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LEITURA, ESCRITA E LITERATURA EM INTERLOCUÇÕES ENTRE
FORMANDOS PROFESSORES E ALUNOS EM SALA DE AULA
Painel, reúnem-se três pesquisas originadas de um mesmo momento de uma pesquisa-
formação longitudinal (2011 a 2015). A leitura e a escrita são destaques para nosso
grupo, compreendendo-as como processos de aprendizagem discursiva, relacionados a
todos os participantes dos processos de formação docente. Consideramos as
interlocuções ocorridas nos diferentes espaços, tanto escolar quanto de formação
docente, em inter-relação, visto que estes se referenciam constantemente e portanto as
representações de língua, de identidades dos participantes e de conhecimento escolar se
constituem em processos históricos, a partir de enunciações realizadas. O trabalho
Processos de formação de professores autores e suas alteridades discentes apresenta o
projeto de pesquisa que alça formar universitários, pesquisadores responsáveis por
processos de formação à posição de editores de textos docentes. O trabalho intitulado O
que as crianças dizem sobre a escrita na escola? escolhe analisar os discursos infantis
tendo como pressuposto relacionar os processos de ensino com os diferentes processos
de aprendizagem da escrita. As interações entre professores e alunos em sala de aula são
observadas e analisadas em profundidade, sob a perspectiva da análise do discurso,
buscando compreender a interlocução constitutiva de sujeitos de linguagem. O trabalho
sob o título Entrelaçamentos entre a literatura, formação docente e prática escolar para a
formação humana considera que não há educação fora da relação entre o eu e o outro e
vê a aproximação entre a literatura e o processo educativo, argumentando que é
essencial a presença do texto literário no contexto escolar. Considera ainda que o
professor precisa se constituir enquanto leitor e refletir sobre sua prática no que se refere
ao trabalho com a literatura. Palavras-chave: Leitura. Escrita. Interlocução.
Palavras-Chave: Leitura, Escrita, Interlocução
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
2612ISSN 2177-336X
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ENTRELAÇAMENTOS ENTRE A LITERATURA, FORMAÇÃO DOCENTE E
PRÁTICA ESCOLAR PARA A FORMAÇÃO HUMANA
Fernanda de Araújo Frambach
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fundação Municipal de Educação de Niterói
Resumo:
A arte literária constitui-se como processo formativo do sujeito, por ser constituída por
diferentes sujeitos e gêneros. Na literatura, o outro está presente de forma assumida no
discurso, uma vez que a ética literária se fundamenta na alteridade. Desta forma, a
palavra literária é, ao mesmo tempo, um trabalho ético e estético, uma vez que o texto é
lugar de vozes múltiplas, dissonantes, constituintes da linguagem. Considerando que
não há educação fora da relação entre o eu e o outro, vemos a aproximação entre a
literatura e o processo educativo, argumentando que é essencial a presença do texto
literário no contexto escolar. No entanto, consideramos que, para que esse trabalho seja
desenvolvido, o professor precisa se constituir enquanto leitor e refletir sobre sua prática
no que se refere ao trabalho com a literatura. Neste sentido, argumentamos que é preciso
garantir espaços de formação docente que sejam dialógicos, e que possibilitem a
vivência estética da literatura. Este trabalho objetiva apresentar uma pesquisa que teve
como propósito identificar e analisar as possíveis contribuições da formação continuada
do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa no que diz respeito à leitura
literária no contexto escolar no município de Niterói/RJ. A opção metodológica desta
investigação é a análise do discurso de ancoragem bakhtiniana, a partir de análise de
propostas de estratégias formativas e de entrevistas com Orientadores de estudos e
professores alfabetizadores participantes deste programa de formação, a fim de
compreender se e como as propostas apresentadas nesta formação interferem em sua
práxis no cotidiano escolar no que tange à formação de leitores. As análises nos
permitem considerar que as vivências estéticas da leitura literária nos encontros de
formação refletem e refratam na prática docente.
Palavras-chave: Formação continuada de professores. Leitura literária. Pacto Nacional
pela Alfabetização na Idade Certa.
Introdução: De fato, a vida não se encontra só fora da arte,
mas também nela, no seu interior, em toda a
plenitude do seu peso axiológico: social,
político, cognitivo ou outro que seja. (BAKHTIN,
2014, p. 33)
No trecho apresentado como epígrafe, Mikhail Bakhtin nos conduz a pensar que a
arte e a vida são polos indissociáveis da existência humana. Para esse filósofo da
linguagem, a literatura é uma cadeia que sujeitos e gêneros múltiplos povoam,
entrecruzando-se de modo vivo, tornando-se um espaço-tempo de valores expressivos
que estabelece como eixo central a relação entre o eu e o outro. Em outro momento, o
autor aponta que ―A forma esteticamente significante é a expressão de uma relação
substancial com o mundo do conhecimento e do ato.‖ (p. 35). Por isso, ressalta que a
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obra de arte e sua contemplação, na qual se inclui a arte literária, relacionam-se com
sujeitos éticos e suas inter-relações sociais.
Esta reflexão ecoa no pensamento de Rildo Cosson, para quem: ―Ao ler estou
abrindo uma porta entre o meu mundo e o mundo do outro. O bom leitor é aquele que
agencia com os textos os sentidos do mundo, compreendendo que a leitura é um
concerto de muitas vozes e nunca um monólogo.‖ (COSSON, 2006, p. 27). Tal
pressuposto coaduna-se com a teoria de Bakhtin, segundo a qual nos formamos a partir
do contato com o outro, que nos diz a respeito de nós mesmos, perspectiva que pode ser
estendida à concepção de educação.
Cosson (2006) declara ainda que a literatura não só possibilita aprendermos
sobre a vida por meio da experiência do outro, como também nos leva a vivenciá-la e
por isso informa sobre o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por
nós mesmos. Por isso, esta é uma experiência a ser realizada e apenas se concretiza nos
atos de leitura. Mais do que um conhecimento a ser reelaborado, ―é a incorporação do
outro em mim, sem renúncia da minha própria identidade‖ (2006, p. 17). A literatura
constitui, portanto, um processo formativo do sujeito não só enquanto leitor e escritor,
mas também como indivíduo historicamente situado.
A leitura literária desempenha, portanto, um importante papel na formação da
identidade e ao mesmo tempo, da vivência social. Zilberman (2008) afirma que ―A
leitura do texto literário constitui uma atividade sistematizadora, na medida em que
permite ao indivíduo penetrar o âmbito da alteridade, sem perder de vista sua
subjetividade e história.‖ (p. 23). Para Bakhtin (2014), a literatura afeta antes de tudo ao
homem e por esse motivo ela pode humanizá-lo, colocando-o numa relação axiológica.
Tais conceitos permitem aproximar a literatura e a educação e traz desafios para
as práticas escolares no que se refere à formação de leitores. Num primeiro momento,
podemos compreender que a escola tem um compromisso, para além da formação
apenas científica, com a formação ético-cultural e com a arte. Portanto, argumento que a
leitura e a escrita precisam estar presentes na escola também em sua dimensão estética,
pois possibilitam lidar com a contradição que constitui a experiência humana.
Além disso, podemos acrescentar que tanto na educação como na literatura, o
caminho de aproximação entre as palavras do eu e do outro, construindo uma
compreensão que não é um simples reconhecimento de signos, mas uma resposta aberta
a negociações e novas construções, precisa se dar por uma prática dialógica. A partir
dessa premissa, é possível pensar em um trabalho com a leitura literária que possibilite
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o espaço para o diálogo, criando oportunidades para que alunos e professores possam
ampliar suas referências textuais e discursivas.
Convém ressaltar que não é apenas na instituição escolar que se dá o contato
com a literatura. No entanto, a escola referenda o processo de ensinar e aprender e é por
sua legitimidade que esta se torna um espaço importante, uma vez que muitos alunos
têm apenas no período escolar o acesso às obras literárias e a práticas que poderão
constituí-los enquanto leitores, mesmo após a saída deste espaço.
Ao observarmos, entretanto, a história da educação brasileira, podemos
argumentar que a relação entre a escola e a literatura sempre foi permeada de caminhos
e descaminhos, de diferentes concepções de linguagem e de ensino, o que culminou em
propostas de trabalho com a literatura que muitas vezes se constituíram em um
―desserviço‖ para esta formação. Por isso, proponho uma discussão sobre a literatura e o
ensino escolar, enfatizando a importância da formação docente nesse processo.
Neste texto, trago um recorte de uma pesquisa mais ampla que teve como
objetivo identificar e analisar as possíveis contribuições da formação continuada do
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC1 - no que diz respeito à
leitura literária no contexto escolar no município de Niterói, no estado do Rio de
Janeiro. No presente trabalho, enfatizo a discussão sobre a necessidade da vivência da
leitura literária nos processos de formação continuada, argumentando que esta pode
refletir e refratar na prática docente. Esta discussão está calcada na concepção de que a
escola é um espaço primordial para a formação humana, e que a literatura pode auxiliar
neste aspecto por se constituir, como afirma Cândido (1995), um direito humano.
Tendo em vista este objetivo, a opção metodológica adotada é a análise do
discurso, ancorada na perspectiva bakhtiniana (BAKHTIN, 2011; 2014). Para tal,
incorporo as vozes de professores que atuam no ciclo de alfabetização, lecionando em
escolas do município de Niterói, os quais revelam importantes discursos que dizem de
suas histórias de letramento e de suas práticas pedagógicas, algumas modificadas pela
participação no citado programa de formação. Estes professores buscam (re)desenhar
histórias de autoria docente, ao (se) dizerem sobre a experiência com e na leitura
literária, vivenciada como experiência alteritária e como possibilidade de se deslocar de
sua realidade para ela olhar, dialogicamente (BAKHTIN, 2011, 2014). Trazer as vozes
destes profissionais nos permite argumentar sobre a importância de processos dialógicos
de formação continuada que incentivem a produção do conhecimento escolar e a
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(re)formulação de propostas educacionais inovadoras, visando novos e outros fazeres e
saberes docentes e discentes.
Literatura, formação docente e prática pedagógica
Na relação entre literatura e escola, é possível observarmos que, em muitos
casos, os objetivos do trabalho com o texto literário não estão claros nem para os
professores nem para os alunos. Em grande parte das memórias desses sujeitos, as
experiências com a literatura na escola se resumem a leituras de fragmentos de textos
em livros didáticos, preenchimento de fichas para avaliar a compreensão da obra,
provas, seminários e exercícios gramaticais baseados em textos literários. Essas
vivências são apontadas nos depoimentos de duas professoras alfabetizadoras:
Rosi: Eu não tenho muita recordação de enquanto aluna, na minha escola. Eu
acho que antigamente essa coisa de contar história não existia muito, né? Eu
acho que a ideia era mais ensinar, ensinar... As histórias que eu ouvia eram da
cartilha, e só. Eram as histórias que eu lia.
Lucia: Tinha, na verdade... agora que estou lembrando... tinha na quinta série
aqueles livros que a gente tinha que ler, né? As obras, mas era para fazer um
trabalho, um resumo... né? Já era mais para frente, na época de pré-
adolescente, de adolescente. Mas também era ler por obrigação, né? Tinha
que ler aquelas obras clássicas... Ah! Isso aí eu lembro.
Ao relatarem suas memórias, as professoras evidenciam que estas são
constituídas de fragmentos da infância e adolescência, especialmente no momento de
escolaridade, envolvidas em práticas tuteladas, baseadas na compreensão de textos e
outras informações centradas apenas na forma e não nos aspectos éticos e estéticos da
arte literária. Nesse sentido, considero relevante problematizar as práticas de leitura
literária no contexto escolar que não condizem com a proposta de formação do leitor
como ―[...] o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de
sentidos‖ (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67). Compreendo que esta é bem mais do que
uma habilidade pronta e acabada de ler textos, pois demanda uma atualização
permanente do leitor em relação ao universo literário. Também não é apenas um saber
que se obtém sobre as obras, mas sim uma experiência de dar sentido ao mundo por
meio de palavras que falam de palavras, transpondo os limites de tempo e espaço. A
partir desse pressuposto, o ensino da literatura na escola deve visar à formação de
leitores capazes de se inserirem em uma comunidade linguística, manipularem os
instrumentos culturais e construírem sentidos para si e para o mundo em que vivemos.
No entanto, preconizo que apenas o discurso sobre a importância da literatura
não é suficiente para formar leitores, mas são necessárias práticas leitoras realizadas por
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nós, professores, no contexto escolar. Para isso, é significativa a proposição de
atividades diversificadas, o que exige um repertório por parte do professor, modelo de
leitor experiente. Requer uma criteriosa seleção de textos literários, a fim de evitar obras
monológicas que não dão abertura para outras vozes. É necessária a constituição de um
acervo e o reconhecimento de critérios que podem indicar a qualidade e a
potencialidade de obras literárias. Demanda que recusemos o papel de quem deve
escolher e interpretar a obra sem dar espaço para as diferentes percepções dos alunos,
tornando-nos ―tutores da leitura‖ por impor um único caminho correto para a leitura das
obras e assim, utilizá-las para fins morais, publicitários, informativos e não literários.
A prática dialógica de trabalho com a literatura no contexto escolar aqui
defendida demanda uma abordagem sistemática e pedagogicamente orientada para a
aprendizagem do aluno enquanto leitor, o que só é possível se também estivermos
próximos da leitura literária. Por isso, é interessante que a função da literatura esteja
clara para que um trabalho realmente significativo possa ser empreendido. Somente
quando nos reconhecemos não apenas como mediadores, e sim como interlocutores na
relação entre o livro e aluno, coletivizando nossas leituras e reelaborando nossas ideias e
opiniões, podemos contribuir para o desenvolvimento do pensamento crítico discente,
ampliando as visões de mundo e expectativas do leitor reconhecido como sujeito sócio-
histórico. Pinheiro (2011), ao mencionar um estudo sobre a prática leitora dos
professores, nos leva a considerar que:
A leitura requer um processo lento de intimidade entre o texto e o leitor, uma
vez que exige a decodificação das palavras, a construção do sentido a
contextos diferenciados. Exige, ainda, a intertextualidade com fatos vividos e
lidos. Porém, se o profissional da educação não se comprometer a iniciar esse
processo, dificilmente a leitura poderá fazer parte de sua prática cotidiana.
(PINHEIRO, 2011, p. 307).
Advogo, no entanto, que essa reflexão não pode ser feita de maneira indutiva, ou
seja, é o próprio sujeito que precisa pensar sobre sua prática, analisando se a
metodologia que utiliza com seus alunos é a mais adequada para a formação do leitor
literário. A partir dessa premissa, o professor pode viabilizar ações para promover a
leitura dos textos de forma mais profunda, rompendo, assim, com atividades que apenas
exigem o domínio das informações sobre a literatura ou, ao contrário, uma prática em
que prevaleça a ideia de que o importante é que o aluno leia, não sendo relevante o quê,
desde que seja garantido o ―o prazer de ler‖. Corroborando essa proposição, Paiva,
Paulino e Versiani (2005) propõem que
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Quanto mais evidente ficar para o professor a importância da leitura literária
como poderosa fonte de formação de sensibilidades e de ampliação de nossa
visão de mundo, que tem nessa linguagem artística um componente essencial
de formação, culturalmente valorizado (embora pouco demandado e pouco
ofertada socialmente), mais significativas se tornarão as práticas de
Letramento Literário propostas. Isso tudo se, primeiro, o professor se
conhecer enquanto sujeito leitor e souber dimensionar suas práticas de leitura
especialmente a literária. Sendo assim, o seu repertório de leituras, sua
capacidade de análise crítica dos textos e suas escolhas adequadas à idade e
aos interesses de seus alunos já representarão um sólido e definitivo ponto de
partida. (PAIVA; PAULINO; VERSIANI, 2005, p. 116)
Não é arriscado afirmar que a formação e o ofício de professor são intensamente
permeados por práticas de leitura, que podem marcar nossa identidade. Em termos de
atuação e de formação, a leitura é prática permanente, tanto como instrumento quanto
uma forma de (inter)agir, uma vez que o conhecimento escolar, para ser sistematizado e
dinamizado, requer as competências leitoras. No entanto, muitas dessas leituras
pertencem a um Letramento profissional e/ou acadêmico, permeado principalmente por
textos técnico-científicos e utilitários. Pesquisas empreendidas por autores como Silva
(2009) e Kramer e Oswald (2002) destacam essa condição. Somado a isso, estão fatores
como acúmulo de trabalho por regência em mais de um turno e/ou escolas; múltiplas
funções; cobranças externas que visam apenas ―resultados‖ concretizados em números e
índices; condições precárias de trabalho; desvalorização, etc., que podem dificultar ou
impedir um trabalho mais rico e produtivo com a leitura, qual seja a liberdade para
discutir, debater, relacionar, imaginar e recriar leituras.
Nesta dimensão, é possível argumentar em função da necessidade de investir
numa formação inicial e continuada que inclua as questões envolvendo o trabalho com a
leitura literária. Uma possibilidade é recorrer a estratégias de formação que
proporcionem trocas e registrem experiências docentes com práticas de leitura, tendo
em vista a consolidação de um fazer específico a partir da voz dos professores. Assim,
faz-se necessário valorizar o contato com a literatura como experiência estética nos
momentos de formação, ao mesmo tempo em que propicie a vivência que o leitor
iniciante também perfaz, entendendo as capacidades necessárias para a leitura de
qualquer texto, que vão além da simples decodificação e compreensão. Momentos assim
planejados são potenciais para a vivência da alteridade, evidenciando a possibilidade de
conceber novas práticas pedagógicas na esfera escolar, inclusive agenciando a
interlocução com outras linguagens e gêneros.
Além disso, tendo em vista que a atuação enquanto interlocutor no trabalho com
a leitura literária pressupõe uma experiência com esta, esses momentos podem
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contribuir para uma vivência que muitas vezes nós próprios não tivemos. Não obstante,
muitos depoimentos apontam que a retomada ou início da experiência literária se dá a
partir de livros acessados quando os profissionais estão na formação ou na docência,
como podemos observar nas enunciações:
Rosi: Quando eu terminei o Ensino Médio de Formação de Professores aqui
no IEPIC, eu não ingressei logo na faculdade. Eu dei uma parada. E nesse
período eu comecei a fazer muitos cursos, esses cursos de formação. [...]
Então, lia-se, lia-se muito. Então, eu acho que foi mais nessa fase, eu
procurando. E depois na faculdade. Na faculdade então, uma enxurrada de
coisas... Até porque eu conclui em 2010, então eu acho que isso também, a
faculdade de 10, 15 anos atrás está bem diferente. A proposta de incentivo à
leitura é muito mais presente, muito mais. Até porque você tem também os
estágios. Então você também era obrigada a se preparar para fazer os
estágios... Eu fiz muitos cursos relacionados a isso. Eu fiz um assim que eu
entrei, relacionado com a leitura. Eu lembro que também participava de
projetos. Então, tudo isso é um incentivo para a leitura. Então, eu acho que eu
tive mais contato com a leitura já adulta do que enquanto pequena. Adulta,
assim, na fase de adolescência para adulta.
Mari: E eu trabalhei nessa turma de 4º ano o livro de Fabulas. Então, na
verdade... foi de pouco tempo dali que eu descobri essa paixão pela leitura
literária. Eu sempre gostei de ler muito, mas, um livro mais de adulto. E a
literatura infantil é livro de adulto também! E assim, sou apaixonada e não
tem como não ter livros e é isso. [...] Eu me apaixonei mesmo pela leitura
literária, pela literatura infantil e isso, ao mesmo tempo, contribuiu para que
eu entendesse, cada vez mais, como formadora, a importância do meu papel
com as professoras. Porque no momento em que eu passo para elas a paixão,
o valor do livro, evidenciando isso nas minhas práticas, nas atividades que eu
trago, então, eu acho que eu consegui passar isso para elas e ao mesmo
tempo, me fortalecer também e aí, cada vez mais eu tentar desenvolver isso.
Nos depoimentos acima, podemos identificar que a intensificação com a leitura
literária se deu em função da profissão no caso da professora Rosi, ou pela atuação com
os alunos, conforme a enunciação da professora Mari. Além disso, observamos a
importância dos momentos de formação docente, mencionando-se o período de
graduação, no primeiro depoimento, e a atuação da professora Mari enquanto formadora
de um processo de formação continuada. Esta situação contribui para argumentarmos a
favor da importância do acesso aos livros de literatura e a propostas que visem o
letramento literário na formação docente. Considero que, assim como acontece com a
criança, o leitor adulto/professor tem a oportunidade de aumentar seu acervo, podendo
fazer novas leituras de si mesmo, dos outros e do mundo, proposição indicada por
Corsino: ―[...] A dimensão da leitura enquanto experiência está justamente na
possibilidade de ir além do momento em que se realiza, podendo desempenhar
importante papel na formação.‖ (2014, p. 270).
Por outro lado, é possível observarmos alguns materiais escritos como livros,
documentos e orientações que têm como temática o trabalho com a literatura no
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contexto escolar, assim como diferentes programas de incentivo à leitura ou formações
na área de Linguagem e/ou alfabetização que estão sendo implementados cujo
destinatário é o professor e o seu fazer em sala de aula. Além disso, a leitura literária
está presente em encontros de formação inicial e continuada como estratégia formativa,
especialmente sob a denominação de ―leitura deleite‖. Considero que são necessárias
reflexões para compreender o que está subjacente a essa proposta, como esta é
apresentada e discutida e quais são as concepções de leitura e mediação docente
assumidas nesses materiais formativos e por tais programas de formação.
A esse respeito, podemos citar a proposta de ―Leitura Deleite‖ veiculada em uma
ampla política de formação continuada, a saber, o Pacto Nacional pela Alfabetização na
Idade Certa, atualmente disponibilizada em todo o país. Conforme se observa no
Caderno Formação de Professores no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa, material que traz os princípios de formação adotados no programa e as
orientações didáticas para os formadores de professores denominados Orientadores de
estudos, esta proposta é apresentada da seguinte maneira:
Essa estratégia é muito importante nos processos de formação de professores
alfabetizadores, pois favorece o contato do professor com textos literários
diversos. O momento da leitura deleite é sempre de prazer e reflexão sobre
o que é lido, sem se preocupar com a questão formal da leitura. É ler para
se divertir, sentir prazer. (BRASIL, 2012, p. 29, grifo nosso)
Ressalto a relevância de incluir entre as diversas estratégias metodológicas
propostas, a leitura literária nos momentos presenciais com os professores participantes.
No entanto, podemos questionar a concepção de leitura como ―deleite‖, como aquela
que ―sempre” vai conduzir a um prazer, o que pode restringir a literatura a uma única
característica sem levar em consideração a possibilidade, nem sempre agradável, de ela
suscitar questionamentos, fomentar tensões, conflitos e sentidos e ajudar-nos a produzir
compreensões sobre quem somos, quem podemos ser e sobre o mundo que nos cerca,
independentemente da idade que tenhamos. Essa questão é abordada por Corsino:
A literatura, como arte, é morada dos sentimentos. Fruir a leitura significa
não só ter prazer em ler. A literatura traz deslocamentos e conflitos: o que
Vigotski (1999) chama de ‗curto-circuito‘ emocional, pode gerar riso,
lágrima, medo, ternura, entre outros sentimentos. O texto literário traz
conflitos de interesses, dramas, desfechos, surpreendendo leitores. O
conteúdo afetivo manifesto na literatura se expressa na forma como o texto é
estruturado, não sendo possível separar forma de conteúdo sem que haja
prejuízo da experiência estética. (CORSINO, 2014, p. 259)
Convém pontuar que a estratégia de ―leitura deleite‖ é ressignificada de formas
diferentes pelas Orientadoras de estudos e pelas professoras participantes no contexto
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investigado, o que está vinculado a concepções, práticas e histórias de formação e de
letramento literário que são individuais. Podemos observar, portanto, que as propostas
das políticas educacionais são ressignificadas no contexto da prática, conforme nos
alertam Stephen Ball e Richard Bowe (1992). Para os autores, as políticas não são
simplesmente ―implementadas‖, mas estão sujeitas à interpretação e, então, a serem
―recriadas‖. Tal fato pode ser observado no discurso de Orientadora de estudos Aline,
ao enunciar sobre a proposta de leitura literária nos encontros de formação:
Eu acho que é uma defesa que a gente te feito, a leitura como atividade em si,
que significa o quê? Que ela ocupa lugar de destaque sim, e não é vista como
pretexto para alguma coisa que venha anterior ou posterior a ela. Então, foi
assim, fundamentada nessa concepção que a leitura sempre se fez presente. E
porque não deleite? Deleite para quem? Para mim? Que escolhi o livro que
eu ia ler naquela noite, ou na seleção que eu ia colocar lá no cantinho da sala?
Ou deleite para aquele professor ouvinte naquela noite ou que foi lá até
aqueles livros e começou a desfolhar e ler? Então, eu acho assim... o deleite,
ele fecha muito na leitura como fruição, e nem toda leitura é por fruição. Tem
umas que não tem fruição alguma... mas você lê. Tem que ler... E talvez a
fruição venha com as outras leituras que você venha fazendo sobre aquele
mesmo texto, que naquele momento não tenha fruição nenhuma, mas você
tem que ler e reler tantas vezes até que chega ao ponto que você consegue
articular com outras leituras que você já fez na vida. Aí a fruição, acho que se
dá nisso... quando você, sabe? Lê nesse movimento.
A reflexão proposta por esta professora que atua como formadora pode ser
articulada à argumentação de Corsino (2014), no que se refere à utilização da leitura
literária nos momentos de formação docente:
É preciso um investimento na promoção da cultura e não apenas na promoção
do currículo escolar, para que a literatura possa ser percebida como arte e não
só como pretexto para o ensino de conteúdos linguísticos ou informações
explícitas. Os sistemas de capacitação e de repasses desconsideram a
experiência estética. O trabalho com a literatura não é feito a partir da lógica
da linha de trabalho fabril. Todos devem ter acesso às experiências de leitura
para que compreendam o processo do leitor iniciante. Essas características
devem ser observadas em programas de formação continuada de mediadores
de leitura. (2014, p. 280).
Além de o programa trazer um foco bastante importante na leitura nos
momentos de formação sob a designação de ―Leitura Deleite‖, também preconiza
inúmeras atividades práticas que envolvem obras literárias. Tais proposições articulam-
se ao grande enfoque nas sugestões de trabalho com a literatura, especialmente nos anos
iniciais da alfabetização, objetivando a utilização dos livros literários enviados para as
escolas2 para o ensino dos conteúdos disciplinares e do sistema de escrita alfabético.
Entretanto, é possível argumentar que, embora ainda seja possível identificar
proposições como estas, a experiência estética vivenciada nos encontros de formação
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tem incidido sobre a prática docente de maneira diferenciada, conforme podemos
observar no discurso da professora Lucia:
Além de ser muito bom a gente ouvir história, no começar uma formação.
Porque não é só criança, como eu falei já, não é só criança que gosta de ouvir
história, qualquer um gosta. Mas despertou na gente essa questão de que a
criança também precisa, também gosta de ouvir história por prazer, não é só
pela questão da obrigação. Porque quando as propostas do PNAIC, tá, eram
sempre partindo de uma história, então, tá, você vai ler uma história para
fazer uma atividade, e ter um conteúdo, né? Mas também a gente precisa
proporcionar esses momentos, né?
O envolvimento nos momentos de leitura literária na formação e as influências
em seu trabalho no cotidiano escolar também são destacados pelo professor José que, ao
ser inquirido sobre esse aspecto, declara:
Adoro! Parece até que a gente se teletransporta para a história! E acaba todo
mundo querendo descobrir... Como foi a de hoje: brincar de pique-esconde.
Eu usava muito isso e até voltando... várias delas eu leio, as histórias. E até
eles gostam e falam assim: ―Tio, hoje é dia da história?‖ E eu falo assim:
―Então vamos lá pegar!‖. Geralmente eu faço no final, ou de repente, mas
geralmente eu gosto de fazer no final, porque eles ficam paradinhos,
querendo ouvir o final e saber. Ainda mais quando tem certas situações de
vozes, eu gosto de mudar a voz e aí eles ficam parados!
Neste trecho, o professor principia com uma frase exclamativa que expressa
como estes momentos têm sido importantes e como reverberam em sua prática
cotidiana. Revela o quanto ele, leitor/ouvinte adulto, tem a oportunidade de ser
envolvido pela narrativa uma vez que se ―teletransporta para a história‖ ouvida. Aponta
também que não se trata de uma leitura passiva, ouvida da formadora, mas que todos os
professores envolvidos nesses encontros formativos são instados participar da leitura,
uma vez que, de acordo com suas palavras, ―acaba que todo mundo fica querendo
descobrir... como foi a de hoje: brincar de pique-esconde.‖.
Após retornar ao momento de experiência estética vivenciado anteriormente,
José traça um paralelo entre este e sua prática, afirmando que as histórias com as quais
interage nos encontros são posteriormente apresentadas aos seus alunos. Desta forma,
enuncia como a experiência estética vivenciada por ele na formação tem modificado sua
prática, a ponto de mudar seu planejamento porque os alunos lhe solicitam ao indagar:
―Tio, hoje é dia da história?‖. A mesma reflexão evidencia-se no discurso de Rosi:
Assim como nós gostamos, assim como nós nos sentimos bem, faz com que
aquele momento se torne mais agradável, isso também acontece com a
criança. E a criança tem uma maior facilidade de imaginar, de criar e às vezes
a gente vai tolindo isso quando a gente se prende a papel, a caderno, por
exemplo, as leiturinhas: vamos dar leiturinhas, né? E a gente vai tolindo essa
coisa da criação. E quando você conta história, o modo como você fala, seu
tom de voz, você vai trazendo a criança para dentro da história e ela vai
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gostando! Isso é um incentivo, né? Ela vai gostando de ler por prazer e
também vai incentivando a criança a querer ler.
Estes discursos que dizem das experiências com e na leitura literária evidenciam
o que é postulado por Corsino (2014):
Leitores de literatura compartilham experiências tecidas de sentimentos. Essa
possibilidade de identificação entre leitores de diferentes idades, tomando
como referência a literatura, traz o compromisso do professor com a leitura.
É preciso ter experiência com a leitura para ser um mediador de leitura.
(2014, p. 262).
Algumas considerações
As análises dos discursos docentes, articulados com as reflexões empreendidas,
contribuem para insistirmos sobre a importância de propostas que visem o Letramento
Literário dos professores nos processos de formação e não figurem como simples
procedimento didático ou como mera estratégia para divertimento. Evidenciam que os
currículos dos programas de formação podem criar circunstâncias de aproximação entre
os livros e as pessoas, constituindo-se num espaço/tempo de reflexão sobre a
importância do trabalho sistemático e planejado com as obras literárias tendo em vista a
intenção de formar leitores autônomos. Este espaço precisa garantir a oportunidade para
que os professores possam dizer de si, de suas histórias, e dos saberes provenientes
tanto de sua formação profissional para o magistério, incluindo os programas e
materiais, como também os saberes oriundos de sua própria experiência na profissão.
Conforme sugere Andrade (2011), podemos compreender a importância da
proposição de espaços de formação que sejam dialógicos. Isto significa concebê-la pelo
viés de suas alteridades constitutivas, tendo em vista que os interlocutores constituem-se
mutuamente em cada ato enunciativo e se marcam e se revelam a partir de suas
histórias, concepções e práticas, e também a partir da vivência estética que pode ser
proporcionada pela leitura literária. Trata-se de uma concepção de formação que vai
além da reflexão da/na prática, mas que objetiva ampliar a dimensão social inculcada no
processo educativo, refletindo a respeito de saberes e fazeres necessários à docência no
cotidiano escolar, mas que tenham como horizonte a formação humana.
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alfabetizadores e suas exotopias constitutivas. Revista da ABRALIN. Vol. eletrônico,
nº especial, p. 331-331. 2ª parte. ABRALIN. 2011. Disponível em:
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em: 07 Nov. 2014.
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1O PNAIC é um programa federal, em parceria com as secretarias estaduais e municipais de Educação
iniciado em 2013, que propõe o compromisso de alfabetizar todas as crianças da rede pública brasileira
até os oito anos de idade. As ações dessa política se estruturam em quatro eixos: Formação Docente,
Materiais Didáticos e Pedagógicos, Avaliações e Gestão, Controle e Mobilidade Social. Na pesquisa de
Mestrado realizada, enfatizo o eixo da Formação Docente e o envio de acervos literários como parte do
eixo Materiais didáticos. Para maiores informações, consultar: <http://pacto.mec.gov.br>.
2 Esta política educacional apresenta um grande investimento no envio de acervos literários para as
escolas, com vistas à formação de espaços de leitura nas próprias salas de aulas do Ciclo de alfabetização,
propondo-se nos materiais formativos inúmeras atividades para a utilização destes acervos.
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PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES AUTORES E SUAS
ALTERIDADES DISCENTES
Ludmila Thomé de Andrade
Faculdade de Educação UFRJ
Resumo:
Esta pesquisa ainda iniciando-se toma por seu objeto de estudos a escrita docente,
realizada em contextos de formação inicial e continuada. Os processos de formação de
professores vêm encontrando bastante proveito na solicitação de textos aos formandos
professores, que passam a produzir gêneros discursivos de formatos variados
integrando-se em sua funcionalidade aos processos de formação, por revelarem
movimentos particulares de leituras, estudo e construção de conhecimento. Os textos
docentes são também de grande valia para os formadores, se estes se tornam
efetivamente leitores avaliadores, encontrando sentidos novos produzidos pela autoria
dos professores. Entretanto, além de exigir a produção de textos docentes, é preciso
aprender a realizar uma leitura densa destes, escapando de uma postura avaliativa de
correção e buscando encontrar sentidos inusitados mais particulares impressos pelos
sujeitos escreventes, como resposta à formação oferecida. Neste projeto, a intenção
primeira é criar mecanismos para se avaliar a escrita docente, tomando-a como um
indício da qualidade dos processos de formação planejados e implementados.
Observando-se e analisando-se os gêneros discursivos que são frequentemente
solicitados em formação inicial e continuada bem como os gêneros discursivos que se
revelarão mais propícios a expressar as relações inusitadas estabelecidas pelos autores
docentes entre teoria e prática, i.e., concepções aprendidas em estudos oferecidos pela
universidade que veicula pesquisas mais recentes sobre a linguagem e relatos e
narrativas que registrem e documentem a prática de professores efetivamente
desenvolvidas nas escolas, concluir-se-á sobre formas de expressão docente que possam
ser mais profícuas, aproveitadas em processos futuros de formação docente, de modo
que professores leitores profissionais leiam textos de autores professores.
Palavras Chave: Escrita docente; Leitura profissional docente; Formação de professores
Professores da educação básica têm sido instados cada vez mais a escrever
textos nos contextos de processos de formação, sob demanda de seus formadores,
professores do ensino superior. Memoriais, relatos de suas práticas, planejamentos,
apresentações em Power-Point, dentre outros gêneros de textos, têm-lhes sido
solicitados e esta produção já merece hoje ser estudada, apostando-se que sua análise
possa trazer resultados que instruam novas formações, futuras ações políticas
formadoras que possam incidir sobre as identidades docentes, sobre suas práticas
pedagógicas e, principalmente, sobre a melhoria dos resultados escolares de seus alunos.
No projeto de pesquisa que iniciamos, traçamos como meta o levantamento, descrição e
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análise de textos de professores, que possam subsidiar o planejamento de políticas
educacionais voltadas para a formação. Este projeto investe na hipótese de que a análise
da qualidade destes textos pode se constituir em um instrumento de avaliação da
qualidade das formações oferecidas.
Um interesse urgente hoje é compreender estes textos sob suas diversas facetas,
encontrando as abordagens teóricas que permitam esta abrangência. Tal busca, no
entanto, implica em evitar as abordagens mais frequentes que se atenham estritamente à
sua composição interna, seu caráter linguístico-textual. Estas últimas têm por
consequência o desdobramento prescritivo, sem se ater a contextualizar o processo de
sua produção e acabam por homogeneizar as situações de formação, tomando-as como
previamente conhecidas. A razão pela qual se torna preciso compreender tais produções
docentes como discursos, para além de sua composição textual, é a de se avaliar a
qualidade das formações implementadas.
Os textos (docentes, mas também os discentes, como explicitaremos mais
adiante) são o reflexo dos processos de formação e constituem-se em um rico
instrumento de análise para se compreender as ações de todos os agentes envolvidos:
eles próprios, professores, evidentemente, mas também os formadores solicitantes, os
gestores responsáveis pela infraestrutura material que permite a formação em seu tempo
e espaço, os autores de materiais disponibilizados à leitura e momentos de curso, dentre
outros, inclusive os próprios alunos da escola, que são a ponta desta linha. Somente
assim poder-se-á perceber a importância do objeto textual na rede de relações em que
agentes desempenham funções voltadas à realização da formação.
De fato, neste projeto, embora tomemos as produções textuais docentes como
dado mais complexo a analisar, o nosso objeto eleito não se restringe aos textos, mas
estes são tomados de tal forma que equivalerão a um retrato contextualizado dos
processos de formação docente. Consideramos os textos produzidos pelos sujeitos
professores como um rico instrumento de avaliação das formações oferecidas. As
perguntas de pesquisa revelam esta perspectiva: Que gêneros discursivos estão mais
fortemente presentes em contextos de formação? Por que estes gêneros se cunham como
adequados ao trabalho de produção de conhecimento deste contexto? Em que medida é
possível ao professor abordar sua prática pedagógica expressando-se por escrito? Em
que medida mesclam-se as fontes teóricas na elaboração intelectual reflexiva sobre as
práticas pedagógicas? Que usos da escrita estão pressupostos nos textos solicitados?
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(Pela visão dos formadores, há uma expectativa consciente?) Que usos da escrita estão
pressupostos nos textos efetivamente produzidos? Como os docentes têm se comportado
linguisticamente, em resposta a esta demanda de formadores?
Estudar os textos docentes na perspectiva discursiva que propomos – única via
para se avaliar e propor novas formulações para as práticas de formação docente -
significa compreender os contextos de formação em que identidades se colocam em
relação. Cada texto representará necessariamente um diálogo entre interlocutores que
através dele agem uns sobre os outros. Analisar os textos é também analisar a
disposição dos autores como formandos, autorizando-se à escrita e à produção de
conhecimento. Que recursos linguísticos textuais encontram para se expressar? Nestes
textos, há hibridizações entre discursos acadêmicos universitários de pesquisa e
discursos profissionais docentes? Qual é a qualidade desta hibridização?
No passado recente, a universidade vem sendo sistematicamente interpelada a
propor, planejar, coordenar e implementar os processos de formação inicial e
continuada, voltando-se para a educação básica, através do diálogo direto com o
professor, em posição de formando. A ação universitária nas Instituições de Ensino
Superior públicas vem sendo hiperexplorada e este é o limiar histórico de políticas
públicas de onde partimos. Ou seja, já se instauraram, como fruto de diversas ações ao
longo de um período longo, modos de participantes da formação agirem. As práticas de
formação de professores vêm ganhando contornos específicos a serem analisados,
criticados, para que as novas ações tenham uma regulação sistematizada, seguindo
princípios já comprovadamente eficazes. Afirmamos tais objetivos que consideramos de
suma relevância, mesmo que percebamos que, na direção contrária às interpelações tão
repetidas e recorrentes dos últimos anos, hoje estejamos em situação de temer por sua
perda, pois as ações universitárias de coordenação de formações docentes se veem
ameaçadas por um processo de estagnação dos processos em curso, já anunciado.
Temos trabalhado pela educação pública, vencendo disputas para poder interferir
na escola da educação básica, de modo a poder ver vingar as ideias gestadas no âmbito
de nossas pesquisas, transpostas à prática, ao chão da escola. Nesta ação universitária já
duradoura, vimos crescer a demanda direta do Ministério da Educação (MEC) em
relação à realização de programas de governo em políticas de formação continuada dos
professores (PROFA, Pró-Letramento, Olimpíadas da Língua Portuguesa, Gestar,
PNAIC, dentre outros), paralelamente a um crescente investimento em formação inicial
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de licenciaturas (Pibid, Parfor, por exemplo), avaliação de materiais didáticos e de
livros a serem distribuídos a todas as escolas (edições sucessivas de PNBE e PNLD).
Pode-se imaginar que uma demanda foi criada e que a lacuna se tornará gritante
se a universidade for obrigada a bater em retirada. O que antecipar para o futuro, depois
que num tempo (quase já passado, mas ainda corrente) presente, professores formaram-
se, alunos tiveram acesso a livros e experiências de os lerem, havendo dinamização dos
contextos escolares, em função de uma participação ativa de instituições universitárias
públicas? Tememos hoje, pois vemos anunciados os tempos bem mais sombrios, de
cortes radicais de verbas, e supomos que soluções serão necessariamente dadas para o
que se configurou como uma demanda, em caminho já aberto, depois de oferecidas as
sendas, agora já tão populosamente habitadas pelos agentes trabalhando na educação
básica. Paira a iminente ameaça deste espaço passar a conviver, em suas ações, com
instâncias privadas, que certamente têm interesses e, portanto, objetivos muito diversos.
Vemos grassar a presença de materiais oferecidos por instâncias privadas, cujo interesse
e consistência não estão baseados em pressupostos teóricos, coadunando-se com as
conclusões de pesquisas nacionais, focalizadas sobre a nossa realidade brasileira, sobre
a escola que temos, os alunos formados por nós, no contexto brasileiro.
O trabalho realizado na universidade, durante esta longa duração de diretrizes
políticas voltadas para a educação básica desenvolvida nas escolas públicas, certamente
produziu o fortalecimento de identidades docentes, tanto do ensino superior quanto da
educação básica. O benefício supremo de atendermos a demandas de políticas públicas
que são colocadas para a Universidade pelos governos é que, em fazendo-o, sustentamo-
nos em conclusões de pesquisa e, a partir de nossa posição de pesquisadores, atuamos
respaldados por esta responsabilidade teórica, que é intrínseca e atribuída aos
professores universitários, desde que no modelo universitário pesquisa, ensino e
extensão em triangulação dinâmica e interalimentando-se2.
Os pesquisadores universitários vimos nos constituindo em renovadas posições
no campo educacional, atuando como autores de artigos e de capítulos em volumes,
materiais distribuídos pelos programas aos professores em processos de formação, como
formadores, em situações presenciais, mais diretamente ligados aos docentes e mesmo
no ensino, nos cursos de graduação, antevendo nossos alunos como futuros professores
da educação básica. A universidade é cenário da formação docente e o coletivo dos
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agentes envolvidos nos tempos e espaços de formação docente tem sua experiência
ligada à universidade, lócus em que identidades e discursos constituem-se.
É nesse contexto histórico, institucional, político e social que esta pesquisa se
insere. A pesquisadora proponente deste projeto considera que pesquisadores devemos
nos tomar como sujeitos de nossa própria pesquisa, cujo objeto seja a formação de
professores da educação básica, por compreender que somente assim se pode aproximar
seu olhar da formação de professores. A formação, embora seja de professores, apenas
se produz nas relações entre os agentes, suas funções, os papéis e as representações
mútuas, decorrentes destas posições. Com o resultado em mãos, a responsabilidade será
a obrigação de que por si mesmo se constitua como uma devolução ao campo
educacional que terá sido estudado, traduzindo-se em propostas concretas que
signifiquem avanços dinamizadores das relações escolares. A pesquisa dá-se por
compromisso ético constituir subsídio orientador para políticas públicas futuras.
Objetivos da Pesquisa Neste contexto, aqui descrito de modo breve, o objetivo principal é compreender
os gêneros de discurso docentes que se vêm produzindo hoje, decorrentes de processos
de formação continuada que por sua vez têm considerado o professor como seu
interlocutor. Os modos possíveis disponibilizados à enunciação dos interactantes
dependem dos modelos e princípios de formação atualmente postos em funcionamento e
serão determinantes dos gêneros produzidos. A hipótese é que no discurso docente a
hibridização entre os discursos universitário e o discurso escolar produz a autoria.
Prevista como culminância deste projeto de pesquisa, em sua última etapa de
amadurecimento, está no horizonte uma linha editorial docente. A meta é a publicação
de textos docentes que atendam a diversas demandas de um mercado novo, em que
leitores e escritores profissionais possam se encontrar. As características deste novo
público poderão nos ensinar sobre as novas relações entre Universidade e Escola, sobre
um letramento profissional que possa ganhar contornos inusitados, mas suas restrições e
possibilidades estão ainda por se descobrir.
Ganhamos, nesse sentido, também nós, formadores-pesquisadores, novas
posições na rede simbólica: a posição de editores. Para além da posição de orientadores,
de professores, de formadores e outras, ganhamos ainda a de editores. Estimularemos e
selecionaremos os textos docentes. Que sejam textos do professor, por serem
necessariamente textos para o professor, pois se fazem a partir de uma convivência
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escolar, textos com o professor. Assim, a pesquisa poderá passar a produzir seus textos
sobre o professor (desde que sejam também do, com e para, não contra, nem apesar).
Um critério para se pensar editorialmente esses textos é o de relações
intertextuais, ou como textos se compreendem e se leem entre si. Primeiro princípio
intertextual: os textos docentes a serem publicados deverão ser sobre textos, produzindo
uma descrição crítico-analítica de textos infantis, ou seja, avalia-se a qualidade e
considera-se ―um bom texto docente‖ a partir da observação dos modos como (e se!)
estão imbricados os textos discentes. Um professor para escrever sobre sua prática
deveria ser um leitor das produções de seus alunos, encontrando a validação do que faz
com estes na avaliação das produções discentes: ver-se nos textos de seus alunos.
Segundo ponto a se observar: os textos a serem lidos na escola deveriam ser
retirados de âmbitos sociais diversos, que passam à esfera escolar através do ato
docente, para então servir aos fins pedagógicos imaginados. Além da esfera
universitária, da esfera institucional educacional das secretarias de educação, que outras
esferas contribuem para a esfera escolar, em termos de leituras docentes?
Como terceiro princípio de observação para esta análise, reservamos uma
dimensão especial aos textos literários, que têm sido pensados por nós como um espaço
especial rico em possibilidades de compreensão sobre os modos de presença da
linguagem na escola. Temos criticado a ideia de prazer e deleite presente no horizonte
de representações da literatura e materiais propostos para as formações docentes, para
propor que a literatura deveria traduzir momentos de abordagem da experiência
humana, inclusive (e principalmente na escola) da experiência da produção de
conhecimento (ANDRADE, FRAMBACH e OLIVEIRA, 2015; ANDRADE 2016a)
Por último, mais particularmente, last but not least, o enfoque sobre os textos
acadêmicos, de pesquisa, teóricos, escritos pelos pesquisadores terá evidentemente um
destaque, tendo em vista nossa perspectiva de observação. Estes últimos são os mais
frequentemente apropriados pelos professores de formas inusitadas, invertendo a relação
teoria e prática e retensionando a rede em seus pontos, ressignificando posições por
novos distanciamentos produzidos.
Contextualização Política e Institucional
Stephen Ball (2013) propõe que se pensem nas recontextualizações entre
instâncias da política macro, meso e micro, para compreender diferentes modos de
apreensão dos objetos de conhecimento. Assim, as diretrizes políticas, a partir do
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momento em que são formuladas por instâncias de poder, passam aos gestores que as
tomam em mãos, chegando a seguir aos que sofrem na base as consequências destas,
como os professores. No caso das políticas de formação de professores, o Ministério da
Educação representaria muitas vezes a primeira instância, que propõe políticas de
formação nacionais; as secretarias de educação ocupariam a segunda posição,
respectivamente, e as escolas, estariam no nível micro. Com esse autor, compreendemos
tais formas de recontextualização como o efeito discursivo das políticas.
Este efeito pode igualmente ser compreendido, através de uma visão mais
curricular, em termos de uma transposição didática em curso, ou seja, um processo de
transmutação do conhecimento científico (CHEVALLARD, 1985) que do interior de
ações políticas vai sendo ressignificado em diferentes esferas sociais (Bakhtin) ou de
campos (Bourdieu). Temos buscado significar a ideia de formação docente sob uma
perspectiva discursiva, entendendo-a como um processo de operação sobre
conhecimentos científicos, em suas transmutações em saberes docentes (TARDIF,
2005), bem como de recontextualizações de ordem política.
Os espaços de ação de universitários que atuam como formadores (pela via da
extensão universitária), junto a professores da educação básica, que por sua vez atuarão
com seus alunos, são espaços sociais, historicamente constituídos e como tais imprimem
identidades aos sujeitos que dele participam como atores. Hoje, a expressão formação
de professores remete à atuação da universidade junto a professores, em prol de
transformações de conhecimentos profissionais que por sua vez, ao serem modificados,
permitirão a mudança de práticas sociais dentro de um certo espaço social, que é o
educacional. Os conhecimentos teóricos, conceituais e de pesquisa produzidos na
universidade serão colocados em transformação, pela via dos modos como serão
operados os diálogos entre formadores universitários e professores da educação básica,
e recomporão modos estruturantes de agir sobre professores e alunos.
Os professores em formação inicial e continuada são leitores e estão
evidentemente escrevendo textos, cada vez mais intensivamente solicitados em
processos de formação. Observa-se hoje uma abundância de gêneros discursivos que se
têm firmado como produtivos, interessantes a explorar com fins formadores, dos quais
cito alguns mais em evidência: portfólios, memoriais, relatos de experiência, registros
fotográficos ou fílmicos, apresentações orais, planejamentos, dentre outros.
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Em decorrência de uma preocupação teórica de pesquisas no campo da
formação, busca-se, através de ações como as que integram este projeto de pesquisa,
elevar o saber docente (TARDIF, 2003) e religar as relações entre Universidade e
Escola (ZEICHNER, 2003). Ao objetivar e dar visibilidade à voz e aos saberes
docentes, integrando formas de professores e futuros professores lerem(-se) e
escreverem(-se) na contemporaneidade, este projeto integra leitura e escrita na formação
inicial e continuada de professores da educação básica, dando-se por objetivo principal
a ação da publicação de textos escritos por professores que possam ser lidos por
professores (ANDRADE, 2011a).
A Leitura e as identificações docentes
A partir de alguns estudos feitos sobre a identidade docente do professor
brasileiro, acrescidos de outros sobre suas formas específicas de leitura, podemos
compreender os professores brasileiros como leitores escolares (BATISTA, 1998), ou
seja, indivíduos que se formaram na crença de que os modos tradicionais escolares são
os que melhor vingarão, os que farão das crianças futuros cidadãos no pleno exercício
de seus direitos. As formas escolares de tratar a linguagem escrita seriam, na visão dos
docentes brasileiros, aquelas consideradas adequadas, necessárias e suficientes para
formar leitores novos, visto que foram estes mesmos moldes os deles, formadores. Em
suas práticas culturais, os professores não são leitores de literatura de ficção, ou
literatura como arte. Leem preferencialmente livros informativos, inclusive os
profissionais, sobre Pedagogia para sua atualização. (GATTI, 2004)
A perspectiva em rede da formação docente permite-nos propor uma visão
homológica, ou seja, paralelamente irradiando sentidos refletidos em as esferas sociais
que assim se interdinamizam, imantadas em suas fronteiras, internamente energizando-
se a partir de suas margens, umas interferindo indiretamente nas outras. As simetrias
que se possam aí produzir identificadas pelo analista do discurso não são puro reflexo
simétrico, equivalendo-se precisamente mas configuram desvios, inovações. Por este
desenho imaginário, alunos, professores e formadores, pelo menos (a depender do
recorte possível a se efetuar na materialidade da rede), ao cumprirem seu papel, ecoam
lições e experiências a seus pares, sejam estes mais ou menos diretos.
Os nós da rede pontuam e desenham um mapa, como se os campos mencionados
estivessem recobertos por esta rede, e os sujeitos situados nos nós fossem instados a
produzir discursos no contexto da formação continuada, ou seja, interpelados a se
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pronunciar e, assim, consequentemente, dinamizarem as relações, concebidas em sua
natureza alteritária, situada no intervalo entre os sujeitos-professores.
Para que seus alunos leiam e escrevam mais e melhor, professores têm antes que
experimentar processos de leitura e de escrita. A voz docente, como qualquer voz social,
ao ser tratada alteritariamente, com escuta e responsividade, não permanecerá ―a
mesma‖, nem igual à sua própria, antes de escutar a do formador, e nem igual à do
formador, ou seja, transformada em um modelo. Será ainda uma terceira, capaz de
hibridizar vozes, as que se encontram diante de si na escuta da enunciação e outras que
sejam antecipadas, inclusive. Por exemplo, a voz de seus alunos, vozes infantis, marcam
a voz docente mais do que talvez a do formador. As diferentes vozes interpeladas a
serem ditas são intervenientes nesta formação discursiva.
Se professores se alteram, os formadores também se alteram, ao ver que efeitos
se produziram pela voz docente. Formadores se surpreendem ao observar os novos
sentidos que são produzidos por seus interlocutores professores, assim como professores
surpreendem-se pela escuta das interpretações de seus alunos, do que estes são capazes
de produzir como sentidos, a partir de um trabalho com a literatura que eles planejam.
Por último, é preciso se precaver de dois perigos, iminentes quando se diz, a
partir do ponto de vista universitário que é o nosso, de pesquisa, que se deseja examinar
os discursos docentes. Em primeiro lugar, a relação entre os discursos docentes e os
discursos dos formadores é de muita proximidade, tendo em vista a interlocução tão
viva e presente que produz as enunciações na formação de professores. Os textos
docentes trarão marcas destas interações entre formadores e professores e, sendo os
primeiros universitários, é portanto do discurso universitário que se trata.
Entretanto, - eis o segundo perigo – não se deveria esperar que os discursos de
docentes que são colocados em contato intensivo com formatos textuais universitários
devessem ser avaliados com parâmetros de textos universitários. A aproximação com o
discurso universitário não significa modelização e decalque, o que evidentemente
empobreceria a autoria e voz docente. Os textos docentes não deixam de ser textos
universitários, mesmo quando não o reproduzem ipsis litteris e criam seu próprio estilo.
Sua natureza híbrida os define como incessantemente reconstituídos sempre e
necessariamente, em relações intergenéricas, reproduzindo gêneros universitários e
escolares, além de outros possíveis.
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Numa concepção de gêneros de acordo com a concepção de linguagem que
assumimos e que desejamos ver realizada em nossos atos de formação, a imbricação de
experiências equivale à intercalação de gêneros, pela autoria docente. Destacamos
algumas imbricações: dos gêneros orais e gêneros escritos; das leituras na relação com o
que se escreve (pressupor leituras docentes para se esperar uma nova escrita docente);
de gêneros já adquiridos, bem manuseados pelos autores escritores ou oradores, em
simultaneidade com gêneros que se apresentam apenas em germe, misturados na mesma
produção discursiva (BAKHTIN, 2003; CORRÊA, 2004; FIAD, 2003).
Para que se possam formular princípios que ancorem políticas educacionais,
nosso ponto de observação e descrição teórica permite argumentar a favor da construção
de uma posição discursiva de um formador leitor de textos docentes, avaliando a
qualidade destes textos em função da mais intensa e aprofundada relação com textos de
seus alunos. Pesquisadores-Formadores avaliam textos de professores formandos em
função da avaliação que os professores fizerem dos textos de seus alunos. Tanto mais
bem formado será o professor que melhor souber discorrer consistentemente sobre os
textos de seus alunos. A medida de sua autoria dá-se também pelo desenvolvimento que
possa realizar em termos reflexivos sobre a produção discente.
O professor vai ler/ver a produção discursiva de textos escritos de seus alunos
como um resultado de seu próprio trabalho pedagógico. (Re)escrever suas
decisões e planejamentos, para implementar espaços e tempos que permitirão
aos escreventes aprendizes produzirem. Seus atos e seus textos sobre estes
são sempre avaliações dos efeitos de seus atos sobre outros (discentes), uma
resposta às respostas2.
Textos sobre textos, da ponta da linha do chão da escola, enunciados pelos
alunos a partir de processos pedagógicos implementados por professores, até a
formação. Irradiam-se os textos na mediação entre interlocutores, pois ressignificam-se
uns textos ao serem avaliados por seus leitores.
A busca, captura e análise de textos docentes previstos como ponto de partida
desta pesquisa têm por objetivo desierarquizar os conhecimentos e os saberes (TARDIF,
2003). Quer que se desenhem novas posições, entre o conhecimento científico, de
domínio intrínseco à universidade, e os saberes docentes, nem sempre valorizados como
conhecimentos. Desejamos ver professores trabalhando sobre o seu fazer pedagógico,
por meio de uma reflexão intelectual sobre os textos de seus alunos. Consequentemente,
estarem motivados para escreverem sobre esta reflexão, tendo como horizonte a utopia
que seus pares possam tirar proveito de suas conclusões. Não apenas os pares
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professores da educação básica, mas também nós pesquisadores universitários
poderemos nos tornar leitores de novos autores, talvez não estritamente acadêmicos:
Que eu autora formadora universitária cite professores
sendo citados por professores, que os diálogos entre
os pares sejam meu objeto de leitura. ―Apud
Professores et alii‖, quero assim citá-los, o seu
coletivo de docentes, não apenas como meus sujeitos
de pesquisa, mas como autores de suas escritas em um
discurso profissional. (ANDRADE, 2011b) Hoje, a voz docente não ecoa autoralmente. A maior parte dos poucos
enunciados docentes existentes encontram-se aprisionados, no interior de textos
acadêmicos, escritos por pesquisadores. Desfazer esse laço-nó, esta forma de se
relacionarem sujeitos investigadores e investigados desfazer as assimetrias das posições
seria um objetivo louvável, como já escrevi antes (ANDRADE, 2016)
Uma formação alteritária, baseada no dialogismo que busque uma posição de
escuta da voz docente, será capaz de produzir autorias. Querer um discurso deste outro,
um discurso que só ele poderá inventar, desde que autorizado por leitores interessados.
Os textos docentes, profissionais, que tratem de sua profissionalidade, apresentará
organizações discursivas distintas das acadêmicas, que eu sou capaz de realizar, mas
que não cabe ensinar explicitamente em formação. Os textos docentes dependem
também de minha ação de formadora, mas também de pesquisadora, orientadora, leitora
e escritora (de textos de pesquisa).
REFERÊNCIAS
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alfabetizadores e suas exotopia constitutivas. Revista da ABRALIN, v. eletrônico, p.
311-331, 2011a.
ANDRADE, L.T de. Formadores et allii: as alterações identitárias de professores
universitários constitutivas de discursos docentes. Conferência proferida no concurso
para professor titular na Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ- setembro de
2011b.
ANDRADE, L. T. de, OLIVEIRA, M. F. A. P. de S. e FRAMBACH, F. de A. Leitura
Literária nos Processos de Formação: Entre o deleite e a alteridade. Trabalho
apresentado no JOGO DO LIVRO GPELL UFMG, out. 2015.
ANDRADE, L. T. de. A leitura literária entre professores e crianças na Educação
Básica. In: Cadernos de Literatura do MEC, vol 3 (no prelo), 2016a.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
2635ISSN 2177-336X
25
ANDRADE, L. T. de. Por uma formação de professores em moldes discursivos.
Trabalho apresentado em mesa redonda no CONBALF (Associação Brasileira de
Alfabetização), 2015. (Livro no prelo com os textos das mesas).
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BALL, Stephen J. Education, justice and democracy: The struggle over ignorance and
opportunity. 2013.
BATISTA, A. A. G . A leitura incerta: a relação de professores(as) de Português com a
leitura. Educação em Revista (UFMG), Belo Horizonte, n.27, p. 85-103, 1998.
CHEVALLARD, Y.. — La Transposition didactique: du savoir savant au savoir
enseigné. Grenoble, Fr. La Pensée Sauvage, 1985.
CORRÊA, M. L. G. O modo heterogêneo de constituição da escrita. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
FIAD, R. S. et. al. Considerações sobre a diferenciação de gêneros discursivos na escrita
infantil. In: VAL, M. da G. C. e ROCHA, G. (orgs.) Reflexões Sobre Práticas
Escolares de Produção de Texto. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
GATTI, B. Perfil dos professores brasileiros: o que fazem, o que pensam, o que
almejam São Paulo, Moderna, 2004
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2003.
ZEICHNER, K. Para além da divisão entre professor-pesquisador e pesquisador
acadêmico. In: GERALDI, C., FIORENTINI, D. (orgs.) Cartografias do trabalho
docente. Campinas: Mercado de Letras, 2003.2
_________________________________________
2 A Faculdade de Educação da UFRJ tem se mantido ativamente engajada em demandas do
Ministério da Educação. O Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação - LEDUC
–, cuja coordenadora é a autora deste projeto de pesquisa, tem trabalhado desde 2005 em projetos de
formação continuada implementados pelo governo federal, ou ações que podem ser consideradas
formadoras, indiretamente, como é o caso da avaliação de materiais a serem utilizados nas escolas. São
estes, por exemplo: PNBE (2005); PNLD (de livros de alfabetização); Olimpíadas da Língua Portuguesa
(coordenamos o estado do Rio de Janeiro); ações da Rede Nacional de Formação de professores com
Cursos de Extensão oferecidos aos professores (duas edições), dentre outros, dos quais destaco o PNAIC,
coordenado por esta IES desde seu início em 2013. O tema da formação docente e do ensino da língua
portuguesa nos anos iniciais da Educação Básica tem sido perseguido por nós nas pesquisas e orientações
de monografias de graduação, trabalhos de pós-graduação lato senso, dissertações e teses. 2 A última pesquisa desenvolvida pelo grupo sob minha coordenação foi financiada pela CAPES, Edital
38 de 2010 do Observatório de Educação, no período compreendido entre janeiro de 2011 a junho de
2015. Durante este tempo, as teses e dissertações, monografias de graduação e pós-graduação lato senso,
artigos publicados, capítulos de livros, apresentação e publicação de trabalhos em eventos científicos
nacionais e internacionais e a organização de eventos produzidos por nossa equipe de pesquisa somaram
mais de uma centena de produções. A pesquisa As (Im)possíveis alfabetizações de alunos de classe
popular pela visão dos docentes da escola pública propôs-se e sustentou-se como uma pesquisa-formação.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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As posições de formador, pesquisador e professor, assim como a de leitor, escritor e autor de trabalhos
sobre as práticas pedagógicas escolares são ocupadas pelos agentes envolvidos na ação de formação.
2 Slide 29 do power point intitulado ―As possíveis alfabetizações pela visão dos docentes‖ apresentado na
abertura do III Seminário Escrita Docente e Discente (realizado nos dias 18, 19 e 20 de setembro de 2014
na Universidade Federal do Rio de Janeiro) pela Ludmila Thomé de Andrade.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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27
O QUE AS CRIANÇAS DIZEM SOBRE A ESCRITA NA ESCOLA?
Renata Rezende Gondim
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Colégio Pedro II
Resumo:
Este trabalho objetiva apresentar uma pesquisa em andamento tem como objetivo
identificar os conhecimentos e sentidos que as crianças têm sobre a escrita a partir de
seus discursos orais e escritos em uma turma do segundo ano do Ensino Fundamental,
formada por meninas e meninos com idade entre 7 e 8 anos de uma escola pública,
moradoras de bairros situados na região metropolitana do Rio de Janeiro. A escolha por
analisar os discursos infantis tem como pressuposto relacionar os processos de ensino
com os diferentes processos de aprendizagem da escrita. Apresento neste artigo o
desenrolar de uma investigação sobre as aprendizagens infantis a partir da reflexão das
crianças sobre seus textos. Baseada na perspectiva dialógica de Bakhtin (2011, 2013,
2014) e dialogando com Volochínov (2013), o caminho metodológico escolhido foi a
análise do discurso. Nesse sentido, para a compreensão do todo discursivo, as
observações das situações de ensino e aprendizagem da leitura e escrita descritas
apresentaram registros dos contextos e das situações extraverbais.
Palavras-chave: Linguagem; Ensino e Aprendizagem da língua escrita; Discurso
docente e discente.
Introdução:
A verdadeira substância da língua não é
constituída por um sistema abstrato de formas
linguísticas nem pela enunciação monológica
isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da
interação verbal, realizada através da
enunciação ou das enunciações
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014, p. 127,
grifos do autor).
Em oposição ao modo de entender a língua como produto de uma ação isolada
ou como um sistema linguístico abstrato, Bakhtin/Volochínov (2014) apresenta a
alternativa de entender a língua como um fenômeno social de interação verbal. Esta
terceira concepção é desenvolvida pelo Círculo de Bakhtin e reconhecida como
concepção dialógica de linguagem.
A discussão proposta neste trabalho situa-se no interior de uma concepção de
linguagem (BAKHTIN, 2011) que considera a importância central da interação entre
professores e alunos. A perspectiva filosófica de Bakhtin (2011; 2013; 2014) permite-
nos assumir um ponto de vista sobre a linguagem que se configura nas relações sociais e
que confere uma dimensão sócio-histórica aos sujeitos, oferecendo suporte para
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
2638ISSN 2177-336X
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explicação da diversidade de fenômenos do campo educacional e, em especial, para a
prática educativa de ensino da leitura e escrita.
A linguagem não é considerada apenas de um ponto de vista, seja de um falante
ou de um ouvinte, ou seja, de sujeitos que se expressam individualmente ou que
respondem passivamente à recepção e compreensão do discurso, mas apresenta-se como
um processo complexo e ativo da comunicação. Numa perspectiva dialógica de
linguagem, a compreensão e percepção do discurso do outro implica numa posição ativa
e responsiva, que se estabelece ao longo do processo. A dinamicidade dessa noção de
língua, dos modos de ação e participação dos sujeitos na linguagem correlaciona-se com
a interação entre os participantes, no caso, das crianças, com seus interlocutores.
Desse modo, a linguagem não está fora do sujeito e também não é criada por ele,
mas é dada a ele. Cada criança não se apropria da língua materna, assim como não
reconhece sua composição vocabular e estrutura através do estudo sistematizado
orientado para estes fins, mas acessa-a através de sua participação nas enunciações
concretas.
Nós assimilamos as formas da língua somente nas formas das enunciações e
justamente com essas formas. As formas da língua e as formas típicas dos
enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência e à
nossa consciência em conjunto e estreitamente vinculadas. Aprender a falar
significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e
não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas)
(BAKHTIN, 2011, p. 283).
Os enunciados emergem de um contexto social repleto de significados e valores
e são considerados atos responsivos, como tomadas de posição, respostas àqueles que os
antecederam e a todos os que os sucederão. Diante disso, consideramos que, para
entender o processo de apropriação da escrita pela criança, assim como a sua
participação nas interações de sala de aula, se faz necessário a análise das condições de
produção dos enunciados. Nesse sentido,
Não se pode dizer que a criança faça uso da língua, mas, antes, que ela é
confrontada com variados usos, dependendo do interlocutor, e é esse
confronto que lhe permitirá retomar integral ou parcialmente o que ela ouve,
modificando totalmente ou em parte (DEL RÉ, DE PAULA e MENDONÇA,
2014, p.27, grifo do autor).
Lemos (1999) investiga o trabalho realizado com a língua e a ação da criança na
interação e se propõe a compreender a conversão do discurso do outro em discurso
próprio. Nesse processo, a produção linguística infantil permanece determinada pelo
discurso do outro por um tempo significativo e instaura uma nova relação da criança
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com o outro e com a linguagem. De acordo com a autora, os enunciados iniciais de
muitas crianças resultam da extração de fragmentos de discursos de interlocutores mais
experientes. Através da retomada a palavra do outro, a criança faz a seleção e escolha de
determinados discursos no lugar de outros, se posiciona no discurso de um modo
diferente.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochínov (2014) propõe
uma análise da citação da palavra de outrem e de suas variantes no discurso literário. De
acordo com o autor, é possível distinguir modos distintos de citação, ou seja, esquemas
padronizados para citar o discurso que estabelecem uma relação entre a palavra alheia e
a própria: discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014, p.149). Os esquemas apresentados são
considerados como padronizações de citação do discurso influenciadas por tendências
literárias dominantes, elaboradas conforme a língua, a época, ou grupos sociais e
contextos.
Essa estratégia, nomeada como discurso citado, para o autor, não é apenas ―o
discurso no discurso‖, a ―enunciação na enunciação‖, mas é, ao mesmo tempo, um
―discurso sobre o discurso‖, uma ―enunciação sobre a enunciação‖ (p.150). Nesse
sentido, o discurso é citado por um falante numa outra situação e contexto como uma
enunciação de outrem, dotado de autonomia, mantendo seu conteúdo e, conforme o
autor, apresenta rudimentos da sua integridade linguística e estrutura (p.151). Ao
transpor a enunciação outra para um dado contexto, o discurso reproduzido integra
outros elementos e outros matizes, concretizando a sua transmissão a partir de
determinada construção verbal, que segue distintas direções e diferencia-se pela forma
como é retomada pelo falante e destinada a terceiros. O discurso citado, na condição de
situado fora do contexto narrativo, passa a pertencer ao contexto narrativo.
Esse fenômeno da reação da palavra à palavra, para o autor, é considerado
radicalmente diferente do que acontece no diálogo por não existirem formas sintáticas
que construam a unidade e as réplicas não se integrarem num contexto único. Numa
situação real de diálogo, por exemplo, apenas em casos excepcionais nas respostas
dadas a um interlocutor, ―retomamos no nosso discurso as próprias palavras que ele
pronunciou‖ (p.152).
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
2640ISSN 2177-336X
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Com base nestas breves reflexões, interessei-me neste trabalho pelo aspecto
metodológico da questão, ou seja, pelos procedimentos de citação da palavra de outrem
em situações de ensino e aprendizagem da língua escrita.
A partir deste referencial teórico, as produções infantis podem ser entendidas
como enunciados concretos e como resultado de um trabalho das crianças movido pela
alteridade, constituído pelas relações com seu outro-intelocutor (professora/professora,
amigos e amigas etc.) e com sua história e experiência com a língua oral e escrita.
Nas interações entre professoras e crianças, é comum a menção a determinados
conceitos que materializam a língua e são nomeados e constituídos por um conjunto de
sinais e regras. Na escola, esses conteúdos linguísticos, que chegam até as crianças
através das palavras docentes nos encontros destinados ao estudo da língua, devem ser
apreendidos pelas crianças para que suas produções escritas sejam organizadas e
estruturadas a partir desses elementos. Essas palavras ditas e as regras compartilhadas
que passam a constituir de modos diversos os enunciados orais e escritos das crianças,
sendo apropriadas e materializadas de modos distintos por elas, podem indicar
caminhos de elaboração infantil em relação a conhecimentos sobre a escrita.
Neste estudo, foram observadas num período de seis meses, atividades
realizadas de ensino e aprendizagem de leitura e escrita numa turma do segundo ano do
Ensino Fundamental de uma escola pública, com o objetivo de identificar os
conhecimentos e sentidos que as crianças têm sobre a escrita a partir de seus discursos
orais e escritos. O estudo se constituiu a partir de procedimentos como a observação,
interpretação de eventos registrados em caderno de campo e de gravações em áudio.
As palavras das crianças: O que, para quem, como e por que falam sobre a escrita?
No espaço escolar, sujeitos da linguagem, professora e as crianças moldam seus
discursos em formas relativamente estáveis de enunciados (BAKHTIN, 2011) e, ao
elegerem a língua escrita como objeto de estudo em situações de ensino e aprendizagem
definem ―um certo gênero de discurso‖ (BAKHTIN, 2011, p.282). As ações que se
produzem com a linguagem nesse espaço são resultantes de um conjunto de condições e
de interações entre os sujeitos envolvidos.
Na turma observada, os momentos de sala de aula alternavam-se entre situações
de trabalho com a língua oral e escrita coletivas e individuais. Na interação com seus
pares e com o professor, as experiências individuais infantis integravam-se às
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experiências escolares. As crianças falavam sobre situações vivenciadas por elas na
escola e fora dela, partilhavam seus saberes, coletivizavam conhecimentos elaborados
em outro espaço da escola, faziam perguntas sobre assuntos diversos, colocavam suas
opiniões e também discordavam ou concordavam com seus amigos enquanto refletiam
sobre a língua em situações de interação comunicativa planejadas. E nesse movimento,
quando as crianças falavam, perguntavam ou escreviam, apontavam ―para a professora
o seu modo de perceber e relacionar com o mundo‖ (SMOLKA, 2008, p.43) e nessa
relação, o conhecimento se construía.
A cada momento que antecedia o registro de um texto, a professora conversava
com a turma sobre o uso de alguns elementos linguísticos que ela chamava de cuidados
com a escrita. Esses eram listados no quadro junto com as crianças, lembrados pela
professora enquanto ela circulava pelas mesas, repetidos enquanto era feito algum
registro no quadro e, em outros momentos, as crianças eram questionadas sobre quais
seriam os cuidados que deveriam ter ao escrever.
[Após a leitura literária, a professora diz para as crianças que elas terão que
escrever sobre uma sequência de tirinhas de uma história em quadrinhos. Em
seguida, a professora escreve no quadro alguns cuidados que devem ter ao
registrar por escrito os seus textos:
parágrafo
letra maiúscula: começo da frase, nome do personagem
travessão: na fala do personagem
dois pontos: antes das falas
pontuação no final da frase: . ? !
Enquanto a professora faz esta lista, pergunta que outros elementos devem
ter no texto. Algumas crianças participam:]
Criança 1: - Travessão!
Professora: - Quando termina a frase o narrador pode colocar ponto final.
Criança 2: -Tia, o que é travessão?
[A professora pergunta o que é o travessão para algumas crianças enquanto
escreve o sinal no quadro] (CADERNO DE CAMPO, 10/06/2015).
Considero que esses ―cuidados‖ que as crianças deveriam ter estão associados a
ações do sujeito com a escrita, que envolvem atenção, reflexão e uso de elementos
linguísticos, que tornam-se significativos para as crianças na realização do seu projeto
de dizer. O trabalho de escrita passa a requisitar outros conhecimentos para além do
princípio alfabético do sistema de escrita e da segmentação do texto em palavras,
conhecimentos sobre a língua escrita que são retomados pela professora a cada aula.
Ao serem mencionadas pela professora diante de um grupo de crianças, palavras
como parágrafo, letra maiúscula, dois pontos, pontuação e travessão adquirem
destaque na enunciação. A presença constante desses termos e a ênfase dada a eles
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2642ISSN 2177-336X
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expressa um ponto de vista que se traduz num posicionamento, demonstrando a
importância aos textos estruturados e organizados a partir desses cuidados. Ao
questionar o grupo sobre como deveriam registrar seus textos, ao nomear esse conjunto
de conhecimentos sobre a língua escrita e ao dizer quando seriam usados, a professora
direciona um modo de organização dos discursos escritos das crianças nesse espaço.
Professora: - Começando um texto eu vou fazer?
Criança: - Letra maiúscula!
Professora: - Antes da letra maiúscula eu vou fazer? [Pergunta para a turma
mais uma vez.]
Crianças: - Parágrafo!
Professora: - Eu vou fazer o parágrafo! Parágrafo.. é o espaço que eu vou dar
para começar o meu texto! Sempre que eu for começar a contar sobre uma
cena eu faço o parágrafo! Eu então vou escrever tudo sobre essa cena! Depois
eu vou passar para a segunda cena e vou ter que dar outro?
Criança 1: - Parágrafo!
Professora: - Vou para a linha debaixo, não é isso? Faço de novo o espaço
dos dois dedinhos e .. [Interrompe a fala para chamar a atenção de uma
criança] - Conto tudo que está acontecendo aqui no segundo quadrinho!
Terminei de contar tudo.. vou para a minha terceira cena! Vou fazer o que?
Criança 2: - Parágrafo!
Professora: - Para eu fazer o parágrafo eu vou ter que fazer na mesma linha?
Criança 1: -Não! Embaixo!
Professora: -Vou para linha de baixo! Outro cuidado que eu tenho que ter.. o
que foi que ele falou? [A professora se refere a uma criança que se lembrou
de um cuidado.]
Criança 3: -Usar a letra maiúscula! [Responde outra criança]
(TRANSCRIÇÃO AUDIO 53)
Durante as interações, nos momentos em que eram focalizadas as atenções na
organização de textos, cujo objetivo era refletir sobre o texto lido/escrito e operar sobre
ele, a fim de explorá-lo em suas diferentes possibilidades de realização, as crianças
reelaboravam questionamentos, faziam correções de expressões ditas, diziam de outras
maneiras. Suas falas apresentavam pausas e hesitações. Essas atividades resultavam de
uma reflexão que tomava os próprios recursos expressivos como seu objeto (GERALDI,
2003). Enquanto o grupo, professora e crianças, falavam sobre a língua, realizavam, em
conjunto, uma metalinguagem, construindo conceitos e classificações que definiam
parâmetros mais ou menos estáveis para decidir sobre a organização dos textos
produzidos. E, nesse movimento de reflexão e análise linguística, as ideias e noções a
respeito de parágrafo, travessão, uso da letra maiúscula e pontuação eram elaborados e
reelaborados pelas crianças.
O espaço criado na sala de aula, de intensos debates e análise sobre as produções
escritas, permitia que as crianças compartilhassem suas dúvidas coletivamente, o que
tornava evidente os diferentes processos de aprendizagem. Na mesma medida, o
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
2643ISSN 2177-336X
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convívio das crianças com seus textos possibilitava que elas aumentassem suas
condições de escolha de estratégias de dizer (GERALDI, 2003). Grande parte destes
textos que eram oferecidos como objetos de análises do grupo não funcionava como
modelo de como cada criança deveria organizar suas produções escritas, mas permitia a
exploração através de leituras de suas configurações textuais, apresentando, a partir das
atividades seguintes, outras possibilidades de escrita, conforme podemos observar na
seguinte cena:
[A professora pergunta para a turma se todos os ajustes já foram feitos no
texto de uma das crianças da turma. Em coro a turma responde:]
Crianças: - Sim!!!
Professra: - Vocês têm certeza crianças? O que falta? Quando eu uso o
travessão?
Criança 1: - Quando as personagens estão falando!
[A professora faz uma pergunta para outra criança:]
Professora: - Procura outro travessão em que as personagens estão falando.
[A professora aguarda a criança responder e um pouco depois lê uma parte do
texto dando uma entonação diferenciada para um trecho em que estão
registradas as falas dos personagens.]
Professora: - Consegue achar?
Criança 2: - Não.
Criança 3: - Ali ó..onde tá escrito ―é de ps ou de x-box‖.
Professora: - Se eles estão falando falta alguma coisa aqui...
Criança 1: - Travessão!
Professora: - Certo? [Pergunta a professora para o autor do texto.]
Criança 4: - Acho que sim!
(CADERNO DE CAMPO, 03/06/15)
As crianças produziam, analisavam, revisavam e reescreviam os textos uma das
outras. A proximidade do grupo com o autor do texto permitia que durante a revisão
coletiva este falasse sobre sua produção, e ao mesmo tempo, presenciasse as outras
leituras feitas sobre aquilo que escreveu e verificasse as diversas possibilidades de
registros. A esse respeito, Rocha (2008) aponta que:
A revisão é entendida, aqui, como um procedimento que permite não apenas
ver melhor mas, também, ver de outra perspectiva, na medida em que se
considera que, durante a produção da primeira versão do texto, o aprendiz
tem sua atividade reflexiva centrada em aspectos como: o que dizer; como
dizer; que palavras usar... (ROCHA, 2008, p.73).
No momento de registro, o gesto de escrever revelava-se repleto de pausas, de
dúvidas e de perguntas que evidenciavam processos singulares de elaboração dos
conhecimentos sobre a língua escrita. Para Flusser (2010) no movimento da escrita está
presente uma dialética interna do escrever e do pensar, composto por uma rapidez e por
um modo asmático de registro, seguido de pausas, por um escrevente que organiza o
que quer dizer a partir de uma perspectiva discursiva e histórica.
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[Estou sentada próxima a duas crianças que escrevem sobre o que aconteceu
numa determinada tirinha retirada de uma história em quadrinhos da Turma
da Mônica].
Criança 1: -Ma- çã.
[Fala baixinho uma criança enquanto escreve a palavra que inicia o seu texto.
Pouco tempo depois, a palavra é apagada por ela.]
Criança 1: - Como escreve maçã? [Pergunta para o amigo que está ao seu
lado.]
Criança 2: - Você não sabe? É m-a-ç-ã. [Ele soletra letra a letra para ela.]
[Em seguida, ela escreve a história e vai ditando para ele. Os dois trocam
ideias. Ela diz que prefere escrever antes de chegar ao final da linha da folha
pautada.]
Criança 1: -―E quando estava indo comer as maçãs tum..‖ [Lê para o amigo.]
Criança 2: - Aqui passa para a segunda linha porque é a segunda parte.
[Ela olha para o texto, pressiona os lábios e diz:]
Criança 1: - Vamos perguntar para tia. É melhor! Tia! Tia! [E chama pela
professora que está do outro lado da sala falando com uma dupla.]
[O amigo continua a escrita do texto individualmente. Ela cochicha algo no
ouvido dele e depois volta a chamar pela professora. Os dois retomam a
escrita e brincam durante a atividade.]
Criança 1: - Tia!
Criança 2: - Você ainda quer pedir ajuda dela? Você não desiste! Pelo amor
de Deus!
[Ela levanta e vai até a professora e pergunta:]
Criança 1: - A segunda parte é na linha debaixo?
Professora: - O segundo parágrafo? Sim!
Criança 2: - E aí? [Pergunta o amigo quando ela retorna à mesa.]
Criança 1: - É na linha debaixo!
Criança 2: - Sabia! [Vibra ele.] (CADERNO DE CAMPO, 10/06//2015).
Ao escrever, as crianças não se debruçavam apenas sobre a mesa e desenhavam
as letras na forma cursiva com seus lápis numa folha de papel pautada. Os cuidados
com a escrita, quando lembrados por elas, alterava o tempo da escrita, pois inseriam
reflexões sobre a língua. No momento de produção dos textos, pensavam sobre o que
iriam registrar e como realizariam essa tarefa -influenciados pelo discurso docente-
organizando a sua escrita a partir dos espaços em branco no início de cada parágrafo,
inserindo o travessão nas falas de personagens, pontuando e colocando a letra maiúscula
no início de cada frase. A troca de informações com seus pares e a resposta docente à
sua produção durante o processo de escrita marcavam os textos que se constituíam a
partir de um conjunto de relações significativas e manifestavam o modo como os
sujeitos produtores se relacionavam nesse processo constitutivo (LEAL, 2008).
Professora: - O que estou perguntando é o que fala aqui no início. [Pergunta a
professora para a turma durante a análise de um texto escrito por uma das
crianças.]
Criança 1: - Dois dedos!
Professora: - Como se chama esse espaço?
[Todas as crianças silenciam. A professora escreve a letra ―p‖ no quadro.
Algumas crianças respondem:]
Criança 2: -P de pato! [Diz uma criança rindo.]
Criança 3: - Personagem!
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Criança 4: - Parágrafo!
Professora: - Parágrafo! É o espaço que a gente faz quando começa a escrever
um texto! No caderno e na nossa folha usamos dois dedos! Aqui no quadro
vou usar um espaço maior. (CADERNO DE CAMPO, 03/06/2015).
A professora pergunta e o silêncio infantil é entendido nessas análises como
ausência de palavra e como uma ativa posição responsiva silenciosa (BAKHTIN, 2011).
Algumas crianças desconhecem, outras retardam a resposta à pergunta feita, pois ainda
não nomeiam o espaço que deve ser dado no início de alguns textos. Outras partilham
um gesto presente no ato da escrita (o uso de dois dedos para marcação), que neste
momento significa o que essas crianças elaboraram sobre o parágrafo. E para outras,
esse recurso que dá forma aos textos já é reconhecido nominalmente e é confirmado no
último enunciado da professora, que retoma a palavra dita por uma das crianças
(parágrafo) e não deixa de considerar também as diferentes aprendizagens, pois não
abandona o gesto usado que expressa seus sentidos construídos até o momento, fazendo
uso dele, ou seja, adaptando a marcação feita com os dedos para o seu registro no
quadro. No discurso docente encontro um sujeito que comparticipa com as crianças de
gestos de escrita ao utilizar em seus enunciados expressões que a inserem ao grupo (a
gente, verbos na primeira pessoa do plural). As crianças participam de um diálogo com
a professora que neste momento não se coloca numa posição de aferição apenas, mas de
interlocução também.
As crianças, em seus discursos orais e escritos, dizem como e quais
conhecimentos sobre a língua escrita têm elaborado e compartilhado neste espaço. O
conceito de parágrafo está representado tanto no gesto de quem estabelece a marcação
para esse componente no início de seus textos, como nos outros que não seguem essa
delimitação, mas que estruturam a escrita a partir de blocos de ideias. Ao falar sobre
esse e outros conteúdos linguísticos, cada criança revela indícios de seu processo de
aprendizagem para os sujeitos responsáveis pelo ensino, e também orienta o trabalho de
seus pares com a língua escrita. Nas particularidades dessas interações, conceitos,
formas de compreender o mundo, as significações negociadas, tudo vai construindo um
interdiscurso do qual cada discurso é parte (GERALDI, 2010).
Considerações
Falar em linguagem da criança, dos processos de apropriação da escrita e dos
conhecimentos construídos em outros contextos na interação significa falar da forma
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como cada um destes sujeitos singulares se relaciona com a linguagem neste momento
da vida. Professores e professoras, para compreenderem como se dá esse processo de
apropriação, podem tentar se deslocar e realizar interpretações a partir de um ponto de
vista diferente do seu, adulto, como a perspectiva infantil, por exemplo, pois as crianças
apresentam uma história com a linguagem diferente se em comparação com os adultos.
No espaço da sala de aula, quando o sujeito enuncia-se, por vezes ensinando e
por vezes aprendendo, entra em contato com outro e se constitui nos processos de
interação verbal. Numa perspectiva dialógica de linguagem, sujeitos selecionam as
palavras, modulam sua fala e modos de dizer, proferindo formas específicas de
enunciados a partir das relações estabelecidas num determinado contexto (BAKHTIN,
2011).
Nesse sentido, é possível dizer que as crianças participavam das situações em
contexto escolar de forma ativa e agiam como atores sociais. Dos diálogos entre
professoras e crianças, os enunciados infantis mesclavam os discursos docentes,
diferenciando-se ou não dele, apresentando formulações que expressavam os sentidos
elaborados por cada um desses sujeitos para as experiências com a linguagem. Nesse
processo que constitui as interações verbais, as crianças ora assumiam um lugar no
discurso que as aproximava do papel exercido pela professora, ora se distanciavam, e
nessa relação alteritária, deixavam marcas sobre seus processos de aprendizagem,
apresentando suas visões e ideias elaboradas sobre os temas discutidos naquele espaço.
Este trabalho apresenta pontos de articulação entre o ensino desenvolvido na
escola numa turma dos anos iniciais e as aprendizagens infantis sobre a escrita. A
decisão pelo registro dos diálogos entre professora e crianças, e crianças e crianças nos
momentos que antecederam e ao longo da produção de textos, possibilitou que fosse
realizada a análise dos enunciados orais e escritos, revelando diferentes dizeres infantis
sobre conhecimentos linguísticos e nuances do trabalho destes sujeitos com a linguagem
verbal. As discussões propostas por Bakhtin, somadas às de autores e autoras analistas
dos discursos, conduziram a reflexões sobre a maneira que as crianças elaboram suas
concepções sobre a escrita a partir de informações sobre a língua, oferecidas pela
professora e por seus pares.
Numa turma do 2º ano do Ensino Fundamental os discursos orais e escritos
revelavam seus saberes sobre a linguagem escrita. Sabiam que esta requisita outros
conhecimentos para além do princípio alfabético da escrita e da segmentação do texto
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em palavras. Termos como parágrafo, letra maiúscula, dois pontos, pontuação e
travessão adquiriam destaque nos enunciados docentes pela ênfase dada a elas,
expressando um ponto de vista que se traduzia num posicionamento e demonstrava ao
grupo de crianças a importância dos textos estruturados e organizados a partir desses
cuidados.
Como apresenta Smolka (2008), do ―ensino‖ da professora ao ―aprendizado
correto‖, está presente ―um espaço para reelaboração individual da criança‖ (p.43). A
professora se referia a conhecimentos linguísticos, compartilhava regras e usos,
organizava e conduzia situações de análises da língua escrita. As crianças se referiam,
nomeavam e identificavam regras sobre os cuidados com a escrita e também realizavam
comparações com outros sinais usados conhecidos por elas e reportavam-se de
diferentes modos a eles. Desta forma, os enunciados infantis revelavam uma diversidade
de apropriações e sentidos construídos sobre a escrita, assim como de distintos tempos
de aprendizagem e de experiência com a língua.
As interferências infantis nos textos produzidos por outras crianças possibilitava
que, ao falar sobre a língua escrita, dissessem sobre os seus processos de aprendizagem
e respondessem a forma como a escola organiza o ensino da língua escrita. Dentro da
homogeneização prevista pela escola, que reconhecidamente organiza uma grade de
conteúdos sobre a língua para serem ensinados e aprendidos num determinado espaço
de tempo, nessa sala de aula, cada criança realizava movimentos de atualizações sobre
os conteúdos trabalhados, revelando sua individualidade. Algumas crianças
preocupavam mais com a forma dos textos e em seguir os encaminhamentos feitos pela
professora; outras concentravam sua atividade no registro de palavras e de suas ideias e
no uso da pontuação ou marcação dos parágrafos, por exemplo. Nessas distintas
maneiras de se referir e fazer uso de conhecimentos da escrita, encontro a diferença de
histórias com a linguagem verbal. Diferenças entre estes sujeitos, que se apresenta no
conjunto de enunciados orais e escritos, resultado de trabalhos das crianças movidos
pela alteridade, isto é, pelas relações destes sujeitos com seu(s) outro(s) interlocutor
(es).
REFERÊNCIAS
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problemas fundamentais do método sociológico da linguagem/ Mikhail Bakhtin
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