Ler a Bíblia D. Odilo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Ao ler os Lineamenta do próximo Sínodo, que tematizarão a Palavra de Deus, percebi que a realidade central e fontal a partir da qual, dentro da qual e para a qual converge toda a fala do documento é o amor do Deus, Pai de Jesus Cristo, que o mesmo Jesus Cristo anunciou como o Grande e Novo Mandamento do Amor, deixando-o a nós como sua herança na última ceia.

Citation preview

Dom Odilo, paz e bem!

Ao ler os Lineamenta do prximo Snodo, que tematizaro a Palavra de Deus, percebi que a realidade central e fontal a partir da qual, dentro da qual e para a qual converge toda a fala do documento o amor do Deus, Pai de Jesus Cristo, que o mesmo Jesus Cristo anunciou como o Grande e Novo Mandamento do Amor, deixando-o a ns como sua herana na ltima ceia.

Veja-se, por exemplo, o n. 1 que diz: Palavra de verdade e de amor para todos os homens. Ou o n. 10: Deus manifesta-se de forma to gratuita quanto direta para estabelecer uma relao inter-pessoal de verdade e de amor com o homem e com o mundo que criou. Ou ainda o n. 30 Revelao comunho de amor...Como o documento (Lineamenta) muito vasto e profundo, pode haver disperso e fragmentao nas solues que sero oferecidas. De repente, sai do Snodo algo como uma colcha de retalhos! Para evitar isso, seria importante fazer brotar as sugestes e propostas do Amor de Deus, como descrito de modo to belo e grandiosos na Dei Verbum: fio condutor que coordena, d sentido unitrio, e dinmica de compreenso e ao. De forma imperfeita e provisria, experimentei fazer essa ligao. O que me sugeriu tal tentativa foi a anotao de um aluno de teologia que dizia: A Bblia no passa de um produto da ao social de um povo, em cuja histria Deus, como criador e doador de todo o saber e de todas as coisas, se torna presente e se nos faz conhecer. O que segue cheio de imperfeio e lacunas, mas insinua mais ou menos em que estilo se poderia encaminhar a tentativa de unir as diversas interpretaes, sem eliminar ou ignorar outras interpretaes.

Moo:

Ter como princpio exegtico ou a condio da possibilidade da leitura da palavra de Deus a Revelao de que o amor de Deus (genitivo subjetivo = o amor cujo sujeito e agente Deus; e o amor do ser humano como ato humano optimal, que tem por objeto a Deus, portanto, o amor de Deus como genitivo objetivo como resposta e correspondncia a esse amor primeiro que vem de Deus) o princpio, fonte de toda a dinmica e iluminao de orientao segura de nossas aes crists, quer na vida interior, na espiritualidade, mstica, quer na ao pastoral, nos engajamentos sociais, polticos e culturais, conforme a Palavra de Deus.

Reflexo-exemplo para apoiar a nossa mooDistraidamente podemos estar instalados na compreenso de que povo mera aglomerao de gente, massa, coletividade ou agrupamento ideolgico. Ser povo, porm, conquista de um empenho. uma qualificao humana. Povo encontro de seres humanos que acordaram para a questo da essncia do seu prprio ser e a tematizaram. Ser povo uma experincia compartilhada, a partir da qual e na qual, cada qual, no pleno exerccio de sua capacidade de compreender, saber e querer vale dizer, na sua plena liberdade d o melhor de si como oferenda, como contribuio livre e generosa, para formar uma pertena mtua do mesmo destinar-se, ou seja, da mesma histria.

Povo mutiro de combate ao ensimesmamento egocntrico, escravizao do apego ao que no o prprio da grandeza, beleza e nobreza do ser humano. O ser destinado a esta qualificao se chama ser-pessoa.

Povo, portanto, na sua caracterizao do que seja comum, deve ser diferenciado de coletividade, massa, ajuntamento de indivduos, agrupamentos ideolgicos etc.

Essa qualificao ou esse modo de ser explicado como comunidade ou como o popular (os gregos diriam democracia = fora, vigor do povo) que forja o que, de modo muito vago, indeterminado e geral, denominamos de social. Forja os scios, companheiros, irmos e irms de uma mesma causa nobre da humanidade (da essncia do ser humano). O modo de ser, e a seqncia do proceder desse modo de ser, portanto, o mtodo na formao da comunidade do povo, o do encontro, o caminhar aberto ao novo e ao inesperado.A mania de caracterizar a comunidade no a partir do modo de ser humano universal, mas a partir da quantificao numrica, reduz o fenmeno humano a coisas simplesmente ocorrentes. Este mtodo vlido quando se quer averiguar a quantidade numrica de um agrupamento humano. Mas o ser do ser humano, nesse caso, no vem fala, pois o que ali tematizado no o ser humano enquanto humano, mas o ente humano enquanto enumervel como um outro ente qualquer.

Para entender, portanto, a Bblia, necessrio ter a mente de quem pertence ao povo do qual surgiu, cresceu e se consumou a Bblia. Estudar o fruto de um povo, tendo como fundo e como princpio a dinmica histrica da gnese, do crescimento e destinar-se da liberdade e criatividade de uma comunidade humana, no estudar um fato qualquer, simplesmente dado como um objeto e uma coisa, mas sim entrar na dinmica e na implicncia de um feito, cujas implicaes ontolgico-existenciais exigem muito mais e de outro modo do que a simples impostao da cincia historiogrfica. Uma das exigncias, a mais importante e decisiva, a de repensar a essncia da Histria e estudar como deveria ser a cientificidade prpria da cincia cujo positum tem o modo de ser da temporalidade da existncia como acontecer da facticidade.

Em que consiste o enfoque prprio do ser cristo ao ler a bblia? E como essa leitura a partir do ser cristo est em referncia a outros enfoques provenientes das cincias e de outras mundividncias?

A anotao do aluno citada fica muito rasa e se torna insuficiente se no nos dermos conta de que nos movemos no mundo do nosso saber usual ao estudarmos e ao transmitirmos o que sabemos aos outros. Um exemplo de saber usual: o sujeito e o agente do livro o autor; o livro expresso dos pensamentos, vivncias e planos do autor; que o autor seja indivduo, coletividade, povo, pode trazer implicaes de detalhes e complexidade maior ou menor, mas na estruturao do que seja uma causalidade, a coisa permanece a mesma. Dizemos: o autor da Bblia o povo de Israel e a primitiva comunidade que seguiu a Jesus. Deus jamais autor imediato do livro. Deus est no livro presente como inspirador do que se relata no livro. Como distinguir, discernir o que da autoria do sujeito homem e agente de um livro, usando tudo que estava ao seu redor, cultura, lngua, mundividncias etc. etc. e a autoria de Deus que fala atravs do autor sagrado? O processo de escrever um livro, mesmo que ele seja tido ou se denomine divino, inspirado por Deus, revelado, o mesmo do processo de se escrever um livro que no sagrado nem inspirado? A inspirao algo como mediunidade!? Algo como psicografia!?

Se colocarmos essas perguntas a ns mesmos, aos biblistas ou s autoridades da Igreja, em geral no obtemos maiores explicaes ou mais do que usualmente sabemos dessas coisas. E surge ento uma questo: por que declaramos depois da leitura pblica da Bblia, principalmente na liturgia, Palavra de Deus? permitido, possvel, necessrio, recomendado para a f crist, i. , para o cristo, para o ser-humano, para o homem e a mulher da f, deixar o nosso saber acerca dessas coisas fundamentais do nosso saber cristo assim sem determinao, vago, para no dizer confuso? Ou temos tudo isso bem claro na f?

A F ATO IRRACIONAL DE CONFIANA E ENTREGA AO OUTRO?

No mtodo historiogrfico existe um saber que pode ser confundido com a f: o saber baseado no testemunho de algum que averiguou diretamente os fatos. Isto porque se trata de acreditar no que um outro me relata, confiando na autenticidade do seu relato. Como nesse acreditar, h um momento de confiana, a f passa a ser considerada confiana. E se carrego a confiana com um ato no racional, de densidade emocional e de sentimento, ento se deixa de lado o carter do saber ou conhecimento adquirido atravs de concluso, de ilao, ao lado do saber ou conhecimento atravs da averiguao imediato-emprica, se deixa tudo isso e, aos poucos, a f se transforma num ato irracional de total confiana e entrega ao outro.

Outra definio a f como adeso de identificao com a outra pessoa. Visto que a f, entendida como confiana no relato de outro, pode esquecer que (a f) conhecimento ou saber e carregar a confiabilidade com o aspecto de emoo e sentimento de confiar-se, de entregar-se ao outro, deve ser distinguida da f de confiana-emocional, f como adeso, que preferimos chamar de pertena.

A F ENTENDIDA COMO PERTENA

Definio: a f um saber ou conhecimento todo prprio no seu ser que tem a sua evidncia a partir da experincia da pertena. Segue a tentativa de deixar bem ntida a compreenso dessa definio, para evitar que seja confundida com qualquer das compreenses acima mencionadas.

Trata-se de:

1. Saber ou conhecimento todo prprio no seu ser a partir da experincia. Usualmente, quando falamos dos atos de conhecimento ou de saber, logo os classificamos no rol da razo ou do racional, distinguindo-os dos atos de volio e de sentimento. No fundo desse modo de impostar o problema, est pressuposto um ajuizamento. Esse ajuizamento j colocou um posicionamento da compreenso do ser-homem com sendo: homem como sujeito-eu (ns), agenciador de suas faculdades (razo, vontade e sentimento) que age (agente) atravs ou por meio dessas faculdades, conhecendo, querendo e sentindo sobre um objeto. Esse esquema mental pr-suposto acerca do homem est expresso no slogan muito usado nas nossas reunies pastorais: ver-julgar-agir. Sem entrarmos em pormenores desse esquema e pressuposio antropolgica que domina todos os nossos atos, decisivo percebermos que essa pr-suposio bitola e delimita a nossa percepo, excluindo todos os atos que no sejam juzos, que no sejam julgar, como sendo inexatos, imperfeitos, incertos, no cientficos, digamos, irracionais. E isso de tal modo que o prprio ver considerado a partir do julgar, como um modo de saber e conhecer racional ainda no suficientemente elaborado, incapaz, por isso, de ter a excelncia dos juzos. Desta forma, surge uma imensa rea de realidades e modos de ser, assim chamada pr-cientfica ou pr-predicativa, que apenas domnio das opinies, mas no da verdade, entendida como da certeza de controle e clculo fundamentado na assegurao do agenciar-se do sujeito-eu (ns). Um dos trabalhos de um snodo sobre a palavra seria examinar se uma pressuposio, como a acima insinuada, no est no fundo de todos os nossos saberes do tipo cientfico, seja das cincias naturais, seja das cincias humanas.

2. Isso significa que, a imensa rea da realidade pr-cientfica que, num modo geral e vago, denominamos de cotidiano, de popular, de irracional, de sentimental, de religiosa, espiritual, de prtica etc. etc. no vista no seu modo prprio de ser e o homem educado, treinado, sim adestrado para esse modo de bitola, perde aos poucos o sensorial para realmente ver e perceber, de modo que no mais consegue co-nascer (conhecimento, conatre) com as realizaes da realidade. No mais, consegue ser pensar, a saber, estar na suspenso atnita da ad-mirao e do cuidado do deixar ser o ente no seu ser e pensar (na acepo do aquecer, colocando a mo quente sobre a ferida) as defasagens e os desvios de um nascer, crescer e perfazer-se do desvelamento do ser. Com outras palavras, a imensa rea da assim chamada realidade pr-cientfica tem o seu modo de ser e de se perfazer, de se mostrar, ela mesma, como a prpria revelao do ser. E o homem o pastor, aquele que cuida de e fomenta, alimenta a possibilidade desse aparecer da realidade concreta e perfeita (per-fazida) na plenitude do seu ser, na sua totalidade chamada imensido, profundidade e liberdade de ser. A grande Tradio do Ocidente chamou essa abertura prpria do Homem em diferentes ecloses de pocas, de esprito, nus, logos (gregos); ratio, animus, spiritus, intellectus, mens (medievais); cogitatio, penso, logo, sou (Descartes), sprit de gometrie e sprit de finesse (Pascal), Handlung, Tat, Wissenschaft, Geist (idealistas alemes), vontade para o poder (Nietzsche); trabalho (Marx e modernos) etc. sempre de novo em diferentes nveis de amplido e profundidade e tambm de defasagens de fixaes e bitolamentos. E o cristianismo chamou essa abertura prpria do homem no seu ser e deixar ser de amor (Caritas). O cristianismo entendeu o amor no como um dos atos do sujeito e agente homem, no agenciamento de suas faculdades razo, vontade e sentimento, mas como a aberta do homem, como o privilgio do ser chamado humano, imagem e semelhana de Deus-Encarnado, que no outra coisa do que a fonte, o princpio da ecloso de todo um mundo inteiramente novo, do novo cu e de nova terra.

3. Essa abertura denominada pelo cristianismo de amor de Deus e do prximo no corresponde compreenso usual, na qual separamos razo, volio, sentimento e agir como trs elementos distintos e separados, muitas vezes em contraposio entre si (chega de tanto saber racional, necessrio, antes, sentir e agir etc.) mas , ao mesmo tempo: compreender; querer o que se compreende; e fazer o que se compreendeu e se quis = amar. Amar aqui no um dos atos humanos, relacionado faculdade de sentimento e de volio, mas sim, primordial e primeiramente, o ato do ser humano, a vigncia da sua essncia, i. , do seu ser: amar o mesmo que pensar, querer, agir, i. , ser humano.

4. Ao definirmos no incio a f como um conhecimento ou um saber todo prprio que tem a sua evidncia a partir da experincia da pertena, tentamos acentuar que a f um conhecimento (leia-se: com-nascimento), um saber (leia-se: sabor, sabedoria) todo prprio, cuja evidncia no vem do projeto de um sujeito, dentro e a partir do inter-esse de agenciamento do autoasseguramento do seu eu, mas a partir da evidncia da experincia da pertena. Esclareamos melhor os termos evidncia, experincia e pertena, contrastando-os com os termos experimentao ou experimento das cincias.

5. Evidncia vem do verbo latino evideri. Compe-se de e + videri. E ou ex significa: saindo de dentro para fora, vindo de dentro, a partir do seu fundo originrio, a partir de si e no mdium do prprio de si, limpidamente. Videri infinitivo da voz passiva do videre, ver. Essa forma da voz passiva, no entanto, esconde aquela voz que, nos verbos gregos, no era nem ativa nem passiva, mas se denominava medial, e que, em portugus, se formula com o reflexivo: se ver. Na voz ativa, a ao passa para o objeto da ao, atingindo-o. Na voz passiva, se recebe a ao do outro, sendo atingido e afetado. Tanto no ativo como no passivo, a ao do verbo transita para o objeto. Quando o verbo, na sua atuao, no tem o modo de ser de uma ao que transita para o objeto da sua ao, quer ativa quer passivamente, temos uma ao intransitiva. A ao contm a sua dinmica nela mesma, se adensa sem sair de si, tornando-se cada vez mais ela mesma, ela prpria, tornando-se ela mesma mdium, meio ambiente de si mesma: a voz medial. Assim, videri no sentido da voz medial, no significa ser visto nem se ver, mas incandescer, mostrar-se no seu prprio, manifestar-se a partir de si e no mdium do seu esplendor. Esse modo de ser da manifestao, da evidenciao, do esplender, do transluzir o prprio do saber originrio, do com-nascimento. Deixar ser esse vir luz, esse vir fala a partir de si, nele mesmo, de cada ente nele mesmo, o que denominamos de experincia.

6. Experincia: a palavra vem do verbo latino experiri, que se compe de ex + periri. Quanto ao ex voz medial, cf. n. 5 acima. Periri significa: pr-se prova, tentar, expor-se ao perigo, arriscar, aprender a conhecer, estar em plena ateno. No periri o per conota atravs de, ir atravs de, do incio at o fim, atravessando; penetrar a fundo at o fundo abissal, ser toda ateno na ausculta do que der e vier, na espera do inesperado, sem nenhuma pr-tenso de uma expectativa preestabelecida, inteiramente na aberta, tinindo no inter-esse da recepo obediente. Um modo de caminhar-se e se encaminhar assim se chama, em alemo, Er-fahren, onde Er significa: originrio, e fahren, ir, caminhar, viajar. Trata-se do modo de ser de uma caminhada, na qual, na medida em que se caminha, na deciso de perfazer-se, crescer e se tornar na caminhada, se vai assimilando, como momentos de transformao e crescimento, tudo que vem ao encontro, abrindo-se para um ser que o conascimento na realizao da realidade, enquanto se vai. o modo de ser da dinmica do destinar-se ao prprio do seu ser que denominamos de histria. nesse modo de se encaminhar e se perfazer no destinar-se do seu ser que surge, cresce e se consuma o que, logo no incio, denominamos de povo. Esse modo de ser bem diferente do modo de ser do experimento, da experimentao, do experimental que nas cincias, principalmente nas cincias naturais, denominamos de mtodo ou meio instrumento da aquisio do saber exato e objetivo. Aqui, o homem se faz sujeito e agente de suas aes, como regente do agenciamento do seu inter-esse e lana sobre a realidade as condies da possibilidade do ser e do aparecer dos entes como objetos do projeto, enquanto processados para se tornarem afins a esse enquadramento, como comprovao e verificao da validade do projeto lanado. Fazer experimento significa ento averiguar se a hiptese lanada a partir de um inter-esse como projeto confirmada ou negada em contacto com a realidade. Percebemos sem mais que aqui se trata de dois modos diferentes da abordagem da realidade. Rubem Alves diz que a cincia uma rede de buracos muito largos, lanada ao rio da realidade, mas que, por ter buracos grandes, s pega peixes grandes, e pensa que com isso pesca toda a realidade.

7. Pertena: pertencer aqui no significa aquele tipo de adeso, que as ideologias costumam programar e propagar sob o slogan: Vista a camisa do nosso partido etc. Aqui, conforme a definio de f acima colocada, pertena o que nasce, cresce e se consuma como uma obra perfazida, i. , per-feita de uma longa caminhada a modo da histria, acima explicitada.

Esses arrazoados levam a desconfiar se o fundo dos textos da Bblia no pressupe a f como nascer, crescer e se consumar nessa aberta do mundo chamada amor de Deus e do prximo: amai-vos uns aos outros como Eu (Deus Encarnado) vos amei. Se assim o for, ento o princpio exegtico dos textos da Bblia seria o amor, entendido nesse modo todo prprio de conhecimento, do saber (sabor) todo prprio do co-nascimento no modo de ser do Deus Encarnado: amar.