o abandono das roças tradicionais com o consequente desaparecimento das sementes nativas. Hoje, todavia, há esforços no sentido de reverter tal situação, com a realização de intercâmbios de semente entre os Xavante, como o realizado durante o desenvolvimento do presente projeto.

Seguem relatos registrados pelos próprios Xavante sobre como se cultiva a roça de toco, cuja origem está relacionada com os mitos da descoberta das sementes do milho e a descoberta do fogo:

A origem da roça de toco é desde a descoberta do milho Xavante

(nodzo). Quando era adolescente, ou depois de se tornar ritéi´wa

(jovem iniciado) começa trabalhar para os sogros. As mulheres ajudam

os maridos a trabalhar na roça. Antigamente se não trabalhava não

havia alimentos, só comiam pau apodrecido. O surgimento da roça de

toco é só depois da descoberta do fogo. A história do milho Xavante

apareceu no pé de jatobá e é a origem da roça de toco (Mulher

Xavante da Terra Indígena São Marcos, 2006).

Os mais velhos comentam do tempo em que “só comiam pau podre”, porque não havia ainda os alimentos cultivados nas roças de toco (não conheciam as sementes), e nem o uso do fogo (os alimentos não eram cozidos). Assim à origem das roças estão relacionadas a origem do fogo e dos alimentos cultivados, estas histórias são relatadas nos mitos: ‘O roubo do fogo da onça’; ‘A mulher estrela’; ‘Os periquitos’ (Gomide, 2009).

Nos depoimentos a seguir mulheres de São Marcos, comentam as etapas do trabalho na roça:

Queimar as árvores, capinar capim com borduna e depois levar

para a beira da roça com baquité (cesto). Trabalhavam junto com o

namorado(a).

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Os capins que já secaram são levados para a beira da roça com baquité.

Atualmente se usa ferramenta para trabalhar são: enxadas, machados,

facas, mas ao contrário de antes só há preguiça. Só querem namorar

e dinheiro.

Na roça se faz queimar os pés das árvores e assim se derrubam. Para

a roça se derruba as árvores e depois colhem os galhos e leva até a

beirada.

A roça mecanizada vem do desmatamento, estudo e dinheiro.

Os capins que já foram arrancados são levados para beirada da roça

nos baquité. Antigamente trabalhavam muito... antigamente, os

namorados ou recém-casados já se conhecem bem , trabalhavam

juntos e não é como hoje que ficam conversando na roça... só viam

trabalho.

Se a roça esta pronta, dividia a roça pra mandioca, milho Xavante e

também tem um terreno de moça recém-casada. E no outro terreno do

outro filho, outra plantação e assim o pai dividia a roça. O namorado

dessa moça, planta milho Xavante com Brudu, tipo a borduna. E

assim que secarem vão colhendo e trançando, o milho Xavante (

nodzo).

Dentro da casa tem a madeira para pendurar o milho-nodzo que já

trançaram as palhas. Esse pau onde se amarram os milho é muito

alto, chega quase na ponta da casa. E depois debulhavam a semente

e armazenavam no “Tsi’ra” e os velhos faziam mesmo o tsi’ra. Depois

pegavam madeiras com forquilha para pendurar muitos tsi’ra na

frente das casas.

Ah! O feijão Xavante colhiam também junto com o milho Xavante. Os

filhos recém casados levavam para casa em grande quantidade para

dentro da casa. Antes tinham muitos alimentos. Quando acabavam

distribuíam novamente para cada casa. (Mulher Xavante da Terra

Indígena São Marcos, 2006)

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Antigamente os Xavante caçavam os waradzu e quando encontravam,

tomavam das ferramentas deles. Quando era machado cortavam

pedacinho e distribuíam entre eles. Depois faziam com cabo de

madeira o pedacinho de machado. Se chamava Hotoratamá. E com

ela trabalhavam sentados muito rápido.

Os Xavante que pegavam facas dos waradzu cortavam com Rodoi’a –

Ete’A (pedra branca) e mesmo com pedacinho de faca trabalhavam

rápido.

Antes cortavam a faca com a pedra branca. Tsinhõtse´e´upa.

Atualmente já usam essas ferramentas no trabalho e ficam em pé,

mas ao contrário, trabalham menos. (Mulher Xavante de São Marcos,

2006).

O povo antigo trabalha muito na roça, também vai caçar para

sustentar seus filhos (Bernardina Renhere Xavante, 2006:9).

Os Xavante observam e se preocupam muito com as mudanças nos hábitos alimentares. A introdução do dinheiro induziu o desinteresse pelo conhecimento tradicional, assim como pelo tipo de trabalho que antes era realizado:

A diminuição dos conhecimentos tradicionais com as ervas, mesmo

transmitidas para os filhos, eles não decoram, porque só querem

comida waradzu, e não se preocupam. Conheça esta planta para você

estar curando seu filho e para você estar usando também. Atualmente

os jovens e adultos não conhecem as ervas medicinais, então, do que

vão estar trabalhando com os filhos? São preguiçosos, por isso não

aprendem nada, não conseguem andar e buscar as ervas, mesmo que

fique muito perto.

Quando os sogros ou mãe não dão dinheiro para o genro jovem aí fica mais preguiçoso ainda. Atualmente mesmo que tem o conselho dos velhos, os jovens não escutam, são preguiçosos. Os velhos são pacientes, mesmo que não entendem o conhecimento waradzu, eles são melhores.

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Antes se cura na aldeia, não levavam para cidade a criança. No grupo Etepá que começou a levar as crianças na cidade. (Mulher Xavante da TISão Marcos, 2006)

As roças das Terras Indígenas Xavante, atualmente, são cultivadas de formas distintas. Há prevalência das roças tradicionais de toco onde são cultivadas as sementes nativas de milho, feijão, cará, abóbora, além de algumas frutas, contudo as roças mecanizadas também estão presentes em diversas comunidades. Essas últimas foram introduzidas pela FUNAI na década de 70, como indenização pelo asfaltamento da BR- 070 nas TIs Sangradouro e São Marcos e pelas missões salesianas, através de extensas plantações de arroz7. Essa atividade foi compreendida pelos Xavante, a priori, como relevante meio de subsistência gerador de abundância alimentar e autonomia. Entretanto, anos mais tarde, foi objeto de reflexão e crítica pelos próprios indígenas.

A fragmentação territorial promovida pela política fundiária do Estado brasileiro, incluída a indigenista, associada com crescente ocupação do Cerrado por fazendeiros e o agronegócio ao longo das ultimas décadas, distanciou os parentes, a comunicação e os vínculos sociais entre estes.

7 A principal referência desenvolvimentista desse período é o denominado Plano de Desenvolvimento da Nação Xavante ou Projeto Xavante, nome simplificado pelo qual ficou conhecido.

Foto 01. Visita à Roça Xavante na aldeia Idzou’hu durante oficina do projeto, TI Sangradouro. Autora:

Maria Lucia Gomide

Foto 02. Semente tradicional de milho Xavante brotando. Autora:

Daniela Lima

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O encontro entre as comunidades Xavante advindos de diferentes Terras Indígenas (Sangradouro, São Marcos, Areões e Pimentel Barbosa) no decorrer do projeto, contribui positivamente para o restabelecimento e fortalecimento da interação e intercambio de conhecimentos entre os indígenas.

Dentre as atividades importantes realizadas estão os levantamentos da vegetação e registro de seus usos, manejo e sentidos simbólicos. Em três levantamentos da vegetação dos cerrados, nas TIs Areões, Sangradouro e São Marcos, com duração de apenas três a quatro horas cada, foram coletadas cerca de 75 espécies em cada um destes, portanto um total em torno de 200 espécies de plantas, que foram posteriormente nomeadas e classificadas quanto ao uso alimentício ou medicinal.

Estes levantamentos mostraram a riqueza de conhecimentos Xavante sobre os cerrados. Observa-se também que a própria biodiversidade ainda se mantém nessas Terras Indígenas, apesar das pressões ambientais e sociais a que estão submetidas.

Foto 03. Mulheres Xavante na roça observam as plantas durante oficina do projeto na aldeia Idzou’hu,

TI Sangradouro. Autora: Daniela Lima

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Não obstante a diferença fitofisionomias dos cerrados entre as Terras Indígenas, observa-se que nas três áreas os cerrados permanecem com biodiversidade tanto de plantas medicinais como alimentícias. No entanto, as plantas comestíveis não são suficientes para a alimentação da população Xavante; as frutas nativas e os tubérculos, importantes itens da alimentação tradicional, têm atualmente um consumo restrito.

Na tabela número 2, ilustramos parte do levantamento realizado na TI Areões, (nome Xavante, uso e local de coleta). Pode–se observar que as plantas são de diferentes fitofisionomias dos cerrados, desde campo limpo até as formações de mata, e mata ciliar; assim sendo, os saberes dos Xavante dizem respeito aos cerrados como um todo, correspondem ao movimento das caminhadas e à aprendizagem do uso dos recursos, aliados ao seu valor simbólico.

O mito Parinai’a explica a relação entre os Xavante e a construção

Fotos 04 e 05. Mulheres coletam plantas a serem identificadas durante oficina na aldeia Idzou’hu, TI Sangradouro. Autora: Daniela Lima.

Fotos 07, 08 e 09. Plantas do Cerrado coletadas durante oficina do projeto, na TI Sangradouro. Autora: Daniela Lima.

Foto 06. Identificação e explicações sobre o uso e classificação das plantas

coletadas. Autora: Daniela Lima.

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dos cerrados, pois é neste mito que são criadas os seres e as fitofisionomias, assim como os alimentos importantes da dieta Xavante como frutos, tubérculos e raízes.

Todos estes valores e conhecimentos eram transmitidos de geração a geração, durante as longas caminhadas (zomori), caçadas e coletas, que foram restringidas devido, sobretudo, à retração territorial.

Tabela 2 - Nome das plantas, uso e local do cerrado onde são encontradas

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É relevante salientar o intercâmbio realizado entre um representante Xavante e os povos indígenas acrianos. A viagem teve como objetivo a participação Xavante no curso de formação de agentes agroflorestais indígenas realizado no Centro de Formação dos Povos da Floresta, da

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CPI (Comissão Pró Índio do Acre). Durante este curso foram realizadas atividades de manejo de hortas orgânicas, além de discussões sobre o sistema agroflorestal e manejo de tracajás (quelônio). Tal atividade consistiu numa importante experiência e troca de conhecimentos entre os diversos participantes indígenas, além de possibilitar o acesso destes á técnicas não indígenas bem sucedidas no campo do manejo.

Outro aspecto positivo que deve ser mencionado foi a elaboração de um material didático a partir dos depoimentos, em especial das mulheres Xavante, que debatiam com entusiasmo e sabedoria os conhecimentos tradicionais, assim como os problemas vividos nos dias atuais. Esse material será útil nas escolas Xavante e na valorização de seus saberes.

Fotos 10 e 11. Visita às roças durante o projeto, aldeia Idzou’hu na TI Sangradouro. Autora: Daniela Lima

Foto 12. Milho Xavante a ser distribuído, resultado do projeto. Autora: Daniela Lima.

Foto 13. Bakité – cesto Xavante com o milho a ser distribuído entre os participantes do projeto.

Autora: Daniela Lima.

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Considerações Finais

Por fim, outra lição aprendida com a execução do projeto é a incompatibilidade do conceito de “natureza” entre os povos indígenas e a sociedade ocidental.

Considera-se significativo dentro do conceito de “natureza” Xavante, as classificações dos cerrados, das plantas, e dos aspectos da

Foto 14. Discussões sobre o resgate do milho Xavante durante oficina do projeto. Aldeia Idzou’hu na TI Sangradouro.

Autora: Daniela Lima.

Fotos 16 e 17. Preparo do bolo tradicional feito com milho Xavante durante atividade do projeto. Autora: Daniela Lima.

Foto 15. Mulher Xavante planta cará –nativo, durante atividade do projeto. Aldeia Idzou’hu na TI

Sangradouro. Autora: Daniela Lima.

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alimentação que estão relacionadas com sua cosmologia. Vejamos, as classificações Xavante das fitofisionomias dos cerrados, que nomeiam as diferentes fisionomias de acordo com a vegetação predominante. Em sua classificação também há os solos correspondentes, e as principais espécies frutíferas que servem de alimento à fauna, que é descrita de acordo com cada formação vegetal.

AMHU: é o lugar onde as árvores são baixas e fechadas, os animais utilizam este lugar e muitos dormem aí; são os seguintes: anta, veado, tatu, queixada, cotia, ema.

As frutas do Cerrado que são alimentos dos animais são: baru, coração de anta e muitas outras frutas no Ró.

ITEHUDU: neste lugar as árvores são altas, tem buriti e lago. Os animais que vivem são: veado, tamanduá-bandeira, queixada, anta e outros.

As frutas que eles comem no Cerrado: wetsu’a, uwai’re e outras.

Tsa’iti’ré fica dentro do Itehudu e recebem os mesmos nomes dos lugares dos animais.

APE: é o campo limpo do Cerrado que se parece com pasto. O lugar do veado, anta, ema, tatu, seriema e quase todos os animais que ocupam lugares do Ró.

Frutas: uwai’re, tirire, wetsu’a, itsadzapó, ‘rere e muitas outras.

TSIRÃPRÉ: porque o Cerrado é fechado e grande, mas as árvores são baixas e são iguais. As frutas neste lugar, tirire, wetsuirã e outras.

MARÃ: são as diversas formações florestais. Neste lugar que comporta mais animais durante inverno, ficando na sombra, é também lugar de reprodução. Animais típicos desta formação são: anta, caititu, tamanduá, veados, tatu e tatu-canastra e outros que vivem nas matas.

TSÕWAHU: o lugar onde veado costuma ficar e também caititu, queixadas.

Os bichos se alimentam no tsõwahu.

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BURU’RÃ: este lugar se localiza dentro no campo limpo do Cerrado –APE, é um tipo de bebedouro onde os caçadores e os animais costumam tomar água como: veado e anta.

TSINÕ’RÕTÕ: nesse lugar os animais são anta e queixada.

PADZAIHO’REPRÉ: é a barreira amarela é uma localização dos caçadores.

ÖTÕ: lagoa é um lugar dos peixes onde se desenvolvem e recriam, como: piranha, tucunaré, traíra, peixe-elétrico, arraia, jacaré, sucuri (e esses são donos desse lago, mas tem outros peixes).

Outro aspecto ligado ao conceito de “natureza” entre os Xavante, diz respeito às restrições alimentares. Vários elementos cosmológicos estão associados à questão alimentar. O sonho, por exemplo, tem um papel fundamental na cultura Xavante, é através dele que se originam as músicas, os nomes das pessoas, o descobrimento das ervas que curam, entre outros aspectos relevantes. No entanto para se tornarem velhos sábios e melhores sonhadores, os Xavante devem ter grande atenção e cuidado com relação à dieta alimentar.

“Na cultura Xavante há restrição de alimentos, entre eles a restrição

na fase do menino e da menina. Na fase do menino come qualquer

alimento como: mingau de milho, sopa de bocaiúva, jatobá, palmito,

mandioca assada, milho, cará, abóbora assada. A carne dos animais

comida é de caça como: tatu, anta, seriema, veado, jabuti, quati,

tamanduá, as aves, etc” (Bernardina Renhére - Aldeia Abelhinha - TI

Sangradouro/2005)

Em relação ao sentido simbólico do uso das plantas, ligado à cosmologia, Carrara (op.cit: 57-8) explica que este conhecimento, em especial das medicinais, pertence ao dawede’wa (curador), homem ou mulher que frequentemente é o mais velho do núcleo doméstico. Este saber é compartilhado com sua esposa que também pode curar as doenças. No entanto, estes conhecimentos são segredos transmitidos para a próxima geração que tenha a mesma ascendência patrilinear (sendo assim do mesmo

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clã). Outra forma de apreender estes conhecimentos é por meio dos sonhos quando os antepassados transmitem esses saberes (idem).

Outro conceito importante bastante debatido pelos Xavante é “território”, o qual não tem o sentido nem a configuração das “Terras Indígenas atuais” e, portanto, conflita com o entendimento do Estado brasileiro sobre as mesmas. Esse fato foi explicitado em diversos momentos por anciãos que retomaram partes exíguas do seu território tradicional, depois de inúmeros enfrentamentos com invasores e agências governamentais.

Neste sentido, a aplicação de um projeto tal como aqui descrito, caracteriza-se como uma tentativa intercultural de adaptação em meio às intensas transformações que o povo Xavante vem sofrendo ao longo do contato com a sociedade capitalista, cujas intenções são fundamentalmente colonizadoras.

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Manejo Sustentável: uma Questão de SobrevivênciaMárcio José Alvim do Nascimento

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Manejo Sustentável: uma Questão de SobrevivênciaMárcio José Alvim do Nascimento

Nas encostas da Serra do Mar, entre os Municípios de Cananeia e Ubatuba, de Sul a Norte do Litoral de São Paulo, indo até o município de Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro, vamos encontrar 27 Terras Indígenas (TI), onde estão instaladas aldeias formadas por índios da etnia Guarani e Tupi-Guarani.

Este contingente de índios que habitam essas Terras Indígenas, num total aproximado de 3.000 (três mil) pessoas, faz parte do grupo que resistiram ao grande desenvolvimento do estado de São Paulo, bem como aos interesses de exploração imobiliária.

A preservação/formação dessas aldeias se deu conforme a vontade de pequenos grupos familiares em razão de sua específica mobilidade social. Com o tempo, mediante a atuação das próprias lideranças indígenas, Ongs e definitivamente da ação governamental, nos âmbitos estadual e federal, nos anos de 1986 até 1990, concluiu-se a maioria dos processos demarcatórios das áreas (outras Terras Indígenas aguardam regularização), garantindo-lhes definitivamente o uso das terras.

Atualmente a Terra Indígena Guarani do Ribeirão Silveira, com área territorial de 8.500 hectares (em processo de demarcação física e homologação), é habitada por 85 (oitenta e cinco) famílias num total de 370 (trezentos e setenta) pessoas, sendo que 65% desta população está situada na faixa de 0 a 15 anos. Apresenta hoje uma taxa de mortalidade de zero por cento, e um crescimento vegetativo da ordem de 6,5%.

Esclarecemos que os dados referentes ao contingente populacional das aldeias são relativamente variáveis, pois as aldeias mantêm entre si estreitas e intensas relações políticas, econômicas, religiosas e matrimoniais, havendo constantes deslocamentos dos índios, de aldeia para

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aldeia, um dos aspectos da trajetória e tradição cultural desses grupos. A rede de parentesco que compõe uma determinada família Guarani pode se estender por várias aldeias, localizadas em diferentes locais, fazendo com que os indivíduos e mesmo famílias nucleares estejam em constante movimento a fim de reforçar os laços de reciprocidade entre si. Portanto, é comum as aldeias Guarani apresentarem variações no número de famílias e de indivíduos que integram estas famílias, pois, os indígenas circulam constantemente por várias aldeias e por tempos indeterminados, mantendo uma rede de reciprocidade entre parentes que residem nas mais diferentes aldeias.

Essa dinâmica na constituição familiar do Povo Guarani implica também a dinâmica da ocupação dos espaços territoriais e no modo de utilização dos recursos naturais existentes no interior das aldeias.

A religião ocupa um papel especial em todas as esferas da vida social dos Guarani, cujo ponto principal à compreensão do seu sistema religioso é a noção de “alma humana”, que está vinculada às crenças sobre a concepção.

Os Guarani manifestam sua vivência religiosa através da reza (porahêi), de forma coletiva ou individual, ou seja, contando com a participação de toda a aldeia ou apenas de um grupo ligado a uma casa.

A ideia mítica do fim do mundo e a cura das doenças realizadas pelo xamã são outros elementos fundamentais da religião Guarani, que incentiva a crença na existência da vida após a morte.

Existe na TI. Ribeirão Silveira três Opy (casas de reza), onde são ouvidas as belas palavras (porahei) proferidas pelos xamãs e realizados os rituais como o batismo do milho, funerais, rituais de cura, casamentos etc. Elas estão localizadas próximo ao Morro do Cedro, região central dessa Terra Indígena, na Aldeia Cachoeira e na Aldeia Rio Silveira. No mês de janeiro é realizado ali o Nhemongaraí, cerimônia em que as crianças recebem o nome.

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A relação que os Guarani estabelecem com a natureza, os espíritos e os seres humanos (Guarani ou não) é orientada por um conjunto de regras e normas de conduta. São elas que compõem a estrutura das relações sociais e cosmológicas denominadas nandereko (nosso modo de ser). O cumprimento de tais normas assegura à comunidade a comunicação com o sobrenatural. É o compromisso da comunidade com seu nandereko que propicia a eficácia de seus pajés. Só assim eles são capazes de ouvir as belas palavras e transmití-las ao grupo. São as instruções transmitidas pelos espíritos aos grandes xamãs-profetas, Nanderu, que abrem a possibilidade de alcançar a Terra sem Males, destino primeiro da humanidade Guarani.

Toda conduta Guarani é, portanto, reflexo de uma relação divina e orientada no sentido de transcender a realidade social. A figura do xamã é fundamental aos Guarani, sendo, na verdade, o guardião do nandereko. Para a concretização do nandereko é fundamental que a comunidade se assente sobre um lugar que reúna condições básicas. A escolha deste lugar é determinada também pelo xamã que recebe orientação divina. Para que existam condições necessárias à fixação de um tekohá, é preciso que seja mato, que possam plantar, que seja distante do branco, e que não haja conflitos. O tekohá não é apenas terra, a ele estão associadas a casa e as relações com os parentes: é onde enterram os mortos e onde rezam, onde vislumbram a possibilidade de exercer o direito divino de fazer suas roças. A Terra Indígena Ribeirão Silveira reúne todos estes pontos importantes para o estabelecimento de um nandereko. As matas, as nascentes, os rios, as roças de milho, a opy e o cemitério constituem, entre outros, a base da existência dos Guarani da TI Ribeirão Silveira neste mundo.

A partir do fato real do reconhecimento e demarcação da Terra Indígena foi estabelecida uma rotina de trabalho junto às comunidades para o desenvolvimento de atividades relativas à assistência à saúde, educação, atividades produtivas, assistência social, habitacional, dentre outras.

Do acompanhamento in loco relativo às condições de vida das

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comunidades, constata-se a sua estreita relação com o meio ambiente, já que dele se utilizam para extrair matéria prima para confecção de artesanato e outras atividades. De maneira geral, as comunidades têm sobrevivido mediante sua própria estrutura organizacional, ocupando-se basicamente da confecção de artesanato. Seu padrão de consumo está limitado pela renda que obtém a partir desta prática, tendo que considerar que ficam submetidas às épocas de alta temporada do turismo litorâneo para praticarem as suas vendas.

Cultivam também pequenas plantações familiares de banana, mandioca, batata doce e milho, em quantidades insuficientes, não atendendo, portanto a demanda de consumo, em detrimento, sobretudo dos seguintes fatores: a própria aptidão dos indígenas para a atividade agrícola em escala maior, a falta de tradição regional do plantio de cereais, o relevo acidentado e tipo de solo. Assim, as famílias complementam os seus bens de consumo adquirindo-os nos comércios locais.

Existe ainda a criação de pequenos animais, como galinhas, e praticam a caça e a pesca, encontrando em suas matas animais como: pacas, cotia, quati, tatu, porco do mato etc.

Promovendo o Manejo Sustentável do Palmito Juçara

No interior da Terra Indígena existem três viveiros para a produção de mudas de Palmito Juçara, Açaí, Açaí Anão e Pupunha, bem como a produção de plantas ornamentais (Bastão do Imperador, Helicôneas, Banana Flor, e outras). Todos os viveiros estão em pleno funcionamento e os indígenas comercializam as mudas produzidas nestes viveiros, atendendo pedidos encomendados pelas prefeituras locais, empresas de paisagismo e particulares.

Existe um projeto relevante relacionado ao Reflorestamento de Palmito, cujo principal objetivo é a preservação do Palmito Juçara, nativo da Mata Atlântica. Atualmente existem no interior da Terra Indígena

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aproximadamente 45.000 pés de Palmito Pupunha plantados e um razoável número de pés de Palmito Açaí e Juçara.

No ano de 2002, a iniciativa de reflorestamento do palmito desenvolvida na Terra Indígena Guarani do Ribeirão Silveira recebeu o Prêmio ‘Gestão Pública e Cidadania’ da Fundação Getúlio Vargas e da Fundação Ford, dentre 980 iniciativas de todo o Brasil, em reconhecimento pela preservação do meio ambiente.

Em 2006, a Associação Comunitária Indígena Guarani Tjeru Mirim Ba’e Kuaa’I desta Terra Indígena Ribeirão Silveira, com o apoio da CEPISP (Conselho Estadual dos Povos Indígenas de São Paulo), FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e da CATI (Coordenadoria de Assistência Técnica Integral) São Sebastião/Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento, celebrou convênio com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), objetivando fornecer assistência técnica para a elaboração de um plano de manejo de rendimento sustentado de palmito Juçara (Euterpe edulis) e capacitar representantes indígenas para viabilizar a implantação do plano de manejo.

Esse projeto foi proposto pelos Guarani, representados pela Associação Comunitária Indígena Guarani Tjeru Mirim Ba’e Kuaa’i. Surgiu da observação dos próprios índios da crescente redução do Palmito Juçara, ocasionando dificuldade para encontrar a árvore e a necessidade de ter que andar quilômetros para encontrar palmito no tamanho adequado para o corte. Além do mais, os indígenas são vistos pela sociedade envolvente local como depredadores dos recursos naturais em razão da comercialização in natura do Palmito Juçara sem o devido plano de manejo. O projeto visava garantir o reflorestamento da mata e a preservação e retorno das espécies animais associado com o incremento da renda das famílias Guarani, a melhora na auto estima, o reagrupamento das famílias e da comunidade e a preservação cultural.

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A Juçara é uma planta esbelta, de estipe reto e cilíndrico e que não produz perfilhos, podendo atingir 20 metros de comprimento (Carvalho 1994). O estipe pode ser usado em construções rústicas e suas fibras, na fabricação de vassouras. Espécie nativa da Floresta Atlântica, dela é retirada o palmito, produto muito apreciado pela culinária mundial. O que se usa como alimento é uma porção de aproximadamente 50 cm da parte terminal do caule – ali junto às folhas, concentra-se o “creme” o palmito saboroso. A extração do palmito, que resulta na morte da planta, é feita na maioria das vezes, de maneira predatória, eliminando-se inclusive plantas muitos jovens. Para esta finalidade, o Palmito Juçara foi explorado intensamente a partir da década de 70, tornando-se a principal fonte de renda para muitas comunidades da Floresta Atlântica. Desde então nenhum plano de manejo da espécie foi efetivamente realizado, levando a atividade do corte de palmito ao colapso e ao atual risco de extinção da espécie. Tal situação levou à proibição da atividade do corte de palmito por lei estadual, permitindo apenas a sua extração em áreas de manejo sustentável.

Foto 01: Guarani Karay (Vando dos Santos) coordenador do Projeto Jejy-Reflorestamento de Palmito, com as crianças em

atividade de plantio de mudas. Autor: Antônio Regis

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A preservação do Palmito Juçara está diretamente ligada à manutenção da biodiversidade da Mata Atlântica, uma vez que sua semente e seu fruto servem de alimentos para vários animais como gambás, morcegos, tucanos, sábias, macucos, periquitos, jacus, porcos do mato, antas, esquilos, tatus e capivaras (Carvalho 1994; Reis & Kageyama 2000). A importância da conservação da espécie está relacionada ao período da sua frutificação. Por ocorrer no inverno, quando a maioria das outras árvores está sob estresse hídrico devido ao período seco, é um alimento fundamental na mata (Pio Corrêa 1969; Nogueira 1982).

O projeto apresentado ao MDA tinha como objetivo a elaboração de um plano de manejo da Palmeira Juçara (Euterpe edulis), visando o manejo adequado da espécie e a substituição progressiva de um sistema de extração sem controle para um sistema de rendimento sustentado (Ribeiro 1994; Conte 2000; Nodari 2000; Reis 2000; Costa Silva 2002).

Foram propostas quatro metas para o cumprimento do projeto: (1) a realização de um inventário das plantas de palmito juçara existentes dentro dos limites físicos da Terra Indígena; (2) a elaboração conjunta (técnicos, lideranças e representantes indígenas e instituições parceiras) de um plano de manejo adequando os resultados obtidos no inventário, os procedimentos técnicos a serem tomados para o manejo e as especificidades da organização social, econômica e cultural do grupo indígena; (3) iniciar as ações determinadas no plano de manejo e (4) executar ações de divulgação do plano de manejo.

A entidade proponente e executora do Projeto foi a Associação Comunitária Indígena Guarani Tjeru Mirim Ba’e Kuaa’i, entidade sem fins lucrativos criada em 03.09.1997 e que tem dentro de suas finalidades estatutárias:

• Proporcionar à comunidade indígena condições básicas de desenvolvimento sócio econômico e de promoção humana, em conjunto com as lideranças e a comunidade indígena;

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• Proporcionar condições para o fortalecimento das famílias indígenas, a melhoria de sua qualidade de vida, mediante o desenvolvimento da relação intrafamiliar e comunitária;

• Desenvolver o espírito associativo e cooperativo entre os membros da comunidade; dar apoio às atividades desenvolvidas pelas diversas entidades que prestam serviços aos índios, no que diz respeito à assistência social, jurídica, religiosa, educacional, material e à saúde;

• Conseguir meios para que cada membro da associação possa estudar e se desenvolver culturalmente, dentro dos costumes e da cultura do Povo Guarani, cuidando para que o conhecimento adquirido nos estudos seja um meio de torná-lo cada vez mais um verdadeiro representante de seu povo e um defensor da nação Guarani;

• Colaborar com o Poder Público dentro das finalidades da entidade, dando-lhes conhecimento dos problemas da comunidade indígena específicos e genéricos, pleiteando as soluções dentro do âmbito de sua competência;

• E promover a união dos índios residentes na Aldeia, para que possam em conjunto com o cacique local desenvolver trabalhos que visem o bem estar entre os membros da comunidade.

Com base nessas finalidades, os representantes da Associação decidiram contratar uma instituição para a prestação de serviços de assessoria técnica para realizar as atividades propostas no projeto. Para isto foi assinado um termo de contrato de prestação de serviços técnicos com o Instituto para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira (IDESC), entidade que tem como objetivo desenvolver estudos, pesquisas e projetos para a melhoraria da qualidade de vida da população do Vale do Ribeira, região da Mata Atlântica, visando o desenvolvimento sustentável, e que prestou toda a assessoria técnica na elaboração do plano de manejo.

As principais vantagens do manejo florestal sustentável são:

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(i) buscar uma alternativa viável de subsistência; (ii) reduzir o impacto ambiental; (iii) respeitar a capacidade das florestas de se regenerar e (iv) garantir meio de subsistência, garantindo a sustentabilidade da comunidade indígena e a preservação da Mata Atlântica. Com o manejo sustentado, busca-se a exploração dos recursos naturais de uma maneira tal que não comprometa o ciclo de regeneração.

O mais importante neste processo é que a comunidade indígena possa conseguir, por meio das suas práticas culturais e sociais, o seu sustento na natureza de uma maneira racional, garantindo o intervalo de tempo suficiente para que a floresta volte ao seu estado original. Esclarecemos que a elaboração e a apresentação do plano de manejo é uma exigência legal para a obtenção da licença ambiental de exploração da espécie florestal.

Buscando se enquadrar nas leis que regulamentam o manejo sustentado do Palmito Juçara, aos indígenas foram apresentadas foi

Foto 02: Guarani Karay (Vando dos Santos), coordenador do Projeto Jejy-Reflorestamento de Palmito, durante extração do palmito resultado do reflorestamento. Autor: Antônio Regis

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apresentado os resultados observados e coletados quando da realização do inventário florestal. Na medida em que os membros da comunidade indígena participaram de todas as etapas do inventário florestal, inclusive sugerido metodologias de trabalho, as observações contidas no inventário são fruto do próprio poder de observação dos indígenas. O processo de levantamento e elaboração do diagnóstico foi também acompanhado e teve orientações de técnicos especializados, o que vem legitimar as propostas que se objetiva alcançar.

O projeto contou também com a participação dos diversos órgãos e entidades ambientais: IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis); DEPRN (Departamento Estadual de Proteção de Recursos Naturais); Instituto Florestal de São Paulo; Prefeitura do Município de Bertioga/SP; Prefeitura Municipal de São Sebastião/SP; FUNAI/Posto Indígena Rio Silveira/AER Bauru-SP; Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento; CATI de São Sebastião; CEPISP (Conselho Estadual dos Povos Indígenas de São Paulo), IDESC (Instituto para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira), sendo que cada órgão ou entidade se comprometeu em colaborar para o sucesso da referida iniciativa dentro de suas atribuições legais. Salientamos que o DEPRN é o órgão do Governo do Estado de São Paulo responsável pelo ato de licenciamento do manejo sustentado, que na prática significa a aprovação do plano e a autorização para o manejo e a comercialização do palmito.

O mais importante foi a tomada de consciência, por parte da comunidade indígena, da situação preocupante do estoque de Juçara que na atualidade encontra-se na matas da Terra Indígena Guarani do Ribeirão Silveira. Situação extremamente grave, tendo em vista que os estoques de plântulas, matrizes e plantas adultas estão abaixo do mínimo que é previsto em lei para planos de manejo, exigindo, portanto, a adoção de medidas urgentes e eficazes que venham a mudar este quadro.

A tabela que segue tem por finalidade comparar o resultado da

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situação encontrada na Terra Indígena Guarani do Ribeirão Silveira (primeira coluna), com o mínimo exigido pela legislação ambiental (segunda coluna) e com a situação em que se encontra uma área com floresta intocada (terceira coluna).

QUADRO COMPARATIVO DA SITUAÇÃO DA JUÇARA

O diagnóstico participativo possibilitou aos indígenas concluir que somente seguindo um plano de manejo e as orientações para o eventual corte das plantas de Palmito Juçara é que se pode recuperar a situação, isto é: ver novamente a floresta com um número considerável de plantas de palmito, garantindo assim as fontes de renda e alimento para as famílias que habitam a Terra Indígena. E para haver eficácia do manejo será preciso aumentar o número de plantas na floresta para no mínimo o que estabelece a legislação do Estado de São Paulo, sendo necessário realizar um intenso trabalho de “repovoamento” do Palmito. Para isso, é necessário verificar qual o sistema que melhor se adapta a esse trabalho, pois algumas observações se fazem necessárias, tais como: tipo de terreno, tipo de mata e a finalidade do plantio.

Para que o Palmito Juçara possa ser explorado no Estado de São Paulo, deve-se seguir um plano de manejo sustentável atendendo às normas e as condições estabelecidas na Resolução Nº. 16/1994, da Secretaria do

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Meio Ambiente do Estado de São Paulo, que condiciona esta exploração à autorização do DEPRN. Essa legislação estabelece que o Plano de Manejo deva conter o seguinte: (i) planta planialtimétrica do imóvel não inferior a 1:10000, onde estejam descritas pelo menos a rede hidrográfica, principais acessos e estradas, benfeitorias, confrontantes, fisionomia vegetal predominante e localização das parcelas amostrais permanentes; (ii) estimativa do número de palmeiras com altura superior a 1,3 metros, distribuídas em classes de DAP de 2 cm; (iii) estimativas do número de palmeiras com altura inferior a 1,3 metros; (iv) fenologia dos indivíduos adultos informando principalmente tratar-se ou não de matrizes; (v) planilha de dados de campo; (vi) layout das parcelas amostrais permanentes, situando os indivíduos adultos levantando, inclusive matrizes; data da coleta dos dados (DEPRN – São Paulo 1994).

A comunidade indígena Guarani, de imediato, após receber as informações obtidas quando do inventário florestal, passou a tomar algumas medidas, tais como: (i) cortar as plantas adultas de palmito de Juçara com pelos menos 09 centímetros de DAP (diâmetro a altura do peito); (ii) não cortar as plantas finas; (iii) deixar uma planta mãe a cada (mais ou menos) 14 metros, para que possa produzir sementes e novas plantas; (iv) dividir cada área de manejo em 5 partes, assim todo ano pode-se cortar uma parte e só voltar a cortar a mesma área depois de 5 anos. Esse tempo é importante para que as plantas novas possam crescer e chegar ao tamanho mínimo de corte.

A comunidade indígena Guarani participou de todas as etapas do projeto, sendo indicado um coordenador indígena que participou de todas as etapas de implantação.

Foram realizadas diversas oficinas, onde foram apresentados aos indígenas mapas e imagens aéreas da Terra Indígena. Foi solicitado que indicassem os principais locais de ocorrência da juçara, bem como a metodologia para a realização do inventário, sendo que esta foi muito bem assimilada pelos monitores indígenas, apesar do uso avançado de

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ferramentas na área de matemática e estatística.

Para a elaboração do plano de manejo sustentado, foi apresentado o resultado do inventário florestal realizado na Terra Indígena e a partir daí, foram estudadas e discutidas as medidas a serem tomadas, buscando propostas a serem implantadas, visando à recuperação das áreas degradadas e as alternativas a serem implementadas para garantir alternativas de sustento da comunidade indígena durante o período de recuperação da floresta. Entre as alternativas apresentadas destacamos (i) o estabelecimento de um número máximo de plantas a serem cortadas por família, (ii) o aprimoramento do funcionamento dos viveiros de mudas já existentes no interior da Terra Indígena, (iii) a implantação do projeto de Ecoturismo e (iv) o aumento da escala do artesanato para comercialização.

Para que no futuro se possa realizar o manejo e o corte das plantas de palmito Juçara, será preciso aumentar o número de plantas na floresta para no mínimo o que estabelece a legislação do Estado de São Paulo. Para que isso seja alcançado, será preciso realizar um intenso trabalho de repovoamento do Palmito Juçara nas matas. Essa atividade pode ser feita de três formas: (i) plantando as sementes a lanço; (ii) plantando as sementes em covetas e (iii) plantando as mudas. Cada uma dessas formas

Foto 03: Adolescente Guarani Ivânia Pará Poty no plantio de muda de palmito Juçara.

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de plantio tem suas vantagens e desvantagens e é necessário observar qual sistema melhor se adapta a cada situação ou área de floresta, levando em conta a distância, o tipo de terreno, o tipo de mata e a finalidade do plantio.

Desafios de ordem técnica existiram, pois as associações indígenas encontram ainda certa dificuldade na elaboração dos processos de formatação das licitações e de prestação de contas (e aí verificamos o papel importante do apoio das instituições parceiras na orientação e colaboração). No entanto, passos importantes foram e estão sendo dando pelos povos indígenas em busca da sua autonomia, e esses projetos e convênios contribuem para que esses povos indígenas encontrem suas alternativas de subsistência, vencendo certas barreiras e desafios, e ao mesmo tempo, fortalecendo os conhecimentos tradicionais.

Considerações Finais

No nosso entendimento o projeto vai ao encontro da proposta de promoção do etnodesenvolvimento nas Terras Indígenas, que tem como princípios: (i) o respeito à autonomia e autodeterminação dos povos indígenas; (ii) atividades sustentáveis e voltadas para a redução da dependência tecnológica e econômica; (iii) valorização dos saberes indígenas, de suas formas tradicionais de organização para produção e uso dos recursos naturais e de seus territórios. Busca-se também contemplar as linhas de ações definidas nas propostas de etnodesenvolvimento em Terras Indígenas: (i) apoio às ações de segurança alimentar e nutricional, à geração de renda e à gestão sustentável dos recursos naturais nas Terras Indígenas; (ii) capacitação dos indígenas na elaboração, execução, monitoramento e avaliação de projetos produtivos; (iii) valorização das técnicas e dos conhecimentos tradicionais relacionados à produção de alimentos, utensílios e à extração de produtos agroflorestais e (iv) estímulo ao uso de técnicas tradicionais na recuperação de áreas degradadas.

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Podemos resumir os desafios enfrentados pela comunidade indígena Guarani da Terra Indígena Ribeirão Silveira com um pensamento do índio Vando Karay dos Santos, um dos coordenadores do Projeto ‘Jejy – Reflorestamento de Palmito’ desenvolvido há mais de 14 anos no interior da Terra Indígena:

Não precisamos mais viver na miséria e na pobreza, pois pobreza para

nós é não saber ter iniciativa, não saber ver o que tem na natureza e

trabalhar para serem valorizadas, não acreditar em si próprio. Pobreza

é a falta de projetos e objetivos. Podemos nos fortalecer com nossa

própria sabedoria. O palmito pertence à natureza indígena e a lavoura

indica que nós mesmos, os moradores da mata, estamos encontrando

as soluções para as necessidades da comunidade. A gente tem muita

força, com a oração do pajé e da comunidade, para continuar lutando

pela preservação da aldeia, e temos consciência da importância das

crianças participarem, para o projeto não parar no meio do caminho.

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Assistência Técnica e Extensão Rural na Comunidade Indígena Tupinambá de Serra do Padeiro: Experiência, Desafios e

Possibilidades da Capacitação sob a Ótica AgroecológicaAurélio José Antunes de Carvalho

Carla Teresa dos Santos Marques

Erasto Viana Silva Gama

Marta Timon Frias

Miana Barbosa

Magnólia Jesus da Silva

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Assistência Técnica e Extensão Rural na Comunidade Indígena Tupinambá de Serra do Padeiro: Experiência,

Desafios e Possibilidades da Capacitação sob a Ótica Agroecológica

Aurélio José Antunes de Carvalho1 Carla Teresa dos Santos Marques2

Erasto Viana Silva Gama 3

Marta Timon Frias4 Miana Barbosa5

Magnólia Jesus da Silva6

O Contexto

O território Tupinambá como um todo, atualmente em processo de regularização pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), compreende a vila costeira de Olivença, sede do distrito de mesmo nome pertencente ao município de Ilhéus, na Bahia, e sede da antiga missão jesuítica que reuniu a etnia na região desde o início do século XVIII. Situada na costa marítima ao Sul da aludida vila até o limite do município, no entorno de Olivença, organizavam-se mais 22 comunidades Tupinambá, (incluindo a Serra do Padeiro). A extensão total da Terra Indígena Tupinambá é estimada em 42 mil hectares.

A aldeia da Serra do Padeiro dista cerca de 30 km da sede do município de Buerarema, a 457 quilômetros de Salvador. É a aldeia mais distante do litoral e está localizada na parte interior da região sul do estado, integrando a denominada microrregião cacaueira do estado da Bahia. É de 1 Engenheiro Agrônomo, mestre em Ciências Agrárias, atualmente empregado da Codevasf, 2ª SR2 Engenheira Agrônoma, mestranda em Ciências Agrárias, UFRB;3 Engenheiro Agrônomo, mestrando em Ciências Agrárias, UFRB4 Antropóloga, vinculada à ANAÍ5 Professora e Monitora Indígena dirigente da AITSP6 Professora e Monitora Indígena dirigente da AITSP

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difícil acesso, tendo como peculiaridades: situar-se em uma região de serras, com satisfatória preservação de alguns recursos naturais importantes, inclusive florestais; e contar com uma organização comunitária autônoma e bastante consistente, na qual a Associação Comunitária atua de forma coesa com o cacicado, sendo, portanto, uma interessante experiência em que o associativismo somou-se à estrutura autóctone de organização indígena.

O povo indígena Tupinambá da Serra do Padeiro conta com uma população em torno de 650 pessoas (130 famílias) de acordo com dados da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA, 2005), sendo que o núcleo da aldeia é composto por sete residências pertencentes aos membros da família do pajé. O processo de reafirmação identitária e regularização de suas terras pela FUNAI envolve não somente a posse e retomada de áreas do território, mas a resignificação de sua cultura em relação à agricultura, conservação ambiental, educação, atenção à saúde e crenças religiosas, à solidariedade entre os seus habitantes e índios Tupinambás dispersos que retornam à aldeia, entre outros aspectos sociais. Isso inclui a adoção de medidas compensatórias decorrentes dos impactos negativos da Revolução Verde nas áreas de retomada do Território (degradadas pelos não índios) e da intensificação do uso da terra e demais recursos naturais pelos próprios índios.

A reocupação do território localmente é denominada de retomada pelos indígenas. É uma terminologia apropriada, pois se refere ao momento em que eles vivenciam a reocupação de terras que integram seu território, aproveitando o descenso da lavoura cacaueira e uma evidente afirmação identitária enquanto indígenas. Além do aldeamento central próximo à Serra do Padeiro, várias retomadas foram ou estão sendo realizadas pelos tupinambá, a exemplo do rio Cipó e do rio Una.

Nesse contexto, surgiu a necessidade de construir uma proposta multidisciplinar de ação que fortalecesse o processo de construção da identidade indígena Tupinambá e sua relação com a terra e o ambiente

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onde vivem. Esse é o ponto de partida do projeto sobre o qual este artigo se refere. Um projeto que vislumbrou a capacitação enquanto possibilidade de discussão acerca do território, da produção, do conhecimento tradicional desse povo, a identidade cultural, a religião, as relações de gênero, o meio ambiente, o mercado e a agregação de valor do principal cultivo da aldeia, a mandioca, de uma perspectiva sistêmica.

A articulação para elaboração da proposta aconteceu desde o início envolvendo a Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ), Associação dos Índios Tupinambás da Serra do Padeiro (AITSP) e o Programa de Pesquisas Sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (PINEB/UFBA), e contou ainda com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (SASOP).

Agroecologia em Terras Indígenas - Serra do Padeiro - Povo Tupinambá – Buerarema – BA, projeto financiado pelo MDA e executado pela ANAÍ e AITSP no ano de 2006/2007, é fruto dessa construção coletiva. Os recursos financeiros usados na execução do projeto foram repassados para o executor pelo Programa de Promoção da Igualdade de Gênero e Etnia (PPIGRE) do Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural (DATER), ligado à Secretaria da Agricultura Familiar (SAF/MDA), liberados e intermediados pelo Banco do Brasil.

Abordagem Metodológica

A experiência discorreu em duas vertentes: a antropológica e a agrícola, conduzida sob uma abordagem agroecológica. Dessa forma, além da rica experiência de troca entre o conhecimento local e o conhecimento técnico, houve uma interação entre diferentes áreas do saber através do trabalho coletivo de engenheiros agrônomos, biólogos e antropólogos, fato que foi fundamental para o sucesso do projeto em foco.

A metodologia utilizada no seu viés antropológico envolveu visitas a bibliotecas e arquivos públicos, igrejas, cartórios e centros de

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documentação de instituições de ensino superior, a fim de empreender pesquisas em fontes documentais, a exemplo de: cartas à Presidência da Província, atas de Governo e Câmara, correspondências oficiais, jornais antigos da região cacaueira, livros de casamento, batismo e óbito presentes em igrejas dos municípios de Buerarema, Ilhéus e Uma, em busca de registros que porventura dessem conta da presença indígena na região, em particular, da comunidade indígena Tupinambá da Serra do Padeiro. Além disso, foram realizadas visitas aos marcos tradicionais do território indígena e a residentes antigos da cidade de Buerarema. Famílias indígenas, suas lideranças e representantes de órgãos estatais também foram entrevistados acerca da atuação destes últimos na comunidade e do censo demográfico na comunidade. Os resultados obtidos foram apresentados em oficinas, em que os Tupinambá (idosos, jovens, mulheres e crianças) puderam partilhar e confrontar os dados coletados com as narrativas históricas do seu povo.

Sob a orientação metodológica do Plano Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER), o projeto adotou o conceito de “Extensão Rural Agroecológica” para realização das suas atividades de capacitação agrícola, a qual é definida como:

[...] o processo de intervenção de caráter educativo e transformador,

baseado em metodologias de “investigação-ação” participante, que

permitam o desenvolvimento de uma prática social mediante a qual

os sujeitos do processo buscam a construção e sistematização de

conhecimentos que os levem a incidir conscientemente sobre a realidade,

com o objetivo de alcançar um modelo de desenvolvimento socialmente

equitativo e ambientalmente sustentável, adotando os princípios

teóricos da Agroecologia como critérios para o desenvolvimento e

seleção das soluções mais adequadas e compatíveis com as condições

específicas de cada agroecossistema e do sistema cultural das pessoas

envolvidas no seu manejo (CAPORAL e COSTABEBER, 2000).

Para tanto, utilizou-se a metodologia da pesquisa-ação de Pedro Demo (1997), tendo como fundamento o desafio de construir a capacidade de

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(re)construir, através do emprego das ferramentas e métodos participativos de educação/extensão rural, como: oficinas, reuniões, exposições práticas coletivas em campo, visitas às unidades familiares e áreas coletivas, visitas de troca de experiências com outras comunidades e planejamento/implantação de unidades demonstrativas de sistemas agroflorestais e bosque energético.

O Desenvolvimento do Projeto em Parceria com a Comunidade

O projeto se propôs a trabalhar alguns dos principais eixos de interesse da comunidade, por meio do fomento à agricultura de base agroecológica, introduzindo e aperfeiçoando técnicas culturalmente apropriadas, dando ênfase à otimização dos sistemas tradicionais de uso das terras e manejo sustentável dos recursos naturais (solo, água e biodiversidade), do resgate e conservação de espécies tradicionais de uso indígena, da valorização do trabalho das mulheres nas atividades agrícolas, e ressaltando a importância dos aspectos de segurança alimentar, beneficiamento e comercialização do excedente da produção. Tudo isso permeado pelo propósito de fortalecer a associação indígena.

As atividades de capacitação agrícola foram discutidas com os diretores da associação indígena, de modo que, ao invés de se portarem como receptores de técnicas, eles protagonizassem ações coerentes acerca das discussões dos temas relacionados à Agroecologia enquanto abordagem geradora de uma agricultura capaz de produzir e conservar os recursos naturais.

No período de vigência do projeto, duas áreas estavam em processo de consolidação de retomada na Serra do Padeiro: Rio Cipó e Rio Una. Nesta última, foi construída, estrategicamente, a casa de farinha comunitária, financiada com recursos da Carteira Indígena do MMA, através de um projeto para aperfeiçoamento da produção de derivados de mandioca, o qual contou com a contribuição do projeto Agroecologia em Terras Indígenas,

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na sua implementação e execução. Ao final do projeto foi implantado no local um bosque energético de sabiá (Mimosa caesalpineafolia), com aproximadamente 3,0 ha.

a) O uso dos recursos naturais no território Tupinambá da Serra do Padeiro

Parte significativa da vegetação original do bioma Mata Atlântica tem sido substituída, nos últimos anos, por formações florestais secundárias, em vários estágios de desenvolvimento, devido ao uso agrícola intensivo dos solos e à extração indevida de madeira. Segundo Warren Dean (1996), na metade da década de 30, cerca de 1.000 km2 de mata devem ter sido convertidos em plantações na zona do piemonte de Ilhéus, onde se incluem, certamente, as áreas de Buerarema e Una. O mesmo autor afirma que esta derrubada foi um pouco mais benigna que a da praticada em zonas do café. Pois como ele descreve, a implantação se deu em sistema de cabruca, isto é, plantio da lavoura de cacau sob a mata, preservando espécies climáticas do estrato superior. A diversidade de espécies mantidas aumentava a vida útil dos cacauais, possivelmente, reduzindo o surgimento de doenças. Neste mesmo período, houve uma maior pressão sobre as Terras Indígenas, ocasionando conflitos que tiveram como líder o caboclo Marcelino, retratado como um bandido pela imprensa da época.

No final da década de 70, a alta cotação do cacau, em torno de US$ 4.000 por tonelada, resultou num aumento recorde da área plantada em nível mundial. Com o superávit, a partir de 1985 os preços decaíram numa constante, chegando a ser cotado por cerca de US$ 800/t. A partir de então, os baixos preços inviabilizaram a demanda intensiva de mão de obra e o emprego de tecnologias baseadas em insumos modernos, sobretudo após variações climáticas que passaram a ocorrer sobre a região (Mascarenhas, 1997).

O abandono das lavouras contribuiu para o aumento da incidência de

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pragas e doenças, criando condições extremamente favoráveis à vassoura-de-bruxa, a qual se disseminou rapidamente, atingindo proporções epidêmicas, provocando em um curto espaço de tempo sérios problemas econômicos (Virgens Filho et al., 1993).

A decadência da cultura do cacau facilitou, em partes, o processo de retomada das áreas do território indígena ocupadas pelos não índios, mas por outro lado, deixou alguns passivos ambientais consideráveis para os índios solucionarem. Embora exista a presença da atividade agropecuária e extrativista ilegal por parte dos fazendeiros que persistem no território indígena e no seu entorno, a Serra do Padeiro ainda é relativamente bem preservada, se comparada com outras serras da região e mesmo com outras porções do território indígena. Essa preservação deve-se, em grande parte, à comunidade, que pela sua postura e organização política frente às pressões ambientais, apresenta coesão na cooperação interfamiliar, tanto para o trabalho quanto para a gestão de áreas de uso comum.

O culto aos encantados7, além da importância cultural, também apresenta uma relevância significativa para a preservação ambiental. Isso se dá porque as matas, as nascentes e as serras são locais onde residem os encantados. O povo Tupinambá demonstra espontaneamente o cuidado e o respeito aos recursos naturais desde a infância, tomando esses locais como espaços que devem ser preservados a todo custo (Couto, 2008). Mesmo com o desmatamento corrente na região, inclusive por conta do plantio da mandioca, base da economia dos Tupinambá, nota-se ao longo do projeto uma imensa preocupação em preservar os recursos naturais. Essa atitude os diferencia dos não índios que ainda ocupam suas terras e dos povos indígenas que, por conta da degradação de seus territórios, são obrigados a utilizar de forma desordenada os recursos da mata para obter o sustento diário.

Os índios Tupinambá da Serra do Padeiro ainda praticam a agricultura

7 Os encantados são espíritos que se comunicam com a aldeia, através dos rituais, com a função de orientar a comunidade através de avisos de alerta e aconselhamentos quanto à tomada de decisões e encaminhamento de atividades, estratégias de lutas e outros aspectos relacionados ao quotidiano da comunidade e mesmo de pessoas individualmente.

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itinerante baseada na derrubada e queima da mata ou capoeira, ou para plantio nas cinzas, que servem como fertilizante para o solo, seguido do pousio. No entanto, devido ao aumento da população indígena e exiguidade de terra, circunscrita a determinada área delimitada e ainda em processo de disputa, a eficiência dessa prática tem se reduzido amplamente, uma vez que pousios mais longos não podem ser viabilizados nos tempos atuais, restringido-se às poucas áreas de roças novas de mandioca. Segundo relatos, antigamente derrubava-se a mata com machado, colocava-se fogo e depois “goivava” (fazia coivara, terminologia indígena utilizada para fazer referência ao ato de amontoar o mato roçado, realizado após a queima de um roçado) e colocava fogo novamente, pois “não existia sol pra queimar e o mato molhado não queimava, só sapecava”. Nas áreas que não eram queimadas, plantava-se com fincão8, ou semeavam a lanço e depois roçavam para os cultivos saírem.

Além dos problemas de fertilidade ocasionados pela intensificação do uso da terra, os índios Tupinambá também reconhecem que é necessário reduzir a pressão sobre a mata por conta do uso da lenha para produção da farinha. O atual sistema de cultivo da mandioca é conduzido pela roçagem, queima, plantio e limpa, com uso de adubação a partir do segundo ano. Não utilizam mecanização tratorizada e, mesmo sem recomendação técnica, utilizam alguns adubos sintéticos e, em menor escala, herbicidas, devido à influência dos pacotes tecnológicos disseminados na região cacaueira a partir da década de 1970, tendo a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC), uma estrutura de ATER oficial, como viabilizadora de tais tecnologias naquela época.

Atualmente, as opiniões sobre o manejo tradicional do solo e o manejo “moderno” ou convencional são divergentes, como pode ser observado nos relatos de D. Maria e de Sr. Almir, agricultora e agricultor indígena da Serra do Padeiro:

[...] A gente não tinha mais como plantar, aqui no pé da Serra terra

8 Instrumento agrícola feito a partir de uma vara madeira com a ponta afiada, utilizado nos plantios para abrir furos no solo.

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tava difícil, as terra muito seca e nós botou as roça e a mandioca

dava uma raizinha, na segunda planta já não dava mais. Aí eu tomei

o curso, eles (técnicos da CEPLAC) ensinou pra botar o supersimples

que ele é muito natural, não gasta a terra, vocês planta com

supersimples que vocês leva 10 – 12 anos plantando num lugar só, aí

eu aprendi e é mesmo [...] Tem uns seis anos que eu peguei plantar

mandioca com esse supersimples [...] (Maria de Lírio)

[...] Quando nós limpava de estrovenga que é quase igual ao biscol

e faz aqueles cambaleão deixava os cisco tudo na roça, nós produzia

muito mais sem adubo e agora nós passa o biscol e aduba e tamos

tendo pior[...] (Almir Barbosa)

A base econômica do Tupinambá de Serra do Padeiro é a cultura da mandioca, mais precisamente a farinha. O relato de Magnólia, professora indígena, traduz a importância da cultura da mandioca para os Tupinambá da Serra do Padeiro:

A mandioca é como se a gente tivesse um dinheiro no banco, ou

melhor! Se você hoje diz, eu quero pegar 500 reais e você tem sua

mandioca tem a casa de farinha, daqui a pouco você tá com seu

dinheiro na mão, pra cobrir qualquer dívida é tudo com a mandioca!

(Magnólia)

Pereira (2000), em estudo com os Kokama do Alto Solimões, constatou que pressões sociais levaram os índios a substituir progressivamente suas atividades tradicionais de subsistência por atividades orientadas para uma economia de mercado, baseada na produção de farinha de mandioca. No caso dos Tupinambá de Serra do Padeiro, embora a farinha de mandioca seja a cultura principal, culturas como o cacau, o abacaxi e a banana da terra apresentam elevada importância econômica. O sistema utilizado para o cultivo do cacau, muitas vezes associado à banana, aproveita as árvores nativas de grande porte para sombreamento do cacaueiro. Essa prática, conhecida regionalmente como cabruca, tem contribuído para a conservação de grandes extensões da floresta tropical primária e para o desenvolvimento

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da vegetação secundária em vários estágios sucessionais no sul da Bahia. Quando não é plantado em cabruca, os cacaueiros entram na composição de sistemas agroflorestais diversificados, como cultura principal, associados a fruteiras como: jenipapo, abacate, jaca, graviola, laranja, tangerina, mamão, banana da prata, urucum, araçá-boi, graviola, tamarindo, jambo e cupuaçu, dentre outras. Além das vantagens ecológicas promovidas por esta forma de manejo do solo, os métodos tradicionais indígenas de manejo dos cultivos estão inseridos numa lógica de autosuficiência alimentar, favorecendo o fornecimento de alimento durante o ano inteiro. A oferta de alimentos não só supre as necessidades nutricionais da população humana, como também, de muitos animais silvestres, como pássaros e pequenos mamíferos que vivem em tais sistemas.

As espécies de ciclo curto são destinadas à segurança alimentar das famílias, com a comercialização do excedente. Entre as mais frequentemente produzidas, temos: mandioca, milho, feijão, mangalô, favas, diversas variedades de banana, inhame, batata-doce, abóbora e abacaxi, hortaliças nativas e cultivadas, plantas medicinais, ritualísticas e condimentares de um modo geral.

A influência das fases lunares e das datas festivas católicas nas atividades agrícolas é bastante marcante no cotidiano da comunidade. Boa parte dos plantios anuais é realizada na ocasião das chuvas do dia de São José, em março. O plantio de melancia é realizado a partir de agosto até, no máximo, dia 13 de dezembro – Dia de Santa Luzia – se o plantio ocorrer depois desta data, à colheita ocorrerá depois da Quarta-feira de Cinzas e a melancia só pode ser colhida até o Carnaval, pois no período da quaresma as lavouras sofrem com ataque de pragas e doenças. A colheita dos inhames nativos e cultivados entre abril e junho garante sua conservação durante o armazenamento por até um ano. Além das diversas orientações sobre as práticas agrícolas adequadas a cada fase da lua, os Tupinambá observam se a lua está “no claro”9 ou “no escuro” para então realizar o manejo das

9 Período em que a lua está visível no céu à luz do dia.

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culturas, evitando assim o uso de agrotóxicos no cultivo e na pós-colheita dos produtos agrícolas, como observa-se no depoimento a seguir:

O correr do dia a pessoa vai assuntar o que é que a lua tá fazendo, se

ela tiver fora, se for madeira e tudo, a pessoa não pode tirar, porque

ela bicha todinha, agora depois que ela se põe, aí a pessoa pode tirar,

ou plantar ou qualquer uma coisa, que nada bicha, aquela planta e

nem madeira também [...]. Aqui a gente chama tá no claro, aí você

já sabe que dá tudo bichado, é porque os bicho enxerga, não sei por

que né! É por causa do clarão da lua, se a pessoa plantar no claro,

na hora de plantar a lua tiver de fora, a gente sabe, aquela planta dá

doença, dá tudo bichado, os inseto enxerga né, e naquela planta vai

cortar. E plantando depois que a lua se pôs, a pessoa pode plantar

que nada persegue.” (Lírio da Serra, Pajé).

b) A organização social do trabalho na comunidade e as relações de gênero

Além de possuírem as roças individuais ou familiares, na comunidade indígena da Serra do Padeiro existem roças comunitárias destinadas à manutenção de um fundo comunitário que cobre algumas despesas da associação; outra destinada ao grupo de mulheres – para aquisição de bens ou serviços que beneficiem as mulheres da comunidade; e outra destinada às famílias indígenas que retornam dos centros urbanos, em situação de vulnerabilidade social e econômica, até serem remanejadas para uma área definitiva. Nestas áreas de trabalho coletivo, os mutirões ocorrem semanalmente, contando com aprovação e participação de praticamente toda a comunidade.

Uma atenção especial foi conferida às relações de gênero e ao trabalho das mulheres, considerando-se que a socialização das crianças no mundo do trabalho – através das brincadeiras onde reproduzem, em certo modo, as atividades produtivas dos adultos – se dá principalmente com as

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mulheres (mães, avós, irmãs mais velhas). A discussão desse aspecto foi apontado pela própria comunidade como de fundamental importância para o futuro das gerações.

Durante uma das oficinas de diagnóstico, buscando entender à dinâmica produtiva local e o papel dos gêneros, o grupo foi dividido por sexo, e através do trabalho em argila, relataram os universos cotidiano feminino e masculino e evidenciaram a divisão sexual do trabalho dos Tupinambá da Serra do Padeiro. As mulheres detalharam as peças de forma mais sistematizada em seu conjunto e buscaram outros recursos como folhas, sementes e flores, para representar suas as atividades diárias, compondo cenários, como a raspa da mandioca para fabricação da farinha e o cuidado com a horta. Por seu turno, as peças produzidas pelos homens foram menos refinadas e sem muitos detalhes. Os homens construíram peças individualizadas, porém, representativas do trabalho masculino, considerado mais exigente em força. Foram representados machados, carroças, fornos de farinha e a figura de um guerreiro.

Nas roças em geral, os homens atuam nos trabalhos que exigem mais força, como a roçagem de capoeiras e matas, destoca de pastos e a capina para implantação dos roçados, enquanto que as mulheres plantam ou

Foto 01: Peças em argila confeccionadas pelos homens para representação do seu trabalho cotidiano. Autor: Erasto Viana Silva Gama

Foto 02: Peças em argila confeccionadas pelas mulheres para representação do seu trabalho

cotidiano. Autor: Erasto Viana Silva Gama

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semeiam, realizam capinas e os cuidados diários e participam da colheita, além de lidarem com as atividades domésticas. A produção da farinha de mandioca e do beiju são atividades predominantemente femininas, enquanto que a colheita, o transporte e a comercialização ficam a cargo dos homens. As mulheres também estão inseridas em um lugar central nos cultivos de hortaliças, abacaxi e banana da terra e intervêm politicamente nos espaços de capacitação com muita firmeza e naturalidade, assumindo um papel ativo na comunidade.

Contudo, nota-se que, dependendo da necessidade, homens e mulheres assumem atividades culturalmente atribuídas ao sexo oposto, como se observa no relato de Dona Marluce sobre o período de resguardo pós-parto de sua mãe e de Dona Maria, sobre a colheita de mandioca e a fabricação de farinha:

“Pai matava galinha, fazia pirão de parida, dava a mãe [...] e eu só

lavava roupa e cuidava de meus irmãos.” (D. Marluce)

Agora eu já cansei de botar o braço na tipóia, que eu ia pra roça

arrancava 5 carga de mandioca ou 6, o tanto que fosse, chegava

em casa juntava eu mais Ferreira e mais outro rapaz e eu batia no

rodo, radava ela todinha botava no saco, pegava e levava pra rua.

(D. Maria)

Em relação à preocupação com a segurança alimentar, segundo a análise feminina:

“Os homens plantam uma coisa só porque aquilo vai vender e o

dinheiro fica com eles. Já as mulheres plantam mais coisas, como

horta, tempero, porque as mulheres pensam em economizar, pois

já não compram aquilo. E a mulher pensa na saúde, então planta a

horta” (Magnólia).

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c) Construindo novas relações com a natureza

A queimada é um traço cultural bastante marcante na cultura indígena. O coivaramento, isto é, a amontoa de restos de cultura, galhos e fustes roçados são consumidos pelo fogo para dar origem às cinzas, ricas em bases que elevam o pH, disponibilizam nutrientes e propiciam o crescimento vegetativo. Ocorre que tal procedimento, reiteradamente realizado numa mesma área, exaure o solo e reduz drasticamente sua microfauna e microflora, conduzindo a uma redução da qualidade do solo.

Antes da intervenção de implantação de unidades demonstrativas de Sistemas Agroflorestais (SAFs), foram realizadas oficinas de indicadores de sustentabilidade do solo, atentando à importância de aspectos como matéria orgânica no solo, cobertura morta e viva do solo, desenvolvimento vegetativo dos cultivos, qualidade e conservação dos solos; e oficinas de Sistemas Agroflorestais (SAFs) Complexos conduzidos pela implantação sucessional de espécies.

O desenvolvimento das atividades de capacitação sobre SAFs suscitou a problemática das queimadas e energética do uso da lenha. Extraída da mata, consumida no âmbito doméstico, nos fogões, e comunitário, em estufas de secagem de cacau e em casas de farinha, a lenha é retirada de áreas remanescentes da Mata Atlântica e em processo sucessional de regeneração.

Aliada à implantação das Unidades Demonstrativas de SAFs e aproveitando a semana do meio ambiente, a comunidade mobilizou as crianças e os jovens da escola e juntos realizaram um mutirão para produção de mudas de sabiá, também conhecido por sansão do campo. As mudas foram destinadas à implantação de 200m de cerca viva na área de Sr. Almir e para implantação de um bosque energético em sucessão à mandioca, com mais três hectares, em uma área degradada contígua à casa de farinha comunitária, visando a produção de lenha para manutenção das atividades da mesma.

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O projeto ousou discutir e propor alternativas às queimadas, porém é uma prática que causa estranheza e necessita de maior tempo para que as mudanças ocorram. Decerto, uma assistência técnica mais contínua ou um projeto específico, organicamente engajado, pode possibilitar a superação dessa prática cultural, através de experimentações participativas que levem à conscientização de que a ausência do pousio para o descanso restaurador da terra torna inviável o emprego das queimadas.

A existência das roças comunitárias facilitou a implantação, o manejo e a socialização da experiência das unidades demonstrativas de Sistemas Agroflorestais (SAFs), localizadas nas áreas retomadas do rio Cipó e do rio Una ao lado das áreas cultivadas tradicionalmente pelo grupo. A composição inicial dos SAFs contava com cultivos tradicionalmente adotados pelos índios como: abacaxi, mandioca, banana, jaca, açaí, pupunha e jenipapo, mas de forma consorciada e inserindo mais espécies com outros usos que não o alimentar ou comercial.

O enriquecimento das áreas, neste primeiro momento, foi realizado com a introdução de espécies leguminosas como o estilosantes, feijão-de-porco, mucuna-preta gliricídia e o andu – utilizado tanto para a

Foto 03: Oficina de acompanhamento e manejo da UD de SAF na retomada do rio Una. Autoria: Erasto Viana Silva

Gama

Foto 04: Oficina sobre as práticas agrícolas tradicionais dos Tupinambá da Serra do Padeiro. Autoria: Erasto

Viana Silva Gama

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produção de biomassa e fixação de nitrogênio em adubação verde, como para alimentação humana; e de não-leguminosas como hibiscos, tithonia, também chamada regionalmente der margaridão, e coarana para ciclagem de nutrientes e produção de biomassa para adubação verde.

Ressalta-se que, apesar das orientações e recomendações para a não realização das queimadas nas áreas, estas tinham sido recentemente queimadas para implantação das roças comunitárias, em fase anterior à implantação das UDs.

As áreas de UD foram manejadas coletivamente com orientação da equipe técnica, em espaços de capacitação onde se fomentou a observação das diversas espécies herbáceas, arbustivas e arbóreas que se desenvolviam espontaneamente. Durante o acompanhamento e comparação entre as duas áreas, observou-se um maior número de espécies espontâneas na unidade demonstrativa da Retomada do Rio Cipó, enquanto que na unidade do Rio Una, apesar de se observar a presença de outras espécies espontâneas, o feto (Pteridium aquilinum) era a espécie predominante, isso devido, provavelmente, ao seu efeito alelopático que inibe o desenvolvimento de outras espécies. O manejo das plantas espontâneas foi conduzido através de capinas e roçagens seletivas com o uso do facão ou biscó10, visando principalmente à retirada das espécies que já se encontravam em estágio reprodutivo e/ou as que porventura tivessem proporcionado sombra às espécies implantadas na área.

10 Facão que se retira o cabo original e é adaptado um cabo mais comprido de madeira, facilitando a ceifa das plantas espontâneas e oferecendo maior comodidade ao trabalhador nas operações.

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Comparando-se a unidade demonstrativa de SAF do rio Cipó com o cultivo solteiro de mandioca na área paralela, visualmente foi identificado pelos participantes da oficina um melhor desenvolvimento vegetativo na UD que na roça monotípica. Também foram comparadas a UD do rio Cipó com a do Rio Una observou-se que na área do rio Cipó as plantas se desenvolveram melhor, mas o abacaxi da área do Rio Una apresentava um melhor aspecto vegetativo, talvez devido à qualidade das mudas.

As excursões técnicas para troca de experiências foram oportunas, criando momentos salutares no decorrer do projeto. Possibilitar intercâmbios entre agricultores que vivem em ambientes de condições climáticas semelhantes os auxiliam a incorporar e implementar mudanças, e possibilita a obtenção de resultados perceptíveis em projetos de curta duração.

Foto 05: Vista parcial da cobertura vegetal da UD de SAF em comparação à área de cultivo monotípico de mandioca (à esquerda). Autora: Carla Teresa dos

Santos Marques.

Foto 06: Mutirão de implantação da UD de SAF em área no rio Una. Autora: Carla Teresa dos Santos

Marques

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A produção do minidicionário de plantas medicinais e ritualísticas, a partir de incursões na mata para reconhecimento e coleta das plantas úteis ao povo Tupinambá para identificação local e científica no herbário da UFBA, e a posterior sistematização dessas espécies e seus respectivos usos juntamente com os jovens e crianças da aldeia (os quais ilustraram o dicionário) possibilitou uma experiência muito rica de troca de saberes entre as gerações e de ressignificação dos seus conhecimentos. Embora a comunidade ainda esteja buscando apoio para a publicação do dicionário, o mesmo foi reproduzido e já está sendo utilizado pelos professores locais como material paradidático, contextualizado na disciplina de técnicas agrícolas, valorizando sobremaneira o conhecimento local.

Foto 07: Visita de intercâmbio sobre SAFs; os Tupi-nambá da Serra do Padeiro conhecem a experiência

do P.A. Dandara dos Palmares, em Camamu/BA. Autor: Erasto Viana Silva Gama

Foto 08: Crianças e comunidade reunidas na Sema-na do Meio Ambiente para produção das mudas de sabiá do bosque energético. Autora: Magnólia de

Jesus da Silva

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Monitoramento e Avaliação Final do Projeto

O monitoramento das ações previstas no projeto foi realizado pelas instituições envolvidas e representantes da comunidade de Serra do Padeiro, por meio de um conselho, composto por seis pessoas. Esse conselho reunia-se, ordinariamente, logo após o encerramento de cada atividade e, extraordinariamente, quando necessário, permitindo a avaliação e a correção de quaisquer problemas. A ANAÍ por sua vez montou um sistema de monitoramento e avaliação processual e contínuo, pelo qual os membros da equipe técnica envolvidos no projeto se reuniam mensalmente para fazer a verificação do alcance das metas estabelecidas.

Na avaliação feita pela comunidade indígena ao final do projeto, foram destacados alguns aspectos, os mais relevantes para os Tupinambá, por se relacionarem diretamente aos recursos naturais da região e a formas mais sustentáveis de utilizá-los. Isso pode ser observado nos depoimentos relacionados aos temas trabalhados.

Construção do minidicionário de plantas medicinais e ritualísticas:

“[...] aquela ocorrência que vocês fizeram sobre as plantas medicinais,

Foto 09: Incursão na Mata para coleta de plantas medicinais e ritualísticas utilizadas pela comuni-

dade Tupinambá da Serra do Padeiro. Autora: Carla Teresa dos Santos Marques

Foto 10: Oficina de plantas medicinais e ritualís-ticas utilizadas pela comunidade Tupinambá da

Serra do Padeiro. Autor: Magno Tupinambá

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entendeu? Que foi mais um reforço que buscou sobre até nós mesmo,

achei muito importante aquele reforço que foi reforçado sobre as

medicinas, né, importantes a todas que... porque tava ficando

uma coisa quase “derrubada” e através disso, nós estamos achando

que elas estão se levantando novamente, porque nós já não vai

mais cortar aquele pé de árvore , de planta que temos aqui, nós já

queremos continuar plantar mais e conservar mais porque realmente

nós já sabia assim... pra que servia, mas agora a gente achou que foi

mais um reforço pra nós mesmo sim, mas uma coisa que a gente fica

pensando.. são os jovens... são a parte de gente que não liga [...]

ah!!! pra esse povo acreditar em chá ou acreditar em banho, ah!!

eles vão tudo pro médico, e hoje nós faz um reforço, a gente velho

ficava escabreado de fazer um chá pra uma pessoa [...] a coisa mais

importante do mundo é aprender mais [...]” (Maurina,‘Tina’)

“A coisa mais difícil é eu ir no médico porque já sei que as ervas

curam desde que eu era pequena eu sabia...porque eu nasci dentro

da mata e me criei com caça e peixe e eu sei que as plantas medicinais

é uma cura muito maravilhosa, com certeza” (Maria de Lírio).

Práticas Agroecológicas:

[...] também achei muito importante nós aprendermos mais a não

desmatar, aprendermos mais proteger o meio ambiente, aprendemos

mais também proteger os nossos rios, plantar sem que fique

derrubando, fazendo queimada, foi muito bom pra gente, também

[...] apredemos também como combater o inseto sem que nós vive

botando veneno, né, coisa tóxicas em cima da terra, nas nossas

plantas né, foi muito bom , aprendemos bastante. Muitas coisas boas

que vocês [...] deram foi como eu falei, eu disse: O meu marido já

trabalhava com questões de forrar as terras com as bananeira no

tempo da seca pra conservar o plantio de cupuaçu dele e com o

adubo orgânico e sempre ele colocava nas plantas porque tinha vez

que não tinha dinheiro pra comprar adubo ele fazia isso e com isso

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dava [...] o cupuaçu, graças a Deus, não anda comprando adubo que

não era todo tempo que tinha dinheiro pra se comprar adubo, e isso

aí , quando eles falaram essas questões, eu lembrei logo que ele fazia

isso[...]” (Marluce)

Viagens de intercâmbio:

Aquela viagem de Camamu foi uma maravilha,[...] aprendemos muito,

gostemos, foi maravilhoso, foi muito lucrativo[...] que a gente aprendeu

tudo, como a gente não sabia [...] fazer o geladinho de pupunha [...]

aprendeu a fazer a geleia do cupuaçu, que nós tinha o cupuaçu e não

sabia fazer a geleia, nós não fazia. Aquela mulher, Del, uma maravilha

de pessoa [...] nós queremos até que eles venham um dia [...] visitar

nossa região, nossa aldeia também (D. Maria).

O período de execução do projeto não foi suficiente para suprir as demandas geradas na comunidade a partir do mesmo, e isso foi comentado pelos indígenas da Serra do Padeiro, como mostram os depoimentos a seguir:

“O pessoal se conscientizar mais do que nós estamos fazendo, isso

é uma grande melhora, né, porque na hora que todo mundo se

conscientizar do que vai fazer, eu acho que esse já é um ponto

chave para a melhoria das coisas, é o pessoal ter mais incentivo,

né, pra vim mais, pra aprenderem mais, então, aí eu acho que é o

que falta melhorar. E eu tenho certeza que no projeto vai ter casa

cheia, todo mundo vai [...] Aí a gente passa pra última pergunta: O

que faltou? Tempo! Tempo! faltou tempo. Quando o tempo dava pra

vocês, faltava pra nós, quando dava pra nós faltou pra vocês.”

“O projeto foi muito pequeno, foi curto. Aí quando o povo tá

querendo se engajar nas coisas é quando tá acabando [...] que agora

é que o povo quer, você viu ontem aquela participação que Déu e Zé

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Mané tudo tava lá, mas foi o quê? Não tem mais tempo se tivesse

outra participação daquela ia ser melhor, quer dizer, que o tempo

foi pouco e muita gente agora quer se engajar no projeto e o projeto

acabou [...] Né, Maria?Aí acaba! Já acabou! Final! Adeusinho!”

O relato dos índios sobre o processo de aprendizado durante o projeto, revela o pensamento corrente entre os Tupinambá da Serra do Padeiro, que consideram o “aprender” e o “ensinar” de suma importância para sua reprodução sociocultural.

Faça um experimento assim, vá pra uma terra, limpe bem limpa,

tira toda a sujeira e deixa a outra com a sujeira e plante pra ver a

diferença, porque eu já to fazendo e to vendo [...]. E eu acho que

tudo a gente tem que ver pra crer, uma terra limpa queimada e uma

terra que não teja queimada. Eu acho que a gente adianta mais o lado

da gente, do que a gente queimar, fica uma coisa muito boa [...] que

eu achei muito bom. (Almir Barbosa).

Algumas Considerações

A história da comunidade indígena de Serra do Padeiro está vinculada a uma presença marcante da participação de seus membros, inclusive mulheres e jovens, que expõem suas opiniões com naturalidade. Motivados também por identidades de parentesco, vizinhança e luta pela terra, a exemplo da demarcação de seu território, eles são senhores de um ritmo que somente um projeto com efetiva participação poderia ser implementado. As oficinas de capacitação e a pesquisa antropológica apresentaram esta marcante característica.

O trabalho antropológico reforçou a afirmação étnica com a documentação encontrada sobre o caboclo Marcelino, a saga de os índios Tupinambá, o grau de parentesco entre as famílias das diversas aldeias da região e seus costumes, e permitiu a construção de paralelos culturais entre o passado e a contemporaneidade vivenciada pelos Tupinambá.

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Desse modo, o exercício de estar em contato com sua história territorial e o fato dos índios se sentirem sujeitos dela fornecem elementos que os empoderam, tornando-os mais animados na defesa efetiva de seus direitos, sobretudo na luta pelo direito à terra, que na realidade indígena é uma condição vital.

A demarcação da Terra Indígena Tupinambá deve ser encarada como ação prioritária pelos órgãos competentes. Por seu turno, assume relevância a necessidade de operar mudanças nas práticas de agricultura sob queimadas e da implementação de estudos de valoração de serviços ambientais, a fim que as comunidades indígenas sejam remuneradas por atividades em prol da conservação do bioma Mata Atlântica.

A região apresenta alto índice pluviométrico, com solos profundos, ácidos e de baixa fertilidade química, onde a manutenção da matéria orgânica no solo é uma necessidade constante. Os SAFs difundidos pela equipe técnica despontam enquanto estratégia que possa garantir os predicativos necessários à manutenção e melhoria da qualidade dos solos e produção sustentável. Ademais, possibilita a incorporação de solos degradados ao processo produtivo, sem uso de insumos e crédito externos.

Desse modo, a implantação de SAFs na aldeia, tendo como ferramenta as Unidades de Demonstração (UDs), foi uma experiência válida que cumpriu seu objetivo inicial ao despertar na comunidade a vontade de experimentar outra forma de modelagem dos agroecossitemas. Nesta concepção, os SAFs sucessionais diversificados surgem como uma alternativa tecnológica que associa a conservação do patrimônio natural no território Tupinambá e a produção agrícola para múltiplas funções: segurança alimentar; plantas medicinais, condimentares, ornamentais e para produção de fibras; produção de espécies madeiráveis e energéticas; geração de trabalho e renda; conservação da água, solo e recursos genéticos; oferta de abrigo e alimento para a fauna.

No entanto, a descontinuidade das capacitações e a falta de assistência técnica no decorrer do desenvolvimento das UDs de SAFs e

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bosque energético podem implicar dificuldades para condução e manejo dos sistemas, desânimo para continuar desenvolvendo a atividade e falta de convicção de que pode dar certo. Questões que esbarram no tempo de execução e etapas para além do decurso temporal do projeto. Daí, este instrumento metodológico deve ser pensado em um prazo mais dilatado ou se deve pensar a perspectiva de acompanhamento da comunidade e dos técnicos após o término do projeto.

Falta-lhes, portanto, um projeto com maior espaço temporal e uma ATER mais contínua, sendo uma condição sine qua non para o seu sucesso a ligação orgânica com as organizações indígenas, técnicos e instituições de ATER. Percebe-se, com isso, que editais e projetos de natureza da Agroecologia em Terras Indígenas não substituem a necessidade de existência de órgãos públicos do setor atuantes. Tais iniciativas são apenas faróis, que podem auxiliar na formulação de políticas públicas necessárias à fundamentação de uma ATER engajada, emancipatória, que considere a organização social, os traços culturais, a Agroecologia e a sustentabilidade econômica, ambiental e política dos povos indígenas, os quais possuem peculiaridades que devem ser consideradas pelos atuais órgãos de ATER que, em geral, vivenciam um sucateamento estrutural.

Ademais, o saber técnico aliado e confrontado com o saber local, tendo os princípios da Agroecologia como referência constitui, potencialmente, uma ferramenta de promoção do desenvolvimento sustentável nas comunidades rurais indígenas. E isso pode ser evidenciado, comparando-se as duas situações, antes e depois da execução do projeto. Mesmo em pouco tempo, é notório que, embora ainda persistam práticas como as queimadas, hoje existe no povo Tupinambá da Serra do Padeiro uma compreensão da necessidade de mudanças, e das várias alternativas viáveis para a construção de modelos de agroecossistemas que integrem a produção agrícola e a conservação ambiental.

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Referências Bibliográficas

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Execução e Gestão de Projetos Indígenas: Ater Indígena no Semi-árido Brasileiro, Território Indígena Pankararé, Raso da Catarina, Bahia

Marina S. de Castro

Lílian S. Barreto

Lilane S. Rêgo

Maria de Fátima B. Dantas

Miguel Ângelo da S. Colaço

Felipe O. Nunes

Camila O. Nunes

Amia Camila Spineli

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Execução e Gestão de Projetos Indígenas: Ater Indígena no Semi-árido Brasileiro, Território Indígena Pankararé, Raso

da Catarina, BahiaMarina S. de Castro1

Lílian S. Barreto2

Lilane S. Rêgo3

Maria de Fátima B. Dantas4

Miguel Ângelo da S. Colaço5

Felipe O. Nunes6

Camila O. Nunes7

Amia Camila Spineli8

Introdução

Refletir a respeito da assistência técnica e a extensão rural (ATER) indígena a partir de experiências diversas, das disparidades e desigualdades regionais brasileiras, em especial no semiárido brasileiro, é um marco histórico importante para o Estado brasileiro e aos povos indígenas nordestinos.

A realidade dos povos indígenas na região Nordeste é de luta e

1 Pós-doutoranda em desenvolvimento sustentável. Doutora em ecologia. Eng. Agrônoma. Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA), Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e Centro de Desenvolvimento Sustentável/Universidade de Brasília (CDS/UNB).2 Doutoranda em Desenvolvimento Sustentável Políticas Públicas e Gestão Ambiental, Bióloga. Centro de Desenvolvimento Sustentável/Universidade de Brasília (CDS/UNB).3 Especialista em Gerenciamento Ambiental, Bióloga. Instituto Natureza, Gente e Arte (INAGEA), Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA).4 Mestranda, Geóloga. Programa de Pós-Graduação em Modelagem em Ciências da Terra e do Ambiente da UEFS (PPGM/UEFS).5 Mestre em Botânica. Biólogo. Instituto Natureza, Gente e Arte (INAGEA), Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA).6 Biólogo. Instituto Natureza, Gente e Arte (INAGEA), Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA).7 Biólogo. Instituto Natureza, Gente e Arte (INAGEA), Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA).8 Bióloga. Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA).

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resistência étnica permanente, uma vez que foram considerados por muito tempo aculturados, extintos ou inexpressivos enquanto população. Essa condição os colocou em uma situação de invisibilidade frente às questões de regularização fundiária de suas terras e de acesso às políticas públicas brasileiras. Refletindo, nos próprios atores sociais, a ausência de uma valorização de sua identidade, intensificada ainda pela frequente inserção do meio externo às comunidades, através dos diversos meios de comunicação como TV, rádio e a ainda incipiente, internet. Desta forma, desviando principalmente os mais jovens do conhecimento tradicional e consequentemente, encaminhando para o êxodo das suas aldeias de origem e a desvalorização de sua identidade cultural.

Com o passar do tempo, a combinação de resistência cultural e identidade étnica, aliada à atuação política à frente dos movimentos sociais na região entre as décadas de 1970 e 1980, colocaram-nos na cena sociocultural nacional, culminando em alguns casos no reconhecimento e homologação de seus territórios.

No Nordeste os conflitos são fundamentalmente fundiários, envolvendo disputas com proprietários tradicionais, grileiros e posseiros, até por pequenas extensões de terras agricultáveis. Se a relação ha/índio

Foto 01: Procissão realizada pelos indígenas, rumo ao Cruzeiro, durante a celebração da Festa do Amaro. Autora:

Celimar Rejane Carneiro.

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no Norte é maior do que a do Brasil como um todo (335ha/índio), no Nordeste esta relação é de 7,2ha/índio (PETI, 2003).

Considerando a localização adversa das Terras Indígenas no Nordeste, situadas em faixas climáticas semiáridas e desfavoráveis às atividades agrícolas convencionais, a sua intensidade de uso da terra, pela intensificação do trabalho (Ploeg, 2008), pode ser equiparada à unidade familiar camponesa.

Em relação aos antagonismos políticos e às práticas econômicas, a questão indígena no Nordeste faz parte da questão camponesa. Índios e camponeses em contradição fundamental com poderosas elites tradicionais da região, que se utilizam do acesso à máquina do Estado para manter o monopólio da terra e estimular conflitos internos ao campesinato. A dificuldade de se falar em povos indígenas do Nordeste decorre da pouca visibilidade das descontinuidades culturais que expressariam a unidade e a distintividade de um povo indígena em face da cultura e da nação brasileira. A isso se alia ainda a ausência de conhecimento por parte das demais populações não indígenas, da dinamicidade cultural a que todos os brasileiros são diariamente submetidos, por decorrência da facilidade de acesso à informação e ao desenvolvimento acelerado da tecnologia. Ou seja, a cultura é um elemento em constante mutação, sujeito a incorporações voluntárias e involuntárias de bens e serviços, tanto internas como externas. O fortalecimento, o reconhecimento e, consequentemente, a valorização da identidade étnica de um povo promovem não somente a aceitação do novo como também a valorização e a salvaguarda dos modos de fazer tradicionais de cada etnia, ou seja, agregar o conhecimento tradicional às novas tecnologias.

Dos povos indígenas do Nordeste, apenas os Fulni-ô possui uma língua própria, todos os demais se expressam unicamente pelo português. Há uma grande incidência de casamentos com não índios e com índios de outras etnias, e é muito comum encontrar determinados elementos culturais constatados em populações rurais nordestinas.

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A descontinuidade que instaura nas etnias do Nordeste não é consequência de uma diferença cultural, mas sim de uma produção de instância política e desenvolvimentista, calcada em fatores históricos relacionados aos aldeamentos e territorialização frente às missões religiosas. Para os atores sociais a valorização da tradição e sua autenticidade constituem sua própria reafirmação política (PETI, 2003).

A diversidade sociocultural é acompanhada de uma extraordinária diversidade fundiária da situação territorial das etnias. Os territórios dos povos tradicionais se fundamentam em séculos de ocupação efetiva. A longa duração dessas ocupações fornece um peso histórico às suas reivindicações territoriais, aliado aos estudos antropológicos e arqueológicos, que atestam estas ocupações. O fato de seus territórios terem ficado do regime formal não tira a legitimidade de suas reivindicações, simplesmente as situa dentro de uma razão histórica não instrumental, ao mesmo tempo em que mostra sua força histórica e sua resistência cultural.

As diversas sociedades indígenas, cada uma delas com formas próprias de inter-relacionamento com seus respectivos ambientes geográficos, formam um dos núcleos mais importantes dessa diversidade. A expressão dessa territorialidade, então, não reside em leis ou títulos, mas se mantém viva na memória coletiva, que incorpora dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua área, o que dá profundidade e consistência temporal ao território (Little, 1994).

Paralelamente, a consagração do conceito de desenvolvimento sustentável como elemento de um novo paradigma de desenvolvimento criou possibilidades para novas alianças (Ribeiro, 1992). Na busca por uma alternativa de desenvolvimento sustentável, os povos tradicionais passam a ser considerados como parceiros, por consequência de práticas históricas de adaptação ao meio ambiente, às paisagens e aos ecossistemas. A dimensão ambiental e agrícola nos Territórios Indígenas se expressa na sustentabilidade ecológica da ocupação por parte desses povos, baseada nas formas de exploração de baixo impacto dos ecossistemas (Little, 2002).

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A perspectiva em projetos de Ater indígena pela iniciativa do Governo Federal por meio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e de acordo com a Política Nacional de Ater (PNATER) tem contribuído para os avanços na atenção ao meio rural frente às questões de segurança alimentar e desenvolvimento rural integrado e sustentável em Terras Indígenas. Foram necessárias adaptações socioambientais ao ecossistema semiárido e à cultura sertaneja regional, sempre agregando os conhecimentos tradicionais sobre a biodiversidade do bioma exclusivamente brasileiro, a Caatinga.

A reflexão que segue será baseada no projeto aprovado pelo MDA, no âmbito do Programa de Promoção da Igualdade em Gênero, Raça e Etnia (PPIGRE), executado entre fevereiro de 2007 e dezembro de 2008 (22 meses). O projeto é intitulado “Assistência Técnica e Extensão Rural Integrada à Produção Agroecológica Sustentável no Território Indígena Pankararé, Raso da Catarina, Bahia” e foi executado com o apoio da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA), Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e da Fundação Escola Politécnica da Bahia (FEPBA).

Os Pankararé

Os Pankararé ocupam uma área com aproximadamente 46.000 ha em extensão, localizados no extremo nordeste do estado da Bahia, na região denominada Raso da Catarina; abrange parte dos municípios de Rodelas, Glória e Paulo Afonso (figura 1). O grupo encontra-se nas aldeias Brejo do Burgo, Serrota e Chico.

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O território indígena Pankararé é formado por duas Terras Indígenas: a Terra Indígena Pankararé, com superfície de aproximadamente 29.000 hectares, sendo de usufruto exclusivo dos índios e a Terra Indígena Brejo do Burgo, com uma superfície de cerca de 17.000 hectares, que era denominada “área mista”, onde o espaço e os recursos ambientais são divididos com os “brancos” (posseiros que não se autodenominam índios), constituindo-se em uma área de intenso conflito interétnico pela posse de terras até final do ano de 1990.

Os Pankararé têm uma longa história de contato com seus vizinhos regionais. Para Suzana Maura Maia (1992) o grupo pode ser visto como um segmento social ‘camponês’ que se auto identifica como um grupo étnico distinto na população regional. Para essa autora, quando vistos em termos de forma de organização social se enquadrariam na categoria de “campesinato indígena”. Eric Sabourin (2009) confirma a hipótese do campesinato no Brasil corresponder a uma das formas particulares da agricultura familiar, constituída a partir de modalidades específicas de produzir e viver em sociedade; principalmente no Nordeste, Amazônia e Centro Oeste, com a permanência de comunidades camponesas que mantêm as cinco características das sociedades camponesas identificadas por

Figura 1 – Mapa de situação e localização do Território Indígena Pankararé. Fonte: (DANTAS, 2006)

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Henri Mendras (1976): relativa autonomia em relação à sociedade global; a importância estruturante do trabalho familiar e do grupo doméstico; um sistema econômico diversificado, parte autônomo e parte integrado a mercados diversificados; relações de interconhecimento e a função decisiva das mediações entre sociedade local e global.

No nosso entendimento, os Pankararé se enquadram na denominação “campesinato indígena”, que se caracteriza pela auto exploração da mão de obra familiar; economia de subsistência (agricultura e pecuária em pequena escala, somente para consumo interno do grupo); e os excedentes da produção agrícola (feijão, milho e mandioca) são vendidos no período de safra, após cálculo econômico feito pelo homem com vistas a garantir provisão para o consumo e para as precisões ou guardados como semente. Do mesmo modo, produtos de coleta como frutos silvestres: umbu (Spondias tuberosa - Anacardiaceae), murici (Byrsonima gardneriana - Malpighiaceae), licuri (Syagrus coronata - Arecaceae), castanha de caju (Anacardium occidentale - Anacardiaceae) e caças (animais silvestres) são comercializados semanal ou quinzenalmente pela mulher para a aquisição daqueles produtos não produzidos internamente.

A Experiência de ATER

Tomando a experiência de Ater indígena como reflexão crítica neste contexto territorial e cultural, o projeto teve como propósito promover um “dialogar de saberes” inserido na prática das rotinas tradicionais de trabalho indígena. Isso em relação às técnicas e tecnologias, de forma a viabilizar um sistema agroecológico integrador de diferentes subsistemas (casa/quintal, roça/pasto, sistema agroflorestal de criação de animais silvestres e áreas de sucessão ecológica) adaptado ao modo de fazer indígena. Este diálogo tinha como objetivo principal incorporar o modo de fazer indígena a esse sistema agroecológico integrado.

Entre os objetivos foram incluídas premissas de construção,

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reconstrução e desconstrução a cada dia de execução do projeto. Nestas ações estão o manejo sustentável da fauna silvestre, da flora nativa, principalmente de espécies arbóreas chaves, de água e solo, bem como o aproveitamento integral de resíduos, visando geração de renda com produtos oriundos das práticas indígenas e das adaptações tecnológicas.

A experiência do projeto em Ater indígena no Território Indígena Pankararé pode ser considerada como um modelo de execução e gestão em projetos de Ater a partir dos princípios e valores éticos e de sustentabilidade adaptados à realidade étnica local.

Portanto, a agroecologia como modelo adaptado mais do que simplesmente tratar do manejo responsável sobre os recursos naturais parte de um enfoque holístico e de uma abordagem sistêmica com flexibilidade diante dos princípios de manejo tradicionais nas suas múltiplas inter-relações, e mútua e constante influência. Esta leitura e abordagem foram devidas a pré-requisitos que a equipe executora e os indígenas tomaram como princípios de cogestão participativa e confiança recíproca.

Os princípios norteadores foram: criação de mecanismos anteriores a gestão e execução do projeto para a definição de coletividade, confiança e respeito estabelecidos através de diálogos interculturais; tempo de relação interétnica para o entendimento da visão de futuro e para a sustentabilidade territorial e cultural, sempre considerando as experiências passadas; acompanhamento, constância e continuidade da equipe executora com perfil multidisciplinar e interdisciplinar em bases científicas da etnociência e do desenvolvimento sustentável; resgate ao passado pela linha do tempo na sequência de execução e gestão de projetos relacionados à sustentabilidade ambiental e projetos com abrangência em temas relevantes como gestão etnoambiental, agroecologia e etnodesenvolvimento. Constituindo um programa estratégico planejado em curto, médio e longo prazos criando uma base sólida de ação e confiança no contato intercultural.

Os envolvidos no projeto procuraram entender as relações entre o desejado, o planejado e o executado. Foram cogitadas várias razões

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de natureza técnica, que passaram pelos diagnósticos, planejamentos, qualificações, ciclos de produção, calendários agrícolas, tradições e costumes ao executar e implementar as ações que pareciam muito simples e ao mesmo tempo muito complexas.

As questões derivadas do encontro intercultural, no processo de diagnóstico, nas tomadas de decisões, na definição sobre o que e como fazer as atividades, o monitoramento e avaliação das ações pela comunidade sempre foram tratadas pelo diálogo de saberes e não obedecendo a lógicas pré-estabelecidas.

O projeto de Ater não foi tomado como uma solução para os inúmeros problemas sociais ou comunitários, o que possibilitou que não fosse apenas mais um discurso de poder institucionalizado que opera para garantir sua visibilidade, mas uma possibilidade de transformar a realidade para outra, considerada uma “realidade desejo” do grupo indígena. Este tratamento possibilita que não se crie dependência alimentada por práticas assistencialistas, assim como permite a operacionalização obedecendo às oportunidades de conhecimentos, vivências e de regras do grupo indígena. É necessário promover a “fusão de horizontes” entre os sistemas de significados dos indígenas e não indígenas sem hierarquizá-los ou sobrepô-los ao analisar os diálogos estabelecidos (MATOS, 2007).

Foto 02: Reunião com representantes dos grupos familiares da Aldeia Serrota, na escola indígena local, sobre o desenvolvimento das

atividades dos projetos. Autora: Carina Spineli.

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A necessidade de assistência técnica foi considerada consequência dos problemas gerados pelo contato com a sociedade nacional, sendo que quanto mais intenso e longo o contato, maior a dependência de tecnologias e inovações.

A assistência técnica e a extensão rural foram compreendidas pela equipe executora e indígenas como a possibilidade de integrar inovações tecnológicas aos conhecimentos tradicionais de uso e manejo da agrobiodiversidade com objetivo de sustentabilidade das atividades produtivas e reprodutivas do grupo por meio de diálogos interculturais, fortalecendo encontros e desencontros nos distintos sistemas culturais.

a) Principais Desafios

As dificuldades na execução do projeto foram de diversas ordens (institucional, cultural, temporal, ambiental, política, social) e em seus diversos níveis de gestão (financiador, equipe técnica e comunidade indígena).

Um primeiro aspecto foi em relação às exigências de prazo pelo financiador, muitas vezes incompatíveis com a complexidade da realização de projetos participativos e descentralizados que pleiteiam serem solidificados e estruturados pelas comunidades indígenas e entre técnicos envolvidos nas metas do projeto e em consonância com a cultura local. O tempo de decisão na comunidade indígena não coincide com os prazos que são estipulados pelo projeto, e a flexibilidade de cumprimento de prazos se torna necessária.

O instrumento utilizado pelo MDA em forma de “kit”9 restringiu as possibilidades de execução de metas, pois imobilizou as possibilidades de gerar alternativas para a solução de problemas locais.

9 Conjunto de elementos de despesa que compõe uma determinada unidade demonstrativa implantada. (ex.: Kit Unidade Horta – tela de galinheiro, barrote, estaca, grampo, prego, tanque de polietileno, torneira bóia, regador, sementes de hortaliças).

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Outra dificuldade foi em relação ao longo tempo de aquisição dos materiais necessários no campo devido à adequação aos “kits” considerada pela equipe técnica como a maior dificuldade de ordem logística e operacional.

Apesar da necessidade de assistência técnica constante às comunidades indígenas, os recursos alocados nos editais para pagamentos de horas técnicas são insuficientes para atender a demanda de assistência técnica requerida em projetos desta natureza e porte, favorecendo a evasão de membros da equipe técnica responsável.

Os aspectos de ordem ambiental incluíram a ausência de chuva no período previsto em relação à produção agroecológica dos policultivos no campo, o que se reflete na dificuldade de adequação do projeto ao calendário agrícola, político e cultural Pankararé.

De ordem social, os gargalos foram em relação à demora na definição final pelos indígenas e técnicos do arranjo adequado a cada subsistema (mudanças de planos) e à dificuldade e tempo longo na aceitação de novas técnicas.

O fator de ordem política preponderante foi em relação ao ano eleitoral municipal com a candidatura de indígenas a cargos de vereadores, o que gerou conflitos políticos internos.

Os maiores desafios foram o domínio das novas tecnologias pelos indígenas e a Ater integrada à produção agroecológica adaptada ao conhecimento tradicional do manejo e uso da terra, forma mais próxima ao manejo que os indígenas já realizavam nos subsistemas de produção e consumo estudados no modelo de desenvolvimento rural.

A maneira adotada para trabalhar a Ater foi adaptada ao modo de ser e ao ethos indígena, garantindo a importância da organização social de bases familiares necessárias para que não se considere as atividades produtivas simplesmente necessidades físicas ou de sobrevivência, mas também necessidades pedagógicas, espirituais e morais, ou seja, suas necessidades culturais, fundamentalmente, a afirmação de sua identidade.

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A compreensão da economia de autossustento entendida como uma característica da economia indígena voltada para suprir as necessidades básicas (físicas, sociais e espirituais) em que as atividades se baseiam essencialmente no policultivo agrícola, caça, extrativismo e artesanato foram as bases para desenvolver a percepção dos valores do ser e viver indígena.

A diversidade do sistema integrado é representada por diversas experiências, dinâmicas próprias, potencialidades, limitações das condições semiáridas, oportunidades e perspectivas das condições naturais, sociais e políticas. A base de atuação em Ater está na premissa de compreender as lógicas e dinâmicas das comunidades indígenas e suas relações com a sociedade envolvente. Não esquecendo que estão organizadas em complexos sistemas de produção, distribuição e consumo, dependendo muitas vezes de graus de especialização e não de profissionalização. O processo organizativo indígena compreende o planejamento do espaço cultivado, a seleção dos plantios de acordo com a necessidade dos grupos familiares e a distribuição dos fazeres por gênero e faixas etárias, sempre obedecendo às relações políticas e culturais socialmente construídas.

Foto 03: Oficina de implantação do sistema agrosilvopastoril na unidade de criação de animais

silvestres da Aldeia Serrota: plantio de mudas de espécies nativas. Autora: Cintia Corsini Fernandes.

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As iniciativas de fortalecimento dos conhecimentos tradicionais relacionados às atividades produtivas podem ser apoiadas no uso sustentável, parcerias e comercialização da produção indígena em que as atividades tradicionais, como o extrativismo, a agricultura de subsistência e o artesanato, continuam sendo as suas principais alternativas econômicas. Sendo que os indígenas, de forma geral não contam com formas de parcerias e de comercialização dos produtos advindos do uso e manejo dos produtos agrícolas e dos recursos naturais.

b) O Desafio da Comercialização

Geralmente não se chega à comercialização pelo processo de produção baseado na qualidade e quantidade de matéria prima que utilizam. Por exemplo, a comercialização dos frutos nativos in natura como umbu, licuri, murici e caju entram em desvantagem competitiva com outros produtos processados nos comércios regionais, como os doces, compotas, sucos e sorvetes que no TIP é escasso, porém existente como o beneficiamento das frutas, principalmente do caju. O mel de abelhas é outro produto comercializado pelos indígenas. Nas aldeias que possuem apiários (criação racional de abelhas com ferrão, a africanizada Apis mellifera) ou meliponários (criação racional de abelhas nativas) o mel é vendido informalmente ou por atravessadores que compram o produto mais barato e revendem mais caro. Exemplos como estes carecem de fortalecimento quando pensamos em manejo e sistemas agroecológicos indígenas familiares que pouco têm de assistência e acompanhamento em projetos.

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No entanto, a entrada nos mercados que não são os locais exige um nível de empreendedorismo, com acesso a informações de mercado e capital de giro. Para as comunidades indígenas que estão entrando na economia de mercado, ou estreitando os laços com este mercado, o foco do apoio deverá ser em atividades que levam ao fortalecimento e bem-estar da comunidade, tal como saúde, educação, segurança alimentar e proteção territorial, e não necessariamente na geração de renda. No entanto, a decisão sobre a natureza das atividades econômicas a serem desenvolvidas deverá ser feita pela comunidade, para evitar a centralização pelo agente de ATER, lideranças ou outros segmentos sociais indígenas e não indígenas, além da necessidade de regularidade de produção, adequada às demandas destes mercados.

Neste quadro, novos arranjos econômicos, tais como mercado justo, certificação de origem e de produção orgânica, além da experimentação com novas formas de economias comunitárias (cooperativas, economia solidária) se apresentam como oportunidades. Além da representatividade de um produto indígena, que agrega valor ao mesmo, visto a valorização da

Foto 04: Visita técnica para a revisão das colônias de abelhas sem ferrão na Aldeia Brejo do Burgo. Autora: Lilane

Sampaio Rêgo.

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questão cultural promovida atualmente, com diversas ações de instituições específicas, relacionadas ao Patrimônio Imaterial de cada povo e bioma no qual está inserido. No entanto, é preciso lembrar que o desenvolvimento de empreendimentos exige trabalho de longo prazo, e também continuidade dos processos de produção e dos parceiros. Na maioria das vezes, o período de um projeto é insuficiente para atingir os objetivos desejados, pois há um processo de aprendizado, estabelecimento de contatos comerciais e adequação dos produtos e embalagens aos mercados e seus principais consumidores.

Os novos conhecimentos e habilidades foram introduzidos sempre buscando: promover debates entre os informantes, expor em grupo interesses opostos, desmistificar o assistencialismo como solução de problemas, qualificação em grupo das responsabilidades e suas dimensões, além da qualificação para participação em prêmios e editais de financiamento, ordenando as prioridades e caracterizando as condições ambientais e produtivas.

c) Outras Questões

Papel importante teve o projeto financiado pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), intitulado “Desenvolvimento de um Modelo Agroecológico para a Agricultura Familiar Indígena no Semiárido” conduzido no mesmo período cuja oportunidade de pesquisa ação auxiliou na busca de soluções adequadas para problemas surgidos durante a implantação dos sistemas produtivos (Castro et. al., 2009).

A sustentação dos resultados alcançados pela Ater indígena deverá dar continuidade através de um programa integrado em Ater indígena pensado em nível não local, ou de projetos pontuais, mas regional ou de estado por equipe interdisciplinar e multidisciplinar como propõe o projeto encaminhado em 2008 pela equipe executora de Ater para o MDA, intitulado “Elaboração de um programa de Ater indígena para o Estado da Bahia”.

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O programa de ATER indígena obedece às seguintes diretrizes: (1) participação legítima da comunidade, incluindo mulheres, jovens e idosos. Isto significa que deverá existir a participação da comunidade desde o início de qualquer projeto ou ação desenvolvida e esta deverá estar bem informada e devidamente consultada, participando plenamente do planejamento e implementação da ação; (2) promoção de tecnologia adequada ao desenvolvimento sustentável através da valorização das tecnologias tradicionais e a adaptação de inovações tecnológicas às condições agroecológicas e socioeconômicas das comunidades indígenas; (3) fomento à produção sustentável de alimentos básicos, como forma de redução da pobreza e promoção do desenvolvimento socioeconômico local e da segurança alimentar e nutricional; (4) auxílio aos indígenas na gestão etnoambiental do território, como forma de garantir o desenvolvimento sustentável e o controle e acesso aos recursos naturais (água, solo, biodiversidade); (5) apoio ao fortalecimento organizacional e ao desenvolvimento comunitário através do capital social indígena (cognitivo e estrutural) para a formação de recursos humanos próprios qualificados: na formulação, negociação, gestão financeira, captação de recursos, planejamento e monitoramento de projetos, de forma que os atores sociais indígenas sejam qualificados para que assumam e promovam seu próprio desenvolvimento; (6) apoio às organizações indígenas para a comercialização dos produtos em mercados justos e solidários; (7) ações voltadas à valorização e apoio às iniciativas locais da comunidade e suas organizações, fortalecendo as redes de solidariedade existentes entre os participantes; assim como a promoção das relações de intercâmbio para ampliar a articulação interétnica (entre indígenas), trocar conhecimentos, tecnologias, mudas, sementes e demais produtos.

Outras questões consideradas pelos autores de destaque pela sua relevância são a inserção das aldeias nas políticas e programas nos três níveis governamentais, com destaque para as ações de governança de acordo com as características de cada etnia, o apoio ao desenvolvimento da agroindústria familiar, à comercialização de produtos e serviços da

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agricultura familiar e a atividades não agrícolas (artesanato), e ao acesso ao crédito do Programa Nacional para Agricultura Familiar (PRONAF) e ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Assim, pretendemos que as reflexões sejam relevantes para o aperfeiçoamento de mecanismos políticos institucionais para Ater indígena nos territórios indígenas do semiárido e do Brasil. Como objeto de políticas públicas transversais, possibilite garantir a segurança alimentar e territorial, o desenvolvimento rural sustentável e apoio às atividades produtivas integradas ao modo de vida das comunidades indígenas, por intermédio de metodologias específicas que valorizem os elementos culturais, os aspectos ambientais e sociais de cada localidade.

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Espaço de Revitalização da Cultura na Promoção da Saúde: uma Experiência em Ater na TI Guarita

Noeli Teresinha Falcade

Sandro Luckymann

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Espaço de Revitalização da Cultura na Promoção da Saúde: uma Experiência em Ater na TI Guarita

Noeli Teresinha Falcade1

Sandro Luckymann2

Introdução

O presente artigo relata e reflete a experiência de revitalização e socialização dos conhecimentos e saberes tradicionais entre e pelos grupos de mulheres, pessoas idosas e parteiras da comunidade Kaingang. As atividades ocorreram na Terra Indígena (TI) Guarita, nos setores Pau Escrito, Bananeira e Missão, no município de Redentora/RS. Para a construção coletiva de saberes e de revitalização dos conhecimentos tradicionais organizaram-se: visitas domiciliares e entrevistas com os detentores de saberes tradicionais; visitas aos nichos de espécies tradicionais medicinais e nutricionais; encontros setoriais e intersetoriais para intercâmbio de experiências e troca de saberes entre grupos de mulheres, com dinâmicas de grupo e oficinas; cultivo de hortas domésticas e comunitárias para a capacitação em cultivo e uso de espécies que não são de domínio tradicional indígena.

Verificou-se que as pessoas detentoras do saber tradicional Kaingang têm nas práticas antigas um esteio de força e vitalidade. A revalorização das pessoas detentoras de saberes tradicionais Kaingang contribuiu para que estes fossem revitalizados dentro da própria cultura e da comunidade, potencializando uma dimensão distinta em Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) e oportunizando espaços para outras concepções e organizações de interação e manejo de espécies vegetais, de acordo com a

1 Técnica de enfermagem, pedagoga e pós-graduanda em “Educação, diversidade e cultura indígena”, membro da equipe COMIN-ASKAGUARU/ISAEC-DAI, colaboradora na execução do projeto de revitalização de saberes tradicionais na T.I. Guarita, 2007-2008.2 Indigenista e mestrando em educação nas ciências, membro da equipe COMIN-ASKAGUARU/ISAEC-DAI, coordenador do projeto de revitalização de saberes tradicionais na T.I. Guarita, 2007-2008.

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lógica e a ciência tradicional própria do povo indígena Kaingang.

O Povo Kaingang

O povo Kaingang é habitante tradicional da região sul do Brasil, desde o planalto do Rio Grande do Sul até o sul de São Paulo, uma região que teve densas florestas e uma rica biodiversidade. Organiza-se a partir de grupos sociocêntricos, que reconhecem princípios sociocosmológicos dualistas, de acordo com o mito de origem, representado pelos antepassados: Kamè e Kairu-krê3. Esta característica determina o modo de ser e viver Kaingang, ao mesmo tempo opostos e complementares, e preserva a unidade através dos laços matrimoniais. Essa percepção organizacional dual também se estende na interrelação com os seres da natureza.

Até meados do século XX, a subsistência Kaingang consistia basicamente de caça, pesca e coleta de frutos. O cuidado da saúde estava a cargo de um especialista, denominado kujá (xamã), que se utilizava de ervas e intermediava as relações entre os mundos natural, social e sobrenatural.

Porém, sabe-se que no processo histórico ocorreram mudanças significativas para a comunidade Kaingang, tais como: desmatamento; concentração da população; alteração de hábitos e práticas tradicionais; introdução de novas práticas alimentares e medicinais. Entre as alterações, as pessoas mais jovens vêm simpatizando mais com a medicina alopática, não considerando a cultura tradicional Kaingang (plantas medicinais, rituais, chás, alimentos...); enquanto que as pessoas idosas têm nas práticas antigas um esteio de força e vitalidade. Tal alteração de valores, somada às dificuldades na autonomia e diversificação nutricional, que afligem principalmente as crianças, contribui para a incidência de doenças primárias como diarreia, verminose, anemia, doenças respiratórias, afecções, entre outras.

3 Cf. http://www.institutowara.org.br/kaiang.asp, capturado 02/abril/2008.

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Atualmente a população Kaingang é estimada em 29.1404 pessoas. No estado do Rio Grande do Sul, a população Kaingang é estimada em 17.555 pessoas nas 13 terras demarcadas5, e em cerca de 1.500 pessoas em acampamentos rurais e urbanos6. Considera-se o povo Kaingang como o terceiro maior povo indígena no Brasil7.

A maior população Kaingang encontra-se na Terra Indígena Guarita, com cerca de 6 100 pessoas. Localizada na região noroeste do Rio Grande do Sul, entre os municípios de Erval Seco, Redentora e Tenente Portela, está organizada em aldeias/setores Kaingang e, também, dois/duas setores/aldeias Guarani, com uma população estimada em 150 pessoas. A TI Guarita tem a extensão territorial de 23.406 hectares. Houve uma primeira demarcação em 1917, por uma comissão estadual do Rio Grande do Sul, sendo homologada por decreto federal em 1991.

Motivação para a Revitalização de Saberes

A motivação para a experiência em revitalização de saberes tradicionais no uso e manejo de espécies vegetais partiu da própria comunidade Kaingang da TI Guarita.

A realidade e o contexto histórico do contato intensivo com a sociedade não indígena proporcionaram a incidência de enfermidades desconhecidas entre a população Kaingang. Corroborando a essa situação, também operou a desvalorização e recriminação dos seus conhecimentos e tradições, tanto por supostamente não atenderem às novas demandas, oriundas do contato interétnico, como por serem considerados conhecimentos e saberes desatualizados, inapropriados e desqualificados. No contato interétnico houve forte pressão por considerar a supremacia

4 Cf. http://www.portalkaingang.org/index_aldeia_principal_1.htm, capturado em 20/abril/2009.5 Cf. http://www.portalkaingang.org/populacao_por_estado.htm, capturado em 20/abril/2009.6 De acordo a levantamento do Programa RS/Rural, FUNAI, FUNASA, CEPI, de 2003.7 Cf. http://www.museudoindio.org.br/template_01/default.asp?ID_S=33&ID_M=115, capturado em 20/abril/2009. De acordo a fonte, os Guarani e os Ticuna antecedem os Kaingang, em termos de população.

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dos conhecimentos, saberes e técnicas concebidas pelas sociedades não indígenas, sobretudo de origem ocidental, europeia, como a verdadeira ciência.

Tal imposição, associada à simpatia dos indígenas mais jovens pela medicina alopática, concebida como mais eficiente e apropriada, fez com que se desconsiderasse e desacreditasse na sabedoria tradicional Kaingang, sobretudo no uso e manejo de plantas medicinais, rituais, chás, alimentos, entre outros. Embora atualmente não exista kujá na TI Guarita, são ali recorrentes relatos, principalmente entre as pessoas mais idosas, de que em um passado recente os problemas de saúde eram atendidos e tratados pelo kujá. Os tratamentos eram de domínio próprio. Utilizavam-se recursos naturais e saudáveis, nas dimensões da prevenção, cura e imunização de enfermidades.

Foi a partir dessa realidade, de alteração no modo de vida (preferência por uma nova medicina) e organização social (ausência do kujá), e sobretudo porque na atualidade, tais temas não são abordados pelo sistema de atendimento à saúde, não se fazem presentes no relato entre as gerações, mas estão presentes no cotidiano Kaingang, por vezes de forma oculta e silenciosa, conforme relato de membros da comunidade Kaingang, que se criou a disposição para compreender e revitalizar a memória sobre como os antepassados restabeleciam o bem-estar de indivíduos e da comunidade.

Durante atividades do COMIN/ISAEC-DAÍ8, na interação com grupos de mulheres Kaingang, estas manifestavam o desejo de revitalizar os conhecimentos tradicionais de seu povo, suas formas de identificar e tratar as enfermidades, seus rituais de cura e os mitos relacionados à cultura tradicional, sobretudo no uso e manejo de espécies. Este desejo, somado às ações cotidianas de mães e avós, contribuiu para a elaboração da proposta do projeto de revitalização de saberes tradicionais apresentado ao MDA.

8 Entidade indigenista que atua na T.I. Guarita (www.comin.org.br/campos-trabalho_trabalho.php?trabalhoId=11).

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Nos diálogos entre a equipe do COMIN/ISAEC-DAI e a liderança Kaingang da TI Guarita, também houve a manifestação quanto à preocupação em “preservar a cultura”, entendendo que o conhecimento das pessoas mais idosas é o esteio e a orientação para a nova geração da comunidade Kaingang. Também no exercício da liderança, quando as pessoas mais jovens ouvem os conselhos dos mais velhos. Entende-se que a memória viva, quando verbalizada, transmite vários aspectos relacionados à cultura e ao ser Kaingang. “Se os detentores do saber não tiverem oportunidade de se pronunciar, falar de seus saberes, estaremos perdendo junto com os idosos, aspectos muito importantes de nossa existência”, relata uma liderança Kaingang, numa reunião em novembro de 2007.

Assim, elaborou-se a proposta do projeto “Revitalização entre grupos de mulheres Kaingang, dos setores Pau Escrito, Bananeira e Missão (TI Guarita), sobre saberes tradicionais de manejo e uso de espécies medicinais e nutricionais”. O projeto foi encaminhado à chamada ATER/PPIGRE/MDA, em 2006, sendo o COMIN/ISAEC-DAI a entidade proponente e coordenadora, avalizado pelos grupos e pelas lideranças Kaingang da TI Guarita. A proposta visava criar dinâmicas e processos que estimulassem a revitalização e a socialização dos saberes tradicionais, tidos como fundamentais pela comunidade Kaingang, mas que na contemporaneidade não são evidenciados e/ou considerados como tais.

Foto 01: Entrevista com detendores de saberes tradicionais. Da esquerda para direita: Profa. Juraci Venhgrã Emílio; Sr. Turíbio Mineiro; agente indígena de saúde Iraci Pedro Minká. Setor Katiú-Griá/TI

Guarita. Autora: Noeli T. Falcade.

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Com o envolvimento de vários segmentos da comunidade Kaingang (grupos de mulheres, docentes, agentes de saúde e saneamento, lideranças, universitários, entre outros), estabeleceu-se uma proposta de trabalho, visando fomentar, fortalecer e socializar os saberes tradicionais Kaingang.

Concebeu-se que tal processo de revitalização dos saberes tradicionais, em aspectos relacionados a espécies nutricionais e medicinais, potencializaria as perspectivas e alternativas de promoção, prevenção e cura; aproximaria as gerações e gêneros e possibilitaria maior convivência comunitária, familiar e social. Também estimularia a consideração e o conhecimento das pessoas mais novas, instigando-as ao conhecimento e consideração de aspectos culturais, na revitalização de saberes e tradições socioculturais na prática cotidiana.

As atividades foram planejadas com o intuito de potencializar conhecimentos e saberes próprios da comunidade Kaingang como uma ciência, com técnicas e elaborações concebidas de acordo com sua organização e tradição. A dimensão considerada foi a de que a comunidade Kaingang é dona de uma ciência. Contudo, a revitalização e a socialização dos saberes Kaingang visaram não à cisão entre a ciência indígena e a não indígena/ocidental, mas sim, possibilitar o diálogo intercultural e a cooperação entre os agentes das duas ciências, aumentando, assim, o potencial para restabelecer o bem-estar comunitário na TI Guarita.

A partir dessa perspectiva, considerou-se que a oportunidade de realizar uma experiência em ATER potencializaria a ciência tradicional Kaingang e oportunizaria espaço para dinâmicas e atividades de revitalização e diálogo entre ciências.

Execução do Projeto

A premissa foi de que, conforme algumas manifestações, a memória dos antepassados estava viva e presente nas pessoas idosas da comunidade e que, aos poucos, com a morte destes, ela estava se perdendo. Revitalizar

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e socializar tal memória constituía um ato de reconhecimento de um saber que contribuiu na prevenção de enfermidades e no bem-estar comunitário.

O principal desafio para revitalizar e socializar os saberes foi como estabelecer dinâmicas e processos pedagógicos que possibilitassem a construção coletiva, a interação e a fidelidade e garantia de que tais saberes seguiriam sob o domínio e a apropriação da comunidade Kaingang. O protagonismo desse diálogo e dessa cooperação, por meio de debates e construções coletivas, esteve entre os grupos de mulheres, parteiras, pessoas idosas, agentes de saúde e saneamento, lideranças Kaingang, EMSI/FUNASA9, enfim, pessoas envolvidas e comprometidas com o bem-estar da comunidade indígena.

Atividades – Ações Programáticas

a) Visitas domiciliares

As primeiras ações realizadas foram visitas domiciliares a pessoas detentoras do saber tradicional Kaingang. Foram entrevistadas 46 pessoas idosas, com idade entre 70 e 95 anos. Estas detêm uma essência do conhecimento cultural. Em sua memória viva está armazenada uma riqueza de valores culturais, relacionados com os cuidados com a saúde integral do ser humano. Percebe-se que, muitas vezes, esses conhecimentos estão adormecidos, velados, mas que ainda podem auxiliar na reafirmação e na apropriação sociocultural das novas gerações.

De acordo com a cultura e tradição Kaingang o aprendizado dos rituais terapêuticos da cultura Kaingang era repassado entre as gerações, em momentos especiais e em determinadas épocas, havendo todo um preparo para tal momento. Durante as visitas e as entrevistas foi ressaltado que há saberes que provêm de inspirações, derivados de momentos de retiradas (isolamento) ou de convívio com parentes, e em certos rituais. Conforme dito por algumas pessoas que foram visitadas, não se repassa

9 Equipe Multi-disciplinar de Saúde Indígena / Fundação Nacional de Saúde.

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todas as informações e todos os saberes, porque podem comprometer ou servir de motivo para serem julgadas (medo). As pessoas detentoras de saber afirmaram que os medicamentos por eles preparados têm magia, têm vida e são compostas conforme a inspiração espiritual e momentânea.

Para a realização das práticas terapêuticas, os detentores do saber faziam uso de espécies medicinais e nutricionais como água, terra, fumaça, entre outros elementos naturais. Esses rituais eram repetidos dependendo dos sintomas da enfermidade e do andamento da recuperação da pessoa. Atualmente as ações que persistem são tímidas e ocultas. Foi citado que uma das possíveis interferências é a postura de diferentes setores e instituições não indígenas, religiosas ou não, que condenam, rechaçam e ridicularizam as terapias tradicionais Kaingang.

Nas visitas às parteiras indígenas elas relataram sobre os conhecimentos e as experiências que auxiliavam as parturientes. Falaram do processo durante a gestação: o cuidado com o corpo, as dietas alimentares, as práticas terapêuticas que auxiliam o desenvolvimento e a colocação na posição correta do bebê para o parto normal, o uso de chás e as posições que a mãe deve realizar para facilitar o nascimento. Também os cuidados no pós-parto com a mãe e a criança. As parteiras visitadas e entrevistadas evidenciaram o cuidado especial com o cordão umbilical, pois representa a personalidade do ser humano para toda a vida, devendo ser enterrado próximo da casa, na direção do sol nascente. Relataram sobre as dietas alimentares ofertadas às crianças em complementação à amamentação, bem como sobre o modo de preparo das mesmas.

Ao se referirem às doenças relacionadas às carências nutricionais, mencionaram as transformações ocorridas na natureza, que acarretaram em mudanças nos hábitos alimentares dos Kaingang. As crianças foram as mais susceptíveis e vulneráveis a tais mudanças alimentares, apresentaram indícios de fraqueza, com pouca vitalidade e ânimo. A concepção de criança fraca e forte estabelece o seguinte: fraca, no sentido de estar imunologicamente desprotegidas, apresentando um quadro de “míngua”;

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forte, no sentido de ter ânimo, vontade para brincar. Geralmente resistem ao uso do termo “desnutrição”, por um lado porque é desconhecido culturalmente, por outro, por estar associado à morte de diversas crianças no início desta década.

Destacou-se o relato de que antigamente não havia crianças fracas, por causa dos cuidados e da preocupação das mães com o preparo do alimento em casa, em separado. Tal fato, conforme a avaliação das pessoas visitadas, não ocorre atualmente, uma vez que é oferecida às crianças a mesma comida preparada para os demais membros da família. Ou seja, não se tem uma dieta ou um preparo de alimentos em separado para as crianças ou para as mulheres no pós-parto. O testemunho da importância na orientação às mães nos cuidados com a dieta alimentar dada às crianças e no pós-parto, foi recorrente durante as visitas e diálogos com as parteiras indígenas.

b) Visitas aos Nichos de Espécies

As pessoas detentoras do saber tradicional indígena possuem um aguçado conhecimento e domínio da mata. Somente elas conhecem os nichos das espécies, a identificação da parte da erva a ser colhida, bem como a hora em que podem ser coletadas. A mata, por apresentar uma diversidade de espécies, precisa ser preservada e respeitada. É uma fonte inspiradora de saberes. De acordo com a cultura Kaingang, a pessoa coletora precisa atentar a certos quesitos que a qualificam para tal tarefa. A pessoa para coletar as espécies precisa estar bem de saúde e ter conhecimento e segurança na identificação das espécies. Precisa respeitar a planta e tirar somente a porção que vai ser utilizada, para que ela se restabeleça e continue se desenvolvendo normalmente na natureza. O restabelecimento do crescimento da planta, afirmam as avós, é sinal de que a pessoa enferma também terá sucesso no tratamento.

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c) Socialização de saberes

A constituição e o encontro dos grupos de mulheres Kaingang possibilitaram a socialização dos saberes e das experiências. Nestes grupos as pessoas detentoras do saber compartilharam que os conhecimentos culturais são aprendizados que se experimentam no cotidiano das famílias Kaingang, através da convivência, do contato e da escuta. A estes ensinamentos vão se somando os exemplos concretos das vivências com pais e mães. A convivência sadia contribui para a promoção do bem-estar pessoal e grupal.

Para os Kaingang, o bem-estar se estabelece quando ocorre a reestruturação de todas as relações ameaçadas pela doença, essa visão deriva ou é parte de uma concepção de saúde integral e holística, que envolve as diferentes dimensões da pessoa e da comunidade (física, psíquica, espiritual, relação comunitária, entre outras)10. A saúde está integrada à vida. A pessoa é um todo, pois, na cultura Kaingang, ela é vista de forma distinta, numa lógica própria, que não concebe um tratamento/cuidado em partes. A fragmentação da pessoa a torna frágil. Não se pode tratar a dor apenas de um membro do corpo se todos estão interligados. O mesmo acontece com os membros da família. Quando todos convivem mutuamente com o sofrimento ou com doenças de um dos componentes, todos sofrem, todos adoecem.

Assim, nos grupos de mulheres possibilitou-se a reflexão sobre as concepções distintas de saúde e doença na sociedade Kaingang e na não indígena. Também se oportunizou a troca de conhecimentos em relação ao cuidado materno-infantil. Tais reflexões e trocas de conhecimentos estimularam as participantes na busca e no diálogo entre os grupos, por meio de seus encontros.

Os encontros intersetoriais promoveram o intercâmbio interno de informações, saberes e experiências, anteriormente debatidos e refletidos nos encontros setoriais; foram espaços de socialização em cada setor/

10 LANGDON, E. J. dezembro de 1999. Saúde, Saberes e Ética – Três Conferências sobre Antropologia da Saúde.

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aldeia em que se executou o projeto, sendo que cada setor preparava o encontro e recepcionava os grupos de mulheres e demais pessoas dos outros setores participantes do projeto. O processo de construção de novos conhecimentos foi participativo, familiar e comunitário. Os setores que sediaram os encontros intersetoriais tiveram a oportunidade de participar no intercâmbio e na socialização dos conhecimentos tradicionais revitalizados nos grupos de mulheres, que propiciaram o lançamento de estratégias significativas de organização e fortalecimento da cultura Kaingang.

As atividades de socialização de saberes demonstraram uma especificidade na execução de ATER na TI Guarita. A experiência ressaltou a importância na interlocução de distintos grupos, de forma especial, entre os grupos de mulheres e pessoas envolvidas a partir das visitas e entrevistas. Os encontros tornaram oportunidades para que cada qual expusesse o seu conhecimento, a sua prática de coleta e uso das espécies. Nos encontros setoriais as detentoras de saber se agrupavam, por vezes formando círculos, enquanto que as demais pessoas participantes ficavam em volta, acompanhando a explanação de cada socialização. Geralmente, tais exposições eram de pessoas mais idosas, enquanto as mais jovens ficavam prestando atenção. Outro destaque nessa dinâmica foi que a maioria das exposições ocorreu na própria língua Kaingang, por considerarem que tais conhecimentos poderiam ser compreendidos e apropriados pela sociedade não indígena. Assim se protegiam dos riscos de apropriações indevidas.

Avalia-se que tal experiência, proporcionada pelos encontros intersetoriais, e atitude na socialização dos saberes evidenciaram que o conhecimento está presente na comunidade Kaingang e nela permanece como expressão de autonomia e autodeterminação cultural, de uma ciência própria.

d) Cultivo de espécies medicinais e nutricionais

A finalidade de cultivar espécies medicinais e nutricionais não

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indígenas foi no sentido de contribuir para o aumento do potencial dos saberes que cada mãe indígena possui; ensinar e aprender com o grupo por meio da realidade vivenciada; compartilhar os saberes já entendidos e construir novos saberes a partir de novos cultivos. O manejo e a utilização de ervas medicinais e nutricionais de domínio não indígena, como prática complementar, visa contribuir para a construção de um processo de melhorias na qualidade de vida das famílias. As mães e detentoras do saber ao identificar novas espécies de plantas, suas propriedades, a forma de cultivo, preparo e consumo, poderão incluí-las na dieta nutricional, diversificando as fontes alimentares.

O processo de construção e cultivo das hortas e rocinhas de fundo de quintal foi bem distinto e peculiar. Cada setor teve autonomia para se organizar em conjunto com a monitora local e de planejar a melhor forma de semear, transplantar, colher e dividir as hortaliças. Todos os setores receberam as mesmas espécies de sementes e mudas de hortaliças e ervas medicinais e nutricionais. No outono-inverno foram cultivados alface, repolho, rúcula, beterraba, cenoura, almeirão, brócolis, couve. As ervas medicinais cultivadas que não eram de domínio Kaingang foram: mil em rama, tansagem, malva, babosa, boldo, hortelã, camomila, arruda, melissa, poejo, guaco, sálvia, endro, funcho, entre outras de interesse do grupo ou setor.

Foto 02: Atividade com grupo de mulheres do Setor Bananeira/TI Guarita, Horta Comunitária do Projeto de Revitalização de Saberes Tradicionais. Autora: Noeli T. Falcade.

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No período de primavera-verão foram cultivados tomate, pepino, melão, moranga, espinafre e abóbora. Além disso, foram replantadas as ervas que haviam morrido com o frio, como: boldo, sálvia e babosa, e semeados alcachofra, tansagem, bardana, salsa e vagem.

Para o cultivo de hortaliças houve orientação quanto ao não uso de venenos, água clorada e adubos químicos. O controle das “pragas” deu-se pelo consórcio entre as ervas medicinais e nutricionais e chás ou com as cinzas de ervas medicinais11. A planta mais usada para o controle e como repelente de insetos foi o féj ger gy. Conforme relatos, essa planta afasta as pragas sem contaminar a planta nem fazer mal aos consumidores.

No setor Missão12 constituíram-se núcleos de mulheres por proximidade de residências. Uma mulher de cada grupo era a responsável pela semeadura e distribuição das mudas daquelas espécies de transplante. As espécies que não necessitavam de transplante foram divididas entre elas, as participantes, e cada uma as semeou em sua horta ou rocinha caseira. Também no espaço da horta escolar foi cultivado um canteiro de ervas medicinais por um grupo de alunos e docente. Esta metodologia possibilitou que os alunos tivessem maior relação com a terra e despertasse neles a curiosidade em descobrir o valor medicinal de cada planta cultivada e de como era usada pelos antepassados, conforme relato do docente Natalino Góg Crespo.

11 De acordo a relatos e observações, a comunidade Kaingang possui práticas de queimada de ervas medicinais com determinadas tipos de madeiras, que foram aplicados nas hortas para controlar e/ou repelir insetos.12 Esse setor é um local de ocupação tradicional kaingang na T.I. Guarita, situado próximo a Vila São João, no município de Redentora/RS. Neste local, na década de 1960, foi estabelecido um trabalho de assistência social e confessional da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, quando se passou a denominar Setor Missão. A ação missionária implantou o ensino bilíngue, atendimento de enfermaria, a implantação de técnicas agrícolas ocidentais e fundou uma comunidade confessional entre os kaingang. A atuação missionária não considerava a implicação de suas ações sobre a cultura, o simbolismo e o modo de vida kaingang. Equipes de funcionários e pastores residiram no setor até 1985, quando houve a retirada da equipe, pelos kaingang, que se apossaram dos bens e instalações destes. Também na década de 1980, altera-se a compreensão e a atuação prática missionária da IECLB, que constituiu o COMIN, como órgão de ação e assessoria indigenista da IECLB. A partir de sua constituição, o COMIN tem atuado na defesa dos direitos dos povos indígenas na conquista e garantia das terras tradicionais, saúde, educação, sustentabilidade, organização própria e livre-determinação, de acordo a legislação pertinente (CF 88, Convenção 169/OIT), e na perspectiva pautada pelo diálogo inter-religioso e intercultural.

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O grupo de mulheres do setor Pau Escrito teve dificuldades em difinir um local apropriado e a modalidade para o cultivo das hortaliças. Algumas participavam e manifestavam o desejo do cultivo individual, contudo, decidiu-se pela constituição de uma horta comunitária. Esta foi preparada em local distante das lavouras com agrotóxicos e da rodovia, próxima a uma fonte de água, sendo cercada para impedir o acesso de animais domésticos. Na organização e no preparo do cultivo houve a participação de homens, além das participantes do grupo de mulheres. A divisão das hortaliças foi realizada conforme a necessidade de cada família em consumir as hortaliças. Algumas famílias consumiam cotidianamente as hortaliças, já outras as consumiam esporadicamente.

Um aspecto importante foi que o grupo doou para a escola o excedente da produção de hortaliças, complementando a merenda escolar. Os chás cultivados na horta, em conjunto com as hortaliças, foram utilizados no preparo de compostos e “medicação caseira” em oficinas com os grupos de mulheres.

De acordo com relatos de participantes, a horta comunitária além de contribuir no complemento alimentar das envolvidas, possibilitou novos hábitos alimentares, contribuiu para a aproximação das mulheres e possibilitou a troca de saberes relacionados aos cuidados com os alimentos consumidos diariamente pelas famílias Kaingang.

No setor Bananeira, o grupo de mulheres optou pelo cultivo por grupos familiares. Cada representante de grupo recebeu as sementes, ficando responsável em cultivar as hortas em suas casas e, depois, repassar as mudas e ou verduras aos demais familiares. Contudo, de acordo com o relato, essa dinâmica não se realizou a contento.

A comunidade escolar do setor manifestou interesse no cultivo de hortaliças e de ervas medicinais na horta escolar. Assim, constituiu-se outra modalidade de apoio ao cultivo de hortaliças. As hortaliças cultivadas destinaram-se ao complemento da merenda escolar, sendo o excedente distribuído entre as famílias de escolares. As plantas medicinais cultivadas

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na horta escolar foram utilizadas como chá/bebida na merenda escolar, e também no tratamento fitoterápico e preventivo de sintomas de doenças manifestadas pelos alunos. Conforme o relato da direção escolar, muitas mães buscavam ervas medicinais na escola para fazer o chá para as pessoas da família, em caso de necessidade.

Mesmo com as diferentes propostas de construção e cultivo de hortas, com as intempéries climáticas, a produção foi favorável. Um aspecto positivo durante o cultivo das hortas, ou roças de fundo de quintal, foi a disposição das mulheres, que por iniciativa própria assumiram o controle da produção: umidade, adubação, capina e colheita.

Outro aspecto importante a ser considerado é o cultivo consorciado: canteiros com espécies nutricionais e medicinais. A experiência de cultivo consorciado possibilitou a compreensão de que o cultivo de hortas pode ser realizado de diferentes formas. O cultivo consorciado contribui no manejo das espécies, dispensa o uso de produtos químicos, uma vez que o consórcio das plantas possibilita o controle de insetos e contribui no equilíbrio ecológico. Contribui, também, para a qualidade dos alimentos e preparos terapêuticos.

Embora o cultivo em horta não seja um aspecto da cultura tradicional Kaingang – conforme foi expresso por pessoas detentoras de saberes tradicionais, as fontes alimentares tradicionais não são cultivadas e sim obtidas através de coletas e manejos em nichos originais, acessados distintamente pelos grupos familiares – tem-se observado a adesão paulatina a essa prática como uma forma de complementar as fontes alimentares e nutricionais, constituindo novos hábitos alimentares. Tal fato revela que o cultivo em horta é uma dinâmica recente entre os Kaingang e reflete uma alteração do ambiente, espaço em que vivem e, por conseguinte, uma inovação no modo ser Kaingang.

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e) Livro Gufã ag kajró

A disposição de elaborar um livro surgiu durante os encontros intersetoriais, realizados sob o tema “Revitalização de saberes tradicionais e uso das ervas medicinais e nutricionais”, na perspectiva de que o conhecimento e os saberes tradicionais precisam ser compartilhados, respeitados e divulgados entre a comunidade Kaingang.

Os encontros realizados na TI Guarita habilitou docentes Kaingang na elaboração desse material específico para as escolas Kaingang. Os encontros e outras atividades proporcionaram a confecção de material didático destinado aos estudantes Kaingang. O material baseou-se nos relatos proferidos nos encontros e nas entrevistas com pessoas idosas e parteiras da TI Guarita. Foi redigido por três docentes Kaingang e com o apoio das monitoras Kaingang (que realizaram as visitas e entrevistas e coordenaram os encontros) e da equipe do COMIN (apoio logístico).

A equipe de redação do livro preocupou-se em elaborar um material que auxiliasse na educação escolar indígena e na revitalização dos saberes tradicionais. Os docentes perceberam que este material poderia estimular e fortalecer a própria identidade Kaingang, respeitando, valorizando e buscando a revitalização do uso das ervas medicinais e nutricionais de domínio tradicional.

Na elaboração do livro definiu-se apresentar a maioria dos textos em Kaingang, com alguns traduzidos para o português. Na origem dessa decisão está a preocupação em preservar os conhecimentos tradicionais da comunidade Kaingang, mantendo-os sob o seu domínio. A equipe redatora e a liderança Kaingang manifestaram a preocupação com a apropriação indevida por parte de pessoas com interesses distintos sobre tais conhecimentos do povo Kaingang. Por esta razão optou-se em elaborar o livro quase que na totalidade na língua Kaingang.

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ATER – Espaço de Troca e Valorização de Saberes

As ações e as atividades realizadas na revitalização de saberes, como uma possibilidade de programa em ATER, foram o início de uma caminhada da comunidade Kaingang. As atividades e o processo foram positivos, pois a comunidade participou ativamente nos diferentes momentos, revelando a disposição e as condições de continuarem tais ações.

De acordo com a manifestação do cacique Valdonês Joaquim é importante dar continuidade a este tipo ação, em que se experimentou uma forma de assistência técnica pautada na cultura Kaingang, potencializando e estimulando a troca de saberes.

Outros relatos durante os encontros foram de que a presente experiência foi significativa, pois possibilitou a presença das pessoas idosas, oportunizando o compartilhar de saberes e intercâmbio de informações da cultura e do modo de ser Kaingang. Além disso, a cada encontro percebeu-se a crescente participação das mães jovens que, juntamente com as gestantes e nutrizes, estavam atentas ao partilhar dos saberes das mais idosas.

Foto 03: Exposição de plantas de uso tradicional durante o Encontro de Revitalização de Saberes Tradicionais na TI Guarita. Autor: Gottfried

Ernest Phieller.

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A participação de membros da liderança, agentes indígenas de saúde e saneamento reforça a importância em realizar ações e atividades em parceria com a comunidade. Reafirma a necessidade de buscar e respeitar os diferentes saberes, seja da medicina tradicional Kaingang, seja da medicina não indígena.

Considerações para Outras Conversas

A proposta de revitalização dos saberes tradicionais Kaingang refletiu a importância do papel dos detentores do saber na promoção da saúde e no cuidado com o doente. A dinâmica das visitas domiciliares, das entrevistas e dos encontros de grupo mostra a necessidade de trabalhar a socialização dos saberes e experiências como uma das formas de revitalizar as práticas terapêuticas dos antepassados. Revela também a necessidade e a importância da reflexão sobre as condições de interação entre as medicinas Kaingang e não indígena. Afirmam a necessidade de os profissionais não indígenas, da área da saúde, reconhecerem as limitações de todas as medicinas. Este reconhecimento contribui para o respeito e a compreensão de outros sistemas de medicina, com seus saberes e práticas relacionadas aos cuidados e cura da saúde.

O protagonismo desse diálogo e cooperação, realizado por meio de debates e construções coletivas, esteve entre os grupos de mulheres, parteiras, pessoas idosas, agentes de saúde e saneamento, lideranças Kaingang, EMSI/FUNASA, enfim, entre pessoas envolvidas e comprometidas com o bem-estar da comunidade indígena. As manifestações e considerações apontaram para a busca da revitalização de saberes tradicionais Kaingang, considerados importantes, mas na contemporaneidade quase esquecidos e pouco utilizados. Reiteramos a importância da interação entre os agentes da medicina tradicional indígena e não indígena em um processo de diálogo e cooperação, contribuindo assim para aumentar o potencial de restabelecimento do bem-estar familiar e comunitário dos indígenas e de seus parceiros de trabalho.

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Por ser o protagonismo coletivo e depender dos encontros e articulações, demanda um processo de atividades e ações com outra dinâmica de tempo, nem sempre consideradas como elemento constitutivo da ATER. Constatou-se que, durante a execução de ATER com a comunidade Kaingang da TI Guarita, as justificativas de organização temporal para a organização e execução das atividades levavam em consideração tão somente os aspectos técnicos de extensão rural pautados pela sociedade não indígena. Ou seja, não se concebia que programas e atividades em ATER também são pautados por processos pedagógicos, com a organização temporal distinta e sob influência de diversas variáveis. As atividades visavam uma metodologia processual, de construção coletiva, de revitalização de saberes, pautada no estímulo e organização em grupos, visitas e entrevistas.

Uma possível redução no tempo de execução das atividades (previsto para um ano, sendo proposta a execução em seis meses), como o proposto nas tratativas para firmar o contrato entre a entidade proponente e o PPIGRE/MDA, comprometeria a metodologia processual, bem como a participação na construção coletiva, uma vez que não haveria espaços entre os eventos previstos para a apropriação da proposta e sua condução pela comunidade Kaingang.

Como o projeto de revitalização de saberes na TI Guarita previa o cultivo de hortaliças em dois períodos distintos (outono-inverno e primavera-verão), obteve-se a justificativa para a execução do projeto de acordo com cronograma original de um ano. Contudo, esta atividade era complementar, o foco principal do projeto estava nas dinâmicas e processos de interação e socialização dos saberes tradicionais.

Como se mencionou anteriormente, na origem do projeto de ATER estava o objetivo de estabelecer, ou restabelecer, melhor dito, espaços e tempos para troca e diálogo de saberes entre os próprios grupos interessados; de possibilitar condições de articulação e organização para debater questões de interesse próprio da comunidade e o desenvolvimento de metodologias apontadas pelos seus membros. As ações foram concebidas

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como oportunidades de interlocução entre saberes, em benefício e em atenção às necessidades presentes na comunidade.

O desafio em ATER na TI Guarita, como em outras comunidades indígenas e/ou tradicionais, é o estabelecimento de práticas de ATER que subsidiem os saberes tradicionais. Estes saberes tradicionais foram concebidos numa interação e circulação anteriores à atual realidade. Na atualidade, as necessidades e articulação comunitária ocorrem em ambientes alterados e distintos aos que os saberes tradicionais foram concebidos. Ou seja, como percebido na execução das atividades de revitalização de saberes tradicionais, as práticas, a interlocução, a interação com o meio de outrora era pautado com um ambiente de florestas e de vegetação diversificada e hegemônica. Contudo, num curto espaço de tempo, de uma a duas gerações, esse ambiente é alterado e introduz-se com novas técnicas. A comunidade Kaingang precisou elaborar estratégias e modalidades de interação com esse ambiente alterado. Mas, ao mesmo tempo, afirma que o conhecimento dos antigos ainda é o esteio e a força da cultura e do povo Kaingang.

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1989.

LANGDON, E. J. Saúde, Saberes e Ética: Três Conferências sobre Antropologia da Saúde, Antropologia em Primeira Mão 37. Florianópolis: Pos-Graduação em Antropologia, UFSC, 1999.

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Limites e Possibilidades de Articulação das Políticas Públicas de Agricultura com o Sistema Agrícola Guarani

Ledson Kurtz de ALmeida

Jean Carlos de Andrade Medeiros

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Limites e Possibildiades de Articulação das Políticas Públicas de Agricultura com o Sistema Agrícola Guarani

Ledson Kurtz de Almeida1

Jean Carlos de Andrade Medeiros2

Atualmente, as políticas do Estado brasileiro, através do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), reforçam, em termos teóricos, o incentivo ao sistema de produção tradicional indígena articulado com a preservação ambiental, o que é extremamente profícuo. Na prática, dissonâncias cognitivas podem ocorrer entre as concepções técnicas e as concepções indígenas de agricultura.

Neste sentido, pretendemos refletir de forma ampla sobre a assistência técnica em agricultura oferecida aos Guarani, tomando como base o processo de execução, as reflexões e os desafios enfrentados durante o desenvolvimento do projeto: “Fortalecimento da agrobiodiversidade Guarani: ações de intercâmbio de espécies vegetais entre as aldeias de Santa Catarina”3.

O projeto surgiu da demanda de anciões Guarani, com a manifestação sobre a importância dos seus cultivares, como o milho, os tubérculos e outros alimentos ancestralmente produzidos. A perda de certas matrizes em decorrência da restrição territorial e dos processos de colonização de suas terras abriu espaço para outras formas de produzir que não são tão apreciadas por eles. Em algumas aldeias há matrizes inexistentes em outras, por isso, oportunizar a troca de material vegetal apontou para o resgate

1 Dr. em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Pesquisador do CNPq; integrante do Núcleo de Transformações Indígenas (NUTI - UFSC/Museu Nacional/UFF); Pesquisador do Núcleo de Estudos dos Saberes e Saúde Indígena (NESSI /UFSC); Assessor da Associação Rondon Brasil/Funasa. Email: [email protected] Engenheiro Agrônomo – Msc em Agroecossistemas, Assessor Técnico da Asa Brasil. Email: [email protected] Este Projeto foi proposto pela Associação Rondon Brasil de Santa Catarina ao Ministério de Desenvolvimento Agrário no ano de 2007 e está inscrito nesta instituição sob o número 275.

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dos alimentos tradicionais através do incentivo de uma prática corrente desta sociedade, que é o deslocamento e a realização de intercâmbio entre as aldeias.

De forma ampla, o projeto consistiu em encadear ações de pesquisa, de saberes tradicionais, de troca de material vegetal e ATER entre os Guarani, de forma a fortalecer a agrobiodiversidade étnica, além de dar visibilidade às autoridades públicas sobre a produção de alimentos tradicionais. Para isso, foram propostas ações junto às 21 aldeias de Santa Catarina, localizadas em 11 municípios, beneficiando diretamente cerca de 449 indivíduos e indiretamente, 262 famílias indígenas.

Neste artigo tomaremos como base a dinâmica assumida pela equipe técnica na primeira fase do projeto, amalgamando nossas impressões e aprendizados a partir da prática adotada junto aos trabalhos de sensibilização e inventário participativo, assim como da expedição à Argentina para a busca de sementes tradicionais. No intermédio das ações, as habilidades e desafios da prática de interculturalidade se revelaram no trato e negociação das propostas e dos significados de cada uma delas junto aos índios Guarani.

A orientação geral da reflexão aqui desenvolvida é sobre os limites e possibilidades de articulação entre os programas de ATER e o sistema agrícola Guarani, procurando explicitar um maior conhecimento e valorização dos saberes e práticas desta etnia. O material teórico tomado como base origina-se da área de antropologia e da área de agroecossistemas. Somado a este escopo teórico, tem-se como material de análise os dados resultantes dos levantamentos de campo durante as ações referidas acima. Este material conta com narrativas, registros das reuniões preparatórias e de avaliação – seja com os representantes indígenas, seja com a equipe executora –, bem como observações de campo e inventário agrícola Guarani.

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Dentre as temáticas subjacentes ao conteúdo desenvolvido destacam-se as formas de mediação entre a assistência técnica do governo e a realidade sociocultural indígena; a crítica à sobreposição de uma perspectiva racionalista que fragmenta o universo social, político, econômico, religioso etc. sobre uma perspectiva holística que unifica os diferentes universos do cosmos e das práticas agrícolas; e a relação entre o tipo de produção própria do sistema Guarani – onde ressalta a noção de “sementes sagradas” – com um tipo de produção que procede do universo não Guarani.

A questão norteadora desta reflexão é como contribuir para tornar realmente possível um tipo de política agrícola que contemple e, ao mesmo tempo, incentive a variedade de sistemas agrícolas baseados na diversidade sociocultural dos povos indígenas brasileiros, fomentando a produção de alimentos, bem como a geração de recursos financeiros para estas sociedades. Mais do que buscar uma resposta, esta pergunta orienta uma epistemologia para a eficácia da ação.

Foto 01: Reunião na aldeia Morro dos Cavalos. Autor: Ledson Kurtz de Almeida.

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Aspectos Fundamentais do Sistema Agrícola Guarani: Relevância, Ações e Conexões junto ao Projeto

A ocupação territorial antiga dos Guarani permitia a concretização da agricultura em seu molde tradicional, não ocorrendo da mesma forma hoje, já que percebe-se uma drástica redução do espaço ocupado por eles acompanhada por má qualidade dos solos. Onde este apresenta boas características para a agricultura, a produção de alimentos próprios, apontados pelos Guarani como os de melhor qualidade, potencializa a disponibilidade para o consumo interno. A sobrevivência nestes locais é, em boa parte, garantida pelo plantio diversificado de produtos, os quais são, geralmente, plantados em pequenas roças de não mais do que dois hectares.

A agricultura Guarani apresenta um calendário agrícola próprio que define os ciclos de cultivo e manejo do ambiente, dividindo o ano em duas estações bem definidas: ara pyau (“tempos novos”), corresponde ao período de primavera/verão de nosso calendário e o ara yma (“tempos antigos”), coincide com o período de outono e inverno. Em cada uma dessas, a observância de fenômenos ambientais como ventos, chuvas, tempestades são de grande importância na ordenação de suas atividades agrícolas, funcionando como sinais, inclusive, para reconhecimento e identificação de uma nova estação, como, por exemplo, a afirmativa de que: no final do ara yma sempre vem uma ventania (yvytu vaekue) anunciando os tempos novos (ara pyau). Acrescenta-se a isto que as atividades agrícolas são efetivadas levando-se em consideração as diversas fases da lua (jaxy). Em junho começa, nas aldeias, o preparo das áreas para se efetivar os plantios. O período ideal, de acordo com os informantes, corresponde ao compreendido entre o final do ara yma e início do ara pyau, entre o final da lua cheia (jaxy nhepyt) e início da lua minguante (jaxy mbyte py). Este calendário é próprio do sistema simbólico Guarani, mas uma das justificativas pragmáticas para esta definição é evitar o caruncho nas sementes.

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A imbricação desta sociedade com o meio ambiente é extremamente significativa. O tekoha, local onde residem, possui uma idealização para que a vida se realize em sua plenitude. Deve conter certas condições geográficas e ecológicas para permitir a constituição da unidade político-religiosa-territorial baseada na família extensa. Dentre os diferentes fatores necessários para constituí-lo, as terras cultiváveis recebem destaque, demonstrando a importância da agricultura na aproximação entre natureza e cultura. O agroecossistema Guarani privilegia o uso, conservação, cultivo e troca de biodiversidade enquanto componentes fundamentais da própria cultura do grupo. As observações efetivadas em campo mostram que, apesar das dificuldades atuais de acesso e manejo nos ambientes que ocupam, o grupo desempenha um papel importante no incremento da biodiversidade local, caracterizando-se por apresentar acentuada diversidade inter e intra específica, que pode ser encontrada na composição de seus ambientes de plantio (roças e quintais), bem como na postura quanto à conservação de variáveis ambientais como água, solos e vegetação.

Hoje, os Guarani se reorganizam nos espaços possíveis, reinventando seus modelos de gestão de recursos, incorporando elementos novos e nos fornecendo evidências de que necessitam de espaços maiores e melhores para viverem em plenitude seu modo de ser. Objetivam o usufruto de espaços que possibilitem a concretização de suas atividades fundamentais, leia-se: agricultura, caça, pesca e coleta de matérias-primas. Pela capacidade de transmissão dos saberes e pelas características de sua dinâmica cultural, os produtos e as formas de produção incorporados nas aldeias não têm gerado a desestruturação do sistema de plantio tradicional. Em alguns casos, observa-se o predomínio de roças convencionais em relação às roças tradicionais, mas não há substituição de um sistema por outro como mônadas. Não acreditamos, neste sentido, que o sistema produtivo de base ocidental possa tomar o lugar do modo Guarani de plantar, mesmo porque não se pode pensar em dois modelos completamente separados na prática agrícola atual desta etnia.

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Incentivar a agrobiodiversidade Guarani, portanto, vai além de uma recuperação das sementes antigas ou do reforço de uma forma típica de plantio. É de fundamental importância o estabelecimento das trocas de sementes durante as visitas, a realização do ritual no interior da opy (casa de reza) onde o karaí (pajé) lança sobre as sementes a fumaça do tabaco queimado no petynguá (cachimbo), a organização de grupos de mutirão para o roçado e o ritual de batismo das sementes após a colheita, denominado imongaraí. Estes e outros elementos compõem um conjunto de fatores intrínsecos à organização social, cosmologia e sistema simbólico Guarani, com relação aos quais a agricultura precisa ser tratada como um processo.

Articulação de Sistemas Agrícolas

A análise da articulação de sistemas nos permitiu desenvolver estratégias teóricas e metodológicas para implantação das ações, procurando contribuir para a valorização do sistema agrícola tradicional. Os programas de políticas públicas para os povos indígenas no Brasil atual, em comparação com aqueles desenvolvidos em governos anteriores, demonstram uma maior envergadura para lidar com a alteridade. A grande dificuldade surge no momento de aplicação dos mesmos. Neste sentido, o projeto enfrentou um desafio de construir um discurso no interior da equipe, com maior coesão no sentido de incluir o ponto de vista indígena e outro de determinar ações o menos conflitante ou com menor fricção possível com o sistema agrícola Guarani.

Não é fora do comum às equipes formadas por profissionais oriundos de áreas e formações diversas conflitos internos sobre as estratégias de agir, ou inércia pela falta de estratégia. Com o objetivo de construir uma coerência interna, a equipe recorreu à antropologia para desenvolver um processo de ação reflexiva por meio da explicitação e gerência dos conflitos, tanto no âmbito interno da equipe quanto na relação com a realidade sociocultural Guarani. O conhecimento do sistema simbólico e

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da organização social dos Guarani orientou os profissionais e possibilitou a adoção do projeto pelos próprios indígenas, evitando a ação centralizada na equipe técnica.

Neste sentido, o eixo dialógico para a execução do projeto deixou de ser fundado na biologia da planta, na qualidade do solo e no retorno financeiro da produção, passando a ser a ocupação simbólica do espaço e a percepção da roça em seus aspectos econômico, social, filosófico, psicológico, etc. Ou seja, passou a considerar outros aspectos, com base na comparação entre saberes distintos relativos às técnicas agrícolas, às causas de êxito ou fracasso do plantio, às formas de lidar com mudas e sementes e à percepção da agricultura no âmbito da ideologia e simbolismo (narrativas e rituais).

É importante ficar claro que a construção de um diálogo intercultural não implica a exclusão de um tipo de agricultura em favor de outro, ou em uma hierarquia entre os sistemas indígenas e não indígenas. O momento de utilizar uma ou outra bagagem cognitiva é fruto do contexto e parte de uma negociação de significados pelo conhecimento de ambos os universos em articulação.

Além disso, a operacionalização de diferentes formas de construção da agricultura pode ocorrer simultaneamente em um mesmo contexto. As populações ameríndias, principalmente aquelas com maior intensidade e/ou maior tempo de contato com a cultura ocidental, desenvolveram sistemas híbridos perceptíveis em diferentes níveis das práticas sociais, sendo a agricultura um destes. A antropologia costuma lidar com esta situação sem deixar de considerar os aspectos históricos, políticos e cosmológicos envolvidos em tal aproximação cultural.

Agricultura Guarani e os Modelos Possíveis de Articulação

Verificamos que os Guarani apresentam um sistema que categoriza os ambientes florestais e nos dão pistas de seu manejo e de suas condições

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fisionômico-estruturais, e sucessionais4. Os ambientes nominados pelos Guarani como Poruey representam os locais intocados, que “aparentemente” não foram “alterados” pela ação humana. Desse modo, para os locais denominados Poruey recobertos por formações florestais emprega-se a terminologia Kaaguy poruey. Considerados como “sagrados”, os locais Poruey não podem ser utilizados para nenhuma atividade.

Os Kaaguy ete ou Kaaguy yvate representam ambientes recobertos com matas primárias ou secundárias em estado que variam de médio a avançado de regeneração. Nas áreas de ocorrência de Kaaguy ete o uso dos recursos pelos Guarani limita-se às saídas para caça e à coleta de espécies da flora nativa, sobretudo para finalidades medicinais. Por sua vez, Kaaguy karapei é a nominação empregada para os ambientes recobertos com formações florestais secundárias em estágios que variam de inicial a médio de regeneração. Os ambientes nos quais ocorrem Kaaguy karapei constituem aqueles passíveis de serem utilizados para ocupação residencial, roça, coleta de espécies da flora nativa (madeira para as casas, lenha, entre outras) e caça (sobretudo com o auxílio de armadilhas).

É inegável que as iniciativas de produção agrícolas levadas a cabo por algumas instituições junto aos Guarani de SC, têm como mote a utilização de tecnologias da agricultura dita convencional, herdeira da chamada Revolução Verde, com a utilização de insumos de base sintética, monocultivos, sementes híbridas e pesticidas. A pressão é tamanha que, em algumas aldeias, esse modelo é amplamente divulgado e utilizado como referência por parte de integrantes do grupo, enquanto alternativa possível de inserção de sua produção no mercado regional.

Com a dinâmica desse projeto, podemos observar que as implicações deletérias desse modelo são percebidas pelos indígenas. Por exemplo, em um local nos foi revelado que o grupo não se alimenta dos produtos produzidos com essas técnicas. Paralelamente aos cultivos convencionais, foram

4 Esse sistema pôde ser observado durante o transcurso desse trabalho, corroborando com os seguintes autores Felipim (2004) e Medeiros (2006).

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observadas roças tradicionais, com arranjos em policultivos, de onde saem parte significativa do alimento consumido pelas famílias. Outra questão que merece destaque é a comprovação feita pelos próprios indígenas de que aquelas práticas têm enfraquecido seus solos e contaminando suas águas.

Com base nestas considerações, entendemos que o sistema agrícola tradicional praticado pelos Guarani, ao diversificar o número de espécies, além de contribuir para a intensificação da biodiversidade local, garante a conservação dos recursos naturais, possibilitando a valorização da totalidade do sistema agrícola produtivo e não somente os rendimentos de uma cultura, como é o caso do modelo agrícola da Revolução Verde.

Formas de Mediação Intercultural

O exercício de uma reflexão conjunta quanto à condução coletiva da proposta (técnicos e índios Guarani), foi uma das premissas levadas a cabo pela equipe técnica do projeto. Ao longo do trabalho, a preocupação com a apropriação e sedimentação da proposta junto aos Guarani constituiu-se na tônica norteadora das ações, buscando suas instâncias de discussão.

Uma primeira forma de desenvolver esta participação foi, exatamente, incluir um indígena Guarani na equipe executora. Tal atitude representou um importante exercício de aproximação com a alteridade, visto que os diálogos travados durante as reuniões de avaliação e encaminhamento das ações colocavam em cena conteúdos de saberes diferenciados, além de estratégias distintas de ação que deveriam estar em permanente negociação de sentido através da mediação antropológica.

A segunda, e mais difícil, foi estabelecer um diálogo permanente com as instâncias políticas dos Guarani. Neste sentido, o projeto organizou uma primeira reunião com representantes da Comissão Iemonguetá para apresentação da proposta, deixando em aberto um espaço de tempo para

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os líderes refletirem em suas aldeias5. A partir daí o Projeto passou a ser inserido nas discussões mais amplas, juntamente com outros assuntos das áreas da saúde, da educação, da regularização territorial, entre outras. A atuação da Comissão não foi simplesmente no plano do acompanhamento do projeto, mas influenciou diretamente em seu desenvolvimento.

Certamente esta instância não poderia ser ignorada, contudo exigiu uma série de cuidados para não transferir ao projeto interesses fora dos seus propósitos iniciais, visto que, a organização política pan-aldeã, geralmente, sofre influência de articulações de parentesco e de demandas específicas das aldeias distintas. Uma cautela, neste sentido, foi procurar distinguir a participação política formal e informal e contemplar a opinião de certos anciões, principalmente os líderes religiosos, como é o caso do karaí.

Quando o projeto encontrou dificuldades em considerar os diferentes níveis de participação, lançou o problema para os produtores das divergências, colocando em cena os realces das interações discursivas. Este exercício dialógico procurou tornar os aspectos interpessoais e políticos estratégias discursivas. Assim, ao invés de contrapor uma categoria à outra ou indivíduos em relação intersubjetiva, as relações dialógicas passaram a compor um cenário em que os diferentes discursos eram explicitados enquanto problemas a serem resolvidos pelos próprios protagonistas de sua produção.

Uma terceira forma de mediação foi possibilitada pela escolha de indivíduos de cada aldeia para acompanhar as ações em curso no local, denominado como Agente Indígena de Agricultura (AIA). Essa categoria havia sido prevista no projeto, em sua versão inicial, sendo reservado um recurso dentro das metas de custos para que esses indivíduos ficassem à disposição da equipe, apresentando a realidade local e mediando os diálogos com os especialistas indígenas de agricultura, visto que, nem todo Guarani é um agricultor especializado neste campo, pois há categorias

5 Visto que, este é o principal espaço de reunião dos representantes das aldeias guarani do estado de SC.

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sociais voltadas para outras atribuições.

Avaliamos que a presença do AIA é fundamental. Contudo, entendemos que deve ser tomado o devido cuidado com relação ao processo de sua escolha. Os critérios devem ser estabelecidos junto às instâncias de decisão da sociedade Guarani, respeitando suas formas de mobilização e de escolha. Além disso, ele não pode ser uma categoria profissional assalariada e em competição com os especialistas tradicionais. No caso do projeto, foi interessante a contratação do AIA para ações pontuais.

A partir do projeto, percebeu-se a importância de o AIA estar integrado nos objetivos da equipe executora, bem como nas linhas da proposta, para que através dele o seu grupo se fortalecesse e conseguisse participar efetivamente dos empreendimentos, tornando-se protagonista na escolha das formas de desenvolvê-lo. Assim, fica clara a opção por um AIA que tenha afinidade com os especialistas tradicionais e habilidade no trato com os agentes externos, dinamizando as relações de interculturalidade.

Foto 02: Participantes da viagem à Argentina expondo sementes e mudas adquiridas. Autor: Vanderlei Cardoso Moreira.

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Uma última forma de mediação a se destacar pode ser aquela constituída pela relação entre a própria equipe técnica e a agência financiadora do projeto. Nesse contexto, apresentou-se como questão central a sensibilização dos gestores governamentais sobre as incongruências administrativas frente à alteridade.

Este foi o caso, por exemplo, dos gastos com erva-mate e fumo que, embora o valor tenha sido irrisório, o setor financeiro do MDA argumentou como sendo despesas sem relação com o objeto do convênio. Neste sentido, a equipe técnica teve de desenvolver uma justificativa demonstrando que o consumo de fumo e erva mate estaria intricado ao objeto do projeto e o dispêndio efetuado com estes produtos poderia ser enquadrado nos gastos previstos no plano de trabalho. Demonstrou-se que tal consumo não estaria em desacordo com o objeto do projeto, visto que a utilização do fumo (pety) e da erva mate (ka’a) entre os Guarani é fundamental: nos processos de reprodução dos saberes tradicionais; durante os encontros entre representantes de diferentes aldeias para a realização de troca de material vegetal; e, em ações estratégicas de incentivo à atividade agrícola própria desta etnia. Esclarecendo que a transmissão de conhecimento e as práticas relativas à agricultura tradicional inexistem fora dos processos que envolvem o consumo de tabaco e o consumo de erva mate, entre outros, inerentes às formas de sociabilidade e ao simbolismo.

Em acréscimo, o setor financeiro argumentou que a utilização dos recursos nestes dois produtos havia sido em “finalidade diversa da estabelecida no Termo de Convênio”. Neste sentido, a justificativa teve de demonstrar que o fumo e a erva mate estão enquadrados nas previsões de gastos do plano de trabalho, pois estes produtos, na ótica Guarani, não se distinguem, em termos de valor, daqueles relativos à alimentação. Para os Guarani, o fumo é como se fosse um alimento do espírito no sentido de servir como elemento purificador e como mediador entre o mundo vivido pelos humanos e o mundo espiritual; além disso, é através do uso do petynguá que o líder espiritual realiza a purificação das “sementes

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verdadeiras”, pré-requisito para o seu plantio e posterior consumo. A erva mate, por sua vez, também está no mesmo nível dos alimentos, pois propicia a leveza e a agilidade necessárias para a subsistência dos indivíduos e sua transcendência.

No argumento do MDA o projeto não possui a obrigação de financiar estes dois produtos visto que não estão perfeitamente enquadrados em suas categorias de gastos. Contudo, para os Guarani é óbvio que qualquer projeto deva incluí-los, pois além do uso em si, esses produtos, quando oferecidos pela equipe técnica, estabelecem uma relação de reciprocidade, que é o primeiro passo para articulação intercultural.

Considerações Finais

Considerar os aspectos apontados acima, que compõem um sistema Guarani e as formas de articulação com outros sistemas agrícolas, é um ponto de partida para o estabelecimento de políticas públicas neste campo. Neste sentido, destacamos três pontos para estimular os mecanismos internos e incentivar a produção de alimentos:

• Os Guarani detêm um sofisticado sistema sustentável de recursos naturais e de conservação da biodiversidade, mas para sua plenitude urge a disponibilidade de terras e recursos naturais;

• A produção agrícola de acordo com os costumes dos Guarani demanda um grande esforço para garantir o consumo próprio, contudo este sistema é dinâmico e apresenta possibilidades de articulação com outras formas de produção agrícola através da incorporação de técnicas e produtos;

• A agricultura tradicional Guarani é um fenômeno histórico-cultural e como tal deve ser foco de estudos agronômicos e antropológicos para torná-la mais rica e melhor aproveitada pelos indígenas.

Nesse exercício de interculturalidade, destacamos abaixo diferentes

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pontos que ajudam a pensar de forma preliminar sobre o desencadeamento de ações futuras de ATER junto aos Guarani:

• Abordar as especificidades históricas e socioculturais de forma integrada, possibilitando o entrelaçamento entre as atividades produtivas e os outros aspectos culturais que compõem essa imbricada relação (narrativas, rituais, organização social, etc) e reforçando as redes de reciprocidade e parentesco;

• Articular com organizações constituídas pelos Guarani enquanto fórum de discussão e encaminhamento de ações, como é o caso da Comissão Iemonguetá;

• Propiciar o diálogo entre as estratégias conservacionistas e as representações de solos na cultura Guarani, tecendo estratégias de manejo como: plantio em cobertura, cordões de contorno em terrenos declivosos, dentre outros, sem desprezar o sistema simbólico relativo à organização do espaço e à classificação territorial6;

• Valorizar o trabalho com as sementes tradicionais – “sementes verdadeiras” – estimulando as iniciativas de resgate e multiplicação dessas nas diferentes aldeias. Ressaltando que o aspecto fundamental é a concepção de “semente” como parte de um sistema simbólico muito mais amplo do que simplesmente o uso comercial. A concepção de semente Guarani está associada com cosmologia, noção de pessoa, espiritualidade e cura de doenças7;

6 De acordo com Noelli (1993) que revisita os trabalhos do padre Jesuíta Montoya , pode-se referendar a constatação de que os Guarani classificam os solos em função de aspectos como textura, cor e fertilidade. O referido autor afirma que atualmente esses indígenas continuam distinguindo os solos pela coloração, e também, por sua relação com a vegetação (yvy corresponde à ibi). Yvy moroty designa os solos de coloração esbranquiçada, Yvy pytã assinala os solos avermelhados (roxos), Yvy hu representa os solos escuros e acinzentados, yvy sayju são os solos amarelados e pardos. Conforme pudemos comprovar ao longo desse trabalho.7 Para mais informações sobre a grande relevância das sementes tradicionais e o trato relativo a elas conferir Medeiros (2006), Medeiros e Darella (2007), Ikuta (2002), Felipim (2001), Ladeira (2001), Noelli (1993,1994, 1996 e 2004), Schaden (1974), Brieger et al. (1958), dentre outros.

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• Estabelecer diálogo com o ATER convencional sobre as bases da valoração dos impactos que esse modelo vem causando nos diferentes aspectos da vida Guarani: ambientais, sociais, econômicos e culturais, lançando um olhar crítico sobre a sustentabilidade do modelo. Em seguida dimensionar suas ações futuras a partir das relações dialógicas com os diferentes interesses locais, no reconhecimento de como esse sistema foi adotado pelos indígenas e, finalmente, que estratégias adotar visando sua conversão à uma proposta agroecológica que sejam suficientemente aplicável à realidade sociocultural da aldeia;

• Apoiar iniciativas de manejo florestal e exploração de recursos a partir das conexões que os Guarani fazem com as categorias faunísticas e florísticas;

• Pensar conjuntamente com os Guarani sobre estratégias de produção de renda, utilizando-se de pesquisas que forneçam um panorama da potencialidade das plantas nativas cuja cadeia comercial esteja bem estabelecida, apresentando alto valor de mercado, alta demanda, substituição de espécie exótica, possibilidade de agregação de valor, facilidade na produção e desenvolvimento de tecnologia sobre a espécie. Nesta linha, contemplar elementos de interesse agronômico

Foto 03: Mudas e sementes adquiridas durante viagem à Argentina. Autor: Vanderlei Cardoso Moreira.

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para o grupo: espécies cultiváveis (cultivares tradicionais) e frutíferas, junto a espécies florestais nativas de potencial madeirável, óleo essencial, medicinal, corante e ou cosmético, etc8.

Parece-nos pertinente que, de forma geral, as ações que sejam pensadas junto a esse grupo, levem em conta o diálogo com as questões e políticas que almejem a ampliação e reconhecimento do território Guarani, bem como possibilitem articular a política de agricultura com as políticas de saúde, educação e meio ambiente que estão dialogando com as diversas realidades vividas pelos Guarani. Lançamo-nos ao desafio.

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Caxêkwyj : Educação Agroambiental na Terra Indígena KrahôCarlos Antônio Bezerra Salgado

A curiosidade ingênua, de que resulta indiscutivelmente um certo saber, não importa que metodicamente desrigoroso, é a que caracteriza o senso comum. O saber de pura experiência feito. Paulo Freire

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Caxêkwyj : Educação Agroambiental na Terra Indígena Krahô

Carlos Antônio Bezerra Salgado1

Introdução

Em certos tempos se compreendeu a natureza com ênfase na sua dimensão “sagrada”, a “Mãe Natureza” provedora e parideira, de onde tudo surge. O sagrado cultuado e manifesto em plenitude na harmonia do ambiente natural, estabelecendo um fluxo sociedade natureza.

Do ponto de vista filosófico, a “dessacralização da natureza significou a violação de sua integridade, dos limites que teriam que ser mantidos para que a vida natural pudesse ressurgir e renovar-se” (SHIVA, 2000: 307). Esse ser sagrado ainda é manifestado entre os diversos povos indígena no Brasil.

O Povo Krahô vive imemorialmente nos Cerrados, fato confirmado por sua memória coletiva e mitológica. Em uma região onde atributos ambientais especiais se configuram na grande ocorrência de campos úmidos e veredas, constituindo uma região singular de surgência, formada por nascentes, córregos e pequenos rios.

A Terra Indígena Krahô está entre as maiores áreas de proteção contínua do bioma Cerrado. Abrange 3.200 Km2 na região nordeste do Estado do Tocantins, onde estão os municípios de Goiatins, Itacajá e Santa Maria. A fragilidade ecológica da Terra Indígena Krahô está na matriz geológica responsável pela gênese dos solos de formação arenítica, predominante em todo o território. Característica que, além de dificultar a produção de alimentos, define partes consideráveis do território como áreas suscetíveis à desertificação.

1 Pesquisador Colaborador do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília (UnB), servidor da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e Assessor da Escola Agroambiental Caxêkwyj desenvolvida pelos Krahô.

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Plenamente adaptados ao bioma dos Cerrados, os Krahô se estabelecem nas chapadas, explorando o conjunto de outros ecossistemas associados, como: veredas, campos úmidos, matas ciliares, cerrados, carrascos, matarias e campos do chapadão. Os conhecimentos tradicionais sobre os ecossistemas do Cerrado, guardados por alguns velhos, os levam a manterem um forte movimento de resistência e manutenção cultural. Pelos preceitos da ancestralidade, respeitam a natureza que lhes define formas socioculturais sustentáveis e rege a vida cotidiana desde o tempo imemorial.

Os povos indígenas habitantes nas Terras Indígenas no bioma Cerrado, de fácil acesso terrestre, têm experimentado graus tecnológicos e metodológicos diferentes para a produção de alimentos e atendimento às necessidades de manutenção da segurança alimentar. Algumas menos adequadas trouxeram o pensamento indutor de mudança no sistema de produção tradicional, familiar, solidário, com base na subsistência, para uma forma coletiva, ligada ao mercado, com a introdução de tecnologias desenvolvidas para o agronegócio, pouco sustentáveis, acelerando a erosão dos recursos ambientais.

A erosão genética das plantas alimentares cultivadas com o conhecimento tradicional a eles associado em um quadro de abandono do próprio hábito de fazer as roças, de guardarem e utilizarem suas sementes e técnicas milenares de manejo agrícola, ampliou o quadro já frágil da produção de alimentos no Cerrado. Assim desde o contato com nossa sociedade vêm absorvendo novos recursos genéticos, inclusive variedades híbridas associadas a novas técnicas de plantio, desequilibrando a segurança alimentar e nutricional ancestral.

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Educação Indígena

A escola que a gente quer é a escola do prazer, aquela que a gente

pode vir todos os dias. E nunca sinta vontade de ir embora. Não

queremos uma escola que só tenha mais cadeiras, quadro-negro e giz,

mas sim uma escola da experiência, da convivência e da clareza. Se

um dia alguém trouxer um peixe que foi pescado no riacho perto da

nossa casa, ele seria nosso objeto de estudo.

CREUZA PRUMKWY, professora Krahò – TO

É mais adequado ouvir o que os indígenas dizem sobre educação indígena para termos uma ideia do que é. O que representa “pedagogia indígena”. Jeannette Armstrong, indígena Okanagan2 em seu ensaio “Em’owkin” (1994, apud CAPRA, 2006) fala que na ancestralidade a educação ocorria naturalmente no seio familiar, e que cada família tinha suas especializações, que em conjunto representavam as necessidades de sobrevivência e eram transmitidas com muito orgulho aos seus descendentes. Diz ainda assim:

Transmitir as habilidades e os conhecimentos necessários para

se viver bem, era tão importante naquela época quanto é hoje; a

diferença pode estar no como as famílias colocavam os princípios

da sobrevivência em termos de conduta comunitária necessária para

manter saudáveis os recursos e os sistemas alimentares.

A manifestação e organização do conhecimento, do saber/fazer, da epistemologia, da ontologia e da cultura indígena se dá a partir de tipologias intrinsecamente vinculadas à biodiversidade. Essa diferenciação ontológica cria a possibilidade de referência aos indígenas de outra cognição, linguagem e simbolismo, a partir de interações extremamente intensas e de grande envolvimento com a natureza.

2 Povo Indígena que vive na reserva Indígena de Penticton, na província canadense de British Columbia.

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O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa,

inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me

relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que

ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências.

Não sou apenas o objeto da história, mas seu sujeito igualmente

(FREIRE, 1996: 76).

Essa proximidade e cognição sobre a natureza conferiram resistência a estes povos, mantendo-os em suas terras de onde ainda podem utilizar os recursos naturais para sobrevivência, ao mesmo tempo essa atitude os sustenta, por isso necessitam da biodiversidade preservada.

O professor Fernando Luiz Yawanawá, (2005: 20) afirma que “educação são os ensinamentos dos pais em casa e os ensinamentos das pessoas mais velhas da aldeia, que são contadores de histórias e os pajés”.

A pedagogia indígena traz em si elementos tão próximos à natureza, que a própria vida se confunde com o apreender viver. Na sua concepção natural está a possibilidade de todos serem, em graus variados, educadores de seus saberes aprendidos em fazeres, e assim o são, todos os indivíduos, capazes de auxiliar a compreensão dos outros pela manifestação ontológica de seus saberes. Através do exemplo, do prático, do descobrir, da transformação do saber em fazer, surge a pedagogia indígena perpetuada em rituais ancestrais realizados cotidianamente pelos mestres indígenas.

A escolarização da educação, induzida pelas políticas públicas, missionárias e outras, destinadas aos povos indígenas, desconsidera a educação tradicional indígena como forma de manutenção do saber. Como política pública, a educação escolar indígena leva os povos indígenas a referenciarem a escola como o principal momento de educação para seus filhos, marginalizando e fragilizando todas as formas ancestrais de educar.

Um ditado indígena diz que: “Quando ensina algo a alguém, você está

privando a pessoa da experiência de aprender isso. Você precisa tomar

cuidado para não tirar essa experiência de ninguém”. A pedagogia

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indígena não se ocupa apenas com o que é dito, mas também por

quem é dito e em que circunstâncias. Ensinar não é apenas um meio

de transmitir conhecimentos e informações; é também parte integral

desses mesmos conhecimentos (MARGOLIN,1978, apud CAPRA,

2006:97).

A Educação Agroambiental: A CAXÊKWYJ

A escolarização da educação indígena, pouco contempla a pedagogia ancestral construída com seus próprios saberes e fazeres. Segundo suas próprias realidades existenciais. A falta de autonomia e protagonismo indígena, nos processos exógenos de escolarização, levou a União das Aldeias Krahô (Kàpey)3 a trabalhar o paradigma autônomo de sustentabilidade, baseado em suas próprias verdades e descobertas.

A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte

3 A kàpey é um conselho comunitário que reúne todas as aldeias Krahô e é representado juridicamente pela União das Aldeias Krahô, organização indígena criada em 1993.

Foto 01: Meninas Krahô na corrida de tora. Autor: Carlos Salgado.

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integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos (FREIRE, 1996: 32).

Com a orientação e apoio da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB), vem sendo realizada uma experiência com pedagogia indígena, a “Escola Agro Ambiental Caxêkwyj4”, onde preconiza-se o aprendizado integrado de práticas e conhecimentos teóricos ligados à sobrevivência Krahô.

A Caxêkwyj surge como proposta pedagógica de prática educativa alternativa à escolarização, privilegiando a geração de conhecimentos e um processo de formação em sintonia com a ética da sustentabilidade por meio do diálogo entre os saberes. Valoriza a cultura e a natureza no território Krahô, constituindo um amálgama que privilegia a reconstrução da sobrevivência com base em uma visão endógena. Sua criação é inspirada na busca de uma compreensão aberta à crescente complexidade dos problemas essenciais da humanidade, pautada em relações harmônicas entre humanos e a natureza.

É um método de “formação prática” de educadores agroambientais5, amplo e permanente, que com o aprendizado proporcionado em vivências dirigidas às crianças, tem potencializada sua atuação. Assim a formação dos educadores depende das velhas e velhos, mestres da cultura, e das crianças em atividades pedagógicas.

Ela não é propriamente uma escola, uma instituição, um prédio que

4 Caxêkwyj (pronuncia-se catxêcoi). Um mito Timbira. Os Krahô contam que uma estrela virou mulher para atender ao pedido de um jovem solitário para arranjar uma companheira para ele. O nome dessa estrela é Caxêkwyj e quando veio à terra, trouxe consigo diversos alimentos novos ensinando como produzir e como comê-los. Aqui encontrou o milho e ensinou como utilizá-lo na alimentação. Como diz Konc Konc, um educador Krahô mestre de tradições da escola: “É coisa muito antiga, é cultural Krahô.” Surgiu em 1994.

5 Isto se deve principalmente à dificuldade de comunicação das crianças em outra língua que não a materna. A formação inicial dos educadores já em condições de dar aulas para as crianças necessitou cerca de dez anos para ser efetiva.

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circunscreve o saber. Não se limita a esta concepção, mas se liga antes ao fazer para então saber aprender a melhor fazer. A Caxêkwyj é um processo dialético de educação, um método de diálogo, de questionamento, de procedimento argumentativo. Um método experimental permanente que vem sendo apreendido pelos Krahô há cerca de 15 anos6. Objetiva compreender e auxiliar a melhoria da segurança alimentar e nutricional tradicional, trabalhando novos conteúdos paradigmáticos de sobrevivência. Alia produção de alimentos às tecnologias ancestrais e cuidados agroecológicos, que juntos podem auxiliar a manutenção e melhoria da qualidade de saúde e vida.

Para aplicação do método pedagógico são realizadas vivências agroecológicas, com a prática de ritos e brincadeiras ancestrais, experimentações diversas com a produção de alimentos e seu uso cultural. O início da formação foi realizada com casais jovens, formadores das unidades

6 A Caxêkwyj vem trabalhando a formação de Educadores Agro Ambientais há 15 anos, realizando projetos apoiados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Instituto Sociedade e Proteção da Natureza (ISPN), Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (PDPI-MMA), e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), no âmbito da carteira de ATER Indígena. Assim tanto o aprendizado em serviço pode ser experimentado quanto uma relação de intercâmbio com colaboradores eventuais, responsáveis pela formação continuada dos educadores.

Foto 02: Aula de cantoria no pátio da aldeia. Autor: Carlos Salgado.

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familiares de sobrevivência. A escola é realizada no centro de formação da Kàpey na Terra Indígena Krahô, que foi organizado fora das aldeias. A proposta é que após a realização das vivências agroambientais, já nas suas aldeias, coloquem em prática tanto no espaço doméstico quanto nas roças de produção de alimentos o que aprenderam, agindo como multiplicadores.

Com o apoio da ATER Indígena do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) o método pedagógico, que vinha sendo experimentado apenas na sede da Kàpey, passou a ser realizado em oito aldeias, considerando o ethos tribal de cada comunidade, e a manifestação ontológica ganha forma pedagógica, em práticas de âmbito local, os “Pedacinhos de Caxêkwyj”. Isto ampliou fortemente perspectivas de autonomia, criação e apropriação da tecnologia diretamente pelas comunidades.

Este momento trouxe a oportunidade de se levar a campo algo que vinha sendo desenvolvido embrionariamente, como que em um laboratório, na Kàpey, em um território restrito e pouco definido, de todos da Terra Indígena, terra de ninguém e de todos. Nas aldeias, o território é definido e assim a relação da comunidade passa a ser o componente motriz da experiência pedagógica autônoma, internalizando mais ainda o processo.

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Na prática, utiliza conceitos e critérios didáticos que valorizam a experimentação de um processo de ensino/aprendizagem significativo ao povo Krahô, no qual os conteúdos abordados são livres e segue-se o pensar Krahô, sem estipular ritmos e tempos estranhos ao viver cadenciado ditado pela natureza.

Trabalha o respeito e fortalecimento da cultura Krahô, orientando a prática de costumes e tradições, num ideal pedagógico que enxerga na transversalidade universal a permissividade de se desprender de aspectos ortodoxos. Valoriza a perspectiva de gênero, circunscrevendo as atividades das mulheres e dos homens, onde são reveladas formas de plantio, colheita e beneficiamento tradicional dos recursos naturais, e circulam conhecimentos etnobotânicos e recursos genéticos.

O apoio externo trouxe uma maior continuidade às atividades, além dos projetos financiados pela FUNAI, teve um projeto financiado pelo PDPI, quando foi possível iniciar a formação continuada dos educadores, posteriormente aprofundada por um projeto financiado pela ATER Indígena / MDA. Já em um segundo projeto também financiado pela ATER Indígena / MDA foi possível experimentar pela primeira vez um trabalho diretamente com as crianças, no qual os educadores passaram a conduzir as atividades. A primeira vivência com crianças realizada pelo projeto do MDA contou com 57 crianças; a

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derradeira vivência realizada na sede da Kàpey teve a participação de 97 crianças. As crianças são meninas (Kahuré) e meninos (Homré), de várias aldeias.

Para manutenção das atividades de pesquisa, a escola usa vários campos experimentais, tanto em sua sede quanto em algumas aldeias. Encontramos eco na fala de Paulo Freire quando ele afirma:

Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres

se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo

buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei,

porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando,

intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o

que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade (FREIRE,

1996:29)

A Caxêkwyj usa também como metodologia, atividades de intercâmbio e aprendizado com passeios e excursões pedagógicas7 a centros de pesquisa especializados, fazendas experimentais, projetos de comunidades alternativas, centros de processamento de alimentos. Este procedimento atinge um nível bem interessante de aprendizado, pois se vê na prática diversos métodos de produção alternativa e sustentável de alimentos. A atividade de excursão compreende tanto a visitação quanto a consolidação dos conhecimentos por meio do debate e do registro em desenhos e textos.

7 Com o apoio da FUNAI, foi realizada uma excursão pedagógica para Brasília em 2002. Foram visitados Centros da Embrapa, o Instituto de Permacultura do Cerrado (IPEC) e a Comunidade Alternativa Frater Unidade em Pirenópolis, e o Sítio Alegria de produção orgânica. A FUNAI também apoiou uma excursão para o Centro da Embrapa no Ceará, que desenvolve pesquisas com o caju-anão, espécie que se adaptou bem na TI Krahô.

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Através de um dos projetos financiados pela ATER Indígena / MDA em 2006 foram realizadas duas excursões pedagógicas: uma à Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e a comunidade rural sustentável Goura Vrindavana dos Hare Krishna em Parati-RJ quando foi visitada uma fábrica de banana passa; e outra à fazenda Fugidos em Piraí-BA com curso de agrofloresta, ministrado por Ernst Göestch8, e depois uma visita a uma agrofloresta experimental de Cerrado na OCA em Alto Paraíso.

Estas excursões possibilitaram a consolidação de uma tendência pela adaptação e adoção de tecnologia de agrofloresta pelo método sucessional, sendo objeto pedagógico abordado pelos educadores agroambientais nas atividades do projeto. Aqui está também a interatividade e importância da continuação da atividade em outro projeto em que o uso de algo apreendido em uma visita de intercâmbio em um projeto foi utilizado como ferramenta pedagógica em outro posterior.

Também nas vivências na Terra Indígena, a consolidação dos

8 Ernst Göestch é o desenvolvedor e introdutor no Brasil da metodologia de sistemas agroflorestais sucessionais, onde o manejo vai privilegiando as diversas fases da sucessão em um sistema implantado originalmente em uma única etapa.

Foto 03: Visita de intercâmbio ao Sítio Alegria de produção orgânica.

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conhecimentos se dá em oficinas de desenhos e textos, que complementam o aprendizado e produzem material para livros didáticos. Na Caxêkwyj já foram produzidos os seguintes títulos: “Abelhas Nativas: Conservação Ambiental”; “Frutos do Cerrado”; “Alimentação Krahô”; “Saúde: Vida Feliz”; “Excursão Pedagógica”; “Aprendendo com a Natureza”; e “Vivências Agroecológicas na Terra Indígena Krahô”. Os livros são utilizados nas escolas formais, em atividades transversais ao currículo, reforçando e valorizando o saber ancestral no processo de educação escolarizada. Dessa forma é trabalhada a dimensão futura da sociedade Krahô, levando às crianças aprendizados exógenos ao processo de escolarização.

A ATER Indígena e os Projetos Realizados

Alguns projetos realizados pela Caxêkwyj foram mais definidores da sua formatação, como o caso do projeto apoiado pelo Instituto Sociedade e Proteção da Natureza (ISPN) que privilegiou a construção de um paradigma agroecológico de educação relacionando sobrevivência e conservação dos recursos naturais.

O projeto do PDPI pode dar um seguimento a atividades por quatro anos consecutivos, preocupando-se principalmente com o seu funcionamento orgânico, permitindo certa continuidade. Nesse momento discutiu-se pela primeira vez o conteúdo pedagógico livre da Caxêkwyj reforçando a importância da manutenção do protagonismo indígena.

A partir dos projetos do ISPN e PDPI foi possível analisar o modelo de realização da agricultura na Terra Indígena Krahô, quanto à forma como são utilizados tradicionalmente e a insustentabilidade gerada pela baixa capacidade de suporte dos recursos naturais. Surgiu então a possibilidade de se discutir e experimentar novos paradigmas de produção, retornando à pauta uma discussão sobre como produzir na fitofisionomia das Chapadas e utilizar as tecnologias de constituição de agroflorestas sucessionais.

Configura-se assim uma grande necessidade de se trabalhar melhor

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a “extensão indígena e a assistência técnica”, visto que os experimentos passaram a ser ligados à sustentabilidade de cada aldeia aumentando a pressão e a responsabilidade por retornos confiáveis. Também cresce a importância dos educadores como extensionistas, mantendo assim também uma necessidade maior de apoio para formação dos educadores, implantação de experimentos e seu monitoramento. Dessa forma, as ações pedagógicas da Caxêkwyj se consolidam definitivamente como alternativas aos processos de “desenvolvimento” para geração de emprego e renda, construindo uma base científica alicerçada na cultura Krahô.

Com a adaptação e a reconstrução de métodos educativos e tecnológicos, privilegia-se então o processo endógeno de aprendizado e reconstrução sustentável da própria vida, deixando-se de lado o atrelamento ao mercado ou mesmo a políticas públicas causadoras de expressiva dependência externa. Assim, os resultados dos projetos assumem uma dimensão temporal mais adequada ao tempo indígena, ou mesmo se adequando ao tempo indígena, pois são tecnologias educativas que ficam registradas na própria cultura.

Foto 04: Roça Experimental. Autor: Carlos Salgado.

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Existem poucas experiências sistemáticas com a extensão indígena no Brasil. Pouco se discute ou discutiu sobre a atuação do sistema de ATER nacional e sua atuação com povos indígenas. Ainda se separa pesquisa e extensão, quando muitos pesquisadores acabam assumindo o papel de extensionista, visto a grande necessidade de assistência técnica e extensão. O Estado desta forma é omisso e irresponsável, menosprezando a necessidade de se estudar e sistematizar conhecimentos que permitam a geração de políticas adequadas de extensão indígena.

Projetos de ATER Apoiados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário

Em 2006 foi realizado um primeiro projeto apoiado pela ATER Indígena / MDA. Sua concepção contemplou tanto a necessidade de se conhecer novas experiências quanto a necessidade de implementar nova experimentação interna. No projeto “Vivências Agroecológicas no Território Krahô” financiado pelo MDA, realizado em 2006, foram realizadas as seguintes atividades:

1 - Vivências Agroambientais de Formação do Educador iniciados com um ritual chamado Tep Teré (peixe e lontra), sempre encerrados como nas festas tradicionais, onde retorna-se e demonstra-se a importância da fartura, característica básica das sociedades comunais indígenas. Estas Vivências Agroecológicas ainda não objetivavam a inclusão das crianças sendo dirigidos prioritariamente aos casais de educadores;

2 - Manutenção de campos experimentais existentes e implementação de novos, onde tecnologias “sustentáveis” são testadas, adaptadas e avaliadas quanto a sua sustentabilidade;

3 - Constituição de ilhas de proteção de recursos naturais, com aceiros, protegendo contra o fogo manchas de recursos interessantes à sobrevivência Krahô;

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4 - Viagens de intercâmbio: para a Fazendinha Agroecológica, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e visita a Goura Vrindavana, comunidade dos Hare Krishna em Parati-RJ; e uma segunda viagem com curso de agrofloresta em Piraí-BA e uma visita à agrofloresta experimental de Cerrado, em Alto Paraíso.

5 - Elaboração de material didático, resultante das oficinas de desenhos e textos tanto das viagens de intercâmbio, quanto das vivências agroecológicas. O livro produzido a partir deste material, intitulado “Vivências Agroambientais na Terra Indígena Krahô” foi distribuído posteriormente para uso nas escolas indígenas das aldeias como material de apoio.

Também com o apoio do MDA, foi realizado em 2007 um novo projeto: “Consolidando ensinos e aprendizados Agroecológicos na Terra Indígena Krahô”. Este propôs consolidar os conhecimentos agroecológicos abordados anteriormente e procurou desenvolver as seguintes atividades:

1 - Levantamento Etnoambiental de recursos naturais planejado para ser realizado em oficinas de campo para o levantamento autônomo dos recursos naturais. Este procedimento não foi realizado devido a dificuldade de articulação e mesmo à amplitude da meta que acabou por ser abandonada em sua estratégia. Assim o levantamento foi realizado superficialmente a partir de informações difusas coletadas nas vivências agroambientais realizadas na sede da Kàpey. Parte destes conhecimentos se encontra no livro produzido pelo projeto;

2 - Vivências de formação do Educador Agroambiental juntamente com crianças de várias aldeias nas idades de 10 a 12 anos. Foram realizadas duas vivências e em ambas foi realizado um ritual chamado Põnhy pré (milho ancestral), como nas outras vivências, envolto em brincadeiras lúdicas e demonstração da fartura na produção de alimentos. Na primeira vivência foram preparadas roças que, na segunda vivência, foram utilizadas para a festa;

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3 - Manutenção de campos experimentais existentes e implementação de novos, onde algumas tecnologias “sustentáveis” alternativas foram testadas, adaptadas e avaliadas;

4 - Constituição de novas ilhas de proteção de recursos naturais, mantendo a metodologia da implantação de aceiros para isolamento contra o fogo, protegendo manchas de recursos interessantes à sobrevivência Krahô;

5 - Elaboração de material didático, resultante das diversas oficinas de desenhos e textos das vivências agroecológicas educativas. O livro didático produzido a partir deste material, intitulado “Aprendendo com a Natureza”, foi distribuído para uso nas escolas do ensino fundamental, trazendo a transversalidade contemplada nos projetos educativos da Caxêkwyj.

Dificuldades Encontradas no Relacionamento com os Diversos Projetos

A principal dificuldade encontrada foi de caráter administrativo/financeiro. Tanto na gestão autônoma realizada pela Kápey, quanto no relacionamento com o próprio MDA. No primeiro projeto realizado com a carteira ATER Indígena, foi estabelecido um contrato com a Caixa Econômica Federal (CEF) o que facilitou sobremaneira, pois já tinham um regime simplificado de acompanhamento e prestação de contas. O acompanhamento indigenista voluntário auxiliou na execução e no preenchimento dos formulários de prestação de contas e acompanhamento do processo até o seu final.

Já o segundo projeto foi realizado pela modalidade convênio, diretamente com o MDA. Isso complicou bastante a execução visto que a quantia foi liberada com atraso, sendo necessária a sua aplicação financeira e solicitações constantes de liberação dos recursos/parcelas. Além de uma série de formulários mais complexos a serem preenchidos. Foi quando começaram a implantar o sistema de pregão eletrônico e existiam dúvidas

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quanto ao real procedimento para as compras, sendo que, após alguns meses, disseram que poderia ser pelo antigo sistema ainda, pois ninguém estava preparado para assumir o novo procedimento.

O acompanhamento técnico pelo ministério foi realizado à distância, pois na época havia apenas um técnico para acompanhar todos os projetos da carteira. Isso deixou a própria Kápey sem um apoio institucional mais direto, algo que, em tese, pedagogicamente poderia garantir uma maior eficácia financeira/administrativa. Neste projeto dos problemas de gestão, apontamos dois problemáticos, o primeiro se refere a gastos fora do prazo de vigência do projeto e o segundo a não realização de atividades previstas, sendo inclusive devolvidos cerca de 20% dos recursos.

Algumas Considerações

Pelo fato das carteiras de fomento não permitirem que se paguem assessorias contábeis e acompanhamento financeiro, muitas vezes o indigenista que está assessorando o projeto se dispõe a fazer esse préstimo, para o qual nem sempre está preparado, não é remunerado e quase sempre dispõe de pouco tempo no futuro, quando poderá estar envolvido em outra atividade. Pode-se dizer que é um erro, mas para se captar recursos, raros e fundamentalmente necessários, acaba-se descuidando desses detalhes, mesmo em condições dificultosas para a sua administração. É uma faca de dois gumes captar recursos, auxiliar o processo de execução físico/financeira, trabalhar nos projetos e ainda auxiliar na prestação de contas. Mas faz parte do indigenismo a transdisciplinaridade e o altruísmo de não recuar diante de obstáculos aparentemente intransponíveis. Assim os assessores acabam por assumir tarefas sem o devido preparo.

A capacidade de execução de uma organização não pode ser medida pela sua experiência de ter realizado projetos anteriormente. Com a grande rotatividade de dirigentes, nem sempre quem administrou projetos no passado está disponível ou mesmo encarregado de administrar no

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presente. Aí encontramos dificuldades com o gerenciamento realizado por pessoas ainda pouco preparadas. A experiência acumulada não é relativa à organização mas sim aos indivíduos que as dirigem ou dirigiram.

Assim o Estado libera recursos mas não dá tratamento diferenciado aos Povos Indígenas. É importante entender melhor o que é diferenciado para que isto se efetive. Há uma necessidade de qualificação dos profissionais que atuam na temática, como também a constituição de quadros de carreira de servidores públicos com esta definição e prerrogativa funcional e profissional. Isso aumentou a necessidade de assistência, gerando mais clientelismo e paternalismo, quase sempre implícitos nas ações indigenistas do estado. Hoje várias carteiras operam com a temática indígena, mas não possuem equipe dimensionada para atender às demandas do próprio processo, não contemplando de maneira satisfatória o acompanhamento dos projetos – algo que deve ir além das rotinas de fiscalização.

Porém de uma forma geral, a importância dos projetos de segurança alimentar e nutricional, geração de renda e gestão ambiental, que contemplam a assistência técnica e extensão para o estabelecimento de melhores condições de sobrevivência, é crucial para a manutenção da qualidade de saúde e vida dos povos indígenas e sustentabilidade de suas comunidades. Porém há que se melhorar a compreensão do estado em viabilizar um tratamento mais qualificado no atendimento das demandas contemporâneas geradas no contexto do contato com nossa sociedade.

Referências Bibliográficas:

ARMSTRONG, Jeannette C. Educação Okanagan para uma vida sustentável: tão natural quanto aprender a andar ou falar. (IN) CAPRA, Fritjof. Alfabetização Ecológica:a educação das crianças para um mundo sustentável. São Paulo, Cultrix, 2006.

CADERNO de reflexão do professor indígena. Comissão Pró Índio - Acre e Organização dos Professores Indígenas do Acre. Rio Branco, CPI-Acre,

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2005,113 p.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996, 148 p.

MARGOLIN, Malcolm. Pedagogia Indígena: um olhar sobre as técnicas tradicionais de educação dos índios californianos. (IN) CAPRA, Fritjof. Alfabetização Ecológica:a educação das crianças para um mundo sustentável. São Paulo, Cultrix, 2006.

MARIÁTEGUI, José Carlos. O Homem e o Mito. Revista Amauta, Lima Perú,1926. Texto reproduzido por Lázaro Curvêlo Chaves. Excerto de “El Alma Matinal”, 2005. In: www.culturabrasil.pro.br/ohomemeomito.htm

MATURANA, Humberto R. e Varela, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo, Palas Athena, 2001.

SHIVA, V. Recursos Naturais. In: SACHS, W. (org.) Dicionário do Desenvolvimento: Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 300-316.

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É Possível Construir uma Ater Indígena Diferenciada? O Caso dos Guarani no Estado do Rio Grande do Sul

Mariana de Andrade Soares

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É Possível Construir uma Ater Indígena Diferenciada? O Caso dos Guarani no Estado do Rio Grande do Sul

Mariana de Andrade Soares1

Introdução

Desde 1999 a EMATER/RS vem atuando junto às comunidades indígenas, por meio da execução de programas e projetos que visam contribuir para o processo de construção de sua autonomia e, consequentemente, da melhoria das suas condições de vida. Entretanto, historicamente, a instituição desenvolvia suas ações junto aos agricultores familiares e, na maioria dos primeiros projetos nas comunidades indígenas, acabou reproduzindo o mesmo “olhar” e paradigma proposto a este público, como se as expectativas de vida fossem similares. Esse “olhar”, geralmente estava imbuído da lógica produtivista (a exemplo do histórico das políticas públicas brasileiras), visando o desenvolvimento econômico das comunidades indígenas, tendo como objetivos a produção para o seu autoconsumo e de um excedente para a comercialização.

Tendo em vista as dificuldades enfrentadas pela instituição no trabalho junto às comunidades indígenas, que reforçou a visão dos técnicos de que os índios eram preguiçosos e difíceis de trabalhar, e a insatisfação dos indígenas quanto à assistência técnica e aos projetos que não atendiam suas necessidades, ficaram evidenciados dois grandes desafios à extensão rural: o primeiro, de construir propostas de trabalho, junto com esse público e as instituições que o assistem, partindo do respeito às suas diferenças étnicas e, segundo, de capacitar permanentemente os seus técnicos para atuar de forma diferenciada.

Este artigo reflete sobre o processo de construção de uma Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) diferenciada junto às comunidades Guarani no Estado do Rio Grande do Sul, viabilizado através de recursos do Ministério

1 Antropóloga da EMATER/RS e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS-UFRGS).

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do Desenvolvimento Agrário (MDA), inseridos nos projetos de Ater da instituição, entre os anos de 2004 a 2007, atingindo aproximadamente 324 famílias e 1.751 pessoas.

O novo modelo de Ater foi construído de forma participativa, pautado pelo diálogo intercultural entre os extensionistas rurais, as famílias Guarani e as demais instituições governamentais e não governamentais que também as assistem, cujo princípio norteador foi definido pelos representantes Guarani, ou seja, o fortalecimento do seu sistema cultural (Mbya rekó). Para tanto, ficou ainda mais explícita a demarcação da fronteira étnica, da diferença dos Guarani em relação aos não índios (jurua), pois seu sistema/modo de ser expressa uma relação diferenciada entre eles (social), o natural (meio ambiente) e o sobrenatural, exigindo da instituição a construção de uma metodologia de Ater específica e reafirmando a necessidade de uma readequação do seu quadro profissional.

Neste sentido, tomando como ponto de partida a reflexão sobre o processo de construção de uma metodologia específica de Ater e sobre as ações desenvolvidas junto às comunidades Guarani, incluindo capacitações de técnicos e implantação de unidades didáticas em cada uma das comunidades beneficiadas, pretende-se analisar os limites e avanços desta experiência de Ater Indígena no estado, visando também por meio das suas lições e aprendizagens, fazer alguns apontamentos para a construção de perspectivas futuras, dentro do contexto atual de políticas públicas indigenistas no país.

A Inclusão dos Povos Indígenas na Extensão Rural do Rio Grande do Sul

O Rio Grande do Sul possui 25 milhões de hectares de terras, dessas cerca de 90 mil hectares dizem respeito a Terras Indígenas homologadas, ou seja, somente 0,37% das terras gaúchas foram reconhecidas pelo Estado brasileiro às comunidades indígenas.

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Apesar deste número reduzido de Terras Indígenas, no estado existem as duas etnias com a maior população no Brasil, que são os Guarani e os Kaingang, com sistemas culturais e processos históricos distintos, totalizando aproximadamente 24 mil indígenas e mais de 3.600 famílias.

Como todas as comunidades indígenas no Brasil, sofreram ao longo dos séculos XIX e XX com uma política indigenista2 inserida dentro de uma visão integracionista (do ponto de vista econômico) e assimilacionista (do ponto de vista cultural) visando, através do poder tutelar e de uma ação assistencialista, integrá-las à sociedade brasileira.

A partir da Constituição Federal de 1988, as comunidades indígenas conquistaram o reconhecimento da sua autodeterminação, assegurando formalmente seus direitos enquanto povos culturalmente diferenciados. Coube ao poder público (União, estados e municípios) a construção de políticas públicas específicas para essas comunidades.

No Rio Grande do Sul, por meio da sua Constituição de 1989, também ficou estabelecida a responsabilidade do poder público estadual em relação à construção de políticas públicas aos povos indígenas. A criação do Conselho Estadual do Índio (CEI) em 1993, reformulado em 1999, quando passou a ser denominado de Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI)3, foi uma importante conquista dos Guarani e Kaingang, garantindo a participação de seus representantes no processo de elaboração dessas políticas.

2 Entende-se por políticas indigenistas, medidas e práticas que são formuladas por poderes estatizados, direta ou indiretamente, incidentes sobre os povos indígenas (Lima, 1995).3 O CEPI é um órgão de caráter deliberativo, normativo, consultivo e fiscalizador das ações e políticas relacionadas aos povos indígenas no estado. Cabe ao CEPI, definir e propor diretrizes para a política indigenista estadual, com o objetivo de incentivar as comunidades indígenas, garantindo-lhes os direitos constitucionalmente assegurados. O conselho é formado por 18 representantes Kaingang, 18 representantes Guarani e 18 representantes das Secretarias de Estado, incluindo órgãos federais como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).

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O primeiro programa estadual que contemplou recursos para as comunidades indígenas foi o Programa RS Rural (1997-2004)4, ao lado dos também chamados “públicos especiais”: remanescentes dos quilombos, pescadores profissionais artesanais, pecuaristas familiares e assentados da reforma agrária. A partir de 19995, esses públicos foram considerados prioritários para a EMATER/RS6, instituição responsável por mais de 90% da execução do Programa. Os objetivos do RS Rural foram o combate à pobreza e à degradação ambiental no meio rural (Corezola et.al, 2004), cujos projetos foram estruturados de forma integrada, divididos em três ações prioritárias: manejo e conservação dos recursos naturais (ação obrigatória), geração de renda e infra estrutura social básica, incluindo também recursos para assistência técnica e formação do público beneficiário (RS Rural, 2001).

A EMATER/RS historicamente atuou junto aos agricultores familiares tendo, inclusive, um espaço de mediação reconhecido e legitimado no meio rural. Ao assumir o trabalho com as comunidades indígenas, os extensionistas rurais tiveram que executar o programa, inicialmente, sem qualificação profissional adequada.

O que se constatou, no primeiro momento, foi a reprodução do mesmo “olhar” e paradigma proposto aos agricultores familiares que foi estendido às comunidades indígenas, como se as expectativas de vida fossem similares. Além disso, esse “olhar” geralmente estava imbuído da lógica produtivista (a exemplo do histórico das políticas públicas brasileiras), visando o desenvolvimento econômico das comunidades indígenas, tendo como objetivos a produção para o seu autoconsumo e de um excedente para

4 Este Programa foi inicialmente denominado de Pró-Rural 2000 e constitui-se através de um contrato de empréstimo com o Banco Mundial (BIRD), cuja coordenação foi realizada pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA).5 Desde os anos 80, a extensão rural desenvolveu ações pontuais em algumas comunidades Kaingang, principalmente na região Norte do estado, bem como, o Programa Pró-Rural 2000 também beneficiou algumas comunidades entre os anos de 1997-1999.6 A Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER/RS) é o órgão oficial de Ater no Rio Grande do Sul, criado em 14 de março de 1977, que tem como missão institucional “promover ações de assistência técnica e social, de extensão rural, classificação e certificação, cooperando no desenvolvimento rural sustentável”.

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a comercialização. Por exemplo, na visão inicial dos técnicos, as famílias Guarani deveriam ter uma vaca para garantir o “leite das crianças”. Durante a elaboração do projeto, as famílias aceitavam tal aquisição, mas como muitos deles afirmaram posteriormente: “não sabiam o que tinha por trás da vaca”. Os Guarani, sem nenhum conhecimento sobre ordenhamento ou cuidados com o animal, pois não faz parte da sua cultura, ocasionaram a morte ou o seu próprio abatimento para alimentação das famílias. O fracasso dos projetos de um lado reforçou a visão dos técnicos de que os índios eram preguiçosos e difíceis de trabalhar, transferindo as responsabilidades para as famílias indígenas e, de outro, geraram a insatisfação dos indígenas quanto à assistência técnica e aos programas que não atendiam suas necessidades.

Neste contexto, tentando amenizar as dificuldades enfrentadas pelos extensionistas rurais no trabalho com as comunidades indígenas a instituição contratou profissionais especializados e realizou algumas capacitações em áreas específicas como Antropologia Social. Porém, tratando-se de um público culturalmente diferenciado, couberam à extensão rural dois grandes desafios: o primeiro, de construir propostas de trabalho junto com esse público e as instituições que o assistem, partindo do respeito às suas diferenças étnicas, e, segundo, de capacitar permanentemente os seus técnicos para atuar de forma diferenciada.

A Experiência da Ater Indígena: o Caso dos Guarani

No final de 2003, a EMATER/RS foi colocada diante da possibilidade de elaborar uma proposta de trabalho conjuntamente com os indígenas e as demais instituições que atuam junto a esse público. Com a inclusão de ações de “ATER Indígena” no seu convênio com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), buscou estabelecer uma relação dialógica com o CEPI para definição de quais comunidades seriam beneficiadas e quais as linhas gerais para a construção do projeto.

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Na ocasião do debate no conselho, foi priorizada a etnia Guarani7, considerada como a mais vulnerável socialmente. Esta situação se deve pelo fato de que, durante décadas, os Guarani estiveram à margem da atuação do indigenismo oficial que os consideravam “estrangeiros”, devido a sua concepção de territorialidade, e também difíceis de trabalhar pelo seu hermetismo (linguístico e cultural) e por sua mobilidade social8. Outros fatores determinantes na construção da vulnerabilidade social desses grupos são a ausência de demarcação de terras adequadas para sua reprodução física e cultural e de políticas públicas efetivas para a melhoria das suas condições de vida.

Após a negociação, a EMATER/RS elaborou uma proposta inicial do projeto ao ministério, visando à construção de uma Ater diferenciada junto às comunidades Guarani que, desde sua concepção, foi entendida como um processo contínuo estabelecido numa relação intercultural (extensionistas rurais, famílias indígenas e parceiros), cujas ações foram desenvolvidas entre os anos de 2004 e 2007, beneficiando aproximadamente 324 famílias e 1.751 pessoas9.

O princípio norteador da ATER foi definido num encontro estadual entre extensionistas rurais, representantes indígenas e entidades parceiras, realizado em março de 2004, na Reserva Indígena Tekoá Anhetenguá, cuja coordenação foi feita pelos próprios Guarani.

De acordo com as lideranças Guarani, a extensão rural, assim como todas as instituições, deveriam atuar no sentido do fortalecimento do seu

7 Os Guarani pertencem ao tronco linguístico Tupi-Guarani, da família Tupi, falantes da língua guarani e estão subdivididos em três parcialidades Mbya, Ñandeva, Kaiowa (Schaden, 1962). Especificamente, no Rio Grande do Sul, as famílias Guarani são Mbya (maioria) e Ñandeva.8 O território Guarani é justificado apoiando-se na sua memória que é reatualizada através dos seus mitos, numa ocupação que abrange Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil (Garlet, 1997). Nesse último, as famílias Guarani estão distribuídas pelos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Pará e Tocantins (Ladeira & Matta, 2004). Dentro deste território, se deslocam por inúmeros motivos: doenças, premunições, morte, matrimônio, busca religiosa pela Terra sem Males. Numa dada situação, todas famílias de uma mesma comunidade indígena podem se deslocar para outro lugar, ficando temporariamente a área sem ocupação, até virem outras famílias.9 Dados alcançados no convênio de 2007, ver anexo 5.1.

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sistema cultural (Mbya rekó). Essa concepção demarcou a fronteira étnica, ou seja, a diferença dos Guarani em relação aos não índios (jurua), pois seu sistema/modo de ser tradicional expressa uma relação diferenciada entre eles (social), o natural (meio ambiente) e o sobrenatural, exigindo da instituição a construção de uma metodologia de Ater específica e reafirmando a necessidade de uma readequação do seu quadro profissional.

A partir desta definição, os extensionistas rurais fizeram discussões em cada uma das comunidades Guarani e, através do diagnóstico da sua realidade realizado pelos próprios indígenas, foram sendo levantadas suas necessidades e demandas, e priorizadas as ações de Ater, que a cada ano eram (re)planejadas com base na sua avaliação anterior. Tal metodologia participativa e construtivista exigiu um processo de negociação e de convencimento do órgão financiador para que os aportes financeiros fossem repassados sem rubricas pré-estabelecidas que, no primeiro ano foram aceitas, mas nos convênios seguintes foram sendo cada vez mais burocratizados10.

A EMATER/RS adotou como ferramenta metodológica as unidades didáticas (UDs), uma vez que viabilizaram tanto o processo participativo no desenvolvimento das ações de Ater quanto permitiram seu acompanhamento metodológico, nas quais conjuntamente técnicos e indígenas “aprenderam fazendo”. Essa opção, por um lado, rompeu com outras técnicas bastante utilizadas pela extensão rural como as unidades demonstrativas e de observação, cujo processo é meramente de transferência de uma tecnologia (saber) pelo técnico ao público assistido, ou de pesquisa científica. Já, por outro lado, em termos pedagógicos, possibilitou por meio do custeio processos de aprendizagens que contribuíram na própria reprodução do sistema cultural Guarani, na medida em que viabilizou a transmissão

10 A partir do convênio de 2005, foram feitas exigências pelos órgãos de tomada e prestação de contas e em função de novos regramentos do Governo Federal com a implantação do SICONV. Neste sentido, no plano de trabalho era obrigatório constar a descrição das atividades e os itens a serem adquiridos, com suas quantidades respectivas, burocratizando qualquer eventual mudança no processo de tomada de decisão da comunidade indígena. Cabe destacar, que o ritmo e o tempo dos Guarani são diferentes da nossa lógica ocidental, onde fatores sóciocosmológicos podem ocasionar mudanças ao longo do processo pré-estabelecido no projeto.

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de saberes entre diferentes gerações dentro e entre as comunidades beneficiadas. Sendo assim, a lógica das UDs não teve um viés produtivista, visando exclusivamente a geração de renda das famílias envolvidas.

As UDs foram implantadas em três eixos principais: geração de renda, segurança alimentar e valorização cultural, mas também foram incluídas outras demandas das comunidades, por exemplo, educação ambiental e saneamento básico11.

O eixo de segurança alimentar foi priorizado em todas as comunidades Guarani, ao longo de todos os convênios, com ações prioritariamente voltadas para a viabilização do seu sistema tradicional de agricultura12. Entretanto, para implantação dessas unidades foi necessário justificar ao MDA a aquisição de alimentos, concomitantemente aos demais insumos (sementes, adubos orgânicos e pequenas ferramentas). Isto porque constatou-se que um dos motivos por que as famílias Guarani não faziam roças nas comunidades era pela necessidade de um suporte para poder interromper as atividades de artesanato ou venda da mão de obra como diarista, deixando de obter uma entrada de recursos, indispensável para sua sobrevivência. Além disso, muitas famílias que cresceram à beira de estradas não desenvolveram vínculos com a agricultura, sendo necessário motivá-las para se envolverem com os roçados. Neste sentido, a EMATER/RS acabou adquirindo “ranchos” durante o período da implantação das UDs, cuja composição e o preparo dos alimentos foram feitos pelas próprias comunidades. Cabe destacar que uma das críticas feitas por lideranças indígenas refere-se à distribuição “pura e simplesmente” de cestas básicas pelo poder público e a sociedade civil. Para eles, as ações de segurança

11 Ver anexo 5.2.12 Os Guarani cultivam suas roças familiares em regime de mutirão com a participação de homens, mulheres, crianças e idosos. O preparo das roças é feito manualmente sendo utilizada a roçada, a capina e a coivara. Em algumas comunidades indígenas foi solicitada a contratação de horas-máquina para o preparo de solo em áreas acima de um hectare. É prática bastante comum o cultivo múltiplo, visando o melhor aproveitamento dos espaços e a conservação da agrobiodiversidade, abrangendo as seguintes culturas: milho (avati), feijão (kumanda), mandioca (mandió), batata-doce (jety), amendoim (mandoví), melancia (xandiaú), abóbora (andai). Para ver estudo sobre o sistema de agricultura Guarani, ver Ikuta, 2002; Felipim, 2004 e Medeiros, 2006.

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alimentar não podem ser pensadas somente em curto prazo (cestas básicas, auxílios-família etc.), mas em médio e longo prazo juntamente com ações estruturantes nas próprias comunidades indígenas13.

No que toca à capacitação dos técnicos, esta foi entendida como um processo permanente, dentro da instituição, visando uma atuação qualificada e diferenciada com este público. Isso foi sendo construído através de encontros periódicos como espaço de discussão, troca de experiências e avaliação do trabalho de Ater Indígena. Essa qualificação foi pensada por duas vias: uma teórica, com aprofundamento de conhecimentos antropológicos; e outro prático, através do cotidiano dos técnicos nas aldeias, participando de rituais, ouvindo as falas de lideranças religiosas e aprendendo acima de tudo referenciais simbólicos e culturais por meio dos próprios Guarani, e da realização de encontros estaduais entre extensionistas rurais, representantes Guarani e parceiros na aldeia.

Um aspecto bastante trabalhado foi a postura do extensionista rural para atuar junto às comunidades Guarani. No sistema cultural Mbya, todos os aspectos do seu cotidiano são “ritualizados” e a própria presença de pessoas de fora da comunidade, na aldeia, exige também o cumprimento de um “ritual”. Porém, o despreparo dos técnicos ocasionava desentendimentos estruturais e fundamentais na relação dialógica feita na “fronteira” entre sistemas culturais distintos.

A atuação nas comunidades também exige a relativização da lógica temporal do relógio, já que na maioria das vezes, os técnicos agiam sob a orientação de suas demandas, dificuldades de deslocamento, distância e prazos exíguos para o cumprimento de suas tarefas, cujas decisões tinham de ser tomadas em uma forma, ritmo e tempo diferentes das famílias Guarani.

Outra prática frequente dos técnicos era a de buscar dentro das aldeias o diálogo restrito com o cacique, entendido como o representante

13 Ressalva-se aqui a situação das famílias que moram à beira de estradas, sem terras adequadas que possibilitem o acesso aos seus próprios alimentos produzidos pelas e nas comunidades.

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legítimo e responsável pela decisão dos projetos na comunidade. Para tanto, foi trabalhado para que os extensionistas rurais tivessem uma visão sobre a organização social de cada comunidade, o papel desempenhado por cada indígena e como eles são atribuídos do ponto de vista cultural.

Na aldeia, os técnicos são sempre recepcionados por algum Guarani, geralmente o “soldado” (xondaro), que tem o papel de guardar e zelar pela ordem dentro das comunidades. Depois, tem o tempo da espera, quando os técnicos acomodam-se no local indicado e é servido o chimarrão. Ao mesmo tempo, o xondaro ou outro Guarani faz a negociação com as famílias que moram na aldeia para participarem da conversa com os não índios, sendo que cada uma delas tem liberdade na sua tomada de decisão. Isto é necessário porque dentro de uma mesma comunidade existem um ou mais kuéry (coletivos), forma esta da sua organização social.

Com a chegada das famílias para a reunião, os homens da aldeia sentam-se em círculo com os técnicos já que possuem o papel de dialogar com os não índios, e as mulheres ficam mais afastadas cuidando das crianças e/ou confeccionando artesanato. Porém, isto não significa que as mulheres estejam excluídas do processo de decisão de qualquer projeto da comunidade.

A partir da fala dos mais velhos, geralmente a liderança religiosa (karai ou kuña-karai), do cacique e de outros membros da comunidade, os técnicos são solicitados a explicar os motivos que os levaram à aldeia.

Após o entendimento da proposta do projeto pelos indígenas, é preciso um tempo para a tomada de decisão da comunidade, quando os técnicos devem retornar em outra ocasião, agendada pelos indígenas. Durante esse tempo, as famílias conversam entre si, e as mulheres têm o papel fundamental nas definições das necessidades e demandas. Na próxima reunião entre técnicos e a comunidade indígena são firmadas as prioridades e assumidas as responsabilidades na construção do seu projeto futuro.

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Outro ponto fundamental nos convênios foi o seu processo de avaliação, realizado em dois momentos: de forma individual, em cada uma das comunidades beneficiadas por meio de uma reunião com as famílias Guarani; e de forma coletiva, durante os encontros estaduais. Como exemplo, traz-se a fala de um dos representantes Guarani que expressa a mudança na sua visão do papel da extensão rural junto às comunidades indígenas:

“No início a EMATER/RS queria ensinar a plantar, trouxeram calcário.

Pra nós não serve. Minha mãe plantou, pediu pra Deus e a planta

cresceu. A terra era fraca, tinha eucalipto antes, não tinha saúde.

Agora tem opy, lavoura, o técnico entendeu a necessidade, levou

no coração. Não pode sair da reunião e esquecer nossa necessidade.

Tem que vir recurso permanente. Nosso sistema tem que a cada ano

renovar” (Reserva Tekoá Anhetenguá, março de 2005).

O que se destaca também são a preocupação quanto à continuidade das ações de Ater nas comunidades indígenas e os desafios ainda colocados na construção de um trabalho diferenciado.

Os Desafios na Construção de uma Ater Indígena Diferenciada

A Constituição Federal de 1988 indicou novos parâmetros na relação do Estado e da sociedade brasileira com os povos indígenas (Araújo & Leitão, 2002c; Souza, 2004). O que se constata por um lado é que representantes e lideranças indígenas têm reivindicado a efetiva garantia dos seus direitos constitucionais e, por outro lado, que o poder público tem dado algumas respostas a essa luta política, com a formulação de políticas públicas.

Neste novo contexto político-social, passa-se a reconhecer que as comunidades indígenas são capazes de assumir um projeto de vida conforme sua especificidade cultural, como também se supõe que a ação indigenista deve ser exercida dentro de padrões éticos (Lima & Barroso-Hoffmann, 2002a), visando estabelecer uma “comunidade de comunicação de natureza

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interétnica” (Oliveira, 2000). Este foi justamente um dos grandes desafios da Ater, ou seja: como construir uma Ater diferenciada na relação com os povos indígenas.

É necessária a constituição de um espaço intercultural que garanta o estabelecimento desta comunidade de comunicação e argumentação (Oliveira, 2000) entre comunidades indígenas, extensionistas rurais e parceiros, desde a formulação das regras, elaboração, execução e avaliação de projetos. Neste espaço se dará o processo dialógico ou a “fusão de horizontes”, isto é, a negociação de pontos de vistas culturais distintos (indígenas e não indígenas), em vez de um confronto étnico, característico dos projetos desenvolvimentistas que historicamente foram e são pensados pelos mediadores sociais em relação às comunidades indígenas.

Aqui se pode destacar um dos maiores limites dos programas e projetos para as comunidades indígenas, que é a própria burocratização das instituições, que exige no momento da sua elaboração o planejamento a priori do que será feito, como, quando, porque, quem e quanto. Na medida em que o planejamento deverá ser seguido à risca e a margem para alterações futuras, conforme a demanda das famílias Guarani, é bastante restrita, isso acaba comprometendo o processo de negociação em si e acaba incidindo diretamente na própria execução do projeto. Por exemplo, situações em que ocorre o descompasso entre a liberação dos recursos e o período adequado para execução de uma determinada atividade.

Neste sentido, dependendo das regras e da postura metodológica adotada pela instituição, o “diálogo intercultural” e o “discurso participativo” podem se dar no âmbito de relações assimétricas, podendo ser comprometidos pelo discurso dos mediadores indigenistas (Oliveira, 2000), que utilizando de um conjunto de mecanismos, estratégias e compulsões sobre os indígenas e suas coletividades, acabam por suprimir suas vontades (individuais e coletivas), exercendo aquilo que se denomina de Poder (Oliveira, 1998).

Ora, se é reconhecido constitucionalmente aos índios sua

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organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, o grande desafio da atual política indigenista, e das políticas públicas diferenciadas, está em construir estratégias e mecanismos de controle capazes de contemplar esta diferença cultural; em respeitar o ritmo e o tempo dos processos que, na grande maioria, são iniciados e interrompidos por falta de entendimentos, recursos e/ou interesses políticos.

Outro aspecto para ser refletido é a constatação de que, de um extremo ao outro, tem havido uma passagem do modelo tutelar de gestão para um modelo que prega a “autonomia” (Lima & Barroso-Hoffmann, 2002c), mas que exige, ao mesmo tempo, que os indígenas dominem códigos da nossa sociedade ocidental moderna (Dumont, 1993). Um exemplo é a lista de presença que serve como comprovante das atividades realizadas no projeto, que exige a assinatura e/ou identificação digital do indígena e que ele disponha de um documento legal. Já outro é o incentivo à organização formal das comunidades indígenas em associações, como forma de acessarem recursos para elaboração de seus próprios projetos. No caso específico dos Guarani no Rio Grande do Sul, nos espaços de diálogo interétnico, algumas lideranças defendem a manutenção do Mbya rekó e, consequentemente, da sua própria forma político-social, e outras são favoráveis à inserção das comunidades na lógica dos não índios e, que inclusive já formaram suas associações. Neste cenário é preciso levar em consideração a diversidade de situações que serão encontradas em nível nacional, bem como a necessidade de estar atento ao fato de que a construção da autonomia dos povos indígenas requer apoio e fortalecimento da decisão tomada por cada uma delas, quando serão necessárias mudanças e adaptações dentro do nosso próprio sistema de gestão e governabilidade.

Um último aspecto, e não menos importante, é a formulação de uma política indigenista nacional, que seja capaz de dar respostas positivas à pauta de reivindicações das comunidades indígenas, ou seja, a demarcação de Terras Indígenas e recursos financeiros permanentes para estruturação das áreas indígenas (infraestrutura, recursos naturais), e que não esteja

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atrelada a vontades político-partidárias e/ou mudanças de governo.

Para tanto, as instituições de Ater devem assumir as comunidades indígenas como um público prioritário de fato, e não só no discurso, conforme determina a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER). Devem buscar um espaço de diálogo intercultural com formas organizativas próprias dos povos indígenas, bem como com as demais entidades que atuam no campo indigenista, no sentido de planejar ações conjuntas e convergentes, capazes de dar respostas às demandas e necessidades das famílias indígenas, contribuindo no processo de construção da sua autonomia e autodeterminação.

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Anexos

1. Público beneficiário nos convênios entre a EMATER/RS e o MDA

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2. Unidades didáticas implantadas entre 2004 a 2007 nas comunida-des Guarani no Rio Grande do Sul

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Fortalecimento dos Laços de Coesão Social como Efeito da Produção do ALimento na Aldeia Indígena Guarani Yynn Moroti

WheráWagner Fernandes de Aquino

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Fortalecimento dos Laços de Coesão Social como Efeito da Produção do ALimento na Aldeia Indígena Guarani Yynn

Moroti WheráWagner Fernandes de Aquino1

Introdução

Pela educação se faz a transmissão e a troca de conhecimentos, despertando a percepção do contexto geral e específico no qual se está inserido. Em comunidades indígenas, a educação é passada de geração em geração pela tradição oral, ela envolve toda uma visão de vida, que está baseada em princípios naturais e universais que são aplicados no propósito de buscar constantemente o desenvolvimento de todas as potencialidades do ser humano e sua consequente realização como indivíduo e comunidade.

Dentro desta visão, a educação em comunidades indígenas Guarani acontece também na forma de assistência técnica com práticas agrícolas e ações que buscam um desenvolvimento rural sustentável.

Segundo Medeiros & Darella (2006), os Guarani compõem a lista dos povos indígenas do Brasil contemporâneo de maior população: são 35.000 pessoas em levantamento de 1998. Distribuídos em aldeias intermitentes, no espaço geográfico que compreende partes do Paraguai, Argentina, Uruguai, sul e sudeste do Brasil, totalizam cerca de 65.000 pessoas vivendo em aproximadamente 340 locais.

Os Guarani possuem a forma agroextrativista de obtenção de alimentos e vivem hoje num contexto fundiário problemático. Viabilizam a produção de suas vidas em pequenas áreas de forma fixa, o que exige que estes povos se adaptem e transformem seu modo de se relacionar com o ecossistema.

O presente trabalho apresenta uma experiência vivida no auxílio à

1 Eng. Agrônomo, Pós-Graduado em Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente trabalha vinculado a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

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produção de alimentos na Aldeia Guarani Yynn Moroti Wherá, no município de Biguaçu/SC, onde residem 130 índios Guarani, e aponta alguns dos efeitos desta produção local na vida da comunidade. A pesquisa foi realizada por meio da observação direta no campo com entrevistas com os mais velhos, jovens e lideranças político-religiosas da comunidade, utilizando gravador de mão, filmadoras e caderno de anotações, bem como revisão bibliográfica. Entre outros efeitos observou-se o fortalecimento da coesão social.

Entre as principais dificuldades ambientais enfrentadas por esta pequena comunidade estão o reduzido espaço de terra e as condições pouco favoráveis do solo. Na esfera social os maiores obstáculos são o assistencialismo, a falta de políticas públicas com valorização da história da comunidade para a cidade, a proximidade de centro urbano e a necessidade de trabalhos fora da aldeia (trabalhos temporários ou fixos), que desagregam a comunidade e geram consequências negativas como a valorização de costumes e mercadorias da sociedade hegemônica não indígena (álcool, alimentação, etc.) e afetam o reko ete (“jeito de ser verdadeiro”).

Este trabalho começa por uma caracterização da Aldeia Yynn Moroti Wherá, o relato da experiência vivida junto à comunidade durante quatro anos em ações de apoio à produção de alimentos, e por último a discussão dos efeitos desta produção na vida da comunidade neste período de atuação, onde foram buscadas soluções para a problemática com consequente envolvimento comunitário (principalmente dos jovens).

O relato será seguido por uma avaliação das ações a partir do depoimento de membros da comunidade, especialmente o pajé Alcindo Moreira, que liderou o trabalho de revitalização da agricultura e da produção de alimentos. Nesse segmento, será feita uma análise dos aspectos da vida da comunidade mostrando como foram afetados pela produção de alimentos, especialmente quanto à organização social do grupo e os efeitos sobres os laços de coesão social.

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Nesse processo foi possível perceber o quanto o trabalho de produção de alimentos contribuiu como mecanismo para o fortalecimento dos laços de coesão social.

Também se percebeu que a prática da religiosidade desenvolvida dentro da comunidade, com o resgate da tradição espiritual, é essencial para a produção do alimento e principalmente para o fortalecimento dos laços de coesão, pois o alimento que sustenta o corpo também sustenta a alma Guarani, através dos ritos que transmitiam sua cultura em sua essência verdadeira.

Os Guarani Yynn Moroti Wherá

a) Aspecto histórico, caracterização ambiental, e demografia

A aldeia Yynn Moroti Wherá se originou em 1987 a partir de duas famílias que vieram de Morro dos Cavalos. A primeira, de Milton Moreira, Rosali Moreira e filhos. Ele, filho da família extensa de habitantes de Morro dos Cavalos (Bott, 1975, apud Bertho, 2005). E a segunda, de Alcindo Moreira, Rosa Poty Pereira e filhos. Ele, primo do pai de Milton e seu sogro, sendo que a família de Alcindo já havia morado em Morro dos Cavalos, retornado a Chapecó, depois em Sangãozinho e novamente voltado (Mello, 2001, p.73-140, apud Bertho, 2005).

Após 17 anos de ocupação, reivindicando as terras como terra tradicional Guarani, a aldeia foi delimitada em 58 hectares e homologada pelo Ministério da Justiça, em 12 de outubro de 2004.

A Aldeia Guarani Yynn Moroti Wherá está situada na abrangência da Serra do Mar da Baía de São Miguel, região de domínio do Bioma Mata Atlântica, no Km 190 da rodovia BR 101, no município de Biguaçu/SC.

A quase totalidade dos espaços da Aldeia está sobre áreas de preservação permanente (APP), conforme a legislação ambiental vigente; em grande parte esse espaço se encontra preservado, possuindo em alguns

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pontos roças tradicionais Guarani; também há mananciais de água que abastecem tanto a Terra Indígena quanto parte da comunidade do entorno.

A topografia da área é acidentada na maior parte, alcançando altitudes de 400 metros nas cotas superiores, de 30 a 400 metros nas cotas de encosta e de 0 a 30 metros nas cotas de baixada.

Existem atualmente na comunidade 36 casas, um posto de saúde, uma casa de artesanato, uma casa de reza (Opy) que recebe indígenas de diversas regiões e uma escola indígena, que atende a aldeia com o Ensino Fundamental, do 1ª ao 9ª ano e o Ensino Médio, com professores indígenas e não indígenas.

Sendo dividida pela rodovia, a terra da Aldeia tem aproximadamente 6 hectares à direita da BR 101, no sentido norte, e o restante (52 hectares) no lado esquerdo, onde atualmente residem 30 famílias.

Foto 01: Imagem aérea mostrando instalações. Autor: Henrique Azevedo.

ESCOLA CASA DE ARTESANATOCASA DE REZA CASA DE NUTRIÇÃOAÇUDE POSTO DE SAÚDELAVOURA COMUNITÁRIA BR 101

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b) Renda, atividade econômica

Atualmente na economia familiar da comunidade Guarani de Biguaçu existem diversas atividades em que ressalta principalmente: 1) a agricultura de subsistência com o cultivo de sementes tradicionais e não tradicionais e a venda de excedentes de produção advindas principalmente do plantio das sementes externas; 2) a criação de animais (aves e peixes em especial); 3) a coleta extrativista em pequena quantidade para fins diversos (habitação, artesanato, medicina, artefatos, comercialização); 4) produção e venda de artesanato (balaios, bichos esculpidos em madeira, colares, arcos e flechas, esteiras, cerâmicas e outros); 5) prestação de serviços temporários fora da comunidade como carpinteiro, servente de pedreiro entre outros; 6) prestação de serviços dentro da comunidade como professores indígenas, cozinheiras, agente indígena de saúde e agente indígena de saneamento; 7) doações de cesta básica, roupas e calçados e 8) a renda advinda de aposentadoria.

O artesanato indígena Guarani é confeccionado na aldeia por artesões da comunidade e os produtos são comercializados principalmente na Casa de Artesanato localizada rente à rodovia BR-101.

c) Aspectos religiosos e importância para agricultura na aldeia

Os Guarani da aldeia Yynn Moroti Wherá vivem um intenso momento de resgate e revitalização da tradição religiosa e espiritual, com as cerimônias que contam com grande participação interna dos moradores e de outras Aldeias. A comunidade busca os conselhos e cura do pajé Alcindo Moreiro e sua mulher, Rosa.

A figura de Alcindo é também a de um grande conhecedor da agricultura, isto porque sua história de vida inclui a passagem por ecossistemas diversos.

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A produção de alimentos dentro da comunidade é praticada em pequena monta em roças próximas às casas e em uma área de lavoura comunitária com cerca de três hectares. A terra é reservada exclusivamente para o cultivo de alimentos como milhos de diversas variedades (avaty eté), feijão (Kumandá), aipim (mandió), batata doce (djetý), batatinha (djetý í), amendoin (manduvi), arroz, cana-de-açúcar, taiá, entre outros, considerados indispensáveis à subsistência da comunidade.

Relato de Atuação Junto à Comunidade

Minha atuação junto à comunidade Yynn Moroti Wherá iniciou no ano de 2004 com o Projeto Alimento e Dignidade, desenvolvido a partir da solicitação das lideranças da Aldeia à Associação dos Rondonistas de Santa Catarina – Projeto Rondon/SC, atual Associação Rondon Brasil2.

Neste trabalho se buscou a produção de alimentos de maneira a potencializar os cultivos existentes na comunidade, com enfoque nas

2 Organização da Sociedade Civil de Interesse Público - OSCIP que presta Assistência de Saúde em convênio com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) às Aldeias Indígenas dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Tocantins.

Foto 02. Dn. Rosa e Sr. Alicindo. Autoria: Wagner Aquino

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culturas tradicionais e outras de interesse, para a redução do quadro de insegurança alimentar que os agentes de saúde3 apontavam dentro da aldeia.

Outra expectativa do trabalho era o envolvimento dos jovens com a agricultura observando o saber acadêmico e o tradicional dentro da proposta pedagógica do “aprender a fazer fazendo” que consistia no modo de fazer onde todos os participantes eram ao mesmo tempo educandos e educadores (Freire, 1982, 1997).

De forma geral os trabalhos eram feitos na forma de mutirões aos sábados, com a participação expressiva de grande parte da comunidade, quando da convocação e pré-sensibilização por parte do Cacique Hyral. Os trabalhos nos sábados se justificam pelo fato de um grupo de pessoas da comunidade que trabalhavam fora durante a semana poderem ajudar nas atividades.

A formação de atitudes mobilizadoras acontecia durante a semana estimulada pelo líder espiritual Alcindo Werá Tupã Moreira e sua parceira Rosa Poty Djerá que, no alto de suas idades, faziam todo o esforço na roça para repassarem aos jovens e crianças da comunidade seus conhecimentos.

Em entrevista, seu Alcindo fala sobre a importância da participação dos jovens nas atividades de plantio e diz o seguinte:

“Na lavoura todos precisam saber como é que se planta, como é

que se colhe. Quando a planta está crescendo uma criança tem que

adorar; não machucar. Hoje, ninguém está sabendo mais de nada,

nada, nada... Tem horas que penso em cada aldeia com neto, bisneto,

tem que ensinar!... Nós antigamente vivíamos num sofrimento, era

saudável viu... Agora estamos todos no meio dos djuruá (homem

branco) o djuruá ta tratando nós... Não nos lembramos mais nada de

plantar, nativa que é pra vir...Não nos lembramos de mais nada. Tem

3 A equipe de agentes de Saúde é composta por Médico, Dentista, enfermeiros, técnicos em enfermagem, motorista e outros.

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horas que eu sinto, sinto, sinto muito...Cada um, cada aldeia tem

neto, filho, tão crescendo, tão com o pai, avô tem que dizer... Ô neto,

vem cá, vamos lá na rocinha, é assim que se planta é assim que se

colhe... Mas não! Agora tão crescendo, os netos não acompanham e

os mais velhos não gostam... Porque ele não ensinou primeiro?

Hoje os brancos falam aquela aldeia é assim... Mas o pequeno não

tem culpa! Aqui é diferente! Ontem de noite falei pra todo mundo,

“olha meus filhos, olha meus netos, cada um de vocês tem filhinhos,

esse ano graças à nhanderú (Deus), vai sobrar bastante, dá pra gozar

dois anos com o alimento plantado. Chega de comprar do djuruá,

vamos mostrar como se faz o fumo... Não é só o Djuruá que faz, só

que temos que ter amor... Se não tem amor parece que não dá certo,

parece sacrifício pra fazer... Uma coisa fácil...”

A fala de Alcindo propõe “atitude” para que o povo Guarani não desista do plantio mesmo diante do contexto de limitações vivido pelas comunidades. Na entrevista acima e em outras, ele era incansável em dizer que os mais velhos devem se empenhar em passar o conhecimento e lida da lavoura às novas gerações e que é importante aproveitar os recursos existentes para a garantia do alimento e da transmissão da cultura do plantar.

Foto 03: Alcindo Werá Tupã Moreira exibe variedades de milho Guarani com o jovem

Ronaldo. Autor: Wagner Aquino.

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Em sua fala percebem-se quatro eixos: território, alimento, saúde e, num sentido amplo, autonomia, que estruturalmente conectam a perspectiva da terra, corpo e espiritualidade. Deste modo, o plantio do fumo, no dizer de Alcindo, representa um exemplo de atitude que promove o fortalecimento desta transmissão de saberes, e sua importância está também numa maior independência da comunidade, visto o fumo ter relação direta com as cerimônias existentes na aldeia.

Minha função como agente de desenvolvimento local neste período foi a de um fomentador e pesquisador das técnicas que eram construídas em conjunto com a comunidade. Na interação de conhecimentos tradicionais e acadêmicos foram sendo desenvolvidas e praticadas técnicas de conservação de solo com cordões verdes, curvas de nível, terraços, adubações verdes, adubações orgânicas e convencionais e os consórcios e rotações culturais com o uso de variedades tradicionais.

Como ferramentas dos trabalhos eram utilizadas enxadas, estacas, barbante, carrinho de mão, caixas de leite vazias e o “pé de galinha”4, aparelho de nível que auxiliava na marcação de curvas de nível para o plantio das plantas de lavoura, dos cordões verdes de cana e na construção dos terraços para o plantio das hortaliças.

4 Ferramenta de Nível a qual os guarani denominaram de “uru py”, e que consta de três sarrafos, um fio de prumo e um nível de pedreiro.

Fotos 04 e 05. Cordões verdes com cana e terraços construídos pela comunidade. Autoria: Wagner Aquino.

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Durante estes trabalhos foram encaminhados ofícios, relatórios fotográficos, projetos e realizadas visitas agendadas a diversas instituições em busca de parcerias próximas que pudessem auxiliar diretamente na produção de alimentos sendo encaminhados. Entre as parcerias feitas naquele momento destacou-se a das Centrais de Abastecimento de Santa Catarina (Ceasa), que forneceu “composto” para os terraços com hortaliças; a prefeitura municipal de Biguaçu, que esporadicamente disponibilizava trator, caçamba e maquinários; a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc), com as análises de solo; a Fundação Nacional do Índio (Funai/Palhoça), que esporadicamente fornecia insumos e equipamentos; e as Estações Experimentais da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural do Estado de Santa Catarina (Epagri), doando mudas frutíferas, sementes, e equipamentos.

No final do ano de 2004, conseguimos a aprovação de um projeto no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) sendo este recurso vindo de uma ação conjunta do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome e do Ministério do Meio Ambiente5, e que utilizou a linha de financiamento da Carteira Indígena de Projetos Fome Zero.

Através deste projeto foi possível realizar as ações de: (i) reforma de uma parte da Casa de Artesanato (pintura, conserto da escada, troca de vidraças quebradas, ajardinamento do entorno da casa e implantação de sistema de segurança eletrônico); (ii) revitalização e conserto do açude da comunidade (aquisição de alevinos de tilápia e carpas diversas, concretagem da base do “monge” e dos canos que passam pelo talude); (iii) oficinas sobre: plantas medicinais (ministradas pelos mais idosos da comunidade), agroecologia, conservação de solos e da água; 4) compra de insumos para a realização dos plantios de feijão, milho, aipim e cana de açúcar.

Na safra de 2004/2005, foram registradas produções junto à área

5 No MDS através Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e no MMA através da Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável.

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da lavoura comunitária de 5000 quilogramas de milho tradicional e não tradicional; 1800 quilogramas de batata-inglesa; 780 quilogramas de feijão; 600 quilogramas de arroz de sequeiro; e as produções de amendoim, cana-de-açúcar, banana e hortaliças diversas como batata-doce, moranga, repolho, alho, entre outras.

Como síntese deste projeto pode-se observar uma potencialização nos cultivos tradicionais e não tradicionais, obtendo-se boa quantidade de alimentos. No entanto, o envolvimento voluntário dos moradores e principalmente dos jovens (objetivos centrais do projeto) acontecia timidamente, ficando em muitas circunstâncias o líder Espiritual Alcindo e sua companheira Rosa trabalhando sozinhos na roça.

Em maio de 2005, as comunidades Guarani de Tekoá Marangatu /Imaruí6 e Yynn Moroti Wherá/ Biguaçu me selecionaram para atuar como engenheiro agrônomo nas comunidades através do Projeto Prapem/ Microbacias 27, ficando vinculado à Cooperativa de Trabalho Uneagro, a qual prestava serviço as Associações de Moradores sob a coordenação geral da Epagri.

Com metodologias específicas, baseadas no construtivismo, foram elaborados os Planos de Desenvolvimento da Aldeia, sendo destacadas as áreas social, econômico e ambiental dentro de um conjunto de ações que o Programa Prapem / Microbacias 2 podia contribuir dentro da comunidade.

Como ações desenvolvidas neste período de 2005 a início de 2008 pode-se destacar: os sistemas de saneamento; a construção de uma câmara de armazenamento de alimentos; a aquisição de insumos e ferramentas para apoio à produção de alimentos na área da roça comunitária; o auxílio à revitalização da Casa de Artesanato; a aquisição de máquinas e equipamentos de costuras e de beneficiamento do Artesanato para o grupo de mulheres (Cunhangué Nhemboaty); as capacitações, oficinas de troca de saberes; a construção da casa de auxílio a Opy (casa de reza), as atividades

6 Município localizado do Litoral – Sul do Estado de Santa Catarina.7 Programa de Recuperação Ambiental e de Apoio ao Pequeno Produtor Rural.

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culturais como teatros, edição de filmes, trilhas etnoecológicas, pinturas nas paredes e muros da escola com o painel da cidadania; e a busca de articulação com outras instituições.

A partir dessas articulações junto a outras instituições, destacaram-se feitos como: (i) a melhoria da estrada de acesso interno da aldeia que vai até a escola indígena através de contato com o Departamento Nacional de DNIT e Ministério Público, (ii) condução de projetos em Sistemas Agroflorestais por meio da Associação Rondon Brasil, com recursos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)8; (iii) projeto de cerâmica pelo Projeto Estação Arte e (iv) auxílio ao estudo de Complementação dos Impactos Sócio Ambientais do “Reforço Energético à Ilha de Santa Catarina e Litoral Catarinense/ELETROSUL” sobre a Comunidade9.

Nas safras de 2005/2006, 2006/2007 e 2007/2008, na lavoura comunitária, foram registradas produções médias anuais de 660 quilogramas de feijão; 600 quilogramas de arroz de sequeiro, aproximadamente 18 metros cúbicos de espigas de milho tradicional e não tradicional (armazenadas na câmara de armazenamento), proteína animal advindas do açude e de criações de galinhas e as produções diversas de amendoim, cana-de-açúcar, banana e hortaliças como batata-doce, moranga, repolho, alho, entre outras, com destaque para a colheita de 4800 quilogramas de batata na safra 2006/2007.

Como primeira ação junto ao Projeto Microbacias 2 as lideranças da aldeia priorizaram a construção de moradias, visto as condições precárias em que as famílias ainda viviam, mesmo após a construção de residências com recursos da duplicação da BR-101 trecho norte10. No entanto, o Microbacias possuía em sua linha de apoio o valor de R$ 1.100,00 (um mil e cem reais) por família para a “reforma de casas”, sendo insuficientes para a construção de casas para todos os que precisavam.

8 Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e etnia - PPIGRE9 A ELETROSUL Centrais Elétricas S.A. é empresa estatal subsidiária da ELETROBRÁS, concessionária de serviços públicos de energia elétrica que atua nos três Estados da Região Sul e no Mato Grosso do Sul.10 Ação do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transporte (DNIT) Trecho Norte

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De acordo com estas observações as lideranças optaram por investir no primeiro ano do projeto em 12 sistemas de saneamento para as casas existentes, sendo estes sistemas construídos com mão de obra da comunidade e em parceria com a prefeitura que cedeu máquina retro-escavadeira.

Esta atividade de saneamento se mostrou complicada devido à declividade das áreas onde as casas se encontravam; no entanto, a participação com pré-sensibilização da comunidade determinou o envolvimento de grande parte dos moradores nos dias de mutirão e assim foram instalados sistemas com tanque séptico, filtro anaeróbico e valas de infiltração e círculos de bananeira.

Neste período observava que as instituições que trabalhavam diretamente com a comunidade tinham uma parceria legalizada no papel, mas faltavam mais momentos destas com as outras instituições e juntamente com a comunidade para elaboração e construção de propostas com a aldeia. Com este jeito de tratar o desenvolvimento local, as instituições trabalhavam suas ações ainda agindo de forma muito cautelosa, segmentada e cada uma cuidando da sua função.

Na aldeia, um pouco diferente do que acontecia fora, os agentes

Foto 06 e 07: Casas existentes na aldeia e as moradoras: Santa e Sônia com seu filho ao colo. Autoria: Andréa Eichenberger.

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locais comunitários11 buscavam se reunir para solucionar problemas comuns. Como exemplo desta atitude foram os eventos que tratavam de temas relacionados à educação, saúde e meio ambiente, construídos pelos agentes locais comunitários conforme descrito em anexo.

As atividades neste período eram mais abrangentes e, como consequência, eu chegava mais próximo da lida e do dia a dia da aldeia, passando dos limites das ações da lavoura para outras como saneamento, artesanato, escola e a participação, com o convite das lideranças, nas cerimônias dentro da casa de reza da comunidade (Opy).

Nestas cerimônias, pude visualizar e sentir a importância da casa de reza e da presença do líder espiritual para a vida da aldeia. Lá, Alcindo é o avô conselheiro (tcharamõe opyguá) que transforma a casa de reza na primeira escola, no local sagrado onde se vive a “base do modo de ser Guarani”. A casa de reza é onde se fortalecem as inter-relações, o equilíbrio corpo/mente e se mantém a harmonia espiritual e social da aldeia, fator primordial na execução de projetos comunitários, quando da participação e mobilização da comunidade.

A partir deste período entendi que mesmo com uma produção

11 Entenda-se como agentes locais comunitários os agentes de saúde e saneamento indígenas e não indígenas, professores indígenas e não indígenas, facilitador do Projeto Microbacias 2 e lideranças comunitárias.

Fotos 07 e 08. Sistemas de saneamento e Educação Ambiental. Autoria: Wagner Aquino.

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insuficiente para atender às necessidades alimentares e nutricionais da aldeia, ela se revelava importante para os aspectos ligados à organização social do grupo.

Efeito da Produção de Alimento como Mecanismo de Fortalecimento dos Laços de Coesão Social

Diante dos empecilhos que limitam os Guarani de Yynn Moroti Wherá de exercerem seu modo de vida de forma plena, o ato de produzir e colher alimentos dentro da Aldeia, além de promover a Segurança Alimentar, fortalece a vivência em grupo, e consequentemente é um mecanismo de transmissão de saberes intergeracional, sendo este um processo educativo e cultural.

O fortalecimento das relações dentro da comunidade se dá principalmente pelo tempo de intensa busca pela revitalização de tradições nas diversas áreas da aldeia. Este momento de revitalização é comentado por Marcelo França (2007) em seu trabalho e evidenciado na fala do cacique Hyral Moreira:

Precisamos de terra para manter nossa tradição, costumes e

espiritualidade. Durante anos nossa cultura e nosso povo foram

oprimidos, obrigado a viver longe da raiz da tradição. A terra nos

proporciona condições de manter e fortalecer nossa cultura. Na mata

nativa encontramos harmonia, desenvolvemos o equilíbrio espiritual e

físico e dela tiramos nosso alimento tradicional. Desta forma repassamos

os costumes e tradições mais antigas, de tempos imemoriais do nosso

povo. E temos orgulho de termos sobrevivido a estes anos de opressão.

Hoje vivemos um momento único em nossa aldeia. Através de nosso

tcharamõe (nosso avô) líder espiritual, estamos revitalizando nossas

tradições. Através dele estamos reaprendendo e sedimentando nos

nossos jovens os conhecimentos mais antigos.

Neste contexto, a agricultura assume um dos aspectos de grande

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importância para a comunidade, pois Alcindo Werá Moreira além de líder espiritual é o “agricultor”, sendo o responsável direto pela área da lavoura comunitária e o orientador na busca do envolvimento dos jovens.

Durante entrevista, em período de colheita, enquanto mostrava sementes de avatxi/milho tradicional Guarani, cuidadosamente separadas e acondicionadas, Alcindo Moreira e Sr. Graciliano falava com satisfação da lavoura e da produção de uma bebida tradicional produzida dentro da comunidade.

Nesse ano deu bastante... Esse ano sobrou... Plantamos nosso milho

nativo e agradecemos muito lá em cima (Nhanderu/Deus). Nunca

você escutou, em vários anos ninguém tinha visto a bebida do

Kawí... Muitos sabem que ela existe mas não sabem quem que faz,

como faz ... Taí o nosso cacique a trinta e poucos anos de idade

agora é que conhece... Essa nossa bebida vai ter pra todos da aldeia

e ainda vamos levar 46 litros pra cerimônias em Urubici e 29 litros

lá pra Joinville.

O relato do líder espiritual Alcindo demonstra “a alegria”, como costuma dizer, com os grãos produzidos e colhidos na lavoura, o que gerou o consequente feitio da “Kawí”, uma bebida fermentada produzida a base de milho tradicional escuro (avaxí u) que traz junto de si bem mais do que os alimentos que nutrem. A produção de alimentos dentro da aldeia proporciona bem-estar a tudo e a todos, com um correto direcionamento de ações, pensamentos, sentimentos e palavras. Ela traz verdadeiramente os sentimentos de autoestima e dignidade, buscados nas pretensões iniciais dos trabalhos.

Durante entrevistas e conversas feitas junto à comunidade os moradores contavam o que viam dos trabalhos de produção de alimentos, sendo ressaltados os “resultados” obtidos nas colheitas junto à área da lavoura comunitária nos últimos anos e cada um a seu modo contava sua experiência vivida.

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“Através do uso de técnicas para o plantio, observamos mudanças

no comportamento das plantas e do solo... A erosão que existia

antes das técnicas era muito grande... Não precisamos limpar tudo,

limpamos só o suficiente e deixamos o mato no pé da planta, assim

a terra fica mais úmida... Antes com o sol e a chuva batendo direto,

a terra e a planta sofriam muito, o solo ficava meio avermelhado

já aparecendo o fundo. Hoje o comportamento das plantas mudou,

houve uma produção maior, houve uma mudança e a gente consegue

observar que mudou, o povo plantava e não dava...E hoje melhorou

e isso reflete principalmente no ânimo de quem está plantando”.

(Geraldo/ professor indígena)

Pra mim, hoje quando planto, dá mais alegria quando vejo o milho, a

batata, a mandioca, o feijão crescer... Temos mais sustentabilidade...

E o que mudou é observado no que produzimos. Antes morava lá no

Morro dos Cavalos e o jeito de plantar era roçando, botando fogo,

ai fazíamos um buraquinho colocávamos a semente, chegávamos à

terra próximo a planta pra ver se vinha bem, mas nada... Gosto de

trabalhar na lavoura! Passei neste ano na prova do Colégio Agrícola

de Araquari e vou estudar lá pra também poder ajudar mais minha

comunidade. (Ronaldo/ jovem ajudante dos trabalhos junto à área da

lavoura comunitária)

De acordo com Elisabeth Pissolato (apud Eletrosul, 2007), o conceito Guarani de “alegria” remete a um estado de viver para ser atingido, deve-se estar em ambientes integrais, cuja condição seja o mais próxima daquela deixada pelas divindades. Tais ambientes são reconhecidos pela presença de mata bonita (ka’aguy porá), de nascentes (yakã porá) de água limpa, de roças tradicionais férteis (kokue) e de determinados seres – vegetais e animais.

No contexto de Yynn Moroti Wherá, um dos motivos de maior alegria para a comunidade foi o fato de ter podido celebrar cerimônias tradicionais do Nhemongarai (festa da boa colheita do milho) com o feitio de alimentos

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típicos como o mbodjapé – pão de milho, preparado com farinha de milho maduro previamente tostado; mbyta – pão de milho preparado com um milho não maduro; chipa caure pão de milho de forma cilíndrica e a bebida Kawí, que há trinta anos não era feita pelo grupo.

Os ritos de colheita do milho são abordados por estudiosos como Maria Inês Ladeira (1992) como sendo a principal cerimônia realizada na aldeia junto à casa de reza (Opy). Segundo Ladeira, ela acontece quando os cultivos tradicionais são colhidos e “abençoados” e nelas são atribuídos os nomes às crianças nascidas no período.

O Nheemongarai coincide com a época dos ‘tempos novos’ (ara pyau), caracterizado pelos fortes temporais que ocorrem no verão (Ladeira, 1992).

Na aldeia observava-se que os ritos possuíam sequência e lógica de acontecimento e tudo isso era relembrado pelas lideranças espirituais e acompanhado e registrado pela comunidade.

Nos ritos de preparo dos pratos típicos a base de milho, o grupo de mulheres é que colhia o milho (avaxi etei). Logo depois de feita a colheita, elas iam com crianças ao colo até a casa de reza e depositavam os pratos e espigas junto ao altar, para que durante a noite toda a comunidade pudesse, através de cantos sagrados, agradecer à mãe terra pelos “frutos” colhidos.

Nestas cerimônias crianças e jovens participavam das atividades juntamente com a escola e em família, conversando e fortalecendo a identidade e o orgulho de ser índio.

Nas tarefas que antecediam os ritos, já existiam os responsáveis pela coleta da lenha, a limpeza da casa de reza, o preparo dos pratos típicos a base de milho e o preparo do altar com a exposição das espigas de milho, entre outras, fortalecendo os laços de cooperação.

As pinturas no chão de barro da casa com figuras e gravuras indicando simbologias baseadas em princípios naturais eram também feitas

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de maneira coletiva e estimulavam a criatividade.

Os rituais específicos eram registrados pelos jovens com filmadoras, para guardar e massificar a notícia do feito a outras aldeias, marcando um momento vivido e guardando os ensinamentos do líder espiritual que, com 97 anos, revivia – como costumava dizer – tempos de fartura.

Os moradores viviam no dia a dia da aldeia estes acontecimentos, de modo não segmentado e numa visão cosmológica em todos os aspectos da vida da comunidade: na escola, no posto de saúde, nas residências e principalmente na casa de reza, com as cerimônias que promoviam a contextualização no tempo e no espaço, permitindo o desenvolvimento de todas as potencialidades com consequente realização como indivíduo e como comunidade.

Assim, é nesse processo integrado de produção de alimentos com ritos de agradecimento, cura, batismo, entre outros; de união do alimento matéria com a “base do modo de ser Guarani”; de vivência em grupo e promoção das relações sociais e espirituais que se observou residir a fortaleza do povo Guarani.

Considerações Finais

Diante do contexto vivido pela comunidade Yynn Moroti Wherá, pode-se ressaltar que o ato da produção, quando conectado a “base do modo de ser Guarani”, que é sua espiritualidade, consegue ser um importante mecanismo de coesão social, por despertar ritos que fortalecem a transmissão de saberes e da cultura, sendo este um processo educacional.

Nesta linha concluo este trabalho com os dizeres do médico Haroldo Evangelhista Vargas:

Quando se buscar apoiar os povos indígenas para uma produção com

qualidade de vida é importante pensar em projetos dentro da visão

verdadeiramente indígena... Não há como negar que hoje a realidade

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é outra e deve existir uma adaptação a estes tempos e também um

aproveitamento consciente do que existe de recursos e possibilidades

da sociedade envolvente para a vida indígena sem perder a própria

identidade. Na minha opinião o problema é que independente do

pouco ou muito que se consiga nestes aspectos, poderá ser em vão se

não se trabalha na raiz a questão que é a retomada da própria base

que está na tradição, e possibilita o resgate da identidade, dignidade

e autoestima em cada indivíduo e das comunidades como um todo.

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ANEXOS

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