Leonardo SÁ. Os Filhos Do Estado

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    Os filhos do estado

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    Ri o de Ja ne ir o2002

    Ncleo deAntropologiada Poltica

    NuA P

    LEONARDODAMASCENODES

    Os filhos do estadoAuto-imagem e disciplina

    na formao dos oficiais daPolcia Militar do Cear

    Quinta da Boa Vista s/n So CristvoRio de Janeiro RJ CEP 20940-040Tel.: (21) 2568 9642 Fax: (21) 2254 6695E-mail: [email protected]

    Publicao realizada com recursos doPRONEX/CNPqMinistrio da Cincia e TecnologiaConselho Nacional de Desenvolvimento Cientco e TecnolgicoPrograma de Apoio a Ncleos de Excelncia

    A coleo Antropologia da Poltica coordenada por Moacir G. S. Palmeira, Mariza

    G. S. Peirano, Csar Barreira e Jos Sergio Leite Lopes e apresenta as seguintespublicaes:

    1 - A HONRA DA POLTICA Decoro parlamentar e cassao de mandato noCongresso Nacional (1949-1994), de Carla Teixeira2 - CHUVA DE PAPIS Ritos e smbolos de campanhas eleitorais no Brasil, deIrlysBarreira3 - CRIMES POR ENCOMENDA Violncia e pistolagem no cenrio brasileiro, deCsar Barreira4 - EM NOME DAS BASES Poltica, favor e dependncia pessoal, deMarcosOtvio Bezerra5 - FAZENDO A LUTA Sociabilidade, falas e rituais na construo de organizaescamponesas, deJohn Cunha Comerford6 - CARISMA, SOCIEDADE E POLTICA Novas linguagens do religioso e dopoltico, deJulia Miranda7 - ALGUMA ANTROPOLOGIA, deMarcio Goldman8 - ELEIES E REPRESENTAO NO RIO DE JANEIRO, deKarina Kuschnir9 - A MARCHA NACIONAL DOS SEM-TERRA Um estudo sobre a fabricao dosocial, de Christine de Alencar Chaves10 - MULHERES QUE MATAM Universo imaginrio do crime no feminino, deRosemary de Oliveira Almeida

    11 - EM NOME DE QUEM? Recursos sociais no recrutamento de elites polticas, deOdaci Luiz Coradini12 - O DITO E O FEITO Ensaios de antropologia dos rituais, de Mariza Peirano13 - NO BICO DA CEGONHA Histrias de adoo e da adoo internacional noBrasil, deDomingos Abreu14 - DIREITO LEGAL E INSULTO MORAL Dilemas da cidadania no Brasil, Quebece EUA, deLus R. Cardoso de Oliveira15 - OS FILHOS DO ESTADO Auto-imagem e disciplina na formao dos ociaisda Polcia Militar do Cear, de Leonardo Damasceno de S16 - OLIVEIRA VIANNA De Saquarema Alameda So Boaventura, 41 - Niteri.O autor, os livros, a obra, de Luiz de Castro Faria

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    54 OSFILHOSDOESTADO Copyright 2002, Leonardo Damasceno de S

    Direitos cedidos para esta edio DUMARDISTRIBUIDORADEPUBLICAESLTDA.

    www.relumedumara.com.brTravessa Juraci, 37 Penha Circular

    21020-220 Rio de Janeiro, RJTel.: (21) 2564 6869 Fax : (21) 2590 0135

    E-mail: [email protected]

    Copidesquengela Pessoa

    Editorao

    Dilmo Milheiros

    CapaSimone Villas-Boas

    Apoio

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    S, Leonardo Damasceno deOs lhos do Estado : auto-imagem e disciplina na formao dos

    ociais da Polcia Militar do Cear / Leonardo Damasceno de S. Rio deJaneiro : Relume Dumar : Ncleo de Antropologia da Poltica/UFRJ, 2002

    . (Coleo Antropologia da poltica ; 15)

    Inclui bibliograaISBN 85-7316-289-9

    1. Polcia Militar Cear. 2. Policiais militares Formao Cear. I.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ncleo de Antropologia da Poltica.II. Ttulo. III. Ttulo: Auto-imagem e disciplina na formao dos ociais daPolcia Militar do Cear. IV. Srie.

    CDD 355.34CDU 355.511.6

    Todos os direitos reservados. A reproduo no-autorizadadesta publicao, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui

    violao da Lei n 5.988.

    s113f

    02-0865

    AGRADECIMENTOS

    Aprender a aprender envolve muitos esforos coletivos e trocas humanas. Semos arquiplagos pelos quais nos enredamos nessa empreitada, o prprio caminhoseria vazio e estreito. Mais difcil seria ganhar sentido para a vida, cuja nica

    pretenso querer-se signicativa, sem esquecer, obviamente, dos suportesvitais, cuja organizao dos recursos e rotinas nos ajudam a sobreviver comalguma previsibilidade.

    Deste modo, registro minha gratido com os ambientes criativos, ondetenho tido o prazer de estudar. Certamente, o Programa de Ps-Graduao emSociologia da Universidade Federal do Cear, onde desenvolvi mestrado, eo Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, onde estou fazendo doutoramento, oferecem aos seus alunos mais doque suportes institucionais de inegvel competncia tcnica e qualidade aca-dmica. Brindam-nos, sobretudo, com a possibilidade de nos apaixonar peloque fazemos. Participar dos debates nos cursos desses programas foi e conti-nua sendo um exerccio fascinante. A dedicao e a pacincia com as quais os

    professores nos ensinam a caminhar rendem frutos para a formao de todauma vida prossional. Tive enorme proveito e prazer em fazer cursos nos dois

    programas com Ismael Pordeus , Irlys Barreira, Maria Auxiliadora Lemenhe,Lcio Oliveira Costilla, Linda Gondim, Csar Barreira, Manfredo Arajo deOliveira, Marcio Goldman, Federico Neiburg, Marcos Otvio Bezerra, LygiaSigaud, Amir Geiger e Otvio Velho.

    Csar Barreira, alm de orientar a dissertao de mestrado da qual parti paraa elaborao deste livro, muito me honra com sua amizade e com o privilgiode compor, desde 1993, a equipe do Laboratrio de Estudos da Violncia (LEV--UFC), onde, sob sua coordenao, fui iniciado no ofcio. Participei de uma boaleva de levianos juntamente com Diocleide, Domingos, Gil, Rosemeire,Rosngela e Janana, com quem muito aprendi e me diverti. Quero agradecer emespecial Diocleide, por haver emprestado seus talentos de etngrafa para cobrir

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    em parceria a cerimnia de formatura descrita no ltimo captulo deste livro.O rigor e a generosidade da banca examinadora de minha dissertao de

    mestrado foram inestimveis. Neste sentido, agradeo s professoras BeatrizHeredia (PPGSA-UFRJ) e Glria Digenes (PPGS-UFC) pelas crticas, suges-tes e, principalmente, pelos incentivos que me ajudaram em muito a querercontinuar na peleja.

    Agradeo aos professores Moacir Palmeira, com quem estou iniciandouma nova e rica empreitada, Mariza Peirano, Jos Srgio Leite Lopes e CsarBarreira, por incentivarem e viabilizarem esta publicao atravs do Ncleode Antropologia da Poltica (Nuap).

    Sem a pacincia e o apoio dos cadetes e dos ociais da Polcia Militar doCear, com quem entabulei relaes e conversas , este livro no teria sido poss-vel. Agradeo a eles por isso e espero no ter distorcido demais , ao meu favor,as informaes fornecidas por eles sobre suas vidas prossionais e pessoais.Expresso o muito obrigado pela hospitalidade.

    Dedico este livro as minhas avs, Josefa, dos Inhamuns, e Antnia, doCariri, meus sertes e minhas serras.

    Aos arquiplagos, o prazer da navegao certeira pelos mares da im-preciso...

    SUMRIO

    INTRODUO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

    CAPTULO1Civis e militares: a construo de um problema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

    CAPTULO2No teatro de operaes: entre o dilogo e a desconana . . . . . . . . . . . . 25

    CAPTULO3Sagrada unidade: concepes, valores e espao discipl inar . . . . . . . . . . . 53

    CAPTULO4O mundo gira e o cadete se vira: normatividade e vida cotidiana . . . . . . . 87

    CAPTULO5Batismo das espadas: rituais de poder e cerimnia de formatura . . . . . . . 119

    BIBLIOGRAFIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

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    98 OSFILHOSDOESTADOINTRODUO

    Neste livro, busco oferecer uma interpretao sobre a produo social do o-cial da Polcia Militar do Cear (PMCE) a partir do contexto especco de suaformao bsica no Curso de Formao de Ociais (CFO) da Academia dePolcia Militar General Edgard Fac (APMGEF). Tento esboar uma leiturasobre o signicado da captura e da adeso social de um pequeno grupo de

    jovens pr-universitrios, recrutados , anualmente, pela Polcia Militar (PM)em parceria com o concurso do vestibular da Universidade Estadual do Cear(UECE), para tornarem-se aprendizes de ociais durante trs anos escolaresem regime de semi-internamento. Destarte, a exposio se desenrola na formade uma descrio da transmisso do equipamento conceitual, dos valores e dasdisposies dos ociais da PMCE para os seus netos. A experincia socialde ser cadete da PMCE, ou melhor, as interpretaes que me proponho nestelivro, apoiado nas representaes dos meus interlocutores cadetes e ex-cadetessobre suas experincias primeiras na corporao, balizadas pelas minhas ob-servaes desse campo de experincias, parecem-me fornecer uma boa imagem

    para anunciar a tarefa e o objeto propostos.Um objetivo mais geral, subjacente ao esforo especco e particular deste

    trabalho, o de empreender esforos de compreenso dos cdigos de sentimentoe conduta alm dos valores sociais dos agentes de vigilncia e controle social,tendo em vista a problemtica das concepes e prticas polticas dos agentesinseridos no campo administrativo do poder estatal. Fazer que uma antropologiada poltica possa enfrentar o difcil acesso s categorias e prticas de poder dosagentes administrativos do circuito justia-priso-polcia, cujas autodenies

    passam pela noo nativa de se acreditarem como desprovidos de vocaopoltica, o que me leva ao questionamento sobre o modo como ta is agentespensam o exerccio do poder e instauram os limites entre as razes de Estadoe as negociaes categorizadas como propriamente polticas sobre o controledessas razes com todos os recursos nele implicados.

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    A proposta mais ampla de estudar as formas de insero e atuao dospoliciais militares no campo do poder, com suas interfaces com o campo dapoltica propriamente dito, parece passar pelo exame da converso de compe-tncias sociais especcas em reconhecimento social mais amplo, ou seja, aconstruo da representao pblica dos agentes executivos da violncia fsica

    passaria por uma srie de estratgias simblicas de armao e negao de seupertencimento institucional, de sua trajetria e de suas experincias, conectadasao universo da Polcia Militar (cf. Barreira, 1998). Como indica Bezerra (1998),a atuao poltica dos prossionais da poltica pode ser pensada, tambm, deacordo com seus vnculos regionais e corporativos (p. 5).

    Desse modo, estratgias simblicas de insero e atuao poltica se dirigema vrios planos das relaes sociais concretas dos agentes policiais militares. Oser policial militar implicaria em especicidades signicativas representadasnos dilemas das formas de insero e de atividade poltica das pessoas egres-sas do militarismo e ingressas na poltica dos polticos prossionais, porexemplo. Temtica no explorada diretamente neste livro, mas para a qual ele

    busca ser uma abertura, porque tais estratgias s imblicas parecem envolverou pressupor como horizonte de sentido certas reicaes a partir de noes eidias sobre critrios lgicos e coerentes na tarefa denida de preencherespaos, com seus locais de risco, inimigos, correntes migratrias,anonimato e violadores das leis, mobilidade, moral da tropa e unidade,violncia, rea, setor, posto e policiamento, claros no efetivo eclaros nos espaos, rua, quartel, bairros nobres e periferia, cidadode bem e vagabundo, capital e interior, policiamento comunitrio epoliciamento ostensivo, enm uma srie de categorias morais, metforas es-

    paciais e imagens do mundo social e tico que, se relacionadas, podem oferecerum modelo provisrio dos modos de pensamento e sentimento dos policiaismilitares, segundo o qual se pode antever o processo de constituio de umdiscurso poltico despolitizado, para usar uma expresso de Pierre Bourdieu(1996, p. 121) que me parece oportuna, como hiptese de trabalho.

    Espero ao apresentar neste livro aspectos das formas de classicaopelas quais os policiais militares criam prescries prticas, autodenem suasatividades, recortam o mundo social com suas vises e divises poder con-tribuir para uma discusso mais ampla sobre a eccia mgica das concepes

    polticas e prticas de poder dos agentes de vigilncia e controle social, emespecial, sobre a construo dos limites segundo os quais so institudos os lu-gares do poder, os centros de autoridade, os vazios, as periferias e sua populaode suspeitos a partir das prticas divisoras, disciplinares e, em largussimamedida, extrajurdicas, que tornam o policiamento do cotidiano da sociedade

    brasileira um problema poltico da mais alta importncia.Porm, neste livro, essas questes aparecem como pano de fundo da

    descrio da vida dos cadetes da PM. De certo modo, foram suscitadas pelainvestigao do universo dos ociais, a partir dos problemas da auto-imageme da disciplinarizao dos futuros ociais da Polcia Militar.

    No primeiro captulo, o leitor poder se inteirar sobre os autores, pro-blemas e abordagens conceituais que guiaram a construo do objeto tericoda pesquisa. Como a anlise das normas, prticas, representaes e valoresdo universo pesquisado foi conduzida e baseada em uma pesquisa empricadesenvolvida entre setembro de 1997 e junho de 1999, envolvendo dados efontes heterogneas, forneo, no segundo captulo, uma discusso da etapade observao participante no quartel da Academia de Polcia Militar e tento

    problematizar as condies do trabalho de campo com policiais militares. Noterceiro captulo, so abordadas as concepes e valores ligados ao espaodisciplinar da Academia de Polcia Militar, tendo como referncia a descriodo suporte arquitetnico da Escola. No quarto captulo, focalizo a questo danormalizao da conduta dos cadetes na vida cotidiana da Academia. No ltimocaptulo, tento articular a relao entre os rituais de poder cotidianos implica-dos na formao dos ociais, com a cerimnia de formatura dos cadetes, quemarca a sada da Escola.

    Em seguida, apresento, sumariamente, algumas caractersticas do materialcoletado, sobre o qual constru minhas leituras.

    A documentao

    O material coletado durante a investigao composto dos seguintes ele-mentos: a) entrevistas gravadas individualmente com dois ociais pertencentesaos quadros dirigentes da Academia (aproximadamente duas horas e meia degravao para as duas); b) entrevistas individuais gravadas com seis cadetes doterceiro e do segundo ano do CFO (aproximadamente 12 horas de gravao nototal); c) entrevistas coletivas com 20 cadetes divididos em dois grupos, sendoum grupo exclusivamente de cadetes do segundo ano e outro formado por 8cadetes do terceiro ano e 2 do primeiro ano (aproximadamente quatro horasde gravao para as duas); d) entrevistas anotadas com um coronel que no

    pertence equipe dirigente da Academia (por telefone); com o mesmo coronelem sua residncia (aproximadamente trs horas para as duas); com o coman-dante da Academia, com o seu sucessor e com o subcomandante, enquantoassumia interinamente a funo na ausncia do titular (aproximadamente umahora e meia). Coletivamente com uma turma de 30 capites em sala de aula

    INTRODUO

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    (aproximadamente 30 minutos); e) conversas informais e observao diretado cotidiano do universo pesquisado, implicando a maioria dos indivduos jreferidos pelas entrevistas gravadas); f) editais de seleo para o CFO Editaln. 003/98-DE para o CFO/99 e Edital n. 018/94-DE para o CFO/95; g) Re-gulamento Disciplinar da Polcia Militar do Cear Decreto n. 14.209, de 19de dezembro de 1980; h)Informativo do Cadete. Documento distribudo paraos cadetes em 1998, contendo informaes consideradas muito importantes(obrigatrias) para a orientao do corpo discente na Academia. Trata-se,

    portanto, de um documento para orientao interna da vida na instituio; i)Caderno de Orientaes. Documento similar ao anterior, distribudo para oscadetes em 1999, contendo uma verso atualizada das Normas Gerais de Ao(NGA), cdigo escrito central para a vida social na Academia; j) calendriosescolares relativos s atividades dos anos de 1998 e 1999; l) como de praxe,meu dirio de campo, ao qual acrescentei uma ta de vdeo com a gravaoda Formatura de 1998 com as observaes da pesquisadora Diocleide FerreiraLima, que realizou o registro, em vdeo, da cerimnia, alm das indicaes domeu orientador, Csar Barreira, resultantes de suas observaes diretas do uni-verso da Academia de Polcia Militar. Tais contribuies consistiram em fontesimportantes para a construo da minha percepo do objeto, principalmente noque tange s atitudes corporais dos militares (Diocleide) e etiqueta social dosociais (Csar). Se z bom uso ou no do que eles me disseram, isso de minhainteira responsabilidade, pois o que me ofereceram era certamente de muito

    boa qualidade; m) as monograas do Curso de Aperfeioamento de Ociais(CAO) e do Curso Superior de Polcia (CSP). So trabalhos produzidos pelosociais e constituem uma fonte muito rica de informaes e de acesso aos seusmodos de pensar, s vezes at mais interessantes do que entrevistas, porque,nessas monograas, os autores escrevem quase sempre a partir de suas longasexperincias de atividade policial militar e o pblico leitor desses trabalhos estainda muito restrito aos membros dos quadros de ociais da instituio, o quelhes confere um valor especial, diferente de um artigo ou trabalho de um ocialescrito para os jornais de grande circulao, voltados para o mundo civil (ver alistagem das monograas consultadas ao nal das referncias bibliogrcas);n)Revista Alvorada. Edio comemorativa da APMGEF sobre os aspirantes de1998, sob o ttulo Bacharis em segurana pblica: terceira gerao.

    CAPTULO1

    Civis e militares:a construo de um problema

    Carreira no sentido ordinrio sinnimo de ocupao ou prosso, encer-rando geralmente a idia de um elevado grau de estabilidade prossional, otrabalho de uma vida. No sentido mais detalhado, o termo pode designar asrie de ajustamentos por que passa o indivduo para adaptar-se s instituies,s organizaes formais e s relaes sociais informais em que sua ocupaoo envolve (Miranda Netto et al., 1986: 154). Nestes dois sentidos comple-mentares, o popular e o tcnico, seguir uma carreira prossional pode ser umamaneira importante de prover de signicado a vida em nossa sociedade. Ser

    parte do universo social de uma corporao prossional acaba por oferecer umafonte mais ou menos duradoura de valor estatussocial, satisfazendo assim odesejo socialmente agenciado, do indivduo e seus pares, de perseguir umavida signicativa.

    De fato, do ponto de vista mais geral da teoria social, quanto mais os gru-pos de parentesco, como famlias e cls, perderam sua funo como portadoresda identidade de pessoas que se prolonga para alm da morte, mais a mesmafuno foi fortalecida por outras formaes sociais, ou seja, na vida socialcontempornea, organizada sob a forma estatal e em cuja estrutura ocupacionalse pode entrever quo diferenciado seu espao social geral, a principal fontedonde uma pessoa deriva seu valor, seu signicado a mais longo prazo, podeser a prtica eciente de uma prosso (Elias, 1997: 311-312).

    Seja para o jovem interessado em uma carreira civil, como a de cientistasocial e professor universitrio, seja para o jovem voltado para uma carreiramilitar, como a de ocial da Polcia Militar, ostatusdo grupo prossional es-colhido, com suas hierarquias de valores e cdigos sociais prprios, orientare alimentar atravs de expectativas, disposies e motivaes prprias aconstruo do signicado de sua identidade social, e vice-versa. A incorporaodo indivduo ao grupo prossional poder implicar uma adoo natural eespontnea (na verdade, a instituio de uma segunda natureza por meio da

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    socializao) do grupo pelo indivduo, transformando-o em um grupo destatus,de referncia e de participao social de primeira grandeza para a sua vida socialtotal, porque, como lembra Bourdieu, toda socializao bem-sucedida tendea fazer com que os agentes se faam cmplices de seu destino (1989: 69).

    Entretanto, j que o universo comparativo de uma pesquisa resultantede um trabalho de campo antropolgico aquele que envolve o mundo do

    pesquisador e o do grupo pesquisado, entre a carreira militar e a civil citadas(nas quais os pesquisados os cadetes da Polcia Militar , e o pesquisadorocupam a condio de netos) se interpem diferenas signicativas comresultados importantes para a conformao da viso de mundo dominante emseus universos sociais, o civil ou o militar.

    No caso da carreira de ocial da Polcia Militar, a adequao e a adesoaos cdigos de sentimento e de conduta do corpo de ociais parecem implicar,segundo uma das hipteses de apoio levadas em conta neste trabalho, exign-cias e prescries muito mais estreitas e detalhadas quanto determinao do

    pensamento e do comportamento social geral do indivduo do que no caso dacarreira civil. Parece haver uma interveno mais incisiva por parte do grupo

    prossional em todas as esferas da vida e no apenas naquelas relativas aoslocais de trabalho e ao desempenho das atividades corporativas.

    Se, como dizia Goffman, uma disposio bsica da sociedade moderna que o indivduo tende a dormir, brincar e trabalhar em diferentes lugares, comdiferentes co-participantes, sob diferentes autoridades e sem um plano racionalgeral (1996b: 17), pode-se levantar a sugesto provisria de que o padro dacarreira do ocial da Polcia Militar aparentemente no impede a realizao

    parcial dessa disposio bsica anal, os ociais da Polcia Militar no soprisioneiros, no so marginais trancaados dentro de um estabelecimentoprisional, muito pelo contrrio , so agentes sociais de sucesso, campees

    da ordem e da lei. Todavia, em momentos especcos da carreira e em con-textos tanto de exerccio da prosso o caso dos cadetes, por exemplo, cujaeducao/instruo ministrada em regime de semi-internato, e o fenmenogeral do aquartelamento, que impe aos soldados e ociais uma relao maisvisceral com os locais de aboletamento de tropas chamados quartis , quantoem outros contextos sociais (os que dizem respeito ao universo das amizades,da diverso, por exemplo), os ociais se distanciam dessa disposio bsica,

    pois se encontram sob os auspcios de uma ordem disciplinar regulamentada,sob autoridade una de seus superiores hierrquicos. Se toda instituio con-quista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes d algo de ummundo; em resumo, toda instituio tem tendncias de fechamento (p. 16), preciso acrescentar que umas mais do que outras.1

    Ao contrrio do que ocorre na carreira civil de um cientista social, na qualo controle exercido pela instituio dos aspectos mais ntimos ou privados davida dos indivduos no to explcito e institucionalizado, a ponto de inexistirum rgo especial responsvel pela execuo desse controle, na carreira de o-cial da Polcia Militar, os ociais tm como obrigao social a vigilncia de simesmos e dos atos dos indivduos que compem o ocialato, de modo a saberse eles vo de par com as exigncias ticas e a honorabilidade prprias condio de ocial, pois a Polcia Militar uma instituio onde disciplina ehierarquia so valores sociais.

    Isto no quer dizer que no exista um sistema de constrangimento socialna carreira civil, inclusive pelo gerenciamento burocrtico de dados relativos vida civil dos membros do grupo. Nesta, o interesse pela intimidade do in-divduo se torna, por exemplo, assaz signicativo quando o contedo da vidantima alheia se presta manipulao pelas e nas lutas pelo poder em torno dadistribuio dos recursos e da estima sociais (um processo de desqualicaoextra-ocial de um concorrente, por exemplo, pela difamao, um mecanismocorriqueiro). O decisivo para a argumentao neste caso, que na carreira militaro controle da vida ntima do indivduo um fato organizacional, um elementoda cultura organizacional dos grupos militares, altamente institucionalizado elegitimado pelos valores sociais do grupo. Alm da existncia de um serviosecreto de informao (o P2), capaz de produzir dados sobre os integrantesda corporao, h um tipo de autovigilncia desenvolvido pela instituio esancionado por unanimidade pelo conjunto de seus membros, ou seja, ancoradoem um fenmeno de conscincia social que lhe confere aceitao, dentro decertos limites acordados.

    No que tange carreira de ocial da Polcia Militar, o indivduo nela inte-ressado haver de desenvolver maior tolerncia com relao a ser cobrado e

    vigiado pelos seus pares; haver de ter menos ojeriza s intervenes do grupoprossional em sua vida pessoal, comeando pelo fato de que, at a morte, seunome ser sempre associado ao posto exercido na hierarquia de poder do seugrupo, sendo o nome forjado nas e pelas relaes domsticas e de parentesco,lanado a um plano secundrio no contexto da prpria identidade pessoal.At os membros de sua famlia passam a ser socialmente reconhecidos pelovnculo corporativo do pol icial militar. Assim, foi possvel mapear os usos dosseguintes termos para designar familiares dos ociais: o lho do coronel, lhode coronel, esposa do major, namorada do tenente, e muitas outras variaes.Essas etiquetas de identicao podem ser usadas em vrias situaes comorecursos de poder social. Um aspirante a ocial narrou o caso de um arru -aceiro, que ao ser abordado pela patrulha, identicou-se como lho do

    CIVISEMILITARES: ACONSTRUODEUMPROBLEMA

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    coronel X. Depois de vericar a procedncia e a veracidade da informao, oaspirante chamou o coronel em questo para o local da ocorrncia. Ao chegarl, o aspirante confessou que esperava uma reprimenda do coronel por ter alge-mado o lho dele, mas, em vez disso, contou em tom de aprovao e orgulho,que o ocial em questo passou um tremendo caro no lho e mandou queo aspirante o levasse preso.

    O uso do termo cobrado muito freqente entre os cadetes, pois elesse representam como os mais cobrados na instituio. Mas, de fato, mesmodepois de aposentado (como ocial da reserva remunerada), os laos sociaisformais e informais do indivduo com o grupo prossional sero mantidos,inclusive do ponto de vista disciplinar, sendo possvel, quando as circunstn-cias o exigirem, que ele seja retirado da inatividade para assumir funes decomando. Mesmo aposentado, um ocial da Polcia Militar poder ser preso, secometer faltas graves contra a disciplina. Deste modo, o termo aposentadoria,usado para as carreiras civis, no alcana uma srie de signicados da reservaou do termo reformado, para designar a inatividade dos militares.

    Mesmo que mude de carreira, tornando-se um magistrado, por exemplo, oindivduo sempre ser percebido a partir de sua origem policial militar, o quedeve ser motivo de orgulho, segundo as auto-avaliaes positivas do ocialato.

    Note-se, ento, que a vigilncia social do grupo prossional sobre a con-duta pessoal haver de ser muito mais explcita, apoiada em regulamentosdisciplinares bastante rgidos e codicados, tendo como suporte um sistema de

    prmios e punies que inclui a possibilidade de priso e expulso por motivosdisciplinares. Enm, caracterizadas por um sistema de constrangimento socia l,

    por denio, marcial e castrense, o pesquisador precisa ter cuidado parano transpor indevidamente as categorias do pensamento militar para um sistemade classicaes paisano. preciso levar a srio um sentido pouco discutido

    da categoria militarismo, usada para designar a forma de vida dos quartis.Por conseguinte, quando o termo militarismo aparecer no texto, trata-se de umacategoria nativa, usada no cotidiano da Academia pelos ociais e cadetes da PM.

    No entanto, no so mecanismos disciplinares simples que garantem a auto-vigilncia do grupo social em questo, como sugerem os termos nativos ticae honorabilidade antes mencionados. H de se levar em conta a dimensosimblica do exerccio dessa autodisciplina, alimentada em autoconcepes evalores sociais prprios ao ocialato.

    Marcel Mauss j impunha, em 1927, como tarefa aos cientistas sociais,estudar grupos secundrios (como os subgrupos prossionais) em seus proces-sos de construo da ordem interna como edicao de sua moralidade, pois

    toda atividade social que, numa sociedade, criou para si uma estruturae qual um grupo de homens se dedicou de maneira especial, segura-mente corresponde a uma necessidade de vida desta sociedade. Esta noconferiria a vida e a existncia a este ser moral ou, como se diz nodireito ingls, a esta corporao, se este grupo mesmo temporrio nocorrespondesse s suas expectativas e s suas necessidades (1981: 70).

    Marcel Mauss lanava como objeto de preocupao cientca a anlise domodo como esses grupos sociais constroem suas relaes de autoridade, seusvnculos disciplinares e a transmisso de suas heranas conceituais, pois a parteda moral, especialmente a dos subgrupos, por exemplo do grupo prossional, subestimada (p. 89). E a pesquisa dos processos de educao fornece, aindasegundo Mauss, uma perspectiva especial para a compreenso dos hbitos co-letivos. Educao enquanto ensino de tcnicas do corpo, ensino de tcnicasmanuais, transmisso de tradies tecnocientcas, educao esttica,econmica, jurdica e religiosa (p. 125), enxergando o indivduo socia-lizado como um fato social total.

    A fabricao do corpo e da mentalidade, ou seja, das heranas comuns para alm dos nmeros, d ivises e movimentaes de um grupo, da anlisede seus sistemas de relaes polticas, econmicas e religiosas constitui omomento em que est em foco e em jogo na vida social a solidez do todo, a

    perpetuidade do todo, a coeso social e a autoridade que a exprime e a cria,a tradio e a educao que a transmitem de gerao a gerao (p. 101).Como ensinava Simmel (1977: 174-75), na fora de socializao das organi-zaes hierrquicas e militares, nas quais, realmente, o ponto de ordenao davida coletiva um ponto de vista quantitativo, onde as posies e a formaode grupos e subgrupos se ligam ao estabelecimento de funes com naturezanumrica, est o segredo do seu relativo fechamento.

    A anlise do regime de coaes a que esto sujeitos os netos de umgrupo, portanto, uma porta de entrada para o regime geral das coaes dogrupo. Trata-se de analisar uma transmisso social especca que produz di -ferenciao entre um grupo social prossional e de statuse os outros com osquais compartilha um mesmo espao social geral, ao passo que constri umaadequao da personalidade difusa estrutura de personalidade adequada vida corporativa do grupo (cf. Simmel, 1977: 166-67).

    Para Elias (1997: 136), o esprito de corpo o sentimento de identidadedo ocialato militar, o sentimento de ns dos ociais, de onde derivammodelos de conduta para o conjunto dos quadros de ociais de uma instituiomilitar. Para ele, a camada ns da estrutura da personalidade, resultante de

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    1918 OSFILHOSDOESTADO

    tenses e conitos vividos em um processo de desenvolvimento histrico (Elias,1997: 30), faz que um grupo prossional se transforme em um grupo destatus,entendendo este conceito como um problema de percepo social, anal, otermo mesmo deriva da raiz romanastare, estar, que literalmente designava a

    posio de um indivduo ou grupo aos olhos dos demais (Diggins, 1999: 215).2

    Ao falar de esprito de corpo, busco circunscrever conceitualmente a ca-mada ns da estrutura de personalidade dos membros da corporao policialmilitar, pois

    a imagem que as pessoas que vivem juntas numa sociedade especca

    tm de sua prpria posio e da de outros na pirmide social deveconjugar-se com critrios de estraticao desde a perspectiva do pes-quisador [...] pois a experincia de estraticao pelos participantes um dos elementos constitutivos da estrutura da estraticao (Elias,1997: 52).3

    Como indicado na introduo, a abordagem deste trabalho concentra-seno mundo do cadete a partir do cruzamento entre o problema da auto-repre-sentao (Elias, 1997) e o da construo da poltica interna destatusdo grupoem questo. Trata-se do desao de estudar os policiais militares a partir domodo especco como constroem o espao social e simblico interno de suasinstituies, ou seja, a partir do modo como produzem o seu esprito de corpoe sua disciplina, lembrando que, mais do que instituio total, a Academia uma instituio assimiladora (cf. Castro, 1990, p. 32), voltada para a reali-zao de uma vitria cultural. Como enfatiza um dos expoentes da sociologiamilitar norte-americana, education at a service academy is the rst and mostcrucial experience of a professional soldier. The educational experiences of the

    cadet cannot obliterate his social background, but they leave deep and lastingimpressions (Janowitz, 1971, p. 127).4

    O trabalho pioneiro de Heloisa Fernandes (1973), uma anlise sociolgicada evoluo histrica das foras repressivas de So Paulo, predecessoras daatual Polcia Militar, dedicou dois captulos (VI e VIII) ao exame da unida-de interna da organizao policial estudada. Todavia, a perspectiva de sua

    pesquisa pensava as foras do aparelho repressivo esta tal apenas em funode condies histricas especcas o que diferente para a autora do quedizer que elas preenchiam a funo de controle social inerente s organizaeshumanas e existindo para garantir as condies polticas de reproduo dasrelaes de explorao.

    Ao esquadrinhar os critrios da unidade interna da instituio, suas anlises

    apontavam para os pressupostos histricos da constituio da unidade internaa partir de uma conexo destes pressupostos com os critrios de seleo, pro-moo, reforma, servio e instruo dos integrantes da fora policial. O campode anlise, por estar preocupado com as relaes dialticas entre relaes deexplorao e relaes de dominao social, no se deixava levar pelo exameda formao do esprito de corpo dos integrantes da fora pblica como ob-

    jeto legtimo de anlise. A autora apontava para algumas de suas condiesde formao. Contudo a abordagem, apesar de no desconhecer o problemasociolgico da formao de

    um sistema tico-grupal propiciador de uma forte identicao dos mem -bros com os objetivos de sua atividade, processo instigado pela adesoaos valores inerentes execuo mesma da funo da fora repressivae pelo auto-reconhecimento dos membros como componentes de umgrupo social (p.132)

    no parecia garantir legitimidade para um estudo deste processo como umobjeto em si.

    O ponto de partida de um trabalho antropolgico sobre os policiais se-ria aquele que reconhecesse, como vaticinou Kant de Lima (1995), que asatividades policiais organizam-se conforme os princpios da tica policial,um conjunto extra-ocial de regras produzidas e reproduzidas pelo processotradicional de transmisso do conhecimento (p. 9). Seu raciocnio ainda incluia seguinte problematizao:

    A exclusiva responsabilidade da polcia pela tica de suas atividadessugere, por analogia, formas exclusivas de produo e reproduo dessatica. Em consonncia com sua identidade extra-ocial, essa tica pro-

    duzida e reproduzida pelos meios tradicionais. Os policiais produzeme reproduzem sua tica por um sistema de contar histrias, nas quais oprincipal personagem sempre um de seus heris, guardies mticose exemplos paradigmticos da tradio policial (p. 135).

    Como exps Coelho (citado por Castro, 1990) de modo instigador, tratan-do mais especicamente da instituio militar, mas que, a meu ver, pode serextensivo s organizaes dos militares estaduais:

    [...] de certa forma, a politizao produz a paisanizao dos militares,despindo-os da forte marca da instituio castrense. O processo pareceser anlogo ao do exorcismo ou da psicanlise: como se os estudiosos,

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    sofrendo de algum profundo trauma com os smbolos, marcas, mentalida-de e procedimento das instituies militares necessitassem revelar a suadimenso mais familiar (ou paisana) dissolvendo nela a outra zona:a do perigo, da ameaa, do desconhecido (p. 13).

    Foi na esteira desse tipo de crtica, segundo a qual os estudos sobremilitares se reduziam a focalizar apenas os momentos dramticos das inter-venes militares na vida dos civis, sem que tratassem a instituio militarcomo um objeto legtimo de anlise por si mesmo (Castro, 1990, p. 13),que surgiram os trabalhos de Castro (1990) sobre a socializao militar na

    Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) e de Leirner (1997a) sobre asocializao militar na Escola de Comando e Estado-Maior do Exrcito (Ece-me). Eles foram particularmente inspiradores com sua proposta de pensar umaantropologia da instituio militar no Brasil e, tambm, forneceram etnograasque me municiaram com questes metodolgicas e substantivas para iniciar commenos incertezas o trabalho de campo. Pois, partindo da constatao de queas instituies militares so pouco estudadas em sua vida social ntima, CelsoCastro (1990) e Leirner (1997a) buscaram ampliar o campo das anlises deuma antropologia da instituio militar, de modo a complementar e aprofundar

    algumas tentativas de anlise da instituio militar em seus aspectosinternos, estruturais ou organizacionais [...] o que implica o reconheci-mento de uma relativa autonomiada instituio em relao sociedadecivil e uma proposta de estudo centrada preferencialmente no em suasintervenes na vida poltica, mas no cotidianoda instituio (Castro,1990, p. 14).

    Enquanto Castro (1990) se propunha realizar uma discusso sobre aconstruo da identidade social dos ociais do Exrcito, sob a forma de umaetnograa do universo de socializao prossional dos cadetes da Aman, Leir-ner (1997a), a partir de trabalho de campo na Eceme, buscava, afastando-sedo universo dos cadetes e se aproximando do mundo dos ociais superiores,

    pensar a identidade social dos militares a partir do modo como se articulam nointerior da instituio as variveis polticas que entram em jogo na identidademilitar quando circunstancialmente o Exrcito se v obrigado a negociar oseu papel com a sociedade (p. 18). Ou seja, este ltimo preocupava-se fun-damentalmente com a construo da face pblica do Exrcito, desde o pontode vista da construo da resposta organizacional elaborada no interior do

    espao social interno da corporao, para problemas sociais e polticos postosno mbito da sociedade inclusiva.

    Em ambos os casos, a instituio militar era tratada como possuidora decerto grau de autonomia frente aos cdigos sociais e exigncias da sociedadeinclusiva, dando-se nfase ao fato de que as corporaes militares e policiaismilitares possuem caractersticas e vida prprias que no podem ser reduzidasa meros reexos de inuncias externas (Carvalho, 1978, p. 183). Os autoresimpulsionavam, assim, um tipo de abordagem que promove a problematizaoda perspectiva que dilui a especicidade da instituio militar ao vincul-la auma teoria do conito de classes sociais (Castro, 1990, p. 14).

    Os dados sobre a origem social dos ociais so menos relevantes paraesta perspectiva que privilegia o peso da socializao prossional a que sosubmetidos os militares e a rede de interaes sociais na qual vivem - para acompreenso de sua viso de mundo e de seu comportamento social, deslocandoassim o foco de anlise para aspectos internos, organizacionais ou estruturaisda instituio militar (Castro, 1993, p. 227). No trato do problema da sociali-zao dos agentes da violncia legal, se mostrava importante retomar algumasintuies da chamada sociologia militar, uma das primeiras a se preocupar coma constituio de hierarquias de valores e de cdigos de sentimento e conduta

    prprios ao processo de produo da unidade interna destes grupos de especia-listas (cf. Mills, 1981, captulos VIII e IX e Janowitz, 1971).

    Sem dvida, o mais importante no subestimar a dimenso simblica eaxiolgica da constituio da vida ntima dos grupos que funcionam como ins-trumentos da violncia estatal organizada. necessrio instituir, deste modo, nocampo das cincias sociais, legitimidade para os estudos que buscam entenderos padres simblicos prprios dos integrantes de organizaes de estado-maiorem termos de sua cultura e identidade especcas. O momento positivo desta

    atitude crtica frente aos trabalhos que reduzem a compreenso do militar aoproblema das origens sociais , portanto, a nfase dispensada investigaodos modos de construo da unidade interna de tais organizaes, levando emconta suas hierarquias de valor e seus cdigos de sentimento e conduta espe-ccos. Torna-se possvel um questionamento sobre a vida simblica e ritualdos membros dessas instituies, para alm da apreciao do vnculo entre asrepresentaes propriamente ideolgicas desses grupos mais claramente asso-ciadas a grupos ou classes do campo do poder no espao social geral.

    No se pode, todavia, esquecer que, descambando para a idia de que ascorporaes militares e policiais seriam grupos completamente fechados, seestaria simplesmente trocando os sinais da atitude criticada, promovendo umareduo to nociva quanto aquela que no pensa a especicidade do mundo

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    militar e policial, pois:

    [a] idia de grupos que esto estruturados de tal forma que seus membrosdesenvolvem uma conscincia totalmente independente, funcionando deum modo inteiramente autnomo, , sem dvida, um tpico exagero ideal.Na realidade, a menos que esteja doente, nenhum ser humano em suasdecises em sua orientao pessoal jamais empreende um plano deao sem levar em considerao o que ele poder signicar para os outros,assim como para si mesmo. Tudo o que pode, na realidade, ser observado maior ou menor autonomia relativa em conscincias individuais, segundoas autocoaes ou as coaes externas tenham a maior participao norumo dado conduta de pessoas (Elias, 1997: 96).

    A pergunta sobre os limites da ressocializao militar no pode ser des-cartada, seja qual for a abordagem do analista. E as respostas podem ser mais

    profcuas se intentadas em contextos de pesquisa emprica, mantendo sempre ocuidado para no reicar um universo de relaes, onde interno e externo, microe macro e outros pares de oposio desse tipo podem fazer-nos esquecer queo importante pensar os limites, as passagens, os diferenciais, e os processosde objetivao e subjetivao do social. Esta uma meta metodolgica quecriamos, conscientes de que acabamos por frustr-la aqui e acol com menorou maior gravidade.

    Enm, razes diversas, alm das tericas j apontadas, me levaram adelimitar este objeto de estudo em particular e a estudar os policiais militaresem geral. Em primeiro lugar, os policiais militares so pouco estudados peloscientistas sociais. No conjunto dos estudos sociolgicos e antropolgicos sobremilitares e organizaes policiais, como veremos, o ensino e a socializao

    prossional dos policiais militares ainda no foram sucientemente contem-plados . Em segundo lugar, os polic iais militares so um objeto constante daspreocupaes pol ticas dos cientistas sociais, sobretudo daqueles envolvidosdiretamente nas lutas pela denio do destino social das organizaes desegurana nacional e pblica no Brasil. Consciente da necessidade deestud-los, certamente o z motivado pelo contexto social a partir do qualos militares e os policiais emergem como objeto de preocupao social e

    poltica, antes de serem transformados em objeto de estudo propriamente dito.

    Notas

    1 Consultar Castro (1990) para uma crtica do conceito de inst ituio total e de seus limites

    para o universo das escolas militares. A chave da crtica que, diferentemente das prisese manicmios, nas escolas militares se joga com a perspectiva de uma vitria cultural(p. 33-34).

    2 O uso do conceito destatuspaga tributo herana weberiana segundo a qual em contrastecom a situao de classe, que determinada economicamente, designa-se como situaodestatustodo componente tpico da vida predeterminada dos homens, que o por umaestimativa social especca, positiva ou negativa, de honra... Em essncia, a honra resultantedestatus expressa, normalmente, pelo fato de esperar-se um mesmo estilo de vida espe-cco por parte daqueles que desejam pertencer a determinado crculo... O papel especcode um estilo de vida no statushonra signica que os grupos de statusso sustentculosespeccos de todas as convenes (Bendix apudMiranda Netto et al., 1986). Status,honra, prestgio, deferncia social, a estraticao da estima tais categorias tinham mais

    relevncia [para Weber] do que a classe para explicar relaes tnicas, racismo, diferenasde gnero e sentimentos nacionalistas, que separam as pessoas e frustram a formao dasolidariedade de classe (Diggins, 1999: 216).

    3 De acordo com Elias (1997), tradicionalmente, na anlise sociolgica, o problema da estra-ticao se pe quando se qualicam os indivduos em estratos, grupos segundo a ocupaoou classes, mas nenhum desses critrios sucienteper separa explicar o ordenamento das

    pessoas em estratos de categoria superior ou inferior. Para tal propsito, tambm necessriosaber como os membros de uma sociedade que esto dotados de desiguais oportunidadesde poder estatusse classicam a si mesmos e uns aos outros (p. 52).

    4 a educao numa academia militar a primeira e mais crucial experincia de um soldadoprossional. As experincias educativas do cadete podem no apagar seu brackgroundsocial, mas deixam impresses profundas e duradouras.

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    No teatro de operaes: entre o dilogo e adesconfiana

    A observao participante concentrou-se na Academia de Polcia Militar doCear resvalando, em ocasies especcas, para outros estabelecimentosda corporao, como, por exemplo, o Quartel do Comando Geral da PolciaMilitar, onde foram observados eventos solenes, desles de tropas e reunies,e realizadas entrevistas formais e informais com dirigentes da organizao

    policia l militar cearense. Nessa ocasio, dediquei um total de 42 dias noquartel da Academia, intercalados em trs perodos: setembro de 1997, maroe abril de 1998 e primeiro semestre de 1999. Como se v, a observao nose concentrou em nico perodo, de modo monoltico, e pode ser dividida emtrs etapas correspondentes aos intervalos de tempo apontados, enquadran-do as seguintes atividades principais: a) realizao dos primeiros contatoscom ociais e insero em campo, apresentao aos comandantes e equipedirigente da Academia, entrevistas gravadas ou anotadas com membros destaequipe, participao nas aulas do CAO e freqentao da Academia, em cujasocasies me inteirava sobre o funcionamento cotidiano da instituio (11

    dias); b) participao nas aulas do CFO junto turma do terceiro ano e ob-servao de solenidades, palestras, cerimnias, formaturas, envolvendo diretaou indiretamente a companhia de alunos da Academia (11 dias); c) entrevistasgravadas, observao de formaturas, freqentao da Academia e pesquisas nasua biblioteca (20 dias).

    Ao todo, foram observadas as seguintes cerimnias que contavam com aparticipao dos cadetes da Polcia Militar: parada do 7 de setembro de 1997,formatura dos aspirantes a ocial, em 11 de dezembro de 1998, cerimniascomemorativas do aniversrio da Polcia Militar do Cear, em 1998, e ceri-mnia comemorativa do aniversrio da Academia de Polcia Militar, em 1999.Deste modo, apresento a seguir alguns pontos importantes sobre a Academia,o universo estudado e as condies deste estudo.

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    O locus da pesquisa

    A Academia de Polcia Militar General Edgard Fac est localizada nacidade de Fortaleza, no bairro Edson Queiroz, abrigada pelas instalaes deum quartel exclusivamente dotado e devidamente provido para ela desde suainaugurao em 1977. Estando este quartel disposto nas vizinhanas do Centrode Convenes do Cear e do campusda nica universidade privada do estado,sua localizao j costuma ser parte signicativa da auto-apresentao ocial,

    porque no deixa de ter importncia ins titucional o fato de que a Academiapertence ao Planalto da Cultura, sem falar no componente dessa auto-apresen-

    tao mais estritamente ligado ao seu objetivo institucional de funcionar comoestabelecimento de ensino superior, onde so formados os ociais da milciacearense. o lugar onde nasce o futuro da PM, onde, segundo o registro nativo,nascem os futuros guardies da sociedade, ou, segundo a minha interpretaodesse registro, esboado como um emblema pelo ttulo do trabalho, lugar ondeso fabricados, na condio de lhos do estado, os futuros ociais da PolciaMilitar do Cear.

    A APMGEF fornece o suporte institucional e arquitetnico para a reali-zao do processo bsico de socializao prossional dos jovens selecionadosatravs do vestibular da Uece, em uma primeira e tapa, e atravs de exames quese seguem realizados sob a responsabilidade da PMCE, para o primeiro ano doCurso de Formao de Ociais, cujo objetivo primordial oferecer condies

    para que eles possam ingressar na carreira de ocial da PM. Na APM, essesjovens provenientes do mundo civil ou j pertencentes ao universo militarso socializados na condio de cadetes (alunos-ociais PM), ou seja, comoaprendizes, netos, novios, irmos mais novos do ocialato, enm, comoos futuros ociais da Polcia Militar, na medida em que a Academia, como

    escola de comandantes, considerada, por excelncia, como o elementoconstrutor e difusor de doutrinas e prticas policiais e referncias castrenses(Estado do Cear, 1999, p. 1).

    Assim, no interior de seu esquema fsico, uma leva anual de 30 jovenscearenses (alm de outros em nmeros variveis, recrutados pelas milcias deoutras unidades da Federao) trazida ao mbito da modelao disciplinarde seus corpos e da construo de uma nova identidade social. um contexto deformao aps o qual eles podero, sob a condio de terem obtido o esperadosucesso e aprovao institucionais, ingressar nos quadros de ociais subalternosdessa organizao policial e militar.

    Na Academia, de fato, existem trs cursos compondo momentos distintosdo padro de carreira de ocial da PMCE, trs cursos que formam a ossatura

    bsica das experincias escolares de todos os ociais que tenham tocado o postomximo no sistema hierrquico de distribuio da autoridade dos ociais, ouseja, aquele de coronel PM. Assim, h nela os seguintes cursos principais: a) oCurso de Formao de Ociais; b) o Curso de Aperfeioamento de Ociais; ec) o Curso Superior de Polcia. Por conseguinte, o estabelecimento de ensino

    policial militar em questo no chama para si apenas a misso de formar osfuturos ociais, j que o CAO e o CSP so destinados aos membros j efetivose ativos dos quadros de ociais que buscam ascender aos postos mais elevadosda hierarquia militar na PM.

    Entretanto, o CFO que permite o ingresso na carreira, o curso bsico,

    o lugar dos cadetes, ou seja, do noviciado da corporao; o programa atravsdo qual os jovens selecionados para a carreira de ocial PM recebem a for-mao basilar para poderem adentrar nos quadros de ociais subalternos dacorporao. Os alunos desse curso no so ainda ociais, esto em situaode liminaridade, so considerados praas especiais, como continuaro a serdepois de terminado o curso, durante os meses que passaro como aspirantesa ociais, antes de serem integrados de fato no posto de segundo-tenente. OCAO, por sua vez, destinado aos quadros de ociais intermedirios, preparaCapites para o ingresso no Ocialato Superior da Polcia Militar, at o postode Tenente-Coronel, capacitando-os a exercerem as funes a nvel de Estado--Maior (Estado do Cear, 1999, p. 8). E o CSP atualiza e amplia conheci-mentos humansticos e prossionais indispensveis ao planejamento e ao

    policial militar, para o exerccio das funes de comando, chea e liderana.Habilita Ociais Superiores ao posto de Coronel, cando estes aptos a exercerema funo de Comandante Geral (Estado do Cear, 1999, p. 8). Alm dessestrs cursos centrais, h outros ministrados na APMGEF, como o de Especiali-zao em Segurana Pblica, Direitos Humanos e Cidadania (CESPDHC), o

    de Preparao de Instrutores (CPI) e o de Habilitao de Ociais (CHO) comobjetivos mais especcos, como preparar policiais militares para lidar comcrianas e adolescentes em geral, e com crianas e adolescentes que tenham

    praticado ato infracional. No caso do primeiro, qualicar Ociais da PolciaMilitar para o desempenho das atividades de instrutor militar nas diversas ativi-dades de ensino; no do segundo, preparar tecnicamente Primeiros-Sargentose Subtenentes, qualicando-os prossionalmente a ingressarem no Quadro deOciais de Administrao, no caso do ltimo (Estado do Cear, 1999, p. 8).

    Assim,

    atravs de seus cursos de formao, habilitao e aperfeioamento deOciais, a Academia de Polcia Militar recebe anualmente, de vrios

    NOTEATRODEOPERAES: ENTREODILOGOEADESCONFIANA

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    Estados da Federao, uma leva signicativa de prossionais que aportamno estado do Cear para sorverem novos ensinamentos e intercambiaremprticas de interesse das corporaes policiais militares do Brasil (Estadodo Cear, 1999, p. 1).

    Ou seja, alm dos futuros ociais e j ociais da PMCE, so tambmformados e reciclados os cadetes e os ociais de outras corporaes policiaismilitares brasileiras (categorizadas como co-irms) que mantenham inter-cmbio com o Cear.

    Nas atuais instalaes do quartel da APMGEF, se promove, sob a co-ordenao e scalizao do sistema de ensino da PMCE, portanto, de modo

    permanente e estruturado, a formao, atravs do CFO, dos futuros quadrosdirigentes da corporao.

    O Curso de Formao de Oficiais

    No CFO, os indivduos recrutados e selecionados para o primeiro ano solevados, como condio bsica para o ingresso na carreira de ocial da PM, aseguir, observar, aprender e aderir s normas e valores do ocialato. Isso, durantetrs anos, em regime de semi-internato, no qual os netos so submetidos sregras disciplinares e ticas da instituio escolar, sendo esta organizada naforma de quartel-escola, onde, sob a vigilncia constante de uma equipe deociais ocupados com o esforo pedaggico, so modelados os futuros ociais.

    O processo pedaggico desse curso est dividido em duas categoriasgerais: ensino fundamental e ensino prossional. O ensino fundamental,compreende Lngua Portuguesa, Sociologia, Administrao, Direito, tica, entreoutros ramos disciplinares. Como ensino prossional se entende, seguindo uma

    nova diviso entre instruo policial militar e instruo militar, o desen-volvimento de habilidades e a aquisio de um conhecimento prtico para oexerccio das atividades policiais militares, incluindo-se a toda a dimensomilitar da formao dos cadetes, atravs da educao fsica militar, daordem unida, da instruo geral etc. H ainda um conjunto de atividadescomplementares, como participao em conferncias, estgios e visitas

    programadas.A misso da APM, atravs do CFO, vista neste trabalho a partir do

    ngulo da criao, para os quadros dirigentes da PMCE, de indivduos leaisaos cdigos de sentimento e conduta dos ociais e aos valores sociais nelesrepresentados, ao mesmo tempo que os torna disciplinados, competentes, hbeise aptos ao exerccio do comando no contexto institucional da PM. Em vez de

    se deter no aspecto da transmisso de contedos curriculares, ou na dimensoexclusivamente formal do curso, este trabalho busca abord-lo, sob o pontode vista antropolgico, como processo de construo da identidade social e docorpo disciplinado, a partir de uma redenio de lealdades sociais e simbli -cas dos novios no contexto da sua captura pelo espao social e simblico dacorporao policial militar.

    No campo com policiais militares

    Subordinada estrutura do governo estadual, por meio da Secretaria de

    Segurana Pblica e Defesa da Cidadania, a PMCE, cujas atribuies so de-nidas legalmente pelos conceitos de policiamento ostensivo e preservao daordem pblica, uma organizao policial, cujos mecanismos de promoo doseu meio social interno so, semelhana da estrutura de poder do Exrcito,de natureza hierrquica e disciplinar. As Corporaes Policiais Militares escreveram dois capites PM sobre o assunto nasceram e evoluram sob agide militar de hierarquia e disciplina, o que as incluem no elenco das forasdisponveis para a defesa interna, territorial e at mesmo de atuao no campode operaes (Carvalho e Silva, 1997, p. 12).

    Do ponto de vista sociolgico, pode-se dizer que o espao coletivo daPolcia Militar est estruturado segundo uma forma piramidal de distribuiodo poder e recortado por um conjunto de prticas disciplinares que oferecemsustentao a uma cadeia de comando e obedincia, segundo a qual, pelo me-nos no plano das idealizaes das atividades (o plano modelar), uma ordememanada do alto cria uma obrigao de pronta execuo (sem questionamentoscrticos quanto ao mrito da ordem) para aqueles indivduos posicionados em-

    baixo: uma obedincia cega ao chefe militar e uma desobedincia irrestrita

    a outro comando que no o dele, ou seja, a exigncia de comando nico. Nasorganizaes de estado-maior, a luta pelo estabelecimento de critrios concor-rentes de comando, portanto, a luta pelo poder, interpretada sob o signo datraio e da deslealdade.

    A disciplina e a hierarquia objetivam xar o indivduo e seu campo de aoao espao interno da instituio militar, afastando-o dos cdigos e valores domundo exterior. Assim, as organizaes de estado-maior estruturam sua coesointerna com base em postulados e mecanismos de funcionamento que escapamem grande medida s contingncias da realidade imediata (Reis Filho, 1990,

    p. 107). Destarte, os mitos, as ideologias, as divises do espao interno entreos quadros dirigentes e os subordinados, os mecanismos de construo da coe-so e da disciplina ganham grande importncia quando se quer compreender a

    NOTEATRODEOPERAES: ENTREODILOGOEADESCONFIANA

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    natureza ntima ou necessidades internas das organizaes de estado-maior(cf. Reis Filho, 1990, captulos 4 e 5).

    Todavia, hierarquia e disciplina so mais do que classicaes e prticas dediviso do espao social. Alm de sua fora tecnolgica de diviso, so smbo-los e valores sociais que preenchem de signicado os elementos constituintesda coletividade militar: a hierarquia, alm de ser um princpio geral, norteiatodaa vida da instituio militar, reunindo, de maneira singular, um princpiodado na lei e uma conduta a ela associada. Ela o princpio pr imeiro de divisosocial de tarefas, papis estatus (Leirner, 1997a, p. 52) e a disciplina militartem como condio e produz como efeito justamente uma distribuio dos

    indivduos em uma forma piramidal de poder.Do ponto de vista do sistema de autoridade, o indivduo posicionado emum nvel responde administrativamente ao nvel imediatamente superior, aoqual se subordina. J de um ponto de vista da organizao das atividades, o quereveste o comando, em cada nvel, de relativa autonomia funcional a divisoem grupos tticos: o batalho, a companhia e o peloto, sendo um batalhodecomposto em companhias e uma companhia decomposta em pelotes. NaAPMGEF, por exemplo, organizada em termos de batalho, h uma companhiade alunos, composta, normalmente, de trs pelotes, sendo cada peloto cor-respondente a uma turma com aproximadamente trinta alunos, ou ento, umacompanhia com aproximadamente noventa alunos.

    Os policiais militares, nesse espao social que o institudo como internode sua corporao, esto, fundamentalmente, divididos em duas categoriassociais distintas uma da outra, apesar de interdependentes: ociais e praas.Ambas as categorias so organizadas em forma de carreira, com planos e

    previses de ascenso, com prmios e castigos sustentando um sistema constantede avaliao. Ociais e praas so princpios de diviso que produzem vises

    especcas no interior da organizao: de um lado, esto os comandantes e, deoutro, os subordinados respectivamente, as cabeas pensantes da corporaoe a tropa, a elite dirigente e o conjunto dos subalternos.

    Parece no haver, entre ociais e praas, uma continuidade de status. como se possussem, alm de papis e tarefas, qualidades distintas, como sefossem, segundo as classicaes da corporao, seres com destinos sociaisdiferenciados, compondo o destino de uma mesma unidade social.

    A polcia [militar] vai do soldado ao coronel, ento o soldado por nvelde antigidade, o coronel mais antigo que o soldado, o soldado maismoderno e o coronel mais antigo. O soldado, ele fez o curso de soldadode formao de leiras, ele presta concurso, no vestibular, est sendo

    exigido o primeiro grau, [...] ele [o soldado] vai, faz um curso de quatromeses, que um curso que no indicado, indicado um ano, um anoe meio, at para ele comear a se familiarizar com aquilo [...] So aspraas: soldado, cabo, sargento e subtenente, so as praas da corpo-rao, depois tm os ociais (entrevista com cadete do segundo ano).

    Ento, os ociais, eles so a administrao; a PM est dividida em pra-as e ociais, porque a polcia foi feita pelo Exrcito, ento, ela o espelhodo Exrcito, o militarismo, categoria nativa da corporao para designar omodo de vida militar, ele procura fazer essa diferena (entrevista com cadete

    do segundo ano).Para a PMCE, so fundamentais no apenas as distncias hierrquicas esta-belecidas entre ociais e praas, mas alm delas, ou melhor, complementando--as, a corporao levou o processo de diferenciao hierrquica para dentro decada uma dessas categorias. Entre os prprios ociais, de um lado, e entre os

    praas, de outro, h diferenas de graus que os pem em relaes assimtricas.Em um primeiro registro, os ociais se dividem segundo uma hierarquia de

    postos escalonados, sendo eles, em ordem decrescente de autoridade: coronel,tenente-coronel, major, capito, primeiro-tenente e segundo-tenente. Somenteos indivduos que ocupam o posto mximo da corporao, o de coronel PM,

    podem exercer determinadas funes e assumir determinados cargos, como, porexemplo, o de comandante-geral da corporao. Em um segundo registro, osociais se dividem no interior do crculo de ociais em: superiores (coro-nis, tenentes-coronis e majores), intermedirios (capites) e subalternos(primeiros-tenentes e segundos-tenentes).

    No primeiro registro est em jogo a cadeia de comando e obedinciapropriamente dita e, no segundo, o enquadramento do conjunto das relaes

    so-ciais (inclusive pessoais e no-prossionais) em uma srie de atitudes, pos-turas, distncias e proximidades, que devem ser observadas, sendo inclusiveregulamentadas pelas regras disciplinares de modo extremamente codicado.Assim, a camaradagem torna-se indispensvel formao e ao convvio dafamlia policial-militar, cumprindo existir as melhores relaes socia is entre osPoliciais-Militares (Estado do Cear, 1980,Regulamento Disciplinar, TtuloI, Captulo I, Art. 2). Porm, ela deve observar a ordenao da autoridade,em nveis diferentes (RD, Ttulo I, Captulo II, Art. 5) e prezar pela rigorosaobservncia e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposi-es, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos ede cada um dos componentes do organismo policial-militar (Art. 6).

    J as praas no possuem postos, porque estes so graus hierrquicos dos

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    ociais. Elas possuem graduaes, sendo em ordem decrescente de autori-dade as de subtenente, primeiro-sargento, segundo-sargento, terceiro-sargento,cabo e soldado. A diferena nos termos empregados para designar a posiohierrquica de praas e ociais funciona como um smbolo da descontinuidadedestatusentre eles.

    Ademais, o crculo de praas se divide em subtenentes e sargentos, deum lado, e em cabos e soldados, de outro. Os crculos no devem se cruzarde modo indiscriminado, nem mesmo em atividades festivas e recreativas. Oscontatos entre eles, ou melhor, entre os indivduos que os compem, devem serseguidos de mesuras e cumprimentos que demonstrem respeito, mesmo fora do

    contexto do militarismo, transpondo o seu limite, ou melhor, o militarismose estende para a vida pessoal e social do indivduo, quer ele queira ou no.Esse modo hierrquico de construo do prprio espao interno permitir

    compreender suas relaes sociais com aquilo que institudo como o mundode fora, a sociedade civil, o mundo civil, exterior organizao. Mas esse pro-

    blema extrapola o objetivo dessa discusso, pois envolve a questo mais amplada construo dostatusdo ocial nas suas relaes com os grupos sociais civisda sociedade inclusiva. E o que pretendo aqui familiarizar o leitor com ascaractersticas do universo social estudado, desde seu plano interno e modelar.

    interessante notar que h, atravs desse universo de crculos hierrqui -cos, indivduos que pertencem corporao na condio de netos, ou seja,no so ainda ociais, no so ainda praas, so cadetes, na linha dos ociais,e recrutas, na linha das praas. Isso quer dizer que a PM assume a tarefa deeducar e instruir seus quadros, sejam dirigentes, sejam subordinados. Comoescrevi em outro lugar:

    A Polcia Militar representa um grupo especco do campo burocrtico

    do Estado que exerce um poder sobre a vida e sobre o cotidiano da popu-lao, principalmente quando se trata da populao urbana. Todavia, paraque se possa entender o papel e o funcionamento da atividade policialmilitar na sociedade cearense e brasileira, faz-se necessrio reetir sobreo fato de que a corporao que ocupa um lugar especco na divisodo trabalho de dominao precisa, ela mesma, reproduzir-se, construiros meios a partir dos quais ela se torna um meio ecaz de exerccio depoder. Dentre os mecanismos que possibilitam reproduzir a instituio,urge destacar o mecanismo pelo qual seus agentes so socializados, nosentido de assumirem uma disposio corporal e mental reproduo desi mesmos como agentes da ordem e da lei (S, 1998, p. 157).

    Para isso, o sistema de ensino da PMCE criou duas instituies (oumuito provavelmente tenha sido criado a partir delas) que correspondem diviso bsica j apontada entre ociais e praas. Estas so treinadas no Cen-tro de Formao e Aperfeioamento de Praas, aqueles na APMGEF, cujasinstalaes esto em quartis diferentes, de modo que, at do ponto de vistageogrco, logstico e arquitetnico, se realiza a distncia preconizada paraas duas categorias. O tempo de permanncia, nos respectivos cursos bsicosdas duas unidades de ensino da PM, rearma (ele apontado como tal, mesmoquando avaliado como uma decincia a ser superada) a distribuio diferen-cial de valor para as duas categorias. Enquanto os cadetes fazem um curso

    de trs anos, as praas so formadas em seis ou oito meses, dependendo dasurgncias do policiamento ostensivo. O trabalho (em suas funes disciplinare simblica) mais intensivo na modelao do corpo dos cadetes.

    O recorte deste trabalho foi feito para contemplar o universo dos ociais, omundo dos dirigentes que se pensam como a elite da instituio, as cabeas

    pensantes, os comandantes, e isso a partir do ponto de vista dos cadetes,recorte que impe limites considerveis para as anlises.

    Ento, vejamos, de modo resumido, segundo a descrio de um ocialsuperior da corporao, quais so os passos da carreira de ocial PM, desde oingresso no CFO at momentos posteriores:

    [a carreira] se inicia na Academia, com o vestibular, que hoje feito naprpria Universidade Estadual, como se fosse um vestibular para medici-na, para direito ou qualquer outra carreira. Freqenta o curso durante trsanos [CFO] e vai [ento] declarado aspirante. Quando ele vai declaradoaspirante a ocial, aps o trmino do curso [CFO], como se fosse umestgio probatrio. Ele passa seis meses ainda, um perodo ainda de experi-mentao, poder ser at licenciado ou excludo com uma certa facilidade.

    Depois de seis meses, ele vai promovido a tenente, e a com o Curso deFormao [CFO] ele tem condies de ascender at o posto de capito.Ele, normalmente, como tenente, vai trabalhar em companhias e comandarpoliciamento, viaturas, composies, grupos no servio de policiamento.Como capito, necessrio que ele faa o Curso de Aperfeioamento deOciais (CAO) para que possa ascender a funes de major, tenente--coronel, s funes de Estado-Maior. Normalmente, a, ele j passa acomandar unidades, batalho, passa a chear as sees do Estado-Maior eassumir certas funes de comando. Como tenente-coronel, ele necessitafreqentar o Curso Superior de Polcia [CSP] para que seja habilitado aser promovido ao posto de coronel e assumir as funes do alto escalo dacorporao, como, por exemplo: comandante de policiamento da capital e

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    do interior, chefe do Estado-Maior, subcomandante ou comandante-geralda corporao, chefe da Casa Militar, essas funes de maior nvel, maisestratgicas (entrevista com coronel PM).

    De fato, a condio bsica para o ingresso na carreira de ocial da PolciaMilitar ter cursado o CFO da APMGEF, pois este curso d aos alunos o co-nhecimento fundamental e tcnico prossional necessrio para o ingresso noocialato da Polcia Militar (Estado do Cear, 1999, p. 8). Nele, so formadosos futuros comandantes da PMCE e, tambm, de outras corporaes policiaismilitares brasileiras, classicadas de co-irms, que, porventura, mantenhamcom ela algum tipo de intercmbio pedaggico (Piau, Maranho, Amazonas,Paraba, Rio Grande do Norte, por exemplo), pois segundo uma crena genera-lizada entre os policiais militares: as Polcias Militares brasileiras constituemuma s famlia e como tal devem ser respeitadas em qualquer tempo, condioe lugar (Estado do Cear, 1999, p. 2).

    A trajetria de campo

    Dois meses antes de iniciar meu trabalho de campo, eu usava cabelos lon-gos, brinco na orelha e umas inseparveis alpercatas. Imaginei que chamariamuita ateno entre os policiais militares daquele jeito, e o faria de modo ne-gativo para minha insero. Ento, resolvi produzir uma reengenharia visual.Cortei os cabelos, tipo militar, suspendi temporariamente o uso do brinco e mefantasiei de socilogo do establishment. Dei-me conta de que as mudanas que

    promovi na auto-apresentao derivavam dos esquemas a partir dos quais euvisualizava os militares e os policiais em geral. Baseava-se em meus prprios

    pressupostos sobre os esquemas de percepo dos policiais militares.Minha experincia pessoal me dizia que policiais militares no iam muito

    com o visual que eu adotava, ligando a ele valores negativos. Foi at engraadoconversar durante o trabalho de campo com ociais do choque, lembrandode outras circunstncias sob as quais eu j havia encontrado (melhor dizerreencontrado) com eles, nas manifestaes estudantis, principalmente. Euconversava com um ocial e mencionei uma manifestao da qual participarae que havia sido reprimida com muita violncia pelo Batalho de Choque. Elecontou-me, ento, que comandara a operao em questo. Foi, de incio, um

    pouco constrangedor, mas depois at conseguimos rir um pouco do episdio.Obviamente, no do confronto, mas de estarmos tranqilamente sentadosconversando sobre ele.

    Foi assim com certo ar de acadmico de direito que fui fazer pesquisa. A

    carreira jurdica uma aspirao generalizada entre os ociais. Muitos cadetes,depois de entrar na Academia, redirecionam seus interesses universitrios paraa rea jurdica. Neste sentido, busquei me guiar pelo estilo Cambeba1de ves-tir, cada vez mais comum, tambm, entre os cientistas sociais cearenses. Nofui totalmente feliz nessa empreitada. Certa vez , um cadete me disse que, aome ver entrar na Academia, na ocasio da formatura da turma de 1998, logosoube que eu no era militar, que eu no pertencia quele mundo, talvez nofosse nem cearense, pelo modo como eu usava minha mochila. Ningum aliusaria uma mochila como a minha em tal ocasio (solene) e do modo que eu acarregava, me dizia ele em tom de brincadeira.

    Quando eu participava de uma pequena roda trs ociais e dois civis,contando comigo durante uma reunio, onde dirigentes da Academia deba-tiamo futuro da entidade, um dos presentes, para exemplicar os preconceitosque persistiam no seio da tropa, apontou para a minha mochila e disse queno era mais aceitvel que um policial militar olhasse para um jovem como eu(durante o policiamento nas ruas) e achasse que carregar um objeto como aquelefosse coisa de vagabundo. A polcia precisava modernizar suas vises, diziaele. Compreender melhor os jovens para evitar entrar em conitos com eles.

    Um capito iria me contar mais tarde que, com o tempo, o policial militaraprende a distingir o cidado de bem do marginal, do vagabundo, domeliante, pelo modo de vestir, pelo jeito de andar, de se portar. Esse eraum aspecto importante desse conhecimento prtico com poder divisor dasatividades policiais militares. No sei se para me agradar, ele me disse que eu,

    por exemplo, no tinha je ito de bandido ou vagabundo, t inha mais era jeitode turista, principalmente por causa da minha mochila.2Alguns policiaismilitares se divertiam contando casos em que suas avaliaes, baseadas nomodo de vestir, na cor da pele, no tipo de veculo dos suspeitos, falhavam,

    causando-lhes constrangimentos.Mas entre vagabundo e turista, na verdade, eu tinha, como me foi dito emoutra ocasio por um major, era jeito para ocial da Polcia Militar. Alis, era de

    pessoas como eu (ele se referia ao meu nvel de escolaridade, principalmente)que a corporao tanto precisava. Em funo das palavras dele senti-me menosexcludo, apesar da minha mochila.

    Em outra oportunidade encontrei o mesmo major no gabinete do coman-dante da Academia. Ele referiu-se ao meu corte de cabelo em tom jocoso,dizendo que eu j estava quase querendo ser militar. Todas as vezes que fuiconvidado para solenidades da corporao, o ocial encarregado do conviteme orientava sobre o tipo de vestimenta que caberia usar no evento e, em umaocasio muito solene, um tenente pediu gentilmente para que eu lhe permitisse

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    guardar minha mochila no corpo da guarda da Academia, sem explicar o motivo.Ela denitivamente, de um ponto de vista semitico, no fazia parte daqueleespao. Mas como cheguei Academia?

    No dia 2 de setembro de 1997, z um contato telefnico com um coronelda reserva remunerada da PM, com quem eu estudara num curso de conver-sao em francs. Os ociais superiores mais destacados nos contatos como mundo civil costumam ter, alm de cursos de ps-graduao, domnio delnguas estrangeiras.

    Foi o meu colega de francs quem me veio cabea, quando senti ne-cessidade de iniciar as articulaes para o incio do meu trabalho de campo

    na Academia. Isto porque ele havia sido muito simptico comigo, duranteos 30 dias em que assistimos a cursos juntos. Interessava-se por minhasopinies polticas e sociolgicas acerca da realidade brasileira e gostavatambm de expor as suas, apesar de persistentemente divergentes das minhas.Conversvamos, durante a aula e depois dela, sobre temas variados, o quealimentou minha curiosidade quanto a compreender o modo de pensar deum ocial da PM.

    Nossas conversas desenvolveram-se sobre temas que se mostrariam recor-rentes nas entrevistas que eu teria com ociais at o nal da pesquisa. Tratavamdas seguintes questes: a) relaes entre polcia e imprensa; b) relaes entre

    polcia e poltica; c) proposta de desconstitucionalizao da PM; d) propostade desmilitarizao da corporao; e) proposta de unicao das polcias civise militares; f) aspectos da histria das polcias militares no Brasil; g) aspectosdisciplinares e controle da tropa; h) imagens dos conitos entre Polcia Militare Polcia Civil; i) comparaes entre as polcias estrangeiras e as brasileiras; j)

    prossionalizao da PM; (l) greves dos policiais civis e militares; m) o signi-cado da Revoluo de 1964 e da democracia no Brasil; n) os argumentos

    da esquerda demaggica face ao destino da Polcia Militar; o) as relaesentre polcia, cidadania e direitos humanos.Nas aulas que acompanhei no CFO, pude observar o processo de apren-

    dizagem e aquisio desse repertrio de temas e problemas. Os cadetes eramlevados a ler e a assistir reportagens sobre segurana pblica diariamente. Apsos comentrios do instrutor sobre detalhes tcnicos policiais, acompanhados dedicas de interpretaes e encaminhamentos sobre as questes, os cadetes eramconvidados a participar, emitindo opinies que eram corrigidas, conrmadas e

    premiadas pelo instrutor de acordo com os critrios interpretativos mais anadoscom os interesses da instituio. As variaes de instrutor para instrutor eramsempre comentadas comigo. Os cadetes dividiam seus instrutores de acordocom critrios especcos. Reconheciam maior preparo intelectual de uns, maior

    conhecimento prtico de outros, e iam denindo assim suas prprias prefern-cias e tendncias: mais viso de rua ou mais viso de escola, assunto queretomarei em captulos subseqentes.

    Voltando para meu colega coronel, ele me comunicou, logo no primeirocontato telefnico, que eu seria muito bem-vindo na Academia e que ele iriaconversar sobre a minha pesquisa com um outro coronel PM, tambm da reservaremunerada, para que ele me franqueasse o acesso entidade. Neste primeirocontato, descobri ento que seria preciso pensar o telefone como uma tcnicade entrevista, pois camos mais de uma hora conversando sem parar, eu tirandominhas dvidas sobre o modo como a corporao se organizava e pensava e

    o coronel me dando uma aula sobre segurana pblica no Brasil. Ao nal dotelefonema, disse uma frase que eu ouviria outras vezes da boca de ociais:A Polcia Militar est s suas ordens. Essa fala indicava, como depois medei conta, a possibilidade de um membro da corporao falar em nome dela,ou seja, que ele ocupava uma posio na estrutura hierrquica do grupo inves-tigado que o autorizava a falar em nome dele. Fao, pois, minha a observaode Leirner: foi possvel ver, ento, que o indivduo militar, em certa medida,responde pela instituio militar, pois ele se v, e tambm assim a coletividadev a cada um, como um elo nico de uma cadeia hierrquica pela qual todosrespondem, cada qual em sua posio (1997b, p. 164).

    Era um uso semelhante ao que um antrio, diante de visitas em sua re -sidncia, faz da frase sinta-se em casa. Em certas ocasies, fui recebido naAcademia com um confortante sinta-se vontade. E os ociais da reservaremunerada so excelentes antries, na medida em que, devido inativida-de (um tipo especial da aposentadoria militar que implica em compromissosmuito estreitos com a instituio), esto menos fortemente submetidos ca-deia de comando e obedincia. Eles so antries autorizados dos civis com

    credenciais que os habilitem a se aproximar da PM. Como discutirei adiante,minha credencial foi articulada em torno do pertencimento, como aluno, Universidade Federal do Cear.

    O discurso dos ociais sobre o interesse no estreitamento de laos entrea PM e o meio universitrio serviu como estratgia de insero, pois reforavao reconhecimento da minha credencial de pesquisador ligado universidade.Segundo gostava de lembrar um instrutor da Academia, citando nessas ocasi-es a Constituio Federal de 1988, os cidados tinham o dever de contribuir

    para a realizao da segurana pblica. E o lugar do saber (a universidade) eo rgo responsvel pelo combate criminalidade e violncia precisavam,segundo ele, unir seus esforos para uma luta mais prossional e democrtica

    pela paz social.

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    Deste modo, alguns ociais da reserva remunerada exercem a funo deponte entre os mundos civil e militar, o que lhes d certo papel de liderananos esforos de construo da face pblica da instituio. Enm, foram essesmediadores que zeram a minha intermediao junto ao comando da Academia,

    para que a ela eu tivesse acesso.Depois de algumas conversas bem formais e para minha surpresa com dois

    ociais da reserva, eu j tinha data e hora para visitar a instituio, ou melhor,fui prontamente convidado a assistir s aulas no CAO. Durante um ms, umavez por semana, das duas s seis da tarde, assisti s aulas com aproximadamente30 capites. De olhos vidos para compreender que tipo de movimentao de

    gente era aquela.Meu porto seguro era a biblioteca da Academia. Minhas atividades seresumiam a ler as monograas produzidas pelos alunos do CAO e do CSPe a entabular conversas informais com ociais, cadetes e praas que por alitransitavam. As conversas com os cadetes no foram, nessa primeira etapa,

    propriamente conversas, pois eles estavam sempre numa correria impressio-nante nunca imaginei que o meu objeto de estudo tivesse um cotidiano tocorrido. Falvamo-nos quase sempre em movimento. Saindo da biblioteca,entrando em forma, no caminho das instrues. Durante o dia, obter uma con-versa calma e sossegada com um cadete, s mesmo com a permisso de seusuperior, que o liberava das atividades coletivas.

    Descobri que apenas noite que a rotina deles mais calma. Eles, porm,esto to cansados e ainda precisam estudar durante o perodo noturno (os cade-tes costumam dizer que com o toque de silncio que as atividades comeam,

    pois tero que estudar, s vezes, a noite inteira para dar conta dos trabalhosescolares) que se torna muito difcil faz-los doar de bom grado um tempo paraentrevistas e conversas informais com um pesquisador to aliengena quanto

    eu, que no entendia patavina do militarismo.Em um primeiro momento, eu conversava mesmo, de sentar calmamente,tomando um caf, era com os ociais e com os soldados do Corpo da Guarda.Ademais, tive que me acostumar a ser um civil, um paisano, em um lugaronde todos estavam fardados. H um efeito de visibilidade impressionante emser o nico civil (e com roupas civis) em meio a tantos indivduos fardados , umefeito de visibilidade que tambm de deslocamento em relao ao universoem questo.

    Quando da minha primeira visita (de pesquisa e tambm a primeira vezque estive na Academia), no dia 9 de setembro de 1997, eu no sabia ainda qualera o procedimento de entrada. Tampouco conhecia as formas de tratamento

    para lidar com o universo militar. Na verdade, eu sabia teoricamente. Havia

    me informado sobre o tema, como cabe ao pesquisador fazer, mas carecia deconhecimento prtico sobre o assunto. Resolvi ento utilizar o termo senhor

    para todo mundo. Ao nal do trabalho de campo isso deixou de ser problema,habituei-me a usar uma srie de nomes que antes da pesquisa me eram alheios.J chamo com desenvoltura as pessoas de coronel, major, capito, tenente etc.,mesmo que ainda no tenha olhar clnico para distingir rapidamente com quemestou falando a partir dos signos que os policiais militares carregam sobre osombros, em suas fardas: as patentes. Pois ent re militares a autoridade patente!Mas o pesquisador no deve se deixar levar facilmente por essa forma expl-cita do sistema de autoridade, pois, do ponto de vista das relaes de poder,

    existem algumas nuanas importantes, como, por exemplo, a de um major quepode ser tido como lder, um exemplo a ser seguido, imitado e admirado,em oposio ao coronel pouco querido pelos subordinados, considerado atmedocre e, portanto, tido, simplesmente, na conta de chefe hierrquico. Oque est conforme s observaes de Castro (1990) em sua etnograa sobre aAman, onde o mesmo tipo de categorizao podia ser mapeado.

    Ao chegar pela primeira vez entrada da Academia, a sentinela que monta-va guarda perguntou-me o que eu queria. Expliquei-lhe que tinha um encontrocom o coronel Fulano de Tal. O soldado ento pediu-me que estacionasse ocarro e me dirigiu ao Corpo da Guarda. Na falta de entendimento do que elehavia dito, resolvi simplesmente seguir na direo que ele apontava com o

    brao. Eu no sabia que Corpo da Guarda era o grupo de soldados, cabos esargentos responsveis pelo policiamento do quartel, e que, ao mesmo tempo,a expresso designava o lugar onde cava a base desse grupamento, a saber,logo na entrada principal do bloco administrativo da Academia. Enm, todoquartel possui o seu Corpo da Guarda.

    Na entrada do bloco principal (o administrativo), tive tempo de ler na

    fachada: O futuro da Polcia Militar nasce aqui. Essa frase, tantas vezes vi-sualizada, ganharia outro sentido quando da cerimnia de formatura, descritano quarto captulo deste livro. Mandaram-me car na sala de espera, depoisde terem anotado meus dados pessoais (nome e carteira da identidade civil)e me dado um crach de visitante. A sala de espera contgua ao gabinete docomandante da Academia. Enquanto esperava pelo coronel e instrutor que euno conhecia pessoalmente, lancei uma olhadela para as diversas placas quecobriam as paredes do corredor principal do bloco em que me encontrava eram

    placas comemorativas de turmas de aspirantes a ociais. Em uma delas achei onome do meu primo que hoje capito. Elas seguem o padro de exibir o nomedos formandos, o ano da formatura, o paraninfo da turma, o homenageado eos brases ociais do estado e os da Polcia Militar, parecidos com os da univer-

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    sidade. Quase me senti em ambiente familiar. Note-se que eu estava no blocoadministrativo da Academia. Alm dele, existem mais trs: o que comporta aCompanhia de Alunos e as salas de instrues, o que serve de sede ao ranchoe aos dormitrios dos cadetes e o que alberga o CSP, construo mais recente,afastada das trs primeiras.

    Poucos cadetes circulavam no bloco administrativo depois descobri queeles so proibidos de faz-lo, exceto se tiverem autorizao para tanto. Foi aque encontrei o coronel por quem eu esperava e fui apresentado por ele a todosos ociais com quem cruzvamos. Aos poucos fui me inteirando do modo comoas coisas funcionavam por l.

    Eu supunha que militares fossem eternamente taciturnos, impassveis comorobs ( essa a impresso que causam quando esto perlados em uma leiracerrada de choque, prontos para dispersar uma manifestao), mas descobrique o ambiente na Academia era at alegre, um lugar onde os pares (leia-seos ociais de mesma patente) faziam gracejos uns com os outros, riam juntos

    pelos corredores de algum comentrio alheio (foi a primeira vez na minha vidaque vi um militar fardado rindo), enm, em vez dos soldados prussianos que

    povoavam a minha imaginao, encontrei pessoas bem descontradas. Mas noem todos os momentos, claro. No quero com isso armar que a atitude, oar e a postura marcial estivessem ausentes do ambiente, pelo contrrio, muitasseriam as provas do carter marcial observado no universo da Academia. To-davia, os militares no eram to caxias quanto eu pensava. Alis, esse termo,derivado do antropnimo Caxias, patrono do Exrcito, uma categoria nativada sociedade brasileira e era usado, s vezes, para designar o ocial ou cadetemais militarizado. Combina, igualmente, com a categoria mais freqente devibrador, ou seja, aquele que executa as atividades policiais militares commuito entusiasmo e disposio. Quanto mais vibrador um militar, mais ele leva

    a srio os cdigos de honra, de disciplina e de lealdade aos lderes da corpo-rao. Os cadetes citaram os integrantes do Grupo de Aes Tticas Especiais(Gate) como exemplo de vibrao, alm deles mesmos, que devem ser os maisvibradores de todos os integrantes da corporao.

    Entre novembro de 1997 e fevereiro de 1998, mantive-me afastado daAcademia para nalizar os trabalhos do mestrado e realizar pesquisas biblio-grcas e documentais. De fato, dezembro e janeiro so meses de recessoescolar na instituio, sendo que as atividades recomeam, pouco a pouco, a

    partir de fevereiro.Em 20 maro de 1998, retomei o contato com a Academia e passei a assistir

    aulas com aqueles que estavam iniciando o terceiro e ltimo ano do CFO. Agorasim, depois da experincia com capites, eu estava convivendo diretamente com

    cadetes em sala de aula. Tinha condies de observ-los em suas conversas,posturas e no modo como emitiam suas opinies sobre os assuntos relativos segurana pblica, discutidos em classe.

    Continuei igualmente a freqentar a biblioteca, s que dessa vez as con-versas informais comearam a incluir, mais freqentemente, os cadetes. Assim,iniciei uma nova etapa do meu trabalho de campo. Assisti, todas as quintas--feiras, a uma instruo com os terceiranistas.

    Os primeiros cadetes a buscarem aproximao comigo foram aqueles quehaviam trancado a universidade para fazer o CFO. Faziam questo de armaressa ligao com o meio universitrio. Um fora aluno de cincias socia is, outro

    de histria, um de direito, letras e assim por diante. Eles faziam questo de memostrar que sabiam o que eu queria, que tipo de estudo eu estava realizando,mesmo que no dessem maiores explicaes. Era como se me dissessem: nosomos de outro mundo, viemos de l, de onde voc vem. Foi isso que li emsuas atitudes.

    Descobri que, como os ociais, os cadetes e as praas do Corpo da Guardase dividiam em duas posturas: uma mais simptica ao meu trabalho e outramenos simptica (s vezes, claramente antiptica) minha presena na Acade-mia. Assim, os