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Verbetes extrados de: SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Lxico do drama moderno e
contemporneo. Traduo: Andr Telles. So Paulo: Cosac Naify, 2012.
AO (AES)
CATSTROFE
CENA A SER FEITA/ A SER DESFEITA
DEVIR CNICO
DILOGO (CRISE DO)
FRAGMENTO/ FRAGMENTAO/ FATIA DE VIDA
NTIMO
PEA-PAISAGEM
TEATRO ESTTICO (ESTATISMO)
PS-DRAMTICO
AO (AES)
A crise da ao situa-se, por natureza, no cerne da crise do drama, uma vez que
este representao [...] de ao (Aristteles, Potica, cap. 6). A reside o fundamento
da mimese.
Se a crise da ao assume formas mltiplas a partir do fim do sculo XIX por
exemplo, com seu descentramento e precoce fragmentao em Tchekhov , o Teatro
esttico de Maeterlinck que constitui uma de suas manifestaes mais radicais, uma
vez que tende a anul-la, cortando pela raiz o que constitui a dinmica do ato teatral.
Agir pr em movimento, como lembra Hannah Arendt baseando-se no latim agere.
Ora, seria concebvel um teatro que fosse pura imobilidade? Maeterlinck, na
anulao que preconiza, substituir efetivamente a ao por um (dos) movimento(s) de
outra natureza: movimentos da alma, dos quais o teatro do fim do sculo XIX, na
esteira de Wagner, tanto buscou se aproximar verdadeiras aes internas que so o
motor de vrias obras dramticas do sculo XX, de Strindberg a Duras ou Sarraute e
outros mais.
A evoluo multiforme do drama, enquanto ainda mantm esse nome (s
vezes sua revelia), ao longo de todo o sculo XX, pode ser lida como a procura de
solues para o seguinte problema: que substitutos encontrar para a ao quando esta se
torna impossvel? Ou que expanso lhe dar?
Mas em que consiste precisamente essa ao que se torna impossvel, e por que
ela se torna impossvel? Aquilo a que a possibilidade se furta desde o fim do sculo
XIX a grande ao, tal como os tragedigrafos gregos impuseram seu modelo por
milnios: uma ao, inicialmente projetada, deflagra-se no incio da pea e encontra seu
desenlace no fim. Esquema ideal em sua simplicidade (que a trama s vezes ir
complicar), unidade e coerncia sua ordem , cujo modelo dinmico pode ser
explicado pela relao fechada do sujeito com o objeto.
O que fica visvel no fim do sculo XIX que essa ordem est minada: na base
mesma da ao, o projeto, que supe uma vontade, sabotado. Agir primeiro querer
agir. A crise da ao tem provavelmente sua origem na crise do sujeito, nas fissuras do
eu e de sua capacidade de querer. Um certo nmero de dramaturgos do fim do sculo
XIX e do XX, de Tchekhov a Beckett, fez dessa capacidade tornada problemtica o
prprio assunto de suas obras.
O que age, ento, no drama, se a grande ao no mais possvel? Convm
aqui recorrer distino, operada por Michel Vinaver, entre os trs nveis nos quais
pode ser percebida a ao numa pea. Esses trs nveis determinam trs tipos de ao,
que talvez no sejam de natureza igual: ao de conjunto, ao de detalhe (o detalhe
podendo ser o ato, a cena, a sequncia...), ao molecular (tal como se manifesta rplica
aps rplica, ou simplesmente no passo a passo do texto).
Numa pea clssica (lato sensu), o esquema de ao pode ser representado por
uma estrutura em rvore, as aes moleculares permitindo construir as aes de detalhe
que, por sua vez, convergem para a ao de conjunto.
O que o drama moderno e contemporneo realiza, sob diversas formas, no
necessariamente a suspenso de toda ao de conjunto, mas, acima de tudo, a
desconexo entre esses trs nveis (ou s vezes entre dois deles). A ao de conjunto,
quando mantida, mudou de sentido, tornou-se, segundo os casos, distante, fantasstica
ou puramente interior, de aparncia aleatria raramente o resultado de um projeto, um
plano preestabelecido, uma engrenagem (que caracterizaria o que Vinaver chama de
pea-mquina).
Em Fim de partida de Beckett, pergunta O que est acontecendo?, que
propriamente a da ao (especialmente do ponto de vista do espectador), Clov responde
Alguma coisa segue seu curso: nada alm da vida... Programa realizado melhor do
que em qualquer outro lugar em Dias felizes e que ser repetido, menos radicalmente e
com outros artifcios, pelo Teatro do cotidiano.
A ao de conjunto, quando no se reduz a esse viver, antes o resultado, que
podemos constatar a posteriori, de um processo no qual o sujeito mais objeto do que
agente. Uma linha que termina por libertar-se do fluxo catico do cotidiano. A ao
relaciona-se obrigatoriamente com o sentido. A fbula, como uma srie de aes, o
que constitui sentido o que Brecht defender com veemncia. Na escrita moderna,
diremos com Vinaver que h um impulso rumo ao sentido. Este, no mais que a ao,
no existe antes de ser produzido pela e na escrita.
As aes de detalhe, quando ainda no identificveis, ganham autonomia ao
mesmo tempo em que o texto fragmenta-se em sequncias, em pedaos por sua vez
autnomos, at os casos extremos representados, por exemplo, por alguns trabalhos de
Botho Strauss, em que a pea parece no mais existir seno como uma srie de peas
breves (Le Temps et la chambre [O tempo e o quarto] e, mais ainda, Sete portas,
subintitulada Bagatelles). A ao ento no mais unitria, mas serial. O modelo pode
ser tambm o da variao musical sobre um tema mais ou menos sugerido. Germania 3:
os espectros do morto-homem, de Heiner Muller, uma sute caleidoscpia de variaes
sobre a histria alem e europeia depois da Segunda Guerra Mundial, na qual
personagens e situaes mudam a cada sequncia, vedando toda possibilidade de se
construir uma ao de conjunto, exceto considerar que se trata do prprio movimento,
catico, da Histria. A ao seria aqui o resultado da montagem das aes de detalhe (s
quais se acrescentam textos no dramticos), o efeito do poder da montagem sobre o
espectador dimenso (a do espectador) que nunca deveria ser menosprezada numa
reflexo sobre a ao.
Em incontveis peas, so as microaes que tendem a ocupar o primeiro plano.
Elas ploriferam e o texto no age mais seno no nvel molecular, numa ampliao, como
se no microscpio, do presente, que embaralha e pode tornar imperceptvel a no ser
eventualmente a posteriori toda linha, todo desenho de conjunto e at as aes de
detalhe. Elas se desenvolvem em duas direes opostas: a palavra-ao e as aes
fsicas.
O princpio cannico (DAubignac, Corneille) segundo o qual no teatro a
palavra age retomado por Pirandello, num artigo de 1899 sobre LAction parle [A
ao falada] , como constitutiva da ao dramtica, exacerbou-se nas dramaturgias
contemporneas sob o impulso da automatizao das microaes. Essa noo de
palavra-ao, a bem da verdade, aponta para um conjunto de fenmenos complexos e
provavelmente dspares: ora figuras perfeitamente detectveis com os recursos da
lingustica e da pragmtica (segundo o modelo, principalmente, dos enunciados
performticos) ou com a ajuda das "figuras textuais vinaverianas (ataque, defesa,
esquiva, resposta, movimento para); ora um movimento mais difuso criado pela palavra,
cuja interao (entre os personagens) constitui a face privilegiada.
As aes fsicas cumpriria examinar aqui o devir da noo stanislavskiana (que
parecia fadada ao mimetismo naturalista) em Grotowski e Barba ploriferam na brecha
aberta h dois sculos por Diderot com a pantomima. Elas se desdobram num territrio
onde o teatro e a dana avanam um na direo do outro at se misturarem, como nos
espetculos de Pina Bausch ou Alain Platel, e onde a ao se faz movimento (e s vezes
o movimento, ao). Atribudas em geral cena e ao ator (logo, ao diretor), elas s
vezes so assumidas pela escrita.
Talvez nesse caso a ao no merea conservar esse nome, sendo prefervel,
como nos casos igualmente extremos dos puros tropismos textuais, internos ou externos,
portados pela fala (Falta de Sarah Kane), referir-se a um princpio ativo difuso, uma
energia que deveria ser associada ao ritmo , mantendo essas obras no mbito de
uma forma dramtica que no para de expandir seus limites.
Dizer que o presente do texto, na ordem de seu desdobramento, prevalece,
remeter ao presente da cena e ao seu jogo. Retomando a ambiguidade original
prattontes, literalmente, em grego, seres em ao, podendo referir-se igualmente, e s
vezes indistintamente, aos actantes e aos atores , Denis Gunoun, em O teatro
necessrio?, afirma que, se o desenvolvimento da mimese enfatizou os primeiros,
assistimos hoje ao retorno dos segundos, os personagens atuantes apagando-se por
trs dos atores atuantes. Alm disso, sem dvida, um certo nmero de textos
contemporneos enfraquece o personagem at dissolv-lo, delegando a ao do ator.
Parece, contudo, que outros, preservando certo nvel de fico, no extinguem
completamente nem o personagem nem suas aes prprias, e que o jogo do ator
continua ento a se basear nesse fingimento (ou simulacro) de fico e representao
mimtica de aes reais executadas diante de nossos olhos. O que caracteriza diversas
escritas de hoje que elas se situam na articulao de uma dramaticidade, digamos,
mimtica, e do jogo de cena a se efetivar, ou ento que essa dramaticidade que ainda
resiste, s vezes por um fio, mimese est destinada a se articular sobre um jogo de
cena que dela vai desvencilhar-se.
Joseph Danan
CATSTROFE
A noo de catstrofe oriunda da esttica teatral clssica. Corneille, por
exemplo, afirma no ter atribudo aos personagens de Nicomde [Nicomedes] nenhum
desgnio de parricida a fim de expurgar do palco o horror de uma catstrofe to
brbara. para demonstrar a mesma reticncia a respeito de uma excessiva violncia
do desenlace trgico que Racine emprega a palavra catstrofe no prefcio Tebaida:
A catstrofe da minha pea talvez seja por demais sangrenta. Com efeito, nela no
aparece quase nenhum ator que no morra no fim. Esses dois exemplos atestam uma
familiaridade a respeito da noo dramatrgica de catstrofe que no mais a nossa.
Portanto, a anlise de seu devir e de seus problemas no drama moderno e
contemporneo implica ao mesmo tempo uma definio e uma reatualizao.
A partir da Potica, a catstrofe pode ser definida como um desenlace que o
local da reviravolta e de um efeito violento (pathos). Ela procede segundo uma
reviravolta na direo do infortnio, pelo qual Aristteles afirma uma predileo que
no objeto de nenhuma demonstrao, como se fosse evidente que o desfecho funesto
de uma histria seja o que lhe confere seu carter trgico. Diante dessa ausncia de
explicao, podemos sugerir a hiptese de que Aristteles privilegia a reviravolta
francesa porque ela produz um efeito violento, uma ao causando destruio ou dor,
associando assim categorias que Aristteles instala no topo de sua esttica trgica, a
catstrofe constitui o lugar por excelncia de produo das emoes trgicas. Momento
epigonal da ataraxia a busca do espetculo do perigo para melhor pr prova o
conforto do espectador , a catstrofe est no centro de uma esttica da recepo
correspondente ao que Hans Blumenberg chama de configurao do naufrgio com o
espectador. o temor de um naufrgio desse tipo que explica as reservas de Corneille
ou Racine a respeito de uma catstrofe que atesta uma desconfiana, comum aos
dramaturgos da idade clssica, perante a catstrofe to destruidora e dolorosa que no
pudesse ser reduzida a uma interpretao sensata.
A catstrofe tambm pertence ao mbito do estudo das estratgias de concluso
do texto dramtico. Ela traria, segundo os termos de Hegel, uma soluo definitiva e
completa para o conflito dramtico e um apaziguamento igualmente definitivo
para o espectador. A progresso irresistvel rumo catstrofe final teorizada por
Hegel faz dela um desdobramento lgico, o lugar de um fechamento do sentido. Desse
ponto de vista, ela parece sofrer no teatro contemporneo uma perda de sentido radical
que recoloca em questo suas funes tradicionais e sua existncia. Diante da supresso
ou da fragmentao da ao, a catstrofe, tornada irrisria ou suprflua, poderia
desaparecer para apenas sobreviver num segundo plano. No seio de um drama de agora
em diante sem soluo, a catstrofe funciona como uma ressurgncia citacional
Catstrofe de Beckett ou como uma imagem reinvestida de sentido por um fenmeno
de metonmia semntica: puro infortnio, imagem de morte.
precisamente o exame do sentido corriqueiro da palavra catstrofe que d
todo seu interesse reatualizao da noo. O incndio que abre A casa queimada de
Strindberg, a morte da adolescente a partir da qual Maeterlinck constri a ao de
Interior constituem infortnios j consumados quando o pano se abre. Por trs dessas
catstrofes no mais finais, mas inaugurais , desdobra-se o que Jean-Pierre Sarrazac
aponta como a grande converso do teatro moderno e contemporneo. A partir desse
momento, como um prembulo que funciona a catstrofe, ressemantizada, nas Pices
de guerre [Peas de guerra] de Edward Bond, pela fico de uma exploso nuclear, ou
associada, em Muller, a uma viso mais geral da Histria como sucesso de catstrofes.
Em Fim de Partida, Beckett tambm constri, a partir de um desastre indefinido, uma
dramaturgia do ps-catstrofe. uma guinada fundadora de nossa modernidade
dramtica que essas catstrofes incongruentes e, por conseguinte, privadas de toda
capacidade conclusiva, prolongam.
Para alm do esgotamento de sua funo de desenlace, a catstrofe continua a
ser essencial no teatro, na medida em que representa uma mudana de estado. Esse
sentido, derivado da teoria matemtica das catstrofes, permite reinterpretar a pea
homnima de Beckett. Ela mostra um encenador e um iluminador criando uma imagem
teatral que suscita o seguinte comentrio do diretor: timo. Temos a nossa catstrofe.
Para causar um infortnio, preciso uma catstrofe. Assim, poderamos dizer que a
encenao uma catstrofe, e preferir, noo clssica de conflito, a de catstrofe, mais
operatria para apreender as mudanas de estado manifestadas ou acarretadas pelas
rplicas trocadas no palco de teatro. Por infelicidade, resulta que o teatro no
catastrfico. A ausncia de catstrofe tem um sinal muito claro, que o tdio, e
eventualmente o sono, mudana de estado que substitui a catstrofe ausente.
Hlne Kuntz, Catherine Naugrette e Jean-Loup Riviere
CENA A SER FEITA / A SER DESFEITA
Assim designada por Francisque Sarcey no sculo XIX, a cena ser feita acha-se
antes associada ao vaudeville, ao teatro de bulevar e s escritas dramticas mecnicas,
embora seja possvel apontar sua funo primordial numa lgica de causalidade e
finalidade de tipo aristotlico ou neoaristotlico.
Essa cena, que resulta necessariamente dos interesses ou das paixes que do
vida aos personagens postos em jogo (Sarcey), encontra geralmente seu lugar no fim
da pea. Correspondendo s expectativas da plateia, ela revela informaes, o
acontecimento ou a reviravolta essenciais compreenso do enredo. Todo o interesse
dramtico repousa sobre a cena ansiosamente esperada (Thomasseau), que se torna
assim um dos elementos bsicos da pea benfeita maneira de Scribe. Por exemplo, na
dramaturgia inglesa inspirada na pea benfeita, a cena a ser feita a do triunfo do heri
(ou de seu ajudante) sobre seu inimigo, triunfo proporcionado pela revelao sbita de
um segredo (Sadler Stanton).
Conveno mecanicista, ao mesmo tempo sequncia de sucesso e rasgo de
bravura, a cena a ser feita corresponde mais profundamente a uma funo necessria na
lgica aristotlica, para levar a ao a seu termo. Na medida em que necessria ao
prazer do pblico e em que permite sua sequncia encadear a cena de reconhecimento
e o desfecho tradicionais, ela se define como a cena que o pblico prev, espera e
exige, e que o dramaturgo deve obrigatoriamente escrever (Pavis). Em ingls, ela ser
nomeada obligatory scene, sua variabilidade funcional tornando-a ainda mais
indispensvel lgica interna da pea na medida em que autoriza mltiplas
combinaes e alteraes, sobretudo no que se refere aos personagens.
Ao contrrio da cena a ser feita, a dramaturgia no aristotlica proposta por
Brecht antecipa a cena a ser desfeita. No contexto de oposies termo a termo que
caracteriza a polmica elaborao do teatro pico tal como mostra o clebre quadro
em que Brecht contradiz a forma dramtica do teatro por meio da forma pica do
teatro, a ao por meio da narrao, o crescimento orgnico por meio da montagem, o
desfecho por meio do desenvolvimento , a cena a ser desfeita afirma-se por sua vez
como uma ferramenta antittica da nova dramaturgia pica. Fragmentada, difratada
atravs do drama pelo vis de diferentes elementos narrativos e tcnicas de escrita a
servio do distanciamento, a servio agora de uma lgica do descontnuo e da
decupagem e no mais de uma lgica do encadeamento e da continuidade, ela o
indicador de uma defasagem manifesta.
Quando finalmente Heiner Muller escreve que a pea benfeita no traduz mais
adequadamente a realidade [e que] devemos desenvolver uma dramaturgia de
fragmentos sintticos, ele se situa ao mesmo tempo no prolongamento do projeto
brechtiano e em sua superao. A fragmentao radical das peas de Muller (pelo
menos a partir dos anos 1970) segue uma lgica mais prxima do desconstrutivismo
aplicado ao teatro de tipo ps-moderno , no seio da qual a cena a ser desfeita, mais
do que nunca, funciona como uma ferramenta de subverso.
Patrick Leroux e Catherine Naugrette
DEVIR CNICO
Devir nunca imitar ou agir, como tampouco conformar-se a um modelo,
ainda que seja o de justia ou de verdade. No existe um termo do qual
partimos, nem um ao qual chegamos ou devemos chegar.
Gilles Deleuze
O devir cnico no poderia ser confundido com o que nos habituamos a designar
como a fortuna crtica de uma pea. No nos interessamos aqui pelo conjunto das
encenaes efetivas nem mesmo possveis de uma obra dramtica, mas sim pela fora
e pelas virtualidades cnicas dessa obra. Pelo que num texto que pode ser no
dramtico solicita o palco e, numa certa medida, reinventa-o.
No basta reconhecer, como Henri Gouhier, que o teatro uma arte em dois
tempos; cumpre igualmente apontar qual a relao exata, na poca moderna e
contempornea, do universo-texto com o universo-representao, e, sobretudo, que
vazio esse (no simplesmente de interpretao, mas tambm de criao) que se
inscreve no mago do texto como um chamado ao palco.
Ainda do ponto de vista de Gouhier, nossa noo de devir cnico poderia estar
ligada passagem do dramtico ao teatral. Por seu intermdio, verifica-se que uma obra
dramtica acha-se de fato na expectativa de uma teatralidade: A representao,
escreve Gouhier, est inscrita na essncia da obra teatral; esta no existe efetivamente
seno no momento e lugar em que se consuma a metamorfose. A representao,
portanto, no um suplemento ou completo do qual, a rigor, poderamos prescindir;
um fim nos dois sentidos da palavra: a obra feita para ser representada, eis sua
finalidade; ao mesmo tempo, a representao denota uma realizao, o momento em
que enfim a obra se v nas condies requeridas para existir dramaticamente. de fato a
existncia mesma da obra teatral que exige que sua criao seja duplicada por uma
recriao.
Entretanto, a noo de devir cnico, tal como sugerimos, extrapola por mais de
uma razo o mbito delimitado por Gouhier. Em primeiro lugar, pode ser aplicada,
como dissemos, a um texto no dramtico. Alm disso, continua a ser demasiado
restritivo falar em recriao e no em uma criao especfica para o trabalho teatral.
Por fim, convm acabar definitivamente com a cobrana textocentrista de uma
representao teatral que no passaria da realizao de um texto. Ou seja, de um ato
cnico que se visse de certa forma instrumentalizado pelo texto. A dinmica moderna e
contempornea da criao teatral ligada inveno da encenao [mise en scne] e a
uma emancipao mais ou menos radical do teatro com relao jurisdio do literrio
no procede de um desenvolvimento linear que iria do textual ao cnico, mas de uma
mise en jeu, de uma mise en scne concorrencial e polifnica do texto (considerado ele
mesmo na distncia e no jogo entre a voz e o gesto do ator) e outros elementos da
representao: cenrios, luzes, sons etc.
Na histria do teatro e sobretudo na da esttica teatral , o devir cnico da obra
dramtica nem sempre teve suas prerrogativas. Aristteles considera o espetculo
(opsis) elemento de qualidade da tragdia, mas, ao mesmo tempo, apresenta a obra
trgica que pode muito bem, segundo ele, atualizar-se na leitura como indiferente a
esse devir do espetculo. (Hegel, por sua vez, no far seno entreabrir a possibilidade
e apenas para as obras modernas de uma parte de criao oferecida ao ator.) Enquanto
abertura, vazio do texto, foi Diderot o primeiro a levar realmente em conta por t-lo
igualmente praticado o devir cnico da obra dramtica, em particular quando tal devir
faz parte de seu desejo sua utopia de escrever inteiramente, do ponto de vista do
dilogo a pantomima de um texto.
Interrogar-se hoje sobre o devir cnico de um texto, sobre a multiplicidade de
suas linhas de fuga, levar em conta o grau de abertura desse texto. Para Dort, os
maiores textos de teatro, os que suscitaram, atravs das eras, o mximo de
interpretaes cnicas, e as mais diferentes entre si, so [...] aqueles que, leitura, nos
parecem os mais problemticos [...]. Um texto fechado em si mesmo, que contm
expressamente uma resposta s perguntas nele formuladas, tem poucas possibilidades de
um dia vir a ser montado. o destino das peas de tese. Em contrapartida, um texto
aberto, que no responde s perguntas seno com novas perguntas e que toma
deliberadamente o partido de seu prprio inacabamento, tem todas as possibilidades de
perdurar. porque ele constitui um chamado ao palco, provoca-o e precisa dele para
adquirir consistncia.
Resta esclarecer o que entendemos por abertura de um texto ao palco.
Geralmente se considerarmos como Hegel evocando as prolas do drama moderno,
que o ator deve buscar nos alicerces silenciosos do texto que esse vazio uma questo
de profundidade. O devir cnico estaria, portanto, contido no texto, e os gestos, as
mmicas, todo o espao e o movimento da representao, toda a teatralidade, contidos
no dilogo... A essa concepo de um texto oco, de um texto profundo, que
conteria todas as representaes vindouras, concepo que mal dissimula seus
vnculos com o velho textocentrismo, convm hoje opor a ideia de um trabalho de
superfcie, ou melhor, de interface: deslizamento da estrutura-texto e da estrutura-
representao uma sobre a outra; sobreposio graas qual o texto se v posto em
movimento por sua prpria teatralidade, que lhe permanece exterior. Nesse sentido, o
devir cnico reinveno permanente do palco e do teatro pelo texto o que liga mais
profundamente, mais intimamente esse texto ao seu Outro exterior e estrangeiro. A
saber: o teatro, o palco.
Jean-Pierre Sarrazac
DILOGO (CRISE DO)
A crise da forma dramtica, tal como Szondi a descreveu e teorizou, afeta todos
os elementos constitutivos do drama, e tanto o dilogo dramtico quanto a fbula ou o
personagem. Tratando-se da crise especfica do dilogo, poderamos resumi-la a um
questionamento da relao interindividual entre os personagens e, atravs dessa relao,
do desenvolvimento do conflito dramtico at a catstrofe e ao desfecho.
A partir desse momento, o ser-a do personagem, sua relao problemtica
com o mundo com a sociedade, com o cosmo , tende a prevalecer sobre a pura
relao interpessoal. O personagem apresenta-se a ns num estado de solido, ou
mesmo de isolamento, em todo caso de separao em relao aos demais personagens,
e, muitas vezes, em relao a ele prprio. Em virtude disso, a concepo hegeliana do
dilogo, segundo a qual somente pelo dilogo que os indivduos em ao podem
revelar uns aos outros seu carter e seus objetivos [...] e igualmente pelo dilogo que
exprimem suas discordncias, imprimindo dessa forma um movimento real ao, v-
se questionada.
As grandes dramaturgias do fim do sculo XIX e da virada do XX
principalmente as de Ibsen, Strindberg e Tchekhov antecipam as do fim do sculo XX
e muito particularmente a de Beckett no sentido de que o dilogo ofusca-se diante
do monlogo. Um monlogo que no serve, como nas dramaturgias clssicas, para
relanar o dilogo mas sim para suspend-lo. Nesse teatro de tendncia esttica ou
esttico-dinmica os conflitos so mais larvados e intrapsquicos do que patentes e
interpessoais: a solido em solilquio de John Gabriel Borkmann no deixa de evocar a
de Hamm ou de Krapp; o delrio do Oficial de O sonho exprime sua espera apaixonada
por uma Victoria que lembra Godot; e, na polifonia ou cacofonia tchekhoviana, cada
um dos personagens d livre curso a um monlogo que se revela no mnimo to interior
quanto exterior.
Se o dilogo significa rplica a distncia (o dia de dilogo), tudo se passa, a
partir dos anos 1880, como se os personagens nunca estivessem na distncia correta que
permite o dilogo fundado na relao interpessoal. Longe ou perto demais, ao mesmo
tempo agregados uns aos outros e isolados um do outro, os personagens da drama
naturalista vivem na promiscuidade do meio, mas esse mesmo meio basta pensar no
meio profissional e/ou familiar em que evoluem as criaturas de Ibsen, Hauptmann,
Strindberg, Tchekhov no cessa de se interpor, de criar barreiras intransponveis entre
eles. Quanto aos personagens do drama simbolista, no adianta no formarem mais
seno um nico corpo trmulo, imagem de Os cegos de Maeterlinck; sua relao
aterrorizada com o cosmo impede qualquer relao horizontal verdadeira entre eles; sem
esquecer que, como as peas dessa poca bebiam geralmente no naturalismo e no
simbolismo, os dois tipos de separao, o societal isto , o poltico e o csmico, que
pe em ao o inconsciente, podem se combinar...
Paradoxalmente, no drama moderno e contemporneo, a relao de um
personagem com o outro torna-se mais fluida, mais instvel que aquela que cada
personagem, cada lugar de palavra (Ludovic Janvier designa o personagem beckettiano
como um lugar-dizer) mantm com o espectador. Doravante, o personagem, mais do
que responder, replicar a seu congnere, dirige-se a esse outro para ele a priori
invisvel e inexistente (s o ator est a par da existncia, da presena do pblico) que o
espectador. E se ainda h dilogo mas num sentido puramente metafrico , este s
pode se dar entre a plateia e o palco. Como escreveu Bernard Dort, o espectador
moderno que se acha em dilogo. E no mais os personagens.
Como ento caracterizar esse texto teatral no qual ao lado de longos
monlogos, de momentos de coralidade, de relatos no submetidos ao regime
dramtico, ou mesmo cartas, relatos, nomenclaturas, fragmentos de dirios ntimos e
outros materiais heterogneos subsistem contudo vestgios (ou manifestam-se
reincidncias) de dilogo? Como dar conta, de Beckett a Kolts e de Muller a Novarina,
dos textos escritos para o teatro nos quais os modos pico, lrico, argumentativo, em vez
de se integrar dialeticamente segundo o princpio aristotlico-hegeliano ao modo
dramtico, permanecem relativamente autnomos e coexistem com ele? Uma soluo
(digamos, teleolgica) foi, ainda nos anos 1950, considerar a forma pica do teatro
com destaque para o sujeito pico szondiano como a superao do teatro dramtico.
Outra soluo, no fundo pouco diferente da anterior, consiste em anunciar, de Artaud a
Bob Wilson e a Heiner Muller passando por Tadeusz Kantor e Pina Bausch, uma nova
era ou rea (difcil de delimitar) do teatro, a de um teatro ps-dramtico no qual
no haveria mais anterioridade do drama, em que o palco seria primordial e o texto no
passaria de um elemento entre outros. De nossa parte, a voltar a ceder dialtica do
antigo e do novo ou da vanguarda oposta tradio , preferimos tentar apreender
mais de perto esse trabalho de desterritorializao operado no seio do prprio texto
dramtico. Em outros termos, como passar de um dilogo absoluto (ligado a esse
drama absoluto mencionado por Szondi) entre personagens entrincheirados atrs da
quarta parede para o dilogo relativo do teatro moderno e contemporneo?
Cumpre constatar que o dilogo dramtico, tal como se transforma ao longo de
todo o sculo XX e tal como se acha em devir ainda hoje, um dilogo mediatizado.
Um dilogo que chamo de rapsdico na medida em que ele costura conjuntamente e
descostura modos poticos diferentes (lrico, pico, dramtico, argumentativo), ou
mesmo refratrios uns aos outros, e que por sua vez controlado, organizado e
mediatizado por um operador (no sentido mallarmaico), repetindo certas caractersticas
do rapsodo da Antiguidade como diz Goethe, ningum pode tomar a palavra a menos
que esta lhe seja previamente concedida. O sujeito rapsdico amplia e, sobretudo,
flexibiliza o sujeito pico teorizado por Szondi. Em vez de se limitar a esse puro
(de)monstrador desvinculado da ao proposto em Teoria do drama moderno, o sujeito
rapsdico apresenta-se como um sujeito dividido, ao mesmo tempo interior e exterior
ao. A exemplos dos personagens dos jogos de sonho strindberguianos. Ou das
criaturas beckettianas, sempre escuta do outro, do parceiro, ainda que o outro em si
mesmo, e sempre, simultaneamente, esteja numa relao de endereamento ao
espectador.
Opera-se uma nova diviso na qual o gesto o da composio, da fragmentao,
da montagem reivindicada e a voz do rapsodo que no se exprime seno atravs de
monosslabos, que se imiscui no discurso dos personagens intercalam-se entre as
vozes e os gestos dos personagens. Na concepo clssica do teatro, o autor est
obrigatoriamente ausente. Nas dramaturgias modernas e contemporneas, ele se torna de
certa forma presente. Seja de modo explcito, com a voz do rapsodo sobrepondo-se
ento dos personagens; seja de modo implcito, como montador.
Maeterlinck foi o primeiro a assinalar, em Ibsen, o surgimento de outro
dilogo: Ao lado do dilogo indispensvel, h quase sempre outro dilogo [...] a
qualidade e a extenso desse dilogo intil que determinam a qualidade e o alcance
inefvel da obra. Ora, esse outro dilogo ocupa hoje um lugar considervel no corpo
dos textos teatrais e no se limita mais, como na poca de Maeterlinck, a exprimir o
inefvel. Se podemos considerar que o pr-dilogo de Nathalie Sarraute a
subconversa de seus romances transposta para o teatro como pseudoconversa de salo
ainda se situa na posteridade de Ibsen a Maeterlinck, algo de diferente acontece com o
que eu me sentiria tentado a chamar de sobredilogo vinaveriano: trabalho de
montagem (despontuao, descronologizao, deslocalizao, processo de repetio/
variao etc.) sobre o dilogo ambiente e comum...
Mas o outro dilogo, o dilogo outro, tambm a mestiagem do antigo
dilogo dramtico com diferentes tipos de dilogos, como o dilogo filosfico ou o
cientfico. Vida de Galileu ou ainda Les Dialogues dexils [Conversas de refugiados]
de Brecht, texto de status ambguo, inspiram-se amplamente em ambos. E poderamos
igualmente evocar todos esses dilogos dos mortos, maneira de Luciano de Samsata,
como Entre quatro paredes de Sartre, talvez inspirado em A ilha dos mortos de
Strindberg, ou em A la sortie [Na sada] de Pirandello, esse ato curto um pouco ao estilo
de Leopardi. Sem falar da Orgia de Pasolini, ou, recentemente, Cendres de cailloux
[Cinzas de pedras], de Daniel Danis...
Todas essas mestiagens e hibridizaes parecem corresponder a uma vontade
comum: emancipar o dilogo dramtico da univocidade, do monologismo (todas as
vozes dos personagens reabsorvendo-se em definitivo na nica voz do autor) que tanto
lhe recrimina Bakhtin; instaurar, no seio da obra dramtica, um verdadeiro dialogismo,
captar o dilogo de sua poca, ouvir sua poca como um grande dilogo, aprender
no apenas as vozes diversas, mas, acima de tudo, as relaes dialgicas entre essas
vozes, sua interao dialgica.
Talvez a impulso do monlogo no teatro moderno e contemporneo, essa
tendncia do monlogo a suplementar o dilogo interpessoal, no tenha sido seno um
sintoma de um fenmeno mais fundamental: reconstruir o dilogo sobre a base de um
verdadeiro dialogismo. Dar autonomia voz de cada um, inclusive quela do autor-
rapsodo, e operar a confrontao dialgica das vozes singulares de uma poca. Expandir
o teatro fazendo os monlogos dialogarem: Quando uma situao exige um dilogo,
observa Kolts, ele a confrontao de dois monlogos que buscam coabitar.
Jean-Pierre Sarrazac
FRAGMENTO/ FRAGMENTAO/ FATIA DE VIDA
A noo de fragmento deriva de uma escrita que entra em total contradio com
o drama absoluto. Este centrado, construdo, composto na perspectiva de um olhar
nico e de um princpio organizador; sua progresso obedece s regras de um
desdobramento cujas partes individuais engendram necessariamente as seguintes,
coibindo os vazios e os comeos sucessivos. O fragmento, ao contrrio, induz
pluralidade, ruptura, multiplicao dos pontos de vista, heterogeneidade. Ele
permite visar, em seu uso mais amplo e mais antigo o dos elisabetanos, dos autores do
Sculo de Ouro espanhol e, de uma maneira geral, dos dramaturgos barrocos , uma
gama de aes disparadoras cujos comeos aproximadamente simultneos exploram
pistas paralelas ou contraditrias, ao menos aparentemente. A natureza dos elos entre
esses comeos, sua coerncia temtica e seu encontro final para um eventual desfecho
unificador variam segundo as obras, at alcanar o isolamento das pedras sobre a
circunferncia do crculo, como escreve Roland Barthes. Esses fragmentos podem
ento ser chamados pedaos, cacos, escombros, estilhaos, migalhas ou trechos de
escrita, desigualmente separados por vazios. A propsito, acontece de o vazio
prevalecer e os comeos deixarem de ser comeos, de a natureza das relaes e
prolongamentos entre esses trechos permanecer enigmtica, e buscarmos em vo o
vestgio de uma perspectiva unificadora, a trama de um arquiplago, na reunio de
ilhotas esparsas. Os efeitos da ps-modernidade multiplicaram as escritas da
desmontagem e da decomposio.
Mas as aes mltiplas lanadas pelos dramaturgos barrocos, por mais
heterogneas que elas sejam o reino da mistura dos gneros , contm quase sempre
a promessa de uma explicao que as torna necessrias. As formas por eles adotadas
recorrem ao plural, ao simultneo, ao divergente, para melhor alcanar seus fins, isto ,
dar conta de um universo opaco e instvel cuja complexidade jaz nos atalhos, nas
espirais independentes e nos desenvolvimentos improvveis.
A importncia da montagem e a questo do ponto de vista e da coerncia
ressurgem naqueles que interrogam a escrita fragmentria, como Jean-Pierre Sarrazac,
que se refere ao rapsodo e leva em conta o duplo gesto do escritor, o que desliga e o que
liga. Podemos ver nisso uma linha de ruptura entre as escritas fragmentrias que fatiam,
despedaam ou quebram pedras, ou mesmo fabricam filamentos, como diz Franois
Regnault, e aquelas que, participando do mesmo projeto, trabalham no movimento de
fabricar elos. A natureza e a visibilidade desses elos variam, segundo o dramaturgo
reforce a montagem, ou a faa ser comentada por um narrador, ou a deixe evidente pelo
jogo das indicaes e das rubricas, ou ento abandone sua decupagem aos acasos dos
choques e boa vontade do leitor ou do espectador, quando no aos poderosos efeitos
da encenao. Hoje, a polmica incide ento sobre os limites e consequncias da
fragmentao e sobre a maneira pela qual a obra recompe-se por efeito da montagem,
ou, ao contrrio, aberta a todas as modas da interpretao, no oferece nenhum ponto de
vista aparente sobre o mundo.
Tradicionalmente, o fragmento designa o carter incompleto ou inacabado de
uma obra; nesse caso, e a crer nas definies vigentes, o essencial no parece encontrar-
se no que resta dela ou no que foi composto, mas sim no que no chegou at ns, no que
falta. Paradoxalmente, nossa poca transformou o que era a confisso de um fracasso,
uma perda ou uma insuficincia na afirmao de uma escolha esttica. Roland Barthes,
por exemplo, aponta o prazer dos comeos sucessivos, a respeito de seus Fragmentos de
um discurso amoroso. Em dramaturgia, a palavra expandiu-se a ponto de entrar no ttulo
de certos textos, como os Fragments dune lettre dadieu lus par des gologues
[Fragmentos de uma carta de despedida lidos por gelogos], de Normand Chaurette
(1986). Provavelmente a influncia das artes plsticas sobre a escrita dramtica tambm
se fez sentir nesse caso, uma vez que se tornou banal integrar numa obra pictrica
elementos heterogneos de origens diversas, o mesmo que libert-la da perspectiva
nica. Em matria de fotografia, por exemplo, David Hockney em suas paisagens
fragmentadas, feitas de cenas de polaroides justapostas, recria um mundo onde a
multiplicao das lentes corresponde multiplicao dos pontos de vista.
Para Peter Szondi, o eu pico que organiza e justifica as formas dramticas
parcialmente fragmentrias. Ele busca seus sinais na imploso dos lugares e no separa
a escritura descontnua da necessidade da montagem. Por exemplo, faz de Strindberg na
Sonata de espectros um autor que exprime no palco a existncia isolada dos homens de
sua poca, instalando como cenrio a fachada de uma casa. A multiplicidade dos locais
da ao no interior da casa , entretanto, contestada pela praa defronte, que recria uma
unidade. Em contrapartida, Szondi cita Les Criminels [Os Criminosos] (1929) de
Bruckner como uma obra em que os trs andares da casa derivam de uma verdadeira
simultaneidade que corresponde, na dimenso temporal, sucesso paralela de cinco
aes isoladas. Mas ele assinala naturalmente a relao que essas aes mantm com o
tema. Da mesma forma, insiste, embora faa aluso aos fragmentos dos diferentes
debates, no fato de que estes se agrupam para fornecer uma imagem unificada do
tribunal.
Woyzeck de Buchner, obra inacabada e em virtude disso recomposta por suas
sucessivas encenaes, uma pea cuja organizao fragmentria acompanha a viso de
mundo do personagem principal e contribui para desmascarar sua alienao. O que lhe
acontece escapa lgica do compl a ser instaurada por uma trama construda. Os
acontecimentos no obedecem a uma progresso sistemtica, acumulam-se e s fazem
sentido no interior de uma paisagem disjunta e congelada que expe a situao de
Woyzeck no mundo e ao mesmo a interioridade do personagem.
Filiado aos naturalistas, o dramaturgo e terico Jean Jullien concebe a pea de
teatro como uma fatia de vida encenada com arte. Com essa frmula clebre embora
com frequncia desvirtuada, Jullien preconiza extirpar um segmento diretamente do
real. Mquina mortfera contra a pea benfeita, a fatia de vida lquida com a arte das
preparaes. A pea de teatro ser emancipada de seus apndices, julgados inteis e
suprfluos. A exposio, escreve Jullien, [...] ser feita peala prpria ao e o
desenlace no passar de uma interrupo facultativa da ao. A fatia de vida, portanto,
ilustra a oposio que se ergue entre o fragmento e as sacrossantas regras de equilbrio e
composio do drama absoluto. A particularidade desse fragmento que ele pretende,
contudo, ao reforar sua posio de fechamento em si mesmo, constituir nele prprio,
quando no uma totalidade, pelo menos um conjunto, um objeto dramtico homogneo.
O teatro pico de Brecht participa da escrita fragmentria na medida em que
introduz no que era o rio da fbula as rupturas, saltos, elipses, variaes brutais de
ngulos de viso. Trata-se mais de pedaos que de fragmentos, e a composio de
conjunto no evidentemente abandonada ao acaso; ela obedece a efeitos primordiais
de montagem que constituem o ponto de vista.
Sob a influncia de Brecht, uma parte do teatro cotidiano dos anos 1970 expe
a vida comum das pessoas comuns sob a forma de curtas sequncias, s vezes
enigmticas, como em Michel Deutsch ou Franz Xaver Kroetz. A fragmentao vai no
sentido de uma concentrao extrema das partes cada cena vale naturalmente por si s
e da evidncia de uma extirpao destas de um conjunto mais vasto que as aproxima
da fatia de vida. A escolha das sequncias e de sua articulao obedece sempre a uma
lgica narrativa, ainda que esta se desdobre no interior de um grande vazio e que largas
camadas de ar acolchoem os espaos intersticiais, concedendo-lhes nova importncia.
As peas de Michel Vinaver obedecem de bom grado a essa lgica do despedaamento
e da montagem. Mas vo mais longe ainda na fragmentao das rplicas, afiadas,
incompletas, agudas; elas oferecem suas extremidades desnudadas e inconsteis que
revelam suas origens, grande universo da palavra cuja diversidade e impossibilidade de
esgot-la elas exprimem (tudo bom de ouvir). A rplica rara, lacnica, em atrito com
outras, torna-se a marca registrada de uma linguagem fragmentada que se apega em
exprimir melhor o todo por intermdio das operaes de escolha, retirada e montagem.
A fragmentao, portanto, diz respeito ao infinitamente pequeno teatral, a rplica, assim
como ao infinitamente grande, a obra inteira. Esta torna-se ento um imenso fragmento,
como um mundo arrancado do mundo, significando ao mesmo tempo sua totalidade e
sua incompletude.
Os fragmentos, por conseguinte, ou so homogneos ou totalmente
heterogneos. Homogneos, eles o so na escrita, pelo que falam ou por aquilo a que se
referem. Nesse caso, provm de um mesmo tecido. A fragmentao concerne a um setor
limitado; o referente comum garante uma lgica de conjunto.
Heterogneos, eles o so pela diversidade dos referentes, das preocupaes, dos
temas, e obedecem, como sugere Heiner Muller, a um princpio de decomposio. A
heterogeneidade torna-se ento o princpio artstico capital.
No primeiro caso, a escrita leva em conta um estado anterior idealizado,
pressuposto (a carta, o discurso, a obra integral, um personagem ausente ou morto, at
mesmo um tema), do qual restam vestgios, enquanto temos pelo menos uma ideia do
modelo completo; no segundo caso, ignoramos tanto a provenincia dos fragmentos
quanto aquilo que deveria ser reconstitudo. O princpio ativo, mas aleatrio, seria
contido nos fragmentos e no no que exterior a eles, e, a rigor, o autor no saberia
sobre eles mais que qualquer outro. No haveria previamente a fratura, a seleo, o
despedaamento, mas apenas trechos cuja diversidade de provenincias, enigma das
origens, e a causa da juno permanecem desconhecidas.
O que h ento a reconstruir, que princpio organizacional a imaginar? Nada, se
a fragmentao passa a ser o princpio esttico em si. As partes no so a metfora ou a
metonmia do todo. O mundo partido, e intil pr-se procura de um efeito qualquer
de quebra-cabea ou de uma lei ordenadora. O mundo no organizado, a obra
tampouco, pois exprime a desordem, o caos, o fracasso, a impossibilidade de toda
construo.
Isso resulta em ambiguidades. A primeira a suspeita de impotncia que paira
sobre o autor caso ele no fornea nenhum princpio artstico de composio, nenhuma
arquitetura sutilmente disfarada. A segunda diz respeito ao status especfico da obra
teatral. O texto ao sabor de todas as modas, o texto informe, o texto rfo pode sempre
encontrar um pai adotivo, no caso, o encenador que garimparia com tanto mais
liberdade na obra que lhe proposta na medida em que esta j se acha pr-decupada
como que para seu livre uso. Contra o princpio mesmo da obra, ele pode organiz-la
para o palco, ou encontrar um uso dos fragmentos que escape a toda preocupao de
interpretao. Paralelamente ao fragmento, com conotaes da mesma ordem, a palavra
material figura assim em ttulos de espetculos contemporneos Matriau Mde,
Matriau Shakespeare [Material Medeia, Material Shakespeare], significando o desejo
dos criadores de garimpar onde bem lhes aprouver.
A obra fragmentada oferece criao, assim como recepo, uma liberdade
fantstica. Ela contm em si mesma seu prprio veneno, o risco do texto informe e
aberto a todas as correntes de ar, esvaziado de toda substncia.
David Lescot e Jean-Pierre Sarrazac
NTIMO
O advento do ntimo no teatro parece um golpe de fora. O drama absoluto,
segundo Szondi, efetivamente pura relao, e o homem dentro dele evolui no
mundo dos outros. Ora, o ntimo definido como o superlativo do dentro, o interior
do interior, o nvel mais profundo do eu, quer se trate de alcan-lo pessoalmente ou
abrir seu acesso a outro (uma relao ntima).
O discurso na primeira pessoa a forma por excelncia do ntimo: dirio ntimo,
relato pessoal, confisso, correspondncia. No drama, ao contrrio, a representao do
homem na sociedade, e em ao, supe relegar s margens toda expresso no motivada
pela interioridade.
Contudo, a tentao do ntimo atormenta o drama desde suas origens: seria
obviamente ocioso apontar a oscilao perptua, no teatro shakespeariano, entre a
representao do mundo e das foras que o atravessam e a dos sujeitos por sua vez
perpassados pelo mundo e suas pulses , e seria tentador exprimir-se e pensar-se a
partir do interior, o mundo e o sujeito espelhando-se, segundo o princpio barroco da
analogia; o prncipe de Homburg alcana o nvel profundo das pulses liberadas pelo
estado de sonho, mas esse parntese ntimo permanece ligado ao: sonhando, ele no
escuta as ordens que lhe so dirigidas, e essa negligncia se revelar decisiva. Outro
personagem cuja fala, isolada do dilogo, pertence ao mbito do ntimo, Woyzeck
demonstra sua incapacidade em ligar entre si os fragmentos de seu eu, e de seu eu no
mundo, mas seu discurso de certa forma justificado pela observao clnica de que ele
objeto. A presena do ntimo em Kleist e Buchner, mas poderamos citar igualmente
Musset, manifesta-se num modo menor, na filigrama dos acontecimentos e discursos
que derivam da esfera intersubjetiva.
Existe uma certido de nascimento do teatro ntimo, uma legitimao do
interior do interior como objeto de representao que no necessita mais do pretexto
de um drama desenrolando-se principalmente na esfera intersubjetiva; a criao do
Teatro ntimo por Strindberg, em 1907. O teatro ntimo representado numa tenso
fecunda entre o eu e o mundo, entre o eu dramtico e o eu pico, cujas modalidades to
diversas foram caracterizadas e postas em perspectivas no ensaio de Jean-Pierre
Sarrazac, Thtres intimes, que baliza o itinerrio do teatro ntimo desde sua intuio
diderotiana at suas formas contemporneas. No teatro contemporneo, a tenso entre o
eu e o mundo, caracterstica do teatro ntimo, explora formas extremas: a da falncia do
mundo, em que a voz do sujeito continua identificvel fazendo-se ouvir num mundo
desertado ou destrudo (de Beckett a Gregory Motton e ao ltimo Bond); e aquela,
simtrica, da falncia do eu. A partir do que Jean-Pierre Sarrazac chamou de eu errante,
desenvolve-se um teatro de vozes supra ou infrapessoais, em que isso fala do mais
profundo, do mais ntimo, sem que essas vozes sejam sujeitos identificveis num mundo
determinado. Esse o caso de certas peas de Bernard-Marie Kolts ou ainda do teatro
de Sarah Kane, no qual o mundo aparece mais como horizonte mtico da fala do que
como universo de referncia.
Longe de significar a fuga do personagem para fora do mundo, seu retraimento
num casulo intimista, o teatro ntimo abrir o campo para o desnudamento, na faa e nos
silncios que a esburacam, do mais recndito, do no dito, do irrepresentvel, quer se
trate do eu psquico, de seu discurso interior e de sua rememorao (de Strindberg a
Bernhard), ou dos alicerces implcitos das relaes ntimas, familiares ou conjugais (na
esteira de Tchekhov ou ONeill), todos territrios igualmente investidos pela
psicanlise. A inveno dessa ltima coloca em questo a ideia de um acesso fcil, por
introspeco, confisso ou confidncia, ao nvel mais profundo do sujeito. Contudo, se
admitirmos a ideia de que o inconsciente estruturado como linguagem, a forma
dramtica poderia ter vocao para mimetizar o fluxo linguageiro do inconsciente, como
atestam, por exemplo, os textos dramticos e no dramticos de Jon Fosse.
O ntimo no teatro , por fim, um paradoxo para a representao: como dar a ver
o interior na cena, que o espao deixar penetrar o olhar sobre o tablado, dentro da casa,
no interior dos pensamentos, ou ainda do inconsciente de um sujeito? O Teatro ntimo
de Strindberg, onde Ns poderemos, en petit comit,/ Dar vazo ao transbordamento de
nossos coraes, surge, significamente, no fechamento de um sculo que, segundo
Walter Benjamin, procurou mais que qualquer outro a habitao, [...] considerou o
apartamento como um estojo para o homem. O sculo XX ter assim explorado,
aprofundado, variado a prtica do ntimo na cena: os interiores de Antoine, o Hensingor
de Craig inteiramente filtrado pelo olhar crtico de Hamlet, o trabalho radical de Claude
Rgy sobre a relao do espectador com o teatro, que evita os escolhos do intimismo e
da familiaridade, ou o de Matthias Langhoff para preservar a aspirao csmica do
Teatro ntimo, so outras tantas formas dadas ao programa sonhado por Strindberg.
Catherine Treilhou-Balaud
PEA-PAISAGEM
numa conferncia publicada em 1935 que Gertrude Stein, recordando sobre o
processo que a levou a escrever suas primeiras peas, compara a pea de teatro, tal
como ela a compreende, a uma paisagem. O ttulo de sua primeira antologia, Geografia
e peas (1922), j indicava isso.
A concepo steiniana traduz acima de tudo uma distncia tomada em relao
ao como fundamento do drama e, ao mesmo tempo, linearidade sob o signo da qual
se coloca, tradicionalmente, seu desenrolar. Quanto ao: nesse caso, convm ouvir
em primeiro lugar a fbula. Vocs podero, diz ela, contar uma histria, mas no
contem comigo para cont-la: inscrevo a essncia do que aconteceu. Em relao
linearidade: e eis o ponto fundamental. A caracterstica da paisagem, diz ela, estar-
a. Imvel sob nossos olhos. E entendo que sou eu, leitor ou espectador, que cria o
movimento no interior da paisagem e que liga os elementos em presena, uma vez que
tudo est disposto ali para mim minha disposio. Nesse texto, explcita a
comparao com a fotografia e a escultura. implcita, porm essencial, a comparao
com a pintura.
Michel Vinaver voltar a dar noo de pea-paisagem um novo eco, opondo-
a pea-mquina, designando assim dois polos da escrita dramtica. A pea-
mquina aquela na qual a ao progride sob o regime do encadeamento causal. Nela,
reina a linearidade, ao passo que na pea-paisagem, diz ele, a ao progride por repto
aleatrio. Como se circulssemos no interior de uma paisagem, livres para tomar esse
caminho em vez daquele.
A pea-paisagem vinaveriana confere, portanto, imensa amplitude noo
(que em Stein no valia seno para seu teatro), uma vez que para ele recobre um campo
que alinha um grande nmero de obras modernas e contemporneas, de Tchekhov ou
Strindberg a Beckett e Jon Fosse, que no comungam seno o fato de romperem com a
concepo tradicional da ao e instalarem o leitor ou o espectador no cerne de uma
paisagem (humana, social...) que um mundo (maior ou menor) ou uma psique
singular, uma paisagem interior.
Gostaramos de propor a seguinte distino. Se a pea-paisagem vinaveriana
define o outro polo no seio de uma forma dramtica cujo espectro alarga-se
incessantemente, a pea-paisagem steiniana, em sua radicalidade que permanece
intacta, designaria o outro polo da forma dramtica. Em Stein, com efeito, a pea-
paisagem no apenas imagem de uma paisagem. Ela poema e (paradoxalmente)
msica. Sua segunda antologia intitula-se Operas and Plays [peras e peas] (1932).
Atenhamo-nos ao poema. As peas de Gertrude Stein so acima de tudo
concrees linguageiras, que nem sempre preveem a distribuio da fala, e nas quais a
recusa da linearidade manifesta-se por todo um jogo de repeties, variaes, ritmos. O
desafio que elas lanam representao no pode mais ser detectado em termos de
drama ou dramaticidade, mas em termos de material para o palco.
Textos-materiais, as peas-paisagens de Gertrude Stein estavam espera do
teatro de Robert Wilson, o que pudemos observar em seus espetculos muito antes que
ele montasse em 1992 Doctor Faustus Lights the Lights [Doutor Fausto liga a luz]
(pea de 1938). Isso significa que elas so, da mesma forma que uma pea como
Hamlet-mquina de Heiner Muller, textos para o palco, destinados a nele conviver com
outros materiais visuais e sonoros, muito mais do que peas de teatro.
Seja na concepo vinaveriana ou na concepo steiniana, ou em outras ainda a
inventariar ou quem sabe inventar, a pea-paisagem aparece como uma noo nodal na
evoluo presente das formas teatrais, dramticas ou no, ou, mais geralmente, cnicas.
Joseph Danan
TEATRO ESTTICO (ESTATISMO)
A ideia de um teatro esttico, sugerida por Maeterlinck no fim do sculo XIX,
mas j embrionria nos tableaux de Diderot, influencia profundamente a escrita
dramtica moderna e contempornea. Emancipando em diversos graus o drama de sua
acepo aristotlica, o teatro esttico aparece como uma fora capaz de quebrar,
interromper ou ralentar a construo da ao. Em Diderot e Maeterlinck, ele constitui
uma alternativa crtica progresso dramtica, tradicionalmente baseada na dinmica
evolutiva das relaes inter-humanas. Nesse sentido, o teatro esttico estimula o
surgimento de novas modelizaes do tempo dramtico, ao mesmo tempo que abre para
uma reflexo metadramtica: a espera beckettiana ou a petrificao da Histria em
Muller interrogam a possibilidade mesma da ao dramtica e de sua progresso rumo a
um desfecho situado no futuro.
Longe de corresponder, em Maeterlinck, negao de todo movimento, o teatro
esttico induz antes uma procura das expresses possveis de sua renovao. Atento s
foras invisveis, ao mesmo tempo ocultas e psquicas, que reemergem do drama
moderno, Maeterlinck formula efetivamente os princpios de um drama esttico cujas
estruturas fundamentais so a espera e a subordinao do visvel ao invisvel: s vezes
chego a pensar que um velho sentado em sua poltrona, esperando simplesmente sob o
abajur [...], vive, na realidade, uma vida profunda, mais humana e mais vasta que o
amante que estrangula sua amante, o capito que obtm uma vitria ou o esposo que
vinga sua honra. Nesse teatro, que substitui a categoria da ao pela da situao, o
movimento dramtico toma como fonte uma tenso entre a imobilidade fsica das
personagens e sua mobilidade psquica. Os mbitos estticos das peas maeterlinckianas
orientam o espao-tempo dramtico para a explorao da dinmica do inconsciente.
Essa metamorfose da ao inter-humana em movimento psquico caracteriza igualmente
a dramaturgia strindberguiana, sobretudo em Rumo a Damasco e O sonho. O teatro
esttico desdobra-se assim em teatro ntimo, condenando o palco a uma introspeco
que s vezes se revela mortfera. John Gabriel Borkman j colocava em cena dois
cnjuges emparedados em apartamentos distintos: o personagem homnimo da pea de
Ibsen, prisioneiro de sua prpria agonia, termina por se exprimir como se fosse um
morto-vivo. John Gabriel Borkman prefigura nesse sentido os personagens de Sonata de
espectros de Strindberg reunidos para uma ceia ritual que tende ao teatro esttico de
uma verdadeira agonia dramtica.
Essa propenso imobilidade vigora desde a primeira pea de Beckett,
Esperando Godot, cuja ao ameaa esvanecer na espera. Em Fim de partida, a espera
de um fim de contedo indefinido, fim do mundo e fim de partida, parece
corresponder espera de Godot. Esperando e temendo um fim declarado iminente pela
primeira rplica Terminou, terminou, vai terminar, talvez v terminar , os
personagens de Fim de Partida condenam-se imobilidade. Clov, que tenta sem
sucesso partir desde [o seu] nascimento, permanece imvel at o fim da pea,
oferecendo a imagem concreta de um teatro dominado pelo teatro esttico. num modo
mais metafrico, marcado pela recorrncia das imagens de petrificao e glaciao, que
Muller tematiza a impossibilidade de toda progresso dramtica. Em Hamlet-mquina,
a petrificao exprime em primeiro lugar o fracasso da utopia comunista, a imobilizao
da Histria. que o teatro de Muller interroga conjuntamente a possibilidade de um
progresso histrico e a de uma progresso dramtica. As ltimas palavras de Descrio
de imagem, por exemplo, fazem referncia a um furaco congelado, metfora de uma
pea de teatro que substitui a ao pela descrio, e a negao da tempestade do
progresso, que, em Benjamin, impelia o anjo da Histria para o futuro.
Hlne Kuntz e Mireille Losco
PS-DRAMTICO
O ps-dramtico no um estilo, nem um gnero, ou uma esttica. O conceito
rene prticas teatrais mltiplas e dspares cujo ponto comum considerar que nem a
ao nem os personagens, no sentido de caracteres, assim como a coliso dramtica ou
dialtica dos valores, e nem sequer figuras identificveis so necessrias para produzir
teatro (Lehmann). Nesse sentido, o ps-dramtico supera a oposio tradicional entre
pico e dramtico. dramtico todo teatro que pretenda representar o mundo, de
maneira direta ou distanciada, e que coloca o ser humano no centro do dispositivo. Se
Brecht designava o gnero dramtico como um teatro do discurso e da mimese, todas as
experincias picas para substituir a mimesa pela diegese no so, aos olhos do ps-
dramtico, seno uma renovao e consumao do teatro dramtico tradicional: elas
tambm no concebem o teatro seno como representao de um cosmo fictcio.
Nessa perspectiva, as revolues cnicas do sculo XX, no que se refere a boa
parte delas, teriam se inclinado a reforar a forma dramtica a fim de salvar o texto e
sua verdade, quando estes achavam-se ameaados por prticas teatrais tornadas
convencionais. Inversamente, o teatro ps-dramtico reivindica a encenao como
comeo e como ponto de interveno, e no como transcrio de um realidade que lhe
seja exterior (Lehmann). Logo, no lhe necessrio convocar as dimenses
tradicionalmente ligadas ao teatro. Em contrapartida, ele recorre a todas as artes: dana,
canto, msica, pantomima, teatro falado, artes grficas, iluminao, vdeo, imagens
virtuais, hologramas... O objetivo solicitar a imaginao, desencadear associaes,
obter a criao de um mundo de imagens que resista a uma leitura interpretativa e que
no possa ser reduzido a uma metfora unvoca (Heiner Muller). O texto no
excludo desse dispositivo, mas no mais considerado o suporte e o pressuposto da
representao. um elemento entre outros, no mesmo plano que o gestual, o musical, o
visual. Como aponta Hans-Thies Lehmann, o passo para o teatro ps-dramtico dado
quando todos os meios teatrais para alm da linguagem veem-se instalados em p de
igualdade com o texto, ou podem ser sistematicamente pensados sem ele.
O ps-dramtico um apelo autonomia real do teatro em relao ao drama, tal
como fora pressentida e almejada desde o fim do sculo XIX pelos simbolistas e de
mltiplas maneiras em seguida, em Artaud, nos surrealistas, em Gertrude Stein,
Witkiewicz etc., e que no teria chegado maturao efetiva seno nas ltimas dcadas
do sculo XX.
Nesse esprito, podem ser consideradas como do domnio do ps-dramtico, por
diversos motivos, no necessariamente conciliveis, as realizaes de Tadeusz Kantor,
certas peas de Heiner Muller, de Klaus Michael Gruber, os espetculos de teatro
danado de Pina Bausch, as encenaes de Bob Wilson e, mais amplamente, numerosas
formas experimentais que renem artistas de horizontes diversos, preocupados em
suscitar encontros e descobrir elos entre as artes no palco do teatro.
Qual ser a memria desse teatro na ausncia de um texto que, at aqui,
cumprira essa funo? O vdeo? Uma partitura ainda por ser escrita na qual estariam
consignados dana, msica, texto e os mltiplos elementos do espetculo? Talvez o ps-
dramtico venha a ser um teatro sem memria ou cuja memria ser necessariamente
fragmentria.
Jean-Louis Besson