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l eituras de nó s c iberespaço e literatur a alckmar luiz dos santos

leituras de nós

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leituras de nós c i b e re s p a ç o e l i t e r a t u r a

alckmar luiz dos santos

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Catalogação Itaú Cultural

Santos, Alckmar Luiz dos.Leituras de nós: ciberespaço e literatura. — São Paulo: Itaú Cultural, 2003.148 p. : il. – (Rumos Itaú Cultural Transmídia).

Índice OnomásticoISBN 85-85291-39-7

1. Arte e Tecnologia 2. Literatura e Tecnologia 3. Ciberespaço 4. Narrativa 5. I. Santos, Alckmar Luiz dos II. Título

CDD 700.105

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Para DanielPara Ana Luíza

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M.C. Escher Bond of Union c 2003 Cordon Art B.V. - Baarn - Holland. Todos os direitos reservados

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Uma das mais importantes ações do Itaú Cultural se evidencia no programa Rumos, de

apoio à produção artística brasileira, que contempla cada área com a qual a instituição

trabalha – artes visuais, cinema e vídeo, dança, literatura, mídia arte e música.

Fincado sobre o tripé formação, fomento e difusão, Rumos caracteriza-se pelo

mapeamento da nova produção em todo o território nacional.

Rumos é formação quando proporciona a artistas, curadores e pesquisadores a

possibilidade de participar de cursos, workshops e atividades que ampliem seus

horizontes intelectuais e profissionais.

Rumos é fomento porque abre espaço para a manifestação de novos artistas e

linguagens, fornecendo condições necessárias ao seu desenvolvimento.

Rumos é difusão, pois garante a circulação dessa produção – via exposições, exibições,

espetáculos, registros fonográficos e videográficos e publicações impressas e eletrônicas.

Formatado com base em editais de inscrição separados por área de expressão artística e

com características próprias que se coadunam com a política cultural da instituição,

Rumos já recebeu 7.007 projetos, dos quais 333 foram selecionados por equipes

compostas de profissionais especializados.

rumos itaú cultural transmídia

A primeira edição do Rumos Itaú Cultural Transmídia, ocorrida em 2002, baseou-se

no princípio de que arte tecnológica, arte eletrônica, arte digital e mídia arte são

conceitos, e não definições, de uma fronteira em contínuo movimento.

O programa privilegiou como campos de atuação ambientes imersivos, arte biológica,

arte telemática, computador como mídia, inteligência artificial, espetáculos multimídia

e instalações interativas. O objetivo do mapeamento foi detectar indícios da

incorporação dessas novas linguagens na produção artística. Entre 540 trabalhos

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inscritos, foram contempladas 13 produções e pesquisas sobre a convergência de

linguagens, mídias e tecnologias, de realizadores de São Paulo, Rio de Janeiro,

Pernambuco, Santa Catarina e Distrito Federal.

Os projetos foram selecionados por uma comissão independente, de acordo com três

modalidades: Produção, que apóia a execução de obras inéditas; Desenvolvimentode Projeto, voltada à formatação de propostas; e Publicação de pesquisas já

realizadas. Nesta modalidade, foram contemplados Leituras de Nós: Ciberespaço e

Literatura, de Alckmar Luiz dos Santos; Arte Telemática: Dos Intercâmbios Pontuais aos

Ambientes Virtuais Multiusuário, de Gilbertto Prado; e A Dança dos Encéfalos Acesos,

de Maíra Spanghero.

A comissão foi formada por profissionais de renome nos campos de atuação acima

citados: André Lemos, professor da UFBA; Antonio Carlos Barbosa de Oliveira, diretor

executivo do Itaú Cultural; Arlindo Machado, professor do programa de pós-graduação

em comunicação e semiótica da PUC, São Paulo; Fernando Perez, diretor científico da

Fapesp; Jézio Gutierre, editor executivo da Editora da Unesp; Jimmy Leroy, diretor de

arte da MTV Brasil; Helena Katz, crítica de dança; Loop B, DJ e produtor de música

eletrônica; Lucia Santaella, professora do programa de pós-graduação em comunicação

e semiótica da PUC, São Paulo; e Suzete Venturelli, professora da UnB.

O ensaio Leituras de Nós: Ciberespaço e Literatura busca entender os caminhos da

criação poética em computadores e em redes, com base em um mapeamento dos

hipertextos, dos programas e das páginas que veiculavam poemas e criações

aparentemente literárias na internet. Acompanha o livro um poema a ser lido em

ambiente hipertextual de navegação e publicado em forma de CD-ROM.

Pós-doutorando na Université de Paris III (Sorbonne-Nouvelle), Alckmar Luiz dosSantos é professor da Universidade Federal de Santa Catarina, vencedor do Prêmio

Redescoberta da Literatura Brasileira (revista Cult), do Prêmio Nacional de Poesia Visual

Joan Brossa (Espanha), e obteve segundo lugar no Prêmio Scortecci de Poesia.

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Prólogo, à guisa de advertência

Este livro contém uma série de reflexões sobre a criação poética em meio digital. Elas foram organizadas

em forma de ensaios, a que se quis impingir certo arremedo de ordem argumentativa. Daí o apelo à

silogística das premissas e das conclusões, que vão dando fio condutor à leitura de cada ensaio. Contudo,

estaria faltando um elemento importante, se, ao exercício do campo teórico, não se somasse a prática da

criação. Como resultado, se encontra anexo um cederrom contendo versos que foram dados à leitura em

espaço digital, com ferramentas de navegação fornecidas pela informática. O mais é exercício de ousadias

que cada leitor irá tratando de construir a seu modo, ao longo dos espaços que deixo abertos a suas

investidas e investigações.

O autor

Ilha de Santa Catarina, setembro de 2003

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Sumário

Introdução, à vera

Premissa Maior: A Multiplicação dos FragmentosProlegômenos a uma Ciência do Assim Chamado

Texto Literário em Meio Eletrônico 19Identidades e Subjetividades no Ciberespaço 24Saber o/no/do Ciberespaço 34Novas Estéticas Eletrônicas? 44

Premissa Menor: Espaços de EscritasUma Possível ou Pretensa Literariedade 59O Texto Eletrônico como Produtividade, ou as Relações entre Autor e Leitor 67Interferências e Dualidades 76

Conclusão Primeira: Novidade e Repetição 97

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Conclusão Segunda: Transbordos e Reformações do Texto EletrônicoExcesso e Excessivo 113Variações em Torno de um Tema Mesmo 116Resumindo: Dicotomias e Reversibilidades 119

Anexos

Bibliografia 138

Índice Onomástico 144

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“A vida é muito discordada.

Tem partes.

Tem artes (...)

e as vertentes do viver.”

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

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i n t r o d u ç ã o , à v e r a

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Viver é de sempre, e muito, perigoso.

E, entre os vários perigos que espreitam

essa nossa empreita de percursos poéticos

em ciberespaços, acrescentem-se dois:

um primeiro, o refúgio no passado, na comodidade

das tradições e dos pensamentos já feitos e refeitos;

um segundo, o encanto desmesurado com as

técnicas, os processos e as ferramentas.

Para escapar a ambos, a única possibilidade que se

vislumbra, do ponto e da situação em que escrevo,

é a de enveredar por um percurso de conhecimento:

conhecimento do ciberespaço através do poético,

do poético através do ciberespaço.

Lembrando sempre que “poético”, aqui, quer indicar

preferencialmente a poesia eletrônica.

Ou digital. Ou telemática.

Ou qualquer outro nome, que eles são legião.

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p r e m i s s a m a i o ra m u l t i p l i c a ç ã od o s f r a g m e n t o s

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“Ours is essentially a tragic age,

so we refuse to take it tragically.

The cataclysm has happened, we are among

the ruins, we start to build up new little

habitats, to have new little hopes.

It is rather hard work:

there is now no smooth road into the future:

but we go round, or scramble over the

obstacles. We’ve got to live,

no matter how many skies have fallen.”1

D. H. Lawrence, Lady Chaterley’s Love

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Prolegômenos a uma Ciência do Assim Chamado Texto Literário em Meio Eletrônico

Primeira cena: diante de uma tela, alguém imerso, o mais completamente que pode, em um ciberespaçoimenso e falsamente reconhecível, teclando dados, apagando datas, andando em círculos de raio infinito;descrição de um apocalipse cotidiano e privado. Diante disso, podemos dizer: são tempos de deriva, estesque vivemos. Vagamos à volta do próprio quarto como que percorrendo mundos e espaços e, após um diainteiro de estafante imobilidade, retornamos ainda mais enclausurados de uma jornada aos confins domesmo. Tempos de deriva e de vertigem. Tempos em que a vertigem do ser – aquela que nos individualizae nos funda como sujeitos ainda não intelectualizantes – cedeu lugar e palco à vertigem de ser, essavoragem que nos multiplica e nos afunda em mero espetáculo. Tornamo-nos trama e drama de encenaçãoque pretensamente interessa a outros por interessar apenas a nós mesmos. Paradoxo dessa cena fechadaque é o dia-a-dia fingindo ser aberto. Apenas fingindo, pois, nos chats, nos canais de discussão pelainternete, nos imeios trocados e mal tocados, levemente roçados por alguma resposta mais consistente, nabusca de arquivos e programas sem nomes, mas talvez com marcas registradas, nessas fímbrias de sentidos,nesses restos de significados, nesses vestígios de idéias, apenas catamos nossos pedaços espalhados pelomundo virtual. Pedaços largados aqui e ali, mas recolhidos ao final de cada dia, sem que tragam resquíciosou interferências relevantes de outros. Passamos por cada dia, vivendo e morrendo e ressuscitando comoum Osíris que pudesse reunir suas partes que ele mesmo espalhou, mas sem aprender nada com isso, semavançar, nem mesmo um pouco que seja, para além dessa nossa tragediazinha cotidiana de aparecer-desaparecer-reaparecer para nós próprios. Estamos entregues ao reino da fragmentação e do descaso.

Segunda cena: diante de uma tela, alguém imerso, nunca totalmente, em um ciberespaço indefinidamenteaberto, mas localmente mapeável pelo teclar seqüencial de dados, pelo elencar de datas, projetandopercursos de sentido incerto, mas definidos passos; narrativa de uma opera philosophorum dos temposatuais. Isso nos permite dizer: são mesmo tempos de deriva estes nossos, em que temos de improvisarinstrumentos com que esboçar rotas, com que evitar demasiados desvios, com que propor caminhos. Nãomais serviçais da fragmentação e do descaso, mas mestres da pluralidade e artífices do acaso. Tempos emque podemos passear à volta de nosso quarto sem repetir o percurso de sempre, levando até mesmo essenosso quarto a outras pessoas, resgatando um sentido plural da vida, esse que aponta sempre para o outroe que, em nós, é ausência e lacuna a suprir. Tempos em que a vertigem de ser é pretexto e motivo pararesgatarmos a vertigem do ser, para buscarmos nos outros, em seus restos, confundidos e misturados aosnossos, uma alteridade, e mais uma, e ainda outra, impedindo-nos de ficar presos à rigidez de sermosindefinidamente iguais a nós mesmos. Não mais um Osíris a recompor-se obsessivamente, igual a si próprio,ao fim de cada dia, mas um Simorg reunindo em si cada vez mais presenças e ausências de outros, comoessas frases epigramáticas deixadas em rodapés de imeios, e que são retomadas e retramadas por outros, eque podem um dia ou outro apresentar-se diante de nós, talvez até mesmo irreconhecíveis. Como um“Recado do Morro”, em muito semelhante ao de João Guimarães Rosa, mas em que cada frase fosserecolhida por uma pessoa diferente e cujo sentido total pudesse ser vislumbrado de diferentes modos, emdiferentes instâncias por cada uma das pessoas que, em algum momento, ajudaram em sua construção.

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É assim então que, entre a fragmentação e a pluralidade, se joga o sentido destes nossos tempos. Aliás, dequaisquer tempos. Mas parece que estamos inseridos numa dialética de estranha fatura: escolher umapluralidade sem fragmentação comprometeria a própria pluralidade, pois ela não saberia nem poderia sermultíplice; conformar-se com a fragmentação significaria confortar-se com o singular e o limitado que noscercam mas nada ensinam. Daí essa esdrúxula dialética sem síntese, em que, para que a pluralidade dominea cena, exige-se a presença e o risco da fragmentação. E, nesse caso, argumentos e silogismos talvez nãoconvencessem ninguém, o que nos obriga a recorrer seja à covardia do exemplo empírico, seja à construçãode uma mitologia contemporânea. Vamos, então, a essa mitologia!

Imaginemos um oceano coalhado de ilhas, cada uma com seu náufrago habitando-a solitariamente; cada umdeles largando à deriva incontáveis garrafas, todas levando mensagens dentro. Mas seriam mensagens deespecial feitio, pois, tendo cada náufrago um estoque limitado de papel (ou de outro material qualquer quesirva à escrita), ele produziria uma só e única longa mensagem, rasgando-a, a seguir, em tiras e colocandocada pedaço em uma garrafa diferente. Nos anos que se seguissem, a cada ilhota chegariam velhas garrafas,fatigadas e fartas de tanto oceano, carregadas de cracas e de marcas, mas ainda trazendo no interior, mesmoprecariamente, esses pedaços escritos. Como recompor, a partir disso, as mensagens inteiras que outrosescreveram? Como retomar até mesmo a própria mensagem que algum náufrago de uma dada ilha enviou,ele mesmo, mas que com o passar dos dias acabou esquecendo em boa parte? E como entender o que os dias,os sóis, as tempestades, as rochas, as umidades e os detritos modificaram nessas mensagens? Falei, não poracaso, em Osíris (e, observem bem, não em Penteu). O deus despedaçado, que se torna senhor do reino dosmortos, pode ser também aquele que ensina os caminhos da ressurreição. Ao ter seu corpo repartido eespalhado, mostra como ele pode ser retramado e recosturado, tornando-se diferente e maior do que era.Daí se poder afirmar que ele aponta, nessa perspectiva de agora, não para uma fragmentação insuperável einelutável, mas para uma pluralização de nós que nos resgata dessa primeira e necessária fragmentação.Como se, para chegarmos à pluralidade, tivéssemos que passar obrigatoriamente por uma espécie de mortealquímica, a obra a negro que é essa fragmentação. Osíris seria então, por outro viés, como que o texto dadoa tal leitor mítico, capaz de resgatar nesses pedaços esparsos e casuais um sentido que talvez (ainda) nemestivesse na inteireza da mensagem quando ela foi feita, antes de ser fragmentada.

Mas há um detalhe importante a ser explorado: na tentativa de recompor alguma história, qualquer umdesses náufragos pode hesitar indefinidamente entre reescrever a própria história ou retomar a de outros.Em outras palavras, ele pode escolher retramar uma das mensagens originárias e primeiras, a sua própria oua de outros. Nesse caso, ele só terá mesmo uma única história a contar: a de seu fracasso, pois, como jáadmitia Bentinho, de D. Casmurro, “não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto éigual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos daspessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”. E o que falta é justamente a mensagemprimeira e primordial, perdida nessa auto-expulsão de seu paraíso particular. Ou a totalidade das mensagensescritas por outros, mas que também não chegam nunca, inteiras, a sua ilha. O náufrago vai se sentir comoum outro Adão, terá de admitir uma queda que nenhuma narrativa mítica consegue, nem ao menos,

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substituir. O que sobra, então? Apenas um tartamudeio insolente, a encenação de um arremedo desabedoria, o contar de uma história, a única que ele considera possível ainda tecer, essa narrativa de comofoi incapaz de sair de seu círculo de idéias e métodos, de tentativas de leituras, de perspectivas deinterpretação. A narrativa de como ele, não tendo como voltar à origem das mensagens e dos tempos,encerrou-se na contemplação narcísica de si próprio, justamente para não ver seu fracasso. Talvez, uns poucosdesses náufragos, aqui e ali, consigam vislumbrar uma estratégia diversa. Se não é possível essa reconstruçãoda originalidade para sempre perdida, se não se consegue mais, como os caçadores de sonhos do DicionárioKazar, recompor o corpo inteiro do Adão Kadmon, se as narrativas míticas não fornecem mais nenhum mapade como voltar à origem das mensagens, das escritas e dos seres, o caminho a trilhar, então, é esse de tramaruma mitologia do aqui e do agora. Esses náufragos terão, assim, de apossar-se dessas partes das histórias deoutros, chegadas ao sabor e ao acaso das marés e dos ventos; fazer delas partes da sua história e fazer da suapedaços das histórias de outros; propor uma narrativa multiforme, plural, em movimento, que não apaguesua individualidade, e também não se resuma a ela apenas. A partir daí, sua vida inteira muda de sentido:não mais os sentidos outorgados e contados por uma mensagem original e primeira, mas os sentidos que elessão capazes de inventar com os materiais, imagens, idéias e histórias que outros lhes dão, que eles tiram desua precária memória, nessa trama de nós e pontos infindáveis, prenhes de sentidos possíveis.

Tal é a empreita que aqui se intenta: ler esse hipertexto eletrônico e telemático em que nos inserimos cadavez mais, com os gestos e os processos do poético, para espreitar formas e fôrmas de impor a ele e/oudesencavar dele sentidos e significações (precárias que sejam). Mas, para isso, é necessário recortar algumcaminho nessa selva selvaggia de significantes e de percursos. É necessário que aprendamos como nosmover por entre ligações e sítios, como prever percursos de um provedor a outro, de uma URL a outra. Econtamos talvez com alguns mapas, parciais sempre: a literatura, que se esgueirou, freqüentemente, porvizinhanças próximas à ciência e à técnica, compondo e recompondo textualidades sem o conforto doesperado e do reconhecido; especificamente a poesia, useira e vezeira em pluralidades e percursos nuncadefinitivos de leitura. Daí nossa escolha em andar pelos caminhos da poesia eletrônica, essa que é feita,desfeita e refeita no ciberespaço, apreendendo deste as nuanças da interatividade (homem-máquina,homem-homem, máquina-máquina) e da iteravidade (essa retomada incessante de dados e rotinas quedeve exaurir o processo antes de cansar o usuário). Em outras palavras, propomos utilizar a perspectivaliterária para delimitar um objeto – a Rede – inserido em um novo campo de sentidos e de possibilidades –o ciberespaço –, mapeando um objeto cultural não mais limitado necessariamente ao campo literário.

* * *

Jamais a literatura, a boa literatura ao menos, apostou na univocidade. Isso quer dizer que, entrepluralidade e fragmentação, a criação literária sempre soube escolher uma ou outra, às vezes uma e outra.A bem da verdade, o texto literário nunca fincou pé na permanência e na linearidade, ao contrário do quemuita gente tem afirmado (fruto, talvez, de leituras apressadas do S/Z, de Roland Barthes). Tal equívocoparece decorrer de certa confusão entre texto literário e livro. Este tem sido, nos últimos séculos, o meio deveiculação, a base material do texto, como já o foram a voz na literatura de tradição oral e os papiros,pergaminhos e códices nos primórdios da tradição escrita. E o sucesso dessa base material – o livro – se

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explica por ela ter conseguido associar maneabilidade2 a permanência. O texto literário nunca saberiapermanecer idêntico a si próprio, já que sua objetividade não se confunde com uma materialidade que natradição impressa se assenta no livro. Assim, se este é linear (nem todos os livros, mas aceite-se a simplificaçãoem nome da imensa maioria), se o livro é então limitado e estável, o mesmo não pode ser dito do texto,qualquer que seja ele, sobretudo o literário. O que ocorre com a mudança da base material, da páginaimpressa para o meio eletrônico, é que, em certo sentido, o livro se aproxima do texto, ele se deixa contaminarpela fluidez, por determinada imprevisibilidade, pela não-linearidade que foram, sempre, as do próprio texto.Aquilo que no texto é intertextualidade, no livro eletrônico encontra correspondência na pluralidade depercursos e na heterogeneidade de materiais (associações de matéria verbal, imagens, sons etc.).

Uma possibilidade de ler essa multiplicidade de materiais, de significantes e de significações, estaria na provávelutilização de modelos combinatórios,3 que tenderiam a delimitar as inúmeras aproximações intratextuais assimcomo a multiplicidade de referências e interferências entre um texto a ler e textos outros que compartilhamtodos um mesmo campo de leitura. Mas essa tentativa encontra logo seus limites, sobretudo nos livrosimpressos que apostam na multiplicação das intratextualidades.4 De fato, como trabalhar, por exemplo, comalguma lógica de mundos possíveis (como propõe Umberto Eco), se é a própria possibilidade de mundos que seencontra também em discussão? Nesses casos, a tática combinatória esbarra na impossibilidade de manipulardiretamente uma massa de significantes que escapa totalmente ao controle da leitura e até mesmo ao crivo damemória. Além disso, a atual mudança do sistema literário não é apenas quantitativa, como ocorreu quandodo abandono dos códices em favor da imprensa. Ela é também qualitativa: o que testemunhamos é semelhanteao ocorrido na passagem da tradição oral para a escrita, com uma significativa e radical alteração dos modosde organização, de estruturação e de consulta do suporte da obra literária.5

Daí essa atração pelas ciências do caos e dos fractais que observamos não apenas entre os literatos, mas nasciências humanas em geral. À aparente desordem dos materiais e dos significantes, tenta-se responder comordens de nível superior, que descubram e esbocem um determinismo sem nenhuma previsibilidade.

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Isso parece ser útil quando associado a qualquer obra, mas também, e sobretudo, aos livros eletrônicos.Nestes, se tentamos desvendar certa sistematização em suas articulações de sentidos e significações, épreciso que, de um lado, se fuja do impressionismo das interpretações disparatadas e das navegaçõesdisparadas; e, de outro, deve-se cultivar e apreciar o plural7 de que é feito esse livro eletrônico tanto quantoo texto que dele se faz derivar. No caso, trata-se de articular uma correspondência de geometria variávelentre três elementos: um espaço de construção de sentidos – o ciberespaço –; uma base material – o livroeletrônico –; e o próprio texto. Utilizar, então, essa aproximação fractalista da obra digital significa colocarobjetos n-dimensionais sob a batuta de operadores lógicos capazes de inseri-los numa ordem plural deescritas e de leituras, em que os sentidos de ambas são sempre reversíveis. E que operadores seriam esses?Como circunscrever e delimitar seu espaço de atuação? E, ainda, como estabelecer determinismoscambiantes que, sem apontar para uma apreensão teleológica ou essencialista do texto, dêem conta dasaparências e das materialidades proteiformes do livro eletrônico? Questões, todas, que ao longo desteensaio, se não respondidas, deverão ser ao menos mais bem enunciadas. Questões que apontam certamentepara os saberes que se vão delineando, esboçando, construindo, colocando em dúvida, superando, dentrodessas redes de nós e de todos nós, que é o ciberespaço.

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Albrecht Dürer Melancolia l, 1514 Rosenwald Collection, Image c 2003 Board of Trustees, National Gallery of Art, Washington

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Identidades e Subjetividades no Ciberespaço8

Talvez não seja inútil insistir que, neste espaço de escrita que aqui se desenha e se emenda, entende-seciberespaço como hipertexto ou texto eletrônico, que as diferenças entre eles não são, por vezes, mais doque filigranas finórias e não muita profundidade acrescentariam à discussão. E, no caso de texto, temosmuito a dizer com base em uma experiência que, alçando o literário à ribalta, pode nos dar o direito deresvalar para espaços outros de significações. Com isso, é a própria cena telemática do (hiper)texto que sepode dar a (re)conhecer, partindo de um espaço que se quer literário, mas que permite ver rastros, vestígiose contornos das subjetividades nele envolvidas. Há também uma suspeita de que do telemático pode-sepassar ao dramático, percebendo no ciberespaço uma instância que é produção textual, que é enunciaçãosignificante e, ao mesmo tempo, encenação de seres e de linguagens. Mas isso é linha a ser tricotada maisadiante e não vamos meter carros à frente de bois. No momento, concentremo-nos na maneira como sepode ler (n)esse espaço habitado por sujeitos e processos telemáticos, aparentemente compartilhado porpessoas e dispositivos informáticos.

Por paradoxal que pareça, uma experiência importante que podemos ter dos textos eletrônicos ocorrejustamente quando desligamos o computador e se apaga a tela. Nesse fundo opaco, que instantes atráseram brilhos e pixels, aparece uma figura esvanecente, nossa fisionomia, um pálido reflexo que somente semostra a partir do monitor desligado. Desligada a máquina, o que se vê ao fundo, precariamente refletida,é então essa nossa imagem diante da tela, trazendo à tona e explicitando, talvez, o incômodo de umaposição em que nos surpreendemos inquirindo subjetividades e perturbando identidades. É como se sereproduzisse a difícil posição do indivíduo que na Procura da Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, sevê colocado diante da palavra, que “te pergunta, sem interesse pela resposta, / pobre ou terrível que lhederes: / Trouxeste a chave?”. Contudo, o que perturba e incomoda é que o inquisidor não é palavra alguma,ele se parece muito conosco!

E o que essa imagem pediria, instigaria, exigiria, possibilitaria? De um lado, a busca de si, esse percurso queaponta para o conhecer, mais ou menos exato, de quem ou de que seria tal reflexo precário, essaindividualidade que se vislumbra na tela do computador desligado. De fato, apresenta-se diante de nós apossibilidade de reconstruir, ainda que parcialmente, nossa própria imagem, de recortá-la contra um fundoindistinto e indiferente de vidro neutro e de recuperar a capacidade de uma reflexão primeira ouprimordial, quer dizer, recuperar um nosso olhar voltado para nós mesmos e para nosso próprio olhar (oupara os traços e vestígios que de nós sobraram, uma vez suspensa a viagem pelo ciberespaço, terminada anavegação dos hipertextos, esgotado o reconhecimento dos programas e dos aplicativos). Temos aí omesmo tipo de reflexão das mãos que se tocam tocando, do pensamento que se pensa pensando, em suma,uma reversibilidade que não é necessariamente dialética e possibilita uma significação que vai além dosdiscursos, das falas e das obras já envelhecidos e, portanto, reconhecíveis e manipuláveis. O que se presenciaé a primordialidade que está por trás de todo gesto significante, de toda expressão e, em síntese, de todalinguagem. Mas é importante ressaltar que se trata de um trabalho de Sísifo (que, já se disse, é tambémtrabalho decisivo, ou incontornável), de perscrutar traços e vestígios à cata de fragmentos de nós que

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formem uma cadeia de precária coerência (mas, mesmo assim, de coerência). É inevitável trabalho e aomesmo tempo interminável, pois, sendo religado o computador, a interface gráfica do Windows® ou doMacintosh® vem novamente justapor uma máscara de cores e de movimentos, escondendo nossos gestos eintenções sob os deslocamentos céleres ou morosos do cursor sobre ícones, imagens e palavras, e sob astransformações e as rotações das imagens. Daí a percepção de que nos perdemos no ciberespaço, de quenossos vestígios e fragmentos se isolam, se desgarram e não nos entregam nada além de uma identidadedifusa e para sempre desfigurada. No entanto, se insistíssemos na lembrança de nossa fisionomiaperscrutando o fundo vítreo da tela desligada, poderíamos talvez justapor outro percurso aos rumos dasimagens, das ligações e dos sítios desfilando diante de nós, poderíamos impor outro ritmo à celeridade deprocessamento de máquinas e redes.

Porém, essa não é a única possibilidade: nossa tênue imagem ao fundo do monitor desligado pode resultarem outro percurso, em que não se vai além da reafirmação do mesmo, ou seja, de nós próprios. Comoresultado, não temos nada além do que o retorno a uma imagem nossa, tão plana e tão insignificante comoa tela do computador apagado. Em outras palavras, teríamos a concretização de um solipsismo que estásempre rondando nossas navegações, do mesmo modo como espreita nossas reflexões e nossos projetos. E,nesse caso, que conhecimento teríamos de nós? O que veríamos de nós, senão a confirmação de nossaprópria fisionomia inapelavelmente sobreposta às coisas e aos outros? De fato, em tudo e em todosveríamos a mesma marca, os mesmos traços, a mesma feição. E que conhecimento poderia vir dessaoperação intelectual que, com efeito, seria apenas um arremedo de auto-reconhecimento? E como fundaraí nossa identidade, pois entre nós e o mundo exterior não haveria justamente essa distinção originária efundadora que nos dá um mundo vivido e uma vida para habitá-lo? Parece que se retoma assim aquelaexperiência de repetir uma palavra à exaustão até que ela se torne, pouco a pouco, estranha, impenetrávele até mesmo hostil; por ser tantas vezes enunciada, ela deixa, aos poucos, de ser familiar e conhecida, eladeixa de significar. Ao se tornar como que a única palavra a sobrar em um léxico esvaziado, ela perde todasignificação, justamente por ter-se afastado das outras palavras, por não ter mais como construir suasignificação na diferença recíproca que guarda com elas. Quando nos vemos reduzidos a nossa própria eúnica contingência, nada podemos tirar senão a pobreza da análise, aquilo que não nos dá nada além doque já havíamos aí colocado. Daí a sensação de que nossa imagem imposta à tela do computador poderesultar em uma espécie de ausência nossa diante de nós mesmos, uma ausência sentida paradoxalmentecomo presença, como uma volta melancólica a nós através de rastros, traços, vestígios e sinais que parecemser evidentemente nossos, mas que trazem a marca do estranhamento e da distância, do aparenteapagamento de nossas singularidades pelo desligar da máquina. E, se fôssemos apenas nós próprios e nossacondição, nesse caso, nossa condição seria um papel frouxo e molhado em que tentaríamos manterindeléveis os elementos e os vestígios de nossa presença, mas submetidos a uma perda de profundidade ede perspectiva que os devolveria não mais como presença constante de nós no mundo, como dito acima,mas como presença gasta e, assim, esvaziada de sentido e de qualquer identidade possível.

No outro lado desse espectro, está o computador ligado permanentemente à rede, está a saciedadeexcessiva, o fastio cibernético de que, por vezes, não nos damos conta, senão depois de muito ter navegadopelos mais diferentes sítios e endereços, entregues à volúpia de buscar um ícone, uma informação, um dado

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que sempre estarão, segundo se faz crer, no próximo percurso, que pretensamente se mostrarão disponíveisno endereço que ainda aparecerá na tela. Mas eles não chegam nunca até nós, ou talvez até cheguem, masnos encontramos tão entorpecidos que já nem mesmo sabemos reconhecê-los, nem conseguimos reagir a eles.No caso, as imagens, os gestos verbais, os ícones, os deslocamentos, os sons acabam se empanturrando depossibilidades de significações, que se tornam, então, inúteis e impenetráveis. Trata-se de uma espécie depresença ausente, de uma perda de sentido dos objetos dentro de seus próprios detalhes e vestígios. Mas, atémesmo aí, não escapamos à fatal atração dessa contemplação melancólica de nós próprios, pois as imagens,os gestos verbais, os ícones, os deslocamentos, os sons, ao se fartarem e se esvaziarem de sentidos, acabam porse tornar inúteis, impenetráveis e vazios. E, nesse movimento, deslocam a contemplação para um outro vazio,isto é, para a ausência de nós próprios, dotando-nos da mesma inutilidade e da mesma impenetrabilidade quese exibem sobre a tela, à imagem dos belíssimos versos com que Mário de Sá-Carneiro fala de sua Dispersão:“Perdi-me dentro de mim, / Porque eu era labirinto / E, hoje, quando me sinto, / É com saudade de mim”.

Estando ligado o computador, corremos sempre o risco de nos entregar ao desenfreado e ao desmesurado dasconexões multidirecionais, dos saltos abruptos e incessantes, das vizinhanças forjadas à força, experimentandouma saciedade excessiva que guarda inesperada similaridade com aquela descrita acima, em que nos escondemosatrás de um solipsismo fechado e redutor. Nos dois casos, há como que um estrangulamento das significações, jáque tanto a privação quanto o excesso terminam por nos fazer cair num vazio ou numa inutilidade dossignificantes. E ambos nos enredam em uma melancolia da significação, que é nossa e é também dossignificantes, melancolia que talvez somente possa ser superada por uma busca, por uma reafirmação, por umaretomada, por uma recostura – extremamente trabalhosas, mas inevitáveis – da própria identidade. De fato, asduas experiências – seja a da navegação descomedida e sem amarras; seja a do fechamento em sua própriaimagem – evocam um Narciso colocado diante de uma imagem de si que já não guarda mais unidade, que já nãolhe garante nem mesmo o eco de sua voz ou o reflexo do que conseguiria identificar como sendo seus própriostraços ou vestígios espalhados pelo mundo que ele ainda pode ver diante de si.

No entanto, melancolia pode remeter a referências demasiadas, pode permitir ou exigir comentários infindos,com o que praticamente cairíamos na situação descrita, indo da melancolia como assunto à melancolia comosituação. É assim que, para escapar a essa ditadura do melancólico (que, no caso, resultaria de uma angústiado excesso de interpretação), vou-me permitir uma abordagem mais leve (sem que ela seja, por isso, levianaou superficial), tentando articular uma leitura do ciberespaço que seja também o esboço de uma saída dessasituação de melancolia. No caso, uma das referências minhas preferidas está na gravura de Dürer justamenteintitulada Melancolia I, que acabei tomando como possível fio condutor de uma compreensão dessesmecanismos de significação, de subjetivações e de construção de identidades no ciberespaço. Vamos a ela!

Como se deu essa transposição da gravura de Dürer para o ambiente telemático? Utilizei-a como ponto departida, como inspiração, como catalisador de uma compreensão dessa melancolia do ciberespaço, talvezagindo à maneira dos leitores do I-Ching, que se servem do casual para pretensamente chegar ao essencial.Aos poucos, traços de semelhança e possibilidades foram surgindo e permitindo que eu me desvencilhasseda gravura e entrasse mais e mais profundamente nas entranhas dos textos eletrônicos e do ciberespaço. Oque vou tentar fazer aqui, por conseguinte, é apenas um resumo desse percurso que partiu de uma visãoalegórica da gravura, passando por um trajeto exegético de seus elementos para chegar, finalmente, a uma

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compreensão direta e mais acurada de meu objeto de reflexão. Alguns poderiam, com todo o direito,argumentar que a escolha de tal perspectiva de investigação – no caso, essa dada gravura – é tão (i)legítimae (não) convincente quanto qualquer outra. O que apresento, então, como argumento é apenas um pedidopara que julguem essa escolha com base nos resultados da discussão, não condenando a priori os postuladosde onde parti. O que interessa não é o que a média das pessoas poderia associar à obra de Dürer, mas o queeu quero ou pretendo ver como apoio a minha leitura do ciberespaço. De fato, é a coerência e a capacidadede convencimento desta última que servirão para indicar o acerto (ou o fracasso) de minha estratégia.

Tomando então a gravura, podemos perceber nela uma multiplicidade de elementos que se acumulamnuma ordem que inicialmente dá a impressão de fugir a toda tentativa de sistematização: figurasgeométricas, objetos de uso diário, imagens carregadas de possíveis alegorizações, referências muitoprovavelmente bíblicas etc. Todavia, essa multiplicidade parece escapar ao anjo – pretenso elemento centrala partir do qual seriam endereçados os olhares para os outros elementos. Ao menos a gravura se organizade modo a dar a impressão de que vários objetos e seres estão dispostos a sua volta, sem que ele consigaapreender o sentido (ou os sentidos) dessa multiplicidade de coisas. Esta – a multiplicidade – torna-se paraele legião (no sentido da legião de demônios que, no Novo Testamento, Jesus expulsava de umenergúmeno), e não pluralidade ou variedade do mundo vivido. Diante disso, não seria absurdo oudespropositado falar de um anjo caído, de uma criatura divina, mas perdida na materialidade múltipla dascoisas. Ele não consegue apreender essa legião de existentes e de diversidades, já que se encontratotalmente preso à busca de um princípio único causador (o vértice do compasso, o centro da eventualcircunferência a ser desenhada por ele, um centro tão excêntrico quanto o ponto de luz que, ao fundo, nãoconsegue ser foco nem origem do círculo que se recorta contra o horizonte). E esse princípio mostra-setotalmente desvinculado da pluralidade efetiva e direta das coisas e dos seres.

Nesse sentido, a angústia da situação do anjo nasce do mesmo motivo primeiro que levou aodesenvolvimento do pensamento grego, a oposição entre o uno e o múltiplo. Porém, o que, para os gregos,foi impulso e incentivo para o conhecimento, para o anjo, mostra ser, ao contrário, peso e desalento: apluralidade de elementos não parece entrar no desenho que ele tenta esboçar, pois o olhar perdido aolonge afasta do traço e do compasso a diversidade, sem chegar a encarar essa luz que ao fundo aponta paraas coisas, as ilumina e dá-lhes possibilidades de sentidos e de coerências. De fato, ele parece estarconcentrado unicamente na busca de uma totalidade inútil e distante, de uma totalidade que, com efeito,obscurece e escamoteia o conjunto e a variedade dos objetos e dos seres. Entre essa luz que vem do fundo(e que, na nossa leitura, não pode deixar de remeter a luzes e a cintilâncias de telas e de monitores) e oolhar do anjo, situa-se toda uma coorte de coisas, uma materialidade múltipla que acaba, de fato, por seesconder a ele e por esconder dele a própria totalidade (não revelada, mas que poderia ser encontrada,reconhecida, aprendida nas coisas e em suas disposições, estivesse o anjo em outra posição). Emconseqüência, é a visão de si próprio que fica escondida, ou perdida em meio à barafunda de uma variedadetão sem sentido – para ele – quanto esse olhar melancólico e falto de perspectivas. E que variedade deelementos seria essa, segundo a perspectiva do anjo? Uma escada que dá em nada ou lugar nenhum, inútilescada em que a base terrena parece ter perdido o pé e desaparecido, escondida entre restos e ruínas, e emque o topo não leva nem a transcendência, nem a entendimento, nem a paraíso algum, inútil escada de

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Jacó sem o menor traço da luta deste com um anjo (outro, claro!), esboçando na verdade e na aparência(ou na verdade da aparência) uma inútil luta consigo mesmo.

Temos ainda figuras geométricas misturadas a figuras naturais (como o animal situado entre um poliedro euma esfera), acompanhadas de produtos artesanais (tecidos, balanças, sinos etc.), numa provável propostade conciliação entre as três esferas (abstração, criação e construção), ou num possível acordo entre espíritode geometria e espírito de finesse. Trata-se de conciliação e de acordo que não são mesmo percebidos oucompreendidos pelo anjo, perdido em meio ao que ele poderia considerar apenas despojos de si próprio. Àdireita dele, encontra-se uma criança, ou melhor, um pequeno anjo de aparência infantil e despido deauréola (a não ser pela circularidade de um dos pratos da balança que, acima de sua cabeça, proporcionaum arremedo de auréola; já o anjo, ele próprio, está ao menos coroado de louros). Logo abaixo dessacriança-anjo, está um animal, repousando indiferente ao olhar e à atenção que ela parece dirigir-lhe. E oconjunto de ambos, quando os destacamos em meio aos demais elementos, poderia indicar uma progressãodo animal ao anímico, mas, novamente, um conjunto e uma progressão que não se dão senão a nós queestamos postados fora das perspectivas do anjo, que a ele nada disso se dá, nada disso se deixa ver. Temos,talvez alegorizados, a origem temporal e o encaminhamento para o telúrico desse anjo, mas que, para ele,não passam de fragmentos de uma identidade que parecem escapar a sua leitura, a seu entendimento. Aochão, encontra-se ainda o que pode ser visto como restos de uma construção iniciada mas não terminada,como se fossem ruínas de si próprio, exposto que está a uma multiplicidade que ele não entende, nãopercebe, não controla e não organiza.

E o que seria, então, esse anjo e esse espaço, essa disposição de coisas e essa balbúrdia de sentidos e designificados possíveis? Muita coisa, possivelmente, mas todas elas, se propostas ou construídas a partir daperspectiva intradesenho do anjo, remeteriam inapelavelmente a um centro de significações falho ou vazio.Tendo a percepção embotada pela multiplicidade incompreensível (para ele!) das coisas do mundo, o anjoafunda-se numa queda, que é busca inútil de uma ordem única para o mundo e, a fortiori, de umaidentidade absoluta para si próprio. Não há entre os objetos um espelho que lhe devolva, como imagemcoerente dele próprio, essa busca por sentidos e ordens. Como resultado, ele não percebe nem a unidadede si, nem a real extensão da pluralidade das coisas, pois sua percepção se encontra embotada por umavariedade de que ele não consegue dar conta. Se ele fosse apenas anjo, ainda guardaria a unicidade docosmos; se se tornasse tão-somente humano e material, seria capaz ao menos de perceber ou sentir ou,mesmo, de viver a pluralidade da existência; sendo anjo e (de)caído, perdeu a primeira condição, semganhar a segunda. Assim, é sua identidade que fica perdida em meio à multiplicidade de coisas, designificantes, de possibilidades de sentidos. Algo parecido ao que pode ocorrer também com os leitoresdesse texto-gravura: afinal, seu tom fortemente alegórico leva a uma acumulação de possibilidadesexegéticas, em tudo semelhante ao acúmulo de objetos cercando o anjo, o que pode causar um certocansaço de ler, de escrutinar e recensear significações possíveis e coerentes. Em decorrência, é a fadiga deler-se a si próprio que se instala, numa busca incessante, mas infrutífera pela própria identidade, partida erepartida, esta, pela multiplicidade de coisas, de leituras, de possibilidades de significações e de desvãosinterpretativos em que se pode perder tanto o uno de si quanto o plural do mundo, ou vice-versa, a unidadedas coisas e a variabilidade de si.

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Essa busca pela própria identidade, em meio a fragmentos e ruínas e multiplicidades, não precisa sernecessariamente melancólica. Assim como a exploração do ciberespaço não tem necessariamente que cairnas duas formas de melancolia acima descritas: a da multiplicação indiscriminada e incontrolada deinformações e a do solipsismo e do fechamento individualista em si mesmo. De fato, há vários processos deconstrução de identidades e de subjetividades no ciberespaço e nem todos devem levar necessariamente aessa lacuna de si e a essa ausência de sentidos (seja pelo acúmulo indefinido e indiscriminado designificantes, seja pela imposição de uma fisionomia única e redutora a todo e qualquer elementosignificante). Mas mesmo essas duas devem fazer parte de uma tipologia mais geral e mais abrangente quetente dar conta das diferentes maneiras de o sujeito colocar-se diante de si e dessa teia de elementossignificantes que estamos chamando de ciberespaço. Em resumo, podem-se propor três tipos básicos deprocesso de subjetivação: 1) uma identidade absoluta e além do sujeito; 2) uma identidade relativizada eaquém do sujeito; 3) uma identidade provisória e não programática. E é claro que estaremos, de ora emdiante, fazendo pender discussões e pontos de vista para esta última, pois ela parece ser, diante das duasoutras, a única possibilidade de escapar à melancolia que vem da proliferação descontrolada do múltiploou que resulta da repetição de si mesmo.

Tomemos então, primeiramente, essa identidade absoluta e além do sujeito. Ela parece se manifestar,por exemplo, pelas próteses tecnológicas e/ou cibernéticas com que se dotam os corpos (e, em decorrência,as próprias atividades humanas implicadas). Vale dizer que, quando nos referimos a humano, estamospensando naquilo que se encontra ainda aquém dos gestos e das intenções significantes e lhes serve deponto de partida: por trás da atitude de indicar um objeto ou uma direção, está o dedo que aponta, a mãoque o contém, o braço que o sustenta, o ombro que o ampara, o tronco de onde ele nasce, em suma, estáo corpo inteiro flexionado e fletido para dar a si e entregar ao mundo certa significação. Quandoescondemos nosso corpo com aparatos com que ele não nasceu, quando outorgamos a nossos gestos umaorigem externa ao espaço e ao alcance de nossos corpos, estamos naquela situação, criticada por Virilio, denos dotarmos de uma virtualidade realizada às expensas de nossa própria circunstância corpórea. Estamos,também, na posição descrita (e exaltada) por Pierre Lévy, quando se refere ao duo pensante homem-máquina. No caso do ciberespaço, trata-se da impressão de que nossa identidade não passaria mais peloreencontro de nós em nossos próprios gestos, no reconhecimento de nossa fisionomia no que fazemos e nassignificações que propomos às coisas e aos fatos, na maneira como visamos a um mundo de significaçõesque se instala a nossa volta. Nossa identidade estaria, dessa forma, não na extensão de nossos gestos e denossos corpos em direção a algum elemento significante que eventualmente construiríamos ouperceberíamos ou para o qual apontaríamos, mas apenas e tão-somente no além de uma extensãomaquínica, de um processo cujo sentido e cujo alcance nunca tivessem feito parte de nossas intenções epercepções diretas, de um processo, em suma, que viria até nós sem ser por nós produzido ou percebido.

Trata-se de uma identidade que poderíamos classificar como místico-tecnológica, pois consiste noesvaziamento de nossa própria singularidade em proveito da exterioridade de uma tela, de um dadoendereço eletrônico, de ligações a endereços eletrônicos outros, de interações impostas por uma lógica deleitura e de navegação estranhas a nossas expectativas e experiências, em resumo, de elementossignificantes que parecem surgir de uma exterioridade absoluta e além do sujeito. E por que místico?

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Porque ela exige uma negação de sua própria singularidade, com a conseqüente aceitação de umaexterioridade absoluta e inelutável. Assim, o sentido do humano não estaria mais na maneira como nosdotamos de um mundo que existe antes de nós (ou seja, no modo como habitamos essa reversibilidadeentre corpo e mundo), mas em como deixamos ferramentas e processos nos conduzir e nos instalar comoseres deles dependentes. É como se o preexistente, o já dado, fosse não o mundo ele próprio, mas certasregiões dos objetos culturais, no caso, uma parte do espaço tecnológico. Ora, a falha dessa percepçãoencontra-se exatamente em tomar o tecnológico como exterioridade absoluta a que somos –paradoxalmente – convidados a entrar e a estar e a ser, dentro dela. Não seria absurdo afirmar que se tratade uma retomada falha e esvaziada do mítico e do religioso: o re-ligare das religiões tradicionais funda-senuma experiência em que se busca justamente uma dualidade (o sagrado e o profano) em que esses doiscampos extremos (o aquém, pelo ser humano, e o além, através do divino) se encontrariam e se dariam aver. No caso desse misticismo tecnificante, temos uma apenas aparente dualidade, uma dualidade que nãoresiste às primeiras investidas dos processos automatizantes, já que eles acabam sempre reduzindo essaduplicidade à simplicidade e à exterioridade de um mesmo campo (submetendo, no caso, o profano, ohumano a lógicas e movimentos e ritmos exclusivamente externos).

Como conseqüência, a identidade de si (ou um arremedo dela) passaria forçosamente por uma identificaçãocom instrumentos e com os processos de que se dispõe, abrindo mão de qualquer autonomia ouespontaneidade próprias ao humano. Em suma, teríamos nada além da identificação de si próprio com umaeficácia externa, o que seria, no máximo, simulacro ou ilusão de eficácia (assim como de identidade), pois aperformance do instrumento tecnológico não tem como ser totalmente assimilada a expressões ou gestoshumanos. A conseqüência direta dessa busca de identidade, através do além do tecnológico, não traz comoresultado senão exterioridade e platitude (ou, dito de outro modo, nada além de uma tecnomelancolia). Bemdiferente, em todo caso, de experiências místicas como as dos quietistas espanhóis do século XVII ou de San Juande la Cruz, que, de uma aniquilação de si próprios, insinuavam chegar a uma interiorização radical do sagrado.

O segundo tipo de identidade que se pode propor com base no ciberespaço é aquela que caracterizamoscomo relativizada e aquém do sujeito. Ela está ligada diretamente à hiperinflação informativa, processoem que, devido a um transbordamento de significantes, toda informação, todo dado, todo significadoinevitavelmente se transformam em ruído. Isso ocorre quando as informações desfilam e se desfiam na telado computador, demasiadamente rápido diante de nós, sem deixar nenhuma possibilidade de esboçarmoscerta fisionomia de organização, algum esforço de racionalidade, mesmo provisório e localizado, quepudéssemos associar aos objetos significantes desfilando pela tela. É o caso em que o excesso de informaçãodeixa de ser informação para tornar-se ruído, perdendo totalmente qualquer conteúdo informativo. Masisso não é tudo. Esse ruído parece propiciar, inicialmente, uma paradoxal hipertrofia do sujeito, dando-lhea ilusão (ou é ele próprio quem assim se ilude) de que é ele quem está por trás de toda construção deobjetos significantes, que todo percurso de significação se submete ao arbitrário e ao relativo de suasposições e gostos e disposições e gestos.

Assim, esse sujeito instala-se num ponto de enunciação falto de sentidos e sem horizonte de significaçõespossíveis tendo a impressão de que a ele compete ocupar todos esses espaços e ocupar-se de todos esses

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processos. Não lhe restaria outra posição senão a de instalar-se decididamente na ribalta dos significantes eestabelecer-se, solitariamente, como horizonte de sentidos e de possibilidades de significação. Mas é aí,justamente, que o processo se inverte e essa hipertrofia inicial (e, dizíamos, paradoxal) do sujeito setransforma em atrofia. Ele não percebe que está, na verdade, limitando-se a pontos de vista passivos (e elesse multiplicam, acentuando o esvaziamento de sua subjetividade) diante de uma celeridade de significantescada vez mais esvaziados. Com o que ele se reduz, afinal de contas, de forma gradual e inapelável a umalacuna num espaço então tornado definitivamente lacunar. Há como que uma homogeneidade entre ovazio da informação multiplicada à exaustão e às raias da inutilidade e um sujeito rareificado que nemmesmo percebe estar sendo excluído da cena dos objetos significantes.

Finalmente, resta discutir o terceiro tipo, a identidade provisória e não programática, em que a buscade sentidos e de significações não se dirige nem para uma mistificação do tecnológico (além do eu), nempara um transbordamento vazio de informações (aquém do eu). Essa terceira identidade se fundamenta noque poderíamos descrever como uma costura de identidades (assim mesmo, no plural!) e de significantes,em que internos e externos se conjugam, se entrelaçam, resultando num gesto expressivo que parecelembrar o que Merleau-Ponty chama de quiasma ou reversibilidade.9 Em certo sentido, o que se propõe écomo que a busca de um apoio ou de complementaridade no outro, no que é provisoriamente diverso,oposto ou externo. É, por exemplo, descobrir um outro lado no espaço e nos objetos da tecnologia,rastreando neles a sedimentação do toque humano que revela o horizonte cultural de qualquerinstrumento, por mais eficiente que ele pretenda ser, de qualquer processo, por mais poderoso que elepareça. Na verdade, é justamente esse fundo de cultura que pode revelar o horizonte de sentidos e designificados possíveis de qualquer instrumento ou processo. Com o que podemos mostrar, com toda aevidência, que a finalidade do espaço tecnológico não está nele mesmo (como pareceria mostrar a primeiraidentidade falha aqui discutida) nem num locus esvaziado de sentidos e de subjetividades (para ondeapontaria a segunda tentativa de identidade), mas na maneira como acomodamos ou alteramos seussignificantes e seus significados em direção ao sentido que queremos e podemos dar a ele. De fato, não hánenhum sentido do tecnológico que se esgote nele mesmo, em sua própria instância. É o sujeito que lhe dáo toque final e o sentido sempre provisoriamente definitivos.

Do mesmo modo, somente o olhar externo à gravura (portanto, não reduzido às limitações e aos limites daperspectiva do anjo) é capaz de perceber algum sentido que vá além da melancolia daquele anjo perdido emmeio à multiplicidade do mundo e das coisas, e à ausência dele próprio. Daí esse percurso de reconhecimentode si, que passa pela busca de uma interioridade do tecnológico e pela reafirmação de uma exterioridade doeu diante da multiplicidade de significantes. Há aí, implícito, um projeto de sentido e de significações quenão se reduz a uma mera reafirmação da imagem mística do tecnológico. Trata-se da busca de umainterioridade do tecnológico, da busca de teias e tramas de sentido que escapem à exterioridade absoluta, àplatitude constante e teçam, nesse tecnológico, significações além daquelas que vêm da perspectiva(neo)positivista. E esse projeto de sentido e de significações também não poderia se reduzir à euforia cegantee quase irreversível da hiperinflação informativa (cujo correlato é o esvaziamento eufórico do espaço dasubjetividade). É através dele que podemos escapar das duas formas melancólicas de subjetivação,construindo uma identidade que se dê como percurso de si próprio, que se faça à custa e a despeito dos

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aparatos, dos aparelhos e dos processos (e também, claro, sobre eles todos). Uma das melhores imagens queconheço para dar conta disso é a do personagem de uma charge que, em um monociclo sobre a corda bamba,vai desenhando a lápis, logo à frente, a continuação da linha onde se equilibra precária e provisoriamente.O centro de significações (ou a direção coerente tomada pelo artista mambembe e cartunista) estájustamente depositado nesse esforço de traçar uma linha que ainda não chegou a ponto algum, mas que nãodeixa de se apoiar numa exterioridade projetada solidariamente pelo corpo e pelo gesto do equilibrista.

Uma conseqüência do que discutimos nos parágrafos anteriores refere-se ao tipo de leitura que se podepropor no/do hipertexto, uma leitura que se coloca também como gesto e, conseqüentemente, comoexpressão, empreendida com base na posição singular de um sujeito movente, de posições provisórias –efêmeras, talvez –, mas construindo o possível de um percurso por entre fragmentos e multiplicidadesvárias. E, no caso, voltamos ao papel das teorias do texto literário na compreensão do ciberespaço. É que,se há texto, se há então leitura desse texto, se há um posição focal que cria (sempre) regiões de clarezaprovisória e sombras passageiras nesse espaço de telemática opacidade, é possível propor a esse sujeitoleitor um percurso de leitura como marcas e bases de sua identidade, como testemunhos de suasubjetividade. E tal leitura guarda uma especificidade, a de fundar e traçar significações, instalando-se talqual o equilibrista na solidez precária de uma linha que se apóia no quase nada para apontar, a partir daí,para o muito, para a pluralidade das coisas e dos objetos significantes. O que procuro aqui, na verdade, élevar adiante uma intuição, a de tomar a leitura do/no ciberespaço como uma espécie de performance querealizamos às expensas de nossas limitações e das condições de contorno da tela do computador. Trata-se,aparentemente, de um ato de criação e de tomada de posição diante de uma cena gerada desde o exteriorde imagens, ícones, movimentos e processos interativos, deslocamentos e cortes, acréscimos emultiplicações, mas permitindo que nossa interioridade venha habitá-los todos com a compulsão dossignificados e a contenção dos sentidos.

Dizer que essa leitura é uma performance implica dizer que nos colocamos como hiperleitores, isto é, comoativos organizadores do hipertexto, mas organizadores que se colocam bem em meio aos objetossignificantes, de forma que o processo de significação desses objetos acompanhe e circunde nosso processode subjetivação, em que nos explicitamos como leitores (de significantes, do ciberespaço onde estes sedesvelam, e de nós mesmos). Apresentamo-nos como atores de uma espetacularidade, mas que sabemtambém postar-se do outro lado da cena, no aquém do palco (da tela) e no além de nossos própriosmovimentos e tomadas de decisão, tecendo uma identidade que nos coloca como subjetividade encenadae dada à leitura de outros. E essa identidade telematicamente colocada, construída e, sobretudo, encenadaexibe-se como fingimento. Nessa via transversa, ela busca dar voz e vez a um verdadeiro dizer do real, pormeio desse fingimento que se pode exibir como máscara reveladora (e que é sempre uma possibilidade quecompete a cada um de nós efetivar ou não, sendo-nos dado a escolha do melancólico ou do sábio). Trata-se de capturar na provisoriedade e na dramatização de falas, gestos, movimentos, comandos, aparências,rastros e restos de ícones e de endereços, na tecedura movente e mole de significantes uma fisionomia deefêmera permanência; ou também de propor uma possibilidade de espacializar reflexos e percursos emcima dos quais balizamos a visão de nós mesmos e desse texto-mundo tecido em raias intermináveis ecircunferências de raio infinito.

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Essa leitura de nós, de nossa inserção no ciberespaço (que é também leitura do próprio ciberespaço) podeser assim descrita como uma provisória mentira, uma encenação que permite expor honesta e abertamenteentranhas e hesitações de (ciber)espaços, de leitores e de leituras. É claro que há aí um paradoxo lógico emque a sinceridade consiste em dizer que se está mentindo. Todavia, tal situação de “incômodo lógico” estápresente em qualquer forma de literatura, ou, para ser mais geral, em qualquer arte, em toda época. E nãoé por causa da intensa tecnologização do ciberespaço que vamos escapar a esse gênero de contradição queé base de qualquer experiência artística que se possa imaginar. Tanto quanto a voz poética daAutopsicografia, de Fernando Pessoa, o hiperleitor finge que não sente o que na verdade está sentindo, eos que lêem sua leitura vão sentir, ainda, outra coisa que nada tem a ver com o que esse hiperleitor chegou,primeiramente, a sentir e, depois, a encenar.

Em outras palavras, o leitor do hipertexto assume a função de produtor ou organizador de umaespetacularidade, de uma encenação, de uma topologização de significantes e de significações de que elenão pode deixar de participar. De fato, não podemos ficar presos a uma mera especularidade do hipertextohiperinflacionado, nos colocando irremediavelmente presos a reflexos sem reflexões e que resultam de umaalgaravia de restos de idéias, de fragmentos de princípios, de vestígios de saber. Também não podemospropor apenas um espetáculo que se contente em celebrar a ausência de nós próprios, o que seria oresultado melancólico dos simulacros e das mistificações tecnologizantes.

De outro lado, é preciso levar ainda em conta a presença de uma platéia, de companheiros de rota e designificações (de resto, nenhuma linguagem, por mais fundada em elementos estritamente tecnológicos,pode existir sem essa armação intersubjetiva que sustenta e permite todo ato expressivo). Essa platéia (deque fazemos parte, mesmo nos colocando à parte para poder falar dela), ainda que virtual, não deixa detraçar vestígios, de possibilitar ornamentos e filigranas de significações ao (hiper)texto construído por nós,leitores de nós de conexões, leitores de nós próprios, leitores do hipertexto e de outros leitores. E essaplatéia se faz presente e atuante não na indiferença das posições distantes e distintas do palco, mascolocando-se em cena, bem ao lado dos percursos que assumimos e esboçamos, trazendo, aliás, para acena a posição e a cumplicidade de compartilhar um gesto expressivo comum. Em resumo, esse esboço deleitor do ciberespaço mostra-nos como atores/organizadores que lêem, representam, atormentam,desfocam, deformam e tocam adiante um texto que, vindo de outros leitores e loci, recebe inflexões esignificações de que talvez nem suspeitássemos. Construímos um texto tramado e tecido em um espaçocoletivo, um texto dado pela voz singular do ator/organizador à multidão que aplaude, vaia, contesta,aceita, recolhe, mas participa sempre, evidentemente, dessa construção coletiva de significações e detextos. A navegação pelo ciberespaço, vista como dramatização ou espetacularização de nós próprios, dohipertexto e de outros leitores/atores, poderá mostrar um caminho efetivo em que, definitivamente, nãoprecisaremos mais nos curvar a essa melancolia de significações excessivas ou de mistificaçõestecnológicas. Quem viver (e ler) verá (lerá).

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Saber o/no/do Ciberespaço

Como pode ser possível alguma construção de saberes no ciberespaço baseada nas condições de contorno deuma tradição de pensamento ainda fortemente ancorada no meio impresso? Para responder a isso talvez sejaútil discutir primeiro como vem ocorrendo a passagem de obras originalmente destinadas ao suporteimpresso para o meio eletrônico. Essa alteração envolve uma série de elementos que dizem respeito nãoapenas à produção e à disseminação de textos. Ela é produzida num espaço híbrido de circulação de objetosculturais – implicando um diálogo entre o meio telemático e o meio impresso – e está ligada, afinal de contas,à estruturação de um saber que, na falta de melhor denominação, podemos já chamar internético, termoque designaria a produção do conhecimento em redes telemáticas. De toda maneira, se ao final não ficarconvencido do acerto e validade desse arremedo de conceito – internético –, o leitor poderá ainda aproveitara inesperada sonoridade da palavra, que ao menos agradará, mesmo sem ter plenamente convencido.

Primeiramente, é importante explicitar os contextos e as referências da questão colocada para podermosver alguma coerência nesse saber internético. Nos últimos anos, o Núcleo de Pesquisas em Informática,Literatura e Lingüística, Nupill, da Universidade Federal de Santa Catarina tem disponibilizado na redeobras clássicas da literatura brasileira. E, diga-se de passagem, não é o único: projetos desse tipo têmpululado e, entre eles, podemos destacar o trabalho desenvolvido pela Biblioteca Nacional. Em linhasgerais, o que se tem pretendido, desde o início, é trazer para o meio eletrônico obras que foram concebidasinicialmente para o meio impresso. Porém, o espaço das mediações e das trocas culturais é um sistema devasos comunicantes, e, claro, uma obra disponibilizada em formato eletrônico não teria como ficartotalmente presa ao meio em que é inserida: é assim que textos eletrônicos, vindos do meio impresso, têmretornado a ele; caso, por exemplo, da Carta de Pero Vaz de Caminha, que nos meses que antecederam acomemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, no ano de 2000, foi amplamentedivulgada e, mais, publicada e impressa, em alguns casos, com base na versão eletrônica disponibilizadapelo Nupill. Com isso, uma obra difundida durante séculos no meio impresso entra no espaço telemáticopara, em seguida, ser levada de volta a seu leito original. É claro que nada ligaria a atual edição impressaa sua origem eletrônica se não fosse a informação, mencionada pelos responsáveis das novas edições, deque o Nupill era o responsável pela versão eletrônica da Carta.

No que se refere ao meio eletrônico, ainda quando disponibiliza obras originalmente concebidas para omeio impresso, ele propõe outras ferramentas e, por conseguinte, outros paradigmas de leitura. Sem nosalongarmos em demasia, basta pensar no comando localizar (find, nessa salada linguageira que assola arede), disponível tanto nos editores de texto quanto nos navegadores. Ele representa uma economia detempo considerável na localização de palavras ou expressões que, em caso contrário, seriam dificilmentereencontradas pelo leitor. Com isso, é o tempo, o ritmo e mesmo a ordem de leitura que se podemmodificar, conforme ritmos e velocidades que resultam de um novo acordo, não mais entre nossascontingências físicas e uma folha de papel impressa e dando-se apenas ao olhar, mas de uma combinaçãoentre as mesmas contingências físicas nossas e instrumentos de navegação e de leitura informáticos (quesão propostos e intermediados por um aparato eletrônico que inclui elementos como mouses e teclados,imagens de cursores e de ícones, gestos e movimentos como cliques e ações de cortar/colar). Mas tudo isso,

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claro, não impedirá nenhum leitor mais obstinado (e cioso de seus direitos de aferrar-se a práticas e espaçosjá sobejamente conhecidos) de continuar lendo como sempre o fez e de percorrer com os olhos o espaço datela do computador como se estivesse diante de uma folha de papel impressa. Quero afirmar que, grossomodo, os diferentes paradigmas de leitura continuam confluindo e o que hoje poderíamos chamar deleitura eletrônica ainda se resolve e se desenvolve, mesmo parcialmente, segundo hábitos e preceitosaprendidos e apreendidos com as práticas trazidas pelo meio impresso. Da mesma maneira, é legítimopensar que durante algum tempo, mesmo com o avanço da alfabetização, uma considerável quantidade deleitores ainda percorriam seus caminhos de leitura carregados pelos ritmos e pelas imagens aprendidas (etambém apreendidas) por séculos e séculos de “leitura” oral, em que eram os ouvidos e não ainda os olhosos responsáveis pela produção do texto.

Todavia, quanto mais insistirmos na leitura em meio eletrônico, mesmo aos trambolhões, trancos ebarrancos (como, aliás, parece ocorrer sempre que passamos por alterações mais bruscas nos paradigmas decirculação de objetos culturais), mais estaremos aprendendo os ritmos e as restrições do espaço telemáticoe também forçando-o a acomodar-se a nossos projetos, desejos, pensamentos e ao que acima chamei decontingências físicas (como a acuidade visual, por exemplo). Em outras palavras, o que estou propondo édiscutir a necessidade e as estratégias de utilização de ferramentas informatizadas no armazenamento, namanipulação e na leitura de obras (e não nos restringimos, claro, apenas às literárias, que todo tipo delassuscita questões e possibilita reflexões semelhantes). Percebam bem que associei necessidade aestratégias, buscando chamar a atenção para a importância de utilizarmos esse instrumental tecnológicode modo a estabelecer com ele um diálogo em condições de igualdade. Dito de outra maneira, temos quemapear os procedimentos informatizados e os processos telemáticos disponíveis antes de utilizá-losintensiva e extensivamente, de forma que sejamos nós a nos servir da tecnologia e não a tecnologia (ou atecnocracia por trás dela) a se servir de nós.

Creio ser possível escapar, assim, a algumas das derivas do texto eletrônico, àquilo que tenho chamado háalgum tempo, e mesmo neste ensaio, de hiperinflação informativa. Explico melhor (talvez melhor do que ofiz antes): um processo hiperinflacionário em economia corresponde à situação em que a moeda circula avelocidade tão alta que os agentes econômicos já não têm nenhum controle sobre ela; em conseqüência,ela acaba perdendo todo seu valor. O mesmo ocorre atualmente (e cada vez mais!) quando deixamos asinformações desfilarem, céleres, diante de nós e ao longo da tela do computador, sem nenhum percurso quevá desenhando uma certa fisionomia, um esboço de racionalidade pontual que poderíamos impor às buscase aos hipertextos trazidos pelos cliques no mouse. No mais das vezes, ocorre de as pontas dos dedos estaremmais ávidas de toques excitados do que a mente ansiosa por idéias passíveis de alguma orquestração. Comoconseqüência podemos, por exemplo, começar uma busca por pintura impressionista e, quando nos damosconta, em algum raro momento de tomada de consciência, estamos diante de um improvável sítio detorturas sexuais no Hindustão medieval. Aparentemente, seria um processo semelhante àquele descrito porPaul Valéry em Poésie et Pensée Abstraite, em que a entrada em um universo poético tira-nos, sem quepercebamos, da consciência imediata do dia-a-dia, das noções e reflexões da cotidianidade. Assim, a entradanesse universo poético corresponderia à entrada em uma região de ritmos e de sons estrangeiros,inesperados, correspondendo, de fato, a uma tomada de posse da palavra pelo revés da significação e do

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discurso. Todavia, a entrada nessa hiperinflação informativa desenfreada não traz revés algum, já que o seucontrário é ela mesma. O trágico desse processo é que seu lado escondido é rigorosamente idêntico a sipróprio, isto é, uma região neutra e sem diferenças, o que vale dizer, sem significação alguma. De fato, oexcesso de informação, exatamente por ser excessivo, deixa de ser informação e torna-se ruído, perde seuvalor como no caso da hiperinflação monetária. Mas, à diferença desta, que é um processo coletivo, ahiperinflação informativa é um fenômeno individual, podendo ser desligado a qualquer momento por umaflexão no campo de interesses e de significações posto em movimento pelo leitor/navegador.

Dessa forma, antes de colocar em movimento um saber dentro do ciberespaço, esse saber que chamei deinternético, é preciso fazer o reconhecimento desse espaço e estabelecer como podemos, considerando suascondições de contorno e de nossas contingências, construir algo como um percurso cognitivo. De início,nunca é demais lembrar a etimologia de cibernética, termo cunhado com base no grego kybernetiké, queremete por sua vez ao timoneiro, ao ato de dar um curso à navegação em meio às intempéries e às calmarias(tanto quanto, hoje, nos movemos nesse ciberespaço chamado web, em meio a acúmulos de informações eperdas de conexão com os servidores atacados de todo lado por vírus e piratas de variado jaez e feitio).Trata-se não de buscar ou de encontrar, mas de construir uma orientação ao mesmo tempo que se avançanesse processo cognitivo, e, se nada mais de útil pode vir dessa metaforização espacializante, ao menos elanos servirá para pensar o pensamento de uma maneira não habitual, associando a ele (e, em conseqüência,ao próprio ciberespaço onde ele pode se desenvolver) os elementos e os procedimentos da topologia. Emoutras palavras, parece ser importante saber como orientar o pensamento em um espaço onde a cogniçãoainda tateia, onde hipóteses ou outras formas de retórica argumentativa devem encontrar novos elementose novas axiomatizações. A esse respeito, algo interessante se encontra em um opúsculo publicado por Kantno Berlinishe Monatsschrift, em outubro de 1786. Ele advertia que:

S’orienter signifie au sens propre du mot: d’après une contrée du ciel donnée (nous divisonsl’espace en quatre contrées de cette sorte), trouver les autres, notamment le levant. (...) Enfin, ilm’est possible d’élargir encore ce concept, du moment où il consisterait dans le pouvoir des’orienter non seulement dans l’espace, c’est-à-dire mathématiquement, mais dans la pensée, c’est-à-dire logiquement.10

Importa, no caso, resgatar, segundo o filósofo alemão, a mesma operação de direcionamento para o que jáchamávamos a atenção quando apresentamos o termo cibernética. Kant fala dessa espacialização dopensamento através das operações geométricas do espaço cartesiano, ainda submetido às injunções dageometria de Euclides. Se quisermos estabelecer uma diferença com o que hoje, por meio do ciberespaço,chamamos de topologização do pensamento, teremos talvez que apelar para as geometrias de Riemann oude Lobatchevski. E, se essa tal topologização pode ter algum interesse para nós, ele reside justamente napossibilidade de nos fazer olhar e perceber o pensamento não como formas geometrificáveis provenientesde alguma ordenação gestáltica, mas em termos de espaços e de vizinhanças n-dimensionais, traduzindojustamente essa precariedade de domínios de validades e de imagens, chegando até as dimensõesfracionárias dos fractais. Assim, esse pensamento que se exercita no ciberespaço pode aparecer não comouma atividade preestabelecida em caminhos sobejamente conhecidos, em rotas traçadas na direção

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unilateral de uma Grande Razão travestida de dogma ou de preconceito, mas como uma retomadaconstante e provisória de uma racionalidade vivida corporalmente. Trata-se, em suma, de uma racionalidadeem movimento, capaz de estabelecer conexões insuspeitas entre hipóteses e deduções, ao ponto de umasnão mais se distinguirem facilmente das outras, como uma curva de Moebius retórica e argumentativa emque interior/anterior e exterior/posterior colocam-se no mesmo plano. Trata-se, enfim, de umaracionalidade não mais debitada à conta de um eu puro pretensamente encarregado de pôr uma ordemtranscendental na poeira de fatos, palavras e gestos com que habitamos nosso dia-a-dia.

E, no ciberespaço, a arquitetura conectivista pela qual ele se cristaliza e se dá à navegação talvez seja umdos primeiros elementos dignos de nota. Essa propriedade, que pode ser descrita como a característica quenos permite partir de qualquer nó e chegar a qualquer outro, acarreta duas conseqüências. A primeira delasé a ilusão (e insisto nessa palavra, ilusão) de que todos os nós seriam, então, equivalentes, ou mesmohomogêneos. Com isso, qualquer significação, no ciberespaço, seria definitivamente descartada, uma vezque só se chega a algum significado quando um sistema significante se torna capaz de opor diferençasrelativas (e nunca absolutas) num horizonte de sentidos possíveis (esse, sim, o único absoluto em todo esseesquema). Opor nós intrinsecamente homogêneos seria, então, o mesmo que dizer que o ciberespaço leva,afinal de contas, a uma indistinção absoluta (e parece ser esse temor que está por trás das críticas deBaudrillard). A segunda conseqüência dessa arquitetura conectivista está em outra ilusão: a de que, aocontrário da homogeneidade a-significante (já descrita), o ciberespaço nos levaria a um saber total,completo, todo-poderoso, talvez até mesmo infinito, a um conhecimento que seria a realização de todos osotimismos tecnológicos dos dois últimos séculos. De fato, cria-se a impressão de que a extensão ilimitada ea variedade das leituras beiram o infinito e arrastam consigo as potencialidades do pensamento. Não maisum pensamento produto do espírito humano, mas pensamentos provenientes de próteses maquínicas quedariam origem a uma nova união substancial – não mais aquele corpo-e-alma proposto por Descartes, masum corpo-e-máquina (que faz o horror de Paul Virilio e as delícias de um Pierre Lévy).

Se conseguirmos escapar a essas duas ilusões, teremos boas chances de entender como pode o pensamentose inserir de maneira produtiva e não automatizante (ou até mesmo alienante) no ciberespaço.Primeiramente, é fundamental esclarecer que a arquitetura conectivista não reduz as diferenças entre osnós. E, no caso, é igualmente importante perceber o quão essenciais são essas diferenças entre cada umdesses nós, evitando que as diluamos em uma homogeneidade redutora e simplista. Em segundo lugar, issotudo implica, de certa forma, estabelecer limites para a razão, sobretudo para a razão que se exibe num(ciber)espaço fingindo-se vocacionado para o infinito. Ora, boa parte da filosofia ocidental vem-seconstruindo justamente na tentativa de desenhar os limites do saber, desde os pré-socráticos, passando porSócrates, pelo ceticismo de Pirro, chegando a Descartes (a dúvida sistemática é uma última e desesperadatentativa de mapear as fronteiras possíveis do saber para escapar ao ceticismo de um mestre anterior,Montaigne), a Kant (que buscava delimitar a razão para salvar a fé), sem contar ainda Nietzsche, Husserl,assim como vários dos pensadores do século XX (Foucault, Derrida, Deleuze etc.).

Voltando ao ciberespaço, podemos dizer que, se suas possibilidades de conexão são praticamente infinitas(e apenas a tentativa de esclarecer como seria essa infinitude das conexões já faria correr muita tinta) e se

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pode não haver um limite concreto e definitivo para esse desfilar de informações, há, certamente, um limitepara o saber. Aliás, saber sem limites está mais para desrazão (ou sua contrapartida, o irracionalismo) doque para conhecimento. Como no caso do excesso de informação que se reduz a ruído, a não informação,um saber pretensamente infinito, dotado de potências e possibilidades divinas, não seria jamais um saber.Aparentemente, parece não haver lugar para Deus, mesmo no ciberespaço; ele se reduziria, aí, a um nãosaber. Na verdade, sem querer propor um ateísmo tecnológico, o que pretendo é entender como oconhecimento no ciberespaço só pode se construir com base nas precariedades dos indivíduos, daprovisoriedade de seus esquemas de racionalização, da efemeridade e, ao mesmo tempo, da necessidade(da urgência, diria) de suas certezas. Isso talvez possa ser mais bem entendido se analisarmos o modo comoo tempo se insere e se insinua no ciberespaço e em suas navegações.

O ciberespaço parece proporcionar uma espécie de justaposição de várias temporalidades (resultando, emparte, na efemeridade mencionada). Ele nos permite, por exemplo, num só golpe, perscrutar formas efunções de telescópios direcionados para o fundo do universo (pensando nos sítios que oferecem imagensde astros longínquos à comunidade científica e a quem mais se interessar). Com isso, consegue-se umacuriosa conjunção de dois movimentos: o primeiro é esse que aponta para o futuro, que nos coloca novértice e no vórtice de uma máquina amplificadora do olhar e de sua imensa capacidade de processamentode dados e de imagens; o segundo é o revés do primeiro, colocando diante de nós um passado absoluto, oinstante do big bang, nosso passado inaugural. Mas o efeito dessa conjunção pode ser perverso, eliminandoa diferença entre o direito e seu revés, na medida em que um e outro se homogeneizam, em que se reduzum a outro, e se faz, imediatamente, do passado absoluto o futuro que permite vê-lo (o passado) atravésde olhos e sensores de uma máquina das mais modernas. Com isso, passado e futuro igualam-se, perdemsuas diferenças recíprocas e reduzem ao absoluto de um presente que esteve no passado e estará no futurosimplesmente por que está por trás de tudo.

Sempre vivemos em várias temporalidades; em qualquer época, essas diferentes temporalidades se tocam,às vezes se confundem e se misturam. Nos diversos ritmos das sociedades agrárias, conviviam os diferentestempos das várias culturas, justapostos aos tempos das diferentes criações animais (incluídos os ritmos dasgestações e das gerações humanas). No entanto, nunca tivemos a experiência de reduzir as diferentespercepções de cada uma dessas temporalidades a um presente homogêneo, absoluto e onipresente. Aíparece residir a diferença desse tempo esboçado no/pelo ciberespaço. De fato, sempre nos espalhamos pelasvárias temporalidades, mas sempre nos foi dado, também, residir e resistir em uma delas. E foi justamenteisso que se esvaneceu, em parte, com a telematização dos espaços que habitamos e fazemos significar. Aescolha de uma dada temporalidade parece ter-se reduzido drasticamente a uma única escolha. Ao menos,é essa a aparência da temporalidade homogênea que muitos associam ao ciberespaço. Ela vem a substituiroutras figuras que, ao longo dos séculos, caracterizaram a cultura ocidental: primeiramente, o tempocircular das sociedades míticas, em que presente e futuro estavam sempre conjugados no passado, já queretornavam incessantemente a um já-ocorrido; em segundo lugar, o tempo linear da ciência moderna, emque passado e presente reduziam-se a um percurso que só encontrava sentido e explicação no futuro parao qual apontavam, sempre e invariavelmente.

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A essas duas temporalidades opõe-se, assim, o eterno presente da contemporaneidade telemática, que nãoaposta mais no passado mítico e tampouco no determinismo futurista das ciências modernas e positivistas.Trata-se de um tempo espacializado, absoluto, marcando todo o território e, mais, toda possibilidade de dese de reterritorialização. Aliás, a poesia de Alberto Caeiro acaba sendo uma das melhores figuras poéticasdesse tempo. E ainda: através dela é possível não apenas mapear (ver e habitar) esse presente espacializado,mas encontrar uma maneira de escapar a suas limitações. Isso parece se dar por uma temporalização doespaço, propiciada pelo próprio trabalho de poetização da escrita (processos que Caeiro desencadeia tãobem em seu O Guardador de Rebanhos). Em conseqüência, se, por sobre esse presente absoluto eespacializado do ciberespaço, não tentarmos ver um espaço temporalizado, vamos acabar nos submetendoa uma ditadura do aqui e do agora, do circunstancial e do efêmero, do simulacro e do esvaziamento. Assim,ao encarar o tempo apenas como espaço (com o que contribuem as lógicas conectivistas do ciberespaço),corremos o risco de cair na tentação fácil dos espaços telematizados, perdendo toda perspectiva dehistoricidade e chegando a um tempo que é enganação, subterfúgio, simulacro. Ao contrário, é justamenteessa des-absolutização do espacial que nos torna capazes de fugir ao relativismo e ao irracionalismo,propondo um tempo que se dá a ver como espaço e, concomitantemente, um espaço que deve se dar a vercomo tempo (ou, talvez, como ritmização do espaço).

Em suma, fugir do presente absoluto do ciberespaço implica encontrar outros sentidos para essa suainterconectividade intrínseca. Significa produzir o conhecimento também como um texto em rede, comoresultado da natureza essencialmente intersubjetiva de todo gesto, de todo pensamento, de todalinguagem e, sobretudo, de toda linguagem que se textualiza num espaço telemático de n-dimensões. Emoutra ocasião, talvez possamos abordar mais de perto algumas das estratégias para a construção desseconhecimento em/na rede. Por ora, é preciso deixar claro que se trata de um segundo estágio,obrigatoriamente precedido por um primeiro, que consiste em despir-se de algumas das ilusões muitofreqüentes no ciberespaço. Entre elas – e que talvez seja a mais presente e ameaçadora de todas –, está aque nos entrega um (ciber)espaço de que toda centralidade ou racionalização teria fugido. Junto com ologocentrismo, com as metafísicas de essência, toda forma de racionalidade pareceria ter-se esvaído,reduzindo toda significação e todo conhecimento a uma reacomodação ou a um mero jogo de significantesvazios. No caso, saber equivaleria a discurso, o que reduziria todo percurso cognitivo a uma construçãosofística cuja complexidade já seria, imediatamente, seu valor de verdade. Em decorrência, qualquerconstrução de sentidos e qualquer saber que se associassem ao ciberespaço pareceriam ser produzidos quaseque autonomamente, sem a intervenção de uma vontade operante, de uma racionalidade circunscrita acerto domínio de validade e posta a funcionar pelas vizinhanças significantes dos objetos que aí aparecem.

Não parece ser outro o sentido dos conceitos de “ecologia cognitiva” e de “duo pensante homem-máquina”, ou ainda o de “conhecimento por simulação”, de Pierre Lévy.11 Como todo espaço de sentidos,em que objetos culturais se dão à produção e ao (re)conhecimento, o ciberespaço é um locus onde semanifestam e se dão a (re)conhecer significações e subjetividades. Como espaço, ele não tem autonomianem para impor processos de produção de significações, nem espontaneidade para se fazer artífice solitáriode novas textualidades. Daí a necessidade de ele ser despido dessa máscara de operacionalidadeautocrática, dessa aparente capacidade de autonomia ou de espontaneidade que, distraída ou

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irresponsavelmente, lhe atribuem alguns de seus estudiosos. Por isso defendo uma posição diversa dessa dosociólogo francês, em que justamente o saber seja produto de uma racionalidade circunscrita a certodomínio de validade e posta a funcionar e a se articular pelas vizinhanças significantes dos objetos que aíaparecem, pelo trabalho de significação de leitores. Quero dizer que o ciberespaço só vai adquirirsignificações (sempre precárias e provisórias, nunca é demais lembrar) na medida em que nós, usuários,leitores, (hiper)escritores, o fizermos repleto de sentido por uma decisão nossa, isto é, uma decisão de cadaum, mas que saiba buscar a presença dos outros, por meio dessa fímbria de alteridade que nos dá nossaidentidade, ao mesmo tempo que nos coloca em meio a outros, nos instala num centro que se deslocaconstantemente para as margens, buscando incessantemente o aporte dos outros, que conferemradicalidade e sentido a qualquer de nossos gestos e significados individuais.

Isso que descrevo é como uma fuga para a frente, quer dizer, uma marcha em que se avança sem que o pontode chegada esteja definido, uma navegação a que nos lançamos resolutamente, sem que o destino nos sejadado. Na verdade, tanto ponto de chegada quanto destino acabam constituindo uma nova forma decentralidade, não mais aquele centro das metafísicas ontológicas, mas um centro funcional que começou a seesboçar desde as metafísicas gnoseológicas (a partir de Kant). E, no caso, uma das imagens mais felizes paraesse centro está na charge (de cuja autoria não me recordo e a quem, infelizmente, não posso dar os créditos)do equilibrista de circo montado sobre um monociclo, desse saltimbanco que é também um desenhista e vairabiscando a linha sobre a qual se equilibra, com o lápis que ele segura e, à frente, vai traçando seu aramebambo e seu caminho precário. Temos, então, um centro que se dispõe não ao meio da travessia,12 mas sempreà frente, nunca alcançado, o que vale dizer que é como se ele estivesse servindo de fundo ou de horizonte atodo o percurso sem que, por isso, tenha que determiná-lo inteiramente. Derrida insiste na importância docentro não como um Ser, certo, mas como uma função que se torna absolutamente primordial:

“I didn’t say that there was no center, that we could get along without center. I believe that the center is afunction, not a being – a reality, but a function. And this function is absolutely indispensable”.13

E essa distinção é capital, sobretudo quando se trata de pensar o ciberespaço: entre o centro como essênciae o centro como função, é evidente que apenas esta última é capaz de descrever o modo consciente eprodutivo de nos apropriarmos do ciberespaço, de fazer dele uma região onde novos sentidos se somemaos sentidos já sedimentados em forma de cultura e daí extraiam novos percursos e novas perspectivas(mesmo indiretas) do mundo vivido. Com isso, evita-se a fossilização das percepções, o que constitui a piordas mortes que se pode dar ao sujeito. Dessa maneira, tornamo-nos capazes de associar um sentido (mesmoprovisório) ao mundo, ainda que ele assuma essa precária aparência de cenários passageiros: paisagens,elementos, objetos lingüísticos, memórias, imagens, tudo desfilando com maior ou menor celeridade diantede nós, mas sem que percamos a capacidade de manter acesa sua espetacularidade, quer dizer, apossibilidade de estarmos diante de suas significações e de as percebermos sem que, ao contrário, nostornemos um espetáculo vazio diante da tela do computador.14

Outras ilusões do ciberespaço parecem derivar, de uma forma ou outra, dessa primeira. Uma delas dizrespeito ao individualismo, que é uma das respostas possíveis ao espontaneísmo discutido (esse que propõe

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um ciberespaço homogêneo em que toda significação brotaria tão-somente de acentricidades edesterritorializações, sem interferências de nenhuma subjetividade). Trata-se, na verdade, de tendêncialigeiramente oposta, em que justamente se tenta entender e estender toda significação como resultante deuma decisão individual, produto de um voluntarismo que se confunde com o nó a que se reduz, nessescasos, a subjetividade do leitor (e por trás de que ele se esconde). Ora, não se pode deixar de chamar aatenção para as conseqüências algo desastrosas dessa atitude solipsista. Ela instaura um relativismo fechadoe redutor de que não se sai senão ao custo de uma negação de qualquer possibilidade de significaçãointersubjetiva, o que corresponderia, na verdade, à negação de qualquer possibilidade de linguagem. Ela é,aliás, parente próxima do solipsismo que marcou algumas das vertentes do cartesianismo, pois, afinal decontas, quando se investigam os bastidores desse cogito fundado apenas no “Penso, logo existo”, toda acerteza do conhecimento pareceria centrar-se numa identidade absoluta de si consigo mesmo, esquecendoque ela não tem como alicerçar-se a não ser na existência do mundo vivido. Toda a certeza do conhecimentosó se estabeleceria, assim, a partir da arbitrariedade de uma consciência individual cuja substância é denatureza diversa daquela que ela quer conhecer, o que, em decorrência, negaria qualquer possibilidade deconhecimento. Esse individualismo, em suma, leva no limite à negação de qualquer linguagem e, porextensão, também à de qualquer saber.

Essas ilusões todas que afetam e transtornam a presença do sujeito diante do ciberespaço não sãooutra coisa senão um possível predomínio dos simulacros de que fala insistentemente JeanBaudrillard. Eles aparecem, por exemplo, nessas erudições de puro exibicionismo,15 que permitem quealgumas pessoas se comprazam em multiplicar referências inesperadas e obscuras, impossíveis deserem retomadas, reencontradas ou mesmo utilizadas sem ser por meio de sua orientação privilegiadae de sua posição de saber de pretensos eruditos. E, quando se armam de informações a mancheias,multiplicam referências cruzadas e arquitetam complexas figuras de percursos cognitivos,16 eles nãofazem, na verdade, mais do que produzir a hiperinflação informativa que já comentei. Um outrosimulacro liga-se ao tempo, ou melhor, à aparência de temporalidade que parece, então, esvaziadapela celeridade desmedida das informações que não desfilam, mas escorrem pela tela, diante de nós.E esse desenrolar frenético não possibilitaria nenhuma construção significativa, pois tudo se reduz àhomogeneidade de um presente talvez nem mesmo eterno, porém obsessivo, opressor, reduzindotoda diferença significativa à platitude homogênea de sua onipresente figura fácil, em uma tela cheiade pixels e vazia de significações.

Como resultado, temos um tempo espacializado, essa tentação fácil dos espaços telematizados em que seperde toda perspectiva de historicidade. Chega-se a um tempo que é definitivamente enganação,subterfúgio ou mesmo dissimulação. E, ainda, um último simulacro, que finge carregar a presença do outrono rastro de seus gestos expressivos, como se o encontro de discursos verbais ou icônicos em chats ou ICQsfosse capaz de resultar automaticamente na fundação de uma subjetividade transcendental (que, como dizHusserl, é sempre intersubjetividade). Todavia, ao contrário da intersubjetividade, o que maisfreqüentemente se encontra na ponta do cursor, operado pelo mouse, quando se contrapõem discursos unsa discursos outros, não é uma aproximação telemática que venceria distâncias e traria a presença do outroaté o sujeito de um dado discurso, mas sim a instauração de uma distância tecnológica tão terrível e

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opressora por se dar justamente no espaço limitado de uma tela de 15 polegadas. Com isso, confundem-se,talvez até ingenuamente, metafísicas de aparência e metafísicas de essência, produzindo um platonismo àsavessas em que as presenças ideais (ou avatares) é que seriam capazes de produzir, a distância, as essênciasdo mundo exterior e as subjetividades dos outros.

* * *

Com base em tudo o que se afirmou anteriormente, podemos, talvez, fazer uma imagem desse saberinternético. Ele só se torna possível quando conseguimos escapar às ilusões e aos simulacros do ciberespaço.Nesse caso, temos um conhecimento que se dá em rede ou, ainda, que se dá como rede textual (ou como textoem rede), derivando diretamente da natureza intersubjetiva de todo gesto significativo, de todo projeto designificação, de todo objeto significante. Somente esse saber pode dar à multiplicidade dos espaços telemáticosn-dimensionais um sentido não unívoco, mas capaz de sedimentar e de possibilitar aquisições e doações designificações. Daí, em princípio, a necessidade de assentar esse saber internético em alguns pressupostos:

1) Ele deve ter por trás o esforço constante de expandir a taxa de circulação motivada e bem-sucedida dasinformações. Com isso, pode-se reduzir drasticamente o risco de uma hiperinflação informativa, seja pelomodo como disponibilizamos na rede informações, conceitos, idéias, processos etc., seja pelo modo como nosutilizamos das ferramentas telemáticas e das manipulações interativas e iterativas (vale dizer, repetitivas, agrande velocidade). Nesse sentido, tal esforço retoma, ainda que parcialmente, o projeto iluminista dedemocratizar o acesso a certos bens culturais, pela criação de aristocracias pontuais que, com base na intensamobilidade inerente à rede, podem espraiar-se incessantemente por outros nós e regiões outras. Com efeito,trata-se de um saber que não se subordina mais a qualquer centralidade previamente instituída, mas faz deseu movimento (ou percurso) de cognição a própria centralidade funcional de que falava Derrida.

2) Esse saber internético, por meio da interconectividade inerente ao ciberespaço, deve ser aquele capaz defazer-se concreta e verdadeiramente inter e transdisciplinar (de que tanto se tem falado, mas, de fato,pouco viabilizado). Todavia, isso somente se obtém quando deixamos aflorar, explicitamente, aintersubjetividade inerente a toda forma de linguagem, e fazemos dela a mediatriz de nossos percursos emapeamentos cognitivos do ciberespaço (quando aí produzimos e lemos objetos significantes). Em certosentido, trata-se de revestir de linguagem o exterior do ciberespaço, o que significa dar a ele umaexterioridade, tirando-o do pedestal de forma absoluta e definitiva em que exterior e interior seconfundiriam. Entre muitos dos teóricos contemporâneos que se debruçaram sobre a internete, é comumque a descrevam como um labirinto ou ainda como uma curva de Moebius, perdendo de vista que, naverdade, apenas a linguagem pode ser metaforizada dessa forma com justeza e acerto. Em suma, se ociberespaço por vezes se finge de infindo ou interminável, compete a nós não cairmos nesse engodo e dara ele a medida e o alcance que lhe cabem e, sobretudo, não nos iludirmos com isso que é apenas aparênciaou simulacro (e pensar que podemos tudo conhecer instantaneamente). Entre a aparência e oconhecimento verdadeiro há uma diferença fundamental, aquela mesma que podemos encontrar entre odiletantismo e a erudição. Os primeiros (aparência e dilentatismo) não passam de admiração infértil enarcísica por si mesmos; os segundos (conhecimento verdadeiro e erudição) apontam para uma

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humanização efetiva do saber, um saber concretamente compartilhado e que, por isso mesmo, parcela-se edeslocaliza-se e pluraliza-se, incessantemente, ao mesmo tempo que num (apenas) aparente paradoxo deixade ser fragmentário.

3) Um verdadeiro saber internético implica o reaprendizado de uma nova paciência de aprender, ou seja, adescoberta e a exploração de novos ritmos de conhecimento, em que o acesso e a utilização de instrumentostecnológicos venham dialogar com nossas contingências, acomodando-se a elas. E é claro que isso nãosignifica uma rapidez extrema em leituras ou na produção de informações no ciberespaço (o quecorresponderia a um otimismo tecnológico injustificável, a uma empolgação infrutífera e equivocada commáquinas e maquinismos). Aliás, essa pressa não se justifica nem mesmo nas atualizações de programas ede equipamento,17 quanto mais na construção de percursos cognitivos, mesmo quando baseados emprocessos fortemente instrumentalizados. Ao contrário do que afirma Pierre Lévy,18 se priorizarmos a buscade “velocidade e pertinência de execução, e, mais ainda, de rapidez”, encontraremos tão-somente umaeficiência limitada às possibilidades e aos elementos de que já se dispõem, sem chegarmos àqueleconhecimento sintético que Kant opõe ao analítico. O saber internético, ao contrário, não deve serconfundido com pressa, como também não pode ser confundido com totalidade ou infinitude: ele deve sercapaz de gerar diferentes velocidades e sincronias, a partir das diversas pessoas envolvidas e apostando,sobretudo, numa atitude em que são os instrumentos informáticos que se põem à nossa disposição e nãonós que nos colocamos à disposição deles.

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Novas Estéticas Eletrônicas?

Nunca é demais reafirmar que tudo que aqui se discute privilegia as perspectivas do campo literário; a elese dirige. Todavia, como arte que é também, a literatura nos permite apostar em algumas generalizaçõesque apontam para um campo artístico aberto, plural e multiexpressivo. Falamos, nesse caso, de artes que,exatamente por serem artes, ainda sabem escapar aos inúmeros arquipélagos que as tendências, osmovimentos, os estilos, os instrumentos e os processos invariavelmente acabam criando. Vai aí, como ficouevidente, uma visão do campo artístico que, exatamente por não ser platonizante, sabe fugir de todo equalquer essencialismo idealista. Ao mesmo tempo, não recusa o apoio das sistematizações, dasclassificações e das ordenações. As reflexões que se seguem não vão certamente encontrar nem paralelo,nem mesmo muito respaldo em boa parte das críticas e das teorias contemporâneas das artes plásticas evisuais. É apenas (e como sempre) um olhar limitado que, jungido ao campo literário, ousa falar das artesem geral. Olhar limitado, mas não limitante, é o que se espera.

* * *

Primeiramente, insista-se que se deve mencionar aqui “artes”, assim mesmo, no plural, multiplicadas que sãopelos meios e pelas estratégias de produção do objeto artístico. E mesmo as artes literárias, elas não deixamatualmente de ser atingidas pela impermanência (constante) e pela obsolescência (eventual e relativa) dossuportes, das linguagens, das estéticas. Daí a dificuldade (que vem, aliás, ganhando relevo desde o início doséculo XX) de se definir estilos ou movimentos. Disso resulta que, no atual estágio das artes, tem sido maisfreqüente falar de utensílios ou de técnicas para definir ou descrever um objeto artístico ou um artista doque apostar em invariantes que extrapolem o hic et nunc do objeto produzido e do gesto que o produziu(nem se fale, então, de gêneros literários, aparentemente relegados em definitivo à vala comum doesquecimento). Essa multiplicação de sensibilidades e de estratégias de produção dos objetos artísticos tem-se escorado muito freqüentemente num discurso teórico paralelo ao objeto ou ao gesto artístico. Digoparalelo, pois tais discursos, por mais que finjam, não conseguem jamais entrar completamente na esfera doartístico: se assim o fizessem, deixariam de desempenhar justamente o papel para que foram criados, isto é,o de exercer a função de um cinturão conceitual em torno do objeto artístico e apto a justificar cadaarbitrariedade, transformando, por vezes, improvisos ou fraquezas em algo digno de interesse. Os antigoscritérios de valor estético – enfraquecidos com justiça por seu caráter prescritivo – foram simplesmentesubstituídos por uma argumentação sofística. Sofisticada, sim, às vezes, mas quase sempre sofística.

Em resumo, muitos dos objetos e dos gestos artísticos, faltos de qualquer inserção evidente e intencionalnuma linha cronológica, temática, estética ou até mesmo ideológica – por que não? –, não têm outraalternativa a não ser esta: desdobrarem-se, multiplicarem-se indefinidamente, numa espécie de fuga paraadiante que evite qualquer acerto de contas com outras produções e outros produtores. Com isso, obrigam-se a se fazer acompanhar dessa coorte de textos teóricos e reflexivos que pretensamente justificariam suainserção no rol dos objetos artísticos. Mas não há discurso teórico ou “palavra pintada”19 que escondapermanentemente o improviso e a falta de conhecimento, o recurso em última instância aos readymades,que apenas revelam desesperada (ou desesperançada) falta de imaginação. O coletivo Wu-Ming, um dos

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mais instigantes grupos de intervenção midiática da atualidade, falando do experimentalismo nasnarrativas, afirma que ele é “accettabile solo ed esclusivamente se aiuta a raccontare meglio. Se invece nonè che il proverbiale dito dietro cui si nascondono mediocri o pessimi narratori, per quel che ci riguardapossono ficcarselo nel culo”.20 Já não seria, talvez, escandaloso afirmar com os responsáveis do sítio Aleph

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que é “fin de juego para la herencia Duchamp”.22

* * *

Uma parte das instalações e dos gestos artísticos das últimas décadas (esses que não transitam resolutamenteno diálogo com as tecnologias contemporâneas), expostos em salas ou ao ar livre, ainda são delimitados pornossa corporeidade: limitação da velocidade de processamento de dados e de justaposição ou alternância designificantes; alcance máximo do campo perceptivo; quantidades definidas (e pequenas) de memórias decurto, médio e longo prazos, exigidas na leitura do objeto etc. Em outras palavras, entre tais objetos e gestosartísticos e o corpo do leitor não há ainda intermediários de monta e de importância, materialmente falando.Veja, entre muitos outros exemplos, as criações do grupo catalão La Fura del Baus, em que a platéia é levadaa perambular pelos cenários e pelas performances junto com os artistas. De seu lado, as criações da ciberarteerguem uma série de interfaces eletrônico-informáticas entre a instância perceptiva – a esfera decorporeidade do leitor – e o que pareceria ser origem e matriz, o cerne do objeto virtual. E tais interfacescomeçam por próteses ou aparelhagens várias (mouses, teclados, telas, máscaras de 3D etc.) ligadasdiretamente a nossas mãos, olhos, dedos, braços, ouvidos. Mas não se trata apenas de receber estímulossensoriais diretos, pois, imediatamente, somos levados a interagir com ícones, imagens, materiais verbais enão verbais de toda espécie, que usam a aparelhagem mencionada para colocar em jogo nossa capacidadede leitura e de manipulação de dados, nossa memória, nossas lembranças, nossa habilidade em associarsignificantes de natureza diferente e que proporcionam um arremedo de geléia geral semiótica.

Mais um passo e avançamos para o espaço das lógicas de interatividade e de iteratividade, utilizando, nocaso das primeiras, nossos conhecimentos de sintaxes e semânticas ergonômicas das interfaces gráficas dastelas de computador; no caso das segundas, nossa pretensa habilidade em controlar a velocidade com queo computador trata os processos e, ciclicamente, os expõe à nossa leitura e, depois, a nossas tendências,decisões e interações. Nesse caso, é freqüente que precisemos até mesmo fazer uso ou expansão de nossosconhecimentos técnicos, alterando configurações da máquina, instalando ou reinstalando plugins e patches.Em seguida, podemos ser levados a intervenções no ambiente de trabalho do computador, alterando áreasde atuação, alargando redes internas, disponibilizando redes externas. E, ao longo de todos esses processos,estamos sempre sendo chamados, externamente, a possíveis ou necessárias entradas em outros sítios ouendereços eletrônicos; ao mesmo tempo, internamente, estamos lançando mão de programas paralelos(editores de imagens e de texto, gerenciadores de placas de vídeo e de áudio etc.) àqueles de que nosservimos para entrar no ciberobjeto.

Cumpre, então, investigar mais detidamente esse processo, passeios ou idas e vindas por essa série deinterfaces que vão dos dispositivos eletrônicos aos programas todos instalados no computador, passandopelas várias camadas das interfaces gráficas. Tal processo poderia até ser visto por alguns como um caminho

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de leitura privilegiado, um percurso de compreensão que levaria no limite, como as hipóstases doneoplatonismo, à essência desse objeto ciberartístico. Contudo, entraríamos aí num jogo paradoxal:multiplicamos interfaces, quando queríamos desvelar a unicidade do objeto ciberartístico, como que justapondocortinas para desnudar uma pretensa sua essência. Ao passarmos de uma interface a outra, podemos não fazermais do que multiplicá-las, por não se tratar de via de mão única – sempre em direção a um eidos do ciberobjeto–, mas de um percurso que admite tanto a ida quanto a volta. Em suma, não avançamos para nenhuma essênciade qualquer objeto, apenas transitamos de um nível a outro do ciberespaço, sem que nenhum deles possa sertido e havido como definitivo ou primordial. Para melhor compreender tudo isso, talvez possamos tomar aexpressão “no limite” em seu sentido matemático: limite aí indicaria tão-somente uma aproximação assintótica.Com isso, a essência ou verdade desse ciberobjeto não estaria colocada ao final do processo, como verdaderevelada ou descoberta. Seria possível tomar os códigos de programação do objeto (a página-fonte HTML de umsítio; a codificação em Visual Basic ou C++ de um programa etc.) como a instância definitiva desse ciberobjeto?!É claro que não! Se assim fosse, estaríamos diante de uma essência permanentemente à deriva, espalhada pelosvários programas (sistemas operacionais, páginas de códigos de caracteres alfanuméricos etc.) associados àqueleque coloca em funcionamento nosso ciberobjeto. E tal essência estaria, assim, fragmentada para sempre, comoum Osíris adâmico que não se recuperaria jamais da queda, fadado a permanecer na esfera da imanência até ofinal dos tempos ou das pilhas que alimentam os relógios dos computadores.

Por outro lado, esse jogo de interfaces semelha-se às várias camadas de significantes que, no dizer de PierreEmmanuel,23 caracterizariam o simbólico: para o autor de Considération de l’Extase, analisarintelectualmente um símbolo seria como descascar uma cebola, camada a camada, tentando encontrar aprópria cebola. De maneira idêntica, nos três casos – da cebola, do símbolo e das interfaces telemáticas –pode-se seguir sempre em frente, na crença de chegar à essência ou à verdade do objeto em análise, mas, nofinal do processo, o que se tem nas mãos é apenas um vazio ou uma insignificância. Essa imagem propostapor Pierre Emmanuel reforça o princípio de que o símbolo é, claro, também texto, ou seja, um certo arranjode significantes submetido à leitura, e não idéia originária, imagem correlata ou mesmo substância,afirmação que também pode ser feita em relação aos objetos da ciberarte – assim como de qualquer objetoartístico. Em todos esses casos, não se pode querer chegar a uma interpretação última e definitiva; o queresta ao leitor é adiar indefinidamente o término do processo de leitura. De fato, quanto mais avançamosnessas pretensas hipóstases da ciberarte, mais nos perdemos, a menos que, como dito acima, consideremoso código-fonte em HTML de uma web criação o verdadeiro objeto artístico que buscávamos delimitar. E nessapretensa ou possível simbolização telemática assim como no processo simbólico descrito por PierreEmmanuel, o símbolo não se coloca como significante ou significado derradeiro a discernir, mas como esseprocesso de composição e de decomposição das várias camadas de interpretantes. Só que se trata de umasimbolização diversa daquela que, até o momento, nos foi permitido elaborar dentro da tradição oral, emprimeiro lugar, e da tradição escrita, em segundo. Enquanto nestas duas há uma estratificação hierárquicadas diferentes camadas significantes, que se vão sobrepondo indefinidamente, mas sempre em ordemdecrescente de entropia, na ciberarte, não há hierarquias necessárias na passagem de uma interface a outra,como se o sistema em observação se mantivesse em um nível de entropia sempre estável e, talvez, máximo.

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No que se refere às artes contemporâneas, sobretudo as que se desenvolvem com base nas vanguardas doséculo passado, e no que diz respeito à multiplicação de estratégias e de sensibilidades, podemos vislumbrarno ciberespaço uma possibilidade concreta de escapar à insularização desenfreada e isolacionista que asacomete. Freqüentemente, essas manifestações artísticas contemporâneas não constituem mais correntesnem movimentos, mas espontaneísmos empíricos, ou até mesmo voluntarismos imediatistas. Ora, o meioeletrônico pode permitir que rearranjemos e recosturemos, de modo sempre diverso, diferentes ciberobjetos.As estratégias específicas de um conjunto de ciberobjetos podem ser atravessadas por outras estratégias,estas agora de recortes e remontagens, de deslocamentos e de pluralizações. Não é preciso, então, quefiquemos limitados à especificidade do gesto, nem à singularidade do objeto, muito menos ao individualismodo criador; podemos, ao contrário, apostar nisso que Akenaton caracteriza como um “mélangeur, um mixeurfantastique”,24 o próprio ciberespaço. É importante salientar que não se trata de misturar, de formaapressada, improvisada e aleatória, diferentes gestos e objetos. Trata-se, isso sim, de pluralizar critérios dejustaposição e/ou de aglutinação de significantes e de percursos de leitura, o que poderá até mesmo noslevar, finalmente, ao estabelecimento de juízos de valor (e parece ser mais do que tempo de encararmos essadificuldade e essa premência de estabelecer tais juízos de valor para as artes contemporâneas).

Uma discussão de certo interesse, acerca das condições de produção da ciberarte, está disponibilizada nosítio Aleph, no manifesto anteriormente citado.25 Nele, são abordadas algumas questões relevantes para adiscussão que aqui tentamos fazer avançar. O ponto de partida de tal manifesto é a opção por umaperspectiva “produtista” (para não confundir com “produtivista”) da arte: “No somos artistas, tampoco porsupuesto ‘críticos’. Somos productores (...) somos productores, sí, pero también productos”.26 Assim, deautores ou artistas, os responsáveis pelo manifesto passam a se denominar produtores, revivendo talvezuma comunhão do mesmo tipo daquela que nos séculos XV e XVI, na Itália renascentista, fez nascer umaarte diretamente associada às técnicas de produção artesanal que estavam então surgindo.27 Sintonizadocom a efemeridade dos objetos telemáticos, o manifesto afirma não existirem obras de arte, mas práticasartísticas.28 De fato, a nova denominação sugere que se mantenha a ruptura (inaugurada pelas vanguardasdo início do século XX) com a tradição das belas-artes, recusando toda aura ou originalidade para suascriações, assim como para si próprios. Dessa forma, o termo “produtores” em lugar de “artistas” parecepressupor um investimento muito maior na técnica e muito menor – diria praticamente nulo – noartesanato. Contudo, tal empenho novidadeiro nem é tão novo assim: como já mencionado, ele semanifestava nos saberes (ao mesmo tempo técnicos e artísticos) dos pintores e escultores do quatroccento.

Em relação às práticas artísticas, se elas tomam o lugar das “obras de arte”, isso significa que se coloca aênfase em três instâncias: 1) no gesto, na intervenção dos produtores; 2) nos meios e nos percursos decirculação das práticas artísticas; 3) em “ciertos efectos circulatorios: efectos de significado, efectossimbólicos, efectos intensivos, afectivos”.29 Não se privilegia o objeto concretamente considerado, ou seja,alguma eventual materialidade que esteja diretamente ligada a uma dada prática artística. Isso, aliás, estáde acordo com a seqüência do manifesto: “Esa producción nunca debe confundirse con objeto o formaalguna: es un operador que se introduce con eficacia en algún sistema dado, desestabilizando la ecuaciónde equilibrio que lo gobierna”.30 Em suma, por trás desse discurso teórico, aparece o esforço dedesmaterialização do artístico ou, em outras palavras, o de privilegiar a efemeridade na produção das artes.

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Como conseqüência, ganham relevo quase exclusivo as condições de produção, os efeitos, as formas etrajetórias de circulação do artístico. E não se pode deixar de notar a presença de uma retórica de aparênciateorizante, formatada ad hoc para dar conta dessa dada prática artística e que se sobrepõe ao objeto,querendo escondê-lo também para garantir ou amplificar os efeitos acima mencionados. Caberia, no caso,perguntar se esse esforço não seria paralelo a um outro, o de precarização dos conhecimentos estéticos ehistóricos, relegados a segundo plano diante da premência de dominar certo conjunto de técnicas e deprocessos. Em outras palavras, essa perda de importância da materialidade do artístico corresponderia aoafrouxamento (e talvez também à desorganização) dos pressupostos teóricos e estéticos em sua produçãoe em sua fruição. A finalidade disso talvez esteja nesse projeto de fazer com que a impessoalidade dosinstrumentos e dos processos técnicos participe mais intensamente da produção artística.

De fato, há de se recuperar (ou propor) as (novas) relações entre ferramentas e condições de produção, deum lado, e o objeto produzido, de outro. Contudo, torna-se cada vez mais premente limpar o campoconceitual desse simplismo que consiste em confundir materialidade com objetividade: se as práticas de artecontemporâneas enveredam pela fugacidade do gesto, pela velocidade dos processos, pela transitoriedadedas redes e dos nós, isso não quer dizer que não haja aí nenhuma objetividade, o que acarretaria airrelevância das sistematizações estéticas. Ao contrário, isso significa apenas que a objetividade dada àleitura é exatamente a dessas práticas desmaterializadas. Ora, essa confusão entre materialidade eobjetividade não parece ser, de modo algum, ingênua ou casual. Nem mesmo isenta de conseqüências.Atenuando os elementos de apreensão artística do objeto (confundido, então, com sua materialidade),enfraquecem-se também os critérios estéticos de análise. É aí que entram os discursos de aparênciateorizante que acompanham as práticas artísticas: na ilusão de que não se tem mais, pretensamente, de seocupar de qualquer objetividade específica, abre-se caminho para que tais discursos venham se sobrepor àinvestigação criteriosa da obra de arte. Na verdade, ao se proclamar essa desobjetivação do artístico – comose isso fosse conseqüência direta de sua desmaterialização –, o que se faz é, espertamente, intrometer decontrabando uma objetividade envergonhada e que não se assume como tal.

Paradoxalmente, os produtores (ex-artistas, então) colocam-se também como produtos, ou seja, comoobjetos. Será que, segundo tal perspectiva, estaria circunscrita a isso a objetividade do fazer artístico? Àreificação do artista, agora assumindo-se como produto? Na verdade, essa visão parece, mais do que tudo,uma tentativa de dar relevo ao sujeito-despersonalizado, em oposição ao sujeito-individualizado.31 Nessecaso, no que toca às técnicas, aos processos e aos instrumentos utilizados, eles penderiam claramente para olado da despersonalização, assim como os meios, os percursos e os efeitos dessas práticas; no que se refereaos discursos teóricos que eventualmente acompanham as práticas contemporâneas (até mesmo na forma demanifestos, como esse de Aleph ou aquele do grupo Wu-Ming), eles se tornam às vezes o último reduto dosujeito-individualizado (do Je, tal como discute Couchot). É justamente a partir desse sujeito-individualizadoque se pode resistir ou aderir ao otimismo tecnológico. De fato, a individualidade, no que diz respeito àspráticas artísticas contemporâneas, tem-se resvalado muito freqüentemente para a estreita margem demanobra dos manifestos e dos textos teorizantes. E, dependendo da opção que se faça (resistência ou adesãoà mitificação das técnicas), vai-se poder falar em invenção a partir de ou reprodução das técnicas. Essanão é uma questão menor e está presente em alguns elementos abordados no manifesto de Aleph:

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“...las prácticas artísticas lograrán encontrar, en un proceso de transformación de las sociedades actualesque tiende a convertirlas en meros instrumentos de legitimación – cuando no en triviales generadoras debibelots de lujo para las nuevas economías inmateriales – sus mejores argumentos de futuro, su más altodesafío – o cuando menos una buena razón de ser en el siglo que ya comienza”.32

Eis o desafio das práticas artísticas das próximas décadas: evitar que se convertam em propagandistas dasempresas produtoras de softwares, construindo (mas não criando) objetos artísticos que são, na verdade,meramente exercícios de possibilidades já previstas pelos conceptores responsáveis pelo programa.

* * *

Com base no que foi discutido, que estéticas seriam ainda possíveis para as artes eletrônicas, ou, especificamenteem que nos cabe aqui pensar, para as textualidades literárias em meio eletrônico? Sem meter de vez a mãonesse vespeiro (de que não sairíamos mais), seria importante ao menos esboçar alguns elementos comuns aessas estéticas. De início, temos de ter bem claro que não se pode trabalhar com classificações e tipologiasfechadas e definidas,33 sobretudo com aquelas anteriores ao meio eletrônico. No sítio Neogejo, por exemplo, osleitores estarão em séria enrascada se tentarem definir qualquer dos objetos ali apresentados com base emesquemas e axiologias definitivas, principalmente aquelas ainda ancoradas nos meios não eletrônicos. Nessesítio, por exemplo, a criação After Rendez-Vous du Dimanche 6 Février, by Marcel Duchamp and BBC News, éliteratura ou criação gráfica? E mesmo as criações eletrônicas não digitais não nos fazem avançar muito. Elapoderia ser classificada como videoarte ou teríamos que tirar do colete alguma outra denominação?

Como ponto de partida, poderíamos talvez dizer que se trata simplesmente de prática artística, de acordo,inclusive, com o que foi afirmado acima. Num segundo momento, será imperativo especificar, delimitar,mapear, circunscrever – paulatinamente – o objeto artístico. Isso não significa que teremos necessariamentede elencar suas características e componentes, mas sim que será possível e até mais fértil descrever ascondições de possibilidade de sua produção. Com isso, evitamos a tentação do vale-tudo e do simplismo –conseqüências imediatas da exigüidade teórica que se deixa seduzir pela generalidade do rótulo práticasartísticas e dele não sai mais. A partir daí, se poderá invocar, então, o abrigo de algumas das possibilidadesaventadas (videoarte, literatura etc.). Pode ser que tal rótulo seja bastante adequado a artes que nãopendem mais para os lados da representação, mas que se lançam resolutamente na produção de processose de sentidos (talvez, na produção de processos de sentidos). Porém, isso não significa que devemos nosobrigar também a escolher entre essência e presença (no caso, haveria uma correspondência entrerepresentação e essência, de um lado, e entre produção e presença, de outro). Trata-se, como em muitosoutros casos, de uma falsa dialética travestida de dicotomia. É certo que, como afirma o manifesto de Aleph:“En las sociedades del siglo 21, el arte no se expondrá. Se producirá y difundirá”.34 Mas que não se deduzadaí que a desmaterialização das artes implicou sua des-objetivação.

Quando foi feita a descrição das condições de possibilidade de produção do objeto artístico, quis-seenfatizar a produção simbólica no que diz respeito a seus processos de circulação, disseminação esedimentação de significantes, chamando esse sistema de “práticas de arte”. Mas é bastante diferente do

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modo como essas práticas vêm sendo descritas e entendidas nas últimas décadas. Para muitos, elas seaproximariam da definição dada por Mário de Andrade ao conto.35 Como afirma Philippe Castelin:

Une ‘pratique d’art’, pour dire vite les choses, serait ainsi une activité créative non adresséesocialement mais réservée à un usage privé, et, en tout cas, délestée du souci de l’Art et de sonHistoire. Je puis faire de la cuisine avec un art et un raffinement infinis, si je n’invite que moi mêmeet quelques amis à goûter le résultat, ceci demeure une ‘pratique d’art’. Pour que je devienne(hypothèse...) un artiste en ce domaine il faut que j’accepte de m’inscrire dans la compétition desétoiles et des toques, que j’entre dans le circuit, que je m’adresse, potentiellement, aux juges,arbitres et concurrents. Si la fin de l’Art a sonné depuis longtemps, il est possible que le web ouvreune vaste perspective à pareilles ‘pratiques d’art’ et s’offre comme refuge pour tous ceux qui ontdécidé de ‘laisser tomber’...36

Tal definição teria duas desvantagens e, a rigor, nenhuma vantagem de monta. A primeira desvantagem seriatornar o relativismo a única possibilidade de abordagem estética do objeto artístico; parente próxima daprimeira, a segunda corresponderia à ilusão de que não há proveito em inserir a apreciação de tais objetosem qualquer perspectiva histórica. No caso, nunca é demais lembrar Marx: “Hegel fait quelque part cetteremarque que tous les grands événements et personnages historiques se répètent pour ainsi dire deux fois.Il a oublié d’ajouter la première fois comme tragédie, la seconde fois comme farce”.37 Esquecer, então, aperspectiva histórica é arriscar-se a repetir como farsa – e não como paródia ou pastiche – o que já foi antesproduzido, sem que esse tom farsesco faça, ao menos, parte da estratégia de produção do objeto. As práticasde arte devem, por isso, escapar a tal exercício de singularização progressiva e fechada, abrindo-se para aconstrução de campos e estratégias de disseminação e sedimentação em que seu objeto deixe, ao menos,traços e rastros de uma fugaz presença. Com isso, evita-se o relativismo, tanto daquilo que se fecha para aalteridade (objetiva e subjetiva) quanto desses processos que se instalam na ilusão de um eterno presente.

Assim, nossas práticas de arte contemporânea realizam-se não apenas como produção de materialidades(como é o caso das artes plásticas tradicionais), mas sobretudo como produção de possibilidades deprodução de materialidades. Nesse caso, estas últimas se tornam cada vez mais tênues, efêmeras, deixando,como já foi dito, apenas traços à semelhança das partículas elementares cuja presença, sempre indireta, ficarapidamente esboçada por linhas nas câmaras de bolhas. Mas a expressão acima carrega algo de obscuro.Em termos mais diretos, o que seria essa “produção de possibilidades de produção de materialidades”? Elaestá, por exemplo, nos sítios que à semelhança daqueles que dão à leitura os Cent Milles Milliards dePoèmes, de Raymond Queneau, geram os instrumentos informáticos, os meios telemáticos e os processoslógico-combinatórios para que o leitor venha, por sua vez, gerar as sucessivas combinações dos diferentessonetos. Aí, pelos aparatos e processos digitais, produzem-se não materialidades diretas, mas condições depossibilidade de geração de materialidades; ao leitor, em seguida, competirá a criação dessas materialidadestransitórias que são as diversas e praticamente nunca repetidas versões do soneto. Estabelecem-se, então, esobretudo, contextos e situações de criação aberta e/ou coletiva: no caso dos Cent Milles Milliards de Poèmes,a produção de uma dada combinação de versos (que, enfatize-se, praticamente nunca mais será repetida) sóse torna possível graças a uma rede de relações de causa e efeito que começam com o planejamento dessa

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fôrma literária por Queneau, passando, a seguir, à sua transformação em código por um programador, parachegar enfim ao comando com que o leitor entra na página da web e dispara a produção de uma dadaseqüência de versos. Nesse caso, como em qualquer outro, não se confunda o conteúdo informativo (ousemântico) do produto (a referida seqüência de versos) com o valor estético da produção.

Nas artes tradicionais, a produção simbólica desenvolvia-se nos significados do objeto produzido, o quevalia dizer que sua semantização era tomada diretamente como valor estético. Nas artes contemporâneas,ela se instala na maneira como se dá a circulação dos significantes. Em outras palavras, as próprias técnicas,os próprios processos e instrumentos também passam a ser inseridos em uma estratégia de simbolização.Trata-se de trazer para a ribalta os objetos técnicos – colocados usualmente como coadjuvantes no processode produção artística. Mas atenção! É fundamental perceber que nessa situação eles funcionam de mododiferente: não mais impõem sua lógica de produção em massa, sua exigência de eficácia máxima, pois estãoentrando em um espaço para o qual não foram planejados nem concebidos, espaço que vai impor-lheslógicas e estratégias específicas, diferentes, por certo, talvez até mesmo opostas às suas lógicas e estratégiasoriginais. De maneira muito semelhante, é o que ocorre com os cientificismos e filosofemas trazidos porAugusto dos Anjos ao espaço poético: não se pode lê-los de modo algum como reproduções ou citações deepistemologias ou metafísicas; é preciso entendê-los como elementos incorporados às estratégias de escritado poema, tão legitimamente como qualquer dos operadores poéticos tradicionais, como a rima ou o ritmo.

E é nesse fio de navalha que corre a criação artística em meio eletrônico, sobretudo essa da poesia digital.Uma das questões mais importantes que a ela se coloca foi muito bem esboçada por Fabio Doctorovitch:

“Existe un hilo muy delgado que separa a la poesía tecnológicamente avanzada pero conceptualmentetosca de aquella que verdaderamante rescata la esencia poética – que no se manifiesta a través de palabrasúnicamente – y la expresa por medios tecnológicos, creando de esta manera nuevos conceptos y abriendocaminos imposibles de andar de otra manera”.38

Trata-se, em suma, de encontrar confluências possíveis, zonas de simbolização mútua entre os novosinstrumentos/processos de produção e as linguagens artísticas que se busca desenvolver. E é exatamentenessas zonas de confluência que se pode ancorar qualquer esforço de juízo e de valoração estética.Habitualmente, deparamos com aparatos (processos de produção do objeto artístico mais os dispositivostécnicos e ferramentas que o tornam possível) que no caso da poesia eletrônica, por exemplo, não resultamem criações que primam pela linguagem verbal. Aparentemente, apenas se deu relevo e importância àspossibilidades de manipulação das técnicas – como é o caso do Générateur de Clés, de Eric Sérandour –, semque houvesse uma comunhão entre as linguagens das técnicas (incluindo aí as de seus manuais) e aslinguagens criativas das artes. Ora, não se pode fazer de conta que qualidade não nos interessa, quando elaestá o tempo todo por trás de toda e qualquer percepção que se tenha do objeto artístico. Assim, seguindoo que insinua Loss Pequeño Glazier,39 um dos mais importantes poetas eletrônicos da atualidade, há umapossibilidade de se aproximar o poeta do programador (sem identificá-los totalmente), a partir domomento em que se aproximam o poema e o programa. Ou, dito de outra maneira, quando se realiza opoema dentro e, também, apesar das possibilidades do programa.

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Claramente, o que se postula aqui é a submissão das técnicas e de suas lógicas de produção a interferênciase deslocamentos inerentes ao fazer artístico, para que possamos, em algum momento, construir de fato umsaber artístico (saber acerca do artístico e, mais importante, derivado do artístico). Expliquemos isso maisdetalhadamente. As lógicas do fazer técnico impõem a eficácia como valor de troca e de circulação de seusobjetos. Se um programa é menor e mais rápido que um outro que faz o mesmo, esse primeiro é certamentemelhor, segundo os critérios de valor e de produção das técnicas. Ora, isso tem como contrapartida a criaçãode um mito moderno e contemporâneo, o da onipotência da tecnologia. E se encontra aí, justamente, umadas portas de entrada para que o gesto transgressor das artes adentre o espaço das técnicas, transtornandoe transformando suas significações e sentidos, sobrepondo-lhes uma outra camada de simbolização (nãomais essa derivada de forma direta e simplista das mitologizações da produtividade técnica).Aparentemente, essas transgressões são o que Grégory Chatonsky chama de “incidente”.40 Nãonecessariamente o grande incidente de Paul Virilio,41 mas justamente essa descoberta de veios e jazidas desentidos inesperados e que estão sempre insertos às técnicas, escondidas e amalgamadas em suasinsignificâncias (e que, exatamente por serem insignificâncias, são escamoteadas da imagem pública que seexibe das técnicas, desses seus mitos contemporâneos e tão-somente profanos):

“L’incident n’est plus dès lors une simple obstruction au régime fonctionnel de la technique. En ledésinstrumentalisant et en le refonctionnalisant dans un cadre esthétique on propose un comportement inéditauquel aucun mode de lecture préexistant n’est (encore) adapté. C’est dans cette découverte de l’incidentcomme refoulé de la technique qu’une imagination sans formations représentatives peut émerger”.42

E esses incidentes (sempre no plural, como defende Chatonsky),43 na verdade, não aparecem pelo fato deos sistemas se desconectarem, de as redes se desgovernarem, de se intrometerem vírus e hackers. Nãotemos, é claro, uma estetização imediata do espaço telemático. Digamos que tais incidentes constituemjustamente a condição de possibilidade de termos lógicas artísticas sobrepostas às das técnicas: sintomas deinutilidades, incapacidades temporárias que se tornam duráveis ou mesmo permanentes, quebras na ordemno esperado e na esfera do possível, tudo isso pode ser recuperado como novos mitos, esses do saber queescolhe sempre as vias mais difíceis, os caminhos mais áridos, as propostas mais inúteis. Mas todas elasirrepetíveis, criando sempre esse espanto original e originário. Aliás, à diferença do espanto com a técnica(cujo modelo é o do ovo de Colombo, espanto que precede a repetição extremamente fácil), o espanto como artístico parece sempre impossível de ser reproduzido exatamente. Diante dele – e com ele –, estamos namesma situação descrita por Caeiro:

“Sei ter o pasmo comigoQue teria uma creança se, ao nascer,Reparasse que nascera deveras...”44

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Notas

1 [A nossa é, essencialmente, uma época trágica, e nos recusamos, então, a apreendê-la tragicamente. O cataclismo ocorreu, estamos entreruínas, começamos a construir novas pequenas moradias, a ter novas pequenas esperanças. É, na verdade, um trabalho duro: não hácaminhos fáceis para o futuro, mas nós contornamos ou pulamos os obstáculos. Temos que viver, não importa quantos céus tenham caído.]tradução do autor.

2 Reunindo uma série de técnicas que vão desde o estabelecimento de alguns tamanhos padrão (in-fólio, in-oitavo, in-quarto), passando pelascapas e contracapas, pela numeração de páginas, pela divisão e subdivisão em partes, pela construção dos diferentes tipos de índice etc.

3 Como propõe ABRIOUX, Yves. Géométrisation et dynamique textuelle: Thomas de Quincey, the english mail-coach. La Licorne, n. 28, p.163-4, 1994.

4 Podemos citar obras que vão do Dicionário Kazar, de Pávitch, a O Jogo da Amarelinha, de Cortázar, passando por Se um Viajante, numaNoite de Inverno..., de Calvino, entre outros.

5 CHARTIER, Roger. Du codex à l’écran: les trajectoires de l’écrit. éc/art S, Paris, n. 2, p. 42, 2000.

6 BOUTOT, Alain. La philosophie du chaos. Revue Philosophique de la France et de l’Etranger, Paris, n. 2, p. 173, avril/juin 1991.

7 BARTHES, Roland. S/Z. Paris: Seuil, 1970. p. 11.

8 Uma versão preliminar deste capítulo foi publicada em 2002, na revista Logos, da Escola de Comunicação da UFRJ.

9 É importante ressaltar que, se essa reversibilidade é essencial à linguagem ou à experiência do estar-no-mundo do sujeito, jamais poderiacaracterizar uma essência do ciberespaço, pois este aponta para uma instância derivada justamente daquelas duas experiências primeirase primordiais. Se pode ser associada alguma forma de reversibilidade ao ciberespaço, ela é como que outorgada pela linguagem e peloestar-no-mundo com que o sujeito reveste o ciberesepaço (e não o contrário).

10 KANT, Immanuel. Oeuvres philosophiques. Paris: Gallimard, 1980. v. 2, p. 521-545. (Bibliothèque de la Pléiade). [“Orientar-se significa,no sentido próprio da palavra: a partir de uma dada direção do céu (divide-se o espaço, dessa maneira, em quatro direções), encontrar asoutras, sobretudo o nascer do Sol. (...) Enfim, é possível, para mim, alargar ainda mais esse conceito, a partir do momento em que eleconsistisse no poder de orientar-se não apenas no espaço, quer dizer, matematicamente, mas no pensamento, quer dizer, logicamente”.]tradução do autor.

11 Ver, sobretudo, LÉVY, Pierre. Les technologies de l’intelligence: l’avenir de la pensée à l’ère informatique. Paris: Editions du Seuil, 1993. [Points].

12 Como no trecho em que se conta o início da peregrinação do poeta na Divina Comédia (e que se prende ainda às metafísicas ontológicasde que falamos):Nel mezzo del cammin di nostra vitami ritrovai per una selva oscuraché la diritta via era smarrita.Dante Alighiere (Inf., I, 1).

13 LANDOW, George P. Hypertext: the convergence of contemporary critical theory and technology. Baltimore: The Johns HopkinsUniversity Press, 1992. p. 13. [“Eu não disse que não havia centro, que poderíamos avançar sem centro. Eu creio que o centro é uma função,não um ser – uma realidade, mas uma função. E essa função é absolutamente indispensável”.] tradução do autor.

14 Como acontece freqüentemente, na internete, nesse sítios de exibicionismo mais ou menos explícito, em que indivíduos ou famílias seexpõem ao olhar do outro, olhar que é, no mais das vezes, um foco vazio por onde transita a própria vacuidade de quem crê se exibir demaneira transgressiva.

15 Que não são exclusivos do ciberespaço, mas atingem qualquer espaço de saberes institucionalizado, como as academias universitárias.De resto, essa situação configura o mesmo tipo de exibicionismo vazio já comentado na nota anterior.

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16 Já foi dito, ironicamente, que há páginas na internete cujas ligações internas e externas são mais embaraçadas do que um prato de espaguete.

17 Essa ânsia de substituição de nossas atuais versões de equipamentos e programas por outras sempre mais novas corresponde, de fato,àquela velha fetichização da mercadoria capitalista, tão bem estudada por Marx: quase sempre, essa substituição não corresponde nemmesmo a necessidades técnicas, mas serve tão-somente para manter em movimento dispendiosas estruturas de vendas das companhiasprodutoras de bens informáticos.

18 LÉVY, op. cit., 1993, p. 134-135, nota 10. “...le savoir informatisé ne vise pas la conservation à l’identique d’une société se vivant ou sevoulant immuable, comme dans le cas de l’oralité primaire. Il ne vise pas non plus la vérité, à l’instar des genres canoniques nés de l’écritureque sont la théorie ou l’herméneutique. Il cherche la vitesse et la pertinence de l’éxecution, et plus encore la rapidité...” [“...o saberinformatizado não visa à conservação idêntica de uma sociedade que vive ou que se quer imutável, como no caso da oralidade primária.Ele também não visa à verdade, como os gêneros canônicos nascidos da escrita, que são a teoria ou a hermenêutica. Ele busca a velocidadee a pertinência da execução, e, mais ainda, a rapidez...”] tradução do autor.

19 Cf. o opúsculo de mesmo nome, de WOLFE, Tom. The painted word. New York: Bantam Doubleday Dell Pub, 1999. Resenha interessanteestá disponível em: <http://www.brothersjudd.com>.

20 [“aceitável apenas e exclusivamente se ajuda a narrar melhor. Se, ao contrário, não é mais do que o proverbial dedo atrás do qual seescondem narradores medíocres ou péssimos, no que nos diz respeito, podem enfiá-lo no cu”.] tradução do autor.

21 Esse sítio tem se pautado por criações interessantes, acompanhadas de reflexões que, sem serem brilhantes, traduzem bastante bem ede modo pertinente as questões teóricas que mais freqüentam o debate contemporâneo.

22 [“fim de jogo para a herança de Duchamp”.] tradução do autor.

23 Citado, como epígrafe ao capítulo II, por DURAND, Gilbert. L’Imagination Symbolique. 4. ed. Paris: PUF, 1984.

24 AKENATON. Réponses à Marc Roudier. In: PURLIMPURE. Catalogue de l’exposition. Aix en Provence, 1999. [“misturador, umliquidificador fantástico”] tradução do autor.

25 Não deixa de ser curioso que, mesmo propondo mudanças substanciais nas relações dentro do sistema artístico, ainda se lance mão damesma estratégia discursiva, a dos manifestos.

26 http://aleph-arts.org/pens/redefinicion.html [“Não somos artistas; tampouco, claro, somos ‘críticos’. Somos produtores (...) somosprodutores, sim, mas também produtos”.] tradução do autor.

27 Para mais detalhes, consultar o excelente livro de ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas. Tradução de Federico Carotti. São Paulo:Companhia das Letras, 1989, especialmente o capítulo I. A despeito dos mais de 40 anos de sua primeira edição, essa obra continua sendoindispensável a quem quer que se dedique ao estudo das técnicas e do pensamento ocidental na virada para o Renascimento.

28 Proposta muito semelhante à das “práticas de arte” sugeridas por CASTELLIN, Philippe. Créer avec le web n’est pas mettre les chosesen ligne. Doc(k)s, Nice, série 3, p. 113-120, n. 21-24 de1999.

29 [“certos efeitos circulatórios: efeitos de significado, efeitos simbólicos, efeitos intensivos, afetivos”.] tradução do autor.

30 [“Essa produção nunca deve ser confundida com objeto ou forma nenhuma: é um operador que se introduz com eficácia em um dadosistema, desestabilizando a equação de equilíbrio que o governa”.] tradução do autor.

31 Retomo aqui a boa discussão proposta por Edmond Couchot, ao início do seu La technologie dans l’art (COUCHOT, Edmond. Latechnologie dans l’art. Nîmes: Editions Jacqueline Chambon, 1988), em que se discutem as diferentes posições dos artistas segundo umadicotomia entre ON e JE (em francês).

32 [“...as práticas artísticas conseguiram encontrar, em um processo de transformação das sociedades atuais que tende a convertê-las emmeros instrumentos de legitimação – quando não em triviais geradores de bibelôs de luxo para as novas economias imateriais –, seusmelhores argumentos de futuro, seu mais alto desafio – ou, ao menos, uma boa razão de ser, no século que já começa”.] tradução do autor.

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33 Na verdade, nunca se trabalhou realmente dessa maneira, mas há no ar um certo simplismo ao falar em estética que leva aconsiderações e comentários desse teor.

34 [“Nas sociedades do século XXI, a arte não será exposta. Ela será produzida e difundida”.] tradução do autor.

35 Segundo o poeta paulistano, conto é aquilo que seu autor diz que é conto.

36 CASTELIN, op. cit., 1999, p. 120, nota 27. [“Uma ‘prática de arte’, para resumir, seria assim uma atividade criativa não endereçadasocialmente, mas reservada a uma utilização particular e, em todo caso, livre de preocupações com a arte e com sua história. Posso cozinharcom uma arte e um refinamento infinitos, mas, se não convido ninguém, além de mim e de alguns amigos, para saborear o resultado, issoproduz uma ‘prática de arte’. Para que eu me torne (hipótese...) um artista nesse domínio, é necessário que eu aceite me inscrever nacompetição das estrelas e dos aventais, que entre no circuito, que me dirija, potencialmente, aos árbitros, aos juízes, aos concorrentes. Seo fim da arte já soou há muito tempo, é possível que a web abra uma ampla perspectiva a semelhantes ‘práticas de arte’ e se ofereça comorefúgio a todos que decidiram ‘deixar de lado’...”] tradução do autor.

37 [“Hegel faz em algum lugar a observação segundo a qual todos os grandes eventos e personagens históricos se repetem, por assimdizer, duas vezes. Ele esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia; a segunda, como farsa”.] tradução do autor.

38 DOCTOROVICH, Fabio. Hacia el dominio digital: poesía e informática en Argentina. Doc(k)s, Nice, série 3, n. 21-24, p. 147, 1999. [“Existeuma linha muito tênue separando a poesia tecnologicamente avançada, mas conceitualmente tosca, daquela que verdadeiramente resgataa essência poética – que não se manifesta apenas através de palavras – e a expressa pelos meios tecnológicos, criando, dessa maneira, novosconceitos e abrindo caminhos impossíveis de se percorrer de outra maneira”.] tradução do autor.

39 PEQUEÑO GLAZIER, Loss. ABC’s of coding. Doc(k)s, Nice, série 3, n. 21-24, p. 191,1999.

40 CHATONSKY, Grégory. [www.incident.net]. éc/art S, Paris, n. 2, p. 219, 2000.

41 VIRILIO, Paul. Cybermonde: la politique du pire. Paris: Les Editions Textuel, 1996.

42 CHATONSKY, op. cit., 2000, p. 214, nota 39. [“O incidente não é mais, a partir de então, uma simples obstrução ao regime funcional datécnica. Por desinstrumentalizá-lo e refuncionalizá-lo em um quadro estético, propõe um comportamento inédito ao qual nenhum modode leitura preexistente é (ainda) adaptado. É nessa descoberta do incidente como recalque da técnica que uma imaginação sem formaçõesrepresentativas pode emergir”.] tradução do autor.

43 CHATONSKY, op. cit., 2000, p. 215, nota 39.

44 CAEIRO, Alberto. Poema II. In: O guardador de rebanhos.

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p r e m i s s a m e n o respaços de escritas

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Uma Possível ou Pretensa Literariedade

Estabelecer critérios de literariedade nunca foi tarefa simples, em época alguma. E essa empreita torna-seainda mais espinhenta nestes nossos tempos de mudança dos paradigmas de escrita e, sobretudo, dos meiosde produção e de disseminação de textos. Supondo que saibamos minimamente o que vem a ser a escritaem meio eletrônico, cumpre ainda determinar os processos e as condições de produção do literário.Podemos examinar, a título de exemplo, um projeto que vem sendo desenvolvido há algum tempo, oLitteraterra, de Artur Matuck. Como em muitos outros casos, um problema se impõe desde os primeirosinstantes: como lidar com os percalços técnicos que surgem freqüentemente – comandos de javascript quenão funcionam, ou mesmo comandos que simplesmente não são obedecidos, falhas no planejamentoergonômico das telas, ligações que não levam a parte alguma etc.? No caso, há uma escolha a ser feita: ounão levamos em consideração tais percalços, fazendo de conta que são simplesmente ruídos (como quandoencontramos livros com páginas faltando, ou com falhas na impressão), fadados a desaparecer numexemplar ou numa versão a ser corretamente construída; ou entendemos essas interferências da técnicacomo elementos inalienáveis que participam diretamente da produção do texto. Na tradição impressa, essesproblemas – gralhas, no jargão dos tipógrafos – foram vistos com interesse apenas pelos bibliófilos e pelosestudiosos da crítica genética e da ecdótica. No mais das vezes e para a imensa maioria dos leitores, tratava-se de uns poucos erros limitados a uma tipologia sobejamente conhecida – falta de trechos ou de palavras,alterações ocasionais na seqüência de alguns significantes, desacordos com alguma norma ortográfica e/ougramatical –, erros a serem esquecidos (quando possível, caso contrário, providenciava-se a substituição dolivro). Na tradição eletrônica eles são mais freqüentes, muito mais numerosos e nada faz supor que se possaestabelecer deles uma tipologia definitiva muito menos duradoura. De fato, dependendo da evolução dossuportes, dos programas e dos recursos ergonômicos empregados, novos tipos de ruído podem surgir,alguns até mesmo propositais – como as inserções publicitárias tipo geocities ou hpg.

Tirante os problemas mencionados, a obra de Matuck desperta algum interesse por sua capacidade depropor uma conjunção entre os códigos de programação e os códigos lingüísticos. De fato, ela está no roldas não muito numerosas criações que mencionam a palavra literatura já no título e conseguem ir além dacriação gráfica ou visual, trabalhando com alguns aspectos lexicais e morfológicos das línguas (latinasprincipalmente). Todavia, o texto verbal apresentado por Matuck, inspirado na proposta da interlíngua,aponta também para a tentativa de criação literária de uma língua universal feita por Umberto Eco nas falasdo personagem Salvatore, do romance O Nome da Rosa. Em resumo, temos, de um lado, essa escritasalvatoriana ou interlingüística que joga com o código verbal, mas de forma permanente (trata-se de frasesescritas pelo autor a que os leitores, ao que tudo indica, não têm acesso nem interferência); de outro, umdispositivo que permite aos leitores escrever uma expressão em um quadro específico, e que é, em seguida,assimilada pelo sistema e exposta em outros locais da tela, sendo passível de alterações ao comando doleitor por meio de botões intitulados dis-scriber. É possível participar da construção dessa espécie denovilíngua ao entrar num sistema de acréscimo e descrição de vocábulos. De qualquer maneira, não hápistas de que essas inserções possam ser manipuladas de forma mais direta pelos leitores que as propuseram.É assim que o interesse incipiente que a criação verbal em Litteraterra desperta, à medida que vamosavançando na exploração da obra, parece se resumir àquela fala salvatoriana, mas não salvacionista.

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Nesse ponto, duas perguntas ainda subsistem e devem servir de baliza para as reflexões que se fazem aquisobre criação literária e meio eletrônico: qual seria o real estatuto da criação verbal nesse meio? Como seapropriar dos instrumentos e processos informáticos para construir uma ciberleitura que tenha comocorrelato uma ciberescrita? Ao mesmo tempo que postulamos essas questões, queremos nos afastar de certosimplismo que tem acometido os estudos literários há mais de uma década e procura ver literatura em todaparte, numa espécie de macarthismo às avessas (tão insidioso quanto seu original). Aceitar o pressuposto deque competiria apenas ao leitor individual a atribuição do estatuto de literário para um dado objeto nãosignificaria explicitar a evidente precariedade deste, mas, ao contrário, resultaria num leitor investido deum autoritarismo quase absoluto. Por isso, quando indagamos qual seria o estatuto da criação verbal nociberespaço, estamos propondo o mapeamento de um sistema literário que já esteja abertamente (quenunca será completamente) ancorado no meio eletrônico; estamos afirmando que não compete a leitoresnem a criadores definir, isoladamente, o que será produzido, lido, reproduzido e, portanto, definido comoliteratura. E também estamos afirmando com todas as letras que escrita e leitura, por mais que sedesloquem, por mais que se renovem e se estranhem, por mais que se entranhem de elementos novos, nãopoderiam ser reduzidas a um mesmo e único processo.

A julgar pelo que muitos críticos e teóricos têm dito nas últimas décadas, parece que o campo daliterariedade vem incorporando novos objetos, novos processos, novos materiais e, claro, novas temáticas.E essa expansão ocorre também quando se toma uma perspectiva sincrônica. David Reynolds,1 por exemplo,afirma que haveria uma escala ascendente em termos de complexidade semiótica, que vai do que ele chamade “textos sociais” até chegar aos literários. Duas observações podem ser levantadas com base nisso. Aprimeira diz respeito a uma identificação entre textualização e semiotização, o que parece um tantosimplificador. A segunda – e que nos afeta diretamente – é essa pretensão de colocar o literário como pontoculminante de um processo de textualização. Em outras palavras, quanto mais complexos, mais literáriosseriam os textos. E, somando isso àquela identificação entre textual e semiótico, literariedade esemioticidade seriam equivalentes: um grau elevado de uma corresponderia a um grau também elevado daoutra, o que nos levaria imediatamente à afirmação de que ambas corresponderiam a um mesmo processo.Mas, se todo texto é imediatamente passível de uma descrição semiótica, todo texto é imediatamenteliterário. Se tudo se torna literatura – como o próprio Reynolds observa –, “o relativismo crítico dominarátudo e o lobby político tomará rapidamente o lugar da crítica responsável”.2 De outro lado, nem todo textoliterário, até mesmo complexamente literário – poderíamos dizer –, é também dotado de complexidadesemiótica. Ainda é Reynolds que afirma ser o texto literário “...a compact explosiveness of sign that occursbecause an unusually large variety of cultural idioms and voices are fused to create extreme density andsemiotic polyvocality”.3 A julgar por isso, teríamos que excluir um Nelson Rodrigues, um Dalton Trevisan daboa literatura devido à exigüidade de ambos em matéria de variedade de “idiomas culturais”. Não hámesmo como escapar à construção de um leque mínimo de critérios de literariedade, preferencialmenteprovisórios (para que não se convertam em dogmatismo estético), na tradição impressa e,conseqüentemente, no meio eletrônico. De fato, a indagação sobre o real estatuto literário de uma obra édiscussão que sempre permeou o debate crítico, coisa que se pode ver desde Aristóteles, Horácio e Longino.

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Teremos, talvez, chance de voltar a essas discussões mais tarde, em outros locais. Agora, interessa entendercomo e por que a literatura da tradição impressa vem impregnar o meio eletrônico – sobretudo essaliteratura da última tradição impressa – com seus esforços de romper as barreiras do verbal em direção doverbivocovisual, na expressão de seus próceres mais ilustres. Por isso não deve nos surpreender que o novocampo da literariedade eletrônica ainda pague tributo a elementos e perspectivas da tradição impressa.Dessa maneira, ao influenciar as perspectivas de produção e de disseminação dos textos, agora em meioeletrônico, essa literatura da tradição impressa faz com que a própria noção de literariedade eletrônicafique sujeita a certa hesitação, oscilando entre certezas e incertezas, já familiares, da tradição impressa enovas e surpreendentes incertezas – somadas a umas poucas certezas – que vão surgindo nessas criações eleituras no ciberespaço. Todavia, essa instabilidade pode ser benéfica, desde que não se converta num vale-tudo em que (como já afirmado acima) artista ou leitor, cada um em seu canto, outorgue-se o papel delegislador estético, definindo o que é ou não ciberliteratura. Essa instabilidade pode ser benéfica, sobretudose for usada por criadores e leitores para se deslocarem de seus campos habituais de atuação epossibilitarem novas dinâmicas de produção e disseminação dos textos. É o que ocorreria com a criação noLitteraterra, de Artur Matuck, se se tivesse introduzido ao menos um procedimento que permitisse umajustaposição eficaz entre os escritos em interlíngua e os dispositivos de manipulação automática e aleatóriadas expressões propostas pelos leitores.

Uma das características das obras literárias mais largamente exploradas nos últimos tempos, aintertextualidade é uma das pontes mais evidentes (mas não obrigatoriamente mais importantes) entre atradição impressa e o meio eletrônico. Isso já se encontra documentado e exaustivamente discutido emtrabalhos sobre hipertextos, ao menos desde 1994, em ensaios cometidos por mim e em estudos de gentecomo George P. Landow e outros. Assim, a literariedade das obras literárias eletrônicas, de início, herdaprocedimentos e perspectivas da tradição do intertexto, sobretudo na maneira como o conceberam e odescreveram Gérard Genette e Julia Kristeva. Tanto quanto os hipertextos eletrônicos, todo texto literáriodeve ser lido “non pas comme des entités autonomes, ‘des touts organiques’, mais comme des constructionsintertextuelles: des séquences qui ont du sens en relation avec d’autres textes qu’elles reprennent, citent,parodient, réfutent, ou, plus généralement, transforment...”4 Entre a tradição impressa e o ciberespaço,então, se estabelece uma linha de comunicação pela multidimensionalidade textual que dá sentido às obrasaí produzidas. Mas, nesse caso, cumpre destacar uma primeira e importante diferença que aparece namaneira como se dá a produção do texto com base no material significante colocado diante do leitor. Nocaso da tradição impressa, o espaço de intertextualidades (ou mesmo hipertextualidades, se seguirmos anomenclatura proposta por Genette) é limitado pela capacidade de escritores e leitores manipularemreferências e textos outros (mesmo no caso de obras multirreferenciais, como os Cantos, de Ezra Pound). Noque toca ao ciberespaço, a capacidade do leitor de manipular dados e processos não rivaliza nem de longecom a memória e a velocidade dos sistemas informáticos.

Nesse ponto, é importante ressaltar que essa diferença quantitativa acaba implicando diferençasqualitativas na produção dos textos. O ciberespaço não propicia, de forma alguma, uma infinidade efetivade materiais, de referências diretas e indiretas. O que ocorre, na verdade, é que ele abre o campo dospossíveis de maneira até então inimaginável, bem acima das capacidades de processamento do ser humano.

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Aliás, tal expansão já era evidente na escrita (a fortiori, na imprensa), que propiciou o armazenamento dequantidades de signos verbais bem acima das possibilidades da memória do leitor (imprescindível até entãona tradição oral). Dito de outra maneira, o meio eletrônico abre duas direções fundamentais para o leitor:de um lado, ele é instado a mapear um campo de sentidos possíveis, utilizando não apenas as linguagenscostumeiras (visuais, verbais, sonoras etc.), mas também e sobretudo os processos, procedimentos eferramentas informáticas. É como no caso do Litteraterra, em que o leitor se vê diante da tarefa de mapeare de entender como funcionam as interações e os automatismos para interagir mais eficazmente com aobra. De outro lado, com base nesse mapeamento, o leitor pode então passar para uma etapa posterior, ade organizar significações a partir do material significante colocado diante de si. E novamente entram emcena suas limitações físicas (de campo visual, de memórias de curto, médio e longo prazos): diante de umalegião de possíveis que se abre na tela e ao toque dos dedos, ao alcance dos automatismos e das interações,quaisquer interpretações deverão ser resultado de escolhas fundadas não apenas em coerências econsistências das diferentes linguagens envolvidas, mas também em lógicas de edição e de construção deespaços significantes multidimensionais. No caso da criação de Artur Matuck, isso se refere à justaposiçãoentre o verbal da tradição impressa (os escritos explicativos que se abrem aqui e ali) e o automático-iterativodo meio eletrônico. E ressalte-se a necessidade de uma conjunção, e não de uma justaposição entre um eoutro, como parece indicar a lógica de construção dessa obra.

Talvez essa diferença entre conjunção e justaposição ajude a discernir melhor a maneira como se esboça,então, uma linha que leva da literatura da tradição impressa a uma pretensa literatura eletrônica. Assim,não se fala nem de continuidade, nem de ruptura radical, mas de sedimentações de processos textuaisvariados, podendo colocar no mesmo saco o projeto do Livre, de Mallarmé, e propostas vanguardistaspropagandeando a própria extinção do livro. É por isso que falar da literariedade dos hipertextoseletrônicos significa dar conta desse intrincado jogo que não pode mais ser resumido simplistamente a umaescolha entre diacronia e sincronia. Como ocorre com todo objeto cultural, ambas se imbricam e seentrelaçam numa conjunção que não tem como se socorrer com o abrigo cômodo e reconfortante de umadialética de feitio hegeliano. Bem examinadas, percebemos que há diacronias em qualquer recortesincrônico e vice-versa, sincronias em toda perspectiva diacrônica. De fato, esse processo permite perceberque tais jogos e conjunções entre textos distintos também se tornam, de imediato, textos. E só o que evitaque caiamos no círculo fechado e vicioso da sofística (tal como acontece com alguns críticos e teóricos quevêem em tudo apenas construção de significações) é o esforço de manter tal círculo em permanentemovimentação,5 o trabalho (sempre inútil, mas persistente) do leitor de se dirigir para fora do espaço dastextualidades, tentando inutilmente, como Sísifo, alcançar o espaço dos sentidos possíveis.6

De fato, é isso que permite a Fabio Doctorovich afirmar que “...viejas técnicas dejadas de lado por los poetastales como el teatro, el canto y la plástica están siendo reelaboradas a partir de las experiencias dadaístas yfuturistas de principios de siglo”.7 No caso da obra tomada como exemplo, Litteraterra, pode-se perceberuma deficiência que é marcante na imensa maioria das criações da ciberliteratura: justamente a falta deuma visão mais ampla e que permita contemplar e assimilar na criação da obra (e, de modo correspondente,na leitura dela) algumas das distintas sedimentações que dão possibilidade e sentido ao objeto submetidoà leitura. São justamente essas sedimentações que vão, nelas e por elas, construindo esses textos que só

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assim podem existir. Doctorovich afirma que “en algunos casos las técnicas antiguas se funden con lasnuevas tecnologías, generando soportes mixtos que podríamos llamar postmodernos”.8 Mas talvez sejamelhor dizer que a novidade (estou entendendo assim o termo “pós-moderno”) não esteja propriamentena fusão de técnicas antigas e novas tecnologias. Na versão escrita que Chrétien de Troyes propôs daDemanda do Graal, técnicas da oralidade e da escrita já se misturavam de modo indestrinçável. A novidadetalvez esteja sobretudo no modo como as enormes quantidades e a grande velocidade do meio eletrônicogeram artifícios e processos de significação que correm paralelamente aos significantes tradicionais (verbais,icônicos, sonoros, imagéticos etc.) sem se confundir com eles e sem os esconder, mas permitindo omapeamento de espaços heterogêneos e multidimensionais de produção de sentidos. É justamente nessesespaços que o verbal é lido também (e principalmente) através e dentro do eletrônico; em que o eletrônicose manifesta dentro dos limites e das operações possíveis da matéria verbal.

Dito de outro modo, as literariedades (talvez seja mesmo mais sensato falar assim, no plural) que seesboçam nestes tempos de ciberespaço eletrônico permitem retomar, como indica Jean Clément,

“...un courant littéraire très ancien (...) qui s’oppose à la conception classique fondée sur la certitude que letexte est la juste traduction de la pensée ou à celle, romantique, d’une littérature considérée comme refletde la sensibilité. Ce courant, que l’on peut suivre depuis les Grands Rhétoriqueurs jusqu’à Paul Valéry, estmoins attaché aux textes qu’à leur processus d’engendrement...”9

Mas, se apenas se retomasse essa construção lúdica da literatura, não se faria nada além de repetir, comalguma maquiagem de novidade técnica, obras e processos produtivos que datam de séculos. Em criaçõescomo Les Litanies de La Vierge, de Jean Meschinot, ou Der XLI. Libes-Kuß, de Quirinus Kuhlmann, o espaçode significantes da obra já se desdobrava e se multiplicava, expandindo ou explodindo os possíveis do texto.E, no caso dessas obras, elas são análogas de alguma maneira à Máquina de Turing: há uma descrição dasituação inicial, isto é, a seqüência de significantes já impressos no papel; todos eles remetem a signospertencentes ao léxico de uma dada língua, isto é, são signos de natureza verbal; e o poema é introduzidopor um conjunto de instruções que permitem a produção de novos espaços de significantes. Nesse sentido,não há diferença essencial com relação ao poema de E. M. de Melo e Castro apresentado a seguir, a não sero fato de o poeta propor alguns exemplos de funcionamento de sua máquina de Turing poética, fazendocom que certo número de leitores prefira a estratégia de não explorar seu aspecto computacional e passardiretamente para a montagem de significações restrita aos significantes propostos pelo autor.

Tudo Pode Ser Dito num Poema

1) propõe-se o seguinte modelo

em presençaacaso A é B de A (ou de B, ou de C etc.)

na ausência

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2) A e B são um par de contrários

exemplos:

tudo - nadabem - malalto - baixobelo - feiopreto - brancoetc. etc.

3) A e B são substantivos ou pronomes

exemplos:

homem - deusarma - braçocasa - fogoamor - ventoeu - tutu - eleetc. - etc.

4) C é aleatório

5) escolha as suas palavras e desenvolva o modelo segundo uma regra combinatória,

6) estude atentamente as proposições resultantes

7) não suspenda a sua pesquisa: tudo pode ser dito num poema

EXEMPLOS

acaso tudo é nada em presença de tudoacaso nada é tudo em presença de tudoacaso tudo é nada em presença do nadaacaso nada é tudo em presença do nadaacaso tudo é tudo em presença de tudoacaso tudo é tudo em presença do nadaacaso nada é nada em presença de tudoacaso nada é nada em presença do nada

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acaso tudo é nada na ausência de tudoacaso nada é tudo na ausência de tudoacaso tudo é nada na ausência do nadaacaso nada é tudo na ausência do nadaacaso tudo é tudo na ausência de tudoacaso tudo é tudo na ausência do nadaacaso nada é nada na ausência de tudoacaso nada é nada na ausência do nada

acaso tu és tu em presença de tiacaso tu és tu na ausência de tiacaso tu és ele na presença de tiacaso tu és ele na ausência de tiacaso ele é tu na presença de tiacaso ele é tu na ausência de tiacaso ele é ele na presença de tiacaso ele é ele na ausência de tiacaso tu és tu na presença deleacaso tu és tu na ausência dele etc.

Nos três casos (os poemas de Meschinot, Kuhlmann, Melo e Castro), não temos em ação nenhuma máquinapropriamente dita, e sim uma série de procedimentos algorítmicos que só funcionam e têm, portanto,algum sentido quando realizados por alguém chamado leitor. Em suma, não há verdadeiros maquinismos,mas sim uma simulação deles, e a multiplicação de significantes em grande quantidade é devido ao trabalhodireto desse leitor colocado diante de uma quantidade imensa de significantes que ele mesmo produz e aque deve atribuir significações. Tivesse Rábano Mauro notícias de maquinações semelhantes, mais motivoteria ele ainda para restringir as interpretações possíveis dos textos (sagrados ou não) aos quatro níveispropostos em sua teoria da interpretação. Pode-se imaginar o temor da intelectualidade eclesiástica setivesse que lidar com uma imensa legião de significantes que esse tipo de obra tornasse possível!

É importante também destacar que tais mecanismos poéticos, mesmo insertos ainda no espaço da tradiçãoimpressa, já permitem ao leitor mapear um novo espaço de leitura (e que vem se somar a esse tradicional ecostumeiro, que busca estabelecer construção de significações a partir dos diferentes estratos dos mesmossignificantes, e que as sucessivas leituras vão identificando na obra). Trata-se da identificação e da leiturados procedimentos algorítmicos, baseados em mecanismos de escolhas de elementos e alterações de ordenssintáticas e semânticas. Em resumo, é necessário passar por uma primeira leitura ainda antes dessaarticulação de significações a partir de um conjunto estável de significantes, pois, justamente, tais obras nãofornecem aos leitores esse conjunto estável de significantes (mesmo aparentando tal estabilidade). Vai serpreciso, primeiramente, entender como funciona, ou seja, ler o sistema de geração de significantes antes depassar a gerá-los e a lê-los. Se, tomando os poemas de Meschinot e de Kuhlmann, ou mesmo labirintos,como um de Camões (anexo 1) poucos põem em dúvida a literariedade deles, talvez seja devido a esse

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evidente estrato (diria melhor, forma) literário, essa aparente estabilidade dos significantes que leva, deimediato, a formas reconhecíveis da tradição literária: versos, estrofes, metrificação, ritmo etc.

O caso de Raymond Queneau e seus Cent Milles Milliards de Poèmes representa um avanço importante nãoapenas quantitativo, mas também qualitativo.10 Se mantemos a analogia com a Máquina de Turing,podemos dizer que no caso de Queneau uma máquina foi materialmente construída, à diferença dospoemas mencionados. A edição em papel dos poemas implica uma leitura impossível, se tentamos usar osprocessos de manipulação da tradição impressa. Não conheço leitor que tenha conseguido algum sucessodiante da grande quantidade de tirinhas de papel que se obstinam em não permitir nenhum controleefetivo de suas mãos e dedos. O líder do Oulipo realmente construiu uma máquina mecânica (e nãoeletrônica) de multiplicação de significantes que, nos resultados numéricos, vai muito além das queMeschinot e Kuhlmann propuseram. Trata-se de um máquina mecânica, sim, mas cujas possibilidades eefeitos podem ser próprios e mais extensamente lidos no meio eletrônico.11 Isso tudo acaba colocando umagrande distância entre os leitores e qualquer aparência de literariedade tradicional, como se observa aindanos poemas. Daí vem, talvez, a resistência de muitos críticos (ainda hoje) em atribuir qualquer valor literárioa essa obra de Queneau: afinal de contas, a materialidade de sua máquina, direta e ostensivamente dada àmanipulação do leitor, praticamente afasta qualquer leitura pelo viés tradicional, isto é, que reconheça aforma do soneto e faça as costumeiras divagações e deambulações de significados e sentidos. Todavia, essedispositivo do escritor francês não esconde um ponto importante: tanto quanto os maquinismos virtuais deMeschinot e Kuhlmann, ele é também espaço e forma significante, parte inalienável de qualquer percursode leitura que se faça dentro e a partir dele. Queremos dizer com isso que nem as máquinas virtuais de uns,nem a máquina real do outro podem ser vistas apenas como meio por onde transitam os significantes, oumesmo como agentes construtores de significantes, mas colocados na exterioridade do texto.

Os dois tipos de máquina tomam parte no texto, e também são submetidos a um processo de leitura, istoé, de estratificação, de categorização, de mapeamento de ligações sintáticas e semânticas. Daí a necessidadede entender os maquinismos como simulacros. Em outras palavras, não estamos diante de um processoindustrial em que o maquinismo que produziu o objeto coloca-se fora de sua utilização por qualquerusuário. Esses maquinismos de gerar significantes seriam, para usar a mesma analogia, como objetosindustrializados que, para serem usados, teriam de se fazer acompanhar de toda a fábrica, com suasinstalações e maquinários. Então chegamos a uma constatação importante: as máquinas de gerarsignificantes, quando inseridas num processo de leitura, obrigatoriamente deixam de ser maquinismos parase tornarem simulacros de maquinismos.

É assim que, no meio eletrônico, se torna imperioso entender e aceitar que a máquina é simulacro; que elanão gera significações, mas significantes, sendo ela própria um significante. Se não se leva isso em conta,caímos num embuste, nessa mitologia contemporânea das tecnologias que nos é imposta como se técnicas,ferramentas e processos fossem objetos à parte do mundo cultural. Como se o computador não fosse parteespecial, diferenciada, com funções distintas de outros elementos, mas parte do texto que se produzdurante as leituras. Por isso não se pode colocar a máquina numa esfera de espontaneidade e identificá-laaos sujeitos que participam do processo de produção do texto. Não há subjetividade na máquina, por isso

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não se pode falar de duo pensante homem-máquina. Quem pensa é o homem, e toda discussão sobreinteligência artificial seria menos simplista se levasse isso em conta, se deixasse de confundir inteligênciacom consciência artificial. Em resumo, as maquinações, jogos e permutações em Meschinot e Kuhlmann nãosão partes ou extensões do autor, mas estratégias a serem lidas e que, portanto, também fazem parte dissoque chamamos simplesmente texto. Da mesma maneira, o computador não é uma entidade autônoma,espontânea. Ele é um conjunto de elementos ligados por uma série de instruções e de condições decontorno; portanto, é tanto texto quanto os significantes que ele próprio, em nível diferente, manipula,processa, reordena, desorganiza e produz.

* * *

Se “apenas uma grande intuição pode servir de bússola, nos desertos da alma”, como afirma Pessoa,12 talveza palavra seja o instrumento para invocar essa intuição e estender caminhos e percursos nesse desertopovoado de significantes que é o ciberespaço. Tomemos, por exemplo, a palavra deriva, utilizada no iníciodeste ensaio. Ela tanto indica o desvio, o distanciamento, a perda de rumo como nomeia um instrumentonáutico que serve justamente para evitar a perda da rota. Se são tempos de deriva e perda de rumo, estesnossos são igualmente tempos de deriva e de navegação por instrumentos de cibernáuticas empreitas. Apalavra não foi arquitetada e tramada para o papel, para a folha escrita nem para a página impressa, masfez desse espaço sua morada e sítio quase como tivesse sido feita e inventada adrede para ocupar esse lugar.A tal ponto de um artista como Fabio Doctorovich, com a sensibilidade inteligente que o distingue, terafirmado que “la palabra es probablemente el generador de significados más adecuado cuando se trata depágina impresa (aunque no tanto teniendo en cuenta a la poesía visual)”.13 Mas parece tropeçar quandoafirma, logo em seguida: “Sin embargo, esto podría no ser así en el dominio virtual de la WWW”.14 Mesmoparecendo otimismo exagerado, ainda defendo que a palavra, a matéria verbal, vai encontrando sua horae vez, seu lugar nesses espaços de espaços, nessa multidimensionalidade que é o ciberespaço, econformando aí locais e instantes de literatura, ou melhor, de ciberliteratura. E é o espaço e as condiçõesde contorno na criação verbal que importa considerar. Não apenas no que ela recebe de especificidades elimitações do meio eletrônico; também na maneira como o meio eletrônico pode ser redesenhado,retramado e retrabalhado a partir da matéria verbal. A descrição de uma possível ou pretensa literariedadeeletrônica terá que dar conta, então, das torções e distorções que o uso da palavra traz para o ciberespaço,em geral, e para o que, em particular, temos chamado de ciberliteratura. É o que vamos discutir naseqüência deste ensaio. Basta fazer avançar as páginas!

O Texto Eletrônico como Produtividade, ou as Relações entre Autor e Leitor

Há coisa de dois anos, realizou-se em Paris, no Museu Carnavalet, uma exposição de imagens virtuais construídasnos primórdios da invenção da fotografia. Em alguns casos, a espacialização em três dimensões era obtida apartir da bidimensionalidade de duas fotos colocadas em distintos eixos de perspectiva. Com se dá até hoje, omecanismo de construção desse tipo de jogo óptico baseia-se num arranjo entre duas imagens que se colocam

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em perspectivas distintas, mas compartilham um mesmo espaço,15 forçando, por isso, a visão a buscar umterceiro ponto de vista. Ora, posto numa situação em que ele oscilaria indefinidamente entre uma perspectivae outra, o olhar acaba criando uma terceira, que não é a mera soma ou justaposição das duas anteriores, masa criação de uma outra possibilidade de exercício da visibilidade. Com isso, até mesmo o tempo de observaçãode uma ou outra das duas imagens reais é suprimido: de fato, ambas não podem ser vistas no mesmo instante,o que vale dizer que elas isoladamente acabam não sendo vistas em instante nenhum. Daí termos algo como acriação de um terceiro instante, de uma outra temporalidade, em que as duas não são mais vistas, maspossibilitam a observação de uma terceira, essa que só existe numa perspectiva mediada pelo dispositivo óptico.

Isso me pôs a pensar em outro dispositivo, não mais óptico, mas visual:16 a tela do computador, e sua capacidadede baralhar indefinidamente signos imagéticos e verbais, de lançar um segundo texto a partir de um primeiro,de permitir ligações constantes com uma página sempre-a-vir, e ancoragens efêmeras nessa que acabou de serarmazenada na memória. Há aí uma inesperada e possível afinidade com os dispositivos ópticos acimamencionados. Em ambos os casos, um objeto convoca um outro a também ocupar um mesmo espaço. Mas háuma diferença importante entre as duas situações. No caso das duas imagens bidimensionais, é como se nempassássemos por elas, já instalados que estamos diante de uma pretensa terceira imagem (que só existe comoilusão), essa, sim, aparentemente tridimensional na maneira como se apresenta ao olhar. Não nos cabe fixar aatenção em apenas uma das imagens (atitude que, no mais das vezes, nem é possível), fazendo de conta que aoutra não existe. Não! Apenas nos é dado o vislumbre dessa terceira perspectiva. No texto eletrônico, passa-se,às vezes celeremente demais, de um texto a outro sem que nos situemos, ainda que ilusoriamente, em face deum terceiro texto. Na maior parte das situações, nos posicionamos apenas diante do segundo, daquele paraonde nos deslocamos. Mas há algumas nuanças nesse ciberespaço de eletrônicos e virtuais objetos.

Quando o segundo texto surge na tela, ele não inaugura um universo de sentidos e de possíveis significadosque seja completamente novo; de resto, como qualquer texto, ele não admite leitura ingênua, a ser construídaab ovo. A maneira como vamos inseri-lo numa trama dinâmica de significados depende do grau de opacidadecom que vemos o texto anterior por meio desse texto segundo. É como se tivéssemos um palimpsesto cujofundo (isto é, o texto anterior) tivesse uma visualidade variável, de acordo com a maneira como queremos lê-lo. Assim, podemos encontrar inumeráveis possibilidades entre um extremo e outro: num lado, o ler sempreem todo texto aquele primeiro que deu início à navegação; no outro, o ler sempre o texto atual, querendoapagar completamente rastros e vestígios daquele que veio antes. Entre um pólo e outro, situa-se uma gamainfinda de possibilidades em que se exerce o que Pedro Barbosa chamaria de escrileitura.17 Dessa maneira,quando pensamos nesse trabalho de passar de um texto a outro, temos muito a aprender com aquelaconstrução de imagens tridimensionais. Temos que negar a escolha maniqueísta que nos coloca no dilema deler tão-somente o primeiro ou o segundo texto, escolher o grau de interferência entre um e outro, e que nosdará então um texto terceiro. Assim, nosso esforço de leitura, parece-me, deve se dirigir radicalmente àconstatação e à construção dessa confluência de ambos, dessa terceira textualidade que, ao contrário dasimagens tridimensionais, temos de tirar a fórceps do nosso esquecimento, da nossa cegueira, até da nossaindiferença a ele. E esse terceiro texto não seria nem um nem outro, nem um lido pelo outro, nem o acréscimode um a outro, mas o resultado de uma leitura que se quer e se arrisca a ser, a seu modo, também escrita(mesmo sendo esta exercida em instâncias e com instrumentos distintos daquela realizada pelo autor).

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Trata-se, aí, de escolher um mapeamento, uma escrita de certa linguagem, em vez de mergulhar numaimprovável, interminável e mesmo impossível leitura da língua, colocando em relevo o texto como fenômeno enão como objeto. Mas isso tudo pode estar ficando hermético demais. Examinemos melhor essas afirmações.Esquecer que o texto segundo (como todo e qualquer texto) é já um palimpsesto e, no caso do meio eletrônico,um palimpsesto concreto e imediato parece implicar uma fuga para a frente infindável, uma tentativa de chegarao todo da língua, fazendo avançar essa ilusão de que somos capazes de enunciar uma torá laica e eletrônica eque teria a possibilidade de chegar ao término de um périplo não mais assimptótico. Em outras palavras, trata-se da ilusão de que teríamos em nós a capacidade de produzir e, portanto, de apreender a totalidade da língua,de tê-la à mão, como um objeto que se possui completamente, exposto inteiro ao olhar. É a ilusão quecompromete uma série de comentários exageradamente otimistas sobre a tecnologia eletrônica aplicada àedição ou à escrita. Alguns, como Dierk Hoffmann, apregoam as vantagens do meio eletrônico, único capaz deuma verdadeira “edição-rizoma”, que tornaria “imediatamente acessíveis todos os testemunhos textuais,manuscritos, datiloscritos e impressões”, assim como “suas transcrições e interpretações”.18 Esse acesso imediatoà totalidade parece resultar mais de uma profissão de fé que de um ato de leitura (seja ela eletrônica ou não). Emesmo as interpretações que o leitor pode associar a um elemento ou outro da obra, mesmo elas nunca estarãotodas à disposição de outros leitores, o que vale dizer que nunca se apaga a diferença entre informação einterpretação. Ademais, uma grande quantidade de comentários, assumindo o estatuto de textos no mesmonível daquele primeiro texto, ao contrário do que afirma Hoffmann,19 é sempre o resultado de escolhas e recortes,e não um encaminhamento à totalidade dos sentidos e da língua. E, ainda, esse alargamento constante doslimites do texto lido, sendo sempre acrescido de outros e mais outros textos, esse pulular de significantes não nosdá mais do que uma progressiva ilegibilidade (a hiperinflação informativa acima mencionada).

Assim, tomar um caminho oposto a esse “melhor dos mundos” advindo da tecnologia implica a escrita de umalinguagem que elege certos caminhos de significação e não outros, perscruta os limites, as superfícies e os veiosdo texto dado à leitura, indaga a ele o que ainda resta e o que pode ser inserto nele dos que o precederam.Daí a utilidade de se tomar o texto como produtividade e não meramente como significação a ser proposta epercorrida. Como já se percebia, por exemplo, nos poemas do cultismo barroco, o primeiro papel do leitor édotar-se de um texto a ler, não interpretá-lo: quando um poeta como Góngora, por exemplo, em um dadopoema usa a palavra neve em distintas situações, cumpre mapear essa multiplicação de imagens que podeestar apontando para uma outra e única imagem (e que não é mais a neve), em vez de partir apressadamentepara a interpretação a/de cada caso. Trata-se, em outras palavras, de mapear a vizinhança de um estranhoatrator20 de significados, aproximar-se e afastar-se dele assimptoticamente, mais do que chegar diretamenteaté ele para, depois, ir além. Reside aí a diferença entre tematização e produção textual, entre o texto lidocomo referência e objetividade externa, e o texto visto como fenômeno, esse que se faz aparecer pela atençãocom que ele é lido.21 Em resumo, compete ao leitor dar traços e lineamentos da fisionomia que o texto assumecom sua leitura, operação que só é plausível se damos destaque à espessura fenomênica do texto lido.

Outro exemplo interessante dessas dinâmicas entre autor e leitor, ainda na tradição impressa, está num sonetode autoria de Antônio de Oliveira, escritor do barroco brasileiro, da Academia dos Esquecidos. Para compor essepoema, Oliveira buscou 14 decassílabos em Os Lusíadas, cuidando em dar-lhes coesão sintática e semântica,além de chegar a um esquema de rimas tradicional dos sonetos barrocos (no caso, ABBAABBACDECDE).

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Soneto Achado no Poema do Príncipe dos Poetas Espanhóis

Canto Oitava VersoEnchem-se os peitos todos de alegria 2 89 5com tantas qualidades generosas, 1 74 6que excedem as sonhadas fabulosas 1 11 6as festas deste alegre e claro dia. 10 75 7

Eis aparecem logo em companhia 1 45 1Musas de engrandecer-se desejosas, 1 11 4que coroas vos tecem gloriosas 10 142 8com mostras de devida cortesia. 1 56 4

Quanto pode de Atenas desejar-se 3 97 5tudo o soberbo Apolo aqui reserva 3 97 6no templo da suprema eternidade. 1 17 8

E de Helicona as Musas fez passar-se 3 97 3o valeroso ofício de Minerva 3 97 2ilustrado com a régia dignidade. 10 54 3

A pergunta que se pode fazer, então, é: quem seria o autor desse soneto? Camões, que escreveu os versos todos?Ou Antônio de Oliveira, que os reuniu e deu-lhes a aparência e o ritmo do soneto, a coerência da forma e doassunto? Na verdade, não há sentido em propor uma autoria exclusiva: devemos falar de zonas de autoriascompartilhadas. Se pensamos em autor em termos de estranho atrator como foi sugerido anteriormente,podemos pensar que há um primeiro nó no autor de Os Lusíadas e um segundo em Antônio de Oliveira. Todavia,é importante ressaltar que Oliveira não compôs propriamente um soneto, mas uma maneira de ler, reescrevendoa epopéia camoniana. Ou seja, ele produziu de fato um processo de transformação do poema de Camões. Emprincípio, não seria fundamentalmente distinto do que faz, por exemplo, o próprio Camões com sonetos dePetrarca; ou Gregório de Matos com poemas de Góngora e Quevedo. Mas, nesses casos, trata-se de transformaçõesa partir dos significantes originais e não com os próprios significantes originais, como ocorre com o processoproposto por Oliveira e que pode ser também posto em prática por outros leitores. Nós mesmos poderíamos noscomprazer em montar sonetos a partir d’Os Lusíadas, o que traria junto essa dúvida sobre a autoria dos poemasresultantes. Quem seria o autor deles? Camões, que escreveu os versos? Oliveira, que inventou o método deseleção e montagem? Ou nós próprios, leitores contemporâneos que produzimos os poemas com base em versos

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de um e fôrma de outro? O melhor a fazer, no caso, é abandonar a noção fechada e personalizada de autor epensar em termos de pólos (ou nós) de autoria, jogando agora com três estranhos atratores. Daí a possibilidadede associar à criação de Antônio de Oliveira o comentário de Eric Sadin acerca da autoria no meio eletrônico:

“L’exigence de la démultiplication des compétences peut conduire – mais pas nécessairement – à encouragerune disparition de la figure de l’auteur, au profit de la constitution de dispositifs, non pas anonymes, maisdans lesquels la signature prime moins que la nature des jeux relationnels, entendus comme une premièrecatégorie de procédures d’écriture...”22

Quanto a nós, temos apostado sempre nesse “não necessariamente” explicitado por Sadin, pois é justamenteaí que se encontra um outro espaço de autoria: esta não desaparece, mas se coloca quase inteira na construçãode dispositivos de leitura, como os de Oliveira e de Kuhlmann, na tradição impressa, ou na obra Exílio, de TiagoLafer, no meio eletrônico. À diferença que o aparelho de produção dos significantes é virtual nos dois primeiros,e imediato e concreto, no terceiro. No caso desse Exílio, o autor propõe uma retomada – mais uma! – de algunsversos da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, construindo um dispositivo muito simples: ao título da obra,Exílio, segue-se a quarta e penúltima estrofe do poema do escritor maranhense, transcrita ipsis litteris. Mas, apartir de um dado momento, dá-se início às intervenções das ferramentas de programação, fazendo com que,paulatinamente, alguns trechos vão sendo suprimidos. Como resultado, aparecem sete poemas em seqüência:

1.

Minha terra tem primores,Que tais não encontro eu cá;Em cismar – sozinho, à noite –Mais prazer encontro eu lá;Minha terra tem palmeiras,Onde canta o Sabiá.

2.

primores,Que tais não encontro eu cá;Em cismar – sozinho, à noite –Mais prazer encontro eu lá;Minha terra

canta.

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3.

primores,não encontro eu cá;

– sozinho, à noite –

prazer encontro lá;

4.

não encontro eu

– sozinho, à noite –

lá;

5.

encontro eu

– sozinho –

6.

– sozinho –

7.

– –

Em princípio, parece não haver contradição alguma, em termos semânticos, entre os sete poemas. O quechama a atenção é a rarefação das palavras, que vai aumentando pouco a pouco a intromissão progressivados espaços vazios, o silenciamento paulatino do poema e atinge seu auge com os dois travessõesenfrentando-se, ameaçadores, numa mesma linha e metaforizando, mais visual que semanticamente, o lá eo cá entre os quais oscila o poema todo de Gonçalves Dias, bem como suas paródias, pastiches ouretomadas, na tradição impressa e, agora, nos meios eletrônicos. Assim, mesmo simplistamente, ainda quenão tenha feito maiores piruetas ou deslocamentos de significantes e significados, Lafer consegue nos darmais do mesmo, isto é, mais de Gonçalves Dias, mas em fôrmas outras, cada vez menores, até um poemafinal que parece evocar apenas a autoria de Tiago Lafer. Ainda assim, podemos dizer que os poemas gerados(de 2 a 7) não deixam de evocar as palavras ausentes nos espaços deixados vazios, ao menos para os leitores,que sempre têm diante dos olhos a estrofe original inteira e recomposta. Usando a memória de curtaduração, podemos nos entregar ao exercício de preencher os vazios e recompor a originalidade (ou seria agonçalvidade?) perdida. Nesse caso, são dois processos autorais que se conjugam, mas em situaçãohierarquizada:23 a preeminência cabe aos versos de Gonçalves Dias, claro!, e o que propõe Tiago Lafer é aintromissão de uma zona sua de autoria na autoria primeira do poeta maranhense. No caso, ao leitor, não

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resta outra coisa a não ser acompanhar com os olhos essa interferência de autorias que se estabeleceprogressivamente, até o apagamento aparentemente definitivo de uma – a de Gonçalves Dias – para aentronização da outra – a de Lafer. Mas mesmo isso é provisório e precário, pois, logo de imediato, a estrofeinteira do poeta maranhense ressurge e se impõe a nossos olhos, como que dizendo que a vitória, mesmofugaz, é sempre do escrito que subjaz no palimpsesto. Assim, o que se impõe de todo esse périplo é mesmoo que pode ser chamado de conjunção de regiões de autoria, dinamicamente estabelecidas (mas nuncaestabilizadas) na tela do computador.

Com base no que foi discutido e apresentado, podemos concluir que de fato toda textualidade – comoconstrução de espaços de leitura e de significação, seja ela em meio impresso, seja em meio eletrônico – ésempre hipertextualidade, à maneira como a entende, entre outros, Gérard Genette:

L’hypertextualité, à sa manière, relève du bricolage. (...) l’art de ‘faire du neuf avec du vieux’ al’avantage de produire des objets plus complexes et plus savoureux que les produits ‘faits express’:une fonction nouvelle se superpose et s’enchevêtre à une structure ancienne, et la dissonance entreces deux éléments coprésents donne sa faveur à l’ensemble.24

E é justamente a esse conjunto, resultado da dissonância (e não da justaposição ou da mera adição), quequisemos dar relevo quando falamos do jogo das duas fotografias, ou quando pensamos na ligação-passagem de um texto eletrônico a outro. Saliente-se que essa passagem de um texto a outro, de umapágina a outra, não significa que tenhamos sempre o processo de hipertextualização instalado com toda apompa e circunstância. Para que isso ocorra, é preciso que o processo de autoria se desvista de suaautoridade e associe ao autor, em definitivo, não uma pessoa empírica, mas uma função do texto. É o quediz Philippe Bootz de suas Stances à Hélène: “...il ne s’agit pas d’un produit uniquement ‘orienté lecteur’,de quelque chose ‘donné à la lecture’, mais d’un projet également ‘orienté auteur’, dans lequel l’acte delecture du lecteur, qui agit sur un leurre, participe à la représentation et fait, dans le point de vue del’auteur, partie de l’oeuvre”.25 Em certo sentido, parece se estabelecer entre as funções tradicionais de leitore autor26 a mesma interferência que havíamos observado entre as imagens que formavam a ilusão datridimensionalidade, ou ainda entre um texto e outro no espaço eletrônico. Não que esse permanenteprocesso de construção do texto seja uma responsabilidade compartilhada por ambos,27 mas parece indicar,antes de tudo, uma nova acomodação entre eles (exigindo uma série de desdobramentos de seus espaços ede suas temporalidades). A objetividade do hipertexto não se contenta de modo algum com campospreviamente demarcados com elementos definidos de antemão, atitude, aliás, que já encontrávamos emtoda boa literatura da era da imprensa. A incógnita, entretanto, é saber se esse critério ainda permiteestabelecer semelhante juízo de valor também para a produção artística realizada em meio digital. Creiomesmo que tocamos aí em um dos pontos mais importantes para se pensar essas literariedades digitais.

Se na literatura impressa a estabilidade da base material da obra exigia dos autores interessados emaprofundar o jogo literário uma série de astúcias para colocar em xeque as expectativas medianas do leitor,28

nessa ciberliteratura, a instabilidade da base material já coloca justamente como pressuposto essamaleabilidade, essa indefinição fundadora. Aqui começa a se vislumbrar, talvez, a utilidade dessemapeamento de interferências ou dissonâncias entre elementos distintos e agrupados dois a dois, como

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propusemos acima, entre autor e leitor. O que se quer é entender de que modo essa reversibilidade entreeles não significa um vai-e-vem fechado e inócuo, nem parece se reduzir a uma síntese dialética no sentidohegeliano, mas que permite, ainda assim, a criação do novo (do novo sentido, da nova leitura, da novaescrita, da nova sensibilidade artística). O autor sempre foi aquela perspectiva que não permitia, de dentrodela, interpretar o texto; mas, tomando alguma distância dela, era justamente o que possibilitava fazerrodar a maquininha de associar significantes uns aos outros. Nesse sentido, o autor, até aqui, pôde sermetaforizado como um estranho atrator em torno do qual os significantes eram instalados em um campode sentidos possíveis. Mas, no caso, esse estranho atrator não tinha como ser deslocado materialmente peloleitor (daí a afirmação de que não era possível entrar dentro dele para gerar interpretações do texto). Ora,o texto eletrônico é justamente o tipo de objeto a ser lido que admite essa manipulação, esse deslocamentomaterial a que o leitor submete a posição do autor.

* * *

Na verdade, todas essas relações entre autor e leitor podem ser enxergadas de modo mais simples, se nãonos deixamos levar por certo passionalismo teórico. Se abrimos mão de opor totalmente escrita à leitura(sem, é claro, identificar totalmente uma a outra), talvez consigamos entender como elas se desdobram e serelacionam. Primeiramente, é preciso talvez enfatizar o óbvio e repetir, quantas vezes se fizerem necessárias,que há uma primeira escrita na gênese da obra, e que ela é incumbência direta e exclusiva do autor. Contudo,no caso das criações em meio eletrônico, temos de fato não uma, mas várias escritas, em que linguagens deestratos e estratégias distintas são chamadas a dialogar (diálogos que apresentam resultados mais ou menosharmônicos, ou até mesmo completamente desarmônicos). Nos chamados geradores automáticos de textosliterários, por exemplo, trata-se do diálogo entre linguagens verbais e linguagens de programação, em quea escrita do autor adquire novas ferramentas, novos processos: escrever, agora, não significa apenas enfileirarpalavras, seguindo de perto ou de longe leis de retórica que se estabeleceram ao menos desde Aristóteles,passando por Cícero e Quintiliano. De forma bastante distinta, trata-se de processos de escrita que implicama construção de bancos de dados, num primeiro momento, e, posteriormente, da construção de relaçõespossíveis e repetitivas entre elementos desses bancos. Tais elementos podem ter tamanhos variáveis e seremagrupados segundo condições de contorno mais ou menos fechadas. E a escolha e a combinação de taiselementos, por exigirem quantidades e velocidades acima da capacidade de processamento do cérebrohumano, devem buscar a capacidade de processamento dos sistemas informáticos.

É quando podemos ver, então, como as linguagens de programação deslizam para dentro do processo decriação literária: elas devem estar adaptadas, de um lado, aos elementos que constituem os bancos de dadose, de outro, à maneira como o autor entrevê os resultados possíveis de sua criação, o que inclui os modoscomo os leitores vão lidar com o dispositivo de produção de significantes. E é também aí que o espaço daautoria se enriquece e se torna mais complexo, com a interferência construtiva do programador. Mesmoconsiderando os casos (raros, bastante raros) em que o criador domina a contento os processos e asferramentas de programação, mesmo aí, aparecem duas instâncias muito distintas de escrita. Uma delas éjustamente a da concepção artística ou literária (seja ela verbal, seja visual, seja sonora, separadas ou emconjunto). O que se pretende com isso é gerar significantes por meio de sistemas e processos de

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manipulação que associam o espontâneo do escritor aos automáticos iterativos do sistema informático. Daía necessidade de que um programador venha a criar as condições de possibilidade de existência e defuncionamento do dispositivo produtor de significantes. Num primeiro olhar, essa relação entre oprogramador e o escritor não seria nada diferente da que se dá, por exemplo, entre o pintor e o artesãoconstrutor de telas, ou o químico produtor de tintas especialmente requeridas pelo próprio pintor. Sem osdois, não haveria pintura. Mas é importante notar que, desde o início, a tela sempre fez parte do dispositivode pintura, ou melhor, ela sempre sustentou a maneira como o pintor dispôs e exibiu as possibilidades dovisível e da visibilidade, até a exploração de todas as suas características como dispositivo óptico no séculoXX. Se, de um lado, era construída materialmente pelos artesãos, de outro, ela estava completamentecompreendida ou insinuada antes, na maneira como os pintores buscavam explorar o visível e a visibilidade.

Assim, os artesãos acabavam apenas realizando o projeto de um suporte já previsto pelas lógicas expressivasda pintura. Porém, algo completamente distinto ocorre na ciberliteratura (e, claro, em toda a ciberarte). Asferramentas de programação não são a simples materialização de um dispositivo de expressão previamenteelaborado ou idealizado que já faça parte das lógicas expressivas da literatura eletrônica. A bem daverdade, essas ferramentas de programação dialogam com as várias linguagens (verbal, visual, gestual etc.),de modo que não haja uma antecedência fechada de umas com relação às outras. Dito de outra maneira, aconjunção das linguagens de programação com a linguagem verbal, por exemplo, pode fazer surgir umaoutra linguagem, um terceiro espaço expressivo, que, além de ser informático e verbal, é tambéminformático-verbal. E se falamos de uma preponderância do escritor com relação ao programador, issocorresponde apenas e tão-somente ao fato de que buscamos ler no objeto artístico não os detalhes e aspeculiaridades da programação, mas seus (d)efeitos, entendidos agora como significantes inseridos nãomais em lógicas de produtividade lógica e tecnológica, porém recortados sobre um pano de fundo estético.Trata-se de uma questão de foco.

Num segundo momento, esse dispositivo criado e concebido por escritor e programador é passado a umleitor que pode, por exemplo, ser solicitado a manipular o dispositivo, para que este entregue na tela, comoresultado, uma cadeia de palavras ou expressões. Nesse caso, alguns vêem uma independência absoluta doleitor; afirma-se comumente que se trata de uma leitura que é escrita e, mais, que é escrita absolutamentedesvinculada de qualquer escrita do criador do sistema. Com o que se decreta luto oficial pela morte doautor tradicional, solapado em seu papel de criador por esse novo leitor – alforriado da submissão aoescritor graças às tecnologias telemáticas, podendo então escrever e criar por sua própria conta e risco. Nadamais enganoso, pois se esquece, em tal raciocínio, de levar em conta que essa escrita do leitor é na verdadee sempre uma escrita segunda, que só pôde ocorrer graças às muitas interferências entre as linguagens doprogramador e as linguagens várias do escritor. Então há ainda uma relação de dependência entre a escritadeste e a escrita do leitor. Podemos dizer que a primeira é solidária da programação (quer dizer, queestabelece um diálogo com esta). Já a segunda – a escrita do leitor –, mais do que solidária, é o resultadoda programação; ela é o próprio programado. Em outras palavras, essa escrita do leitor não podeestabelecer nenhum diálogo com os resultados da programação, pois ela já é esses resultados. Todavia, nãose confunda programado com previamente determinado. Quando falamos que a escrita do leitor é aquiloque foi programado, isso não significa que ela já esteja totalmente tramada antes de ser materializada; que

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seus limites e condições de contorno já sejam predefinidos pela conjunção entre as linguagens deprogramação e as linguagens do escritor. Temos aí aquele mesmo determinismo sem previsibilidade de queacima se falou acerca dos fractais e da ciência do caos: a escrita do leitor é planejada no sentido de serdeterminada por um aparato que conjuga linguagens de programação e linguagens de criação – estas, doescritor; aquelas, do programador –, sem que se possa, contudo, prever (às vezes nem mesmo nos detalhesmais grosseiros) seus resultados. Entre leitor e escritor, enfim, instala-se não a previsibilidade limitante dossistemas fechados, mas o determinismo aberto que toda leitura pode ter e deve assumir.

Interferências e Dualidades

Interferências, como a citada entre linguagens do programador e linguagens do escritor, podem remeteràquilo que Merleau-Ponty, em Le Visible et l’Invisible, chama de reversibilidade. Talvez seja um dos conceitosque possibilitem até mesmo melhor dar conta dessa confluência de textos, de páginas, de linguagens, decódigos, que é a ciberliteratura. Em conseqüência, seja-nos permitido, nas linhas que se seguem, pensar essapoesia eletrônica, sobretudo no que diz respeito ao diálogo entre verbal e visual, buscando apoio ecompanhia nas reflexões do autor de Le Visible et l’Invisible. Em todo caso, tais questões permitirão mapearnão apenas os elementos envolvidos na conjunção verbal-visual, mas em várias outras.

Ao menos um dos pontos de partida de Merleau-Ponty para pensar a reversibilidade é a imagem (que eleaprende com Husserl) do corpo próprio, de sua capacidade reflexiva: nele, as mãos se tocam e são tocadasuma pela outra. Essa reflexividade corpórea é não só confluência do que toca ao que é tocado, mas, emtermos mais gerais, o entrelaçamento entre o corpo que percebe e o mundo objetivo dado à percepção. Osmovimentos próprios do corpo perceptivo são desenhados sobre o mundo que eles interrogam, e ambos –corpo perceptivo e mundo das coisas percebidas – vêm dialogar numa mesma instância, sem que se reduzamum a outro, como “as duas metades de uma laranja”.29 Por outro lado, mesmo a visão, ao contrário do quea experiência empírica nos poderia sugerir, traz em si essa reflexividade corpórea. Ao que tudo indica, nãoé possível nos ver vendo. Mas, no caso, um tal juízo derivaria de um aparelho analítico já superposto,sutilmente, ao aparelho perceptivo corpóreo, impondo à reflexão corpórea o viés de uma análiseintelectualista, impedindo-nos de assimilar o fato de que “dès que je vois, il faut (comme l’indique si bienle double sens du mot) que la vision soit doublée d’une vision complémentaire ou d’une autre vision: moi-même vu du dehors, tel qu’un autre me verrait, installé au milieu du visible, en train de le considérer d’uncertain lieu”.30 Assim, o corpo, como visibilidade, seria uma espécie de condição incarnada das possibilidadesda existência. Não haveria, então, nem mundo exterior limitado às coisas, nem coisas colocadas à parte,enfurnadas em sua região ôntica, mas uma só visibilidade que, como a poesia, torna visíveis os pensamentose as falas, faz com que o discurso do ser e o ser que o enuncia sejam os gestos e as poses de uma posseinaugural do mundo vivido.

Desse ponto de vista, a reversibilidade não poderia seria entendida como essência das coisas, nem mesmo comocategoria generalizante. Reversibilidade aqui descreve a possibilidade nossa31 de nos dotarmos de objetos aomesmo tempo que nos instalamos (em que somos e estamos) em meio aos objetos. No caso do leitor da obra

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(seja ela composta ou não de uma pluralidade de linguagens e códigos) e da leitura, há alguns elementos aserem considerados. Primeiramente, apre(e)ndo da reversibilidade a lição de que, como leitor, não tenho comonão dotar-me de uma pluralidade de leitores. Isso implica inspecionar o ato de leitura e ver nele o que antecedetanto a organização do campo de sentidos possíveis, em primeiro lugar, quanto, em seguida, a elaboração designificados. Com isso, apontamos, no campo de leitura, para aquilo que pela linguagem vem dos outros e pelosoutros; aquilo que, abrindo mão de uma origem mítica ou divina das línguas, desvela nossa participação emuma esfera de intersubjetividade de que a linguagem é o sintoma mais evidente e primeiro.

Dessa maneira, a reversibilidade implica um textualizar-se: o leitor se coloca em meio aos objetos a seremlidos e partilha desse disponibilizar-se à leitura. Uma conseqüência direta dessa textualização do leitor é ofato de que ele constitui textos a serem dispostos no espaço dos sentidos possíveis e atravessados porsignificações construídas na e pela leitura. Daí assumir ele, leitor, também o papel de autor; no caso, autorde si próprio. Ao ler um texto, o leitor escreve, ainda que pouco, um tanto de sua história, de sua vida; eleinscreve em seu ser algum ritmo de palavras, algum movimento de fala, alguma imagem verbalizada(verbalizável). Daí não ser talvez apropriado falar de composição ou de justaposição, ou até mesmo de síntesedialética, entre a leitura do texto e a leitura de si. Como afirma Merleau-Ponty,32 se queremos propor umafigura metafórica para a relação entre uma e outra, pensemos em ambas como direito e avesso reversíveis,como dois segmentos de um mesmo percurso circular, opostos mas também reversíveis; ou como os dois ladosda fita de Moebius que, de fato, fazem apenas um. A partir daí, pode-se falar com certeza de umareversibilidade entre leitor e autor. Não que um se reduza ao outro; ou que haja apenas leitores, mesmodispondo significantes verbais em uma cadeia própria de associações; ou que existam apenas autores,alinhavando significações em seu campo de sentidos possíveis. Entre leitor e autor se estabelece umaduplicidade anterior à materialização da linguagem em forma de escrita: o leitor que sou agora de um dadotexto busca, num primeiro momento, a perspectiva do autor que eu já era de minhas palavras; já o autor dequem julgo receber o texto não é apenas o outro que produziu esse texto, mas é também uma dada maneirade manifestar a originalidade com que me insiro na língua por meio desse texto e dessa linguagem.

Mas, se tocamos nas relações entre autoria e leitura (discutidas acima), foi apenas para aproximá-las dealgumas questões atinentes à reversibilidade e mostrar o interesse no emprego desse conceito. Voltando àutilização do visual na criação de uma poesia eletrônica, é importante, nessa perspectiva da reversibilidade,aprofundar ainda alguns elementos ligados à visão. Afirmamos anteriormente que não podemos nos vervendo diretamente, mas que podemos, assim mesmo, desvelar a situação de reversibilidade entre vidente evisível quando nos damos conta da participação dos olhares de outros em nosso próprio olhar e, sobretudo,da presença do visível das coisas em nossa visibilidade. Ora, talvez esteja justamente no ciberespaço umapossibilidade imediata de simular concretamente tal situação. Nele, estaríamos em situação de arquitetaruma ficção do perceptivo, essa que nos dá chance de encenar a situação de nos ver vendo, algo que vaialém do vivendo (esse viver inautêntico de que fala Heidegger). O ciberespaço pode, então, ser acelebração ou a instauração de uma nova esfera mítica, possibilitando a produção de avatares que, noexterior de nossa capacidade visual, criam perspectivas, objetos e esboçam tracejados em que nosreconhecemos e até nos vemos vendo.

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Daí que essa reflexividade corpórea33 aponta para a possibilidade de uma comunhão motivada entre visuale verbal, do mesmo tipo daquela que verificamos entre o tangível e o visível. Entre estes, também há maisdo que uma coincidência causal; há o liame efetivo de uma unidade construída no/pelo sujeito perceptivo:“Il faut nous habituer à penser que tout visible est taillé dans le tangible, tout être tactile promis en quelquemanière à la visibilité, et qu’il y a empiétement, enjambement, non seulement entre le touché et letouchant, mais aussi entre le tangible et le visible qui est incrusté en lui”.34 Além disso, essa relação entre otocar e o ver não se desprende de modo algum do pensar e do dizer, todos eles podendo ser entendidoscomo gestos com que nos inauguramos para o mundo e, pelos quais, um mundo se nos inaugura. Então apossibilidade de associar também a esses visíveis uma disposição que resvala tanto para a diacronia quantopara a sincronia. É como Merleau-Ponty diz das cores percebidas: elas representam um certo nó na tramado simultâneo e do sucessivo.35 Da mesma maneira, é um nó dessa espécie que buscamos, um nó entre osimultâneo da imagem e o sucessivo da linguagem verbal, abrindo pontos de sucessividade no simultâneoda imagem e, concomitantemente, brechas de simultaneidade no sucessivo das palavras. Nesse sentido, épreciso que habitemos as imagens como quem lê uma cadeia de palavras, inaugurando correntes designificantes e redes de sentidos, flexionando e conjugando cores, formas, aparências, buscando acima dadisposição física ou óptica das imagens um estado de dicionário e uma disposição sintática.

Realizar tais tarefas corresponde a propor um novo conjunto de retóricas para o texto eletrônico, àsemelhança do que foi feito, durante a Idade Média, para a escrita com base em retóricas clássicas.36 Essasretóricas do escrito e do impresso desenvolveram elementos e processos que já materializavam, em instânciasdistintas, a sucessividade e a simultaneidade. De fato, não há dificuldades maiores para entender questãobastante evidente: à sucessividade sem volta dos fonemas, como ocorria na oralidade, a técnica da escritafixou como simultâneos os significantes verbais, concretamente, colocando-os nas mãos do leitor ao longodas páginas todas. A obra inteira já estava disponível desde o início e não havia necessidade de esperar nadaou ninguém para chegar ao fim ou mesmo para atingir qualquer ponto dela.37 Porém, o processo de leitura38

ainda pagava tributo à seqüencialidade da fala, quer dizer, à impossibilidade de o leitor manipular ossignificantes todos, seja pelos limites de seu campo visual, seja por sua reduzida capacidade de memória. Emresumo, os significantes eram dados todos como simultâneos, mas os limites físicos do leitor impediam quefossem tratados e tornassem disponíveis à leitura simultaneamente. Dessa maneira, a divisão em páginas, emtamanhos que também não ultrapassaram nunca os limites do campo visual, acabou materializando umasucessividade na já materializada simultaneidade do impresso. Ora, no meio eletrônico, sucessividade esimultaneidade parecem nunca estar materializadas de modo distinto, ou mesmo definitivo. Entre elas,instala-se uma ligação imediata. Basta pensar em um exemplo muito simples: uma expressão sublinhada numadada página eletrônica, e que leva a uma outra, pode perfeitamente abrir esta segunda ao lado da primeira,transformando por simples opção do leitor a sucessividade em simultaneidade, concretamente, o que caracteriza,mais do que uma justaposição, uma possível conjunção imediata e direta entre uma e outra.

Cabe, então, no caso do espaço digital, examinar como funciona essa reversibilidade nas imagens e nas palavras,ou melhor, na possibilidade de construir um duo imagem-palavra. O sentido deste pode estar imediatamenteapontado, desde o início da leitura, materialmente exposto e configurado pelas interatividades e comandosassociados a ele. O nó (ligação ou link) que remete concretamente a outros nós, estabelecendo sucessividades

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evidentes ou insuspeitas, pode já estar indicando, nesse mesmo nó, um outro, que se evidencia na trama dosimultâneo e do sucessivo. Todavia, para isso, não basta apenas tornar imagens e palavras correspondentes eanálogas (e clicáveis) entre si. É preciso que ambas intercambiem sua maneira própria de dar expressividade(visual e verbal) às coisas e às pessoas envolvidas. Ou seja, temos que dispor palavras que levem tanto ao verbalquanto ao visual; temos que expor imagens que remetam ao verbal e também ao visual. Nesse caso, a palavranão pode ser apenas significações remetendo a sentidos, mas espessura, tactilidade, cor e sombras. É preciso queela – palavra – indique, para além dos ícones, as fisionomias e as aparências das coisas e das pessoas do mundo,sem que seja necessariamente revestida ou ilustrada de cores, formas, ornada de imagens e figuras. E essapalavra, assim muda ou emudecida precisamente por ser palavra, por ser significante, não saberia isentar-se daexpressividade, e poderia retomar processo semelhante àquele que, num Mallarmé ou num Góngora,proporcionou a volta a um estado anterior às significações sedimentadas. Palavras que, então, falavam não deidéias nem de argumentos, mas de gestos e horizontes de sentidos possíveis. Da mesma maneira, não se podeadmitir que a figura seja sempre e apenas uma certa relação entre forma e fundo. Mais do que se apresentarcomo disposição e fisionomia, é preciso que ela vá além de uma inserção (sempre) parcial no campo visual. Mas,para isso, não significa que a imagem deva começar necessariamente por travestir-se de alegoria, ou que remetanecessária e invariavelmente a algum conteúdo lingüístico. É imperioso, ao contrário, que assuma ares, pompae circunstância de palavra, de léxico, de significação; que ela possa produzir campos de escolhas e decombinações. E é assim então que o duo imagem-palavra deixa de ser palavra ilustrada por imagem, ou imagemexplicada por palavra, para tornar-se uma terceira coisa, ao mesmo tempo palavra vista (e não apenas visível) eimagem verbalizada (e não só verbalizável).

* * *

Também dentro desses espaços de interferências, a dualidade entre linear e não-linear é das maisfreqüentes, o que talvez até explique parcialmente a quantidade de bobagens já ditas a esse respeito.Eduardo Kac, por exemplo, talvez prejudicado pelos resquícios de português que ainda teimam emperturbar seu inglês castiço, afirma que “the sequential structure of a line of verse corresponds to linearthinking, whereas the simultaneous structure of a concrete or visual poem corresponds to ideographicthinking”.39 Nem as leituras mais equivocadas do Discurso do Método conseguiriam reduzir a ordem dopensamento à seqüência linear dos gestos corporais com que se percorre um dado objeto. Talvez nem asmais desvairadas correntes empíricas proporiam tal aberração. Com efeito, mesmo a linha, como entegeométrico, não pode ser reduzida a tal linearidade (desculpando-me pelo eventual paradoxo), pois oinfinito para onde ela aponta em suas duas extremidades já se encontra na quantidade de pontos dentrode qualquer segmento finito que dela se escolha. Nesse tipo de pensamento – como o de Kac –, a leituraganharia foros de descontinuidade e de irregularidade apenas no meio eletrônico, graças àdescontinuidade e à irregularidade da base material dos textos criados para o ciberespaço. Ora, isso que sediz, superficialmente, do texto eletrônico nunca deixou de ser verdade com relação às obras impressas: emqualquer caso, a leitura nunca foi obrigatoriamente linear. Sobre seus holopoemas, Eduardo Kac diz queeles devem ser lidos “in a broken fashion, in an irregular and discontinuous movement, and it will changeas it is viewed from different perspectives”.40 A linearidade e a rigidez por certo estão intimamenteassociadas à base material do texto impresso, mas de modo algum são elementos essenciais a sua leitura e

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a sua escrita. Por outro lado, é certo que essa ciberescrita exige a apreensão de uma nova sintaxe, no queKac está rigorosamente correto,41 ainda que eu prefira falar em retórica e não em sintaxe.

Mas que sintaxe, ou melhor, que retórica é essa, como ela se desenvolve nesse campo eletrônico demisturas semióticas, de baralhamentos de significantes, de clivagens e cristalizações de significadosheterogêneos? Que retórica da escrita eletrônica é essa, então, que ainda mal tenta se esboçar, mas deque se exige resolver, materialmente, uma série de contradições (linear e não-linear, visual e verbal,sincrônico e diacrônico etc.)? E, para ser mais específico, que gramática é essa que se anuncia nosprocessos eletrônicos de interferência entre verbal e visual? Por certo, tal dissonância entre esses doismateriais é das questões mais instigantes que se colocam para a assim chamada criação poética em meioeletrônico. Entender como ambos podem interferir positiva ou negativamente,42 proporcionando umespaço de significantes não mais subordinado exclusivamente a um ou a outro, eis o desafio e ointeresse dessas cibercriações, que, assim, poderiam finalmente ser classificadas como literárias. Todavia,na imensa maioria dos casos, essas obras, criadas especificamente para o ciberespaço, ainda se obrigama uma disjunção redutora: ou investem na criação verbal, ou – o que é bem mais freqüente – entregam-se apenas à ornamentação visual baseada nas capacidades dos programas de computadores disponíveis.No caso, há um aprendizado a se fazer com certas tradições literárias contemporâneas da imprensa eque se espalharam por épocas e regiões variadas: os calligrammes de Apollinaire, poemas de Tardieu, deCummings, de Butor, o Coup de Dés e as antecipações do Livre, de Mallarmé, os lipogramas e oslabirintos da literatura ibérica dos séculos XVI, XVII e XVIII, as carmina figurata (anexo 2) e os rébus43 datradição medieval etc.

Tudo isso está ligado, de alguma forma, a um antigo projeto de conciliar o alfabético e o figurativo, emoutras palavras, o verbal e o visual, fugindo a uma escolha excludente entre a figuração do ideograma ea abstração do alfabeto.44 Todavia, em tempos de literatura impressa, tais oscilações da criação literáriaeram submetidas a um rigoroso dispositivo de disseminação: uma vez escolhido o ponto de construçãoda obra literária, nessa reta que vai do verbal ao visual, a colocação no espaço plano e imutável da folhaimpressa impedia novas escritas, isto é, quaisquer modificações nesse contrato já firmado entre visual everbal. Fosse uma obra mais próxima do verbal, como a escrita ropálica (anexo 3) fosse uma criaçãointermediária, como um labirinto (anexo 4) ou uma mais próxima do imagético, como um emblema(anexo 5) sua localização a meio caminho entre o verbal e o visual, ou mais próxima de um ou de outro,já estava definida desde sua impressão. Em tempos de ciberespaço e de ferramentas eletrônicas de leiturae divulgação, o texto eletrônico pode deslocar-se continuamente entre um e outro dos dois pólos, comoafirma Fabio Doctorovich: “... los límites de la literatura se desplazan gradualmente al punto en quedeberíamos preguntarnos si la noción de literatura implica principalmente palabra escrita, o si estaafirmación puede dejar de ser cierta en algún futuro cercano”.45

Mas há outros complicadores rondando essa história. Para introduzir as imagens na tela, faz-se uso de umasérie de operações permitidas pelas ferramentas de processamento, armazenagem e transmissão de dados.Com isso, a ligação do visual com o verbal derivaria de uma potencialidade tecnológica impondo deantemão seus significados oriundos de uma demiurgia maquínica (mas, parece, paradoxalmente propostos

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por um Deus ex machina). No caso, a criação literária deveria, então, insurgir-se contra esse determinismotécnico, como única forma de resguardar-se como arte. Não se trata de advogar para o artista o papel doPrometeu sacrificado em prol da humanidade; talvez a melhor figura seja a de um Sísifo muito contente desua brincadeira, essa de empurrar rochas morro acima e vê-las despencar morro abaixo, sem se deixaresmagar por elas, para recomeçar tudo mais uma vez, incessantemente. A criação Abyssmo (Asz, módulo H-An), que o autor, Fabio Doctorovich, insere no gênero “hiperpoesia”,46 parece tentar semelhante empreita.Ela nos permite uma escolha inicial entre uma advertencia, uma teoría e la obra ela mesma, tudo isso paraque entremos, leitores ladinos e crianças sabidas, diretamente nesse hipertexto que espreita expectativas epáginas. Todavia, parece que tanto a advertência quanto a abordagem teórica não se desprendem emmomento algum da navegação pelas páginas dessa criação de Doctorovich: mesmo que não se entre emnenhuma das duas, a passagem de uma página a outra, de um evento a outro, de uma interação a outranão abre mão jamais dessa precavida ligação com os significantes, todos eles submetidos a um exaustivoinventário de operações que encontramos nos editores de texto ou de HTML, nos manuais de auto-aprendizagem de Java® etc. E não ficamos seguros, em momento algum, de aceitar que uma pretensa“repetitión ‘cuasimecánica’ como método compositivo visual”,47 invocada pelo autor, possa mesmo serconsiderada uma saída convincente para essa poesia eletrônica.

A despeito de algumas belas associações de imagens, os elementos verbais empregados por Doctorovich sãopobres e, dada sua estreiteza, não conseguem senão chamar a atenção para a utilização competente daprogramação visual e dos programas de edição eletrônica. De toda maneira, temos alguns sintomas desseprocesso que já foi chamado de “iconização do verbal”.48 E nem se pode afirmar que tal processotestemunhe uma alteração nos referenciais epistemológicos, ou uma mudança nos padrões culturais, oumesmo um salto na complexidade dos dispositivos tecnológicos de armazenamento e circulação deinformações. Essa iconização do verbal tem representado, muito freqüentemente, apenas a subserviênciado verbal ao imagético, implicando um empobrecimento gritante no que supostamente é criação literáriaou poética, empobrecimento também advindo de um apagamento do verbal em detrimento do interativo,do iterativo, do automático.

Se, como defende Sadin, estamos assistindo à emergência de uma “economia digital que desenvolvetensões tipológicas por efeito de contigüidade”,49 é preciso dar a devida voz, espaço e ocasião a essascontigüidades, sob pena de elas se transformarem rápida e inapelavelmente em formas já bem conhecidasde submissão ou de reducionismo de uma linguagem a outra. Muito facilmente, essas tensões tipológicaspodem buscar o lenitivo reconfortante e redutor do imagético apenas, com o que essa pretensa “iconizaçãodo verbal” se torna tão-somente iconização pura e dura. No caso, a linguagem verbal não encontra lugarou vez, sobretudo quando se instala não uma “circulação fluida” (como afirma Sadin) entre os códigos e osobjetos de diferente natureza, mas uma celeridade desenfreada ou uma vagareza regida totalmente pelosinstrumentos e processos informáticos. No contrapelo, isso que Sadin chama de gesto poético50 é o únicocapaz de quebrar a rigidez autoritária com que a tecnologia nos mostra sua face e seus poderes. Talvez apenaso poético seja a instância a que podemos fazer apelo para colocar em rotação os diferentes materiaissignificantes, sem que eles carreguem hierarquias preestabelecidas ou imponham efeitos redutores como oapontado acima. A bem da verdade, as únicas hierarquias admissíveis devem mesmo ser as do poético,

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incomodando velhos hábitos de decodificação e perspectivas preguiçosas de leitura. No caso das hiperficções,por exemplo, é preciso encontrar uma estratégia de criação que saiba acomodar os jogos da interatividade eas enganosas facilidades do imagético, aos prazeres da narração, ao contrário do que defende Jean Clément.51

Voltando ao principal, isto é, às dissonâncias e interferências entre visual e verbal na poesia eletrônica,pode-se afirmar que as imagens devem aparecer na tela de forma a convocar ou permitir determinadasperspectivas, desenhando certos traços de olhares, inclusive de outros. Habitando esse espaço devisualidades várias, o leitor poderá, então, presenciar e perceber a instalação do verbal nas/como imagens.Teremos, nesse caso, a conformação de um espaço de percepções (não apenas visuais) a que o corpo e atémesmo os gestos do leitor são chamados e expostos à gestualidade das palavras. Dessa forma, é a própriavisibilidade que (se) abre (em) espaços e tempos para o verbal, permitindo inscrever uma semantização emcada movimento de imagens, em cada deslocamento de ícones, em toda interação do leitor com a telaatravés de teclado e mouse. É como se “partes mascaradas”52 da imagem revelassem finalmente umaespessura verbal, um encadeamento de significantes e de sememas. De fato, impõe-se construir novasretóricas de produção para essa ciberpoesia, como resposta à mudança do meio impresso para o meioeletrônico. Explico melhor: a literatura da tradição impressa já apresentava sutilezas e complexidadespróprias a suas estratégias de produção, de disseminação e sedimentação dos textos. Parece simplismoapenas dizer que “as formas clássicas da linguagem tornaram-se ineficazes”, ou afirmar que a complexidadeé apanágio apenas dos instrumentos e processos ligados às tecnologias telemáticas.53 Quando se passa domeio impresso ao digital (coisa que, ouso crer, ocorre em toda transição de meios e modos de produção),há uma espécie de inversão de papéis com respeito a alguns elementos. Vá lá o exemplo do trabalho como estrato sonoro nos poemas. Por menos sutil que seja um poema construído para o meio impresso, elesempre poderá guardar surpresas e efeitos inesperados, alguns de que o leitor nem mesmo se dá contaexplicitamente. A título de exemplo, tomemos uma criação minha e de Gilbertto Prado, Ponto, realizada nolongínquo ano de 1997. Naquele momento, o poema – isto é, a matéria verbal – era escrito por mim comoque para o espaço impresso, sem nenhuma estratégia aparente de criação eletrônica, coisa que era entãoestabelecida a posteriori. No caso desse Ponto, no que diz respeito à criação verbal, produzi certo jogosonoro repetido em todos os dísticos: as palavras do primeiro verso, da primeira à última, faziam rimastoantes com as do segundo verso, mas da última à primeira, como se pode perceber:

Quase tudo acaba bemSem adaga, mudo alarde

De fato, as rimas estão nas duplas quase-alarde, tudo-mudo, acaba-adaga, bem-sem. Com maior ou menorfidelidade, esse efeito foi obtido nos sete dísticos do poema. Ora, na tradição impressa, a não ser nos casosraríssimos em que o poeta inaugurasse um novo espaço de escrita, não caberia nenhum tipo de informaçãoao leitor sobre as sonoridades e os efeitos, inclusive sobre os modos de leitura. Esse tipo de didascáliasempre ficou restrito ao espaço das artes cênicas, ou, ao menos, muito pouco foi utilizado na criaçãopoética. É assim que, para o leitor do poema, acabava restando a atividade de mapear no gesto dadeclamação os jogos sonoros propostos pelo poeta, sem a muleta das explicitações ou das explicações. Haviaaí uma sutileza a permitir o prazer da descoberta, como que concedendo, quando da leitura, uma ligeira

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sensação de originalidade. Isso se dava também com respeito aos intertextos.54 Como resultado a leiturapodia ser às vezes interrompida, dependendo da bagagem do leitor, por inesperadas descobertas eentusiasmos, descobertas mais fáceis – como a ligação entre Os Lusíadas e a Invenção de Orfeu, de Jorge deLima –, ou menos evidentes – como a filiação de O Cortiço, de Aluízio Azevedo, a L’Assomoir, de Émile Zola,que necessitou da argúcia de mestre Candido para ser dada à luz. Mas, no meio impresso, essa explicitação(ou des-sutilização) dos intertextos dependeu sempre da experiência, dos conhecimentos, da memória e atémesmo da inventividade do leitor. É assim que, no caso dos versos compostos para Ponto, apenas algunsmais argutos talvez percebessem as rimas toantes atravessadas de um lado a outro dos versos e da estrofe.Quando passado para o meio eletrônico, e submetido a processos informáticos de tratamento e demanipulação, o sutil jogo de sonoridades pôde ser evidenciado, exposto pela mudança de cor que vai, emseqüência, destacando os pares de expressões que fazem a rima toante:

Quase tudo acaba bemSem adaga, mudo alarde,

Quase tudo acaba bemSem adaga, mudo alarde,

Quase tudo acaba bemSem adaga, mudo alarde,

Quase tudo acaba bemSem adaga, mudo alarde,

O meio eletrônico permite concretizar e expor diretamente os intertextos, como, aliás, foi feito nesteensaio: ao início, há uma citação velada ao romance Voyage Autour de Ma Chambre, de Xavier de Maistre.Numa leitura em papel, sem a interferência apelativa de uma nota de rodapé (mais uma!), muitos de meusjá poucos leitores passariam em branco pela referência. Todavia, num texto eletrônico, num arquivo wordpor exemplo, pude facilmente colocar diante dos olhos do leitor a versão integral do romance. Da mesmamaneira, o meio eletrônico permitiu explicitar, em azul, as elucubrações sonoras de Ponto, tirando o prazerde ler, ouvir e descobrir para, no lugar, pôr a diversão de ver. E a pergunta, inapelável, que surge é: quaisnovas sutilezas viriam, então, habitar essa literatura eletrônica no lugar daquelas, perdidas, da tradiçãoimpressa? Ou estaríamos nós condenados à evidência direta, à leitura imediata, a um mundo designificações planas e de sentidos sem profundidade?! Parece-me que não, mas essa impressão, para queganhe foros de certeza, necessita de algum tempo, justamente o tempo que vai permitir a sedimentação deprocessos de criação e de linguagens, que vai permitir às diferentes linguagens que dêem origem a ummesmo espaço expressivo e façam surgir uma retórica do texto eletrônico, das poéticas digitais, dosciberpoemas. É apenas com o passar do tempo que os dispositivos, os objetos e os gestos expressivos – comoocorre em todo espaço cultural – ganham profundidade, que se torna mais evidente sua complexidade originale originária, que o processo de simbolização, inicialmente apenas possível ou latente, é trazido para aexterioridade do processo de produção das significações. Apenas nesse momento, então, poderemos descortinar

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as sutilezas que se podem construir no ciberespaço nessa exploração de linguagens verbais no meio eletrônico.Tentar definir qualquer coisa, antes disso, ainda me parece exercício de futurologia fadado ao fracasso.

Daí a proposta desse poema eletrônico Ponto, que quis justamente expor uma conjunção entre o ler e o ver, entreo verbal e o imagético. As mudanças de cor das letras, de cinza para azul, interferem diretamente na apreensãodos versos (que pode ser feita ainda dentro da tradição impressa). Mas tal leitura na tradição impressa é sóimpressão inicial, pois o movimento cromático, por mais simples que seja, vem perturbar o costumeiro e oautomático da leitura dos versos. É um ruído que, inicialmente, apenas se insinua e incomoda, justamente pornão haver nenhuma simbolização direta ou indireta da cor azul. Posto diante de versos parados, como numafolha, ao leitor se permite não apenas ler, mas também se exige que ele o veja. E, hesitando entre o ler e o ver,ele pode ser tentado ainda a resolver o incômodo e o ruído apelando para a subordinação do visível ao legível,procurando submeter a organização visual e movente do poema às lógicas expressivas e às retóricas dalinguagem verbal. Chegará algum momento em que perceberá que a criação verbal não perde nunca suacapacidade expressiva, quando se abre para outras linguagens e se deixa influenciar por elas. Nesse Ponto, então,surge pelo menos um novo recorte no espaço perceptivo trazido pelo poema: ao percurso de significação dasescritas ocidentais em que os versos foram compostos, novas possibilidades de recortes sintagmáticos eparadigmáticos aparecem, pela maneira como proximidade e distância entre palavras e expressões são alteradaspelos movimentos das cores. Daí, talvez, sutilmente, o poema deixe de ser visto como estando inserido em umretângulo desenhado por palavras para assumir fisionomias mais complexas e transitórias, aqui uma fita deMoebius, acolá uma sua parente, a lemniscata, mais adiante, um fractal de dimensão 1,93, e assim por diante.

* * *

Qualquer linguagem – verbal, visual, icônica, sonora, gestual e a lista não teria fim, pois o nome linguagemé legião – é essencialmente intersubjetiva. Nos gestos corporais com que habito o campo dos sentidospossíveis do mundo vivido, insiro significações que se conjugam a outros gestos, de outros indivíduos. Nalinguagem verbal, cada cadeia significante somente adquire capacidade expressiva por trazer em sua tramae fisionomia outras significações, outros sentidos, de outras pessoas: se nem sempre dizemos ou escrevemospara outro, necessariamente dizemos ou escrevemos com outros, sob pena de não termos linguagemalguma.55 Da mesma forma, a linguagem visual explora diferentes perspectivas – quer dizer, distintasmanifestações da visibilidade – para compor nosso olhar específico de um dado objeto: sem as perspectivasde olhares de outros, necessariamente distintas das minhas, eu não poderia distinguir objeto algum comoum volume no espaço. É mais ou menos o que afirma Maurice Benayoun, quando diz:

“Cette image (...) est composée en temps réel de la trace des regards multiples qui explorent des autresimages (les différents points de vue de l’exposition La Beauté). Sur internete et sur l’écran du CentrePompidou chacun peut découvrir la trace des regards des autres; chaque nouvelle trace intégrant les fragmentsd’intérêt des uns et des autres dans un nouvel espace qui est à proprement parler un espace mémoire”.56

O que Benayoun descreve nesse trecho não diz respeito apenas aos objetos expostos no Beaubourg, naexposição La Beauté. É da própria visibilidade que ele fala. O mesmo pode ser dito da obra Depois do

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Turismo, Vem o Colunismo, de Gilbertto Prado. Nesta, quando passávamos sob um portal, nossa imagemacionava uma câmara digital ligada à rede, fazendo com que ela surgisse no sítio específico destinado àobra. Já se encontrava aí um primeiro deslocamento de perspectivas – quase o mesmo da fotografia, aliás–, pois nos víamos não sob nosso olhar, mas do ponto de vista proporcionado pela instalação. Contudo –coisa que faz a diferença com respeito à fotografia –, nossa imagem era ainda associada aleatoriamentea outras, oriundas de um banco de imagens sobre a antropofagia, a pop art, a cidade etc. É assim queolhares de outros, ou melhor, mais olhares de outros (pois já havia a perspectiva da instalação, impondoo ângulo e a distância com que era capturada nossa imagem sob o portal) se somavam a nosso olharestranhado em nós e por nós mesmos (ou melhor, nesse nós mesmos de alguns segundos atrás). É comose nossa própria imagem já carregasse essas imagens outras, essas sobras de desenhos, essas perspectivasalheias, mas parcialmente nossas, esses restos de impressões guardadas pelo corpo, mas nuncainspecionadas pela razão. É como se o computador fosse uma bola de cristal capaz de espacializar otempo ao dispor em certas regiões da tela imagens do passado e do presente; capaz de temporalizar oespaço, ao transformar em antes e depois nosso percurso, o dispositivo de captura de imagens e o espaçoeletrônico da internete. Mas, sobretudo, capaz, esse dispositivo de Gilbertto Prado, de materializar apluralidade de perspectivas que sempre carregam cada gesto, cada ato, cada expressão verbal, cadaimagem. Em certo sentido, tanto a instalação de Gilbertto quanto a exposição La Beauté revelam aquiloque o próprio Benayoun chama de “partes ocultas da imagem”.57 Eu apenas alteraria “imagem” por“visível”. Essas partes ocultas correspondem justamente à participação de olhares outros em nossopróprio. O que queremos com toda essa discussão é estabelecer um apoio inicial e firme no conceito deintersubjetividade. Ela está por trás da intertextualidade, que é inerente a toda obra literária (e,portanto, verbal); ela aparece na maneira como os visíveis de qualquer objeto dialogam com o aparelhoperceptivo daqueles que dirigem seu olhar para ele. Ela explica por que nenhuma significação éconstruída solitariamente por um único leitor; esclarece como qualquer objeto visível é também resultadodos traços que olhares outros deixaram marcados em sua qüididade. De fato, é como diz MauriceBenayoun:58 “La traçabilité de l’individu en réseau qui fait que personne n’est à l’abri du regard de l’autredevient ici un élément déterminant dans la construction du sens”.

E, nessa ópera de desencontros e esbarrões entre verbal e visual, uma sugestão até interessante foi intuídapor Eduardo Kac: “In mathematics, being a fractal means roughly being between a given dimension andthe next higher or lower one. In art, being a fractal may mean, by analogy, being between the verbal andthe visual dimension of the sign”.59 Na matemática do caos, os fractais surgem como a descrição matemática(e empobrecedora) dessa presença de dimensões outras numa dada dimensão; mas também de perspectivasoutras numa dada perspectiva; de linguagens outras em certa linguagem. No caso, os fractais podem serinteressantes como metaforização (e não apenas visual, mas perceptiva, corpórea, talvez) dessa conjunçãoentre gestos expressivos de natureza diferente. Se a dimensão fractal 2,39 está em algum lugar entre oplano (dimensão 2) e o volume (dimensão 3) – mais próxima do primeiro que do segundo –, pode-se pensarem linguagens intermediárias, como sempre foi, por exemplo, o caso da literatura escrita, que se move emvários pontos numa trajetória situada entre o sonoro e o verbal. E, ressalte-se, o fato de ambas se colocaremno mesmo espaço expressivo não significa que elas se resolvam num processo dialético de tese-antítese-síntese. Trata-se de linguagens intermediárias, sim, mas também reversivas, pois de uma se vislumbra a

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outra, de uma se pode pôr a outra em movimento, de uma se pode chegar à outra sem que se anule oudesapareça a primeira. Num certo sentido, faz-se necessário uma ideogramização da escrita poética paraque linguagens verbais e visuais não apenas compartilhem o mesmo espaço expressivo, mas para que elastodas construam um mesmo espaço expressivo, de dimensão fracionária, intermediária entre visual e verbal,sem ser exclusivamente uma ou outra, possibilitando que ambas compartilhem sentidos e significantes.

* * *

Agora mesmo, os poucos meus leitores talvez já estejam fazendo muxoxos de impaciência e pouco-caso, pois –diriam eles – essas hesitações ou compromissos entre visual e verbal não são coisa nova nem discussão original.Toda a reflexão crítica dos primeiros anos da poesia concreta, por exemplo, já carregava essa inquietação. Mashá alguns pontos que eu gostaria de mapear, partindo de questões suscitadas pelos próprios concretos, para verque diferenças podem aparecer entre aquele momento – grosseiramente, os anos 50 do século passado – e estenosso. Primeiramente, investiguemos o modo como se dão essas relações entre verbal e visual no caso da escrita,buscando seguir um dos principais marcos teóricos do concretismo. De acordo com Ernest Fenollosa, umacaracterística essencial dos ideogramas é o fato de que “two things added together do not produce a thirdthing, but suggest some fundamental relation between them”.60 Ele fala de uma justaposição que não seresolve por adição, por subtração, por multiplicação, ou por qualquer dialética que seja. Com base nisso – etambém em outros elementos –, o concretismo propôs uma criação poética verbivocovisual, em que a leituraprocederia não de um quarto elemento (além do verbal, do vocal e do visual), mas das relações entre os três.Nesse caso – e tentando também seguir o raciocínio de Fenollosa –, poderíamos pensar em três dualidades(verbo-visual, voco-verbal e voco-visual) que se resolveriam não pela produção de um tertius, de um terceiroelemento, mas pela relação entre um e outro, sem que nenhum dos dois impusesse sua perspectiva de leitura.Ora, um dos aspectos mais relevantes e menos comentados da poesia concreta, sobretudo em seusdesdobramentos e herdeiros, é o fato de que, em muitos casos, não se conseguiu chegar a uma criaçãoverdadeiramente verbo-visual, mas sim a poemas em que ou o visual estava subordinado ao verbal, ou o verbalsubmetia-se ao visual. Talvez apenas a obra de Waldemir Dias-Pino, em sua totalidade, autorize falar numacriação poética em que verbal e visual se confrontam e se conjugam num mesmo plano de expressão, colocandona relação entre eles a única possibilidade de leitura, e possibilitando com isso o surgimento de uma terceiravia, de uma outra linguagem, de uma retórica não mais subordinada exclusivamente à visual ou à verbal. Trata-se, talvez – ao contrário do que afirma Fenollosa –, de um terceiro elemento, não visual ou verbal, dependendoda perspectiva adotada, mas visual e verbal, ou seja, verdadeiramente verbivisual.61

Em resumo, as experimentações verbo-visuais, em bom número, realizaram (e realizam ainda hoje) umapoesia em que visual e verbal não foram absorvidos um pelo outro, mas mantiveram e mantêm umaindependência até bem evidente. O curioso é que, embora dizendo-se inspirada no concretismo e usandosua teoria, uma parte da produção contemporânea aponta para caminhos e direções outras. A ambição deuma obra “sintético-ideogrâmica”, em oposição a “analítico-discursiva”62 (expressões tiradas de manifestose ensaios teóricos dos próceres do Movimento Concreto), indicaria uma poética cujas criações estariamjustamente no rastro daquela terceira perspectiva de que se falou acima com respeito às fotografias em trêsdimensões e às páginas eletrônicas. E é justamente tal síntese ideogrâmica que nos interessa, essa que

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produz um terceiro elemento não mais visual ou verbal, mas verbivisual. Nessa síntese – nãonecessariamente dialética –, proximidade e semelhança, forma e fundo podem ser selecionados(sincronicamente) e combinados (diacronicamente); da mesma maneira, seleção e combinação se fazem apartir de relações de forma e fundo, de topologias de vizinhança e de similaridade.

Acima falamos, via Merleau-Ponty, das correspondências entre visível e tangível. O mesmo pode serassociado à maneira como organizamos nossa apreensão do aspecto visual de uma criação poética – seja elado Movimento Concretista ou não. É claro que, num primeiro momento, na percepção de um objetoqualquer, não distinguimos entre o reino do verbal e o primado do visual. As primeiras evidências dequalquer objeto já o colocam inteiramente dentro do campo dos possíveis do corpo perceptivo, a partir doqual observamos esse dado objeto sem nenhum recorte ou ordenamento analítico. É apenas num segundomomento que podemos submeter essas percepções inaugurais a uma arquitetura e a uma hierarquia, issoque chamamos leitura. E tal leitura não fica restrita a uma observação a distância, mas utiliza também algocomo uma inspeção táctil através do olhar, como que tocando tons, sentindo o contorno de luzes,apalpando matizes. Assim vamos avançando com um olhar que escolhe caminhos, elege locais onde seinstalar, perscruta possíveis formas, tateia, titubeante, para então seguir em frente ou voltar atrás, oumesmo voltar-se para o lado, iniciando novas inspeções, abrindo outros flancos e caminhos na superfície dovisível. É assim que nesse segundo momento de apreensão, ou melhor, de compreensão do objeto, podeinstalar-se, por tentativa-e-erro, alguma teleologia de fundo reflexivo e analítico com que vamos mapeandoos possíveis que delineiam fôrmas da imagem. É como se, a cada percurso tentado e falhado, ainda assimalgo fosse esboçado da imagem – uma fímbria de contornos, uma réstia de luz e sombra, um quê de cores.

De outro lado, tais tateamentos – nos diversos sentidos do termo – também estão presentes na maneiracomo se percorrem cadeias de significantes verbais, tecendo significações no possível dos sentidos: nãoapenas aprendemos – analítica e reflexivamente – algo das palavras, mas, sobretudo, apreendemos afisionomia com que elas vêm habitar o espaço expressivo que lhes indicamos. E assim seguimos na leitura,auscultando modulações de frases, inspecionando seqüências de parágrafos e conectivos entre os períodos,identificando contornos de significações com suas tramas de lógicas às vezes variadas. Também portentativa-e-erro, vamos definindo as diversas posições dos sentidos e encastrando nelas ensaios designificações; voltando atrás quando deparamos com os tropeços da obscuridade ou com o abismo daincoerência. Esse método de tentativa-e-erro é justamente eleito por Haroldo de Campos como uma daspossibilidades de apreensão do poema concreto, numa perspectiva, segundo ele, derivada da gestalt: “Umtópico da cibernética, correlato, deve ainda ser chamado aqui à cena: o método de solver problemas por‘tentativa-e-erro’, que interessa do mesmo modo aos psicólogos da gestalt. Como assinala W. Slucktin, ocomportamento ‘tentativa-e-erro’ pode ser descrito em termos de ‘feedback negativo’.”63 Mas, como se viuacima, não se trata de possibilidade exclusiva da poesia concreta, a não ser se a consideramos pelo viés dagestalt, como aponta o próprio Haroldo de Campos.

Todavia, o que importa no momento é perceber que, colocados leitor e significantes diretamente um emfrente do outro, nada fica registrado desses tateamentos todos. Diante dos olhos, exposto aos sentidos, nãosubsiste nenhum inventário concreto desses significantes, lista que elencaria todos os percursos tentados e

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deixados, ainda que não em definitivo. As tentativas-e-erros, aqui, ficam como horizonte ou pano de fundo,contorno de imprecisões que apenas de longe e indiretamente imantam as significações atuais. Novastentativas-e-erros vêm ocupar esse lugar, para em seguida, por sua vez, serem também deixadas, numa fugapara diante tanto infinda quanto inevitável. Coisa totalmente diversa ocorre quando estamos nociberespaço, intermediados por interfaces de ferramentas digitais. Afinal de contas, nele, esse inventário depossíveis, de possibilidades, de tentativas, de erros e de acertos pode ser concretamente colocado àdisposição do leitor. E é por essas tentativas-e-erros, passíveis de serem registradas materialmente edisponíveis para consulta a qualquer momento, que se podem (mesmo que de maneira redutora) simular aspercepções primeiras do objeto poético, aquelas em que visual e verbal ainda não se distinguiam um dooutro. Dessa forma, no caso do ciberespaço, podemos partir de simulações de leituras visuais e verbais, porséries de tentativas-e-erros realizadas a grande velocidade e armazenando uma quantidade imensa deinformações para chegar a simulações outras, essas em que não se chega a essência alguma do objetopoético, mas que permitem construir possíveis e possibilidades dele. É assim que uma retórica do meiodigital, ao propor condições e possibilidades de criação verbal e visual, não deve escamotear, nunca, essejogo de possíveis e de simulações – jogos de simulações possíveis – em que visual e verbal sejam propostose arquitetados de maneira seqüencial e interativa entre ambos (e não apenas entre objeto e leitor).

Quando tomamos a retórica clássica, especialmente a de Aristóteles, aprendemos que se deve partir de quatrooperações – inventio, dispositio, elocutio e actio – para a produção da obra. Sobretudo em relação às duasprimeiras, as simulações por tentativa-e-erro podem constituir um novo espaço de escrita e de leitura dentro domeio digital, além de proporcionar uma ligação direta entre autor e leitor: de fato, tanto na criação quanto naleitura há lugar para a seleção e a combinação dos significantes. E nas duas instâncias (criação e leitura) épossível trazer para o verbal formas e fôrmas do visual e vice-versa, tramando no visual seqüências e camadasdo verbal, constituindo uma retórica nova em que a escrita ocorre tanto no momento primeiro de criaçãoquanto na leitura (também criativa, claro!). Dito de outro modo, o meio digital permite que as operaçõesretóricas de construção da materialidade da obra não estejam apenas nas ações realizadas pelo criador.Também na leitura, elas podem ser retomadas, e as maneiras como se esboça o objeto derivam igualmente deprocessos de inventio e dispositio, tanto no que diz respeito ao processo de construção de significantes verbaisquanto no tocante à arquitetura e à hierarquização dos elementos disponíveis. São operações desse tipo,realizadas como leitura e não como escrita, que podem nos dar palavras dispostas num espaço simulando otridimensional; e também nos fazem ler nuanças, matizes, posições, disposições, formas, luzes etc., como sepode ver numa criação chamada Cubo, concebida e desenvolvida por mim e por Gilbertto Prado. Elas nospermitem imprimir outra dinâmica a nossos movimentos de leitura. Estes se tornam, na verdade, uma conjunçãoentre nosso olhar e toda uma série de interfaces que podem incluir menus, cursores, mouses, teclados etc.

Com base nesses movimentos, podemos buscar organizá-los como inventio e dispositio, escolhendoperspectivas, ângulos, percursos; experimentando associá-los de maneira repetitiva, retomando novostrajetos em repetições que arremedam tentativa-e-erro. E esse processo avança até que seja construído doobjeto não um símile ou modelo, mas um campo de possibilidades e de realizações, de falhas e dedissimilitudes, permitindo que se chegue não a uma série definida e fechada de tipos e gênero, mas a umadinâmica em que se produzam campos e gestos de leitura. Como já foi dito antes, ou a retórica do texto

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eletrônico será plural e aberta, ou não será. E tal abertura deverá incorporar necessariamente os processose procedimentos que traduzam a reversibilidade verbal-visual em conjunções entre palavras e imagens, emferramentas e percursos possíveis que saibam despertar em um dos espaços perceptivos as topologias e asdisposições do outro, sem que um imponha modos e gestos ao outro. Somente assim poderemos sonhar coma possibilidade de sair desse simplismo em que a poesia dita eletrônica se encontra atualmente, de imagensàs vezes com alguma explicação verbal, ou de frases com meras ilustrações imagéticas.

Notas

1 REYNOLDS, David. Revising the american canon: the question of literariness. Canadian Review of Comparative Literature, v. 13, n. 28, p. 232, 1986.

2 REYNOLDS, op. cit., 1986, p. 231, nota 44.

3 REYNOLDS, op. cit., 1986, p. 231, p. 233, nota 44. [“...uma compacta explosividade do signo que ocorre devido a uma inaudita e amplavariedade de idiomas e vozes culturais, fundidas para criar extrema densidade e polivocalidade semiótica”.] tradução do autor.

4 HOFFMANN, Dierk. Edition-rhizome: a propos d’une édition historico-critique fondée sur le concept d’hypertexte et d’hyoermédia. Genesis,n. 5, p. 53, 1994. [“não como entidades autônomas, ‘totalidades orgânicas’, mas como construções intertextuais: seqüências que têm sentidoem relação a outros textos que elas retomam, citam, parodiam, refutam ou, de modo mais geral, transformam...”] tradução do autor.

5 Talvez à imagem do logos heraclitiano.

6 Mesmo sem pretender entrar em polêmicas anti ou pró-derridianas, seria interessante aprofundar essas diferenças entre produção designificações e mapeamento de sentidos.

7 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 146, nota 37. [“...velhas técnicas deixadas de lado pelos poetas, tais como o teatro, o canto e oartesanato, estão sendo reelaboradas a partir das experiências dadaístas e futuristas do princípio do século”.] tradução do autor.

8 [“em alguns casos, as técnicas antigas se mesclam a novas tecnologias, gerando suportes mistos que poderíamos chamar de pós-modernos”.] tradução do autor.

9 CLEMENT, Jean. Hypertextes et mondes fictionnels (ou l’avenir de la narration dans le cyberespace). éc/art S, Paris, n. 2, p. 73, 2000.[“...uma corrente literária bem antiga (...) que se opõe à concepção clássica fundada na certeza de que o texto é a justa tradução dopensamento, ou àquela, romântica, de uma literatura considerada reflexo da sensibilidade. Essa corrente, que se pode mapear dos GrandesRetóricos até Paul Valéry, é menos afeta aos textos que a seus processos de engendramento...”] tradução do autor.

10 Devo a Gilbertto Prado a clareza de ter entendido melhor essa questão.

11 Basta consultar os sítios que disponibilizam os Cent Milles Milliards de Poèmes e permitem, apenas eles, trabalhar com esse dispositivopoético que não tem realmente como ser lido na forma impressa.

12 PESSOA, Fernando. Obra poética. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976. p. 197.

13 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 157, nota 37. [“a palavra é provavelmente o gerador de significados mais adequado quando se tratade página impressa (ainda que não levando muito em conta a poesia visual”.] tradução do autor.

14 [“Todavia, isso poderia não ser assim no domínio virtual da web”.] tradução do autor.15 Como até hoje ainda se pode ver em algumas salas de cinema de três dimensões. No caso, as duas diferentes perspectivas das fotos sãoacrescidas de um jogo com cores.

16 No sentido de que não se trata mais, aqui, de produzir uma ilusão, jogando com a visibilidade (como fazem os aparelhos de espelhos

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e as fotos mencionadas), mas de expor determinadas imagens à visualidade. No primeiro caso, cremos ver algo que não vemosefetivamente; no segundo caso, estamos certamente vendo alguma coisa.

17 BARBOSA, Pedro. Criação literária e computador. Lisboa: Argos, 1999.

18 HOFFMANN, op. cit., 1994, p. 55, nota 47.

19 HOFFMANN, op. cit., 1994, p. 56, nota 47.

20 No sentido da assim chamada “ciência do caos”. Para mais esclarecimentos, reportar-se a GLEICK, James. Caos: a criação de uma novaciência. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Campus, 1989.

21 Isso nos faz lembrar um comentário de Merleau-Ponty sobre a atenção: “Le miracle de la conscience est de faire apparaître parl’attention des phénomènes qui rétablissent l’unité de l’objet dans une dimension nouvelle au moment où ils brisent. Ainsi, l’attentionn’est ni une association d’images, ni le retour à soi d’une pensée déjà maîtresse de ses objets, mais la constitution active d’un objetnouveau qui explicite et thématise ce qui n’était offert jusque là qu’à titre d’horizon indéterminé. En même temps qu’il met en marchel’attention, l’objet est à chaque instant ressaisi et posé à nouveau sous sa dépendance.” MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie dela perception. Paris: Gallimard, 1989. p. 37. [“O milagre da consciência é fazer aparecer, pela atenção, fenômenos que restabeleçam aunidade do objeto em uma dimensão nova, no momento em que eles irrompam. Assim, a atenção não é nem uma associação de imagens,nem o retorno a si de um pensamento já senhor de seus objetos, mas a constituição ativa de um objeto novo que explicita e tematiza oque, até aí, era dado apenas como horizonte indeterminado. Ao mesmo tempo que coloca em marcha a atenção, o objeto é, a cadainstante, retomado e, novamente, colocado sob sua dependência”.] tradução do autor.

22 SADIN, Eric. Pratiques poétiques complexes et nouvelles technologies: la création d’une agence_d’écritures®. éc/art S, Paris, n. 2, p. 24,2000. [“A exigência de desdobramento das competências pode servir – mas não necessariamente – para encorajar uma desaparição dafigura do autor, em proveito da constituição de dispositivos, não anônimos, mas nos quais a assinatura tem menos relevância que anatureza dos jogos relacionais, compreendidos como uma primeira categoria de procedimentos de escrita...”] tradução do autor.

23 Não tem de ser sempre assim. Podem-se invocar exemplos em que os intertextos se colocam em pé de igualdade, como, por exemplo,os sonetos rimbaudianos gerados em computador por alguns dos membros do Oulipo – reunidos no subgrupo Alamo (Atelier deLittérature Aidée par les Mathématiques et les Ordinateurs).

24 GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Editions du Seuil, 1982. p. 451. [“A hipertextualidade, a suamaneira, deriva da bricolagem. (...) a arte de ‘fazer o novo a partir do velho’ tem a vantagem de produzir objetos mais complexos e maissaborosos que os produtos feitos ‘sob encomenda’: uma função nova se superpõe e se confunde com uma estrutura antiga, e a dissonânciaentre esses dois elementos co-presentes favorece o conjunto”.] tradução do autor.

25 BOOTZ, Philippe. Stances à Hélène. Autopsie d’un scandale. Alire, n. 11 (em cederrom). ...não se trata de um produto unicamente‘voltado ao leitor’, de alguma coisa ‘dada à leitura’, mas de um projeto igualmente ‘voltado ao autor’, no qual o ato (de leitura) do leitor,que age por um ardil, participa da representação e faz, do ponto de vista do autor, parte da obra”.

26 Aquelas cômodas ficções clássicas que fingiam ser atitudes exercidas em espaços e instantes distintos, incomunicáveis entre si,estabelecendo uma hierarquia rigorosa entre uma e outra.

27 Como defende DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 148, nota 37.

28 Pensemos aí na complicação do narrador, como em D. Quixote e em Machado de Assis; na multiplicação de percursos de leitura, comonos labirintos poéticos dos séculos XVI e XVII etc.

29 MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1988. p. 172. (Tel Quel).

30 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72. [“a partir do momento em que vejo, é preciso (como indica tão bem o duplo sentidoda palavra) que a visão se desdobre em uma visão complementar ou de uma outra visão: eu mesmo visto de fora, como um outro me veria,instalado no meio do visível, considerando-o a partir de um certo lugar”.] tradução do autor.

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31 Que o mesmo Merleau-Ponty, em outro local, designa pela expressão je peux.

32 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72.

33 Que está ainda aquém da reflexividade intelectual, é preciso salientar!

34 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72. [“É preciso que nos habituemos a pensar que todo visível é talhado no tangível, quetodo ser tátil é prometido, de alguma maneira, à visibilidade, e que há transbordamento, cavalgamento, não apenas entre a coisa tocadae quem toca, mas também entre o tangível e o visível incrustado nele”.] tradução do autor.

35 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72.

36 Mesmo estando elas ainda impregnadas pelos elementos e condições de contorno da tradição oral, num processo que culminou comas técnicas da imprensa.

37 E o mesmo continua valendo para obras segmentadas, como os folhetins de jornais, por razões que não caberia aqui discutir.

38 E, claro, também o de significação.

39 KAC, Eduardo. Holopoetry. éc/art S, Paris, n. 2, p. 298, 2000. [“a estrutura seqüencial de uma linha de verso corresponde a pensamentolinear, enquanto a estrutura simultânea de um poema concreto ou visual corresponde a pensamento ideográfico”.] tradução do autor.

40 KAC, op. cit., 2000, p. 299, nota 82. “numa maneira quebrada, num movimento irregular e descontínuo, e isso se alterará se visto emdiferentes perspectivas”.

41 “I never adapt existing texts to holography. I create works that develop a genuine holographic syntax.” KAC, op. cit., 2000, p. 299,nota 82. [“Eu nunca adapto textos já existentes à holografia. Eu crio obras que desenvolvem uma sintaxe holográfica genuína.”]tradução do autor.

42 Entendidos aí num sentido próximo ao da óptica física.

43 Como exemplo, um rébus da Igreja de Saint Gregoire-du-Vièvre, conforme <http://perso.club-internet.fr/Hdleboy/St_Gregoire_Vievre.htm>.

44 Como afirma LAPACHERIE, Jean-Gérard. De la grammatextualité. Poétique, v. 15, n. 59, p. 283-294, set. 1984.

45 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 147, nota 37. [“...os limites da literatura se deslocam gradualmente, a ponto de nos perguntarmos sea noção de literatura implica principalmente palavra escrita, ou se esta afirmação pode deixar de estar certa em algum futuro próximo”.]tradução do autor.

46 Aliás, essa invenção de gêneros, por si só, já daria muito pano para bastante manga. Em outros locais, o autor também classifica suaobra como “poesía visual”, cf. DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 156, nota 50.

47 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 157, nota 37. [“repetição ‘quase-mecânica’...”] tradução do autor.

48 SADIN, op. cit., 2000, p. 20, nota 65.

49 SADIN, op. cit., 2000, p. 21, nota 65.

50 Idem.

51 “A la willing suspension of disbelief chère à Coleridge et qui gouverne notre approche de la fiction écrite s’est substituée unereprésentation visuelle d’un imaginaire virtuel dans lequel le plaisir du récit a cédé la place aux jeux de l’interactivité.” Em CLEMENT,op. cit., 2000, p. 77, nota. [“À ‘willing suspension of disbelief’, cara a Coleridge e que governa nossa abordagem da ficção escrita,substitui-se uma representação visual de um imaginário virtual no qual o prazer da narrativa cedeu sua vez aos jogos dainteratividade”.] tradução do autor.

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52 Cf. BENAYOUN, Maurice. Art Impact, la mémoire partagée à perte de vue. éc/art S, Paris, n. 2, p. 205, 2000: “L’interface utilisateurcomme surface de contact entre le visiteur et l’image permet un dialogue bi-directionnel. Elle permet de découvrir les parties masquéesde l’image en même temps qu’elle écrit la trajectoire du regard”. [“A interface utilizada como superfície de contato entre o visitante e aimagem permite um diálogo bidimensional. Ela permite descobrir as partes ocultas da imagem ao mesmo tempo que escreve a trajetóriado olhar”.] tradução do autor.

53 Como fazem ABENDROTH, Manuel; DECOCK, Jerôme; MESTAOUI, Naziha. Hypertextures. éc/art S, Paris, n. 2, p. 113, 2000.

54 Sempre tomados aí no sentido com que os empregam a teoria francesa do verso, essa de Kristeva e de Genette, como um texto que seorganiza e se produz a partir de outros, de modo mais ou menos evidente.

55 Diria que é o caso dos autistas. Esse fenômeno também tem dado as caras nas artes das últimas décadas, submetidas que estão, muitasobras, a certo processo de “autização”.

56 BENAYOUN, op. cit., 2000, p. 203, nota 94. [“Essa imagem (...) é composta, em tempo real, do traço dos olhares múltiplos que exploramoutras imagens (os diferentes pontos de vista da exposição La Beauté). Na internete e na tela do Centro Pompidou, cada um pode descobriro traço dos olhares dos outros; cada novo traço integra os fragmentos de interesse de uns e outros em um novo espaço que é,propriamente, um espaço de memória”.] tradução do autor.

57 BENAYOUN, op. cit., 2000, p. 205, nota 94.

58 BENAYOUN, op. cit., 2000, p. 205, nota 94. [“A traçabilidade do indivíduo em rede, que faz com que ninguém esteja ao abrigo do olhardo outro, torna-se, aqui, um elemento determinante na construção do sentido”.] tradução do autor.

59 KAC, op. cit., 2000, p. 298, nota 82. [“Em matemática, ser um fractal significa, grosso modo, estar entre uma dada dimensão e apróxima, para mais ou para menos. Em arte, ser um fractal significa, por analogia, estar entre a dimensão verbal e a visual do signo”.]tradução do autor.

60 Citado por FRANCHETTI, Paulo. Alguns aspectos da teoria da poesia concreta. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. p. 34. [“duascoisas colocadas juntas não produzem uma terceira coisa, mas sugerem alguma relação fundamental entre elas”.] tradução do autor.

61 Isso talvez até explique por que Wlademir nunca se colocou voluntariamente como membro asssumido do concretismo.

62 Cf. FRANCHETTI, op. cit., 1992, p. 61, nota 102.

63 Cf. FRANCHETTI, op. cit., 1992, p. 65, nota 102.

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c o n c l u s ã o p r i m e i r anovidade e repetição

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Sei ter o pasmo comigo

Que teria uma creança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido

a cada momento

Para a completa novidade do mundo...

Alberto Caeiro, poema II, O Guardador de Rebanhos

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Mesmo nas discussões mais recentes sobre hipertextos eletrônicos, não é raro ainda encontrarmosargumentos que defendem a absoluta novidade deles. Como foi insinuado e afirmado anteriormente, épossível, sem maiores atropelos, mostrar como tal novidade pode ser vista também (ainda que nãoapenas) como renovação ou desdobramento daquilo que a produção literária impressa e até a tradição oraljá traziam consigo. É nesse sentido que se pode compreender o comentário de George P. Landow, falandode uma nova oralidade no meio eletrônico:

In a hypertext environment a lack of linearity does not destroy narrative. In fact, since readersalways, but particularly in this environment, fabricate their own structures, sequences, andmeanings, they have surprisingly little trouble reading a story or reading for a story (...) readinghypertext fiction provides some of the experience of a new orality that both McLuhan and Onghave predicted.1

Dessa forma, não se pode dizer que haja aí propriamente uma evolução, ao menos essa que daria ao tempoum sentido acumulativo e positivo. Antes de tudo, há sim um re/des-dobramento – operação que consisteem associar aos modelos atuais as marcas sedimentadas de modelos anteriores, como é o caso da tradiçãooral. É mais ou menos o que diz Pound da poesia: nela, não haveria passado nem futuro, propriamente, masa instituição de um espaço expressivo que joga com o tempo e as tradições de modo não cumulativo e muitomenos evolutivo. Na verdade, nessa passagem do antigo ao novo, temos buscado ver menos um corteepistemológico, uma solução de continuidade nos paradigmas, e mais um processo de sedimentação, nosentido em que o termo já foi aqui utilizado. Explicando melhor, não se pretende retomar uma concepçãocíclica ou mítica da história, em que os novos sentidos remeteriam sempre a processos e a objetospreexistentes; por outro lado, não se quer também propor uma concepção evolutiva (ou positivista) em quea temporalidade, por si só, já traria novos sentidos e novas formas às obras. Antes, pretende-se ver, nissoque estou chamando de sedimentação, as diferentes formas de ler as obras literárias e, ao mesmo tempo,de ler a temporalidade através delas. Assim, a sedimentação passa a ser, concomitantemente, uma leiturada obra e uma releitura do tempo que nos deu essa mesma obra. Em conseqüência, sedimentação, para nós,quer significar a maneira como diferentes estratos de um mesmo objeto são justapostos ao próprio processode diacronização com que buscamos apreendê-lo.

A cada vez que um texto é lido, tornam-se possíveis outras releituras do processo de produção de suassignificações (o que traz as marcas indeléveis da temporalidade em que ele está inevitavelmente inserido).Isso não significa que a sedimentação nos permitiria encontrar, a cada leitura, um sentido arbitrário para otempo, mas que é possível restabelecer (ou reencontrar, para aqueles que preferem pensar em umamethexis, ou nexo de participação) uma linha de sentidos amarrando – ainda que de maneira frágil – umadada obra e o atual processo de produção de significantes e significações a obras e processos anteriores.

Daí se poder afirmar que, a despeito das interfaces e aparências tecnicizadas com que a criação literária emcomputador se apresenta aos leitores, ela traz uma série de características que podem aproximá-la deobjetos ainda ligados a tradições outras, como a oralidade. E mesmo quando se levantam algumasdiferenças, elas não deixam de exibir pontos de contato ou de contraste entre si. No que se refere, por

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exemplo, ao trabalho intelectual em coletividade, os instrumentos telemáticos têm possibilitado espaços deinteração, de interferência e de construção de significantes que, mesmo ressalvadas as diferenças, lembramalgo das trocas culturais mediadas apenas pela fala. Pierre Lévy, a esse respeito, afirma que:

“Les collecticiels d’aide à la conception et à la discussion collective (...) aident chaque interlocuteur à se repérerdans la structure logique de la discussion en cours en lui fournissant une représentation graphique du réseaud’arguments. Ils permettent également la liaison effective de chaque argument avec les divers documentsauxquels il se réfère, qui le fondent peut-être et forment en tout cas le contexte de la discussion. Ce contexte,contrairement à ce qui se passe lors d’une discussion orale, est ici totalement explicite et organisé.”2

E logo em seguida,

“Avec les collecticiels, le débat se ramène à la construction progressive d’un réseau argumentaire et documentairetoujours présent aux yeux de la communauté, maniable à tout instant. Ce n’est plus “chacun son tour” ou “l’unaprès l’autre” mais une sorte de lente écriture collective, désynchronisée, dédramatisée, éclatée, commecroissant d’elle-même suivant une multitude de lignes parallèles, et pourtant toujours disponible, ordonnée,objectivée sur l’écran. Le collecticiel inaugure peut-être une nouvelle géométrie de la communication”.3

Ambas as descrições enfatizam corretamente a principal característica de tais ambientes de trabalhointelectual coletivo: a possibilidade de dispor dos dados de modo espacializado (“représentationgraphique du réseau”). Com efeito, para superar os simplismos que vêem em todo trabalho colaborativouma atividade “interdisciplinar” ou “transdisciplinar”, parece-me importante pôr o acento nessa eventualarticulação topológica da produção intelectual que as redes telemáticas tornam possível. Todavia, isso nãosignifica que a mera distribuição espacial dos participantes já produza esse efeito de topologização. Maisdo que isso, a construção de obras escritas (sejam elas, por exemplo, reflexões teóricas ou criaçõesartísticas) só se faz dentro de uma organização topologizada, justamente quando cada ponto deenunciação, cada nó na rede de significantes, cada elemento de significação e de sentido se deixa imantarpela presença individual e distância de todos os outros.4 E como essa organização topológica apontariapara a oralidade? Nesta, por não se ter os significantes amarrados pela materialidade de um suportemanuscrito ou impresso, cada elemento da cadeia de significantes orais é forçado a buscar apoio nohorizonte de sentidos que o envolve (tanto aquele específico, de seu contexto, quanto aquele mais geral,da linguagem em que ele é produzido). Como resultado, o texto oral só se articula e se dá à compreensãodos outros em virtude de sua fisionomia específica (isto é, sua especificidade significante) resultarnecessária e materialmente de uma interpenetração de outras falas.

É certo que também as obras impressas e manuscritas aparecem sempre como resultado de uma confluênciade outras, como as descrevem muito bem conceitos como o de palimpsesto de Gérard Genette, ou o deintertextualidade de Julia Kristeva. E, se tais obras apregoam a quatro cantos e céus uma aparência deautonomia, isso não passa de aparência ilusória. Temos aí, aliás, um paradoxo que parece ser essencial aoprocesso de escrita e impressão: a escrita impressa (para diferenciar da escrita eletrônica) é o que é, por sera encenação de uma auto-suficiência, ela só existe como fingimento de uma autonomia impossível, aquela

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que a separaria completamente das outras obras escritas.5 De seu lado, o texto oral sempre se apóia numaevidente dependência inaugural que tem com outros textos orais (não há simulação nem fingimento de umaautonomia, essa encenação que dá origem a toda escrita). E, do mesmo modo que estes, os textos eletrônicos,submetidos à força multiplicadora dos instrumentos telemáticos, também se mostram sempre abertos,sempre dependentes das determinações provenientes de outros textos, de outros pontos de enunciação.

No comentário acima transcrito, Lévy aponta para a diferença entre o eletrônico e o oral, quando chama aatenção para a possibilidade de manipulação imediata, completa e em tempo real dos dados envolvidos, o que,na oralidade, se faz somente a posteriori. De fato, na tradição, ocorre oral como que uma depuração, por assimdizer, uma espécie de decantação que está intimamente ligada à maneira como aí se produzem significantes esignificações. O texto oral se funda em uma espera de sentidos que, por si só, já é significante e empresta àoralidade todo um ritmo, toda uma estratégia de produção de significações. O texto eletrônico substitui essaespera por uma outra encenação: a de uma ubiqüidade de sentidos impossível, mas sempre reencetada (oureencenada ou, melhor ainda, simulada); é como se todos os outros textos eletrônicos estivessem, ao mesmotempo, disponíveis ao lado da tela. Mas isso é claramente simulação, fingimento que pode ser parente daquelede Pessoa, ou enganação pura e simples. E o modo como esse fingimento vem orquestrar a cadeia de significantes– a precariedade material com que ela aparece, se esboça, se desvanece para reaparecer depois ou alhures – éque vai estabelecer a diferença entre um fingimento e outro, na verdade, entre fingimento e enganação.

Em suma, se o hipertexto se aproxima de formas anteriores – como as do texto oral –, pela maneira comotorna manifesta a pluralidade inerente a toda forma textual, ele se distancia delas pela maneira como essaprodução de significações se dispõe no tempo e, ainda, pela quantidade de dados que se dão a manipularsimultaneamente. O texto eletrônico acelera os tempos de concatenação e de justaposição das diferentesobras que eventualmente compartilham um mesmo espaço de produção, alterando profundamente suaapreensão (ou compreensão). Nesse caso, o tempo se reveste também de um caráter mais evidentementetopológico, ao contrário do tempo da oralidade; ele se deixa surpreender não só como duração ou devir,mas como encenação, como disposição e disponibilização ao olhar, à experiência do corpo (o que já estavapresente na notável intuição poética figurada por Alberto Caeiro, poeta que dispunha do tempo como maisuma dimensão concreta do espaço do mundo vivido).

A assinalar, por último, a ilusão de que o contexto em que se insere o hipertexto seja “totalement explicite etorganisé”, como diz Lévy. Esse não parece ser jamais o caso. Na verdade, nada há que seja totalmente explícito eorganizado, nem no hipertexto, nem em seu contexto. Na medida em que o hipertexto abandona completamente ofingimento da obra impressa e/ou escrita, essa encenação de autonomia, ele vai abrir cada vez mais a materialidadede seus significantes para a arbitrariedade organizante e cúmplice do leitor. Por outro lado, exatamente damesma maneira que a obra impressa, o hipertexto eletrônico aponta para um contexto permanentemente emrecuo, fazendo com que o hiper- e o -texto fiquem sempre em situação de falta, de lacuna, de incompletude.

Com tudo que foi dito acima, coloca-se em xeque todo tipo de descrição evolutiva ou mesmo positivista dostextos eletrônicos. Por mais disfarçado que seja, esse tipo de juízo aparece com incômoda freqüência. Omesmo Lévy, por exemplo, menciona “trois pôles de l’esprit (...): pôle de l’oralité primaire, pôle de l’écriture,

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pôle informatico-médiatique”,6 num esquema que retoma muito de perto os três estágios da evolução dasociedade propostos por Auguste Comte. Em outro trecho, ele ainda afirma que:

“...les catégories usuelles de la philosophie de la connaissance telles que le mythe, la science, la théorie,l’interprétation ou l’objectivité dépendent étroitement de l’usage historique, daté et situé de certainestechnologies intellectuelles. Qu’on m’entende bien: la succession de l’oralité, de l’écriture et de l’informatiquecomme modes fondamentaux de gestion sociale de la connaissance ne s’opère pas par simple substitution, maisplutôt par complexification et déplacement de centre de gravité”.7

É certo que Lévy, sobretudo no segundo trecho acima, tenta escapar ao positivismo evolucionista que marca oprimeiro. Assim, se entendemos “complexification et déplacement de centre de gravité” como uma espécie desuspensão/incorporação dos paradigmas anteriores (no sentido de uma Aufhebung hegeliana), é certo quepodemos fugir à simplificação positivista. Todavia, ao insistir em várias outras passagens (inclusive em outrasobras) numa tríade evolutiva autônoma, a complexificação e o deslocamento do centro de gravidade parecemficar em segundo plano, privilegiando de modo evidente uma linearidade evolutiva. Em lugar de umaconcepção de hipertexto que vê nas diferentes textualidades (da oralidade à imprensa e desta ao textoeletrônico) o trabalho significante interno e autônomo (aí sim!) de uma sedimentação, de uma produçãocoletiva incessante, com todas as suas hesitações, seus recuos, suas ambigüidades, Lévy parece colocar todo osignificado dessas alterações de paradigmas num contexto independente e externo, numa estrutura de sentidoalheia às diferentes textualidades. É como se apenas a escolha da perspectiva diacrônica já fosse capaz deatribuir um horizonte de sentidos a qualquer atividade significante, a partir de um campo de verificaçãoempírico e obrigatoriamente externo ao texto, juízo que remete ao princípio positivista segundo o qual todasignificação só existe como resultado de uma verificação empírica. Com isso, fica difícil não pensar num certoreducionismo nessas concepções de Lévy, na medida em que a verificação (isto é, a atribuição de um significadoàs mudanças de paradigmas) está totalmente subordinada ao contexto empírico da experimentação (este, naconcepção positivista, é colocado no exterior de qualquer atividade de significação, como origem externa detodo sentido).

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Um outro possível ponto de aproximação entre textos eletrônicos e oralidade estaria na efemeridade daspoéticas digitais, isto é, na velocidade com que suas estruturas proteiformes se alteram, se perdem (às vezes, parasempre), ou são retomadas. Ora, a efemeridade é uma característica que o hipertexto compartilha com qualquerforma textual, desde que não confundamos a base material com a realização propriamente dita dos textos(quando o significante é exposto ao leitor e permite a produção daquilo que pode ser aproximado do fenotextode Kristeva).8 De fato, a realização do texto resulta sempre da confluência de um leitor e da materialidade deum aparelho de significações, sendo esta última nada mais do que os elementos significantes expostos à inspeçãodos sentidos (ou seja, as seqüências de letras, nas criações verbais; de cores e formas, nas visuais; de sons, nassonoras). Como resultado temos uma produtividade (ou seja, exatamente isso que vimos chamando de texto),um fenômeno que se destaca da coisa-em-si, dessa materialidade específica que lhe serviu de base.

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E essa produtividade não se deixa prender, ela se desloca e se modifica continuamente, sobretudo a partir domomento em que desaparece a instância fenomênica em que o texto constitui o leitor e é constituído por ele.Assim como a obra eletrônica, pretensamente formada por zeros e uns, que desaparece ou se altera quandoo computador é desligado ou quando passa por algum processo eletrônico de transformação, a obra literáriaimpressa nunca subsiste da mesma forma. A cada releitura, é toda uma nova textualidade que se produz: comoafirma Barthes, em Proust, o prazer de cada releitura está no fato de que nunca pulamos as mesmas linhas.9

São, potencialmente, outros textos que se dão a ler, embora saibam guardar sempre uma mesma fisionomia,derivada de uma mesma base material, isto é, da coerência concreta exposta na materialidade dos signosverbais (no caso de Proust, as seqüências de palavras que formam os romances). Trata-se do que chamamos delivro e que não pode ser confundido com seus textos possíveis.10 Esse é outro motivo pelo qual não se pode demodo algum afirmar que o hipertexto constituiria uma categorização absolutamente original. Com efeito,todo o aparato teórico desenvolvido por um Gérard Genette, por exemplo, por meio da imagem-conceito dopalimpsesto, nos mostra que esse tom provisório e fugaz acompanha a obra literária desde sempre, nãoimportando, aliás, se o seu suporte é a tela, o papel ou a oralidade.

E é necessário chamar a atenção para esse caráter não exclusivo do texto eletrônico, no que se refere àefemeridade, na medida em que ela aparece de modo evidente em todo o conjunto das textualidades orais,sendo uma das explicações possíveis para o modo como se desenvolveram, por exemplo, as técnicas deversificação na poesia ocidental. No caso, os recursos fônicos do texto oral permitiram o surgimento da rima,da métrica e do ritmo, assegurando a memorização (garantindo um mínimo de eficiência em suatransmissão oral) e ao mesmo tempo constituindo a base de uma expressão poética autônoma. De modosemelhante, é legítimo perguntar, com base nisso, como a efemeridade eletrônica do hipertexto poderá darorigem a uma outra série de elementos poéticos, desta vez veiculados pelos meios informáticos. Como asvariações em torno de um mesmo tema (como as da métrica e da rima na poesia oral e na poesia impressa),por exemplo, se darão em um ambiente informatizado? Que tipo de dispositivo semântico derivará damultiplicidade concretamente disponível do hipertexto? Dito de outra maneira, a pergunta que temos denos fazer é como os elementos e os processos telemáticos do texto eletrônico poderão ser usados para darorigem a uma série de recursos poéticos, numa retórica literária que venha a criar uma poética com basenos ritmos e nas quantidades próprias do hipertexto.

Assim, seja nas poéticas digitais que trazem os multimeios e principalmente a interatividade com aliteratura, seja na geração informatizada de obras literárias, podemos encontrar mecanismos de circulaçãoculturais que reproduzem de alguma maneira, parcialmente, os percursos de produção e de assimilaçãodas literaturas orais. No caso, talvez seja relevante caracterizar com mais detalhes esses percursos no meiodigital, tentando surpreender neles especificidades até então insuspeitas. Pode-se dizer do hipertexto queele torna concreto o que antes, nas obras escritas/impressas, era referência indireta: os intertextos latentespodem aparecer nele como ligações imediatas e simultâneas a outros pontos do hiperespaço designificantes. De modo análogo, a produção e a circulação do hipertexto parecem se dar em aparentesimultaneidade, imbricando concretamente o trabalho do criador e o do leitor. Tal processo pode remeter aformas embrionárias que já aparecem na tradição oral: nesta, a veiculação de uma obra confundiatransmissão e criação, devido ao trabalho criativo da memória individual de cada pessoa envolvida no

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percurso de disseminação dos textos orais (basta pensarmos na atividade dos segréis medievais, em oposiçãoaos menestréis). Todavia, no hipertexto, há que se levar em conta a velocidade e a amplitude desse processo,que superam qualitativa e quantitativamente o fenômeno da transmissão oral, sobretudo no que se refereao papel ativo do público consumidor. Este é levado obrigatoriamente a interferir nas etapas e navelocidade da produção hipertextual muito mais do que o público-ouvinte fazia com as peças cantadaspelos trovadores ou improvisadas ainda hoje pelos repentistas.

Com efeito, o texto eletrônico justapõe à própria tecedura, à sua materialidade manipulável pelo monitoruma trama complexa de relações em que ele é criado, lido, recriado, relido, incessantemente,recursivamente. Isso significa que o hipertexto torna paralelos os tempos de produção e de circulação (oude recepção, se preferirem). Mais uma vez, temos uma encenação do tempo em que a temporalidade sedeixa surpreender como espacialização. Mas, ao contrário da poesia de Alberto Caeiro, em que apenas setenta insinuar ou apresentar a percepção de um tempo topologizado, o texto eletrônico não é nada sutil:ele impõe, desde a superfície de seus significantes, sobre a tela onde ele se abre ao leitor, uma circularidadeinebriante, célere, em que os instantes de criação e de navegação parece quase se confundirem, dandoorigem a um único trabalho de produção.

Em suma, na superfície da tela e na profundidade das ligações hipertextuais, os diferentes tempos da escrita(que na tradição impressa corresponderiam ao início, ao meio e ao fim dos movimentos do escritor sobre opapel) encenam uma ubiqüidade do impulso criador. É como se o hipertexto fosse surgindo, todo ele, ao mesmotempo, originário de um único movimento de escrita, não mais como queima um rastilho de pólvora, linear eprogressivamente, mas, sobretudo, como crescem cristais em solução saturada, em vários pontos do espaço,simultaneamente. Não se trata de uma presentificação absoluta, como se o tempo fosse freado até aimobilidade, mas de maneira de o hipertexto se organizar de forma a submeter o tempo à pluralidade doespaço dos significantes. Daí essa impressão de que os tempos de concepção e de consumo se confundem noclicar do mouse, como se criador e fruidor se confundissem inevitavelmente. Todavia, trata-se de umaencenação do hipertexto, pois, de fato, essa circularidade, essa equiparação entre ambos não vai além damaterialidade dos significantes concretamente disponíveis na tela. A partir do momento em que ele épercorrido pela leitura de alguém, em que se torna parte de um espetáculo (aquele em que o leitor se dá umtexto e, mais importante, se dá em texto), a materialidade do hipertexto cede lugar àquilo que RomanIngarden, com relação ao meio impresso, chamava de objeto intencional. E é justamente nessa intencionalidadeque se pode retomar a relação entre instância de criação e instância de fruição, ou de leitura. De fato, ohipertexto parece confundir os trabalhos de criação e de fruição, no que diz respeito à materialidade dossignificantes que disponibiliza na tela, encenando essa ubiqüidade análoga à auto-suficiência da escritaimpressa. No entanto, a navegação hipertextual não precisa se submeter necessariamente às mesmas condiçõesde contorno de sua encenação. Em conseqüência, o leitor pode escolher outras posições para exercer seu olhar,buscando não sobrepor-se ao criador, confundindo-se com ele, mas propondo um diálogo em que as diferençasentre as duas posições possam ser reconstruídas com base nos vestígios de autoria que ainda (e sempre) restamnos significantes e nos processos de significações que lhe são dados manipular.

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Para aprofundar, então, um pouco mais essas questões sobre novidade ou repetição, talvez seja interessantetomar como ponto de partida mais algumas reflexões de Pierre Lévy, não apenas pelo modismo que muitos,ingenuamente, ainda associam a seu nome e a suas idéias, mas pelo interesse de suas intuições teóricas(ainda que ele não tenha conseguido dar-lhes conseqüência e retaguarda de modo mais convincente).Vamos retomar outros três comentários seus:

“...les individus de culture écrite ont tendance à penser par catégories quand les gens de culture oraleappréhendent d’abord des situations...”11

“L’homme ‘nu’, tel qu’il est étudié et décrit par les laboratoires de psychologie cognitive, sans sestechnologies intellectuelles ni le secours de ses semblables, recourt spontanément à une pensée de type oral,centrée sur les situations et les modèles concrets. La ‘pensée logique’ correspond à une strate culturellerécente liée à l’alphabet et au type d’apprentissage (scolaire) qui lui correspond.”12

“... le savoir informatisé ne vise pas la conservation à l’identique d’une société se vivant ou se voulantimmuable, comme dans le cas de l’oralité primaire. Il ne vise pas non plus la vérité, à l’instar des genrescanoniques nés de l’écriture que sont la théorie ou l’herméneutique. Il cherche la vitesse et la pertinence del’éxecution, et plus encore la rapidité et l’à propos du changement opératoire.”13

As distinções entre uma sociedade da telemática e as sociedades da imprensa e da oralidade dizem respeito,como se pode inferir do termo escolhido – sociedades –, a uma diferença entre formas, ritmos e meios decirculação dos objetos culturais por elas produzidos, e não a formas distintas de humanidade. No caso, oscomentários de Pierre Lévy parecem se fundar numa visão já de há muito ultrapassada, ao menos desdeLévy-Bruhl, o de um estado pré-lógico das sociedades humanas. E tal juízo parece remeter a uma concepçãoestreita e simplista de “lógica”, na medida em que se descartam como ilógico, pré-lógico ou antilógico tudoo que escapa a certa organização discursiva, herdeira das formas argumentativas tradicionais (silogísticas,na maioria); como se essas organizações discursivas fossem capazes de encerrar toda a complexidade dasproduções do pensamento; como se, finalmente, entre pensamento (sempre o “pensamento lógico”, claro!)e expressão verbal houvesse uma subordinação desta última àquele primeiro. Aceitando as posições dePierre Lévy, chegaríamos a um percurso interessante: de um mal disfarçado indutivismo epistemológico, elesalta para um positivismo quase panfletário, chegando, enfim, a um relativismo bastante afeito àsperspectivas pós-modernas. Primeiramente, creio que não se trata mesmo de mera coincidência o fato deele retomar o esquema tríplice de Auguste Comte. A evolução que este propõe para as ciências e o espíritohumano (passando sucessivamente pelas fases teológica, metafísica e positiva) não deixa mesmo decorresponder ao que Pierre Lévy postula como progresso da cultura (dividida em oralidade, escrita impressae cibercultura). Nos dois esquemas, há a inequívoca defesa de uma evolução que é determinada peloselementos objetivos da experiência do homem. E o espírito humano? Ah! Este dedica-se a aprender deacordo com o acaso criador que pode lhe dar (ou não) ferramentas com que se divertir e evoluir.

Assim, talvez seja mais justo explorarmos as distinções entre texto eletrônico e texto oral, a partir, porexemplo, dos diferentes ritmos de produção, de decantação e de sedimentação, como propusemos acima: o

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texto oral se funda no que ali chamávamos de espera de sentidos, essa incompletude imediata naarticulação dos significantes. Quanto ao hipertexto, ele finge dar acesso a uma totalidade plural eimediatamente disponível, simulando – apenas simulando – uma disponibilidade direta da infinitudepotencial da linguagem. E, com base nisso, podemos discernir outra diferença entre oral e eletrônico. Elaestaria no modo como a temporalidade se dá a ver nas duas formas de armação textual, assim como naquantidade de dados e de estratégias de produção textual, que são muito maiores no hipertexto, conformejá se discutiu. É importante salientar que essa diferença quantitativa implica uma alteração qualitativa nopapel do leitor: ele não vai só ter que lidar com uma maior quantidade de informações e de inferências,mas vai ter que desenvolver estratégias de construção de leitura(s) que concretize(m) esse plural do qual éfeito (agora concretamente) o hipertexto.

* * *

O desafio para o estudioso dos novos textos eletrônicos é, então, bem delimitar seu campo de estudo, de formaa compreender como esse vínculo com tradições outras e meios outros, como o oral, pode aparecer dentro deum paradigma tecnológico totalmente diverso das culturas não escritas. Em outras palavras, nossa empreita éentender como a novidade se opõe e se associa ao antigo ao mesmo tempo. Para isso, torna-se necessáriopensar no texto – seja ele de que tipo for, qualquer que seja o meio em que ele é produzido – com base emuma perspectiva geral, abrangente, inaugural, entendendo-o como produtividade. E mais, no que se refereàs diferentes produtividades textuais, ou seja, às especificidades de cada tipo de texto, com seu respectivo meiode disseminação, pode-se falar de uma transtextualidade, no sentido de uma generalidade inaugural de todoe qualquer texto. Contudo, tomando essa generalidade inaugural dos textos, esse grau zero da escrita que fazpossível toda textualidade (quer dizer o texto oral, o texto manuscrito, o texto impresso e, finalmente, o textoeletrônico), a novidade deste último estaria, assim, não na inauguração de um novo horizonte de sentidos, masna maneira como esse horizonte aparece diante de nós indiretamente, por intermédio do texto eletrônico, esobretudo na maneira como ele se deixa refletir pela atividade específica de significação, intrínseca a todotexto. No caso do hipertexto, trata-se de dois elementos centrais que lhe dão sua fisionomia própria, suacapacidade de produzir significações: a velocidade de circulação e de desdobramento (vale dizer, desedimentação) das obras, com base em uma arquitetura de significantes até então impossível.

No que diz respeito a essa arquitetura, basta pensar na maneira como um mero ensaio teórico como este podeser redigido e, então, lido por meio de simples programas de edição de textos ou de HTML.14 As reflexões nelepropostas se podem dar a partir de ligações que levem a comentários que, por sua vez, extrapolam o antigoespaço das notas de rodapé ou de final de capítulo, tão freqüentes na tradição impressa; esses comentáriospodem estar diretamente associados a alguns termos de um texto-base, permitindo assim uma navegaçãodiferente do espaço impresso, eludindo a ordem linear e a seqüencialidade cronológica, até então habituais, daspartes sucessivas da escrita pré-eletrônica. De fato, a eventual numeração de cada comentário perderia qualquerveleidade organizativa, servindo apenas de ligação entre o termo sublinhado e o comentário que se desenvolvea partir dele. Em lugar de números, poder-se-ia colocar qualquer outro signo, pois a ordem de leitura não estádefinida de antemão por uma progressão aritmética, mas por uma pluralidade (e não uma infinitude, ressalte-se) de ordens possíveis, permitidas pelos instrumentos e pelas características próprias do hipertexto.

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Com isso, reafirma-se um dos princípios que organizam todas essas reflexões sobre o hipertexto: suanovidade reside principalmente na materialidade de seus elementos e de seus processos designificação, jamais na invenção de uma nova capacidade expressiva (como se os meios informáticosfossem capazes, por si sós, de inventar uma linguagem). Ao contrário, somos nós que, incessantemente,falamos através dos meios informáticos e inventamos, neles e com eles, novas linguagens. Mesmo osinsucessos, as panes são eloqüentes e nos introduzem justamente na esfera de significações dosinstrumentos tecnológicos, nos informando a participação humana na construção desses objetos, quesão, ainda e sempre, essencialmente culturais. Dito de outra maneira, não é uma nova humanidade queé gerada pelo hipertexto,15 mas uma mesma humanidade que se desdobra continuamente, apoiando-se em instrumentos tecnológicos sempre diferentes e, às vezes, materialmente mais complexos. Acima,aliás, já foram se discutiram algumas dessas questões acerca da novidade representada pelo hipertexto.É por isso que insisto em apresentar o hipertexto como um novo arranjo, um novo ritmo no processode produção textual. Sua novidade estaria sobretudo na maneira como as mesmas condições depossibilidade das significações se manifestam de maneira diversa, e não na instauração de um outrohorizonte de sentidos para a linguagem verbal.

* * *

Como já ficou claro, uma das perspectivas teóricas que adotamos busca fundar a idéia de (hiper)textoeletrônico no conceito geral de texto, em particular no literário, já amplamente discutido e explorado poruma larga tradição que remonta a Aristóteles, passando pelos exegetas e cabalistas medievais, para chegarà escola francesa da segunda metade do século XX. Então, na perspectiva que propomos, falar de texto oral,texto eletrônico, texto impresso, cibertexto, hipertexto, texto corporal, texto pictórico etc. seria atéimpróprio, pelo fato de todos eles serem manifestações de uma transtextualidade – como já dito antes –,essa propriedade de as teias significantes associarem, por exemplo, a oralidade aos textos eletrônicos, ou detraduzir, discutir e apresentar estes últimos através da superfície plana da escrita. Em outras palavras,partimos do pressuposto de que todo tipo de texto (aí incluída a oralidade) pode ser combinado em umatrama de textos, ou seja, em um texto de textos. Todavia, o texto da tradição oral só permite o acesso aesse texto de textos como construção externa e posterior. Diferentemente, o texto eletrônico permitecolocar em circulação, em tempo real e sempre parcialmente, esse texto eletrônico de textos eletrônicos,esse rizoma telemático, num intervalo de tempo que possibilita sua totalização e sua reinserção no processode produção textual de onde ele se originou.

Talvez essas questões – freqüentemente, abstratas demais – possam ser mais bem digeridas a partir dealgum exemplo concreto. Tomemos primeiramente um artefato chamado Sintext, um gerador de textosconcebido por Pedro Barbosa. Simplificando, podemos dizer que ele funciona com base em um banco dedados, composto de uma lista de palavras escolhidas, aleatoriamente, para preencher uma fôrma sintáticapredefinida. Uma vez que se dá início ao processo, o próprio programa seleciona as palavras e vai inserindo-as numa seqüência previamente definida. À primeira vista, parece que Barbosa não iria nem um milímetroalém dos processos de escolha e combinação que estão e sempre estiveram na base de qualquer gestoexpressivo. Mas o que ele propõe – e torna possível – é um deslocamento dessas operações. Não temos aqui

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a retomada das tradicionais inventio e dispositio realizada pelo criador da obra; nem mesmo se trata deescolhas e combinações realizadas pelo leitor a partir de elementos disponibilizados e de operaçõespossibilitadas por algum mecanismo proposto pelo escritor, como os labirintos literários dos séculos XVII eXVIII (anexo 6) ou o de Camões, já mencionado. O dispositivo informático como que se torna uma máquinaretórica, exercendo ela mesma o papel de selecionar os elementos mínimos e de combiná-los segundoregras e posições previamente estabelecidas. No caso de Sintext, o escritor (ou conceptor, ou criador)também estaria de certa forma encarregado de perfazer a inventio e a dispositio, mas não mais no nível dossignificantes verbais, a partir de que se produziriam as cadeias de palavras dadas à leitura. O que ele faz,na verdade, é abrir um outro nível de escolha e combinação, quer dizer, um outro espaço retórico, aoselecionar e combinar programas, algoritmos e processos informáticos. Trata-se de uma retórica que exigetanto a cumplicidade de programadores informáticos e visuais quanto o conhecimento dos limites epossibilidades dos programas e das máquinas. E temos aí uma retórica que mescla indelevelmente ossignificantes verbais aos elementos telemáticos, a expressão verbal ao processamento.

Porém, para que o leitor perceba esse deslocamento das operações retóricas por parte do autor da obra, épreciso deslocar também a perspectiva de leitura. De fato, se mantemos a atenção presa apenas às palavrasque vão surgindo, a cada vez que reinicializamos o dispositivo, vemos surgir seqüências de significantesverbais que se ligam de forma coerente, gramatical, mas mantendo certas semelhanças semânticas eimensas similitudes sintáticas. Aparece aí o que já se convencionou chamar de “variações em torno de ummesmo tema”, estrutura de criação tanto explorada na música quanto na literatura (mesmo que emfreqüência bem menor)16 e que, nessa perspectiva, traria de divertido apenas a verificação de que a máquinaimita mais ou menos bem o homem, conclusão que tanto pode ser pensada com indulgência quantoafirmada com desdém. Por esse viés, o computador não seria nada além de um mantra tecno-místico,desprovido de qualquer transcendência ou interesse. Para superar isso que parece ser uma espécie denostalgia da pátria impressa, é necessário que o leitor dê-se conta justamente desse deslocamento daretórica. Ela não está mais circunscrita à seleção e à combinação dos significantes que irão diretamente parao plano expressivo. Ela se desloca para outro plano, o da seleção e da combinação das operações quepermitirão, por automatismos maquínicos e/ou operações interativas realizadas pelo leitor, uma segundarodada de seleções e combinações. De forma muito semelhante, é o que se encontra tanto nos Cent MillesMilliards de Poèmes, de Raymond Queneau, quanto em Litteraterra, de Artur Matuck.

* * *

O espaço telemático do texto eletrônico pode ser visto então como o exercício de uma intersubjetividadedireta em tempo real, à moda da oralidade, sem deixar de trazer esse elemento novo que é a quase-simultaneidade da produção e da circulação do hipertexto (como já defendíamos acima). Mas que não seescamoteiem as diferenças evidentes na dinâmica desse processo: no caso do meio eletrônico, as alteraçõesno campo de sentidos se fazem não diria instantaneamente, mas a tal velocidade que elas terminam por semanifestar de modo evidente, exibindo aos participantes desse processo toda uma cadeia de produção,assimilação, transformação e re-produção de sentidos e, claro, de textos. Por outro lado, a exibição dessecomplexo textual adiciona à leitura linear uma série infinda de percursos outros, fazendo desses textos

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eletrônicos não apenas uma evolução seqüencial, serial e linear de significações e de significantes, mas umaelaboração espacial (ou melhor, como já dissemos, topológica).

Em conseqüência, aquilo que na oralidade ainda era uma imposição do meio de circulação, isto é, a apreensãoseqüenciada, substitutiva e temporal dos elementos dos textos, torna-se agora uma possibilidade de leitura entreoutras, um recorte possível entre vários outros. Em suma, o texto eletrônico parece se colocar, com respeito àtradição oral, mais no sentido de uma sedimentação e menos como uma Aufhebung hegeliana ou comoculminância de um processo evolutivo de teor positivista (essa, muito menos ainda!). Aliás, tal dicotomia entre orale telemático, inerente ao texto eletrônico, espelha outras dicotomias, ou melhor, outras reversibilidades, queimplicam sua aparência dinâmica, seu caráter não somente ambíguo, mas essencialmente indecidível: o textoeletrônico, pelo fato de ser o que é, oscila sem cessar entre textual e hipertextual, virtual e concreto, leitura enavegação, autor e leitor, linguagem verbal e multimeios, centros de significação e gênese rizomática, limite einfinitude etc. Como conseqüência, altera-se o equilíbrio entre virtualidade e concretude no espaço hipertextual, seo comparamos com o meio impresso. Não consigo compartilhar alguns dos juízos de um Baudrillard ou de Virilio,de que o ciberespaço introduziria uma região de absoluta virtualidade (por mais paradoxal que seja a expressão)na produção textual. Como pensar assim, quando aquilo que chamávamos até então de intertextualidade (nassuas várias formas) se apresenta diretamente na tela, estabelecendo uma indistinção irredutível entre o fundo ea superfície desse texto-palimpsesto eletrônico? Isso pode talvez ser mais bem esclarecido quando pensamosem algumas das características que se atribuem com freqüência aos textos eletrônicos: de um lado,fragmentação e multilinearidade (quase sempre mencionadas juntas); de outro, infinitude.

No que toca às primeiras, elas remeteriam ao que parece uma de suas características mais salientes ou, aomenos, àquela que alguns teóricos mais se comprazem em descrever: associa-se a ambas toda a discussãoderridiana acerca de centro e descentramento, construção e desconstrução, a tal ponto que a própria matériado hipertexto parece ficar escondida debaixo de conceitos e preconceitos de toda ordem. Além disso, nenhumateoria do texto que se preze jamais emprestou ao texto uma imagem de linearidade estrita, de produçãomonolítica e unívoca de significações. E todo o esforço teórico das últimas décadas apontou desde cedo paraesse constante ultrapassamento da leitura pelo texto (como aponta Barthes a respeito da obra de Proust, cujoprazer de leitura estaria no fato de que, a cada retomada, deixamos de ler sempre linhas diferentes).

Finalmente, no que diz respeito a limite e infinitude, no ciberespaço, pense-se, por exemplo, na tradiçãoexegética medieval que tentou inutilmente impor amarras teológicas às interpretações dos livros bíblicos.Os limites de cada texto não têm validade definitiva nem mesmo numa mesma leitura, que dirá em várias?!No caso, é assaz eloqüente a imagem do poeta que não conclui seu poema, mas o abandona, mesma coisapode ser afirmada da leitura crítica de obras literárias, sempre entregue a uma provisoriedade ao mesmotempo exasperante e rica, trabalhosa e plural. A não limitação do texto eletrônico não corresponderiajamais a uma infinitude de linguagem materialmente disponível na tela do computador, mas a umaconvergência assimptótica que vai da construção das significações ao horizonte dos sentidos possíveis queas contornam. Isso não implicaria uma impossibilidade de ler, ao contrário: a infinitude potencial do textoeletrônico se materializa por um recorte necessariamente finito na articulação dos significantes, no que elenão se diferencia absolutamente de textos produzidos em outros meios.

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Notas

1 LANDOW, George P. Hypertext: the convergence of contemporary critical theory and technology. Baltimore: The JohnsHopkins University Press, 1992. p. 117. [“Num ambiente hipertextual, uma falta de linearidade não destrói a narrativa. De fato,desde que os leitores sempre – mas particularmente nesse tipo de ambiente – fabricam suas próprias estruturas, seqüências esignificados, eles têm, surpreendentemente, poucos problemas para ler uma história ou ler para uma história (...) a leitura deficção hipertextual proporciona algumas das experiências dessa nova oralidade que tanto McLuhan quanto Ong já haviamantecipado”.] tradução do autor.

2 [“Os programas de ajuda à concepção e à discussão coletivas (...) auxiliam cada intelocutor a se orientar na estrutura lógicada discussão em curso e lhe fornecem uma representação gráfica da rede de argumentos. Eles permitem igualmente a ligaçãoefetiva de cada argumento com os diversos documentos a que se referem, que o fundam, talvez, e formam, em todo caso, ocontexto da discussão. Esse contexto, ao contrário do que se passa em uma conversa, é totalmente explícito e organizado”.]tradução do autor.

3 LÉVY, op. cit., 1993, p. 74, nota 10. [“Com os programas de trabalho em grupo, o debate se volta para a construção progressivade uma rede argumentativa e documental sempre presente aos olhos da comunidade, manejável a qualquer instante. Não se tratamais do ‘cada um em sua vez’, ou do ‘um após o outro’, mas de uma espécie de lenta escrita coletiva, desincronizada,desdramatizada, explodida, como que crescendo a partir dela mesma, seguindo uma multiplicidade de linhas paralelas e, todavia,sempre disponível, ordenada, objetivada na tela. O programa de trabalho em grupo inaugura talvez uma nova geometria dacomunicação”.] tradução do autor.

4 O que remete à organização rizomática de que falam Deleuze e Guattari, sem a objetivação autonomizante que associam a ela; de outrolado, isso também envia à noção de “vizinhança” da topologia matemática e da álgebra linear.

5 O que lembra o fingimento poético de Pessoa: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente, / Que chega a fingir que é dor / Ador que deveras sente”.

6 LÉVY, op. cit., 1993, p. 143, nota 10. [“três pólos do espírito (...): pólo da oralidade primária, pólo da escrita, pólo informático-mediático”]tradução do autor.

7 LÉVY, op. cit., 1993, p. 10, nota 10. [“...as categorias usuais da filosofia do conhecimento, tais como o mito, a ciência, a teoria,a interpretação ou a objetividade, dependem estreitamente do uso histórico, data e situação de certas tecnologias intelectuais.Que me entendam bem: a sucessão da oralidade, da escrita e da informática, como modos fundamentais da gestão social doconhecimento, não opera por simples substituição, mas, sobretudo, por complexificação e deslocamento do centro degravidade”.] tradução do autor.

8 KRISTEVA, Julia. Semeiotike: recherches pour une sémanalyse (extraits). Paris: Editions du Seuil, 1978. p. 217 e ss. [Points].

9 BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris: Editions du Seuil, 1973. p. 22. [Tel Quel].

10 A rigor, esta última expressão é uma tautologia, já que texto se define, em qualquer perspectiva, como um certo campo depossibilidades que se recorta num horizonte de sentidos.

11 [“...os indivíduos da cultura escrita têm tendência a pensar através de categorias, enquanto as pessoas de cultura oral apreendem,inicialmente, as situações...”] tradução do autor.

12 Ambos em LÉVY, op. cit., 1993, p. 105, nota 10. [“O homem ‘nu’, como ele é estudado e descrito nos laboratórios de psicologiacognitiva, sem suas tecnologias intelectuais nem o auxílio de seus semelhantes, recorre espontaneamente a um pensamento de tipo oral,centrado em situações e modelos concretos. O ‘pensamento lógico’ corresponde a um estrato cultural recente, ligado ao alfabeto e ao tipode aprendizagem (escolar) que corresponde a ele”.] tradução do autor.

13 LÉVY, op. cit., 1993, p. 134-135, nota 10. [“...o saber informatizado não visa à conservação idêntica de uma sociedade que vive

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ou que se quer imutável, como no caso da oralidade primária. Ele também não visa à verdade, como os gêneros canônicosnascidos da escrita, que são a teoria ou a hermenêutica. Ele busca a velocidade e a pertinência da execução, e, mais ainda, arapidez e o proposital da mudança operativa”.] tradução do autor.

14 Um exemplo disso está no trabalho que apresentei, no ano de 2000, no congresso da COMPÓS. Disponível em: <> Acesso em: 29ago. 2003.

15 Ao contrário do que afirma freqüentemente Pierre Lévy, a exemplo de um artigo publicado no suplemento Mais!, do jornal Folha deS.Paulo, de 18 de janeiro de 1998.

16 Um exemplo desse uso literário das variações são os Exercices de Style, de Raymond Queneau.

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c o n c l u s ã o s e g u n d atransbordos e reformações do texto eletrônico

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“... je découvre en moi une sorte de faiblesse

interne qui m’empêche d’êtreabsolument

individu et m’expose au regard des autres

comme un homme parmi les hommes ou au

moins une conscience parmi les consciences.”1

Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception

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Excesso e Excessivo

Debordamentos e reformatações podem constituir a forma e a fôrma visíveis e jamais estáveis dos textos emespaços eletrônicos de escrita e criação. Ao menos é o que se pode depreender das transformações sofridasefetivamente pelos corpora textuais que, em espaços concretamente hipertextuais, são dados a ler, comas conseqüentes transformações experimentadas em seus espaços perceptivos, pelos corpos que se colocamem situação de leitores. Ora, é exatamente essa concretude hipertextual que começa a nos dar o alcance ea experiência dos debordamentos e das reformatações, dos transbordos e das reformações. É como se aespessura fenomênica de nosso corpo próprio, esse de leitores empiricamente colocados diante de telas ede procedimentos interativos, encontrasse novas vizinhanças, inéditas superfícies, inauditos volumes em queexercitar nossa capacidade expressiva. Em outras palavras, esses debordamentos e reformatações a quesomos chamados a habitar em nossas leituras traduzem a maleabilidade por vezes surpreendente einesperada dos textos eletrônicos, sua capacidade de acumular detalhes e minúcias, de amealhar pretensasirrelevâncias, de absorver novas regiões, de solapar fronteiras, de permitir novas aparências e outros prazos.Há, inicialmente, um excesso – isso a que chamamos debordamento – que acarreta duas conseqüências. Mas,antes de falarmos delas especificamente, vamos percebê-las e – talvez melhor – apreendê-las com base naobra Antologia Labiríntica. O que se lê nesses hipertextos, tais como essa Antologia de André Vallias? Comoo próprio autor indica, logo na abertura do seu hipertexto:

Para se ler ou talvezleer (de laere, lari)no alemão = vazio:etimologicamente, aquiloque de um campo ceifadopode ser ainda recolhido(aufgelesen): de lesen= catar, separar,ler... ou talvez“Caminar: leer un trozode terreno, descifrarun pedazo de mundo.La lectura consideradacomo un camino hacia...”

De um lado – e temos aí a primeira conseqüência –, essa leitura pode ser a acumulação do inútil: não um“encaminhamento em direção à palavra” (e ao ser), como proporia um Heidegger, mas um caminho emcírculos e sem saídas, iluminando um pedaço muito exíguo do mundo, um rococó eletrônico, umajustaposição de insignificâncias, uma exuberância de superficialidades. Ocorre que, ao pôr em relevojustamente as superficialidades, perde-se toda e qualquer possibilidade de fazer desses debordamentos umacomplexificação das leituras e dos leitores. Essa manifestação do excesso, assim, não levaria a nenhumaprofundamento do objeto a ser lido e do espaço em que se o lê, mas a um aumento inócuo e desordenado

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na extensão de um e de outro, e que se torna, de fato, mero arremedo de profundidade. Para retomar aquestão em termos mais simples (emprestados à lingüística tradicional), pode-se dizer que temos umamultiplicação de significantes admitindo uma produção imediata, simplista e atropelada de significados,sem que uns permitam deambular pelos outros, sem que se estabeleçam movimentos de significação quesejam verdadeiramente plurais. Na verdade, é como se significados e significantes se ignorassemmutuamente, multiplicando-se à exaustão, feito dois jogos de espelhos paralelos e independentes, semnenhuma possibilidade de formar uma terceira imagem, um local intermédio, um espaço dereversibilidades. Esse excesso de significantes e significados remeteria então ao mesmo movimento, àidêntica fôrma, à igual forma, a um ruído monótono e hipnótico, tantra desgastado de uma transcendênciafalha e frágil, um nirvana eletrônico em que a consciência do todo não está nem prevista na lógica deprogramação, nem pode ser inserta no horizonte de leitura. Ou ainda, como se os dois sistemas de espelhos,embora independentes um do outro, marcassem a mesma data: a de um tempo vazio sem vida e semperspectivas, igualados apenas pela mão malévola de um malin génie ocupado em produzir ilusões esimulacros. Mas é claro que não há malin génie algum, afora nossa tendência em ler torto, em ler pouco.

De outro lado – e temos aqui a segunda conseqüência –, esse excesso concreto e imediato do texto emespaço eletrônico pode também estabelecer uma proliferação de significantes e de significados que nãoimpliquem uma fuga cega para diante. Teríamos então a alavancagem de significantes e de significados emdireção a novas possibilidades de expressão, trazendo para o espaço de leitura sempre outros níveis designificação. Tal espaço de leitura pode se tornar, assim, ao mesmo tempo, o espaço de instalação de umcorpo de leitor e de um corpus de leitura, um remetendo ao outro, um lendo o outro. E é importante insistirna concretude desses movimentos, tanto os dos textos abrindo percursos e multiplicando derivas quantoaqueles do leitor, como que levantando ombros e esticando o pescoço em busca de estender a vista paranovos horizontes de significações. Com isso, são outros campos de sentidos que se entreabrem à construçãode distintos percursos de leitura, tal como se vê em Antologia Labiríntica, em que as ligações hipertextuaispré-programadas não dão conta das possibilidades todas de leitura: de fato, nada nos impede de abrirmosduas (ou mais) janelas do navegador, partindo da mesma URL inicial e seguindo em cada janela um percursodiferente, mas sempre comparado, justaposto, inserido à primeira (neste instante, é obrigatório parar de lereste texto e voltar-se para esse outro de que aqui se fala, o texto eletrônico acima citado como exemplo;será possível ver que ao limitado – mesmo que numeroso – das ligações e dos caminhos pré-programadospelo autor vêm-se somar as possibilidades – mesmo que limitadas – dos programas de hiperleitura, semcontar o ilimitado dos gestos e das leituras que a todos nós, leitores, é dado).

Assim, essa imediatez entre os nós colocados um ao lado do outro (pela imposição das ligaçõespreestabelecidas na programação do hipertexto) pode-se perder e se alargar ao mesmo tempo: perde-se aose deixar guiar cega e exclusivamente por uma lógica de leitura rígida e imposta a priori na programação,por um autor ex-machina; alarga-se pela descoberta de um exercício de pluralização que vem acompanhadoobrigatoriamente (para que seja pluralização) de um refinamento da leitura e do próprio leitor.2 Daí anecessidade de fazermos uma distinção entre o excesso e o excessivo. Excesso seria justamente essetransbordo de significantes e de significados, permitindo estabelecer significações coerentes e articuladas aum percurso de leitura dotado de coerências e de lógicas. É o que se pode fazer com o texto eletrônico de

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André Vallias, quando se associa o Voltaire, surgido de repente em uma janela, à Ode a Age de Carvalho,em outra, fazendo com que o “horrible danger de la lecture” do filósofo francês se justaponha às tabelasde verdade da Ode, gerando uma posição de leitura e de enfrentamento com o texto eletrônico,iluminando temas, buscando nos nós da tabela uma imagem a ser fisicamente seguida na seqüência de nósoutros e de ligações que se vão buscar e construir através desse hipertexto.

Excessivo, ao contrário, seria resultado dessa proliferação desarticulada de leituras, de percursos, de ligaçõese de espaços, em que significantes e significados não remetem jamais a significações plurais e articuladas,mas rendem-se à lógica única e exclusiva do ruído, ou seja, da não significação, da vertigem do ir-para-a-frente. Seria, ainda tomando a Antologia Labiríntica, deixar-se cair no labirinto do arbitrariamente fácil,crendo encontrar, por exemplo, nos valores “1” da tabela da verdade alguma indicação para ler o ensaioatribuído a Voltaire. Exercício interessante, revelador, talvez, de um insuspeito ecletismo que faria a honrae a vaidade de certos leitores, mas que nunca conseguiria ir além dos limites exíguos do espaço de leituraem que apareceu e onde parece condenada a permanecer.

Excesso, por exemplo, poderia ser resultado da leitura que começasse com uma busca das reflexões deVoltaire, numa página do Yahoo-France. Daí, chegaríamos a uma outra página, agora com o ensaio inteirodo filósofo francês. Apenas a leitura em segundo (ou mesmo primeiro) plano desse texto ainda não seriaexcesso, mas mera deriva (podendo cair rapidamente no excessivo). O excesso se daria, por exemplo, aoconfrontar a porção do ensaio de Voltaire citada por André Vallias com aquela que não o foi, e tentardeslindar em outras janelas de Antologia Labiríntica algumas ordens ou lógicas paralelas a esse recorte. Aoarbitrário e inequívoco do hipertexto, tal como programado e apresentado por seu autor, estaríamos nosautorizando a estabelecer um recorte outro, um percurso distinto, uma leitura não mais submetida àimediatez das ligações infindáveis, mas possibilitada por um excesso de significantes amarrado de modosespecíficos a um excesso de significados.

Já o excessivo, esse pode estar em toda parte e em muitos gestos. Estaria, por exemplo, nesse fácil transitarentre URLs, acreditando resolver um mistério (o hipertexto de André Vallias) criando um ainda maior. E umoutro ainda maior, chegando a uma leitura que não passa, paradoxalmente, de voracidade e de fastiocombinados de forma a resultar em ruídos sem apontar para quaisquer sentidos, caindo justamente novazio mencionado no extrato da obra acima apresentada.

Em resumo, nessa materialidade proteiforme e maleável que são os textos eletrônicos, é possível encontrar einscrever conjuntos de elementos significantes de modo que eles extrapolem limites, rompam fronteiras,contestem seqüências, subvertam temporalidades, mas sempre buscando uma correspondência multívoca3 comos significados que vão sendo provisoriamente estabelecidos. De fato, pode-se até falar de uma inscrição demovimentos e de devires que vão além da aparência momentânea do texto eletrônico para situar-se, numprimeiro momento, ainda aquém do significado. Num segundo momento, seriam justamente essessignificados plurais que nos permitiriam reposicionar e multiplicar ainda mais os significantes. Nesse caso,estaríamos já entrando no terreno das reformações, das distintas maneiras como vamos dando forma e fôrmaao hipertexto, como que buscando novas maneiras de tecer significantes e formular leituras dentro do espaço

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eletrônico. De certa maneira, é como se transbordos e reformatações retomassem ou ecoassem a dicotomiaacima explorada entre significantes e significados. E, por seu lado, outras dicotomias, em diferentes níveis dohipertexto, podem vir se juntar a essas duas propondo outros movimentos recíprocos (e, repita-se, multívocos):tempo e espaço, real e virtual, obra eletrônica e obra impressa. É como se as formas e fôrmas do hipertextoestivessem ligadas de alguma forma a sua inscrição no complexo espácio-temporal, à maneira como ele sedesenrola diante de nós e na circunstância de nossa leitura; ou ao modo como propõe imagens, simulações ecópias; ou ao jeito como possibilita ligações e/ou linearidades no encadeamento dos significantes.

Variações em Torno de um Tema Mesmo

Reformações e reformatações constituem então algumas das dinâmicas de produção do texto eletrônico, tanto apartir da mecânica própria de sua materialidade proteiforme e protendida quanto das distensões e deslocamentosdo leitor. Expliquemos isso melhor. Na produção de todo texto – qualquer que seja o meio em que ela se dê –,delineia-se um espaço de funcionamento, que é parte virtual, parte concreta. Em outras palavras, parte dele chamaa presença de significantes imediatos, de estruturas identificáveis no nível dos próprios significantes, de significadose referências diretas; outra parte remete a uma abertura das significações, ao esboço de uma fisionomia do campodos sentidos possíveis. Em ambas, com base na especificidade de seu autor, funda-se o que se chamou de estilo, essamaneira de dispor (materialmente) significantes e, ao mesmo tempo, de fazer com que nos dirijamos de dadamaneira (virtualmente) ao campo geral da língua. Todavia, essa conjunção entre um e outro, quer dizer, entre omaterial e o virtual do texto, se dá de maneira diferente, dependendo do meio – oral, impresso, eletrônico – emque ele é produzido. No meio impresso, a obra literária pende para um texto em que as virtualidades acabamassumindo a maior parte desse espaço de construção de significações. Já no texto eletrônico, tal espaço é povoado,desde o início, pela evidência imediata e pouco sutil de ferramentas, de processos, de referências, de produtosoutros, a tal ponto que se poderia até cair na armadilha de dizer que o texto eletrônico é mesmo o primado doimediato, do concreto, da presença. Nada disso! Esse incremento na presença de materialidades imediatas, designificantes não implica necessariamente uma diminuição correspondente nas virtualidades do texto, isto é, namaneira como ele permite olhar o campo dos sentidos possíveis. A bem da verdade, ambos os meios aindacontinuam a tecer suas malhas de maneira específica e própria ao autor e à obra, a dispor nós onde a leitura podeser parada por alguns momentos, e com base neles propor certos caminhos de leitura.

É assim que as reformas e reformatações do texto eletrônico, por resultarem de modificações em suaprópria base material, deslocam, de modo importante, isso que chamamos estilo. Nesse sentido, estilo deixade ser apenas o modo como se repetem, mais ou menos, as disposições de significantes e os percursospossíveis de significações. Antes disso, estilo passa a ser também o modo como se produzem possibilidadesde geração de significantes, isto é, a maneira como as linguagens de programação fornecem bases ecaminhos para as linguagens outras (verbais, visuais, sonoras etc.). Se um soneto, por exemplo, gerado porcomputador parece paupérrimo diante de um outro, cometido por um Vinícius de Morais ou por VictorHugo, é porque estamos comparando coisas incomparáveis. A título de exemplo, basta examinar os doispoemas a seguir, tirados do sítio do grupo Alamo4 e gerados automaticamente por computador, sob certascondições de contorno estabelecidas por seus criadores. Trata-se, na seqüência, de um soneto e de um triolé:

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Poema 1

Le Dormeur du Jardin

C’est un roi de chimère où passe une masureEmbrassant largement aux ombres des jardinsD’esprit; où le désir de la tristesse pureFond: c’est un poudreux jardin qui parle de parfum

Un enfant sombre, tête obscure, flamme fraîcheEt la nuque brillant dans le court étang blondRit; il est incliné dans l’ombre, sous la brèche,Sombre, dans son roi droit où la ténèbre fond.

Les pieds dans les secrets, il rit. Sa tête pâleSortirait un bonheur placide, il souffre, il râle:Nature, calme-le simplement: il sourit.

Les haillons ne font pas revenir sa bouteille;Il rit dans le pâté, la chair sur sa merveille,Placide. Il a cinq pieds calmes au regret gris.

Poema 2

Une seconde s’envolaitpour la minute d’une étreinteet l’on s’étrangle en des gouletsUne seconde s’envolaitL’artiste rêve au chevaletles voyelles tentent des feintesUne seconde s’envolaitpour la minute d’une étreinte

Não quero, no momento, levantar nenhum juízo de valor sobre essas duas obras geradas automaticamente.O que importa é chamar a atenção para o fato de que, freqüentemente, o estilo de seu autor se revelamuito pouco nesse nível apenas verbal. Ele se mostra muito mais clara e profundamente no modo como semanipularam os significantes, reunidos em bancos de dados e, a seguir, combinados por bases de dadosespecialmente desenvolvidas para essa obra específica. De fato, sua leitura, ou seja, a construção do texto,passa a ocupar mais um espaço, em que são gerados seus possíveis sentidos, e não apenas (ou não mais) aspossibilidades de significações a serem desenvolvidas pelo leitor. Paul Ricoeur afirma que “fiction et poésie

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visent l’être, non plus sous la modalité de l’être-donné, mais sous la modalité du pouvoir-être.”5 No que serefere às obras digitais, eu diria que ocorre uma conjunção entre ambas as esferas: o “être-donné” ésubmetido a uma instância prévia do “pouvoir-être”, isto é, o espaço das variações possíveis vai além daprodução de significados e passa a ser uma instância determinante da materialidade da obra. O que ela é,por si mesma, não deriva mais unicamente de uma seqüência predeterminada de significantes, mas semanifesta no modo como ela já é, desde o início, um poder-ser-assim. De fato, o ciberespaço já foi descritoinúmeras vezes como um espaço em simulação permanente, em que as diferenças entre simulação erealidade imediata nem teriam mais lugar, devido a um pretenso predomínio avassalador daquela sobre esta.O ser da obra está não apenas nas simulações, mas nos mecanismos com que se constroem espaços epossibilidades de simulação. Em outras palavras, a realidade da obra não se funda em nenhuma configuraçãomaterial definitiva (isso não é mais essencial para delimitar o que seria seu ser), mas nos processos telemáticosem que, por repetidas vezes, se retoma um mesmo ciclo de interações entre o leitor, as ferramentas deprogramação e os resultados provisoriamente disponíveis na tela. De toda maneira, esses procedimentos nãosão novidade alguma na literatura e já foram utilizadas na tradição impressa. Como afirma Jean Clément,

“La tentation de l’infini a toujours travaillé les écrivains, notamment sous les espèces de la combinatoire. Celle-cis’exprime d’abord dans la littérature orale par la prolifération des variantes et des versions. Elle se poursuit dans lalittérature médiévale avec la multiplication des cycles narratifs. Au XIXe siècle, elle est au coeur du projet balzacien”.6

A salientar, talvez, apenas o fato de que, se se trata de uma “tentação do infinito”, ela acaba configurandoum processo de multiplicação de significantes que, mesmo se inspirando no infinito, nunca tem comochegar a ele. E, nesse caso, talvez o exemplo mais à mão sejam os 99 Exercices de Style, de RaymondQueneau. Podem-se também citar as 15 variações produzidas por Georges Perec, a partir de Gaspar Hauser,de Verlaine, utilizando o que Gérard Genette chama de “príncipe machinal”.7 De fato, se há, como afirmao mesmo Genette, um caráter imprevisível nos resultados desse procedimento, saliente-se que aimprevisibilidade diz respeito aos significantes produzidos, ou ainda, à maneira como estes se combinam, àseqüência em que aparecem. Os processos de geração desses imprevisíveis não são, eles próprios, nem umpouco imprevisíveis. No caso dos hipertextos eletrônicos, eles constituem um espaço em que se produzemvariações dos significantes, a partir dos mesmos procedimentos telemáticos, fundamentados nos mesmosmaquinismos e nos mesmos bancos e bases de dados.

Nesse ponto, é importante retomar a distinção, já abordada, entre materialidade e objetividade. Por ser oque é, essa literatura em meio eletrônico se investe e se reveste de uma materialidade a ser (re)construídaincessantemente. Ora, isso não implica, de modo algum, que tenhamos diante de nós uma objetividade que,por estar em constante mudança, não tem como ser delimitada e investigada. Em outras palavras, em lugarda ilusão de uma obra pronta, acabada e estabilizada, é necessário mapear os processos de materializaçãodessa obra, discutir o que seria sua objetualidade. Sobre esse ponto, Roger Chartier afirma que:

“La révolution du texte électronique (...) à la matérialité du livre, elle substitue l’immatérialité de textes sanslieu propre ; aux relations de contiguïté établies dans l’objet imprimé, elle oppose la libre composition defragments indéfiniment manipulables...”8

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A retificar, talvez, a afirmação de que haveria aí uma livre composição de fragmentos. De forma alguma!Os fragmentos, ou melhor, os fragmentos (de) significantes, são postos em circulação a partir de processosmaquínicos, procedimentos automatizados e automatizantes, todos eles perfazendo condições decontornos e de produção de significantes que se somam às próprias condições de contorno que línguas elinguagens sempre impõem à produção de quaisquer significações. Nessa perspectiva, então, não haveriapropriamente “livre composição de fragmentos”, mas uma conjunção de fragmentos guiada por lógicas eretóricas próprias do meio eletrônico. Todavia, deve-se destacar a argúcia de Chartier, acentuando adesmaterialização da criação eletrônica,9 sem que isso seja acompanhado do velho (e superficial) discursosobre perda de objetividade e desubjetivação das artes. E a maneira como são conjugados esses significantes(termo mais apropriado e mais preciso que o de “fragmentos”) vai muito além do que sempre coube noespaço da página manuscrita ou impressa. Pode-se falar de uma construção teleológica dos significantes natradição impressa, mesmo que ela não se faça acompanhar obrigatoriamente de uma (outra ou mesma)teleologia na armação das significações encetada pelo leitor. No meio eletrônico, o leitor se desloca aomesmo tempo em que põe em rotação a ciranda dos significantes, e a leitura remete constantemente a esseprocesso de avançar, retornar, retomar, seguidas vezes, embrenhando-se não apenas nas entrelinhas dossignificantes verbais, mas nos desvãos que as linguagens de programação deixam (propositadamente ounão) para equívocos, acasos, erros premeditados, caminhos tortuosos, becos sem saída etc.

Como já deve ter ficado claro, a iteratividade é um processo que faz parte das lógicas e linguagens deprogramação que estão na base de todo texto eletrônico. De fato, ela constitui o ponto central da Máquinade Turing, procedimento fundamental que define tanto o funcionamento dos computadores quanto a própriacibernética. Mas a iteratividade é também um processo que pode ser explicitamente incorporado ao espaçode leitura de um certo tipo de texto eletrônico, isto é, aqueles que exigem repetições freqüentes para chegara resultados diferentes, a topologias de significantes ligeiramente distintas das anteriores. A obra Passage, dePhilippe Bootz, é um bom exemplo. Sem avançar muito em sua análise – coisa que preferimos deixar àcuriosidade de nossos muito poucos leitores –, podemos dizer que sua leitura se faz justamente na pacienterepetição de entradas e saídas do sistema. A cada passagem, nos diz seu autor, o sistema de programaçãoincorpora dados que alteram para sempre alguma variável da obra, de forma que a entrada seguinte traz parao leitor uma outra topologia no processamento dos significantes. Em outras palavras, o acesso à armação dossignificantes verbais depende estreitamente dos significantes telemáticos (interações, programações eprocessamentos). Assim, a leitura de Passage é um percurso múltiplo, parcialmente indefinido, infindo (masnão infinito), em que as interatividades programadas pelo autor e executadas pelo leitor somente adquiremsentido quando repetidas ad libitum, quase à exaustão, trazendo pequenas variações – muitas delasimperceptíveis, mas ainda e sempre variações –, no percurso quase mesmo das leituras anteriores.

Resumindo: Dicotomias e Reversibilidades

Transbordos e reformações também se alimentam das dicotomias do ciberespaço, como aquelas entre reale virtual, ou entre espaço e tempo. Mas, novamente, talvez melhor seja dizer reversibilidade em vez dedicotomia, já que podemos discernir aí uma dupla operação de realização do virtual e de virtualização do

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real, de um lado, e de espacialização do tempo e de temporalização do espaço, de outro. Em linhas gerais, oque se deve discutir a esse respeito é a maneira como a materialidade dos hipertextos eletrônicos se altera, sedesvanece e se permite percursos e desenhos de leitura e de navegação que colocam em xeque as fronteirashabituais entre real e virtual, entre espacial e temporal. E, mais, para a criação literária (e para toda arte queainda vislumbra alguma chance de aprender com a literatura), essas possibilidades todas parecem apontarpara outro duplo movimento, o de versificação da prosa e de prosificação do verso, como indicaremos maisadiante. São dicotomias ou reversibilidades que moldam a leitura no(do) espaço eletrônico, permitindoentendê-lo sob a perspectiva de lógicas plurais e dinâmicas, sempre assentadas numa certa fisionomia sua, essado transbordo dos significantes e dos significados, mas sem reduzir-se a fórmulas prontas, a essências ideais,ou mesmo a gestos desprovidos de temporalidade ou prenhes de relativismo. Tais duplicidades podem ser omais próximo a que se pode chegar de uma racionalidade plural a ser associada aos textos eletrônicos.Cumpre, então, entender como essas diferentes reversibilidades – transbordamentos e reformatações, real evirtual, espacial e temporal, eletrônico e impresso, chegando a poesia e prosa – podem se corresponder, seimbricar, e dar margem a leituras que, não sendo aleatórias nem descontextualizadas, permitem ler, além doscorpora textuais e dos corpos leitores, a própria leitura em espaço eletrônico.

Para falar brevemente de tempo e espaço, convém assinalar o fato de ter-se tornado comum, nas duasúltimas décadas, a referência a um tempo permanentemente presentificado, tornado disponível como ummapa em escala 1:1, aquele dos cartógrafos de que falava Jorge Luis Borges, em Del Rigor en la Ciencia:

“Les nouvelles technologies nous transposent ainsi dans une zone intermédiaire, une zone de transitdevenue permanente, nous permettant d’être là et potentiellement partout dans un temps que l’on peutenregistrer et stocker, un présent figé. Nous sommes donc dans un état ‘nomadique’ jouant avec le tempset l’espace en glissant d’une ambiance-virtualité à l’autre.”10

Tais descrições de um eterno presente não são moeda corrente apenas quando se fala do ciberespaço. Defato, parece mesmo lugar-comum disso que chamam de pós-modernidade. Todavia, falta alguma coisa a unse a outros, tanto aos arautos da pós-modernidade quanto aos estudiosos do ciberespaço: a percepção de quetambém a experiência do espaço acaba sendo temporalizada, o que implica sua abertura ao fluxo, ao devir.Espaço então não seria mais a condição de possibilidade de os objetos serem percebidos, mas uma seqüênciade loci em que se viaja, sempre adiante, sem condições de retornar a sua pretensa origem, uma vez que seseguiu em frente, tendo chegado a outro nó na rede de significantes potencialmente infinita do ciberespaço.Nesse caso, estaria confirmado esse estado nômade do sujeito que ainda se atreveria a ciberespaços, aciberpercursos, a ciberleituras. Sendo assim, o espaço perceptivo cederia vez e lugar ao espaço dossignificantes, dos automatismos, das interatividades mediadas pelas interfaces digitais. Em lugar dos corpos,os corpora; em vez dos gestos que inauguram perspectivas do mundo, bancos e bases de dados. Mas apergunta que se faz é: até que ponto se pode abstrair a experiência do corpo próprio, quando nos colocamosdiante da tela? Em outras palavras, será que a hipertrofia do texto eletrônico e do ciberespaço implicanecessariamente a atrofia do sistema corpo-percepções-mundo? É o que se poderá entender, ao avançar umpouco mais na discussão das relações entre virtual e real, por intermédio de nossa e muita ciberliteratura.

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A leitura de tais hipertextos eletrônicos – disso que ainda pode vir a ser, então, aí sim, com todas as letras, umaciberliteratura – parece implicar uma conjunção ou justaposição ou confronto entre a pluralidade do real e osinúmeros simulacra de que se faz o virtual. Mas, freqüentemente, ocorre uma sutil infiltração destes naqueleoutro, e a descrição metafórica dos simulacra contamina e limita os mapeamentos possíveis do real. Dito deoutra maneira, a metáfora pós-moderna de jogo11 – no caso, de texto ou escrita como jogo – vem sobrepor-seàs antigas metáforas de mundo como escrita e, conseqüentemente, como texto-a-ser-lido. E é importanteassinalar que não se trata de um avanço ou alteração no modo de perceber o mundo. Muito diferente disso,trata-se de um deslocamento que poderíamos dizer ontológico: na verdade, não é a descrição metafórica deuns – os simulacra – que vem enriquecer ou modificar a descrição metafórica de outro – o mundo daspluralidades possíveis, vulgarmente chamado real –, ao contrário, é o próprio parecer dos primeiros que éusado para descrever, qualificar e delimitar o ser do segundo. E essas reflexões param justamente aí, elas nãoaceitam nem incluem o caminho de volta, essa reversibilidade de que tanto temos falado: não há condiçãonem ocasião para que o ser de um venha envolver e iluminar o parecer dos outros, dando a estes, agora sim,uma existência autônoma que vá além do arremedo e da aparência. Nesse caso, por mais que se multipliquemos transbordos e as reformatações do texto eletrônico, este fica sempre a distância de ser alguma coisa,acompanhando de longe algum objeto ou gesto ou expressão, como que carregando a vergonha de simularou repetir sem ser; sendo sempre outra coisa que não aquilo para que aponta, estando sempre onde não seencontra, dirigindo-se constantemente para o outro lado do próprio movimento. É justamente nessemultiplicar das aparências – operação levada muito longe pela capacidade de processamento do meio digital– que nascem os equívocos no modo de compreender os simulacra. Quando se pensa na própria operação demultiplicação, por exemplo, quando se faz 7 x 8, o resultado, 56, não é apenas um terceiro signo algébrico,mas também uma pluralidade que carrega em si tanto o 7 e o 8 quanto o produto deles. É esse o caráter queacima atribuíamos ao real: ele é múltiplo e é também plural (e ressalte-se que não se trata de sinônimos). Nocaso dos simulacra, teríamos apenas um terceiro significante, o 56, tentando acompanhar de longe – masperdendo irremediavelmente – o 7 e o 8, fazendo de conta, ainda e sempre, que o produto remeteria dealguma forma aos multiplicandos, sem estabelecer, no entanto, qualquer caminho que levasse até eles.

Assim, parece importante distinguir radicalmente as multiplicidades de significantes que se produzem nociberespaço, das pluralidades do sistema corpo-percepções-mundo. As primeiras resultam dasiteratividades e interatividades do meio eletrônico e apostam na repetição de simulacros como meio derecriar de longe o real, apontando para ele, mas, cautelosamente, mantendo distância prudente (dele ede si próprio), apoiando-se numa multiplicação de significantes que tenta simular ou arremedar aspluralidades do real, sem atingi-las nunca. Já estas últimas apóiam-se diretamente, mais do que num sergeral de tudo e de todos, no estar-no-mundo, nesse ato que é constitutivo de meu ser ao mesmo tempoem que expressa minhas perspectivas do mundo vivido, em que enuncia minhas limitadas percepções dessemundo e anuncia a pluralidade das outras, justamente essas pluralidades que tornam possíveis minhaslimitadas especificidades. O fato é que tais concepções que apontam para uma dissimulação completa doreal assentam-se numa compreensão limitada do mundo vivido, como se este correspondesse a uma partedo espaço das linguagens, o das seleções e combinações experimentadas mais como jogo e menos comogesto expressivo. Ou como se mundo fosse metáfora de linguagem – e não, ao contrário, percebendo quelinguagem é que é metonímia de mundo.

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Talvez caiba ainda uma crítica a essa compreensão linguageira, ou melhor, limitadamente linguageira domundo e das pessoas. Por trás dela, há um pressuposto já velho – da idade da sofística –, de que tudo serialinguagem e nada poderia haver nem ser dito fora dela. Se o pressuposto parece correto, as conseqüênciasque se tiram dele não o são necessariamente: se tudo é linguagem, isso não significa que tudo seja metáforaou jogo, como querem alguns arautos de pretensa pós-modernidade. Não se pode esquecer que todalinguagem é não apenas jogo, mas também e sobretudo gesto expressivo e que, como tal, enuncia eanuncia a inauguração do ser-no-mundo, a ligação direta entre o estar-no-mundo e a especificidadeirredutível de cada indivíduo. Nesse caso, não se pode apenas dizer que metáforas e jogos sejam elementosque descrevem a totalidade do espaço das linguagens e, portanto, descreveriam também o funcionamentodo real. Esquece-se de que linguagens são gestos expressivos e que o resultado delas não está apenas numcerto modo de produzir, selecionar e combinar significantes. Há um resultado que já se coloca ainda antesdessa produção de significantes e diz respeito justamente à fundação de um espaço expressivo, esse espaçodos sentidos possíveis, essa fisionomia do mundo que eu, indivíduo, posso ver a partir de meu corpo próprio.E o que ele me dá a ver é aquilo que nada ou ninguém me daria melhor. É como diz Caeiro:

“Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeiaPorque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”.12

Todavia, sem a pluralidade das perspectivas dos outros – quer dizer, sem o Tejo distante, metonímia dos riosoutros e metáfora de todo e qualquer outro –, minha visão específica do real, meu estar-no-mundo nãoteriam como estar, nem como aparecer, nem como ser expresso. É necessário, em suma, ir do ser e dossentidos gerais do sistema corpo-percepções-mundo – para onde apontam os gestos expressivos – aoparecer dos simulacra, justamente para dar a estes algum sentido que vá além do mero jogo, da simplessimulação, da brincadeira inócua. É necessário dotar as iteratividades, quer dizer, a multiplicação designificantes no ciberespaço, de um movimento que aponte para as pluralidades do mundo vivido. Não setrata de resgatar as estéticas clássicas da mimese e espalhar a ilusão de que os simulacros são acesso indiretomas inteiro a esse mundo vivido. Trata-se, isso sim, de resgatá-los da banalidade que os ronda e ameaça,para fazer deles um dos modos de acesso às experiências e aos gestos expressivos, estes que nos colocamem contato com o mundo diverso e plural das coisas e das pessoas outras.

Então, quando se pergunta – como o faz Marie-Laure Ryan – se haveria um mundo para cada texto, ou se umdado texto projetaria um ou vários mundos,13 o que está por trás dessas questões é justamente a idéia de queos simulacros associados a cada texto, ou derivados de cada leitura, serviriam para justapor camadas, níveis eelementos significantes ao mundo vivido, e que essa seria a única maneira de ler e entender este último. Oresultado é que eles acabariam por escondê-lo quase que em definitivo, instalando no lugar da percepção asimulação – não mais o mundo-como-ser, mas o mundo-como-parecer. E sabemos todos que, no meioeletrônico, a capacidade de simular está diretamente ligada não só (ou muito menos) à capacidade de reiterarsignificados, mas às possibilidades de repetir processos de produção de significantes. No caso, os textoseletrônicos são vistos e, talvez, também concebidos como espaços de multiplicação e de transbordamentos designificantes sem que se tome, muitas vezes, o cuidado de fazer com que espaços de leituras e significantes aserem lidos sejam inseridos numa dinâmica de pluralização (e, repita-se, não apenas de multiplicação).

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Assim, é a partir dessas diferenças entre pluralização e multiplicação – conseqüências diretas dos embates ouconjunções entre real e virtual –, que os textos eletrônicos podem ganhar mais relevo. A esse respeito, analisemosa obra O Livro Depois do Livro, de Giselle Beiguelman. Já no que a autora chama de epígrafe, o plano de fundo eo plano de escrita proporcionam uma algaravia de letras muitas e palavras algumas, apontando, desde esse início,como diz Joan Brandt, para a “disrupção da função normalmente referencial ou mimética da linguagem”.14 E,como diz ainda a mesma Joan Brandt, um eventual princípio unificador de um poema, mesmo na tradição oral ouna escrita, não estaria, então, em qualquer relação entre o texto produzido na leitura e alguma referência concretae externa, mas nas relações entre esse texto que se lê e outros textos já lidos ou a serem lidos. No que se refere aomeio eletrônico, e no caso específico dessa obra de Giselle Beiguelman, o título enfatiza justamente não ummundo de coisas e gentes, que estaria depois ou no exterior do livro, mas para livros outros que estariam semprealém (e, conseqüentemente, aquém) desse primeiro. No que toca à ligeira arbitrariedade desse princípiounificador, ele não desaparece, claro, mas ganha contornos concretos e procedimentos imediatos: o prefácio daobra mascara e confunde os significantes verbais, mas deixa materializado na tela o percurso que, levando de umapágina eletrônica a outra, pode resultar naquela terceira página de que falamos acima no capítulo O TextoEletrônico como Produtividade. De fato, em O Livro Depois do Livro, há alguns percursos e construções queapostam nessa possibilidade. Após o prefácio, aparece uma seqüência de frases, uma espécie de discurso deaparência teórica15 hesitando entre subordinação e coordenação, assim como vacila entre uma significação possívelou desejável reunindo todas as frases e uma justaposição pouco discursiva entre cada uma delas. E talvez sejajustamente essa indefinição entre artístico e teórico,16 esse vai-e-vem entre discursivo e enumerativo que permitetecer um espaço de leitura apontando para pluralidade e/ou multiplicidade. Mas ressalte-se que a partida não estáganha por antecipação. Não é possível escolher um ou outro, ao menos no ponto de leitura em que me encontro,ou nos espaços expressivos todos que se pode vislumbrar a partir dessa obra de Giselle Beiguelman.

Mas, continuando, pode-se perceber nesse seu movimento expressivo que O Livro Depois do Livro apontacontinuamente para espaços expressivos outros, mesmo que quase todos tenham como fio condutor essediscurso fundado em frases de teor e feitio teórico, entremeadas, aqui e ali, por comandos e ícones dainformática. É assim que algumas das propriedades mais evidentes do meio eletrônico são sobrepostas aossignificantes (verbais e visuais): movimentos, cintilações, dissoluções etc., tudo resultando na sensação deuma multiplicidade de objetos que ainda não nos dá a certeza (ainda não!) de estarmos nos encaminhando,por meio desse Livro, para uma pluralidade de sentidos e significações em que os gestos expressivos doleitor, mesmo sendo legião, não pululam necessariamente numa entropia maior ou menor. Aliás, os graus eos modos com que diversos níveis textuais nele se podem esboçar, ao contrário do que indicaria a ambiçãoda autora – de fazer de seu livro a construção física e a constatação imediata do Libro de Arena, de Borges–, ainda guardam as (inevitáveis!) limitações impostas pela situação imediata do leitor-em-leitura, limitaçõesque não teriam jamais como ser ultrapassadas. Ao virtual das codificações e das programações telemáticasda hiperleitura vêm se conjugar as condições imediatas do leitor real. De fato, os mundos-lidos no e pelomeio eletrônico não têm outros sentidos que não aqueles que lhes outorga o mundo-vivido. E, de formacorrespondente, sem a multiplicidade (iterativa ou de outro tipo) dos hipertextos eletrônicos, estaríamossempre submetidos ao assombro sagrado diante de uma pluralidade incompreensível.

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Enfim, sem que se instale uma verdadeira reversibilidade entre real e virtual, não se vai além da dicotomia, daoposição entre um e outro. E, nesse caso, ao se tentar ir de um a outro – isto é, dos simulacros para o real –,o que se faz, na verdade, é um percurso fechado em si próprio e vedado a tudo e a todos, limitado ao pior deum e de outro (um relativismo que se torna absoluto), uma volta ao redor do quarto que nunca será viagempara fora de si. Muito embora se possa cultivar a ilusão de que se avança no conhecimento do mundo, a partirdos simulacros que se produzem dele em profusão, o que se tem, na verdade, é apenas um faz-de-conta quesomente convence alguns pela quantidade e pela velocidade com que vai produzindo significantes sem maissignificação possível, sem apontar para sentido algum, sem permitir nenhum espaço onde se exercitem e seexerçam gestos expressivos compartilhados. Como se o tabuleiro – ou seja, o meio eletrônico, com suasferramentas e processos telemáticos – pudesse já representar todo o jogo, ou como se este se reduzisse àspeças e às regras, podendo passar perfeitamente sem os jogadores e as jogadas. Ou ainda, como se a repetiçãoincontrolável e quase automática de simulacros e simulações, nesse ciberespaço de telemáticas quantidades,se impusesse per se. E, se volto à metáfora do jogo, é justamente para mostrar que até mesmo ela é tomadae entendida de forma insuficiente e, no mais das vezes, simplista. É necessário – repito – exercer essareversibilidade entre um e outro, tornar os simulacros e a própria virtualidade uma das maneiras não de acessodireto ao real, mas de expressão no/do real; do mesmo modo, é preciso fazer do real um movimento em quese exercitem posições e perspectivas, mapeando significações, tentando sentidos, propondo significantes,repetindo e alterando os dados e as posições de si, como nos processos de tentativa-e-erro, acima descritos, eque não são nada mais nada menos do que o exercício de uma existência diretamente implicada no mundo ecom outras pessoas, o exercício de uma expressão que é vital e imediata, por ser plural, limitadamente plural.

Tais reversibilidades várias – como essas entre real e virtual – permitem chegar a outras dinâmicas deelementos, expressões e categorias reversíveis. No espaço mais geral das textualidades – nosso campoespecífico e privilegiado de investigação –, podemos tomar as categorias sugeridas por Genette para entendere aprofundar melhor essa questão. É possível falar aí de uma textualização geral das instâncias metatextuais.Em outras palavras, as categorias textuais seriam elas também objeto de interferências e reversibilidades. Osdiferentes tipos de transtextualidade se colocariam como nós dentro de um espaço mais geral, podendo seraté mesmo chamado apenas de espaço das textualidades. O mesmo ocorreria também com os gênerosliterários, que não só mapeariam um seu espaço dos gêneros, obviamente, mas também permitiriamcorrespondências, correlações e fisionomias de variada fatura e jeito – como ocorre sempre nessaespacialidade que não se limita mais à geometria já bem conhecida das três dimensões e do tempo irreversível–, dando a experimentar proximidades e vizinhanças até então insuspeitas ou improváveis, como aquelasentre prosa e poesia. Tomando então o que diz o próprio Gérard Genette, podemos ler: “... il ne faut pasconsidérer les cinq types de transtextualité comme des classes étanches, sans communication ni recoupementsréciproques. Leurs relations sont au contraire nombreuses et souvent décisives”.17 Na seqüência, ele cita quatrodessas relações hipertextuais – hipertextos alógrafos; hipertextos autógrafos com hipotexto autônomo;hipertextos autógrafos com hipotexto ad hoc; hipertexto com hipotexto implícito –, sem que nada nos impeçade ir além e propor um segundo nível de relações, isto é, nas possíveis relações entre aquelas relaçõesprimeiras. A partir disso, podemos pensar não apenas na produção de (ou na construção de referências a)diversos e inúmeros hipotextos, a partir das ferramentas e processos que nos permite o meio eletrônico. Éigualmente legítimo conceber processos de geração de hipertextos (entendido este termo na acepção mais

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específica que lhe dá Genette), em que os objetos textuais – resultantes agora das diferentes interações(homem-homem, homem-máquina, máquina-máquina) e das repetições em alucinante velocidade – sejamusados não como textos, mas como maneiras de colocar significantes em rotação, produzindo textos.

Tentando esclarecer melhor isso, pensemos numa relação entre uma obra A e uma obra B, digamos, porexemplo, os poemas de Baudelaire e os sonetos de Rimbaud. No caso, trata-se de ir além do que propuseramos membros do Alamo, com a construção automática de sonetos de sintaxe rimbaudiana com umvocabulário baudelairiano (ou vice-versa). E, para isso, pode-se pensar na eventualidade de a relação entreuns (poemas de Baudelaire) e outros (sonetos de Rimbaud) ser ela própria uma relação hipertextual, deforma que a construção do objeto textual seja mais complexa do que o cruzamento de vocabulário de umautor com estruturas sintáticas típicas de outro. Assim seria possível imaginar a construção de um grandebanco de dados – claro que não a infinda Biblioteca de Babel de Borges, mas tão grande que apenas asmemórias dos computadores dariam conta desse jogo de interferências e de inferências. Nele, os elementosde um e outro hipotexto seriam efetivamente compostos, de todas as maneiras possíveis, mas colocadosdiretamente na memória do computador, sem acesso imediato do leitor (e nem este teria condições físicaspara armazená-los todos); num segundo nível de construção, o leitor poderia, então, usando ferramentasde busca motivada, ter disponíveis na tela os poemas rimbaudianos que fossem dotados de uma certafisionomia predefinida, como uma dada fôrma (por exemplo, lipogramas casuais, ou seja, poemas que nãoteriam em nenhum verso uma certa letra).

Outra possibilidade – essa, sim, fazendo uso da reversibilidade entre prosa e poesia – estaria na utilização degrandes quantidades de significantes verbais, submetendo-os a operações de armazenamento, catalogação,seleção e organização de que apenas as ferramentas telemáticas podem dar conta. O que sugiro é, porexemplo, algum romance que tenha sido escrito (aparentemente) da maneira mais tradicional possível, ouseja, seguindo pretensamente os ditames e limites da tradição impressa. Todavia, seu autor utilizou um dadorecurso de escrita que, mais do que um traço estilístico, pode tornar-se fio condutor de um trajeto de leituraque não tem mais como ser realizado fora do meio eletrônico: várias passagens foram redigidas de formamuito similar, algo entre um autopastiche e uma autocitação. É claro que a significação de cada uma delas vaiestar diretamente associada ao trecho do romance em que se encontra. Mas é claro que essa significaçãotambém estará diretamente ligada à maneira como ela se relaciona às outras, às transformação que se podemver de uma a outra. Teríamos, então, várias possibilidades de leitura, aproveitando um recurso extremamentesimples e imediato, que é a exibição em estrutura de tópicos, como se encontra num processador de textocomo o Word®. Nesse caso, não estamos aqui propondo nada que se assemelhe aos poemas em prosa, de largatradição nas literaturas ocidentais ao menos desde Baudelaire. Nem é caso de se retomar certo tipo deintertextualidade, como as que se verificam entre os poemas de Magma e alguns contos de João GuimarãesRosa (espalhados em várias obras). O que se quis com esse exemplo foi propor um mecanismo de leitura quetraga para a prosa o paralelismo que marcou, desde a literatura medieval, nossa tradição de poesia noOcidente. Em outras palavras, o que se deseja é fugir da seqüência linear de significantes, mas sem cair nocasual ou no aleatório; é estabelecer no todo do romance uma espécie de ritmo longínquo, de baixíssimafreqüência, mas correspondendo, de alguma maneira, à alta freqüência dos versos que se sucedem em ritmovertiginoso num poema (mesmo quando se trata de versos mais extensos, como os alexandrinos).

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Em suma, ao vertiginoso do paralelismo da poesia, é agora possível pensar numa morosidade de um ritmoromanesco. Não o ritmo da dicção do narrador, mas, agora, o ritmo com que sua prosa se dispõe ao leitor.Todavia, este somente terá como detectá-lo, ou melhor, inseri-lo em algum campo de sentidos, para aíconstruir significações plausíveis, se utilizar alguns dos instrumentos informáticos (nesse caso, a exibição emforma de tópicos, estabelecendo diferentes níveis para a obra, com acesso visual, pelos próprios níveis, oupela ferramenta de busca). Por isso podemos dizer que tal mecanismo, se construído em papel, traria asmesmas dificuldades (ou melhor, as mesmas impossibilidades) dos Cent Milles Milliards de Poèmes, deQueneau. Ele necessitaria de tantas e tais dobraduras nas folhas que elas teriam de ser um origami emquatro ou cinco dimensões para dar conta do que pode ser lido, montado, desmontado e remontado deoutra forma, na tela do computador. Apenas nosso trabalho de desmontar a lógica tecnicista e limitantedos programas e das máquinas é que possibilitaria essa abertura de processos, de maquinações e dedispositivos em direção à pluralidade dos sentidos. É apenas nesse caso que se ultrapassam verdadeiramenteas linguagens de programação, para constituirmos uma linguagem artística por excelência.

* * *

Enfim, uma conclusão, à vera, mesmo que não em definitivas palavras, é o que falta e o que resta a fazer.Mas será sempre assim. Ou, então, que se volte ao início deste texto. Sendo início entendido por qualquerponto ou deriva passível de leitura.

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Notas

1 [“...descubro em mim uma espécie de fraqueza interna que me impede de ser absolutamente indivíduo e me expõe ao olhar dos outros,como um homem entre homens ou, ao menos, como uma consciência entre as consciências”.] tradução do autor.

2 Refinamento diretamente ligado a um conhecimento que só pode ser complexificação, no dizer de Bachelard.

3 Em oposição às correspondências biunívocas, que remetem à estrutura binária da linguagem de máquina.

4 “Atelier de Littérature Assistée par les Mathématiques et l’Ordinateur”, subgrupo surgido dentro do Oulipo e que propunha experiênciasde criação literária com computadores.

5 Cf. FITCH, Brian. L’appropriation littéraire: de Chladenius à Ricoeur. Revue de Littérature Comparée, v. 72, n. 3, p. 321, 1998. [“ficção epoesia visam ao ser, não mais segundo a modalidade do ser dado, mas segundo a modalidade do poder ser”.] tradução do autor.

6 CLEMENT, op. cit., 2000, p. 76, nota 52. [“A tentação do infinito sempre rondou os escritores, sobretudo sob as aparências dacombinatória. Esta se exprime, inicialmente, na literatura oral, pela proliferação das variantes e das versões. Ela continua na literaturamedieval, com a multiplicação dos ciclos narrativos. No século XIX, ela está no cerne do projeto balzaquiano”.] tradução do autor.

7 GENETTE, op. cit., 1982, p. 53, nota 67. [“princípio maquinal”] tradução do autor.

8 CHARTIER, op. cit., 2000, p. 44, nota 5. [“A revolução do texto eletrônico (...) à materialidade do livro, ela substitui a imaterialidade detextos sem local que lhes seja próprio; às relações de contigüidade estabelecidas no objeto impresso, ela opõe a livre composição defragmentos indefinidamente manipuláveis...”] tradução do autor.

9 Corolário da progressiva desmaterialização de boa parte dos objetos artísticos a partir do início do século XX.

10 ABENDROTH; DECOCK; MESTAOUI, op. cit., 2000, p. 112, nota 95. [“As novas tecnologias nos colocam assim em uma zona intermediária,uma zona de trânsito tornada permanente, nos permitindo estar lá e, potencialmente, em todo lugar, em um tempo que se pode registrare estocar, um presente congelado. Nós somos então em um estado ‘nomádico’, jogando com o tempo e o espaço, deslizando de umambiente e de uma virtualidade a outro”.] tradução do autor.

11 RYAN, Marie-Laure. “The Text as World Versus the Text as Game: Possible World Sematics and Postmodern Theory”, in Journal ofLiterary Semantics, v. 27, n. 3, 1998, p. 137. Sem contar as inúmeras referências a jogo nas reflexões de Jacques Derrida.

12 CAEIRO, Alberto. Poema XX. In: O guardador de rebanhos.

13 “The Text as World Versus the Text as Game: Possible World Sematics and Postmodern Theory”, in Journal of Literary Semantics, v. 27,n. 3, 1998, p. 139-140.

14 BRANDT, Joan. The theory and practice of a ‘revolutionary’ text: Denis Roche’s ‘Le mécrit’. Yale French Studies, v. 67, n. 67, p. 219, 1984.

15 No livro depois do livro / O texto se confunde com a noção de lugar / A imagem só se revela por uma inscrição textual / A visão agoraé um dado da escrita / Implode-se a referência do volume / A dimensão da página é o peso.

16 Que não me parece mais estar no mesmo nível, nem situada nos mesmos limites das vanguardas do início do século XX.

17 GENETTE, op. cit., 1982, p. 60-61, nota 67. [“...não é preciso considerar os cinco tipos de transtextualidade como classes estanques, semcomunicação nem recortes recíprocos. Suas relações são, ao contrário, numerosas e, com freqüência, decisivas”.] tradução do autor.

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a n e x o s

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Corre sem vela e sem lemeO tempo desordenado,D'hum grande vento levado:O que perigo não teme,He de pouco exprimentado.As redeas trazem na mãoOs que redeas não tiverão:Vendo quanto mal fizerãoA cobiça e a ambição,Disfarçados se acolhêrão.

A náo, que se vai perder,Destrue mil esperanças:Vejo o máo que vem a ter;Vejo perigos correrQuem não cuida que ha mudanças.Os que nunca em sella andárão,Na sella postos se vem:De fazer mal não deixárão;Do demonio hábito temOs que o justo profanárão.

Que poderá vir a serO mal nunca refreado?Anda, por certo, enganadoAquelle que quer valer,Levando o caminho errado.He para os bons confusão,Ver que os máos prevalecêrão;Que, posto se detiverãoCom esta simulação,Sempre castigos tiverão:

Não porque governe o lemeEm mar envolto e turbado,Que të seu rumo mudado,Se perece grita e gemeEm tempo desordenado.Terem justo galardão,E dor dos que merecêrão,Sempre castigos tiverãoSem nenhuma redempção,Postoque se detiverão.

Na tormenta, se vier,Desespere na bonança,Quem manhas não sabe ter:Sem que lhe valha gemer,Verá falsar a balança.Os que nunca trabalhárão,Tendo o que lhe não convem,Se ao innocente enganárão,Perderão o eterno bem,Se do mal não s'apartárão.

Camões

[ 1 ]

Labyrintho, Queixando-se do Mundo

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[ 2 ]

De Laudibus Sanctae Crucis - Poema 16 [detalhe], de Habranus Magnentius Maurus

c Biblioteca Apostólica Vaticana. Reg. Lat. 124, fol. 32v.

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[ 3 ]Exemplo de escrita ropálica, autor desconhecido, s.d.

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[ 4 ]Exemplo de labirinto, autor desconhecido, s.d.

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[ 5 ]Exemplo de emblema, autor desconhecido, s.d.

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i n u t r o q u e c e s a rn i n u t r o q u e c e s au n i n u t r o q u e c e st u n i n u t r o q u e c er t u n i n u t r o q u e co r t u n i n u t r o q u eq o r t u n i n u t r o q uu q o r t u n i n u t r o qe u q o r t u n i n u t r oc e u q o r t u n i n u t re c e u q o r t u n i n u ts e c e u q o r t u n i n ua s e c e u q o r t u n i nr a s e c e u q o r t u n i

[ 6 ]Anastácio Ayres de Penhafiel

Da Academia Brasílica dos Esquecidos, ca. 1728

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b i b l i o g r a f i a

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Page 144: leituras de nós

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índice onomást ico

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Page 146: leituras de nós

AKENATON 47

ANDRADE, Carlos Drummond de 24

ANDRADE, Mário de (Mário Raul de Morais Andrade) 50

ANJOS, Augusto dos (Augusto de Carvalho Rodrigues dos

Anjos) 51

APOLLINAIRE, Guillaume (Wilhelm Appollinaris de

Kostrowitzki) 80

ARISTÓTELES 60, 74, 88, 105

AROUET, François-Marie (ver VOLTAIRE)

AZEVEDO, Aluízio (Aluízio Tancredo Gonçalves de Azevedo) 83

BARBOSA, Pedro 68, 105

BARTHES, Roland (Roland Gérard Barthes) 21, 101, 107

BAUDELAIRE, Charles (Charles-Pierre Baudelaire) 125

BAUDRILLARD, Jean 37, 41, 107

BEIGUELMAN, Giselle 123

BENAYOUN, Maurice 84, 85

BOOTZ, Philippe 73, 119

BORGES, Jorge Luis 120, 123, 125

BRANDT, Joan 123

BUTOR, Michel 80

CAEIRO, Alberto (heterônimo de Fernando Pessoa) 39, 52,

99,102, 122

CAMINHA, Pero Vaz de 34

CAMÕES, Luís Vaz de 65, 70, 106

CAMPOS, Haroldo (Haroldo Eurico Browne de Campos) 87

CANDIDO, Antonio 83

CASTELIN, Philippe 50

CASTRO, E. M. de Melo e (Ernesto Manuel Geraldes de

Melo e Castro) 63, 65

CHARTIER, Roger 118, 119

CHATONSKY, Grégory 52

CÍCERO, Marco Túlio 74

CLÉMENT, Jean 63, 82, 118

COMTE, Auguste (Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier

Comte) 100, 103

COUCHOT, Edmond 48

CUMMINGS, E. E. (Edward Eastlin Cummings) 80

DELEUZE, Gilles 37

DERRIDA, Jacques 37, 42

DESCARTES, René 37

DIAS, Gonçalves (Antônio Gonçalves Dias) 71, 72, 73

DIAS-PINO, Waldemir 86

DOCTOROVITCH, Fabio 51, 62, 63, 67, 80, 81

DUCHAMP, Marcel (Henri-Robert-Marcel Duchamp) 45, 49

DÜRER, Albrecht 26, 27

ECO, Umberto 22, 59

EMMANUEL, Pierre 46

EUCLIDES (Euclides de Alexandria) 36

FENOLLOSA, Ernest 86

FLACO, Quinto Horácio (ver HORÁCIO)

FOUCAULT, Michel (Michel Paul Foucault) 37

GENETTE, Gérard 61, 73, 98, 101, 118, 124

GÓNGORA, Luis (Don Luis de Góngora y Argote) 69, 70, 79

GUERRA, Gregório de Matos e (ver MATOS, Gregório)

HEIDEGGER, Martin 77, 113

HEGEL (Georg Wilhelm Friedrich Hegel) 50

HOFFMANN, Dierk 69

HORÁCIO (Quinto Horácio Flaco) 60

HUGO, Victor (Victor-Marie Hugo) 116

HUSSERL, Edmund 37, 41

INGARDEN, Roman 102

KAC, Eduardo 79, 80, 85

KANT, Immanuel 36, 37, 40, 43

KOSTROWITZKI, Wilhelm Appollinaris (ver APOLLINAIRE,

Guillaume)

KRISTEVA, Julia 61, 98, 100

KUHLMANN, Quirinus 63, 65, 66, 67, 71

LAFER, Tiago 71, 72, 73

LANDOW, George Paul 61, 97

LÉVY, Pierre 29, 37, 39, 43, 98, 99, 100, 103

LÉVY-BRUHL, Lucien 103

LIMA, Jorge de (Jorge Mateus de Lima) 83

LOBATCHEVSKI, Nikolai (Nikolai Ivanovitch Lobatchevski) 36

LONGINO, Cássio 60

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Page 147: leituras de nós

MAISTRE, Xavier de 83

MALLARMÉ, Stéphane 62, 79, 80

MARX, Karl (Karl Heinrich Marx) 50

MATOS, Gregório de (Gregório de Matos e Guerra) 70

MATUCK, Artur 59, 61, 62, 106

MAURO, Rábano (Rabanus Magnentius Maurus) 65

McLUHAN, Marshall (Herbert Marshall McLuhan) 97

MERLEAU-PONTY, Maurice 31, 76, 77, 78, 87

MESCHINOT, Jean 63, 65, 66, 67

MOEBIUS (August Ferdinand Möbius) 37, 42, 77, 84

MONTAIGNE, Michel Eyquem de 37

MORAIS, Vinícius de 116

NIETZSCHE, Friedrich (Friedrich Wilhelm Nietzsche) 37

OLIVEIRA, Antônio de 69, 70, 71

ONG, Walter 97

PEQUEÑO GLAZIER, Loss 51

PEREC, Georges 118

PESSOA, Fernando (Fernando Antônio Nogueira Pessoa)

33, 67, 99

PETRARCA (Francisco Petrarca) 70

PIRRO (Pirro de Élida) 37

POUND, Ezra (Ezra Loomis Pound) 61, 97

PRADO, Gilbertto (Gilberto dos Santos Prado) 82, 85, 88

PROUST, Marcel 101, 107

QUENEAU, Raymond 50, 51, 66, 106, 118, 126

QUEVEDO (Francisco Gómez de Quevedo y Villegas) 70

QUINTILIANO, Marco Fábio 74

REYNOLDS, David 60

RICOEUR, Paul 117

RIEMANN, Georg Friedrich Bernhard 36

RIMBAUD, Arthur (Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud) 125

RODRIGUES, Nelson (Nelson Falcão Rodrigues) 60

ROSA, João Guimarães 19, 125

RYAN, Marie-Laure 122

SÁ-CARNEIRO, Mário de 26

SADIN, Eric 71, 81

SÉRANDOUR, Eric 51

SLUCKTIN, W. 87

SÓCRATES 37

TARDIEU, Jean 80

TREVISAN, Dalton 60

TROYES, Chrétien de 63

TURING, Alan (Alan Mathison Turing) 63, 66

VALÉRY, Paul (Ambroise-Paul-Toussaint-Jules Valéry) 35, 63

VALLIAS, André 113, 115

VERLAINE, Paul 118

VIRILIO, Paul 29, 37, 52, 107

VOLTAIRE (François-Marie Arouet) 63, 115

ZOLA, Émile (Émile-Édouard-Charles-Antoine Zola) 83

145

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Page 148: leituras de nós

Autor desconhecido, s.d.

“do Frontispício de Vozes saudosas da eloquencia, do espirito, do zelo e eminente sabedoria do Padre

Antônio Vieira, Lisboa Occidental, Na Officina de Miguel Rodrigues, MDCCXXXVI, publicado como volume

XV da edição facsimilar dos Sermões São Paulo, Anchieta, 1945.”

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Page 149: leituras de nós

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Page 150: leituras de nós

Presidente de Honra

Olavo Egydio Setubal

Presidente

Milú Villela

Vice-Presidentes Seniores

Joaquim Falcão

Jorge da Cunha Lima

Vice-Presidentes Executivos

Alfredo Egydio Setubal

Ronaldo Bianchi

Diretores Executivos

Antonio Carlos Barbosa de Oliveira

Antonio Jacinto Matias

Cláudio Salvador Lembo

Malú Pereira de Almeida

Renato Roberto Cuoco

Superintendente Administrativo

Walter Feltran

Superintendente de

Atividades Culturais

Eduardo Saron

Este livro não pode ser comercializado.

Rumos Itaú Cultural Transmídia

Leituras de Nós:

Ciberespaço e Literatura

Autor

Alckmar Luiz dos Santos

Realização

Itaú Cultural

Núcleo de Artes Visuais

Coordenador

Marcelo Monzani

Produção

Sofia Fan

Núcleo de Comunicação

Assistente Cultural

Janaína Chaves da Silva

Design Gráfico

Sheila Ferreira

Yoshiharu Arakaki

Edição e Preparação de Textos

Celina Oshiro

Marco Aurélio Fiochi

Centro de Documentação

e Referência

Índice Onomástico e

Normalização Bibliográfica

Selma Cristina Silva

Josiane Mozer

Edson Alves Gomes

Digitalização e Tratamento

de Imagens

Humberto Pimentel

Jônatas Trombini

CD-ROM

Dos Desconcertos da Vida

Filosoficamente Considerada

[poema eletrônico]

Criação

Alckmar Luiz dos Santos

Programação

Sandro da Silva dos Santos

Agradecimentos

Á Capes, ao CNPq e ao

Instituto Itaú Cultural,

pelo apoio a este trabalho.

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