Lamento Gélido

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Nos ares gelados da Nortúndria, uma antiga ameaça paira sobre Azeroth. Sombra e Luz buscam seu caminho para a redenção de uma alma despedaçada.

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  • RENNCIA

  • Esta uma obra de fico. Os personagens e cenrios aqui mencionados no so de minha

    propriedade. World of Warcraft pertence Blizzard Entertainment. No h inteno de ganho

    financeiro, sendo este conto apenas para fins de entretenimento entre amigos.

    Sempre para a Vem Tormenta.

  • Gliter caa de ponta-cabea em alta velocidade, cortando o cu gelado

    de Nortndria. O elegante vestido bege e verde bordado com fios dourados

    ondulava violentamente no atrito com o ar. Uma ombreira verde se desprendeu,

    se lanando s alturas. A draenaia estava inconsciente e alheia proximidade

    que o solo ganhava a cada momento.

    Fechando as asas ao corpo, a dragonetinha azulada arremeteu em uma

    descida desesperada pelos ares. As escamas azuis brilhavam na claridade do cu

    de Nortndria, assim como os adornos dourados que enfeitavam seu pequeno

    corpo. A ponta de sua cauda lembrava uma jia azul translcida. Em instantes se

    aproximou do corpo em queda de sua mestra.

    Com grande esforo para vencer a desorientao das correntes de ar, a

    pequena dragonesa se atirou contra a draenaia em queda. O solo se

    aproximava com rapidez. Em alguns momentos o impacto da queda

    despedaaria o corpo de Gliter. A pequena cria de Tarecgosa emitia silvos

    desesperados. Mais uma vez se lanou em direo mestra.

    Na terceira pancada, Gliter se encurvou, sentindo a dor do impacto da

    dragonesa contra seu corpo. O cabelo branco chicoteava seu rosto tambm

    alvo e a sacerdotisa lentamente abriu os olhos. No demorou mais que cinco

    segundos para se dar conta de sua situao. A dragonetinha, cansada, comeou

    a bater lentamente as asas, se distanciando da draenaia. Fizera o possvel, dali

    em diante era com a draenaia.

    Forando sua mente a raciocinar rapidamente, Gliter agiu. Os picos

    gelados apenas um borro enquanto caa. Em um movimento brusco dos

    braos e uma cambalhota no ar, a draenaia interrompeu a queda, passando a

    levitar de forma graciosa e de p. O vestido ondulava conforme descia e a

    sacerdotisa fez uma rpida careta de tristeza ao sentir falta de uma das

    ombreiras. Era um de seus vestidos preferidos.

  • Descrevendo um crculo em volta de seu corpo com ambos os braos,

    uma bolha de suave energia dourada envolveu Gliter. A dragonetinha iniciava

    uma descida vigorosa, aps breve descanso; uma bolha tambm circundava seu

    pequeno corpo dracnico. A sacerdotisa esticou o brao direito em direo

    pequena cria de Tarecgosa e um facho de luz dourada a trouxe imediatamente

    at ela. A draenaia abraou com carinho a pequena dragonesa e foi

    correspondida com um silvo afetuoso.

    Que querida voc. Salvou minha vida! Obrigada.

    A dragonetinha piscou os olhos brilhantes algumas vezes. Em sua testa,

    entre os chifres curvos, uma tiara dourada resplandecia com uma jia rosada. A

    sacerdotisa olhou ao redor, confusa, enquanto descia suavemente os cus de

    Nortndria. Quando virou s costas reparou com assombro onde estava. A

    cidadela da Coroa de Gelo erguia-se em saronita violentamente contra os cus.

    A Coroa de Gelo? Gliter falou consigo mesma em confuso.

    Repentinamente, a sacerdotisa levou as duas mos cabea e gritou.

    Neste instante uma dor lancinante a tomou. A dragonetinha imediatamente

    abriu as asas e iniciou um voo forado. Desta vez a dor no pegara Gliter

    desprevenida. Agora lembrava. Estava em um grifo de transporte quando algo

    atingira sua mente pela primeira vez.

    Reforando suas defesas mentais, a sacerdotisa olhou mais uma vez

    para a fortaleza da Coroa de Gelo. Fosse o que fosse, o ataque viera de l. A

    dragonetinha se aproximava novamente. Uma forte rajada de vento gelado

    atingiu a draenaia com fora, desestabilizando um pouco sua levitao. Gliter se

    distraiu por alguns momentos tentando corrigir sua rota e foi atingida mais uma

    vez pelo ataque mental. Seu grito morreu na metade e ela estava caindo

    novamente.

  • * * *

    Exeria estava atracada em Darnassus e servia de base de operaes para

    a organizao conhecida como Vem Tormenta. A cpsula ejetvel da

    monumental nave Exodar se localizava quilmetros abaixo da cidade noctilfica,

    na queda dgua do prprio lago de Darnassus. De Exeria, liderados pelo

    draenei Sumo Sacerdote das Sombras Faonn, os membros da Vem Tormenta

    partiam em misses pela Aliana.

    O grande Salo do Observador era o corao da nave Exeria. Um amplo

    cmodo que abrigava o melhor da tecnologia draenaia e tambm alguma

    tecnologia gnmica, alm de reunir os membros da organizao em reunies e

    celebraes. A caracterstica arquitetura dos draeneis garantia a toda a nave,

    portas, janelas e moblia, formatos ovais, levemente afunilados na parte

    superior. Os diversos cristais, base da alimentao energtica de qualquer

    dispositivo draenei, propiciavam um brilho ora purpreos, ora rseo a todo o

    ambiente. A luz do comeo da tarde entrava pelos coloridos vitrais da nave.

    - Chegamos h pouco. Tudo tranquilo at ento. Ainda sem sinal dos

    batedores Barbabronze! - a voz feminina soava levemente mecanizada e

    pronunciava cada slaba com certa sensualidade, mesmo que se tratasse de um

    informe ttico.

    A imagem projetada de um cristal de comunicao mostrava uma

    draenaia de pele azulada, chifres curtos, cabelos brancos presos em um

    elaborado rabo-de-cavalo e trajes minsculos. Os olhos oblquos e os lbios

    avantajados se movimentavam com languidez. Tratava-se de Ailleann, a

    caadora, sem dvida. Uma pequena pea de roupa cobria-lhe os seios e uma

    pea ainda menor cobria suas partes inferiores. A draenaia gesticulava

    suavemente, parecendo desinteressada no reporte da misso. Suspirava com

  • enfado e piscava os olhos lentamente. Ao fundo uma fogueira coloria de

    vermelho a transmisso.

    De frente imagem estava o sacerdote Faonn. Os braos robustos

    cruzados sobre o amplo trax, pouco abaixo da espessa barba branca, ouvindo

    atentamente o reporte da draenaia. Estava no que muitos chamariam de sua

    forma natural, embora para o sacerdote, sua forma natural fosse a de sombra. O

    rosto srio ponderava sobre as informaes.

    - Entendo. - a voz do sacerdote era grave e sonora, enchendo todo o

    amplo salo. - Provavelmente algum contratempo! Lyka est com voc?

    - Dormindo. Pensei que conseguissem ouvir o barulho at em Kalimdor.

    Parece uma mquina de cerco. - Faonn suspirou. Ailleann era sempre um

    desafio para o lder da Vem Tormenta. A caadora continuou. - Misses

    diplomticas so tediosas, ela disse. E no minuto seguinte roncava. - a caadora

    olhou rapidamente para trs - Devo concordar com ela.

    - Bem lembrado, Ailleann. Isso uma misso diplomtica - o draenei fez

    uma pausa, um tanto desconcertado. - Acredito que esses no sejam os trajes

    mais adequados.

    A caadora suspirou, inclinou levemente a cabea e revirou os olhos.

    - Por que no seriam? Deixe os anes olharem algo. - Ailleann sorriu

    debochadamente.

    - Ailleann - Faonn procurava as palavras - O ideal que voc exiba

    nosso braso. So assuntos polticos.

    A caadora sorriu animada e se aproximou do cristal que transmitia sua

    imagem em Thelsamar, onde estava.

    - Mas o braso est aqui! - a draenaia esticou a parte do tecido que

    cobria seu seio esquerdo, mostrando uma pequena estampa em que uma mo

    segurava um raio. - Eu prendi com esse alfinetinho.

  • Faonn recuou desconfortvel conforme a imagem do suti de Ailleann

    assomava sua frente.

    - Est certo, Ailleann. Est certo. Eu entendi.

    Neste momento um barulho mecnico soou e uma das portas do Salo

    do Observador se abriu. O draenei Goholl entrava segurando uma caixa em

    ambos os braos. Caminhava a passos, largos, jogando os ombros de um lado

    para o outro, em um jeito despreocupado que lhe era peculiar. A cala suja

    estava presa a um par de suspensrios e indicava que estivera trabalhando em

    seu ofcio.

    - Fala, chefe! Consegui achar as engrenagens de aovil. Acho que temos

    o suficiente sim. E esto to - sua fala foi interrompida.

    - Hohollzinho?? voc?? - a imagem transmitida de Ailleann mostrava a

    draenaia sorrindo e forando a viso atravs do cristal.

    Goholl parou alarmado. Olhou assustado para Faonn, sem saber o que

    fazer. Manteve-se imvel por alguns segundos e ento tentou dar um passo

    atrs, lentamente.

    - Hohollzinho, eu estou te vendo. Nem pense em sair da! No quer

    falar comigo? - a voz de Ailleann ao final era uma mgoa dissimulada, mas nem

    por isso soava menos sensual.

    - N-no! Claro que no, Aille!! - o draenei xam abriu um sorriso

    amarelo - Estava ajeitando a caixa. Ia cair

    Nesse momento Faonn se aproximou, pegando a caixa dos braos de

    Goholl.

    - Eu fico com isso. - esboou um sorriso divertido para o xam.

    - Me ajuda, chefe. - sussurrou Goholl.

  • - Voc comeou isso. Eu avisei na arena, mas voc no me ouviu. - o

    sacerdote respondeu no mesmo tom de voz.

    Goholl respirou fundo e se aproximou relutante do cristal que transmitia

    sua imagem para Ailleann, que se abriu em sorriso.

    - J est com saudades, Hohollzinho?

    - Ah j! Desde a hora que voc saiu, minha paixo! - respondeu Goholl

    com um sorriso amplo e um tanto forado. Ailleann suspirou apaixonada.

    - Essa palhaada aqui no deve durar mais que dois dias.

    Faonn soltou um forte pigarro que Ailleann fingiu no notar. Apoiara a

    caixa trazida por Goholl em uma mesa e conferia seu contedo.

    - Est tudo bem. Eu consigo aguentar de saudade. No precisa se

    apressar por minha causa.

    - Parece que no quer que eu volte, Hohollzinho... - Ailleann disse quase

    chorosa.

    - No isso, minha princesa. Claro que quero que voc volte. S no

    precisa comprometer o bom andamento da sua misso. Apenas isso. - sorriu

    Goholl, o cavanhaque negro formando uma engraada curva.

    - Ento diz que est com saudades de novo - insistiu a draenaia.

    - Eu estou, minha linda. Morrendo de saudades. - uma inquietao

    comeou a tomar o draenei.

    - Ento manda beijinho de elekk pra mim, Hohollzinho!

    O xam arregalou os olhos e olhou rapidamente para Faonn, que

    parecia no ter ouvido, e ento falou em tom de voz mais baixo:

    - Ailleann!! O chefe est aqui!!

    - E qual o problema? Faz, Hohollzinho. - Ailleann aproximou-se do

    cristal de transmisso. Olhava diretamente para Goholl, acariciando os curtos

  • tentculos e falando lentamente, de forma sedutora. A energia azul que eram

    seus olhos parecia brilhar de forma mais intensa. - Faz, Hohollzinho pra mim

    Por poucos segundos Goholl pareceu hipnotizado com a imagem de

    Ailleann. Os lbios e parte do colo da draenaia tomaram quase toda a

    transmisso e apareciam ampliados no Salo do Observador. O xam ento

    recobrou a conscincia e sua expresso era de pura consternao. Olhou

    rapidamente para Faonn, que ainda parecia alheio conversa entre o casal.

    - Ailleann - comeou a implorar o xam e foi interrompido pelo

    sacerdote, que continuava concentrado na caixa, sem olhar para o casal de

    draeneis.

    - Goholl, faa. Seja l o que for. Faa e termine essa transmisso antes

    que eu envie os dois para aparar as unhas de Therazane no Geodomo. - disse

    Faonn em um tom de voz tranquilo, porm determinado, sem ao menos se

    virar.

    Goholl respirou fundo. Ailleann conhecia diversas formas de deixa-lo

    constrangido e parecia se especializar cada vez mais. Quando no eram as

    famosas crises de cimes, no lhe faltava criatividade para desconcertar o xam.

    - Estou esperando! - Ailleann praticamente pressionou os lbios contra

    o cristal transmissor, os dedos agora se enroscavam nos cabelos.

    Goholl, derrotado, fechou os olhos e ergueu a cabea. Pressionando os

    lbios um contra o outro, em um bico, emitiu um guincho agudo. Ailleann fez

    um gesto similar. A caadora lanou ao xam um sorriso seguido de um beijo

    apaixonado, piscou o olho esquerdo e finalizou a transmisso, deixando do

    outro lado um Goholl devastado e cabisbaixo.

    O draenei demorou alguns instantes para recobrar a dignidade e se

    aproximou lentamente da mesa em que Faonn separava as engrenagens,

    nitidamente se esforando para no rir.

  • - Ailleann, Ailleann sempre consegue o que quer. Me pergunto -

    Faonn se interrompeu. - No, no me pergunto. Alis, no quero nem saber.

    - Por favor no conta isso para ningum, chefe.

    - No se preocupe. No vou contar. - o lder fez uma pequena pausa e

    sorriu. - Mas um beijinho de elekk no supera voc preso somente com a roupa

    de baixo na entrada do Pinculo do Vrtice. E aquilo todo mundo viu. - Faonn

    no pode deixar de rir. - At hoje eu no entendi o que voc - o sacerdote se

    interrompeu mais uma vez. - No melhor no entender.

    Goholl baixou a cabea e deixou o corpo cair em uma cadeira,

    parecendo ainda mais desolado. Falou baixinho, como que para si mesmo:

    - Essa mulher vai ser o meu fim.

    Faonn deu dois tapas amigveis no ombro do xam, animando-o.

    - Deixa disso. Vocs apenas so - o sacerdote fez uma pausa

    procurando a palavra adequada - peculiares.

    Os dois iniciaram uma longa triagem de peas de engenharia,

    esquecendo por completo a transmisso de Ailleann ou mesmo o beijinho de

    elekk. Engrenagens de um plido brilho verde e vrios tamanhos eram dispostas

    em cima da mesa conforme critrios estabelecidos por Goholl, que era um

    habilidoso engenheiro.

    - Posso fazer mais engrenagens como essas, se precisarmos. Mas

    nossos estoques de aovil esto abaixo do ideal. Pode ser um problema. - disse

    o xam enquanto rodava uma engrenagem esverdeada entre os dedos.

    - Acredito que no ser necessrio. - ao terminar a frase Faonn levantou

    de sobressalto, acompanhado por Goholl, instintivamente. A expresso do

    sacerdote era sria e preocupada.

    - O que houve, chefe? Aconteceu algo? - Goholl olhou rapidamente

    para os monitores de tecnologia gnmica espalhados em torno da sala.

  • Nenhum alarme, nenhuma transmisso. No identificou nada que justificasse o

    estado de seu lder.

    - Gliter - murmurou Faonn quase para si mesmo.

    - Gliter? - repetiu Goholl com incerteza. - O que houve?

    - No sinto a conscincia dela. Ouvi um eco - o sacerdote fez uma

    pausa, tentando se recompor - praticamente um pedido de socorro. E ento

    silncio.

    - Ouviu? - o xam parecia confuso.

    Faonn respirou fundo, tentando se acalmar:

    - Eu e Gliter partilhamos um elo mental. De certa forma estamos sempre

    na mente um do outro. Nos comunicamos assim o tempo inteiro. E agora no

    consigo senti-la.

    Goholl parecia assustado:

    - Nunca comente com a Ailleann. Eu no ia aguentar se

    Um lampejo de irritao atravessou o rosto de Faonn. Goholl sorriu

    envergonhado e voltou para o assunto inicial:

    - Onde Gliter est agora?

    - Ela foi visitar nossa filha nos Picos Tempestuosos. J estava no

    caminho de volta.

    Goholl esboou um sorriso ao ouvir meno a Jem, mas decidiu que

    no era um bom momento para brincadeiras. Muito menos com o pai da moa.

    Faonn fechou os olhos por alguns momentos. Ao abri-los novamente, disse com

    preocupao:

    - Nada. No consigo senti-la.

    O semblante do sacerdote, normalmente srio, tornara-se uma dura

    mscara de preocupao. Os draeneis ficaram em silncio por alguns segundos

  • que pareceram uma eternidade. Goholl no sabia o que falar ou fazer e

    compartilhava da preocupao do amigo. Gliter dificilmente se ausentava de

    Exeria e quando o fazia era sempre na companhia do esposo. O xam se

    aproximou dos monitores, buscando por um sinal da sacerdotisa draenaia. Um

    mapa azulado despontou nas telas indicando o continente de Nortndria, mas

    no era preciso quanto sua localizao.

    - Tudo indica que ela est em Nortndria ainda, mas o rastreamento

    no consegue apurar o sinal. - disse o xam em um tom de voz cauteloso. Aps

    uma pequena pausa acrescentou, mais para si mesmo que para o lder da Vem

    Tormenta. - Estranho

    Por um instante o sacerdote no respondeu e Goholl pensou at que

    no o tivesse ouvido. Mas ento sua voz grave tomou o Salo do Observador:

    - Quem est conosco aqui em Exeria?

    O xam pensou por alguns instantes e lanou um olhar desapontado ao

    amigo:

    - A maioria no est. Sei que o Volk voltou agora h pouco - Goholl fez

    uma pequena pausa e acrescentou - e temos alguma daquelas gnomidas de

    cabelo rosa por a. Ou todas elas. Nunca sei quantas so ou quem quem.

    - Perfeito. Voc e Volk estejam prontos. Descubra se a Jeli e consiga

    um grande portal para Nortndria. Samos em 20 minutos.

    Faonn no esperou argumentaes. Saiu em passos firmes do Salo do

    Observador, o robe azul escuro ondulando em seu rastro. Goholl olhou com

    admirao e se colocou em ao.

    A tarde teimava em morrer, mas as estrelas cobravam seu espao no

    cu de Nortndria. Rplica diminuta do famoso Rompe-Cus da Aliana, o

  • Retalhador de Nuvens cruzava ruidosamente os cus. Assemelhando-se a um

    navio flutuante, a aeronave de tecnologia humana fora cedida pelo prprio Rei

    Varian Wrynn organizao liderada pelo Sacerdote Faonn em sua prestimosa

    colaborao Aliana. Toneladas de madeira e ferro sobrevoavam a Coroa de

    Gelo.

    Goholl observava o sol se pondo atravs da janela. Sentia-se

    desconfortvel em construes humanas, principalmente uma que voasse.

    Como algo poderia voar sem cristais energticos? Tinha srias ressalvas em

    relao tecnologia humana, considerando-a um tanto atrasada. O draenei

    tambm evitava sentar: seu corpo robusto, trajado para a guerra como estava,

    quebraria qualquer cadeira humana, que julgava excessivamente frgil. A cota

    de malha cinzenta com placas de couro fervido tinha arremates dourados e

    estava esplendorosamente lustrada. Vestia-lhe como uma suntuosa tnica,

    porm de aparncia mortfera.

    - Espero que ela esteja bem. - o xam falava consigo mesmo.

    - Ela estar, meu amigo. - respondeu uma voz gutural e animalesca,

    porm com um notvel esforo em se fazer suave.

    O ladino Volk estava sentado em uma cadeira da pequena cabine do

    Retalhador de Nuvens. As patas traseiras distintamente cruzadas ao estilo dos

    humanos - embora estivesse em sua forma de lobo - enquanto segurava um

    livro entitulado Gilneas, um sonho possvel, de Gorwal de Gilneas. Encarava

    Goholl sobre os culos apoiados no focinho.

    - estranho pensar nela por a sozinha na Coroa de Gelo. Ela quase

    nunca deixa Darnassus. Muito menos sozinha.

    - No se engane, Goholl. Gliter pode ser devastadora se quiser. Apenas

    prefere no o ser - em uma pequena pausa, o worgen marcou cuidadosamente

    a pgina que estivera lendo e colocou o livro de lado - na maioria das vezes. J

    a vimos em ao.

  • - Eu sei - o xam parecia triste. Assumira a preocupao de seu amado

    lder, que estava no comando do Retalhador de Nuvens. - J estamos nos

    aproximando. Os sinais rastreadores convergem realmente para a Cidadela da

    Coroa de Gelo. Melhor estarmos preparados. Nada que preste pode vir daquele

    lugar.

    A porta se abriu ruidosamente e uma gnomida de cabelo rosa preso em

    duas grandes mechas laterais em sua pequena cabea entrou timidamente.

    - Perdoem-me a intromisso. O comandante chama os senhores at o

    convs. - a julgar pelas roupas e pelo cajado que carregava, tratava-se de Jeli, a

    jovem aprendiz de mago.

    Goholl se aproximou da gnomida, cuja altura ultrapassava em pouco os

    joelhos do grande draenei, e agachou o suficiente para conseguir olha-la quase

    mesma altura.

    - Obrigado, pequena. J estamos indo. Esteja atenta ao nosso sinal para

    retorno, tudo bem? - dizendo isso o xam afagou carinhosamente os cabelos de

    Jeli, desgrenhando-os, e sorriu afetuosamente. Jeli, com seus grandes olhos

    verdes, encarou confusa o draenei e depois o worgen, se retirando

    silenciosamente em seguida.

    Volk olhou divertido para o amigo:

    - Ela no uma criana. apenas pequena.

    - No posso evitar. So muito pequenos! - o xam deu de ombros.

    Revirando um dos muitos bolsos de sua roupa, Volk encontrou dois

    embrulhos em folha amarela e, casualmente, atirou um para o amigo:

    - Broa gilneana! contorceu o focinho no mais prximo de um sorriso

    que conseguia chegar em sua forma de lobo Ajuda a manter a concentrao.

    - No poderia faltar! o xam abriu um sorriso e os dois saram para o

    convs.

  • Pouco era possvel perceber da expresso do sacerdote Faonn em sua

    forma de sombra. E menos ainda era visvel sob seu capuz. Seu interior era um

    rebulio de sentimentos e preocupaes. O draenei observava com ateno a

    paisagem, a Cidadela da Coroa de Gelo, no mais que um mausolu de saronita

    metros abaixo. O convs do Retalhador de Nuvens era aberto, sem a proteo

    de parapeitos. Duas mquinas voadoras eram os nicos veculos disponveis no

    amplo tablado de madeira. O vento gelado aoitava a roupa do sacerdote,

    mesmo em sua forma de sombras, e tambm dos dois amigos que se

    aproximavam.

    Os trs companheiros encararam a cidadela em silncio por

    interminveis minutos. O lugar abrigara um dos maiores perigos que Azeroth j

    enfrentara e os trs lutaram em diversas frentes contra o poderio do Lich Rei.

    Lutaram e viram amigos tombarem. Eles prprios quase sucumbiram. E ali

    estavam mais uma vez: encarando a Cidadela da Coroa de Gelo. Goholl foi

    quem rompeu o silncio, seu tom de voz era sombrio:

    - No esperava chegar perto desse lugar novamente.

    - As vezes me pergunto se existe algum lugar em Azeroth que no nos

    traga lembranas de batalhas. - observou Faonn distrado, tambm no mesmo

    tom.

    Permaneceriam em silncio por mais tempo, no fosse o aviso sonoro

    emitido pelos culos de engenheiro de Goholl. O xam, sobressaltado, se

    inclinou diante da viso da cidadela que assomava frente.

    - Ela - o xam estava atnito - ela est l. Est realmente l.

    Os dois amigos sabiam a quem ele se referia. Mesmo conferindo um

    visual peculiar ao xam, os culos propiciavam leituras sofisticadas e

    rastreamentos acurados de terrenos e seres vivos.

  • - Onde l, Goholl? - perguntou Faonn com cautela.

    - Na cidadela. No pinculo superior do trono de gelo, para ser mais

    exato.

    - Trono de gelo? Tem certeza, meu amigo? - questionou Volk com sua

    voz rouca e gutural conferida pela forma de lobo.

    - A leitura trmica do rastreador bastante segura, Volk. A margem de

    erro de 0,19191919%.

    O ladino chegou a abrir a boca, mas desistiu do que ia falar.

    - Vamos descer! Agora! - o cajado apoiado no cho do convs, a

    gravidade da voz e a ordem imperiosa conferiam uma aparncia terrvel ao

    sacerdote das sombras.

    O ladino imediatamente puxou o capuz de couro tingido em verde que

    cobriria sua cabea e a parte negra que cobria o focinho. Uma imperceptvel

    olhadela na cintura confirmou as adagas envenenadas e embainhadas. As

    grevas negras escondiam uma adaga sobressalente e uma incrvel variedade de

    armas cortantes, invisveis a qualquer um. A armadura de couro negro era justa

    e bastante flexvel e conferiam belo contraste pelagem cinza e lustrosa do

    worgen.

    - Onde esto os paraquedas? - no esperando resposta, o ladino

    continuou em sua voz animalesca - Espero que o vento no atrapalhe nossa

    descida.

    - O vento, meu amigo peludo, nossa descida. - sorriu Goholl.

    Erguendo levemente a cabea, sem ao menos mover os braos, o xam

    fechou os olhos. Sentia o vento cortando seu rosto, balanando vigorosamente

    sua cota de malha. Sentia tambm a tnue linha que separava aquela ventania

    de um vendaval implacvel, capaz de varrer o Retalhador de Nuves at a Tundra

    Boreana, ou mesmo uma brisa serena. Tudo ao alcance de sua vontade e de sua

  • comunho com os elementos. Imediatamente os trs companheiros sentiram o

    vento amainar; j no aoitava mais a aeronave que planava acima da cidadela

    da Coroa de Gelo, tampouco sua escassa tripulao. E ao sinal de Faonn eles se

    atiraram brisa gelada que soprava acima da antiga fortaleza do Lich Rei.

    O corpo de Gliter pairava inconsciente envolto em uma bolha de pura

    sombra. Flutuava aos ps da imensa escadaria que levava ao trono do Lich Rei,

    de onde Bolvar Fordragon reinava em seu trono congelado, encerrado ele

    prprio no mais denso gelo.

    O ambiente era saronita e gelo. O cu sempre escuro e cruel.

    Estalagmites irregulares cresciam em todo o lugar, ladeando principalmente a

    escadaria do trono e o prprio corpo congelado do antigo regente de

    Ventobravo. Pouco era possvel ver do que outrora fora um dos paladinos mais

    venerados da Aliana, alm de um vulto cinzento. Mas Bolvar no era o nico

    que jazia em gelo no topo da Cidadela da Coroa de Gelo.

    O esquife de gelo era menos suntuoso do que se pudesse esperar.

    ltima ddiva de Lady Jaina Proudmore, o gelo eterno era indestrutvel. As

    laterais entalhadas com preces Luz, em uma tentativa de direcionar o esprito

    de seu ocupante a um bom lugar, apesar de todos os seus feitos nefastos.

    Poucos sabiam exatamente onde se encontrava a tumba de Arthas

    Menethil. Um monumento erguido no cemitrio de Ventobravo fazia crer que

    ali descansava o cado herdeiro de Lordaeron. Romarias eram realizadas em sua

    homenagem; muitos humanos ainda pranteavam o mais promissor prncipe da

    Aliana e visitavam seu tmulo com frequncia. Mas seu corpo alquebrado

    nunca deixara o pinculo superior do trono da Cidadela da Coroa de Gelo. E

    agora era profanado em seu descanso glido.

  • Ela era a nica luz em meio s trevas. O corpo de Gliter brilhava em

    branco intenso no meio do mais denso breu. A energia azul que emanava dos

    olhos da sacerdotisa cintilava e tornava visvel a expresso de consternao em

    seu rosto. Suas vestes eram brancas, sendo impossvel distinguir tecido de pele.

    Sons distantes chegavam draenaia, fazendo-na olhar de um lado para o outro

    em apreenso.

    - Ol?!

    Um eco respondeu. Primeiro alto, para depois sumir no nada.

    - Tem algum a?

    O eco tornou repetir, quase em tom de deboche.

    Um murmrio crescente assomava, vindo de todas as direes. Eram

    vozes indistintas aqui e ali:

    - Quem est a? - perguntou um murmrio infantil.

    - No se aproxime de mim, seu vilo. - afrontou um murmrio idoso.

    - Vou acabar com voc! Serei o seu fim! - bradou uma quase voz

    masculina.

    Todas soavam difusas, sem preciso, engolfadas em uma distncia

    impalpvel.

    Gliter olhava de um lado para o outro, mas era impossvel enxergar.

    Uma angstia cresceu em seu peito conforme as vozes pareciam se aproximar.

    A cacofonia era ainda mais confusa, causando um leve atordoamento

    draenaia. Procurando acalmar seu interior em uma silenciosa prece Luz, a

    sacerdotisa sentiu uma onda de reconfortante calor percorrer seus membros e

    observou uma luz se expandir de seu corpo, se ampliando pelo ambiente. O

  • murmrio silenciou por um momento. Em menos de dois segundos Gliter

    conseguiu acostumar a viso pouca iluminao adquirida e ento se viu

    cercada por criaturas de sombras.

    Draeneis, elfos noturnos, orcs, anes, elfos sangrentos, humanos,

    taurens e muitos outros. Um sem nmero de sombras de todas as raas de

    Azeroth encaravam a sacerdotisa com espanto, incertos de sua presena

    naquele lugar de trevas. Vestiam armaduras, roupas comuns e trapos. Todos

    parcialmente translcidos e purpreos convergindo em direo sacerdotisa.

    A draenaia sentiu o corao disparar ao se dar conta que estava cercada

    por incontveis seres obscuros que se arrastavam em sua direo, os braos

    esticados em splica.

    - Tire a gente daqui. - murmurou uma sombra.

    - No nos deixe com ele. No nos abandone. - suplicou o que parecia

    ser um tauren vestido em armadura.

    - Voc brilha tanto - observou uma sombra humana com os olhos

    vidrados.

    Um arrepio sinistro percorreu todo o corpo da sacerdotisa quando uma

    das sombras enconstou em seu vestido. Imediatamente ela observou uma

    fumaa purprea comear a se espalhar lentamente pela ponta do vestido,

    tingindo-o de trevas. Recuando assustada, a draenaia puxou a barra da roupa,

    sacudindo-a.

    - Afastem-se!! - falou em voz alta, apavorada.

    As sombras se arrastavam famintas em direo draenaia, cuja luz ia se

    ofuscando lentamente com a aproximao das trevas. No havia para onde

    fugir. Tudo ao redor era breu e at onde sua viso conseguia enxergar, os seres

    de sombra a cercavam. O pavor comprimia o peito de Gliter, ameaando tomar-

    lhe o ar. As mos trmulas tateavam o breu atrs de si, embora no soubessem

  • o que procuravam. A sacerdotisa sentia a prpria conscincia oscilando,

    cedendo escurido. No posso ceder. Sou a Filha da Luz.

    Um lampejo de ira atravessou seus olhos. Ela era, de fato, a Filha da Luz

    e as trevas no podiam consumi-la. No iriam.

    - Eu disse AFASTEM-SE!! - bradou a sacerdotisa enquanto explodia tudo

    ao seu redor em um crescente de pura luz.

    Quando a luz se foi, deixando apenas a sacerdotisa cintilando em meio

    s trevas, todos as criaturas haviam desaparecido por completo. Todas, exceto

    uma.

    Uma figura humana, ao que parecia, jazia no breu. Diferente dos seres

    com que a sacerdotisa se deparara, este era cinzento. Contorcido e

    aparentemente inconsciente, o humano deitado nas trevas era digno de pena.

    Os cabelos desgrenhados caam-lhe ao ombro e suas roupas eram trapos. Um

    lamento parecia fluir de seus lbios, incoerente e quase inaudvel.

    A curiosidade fez com que Gliter se aproximasse do corpo. De fato, no

    despertava na draenaia nenhuma sensao de perigo, apenas urgncia. Pela

    primeira vez se preocupou em saber onde estava. Sua conscincia no

    conseguia resgatar eventos recentes que pudessem t-la levado a esse lugar de

    trevas. Deveria estar em Darnassus, no? Dificilmente deixava Darnassus. Como

    fora parar ali? O murmrio cedeu a um lamento, um quase choro.

    - Pai me perdoe - Gliter pensou ter ouvido.

    A aproximao da sacerdotisa levava luz quele corpo cado e isso no

    passou despercebido ao humano. Lentamente, em algo que parecia ser

    doloroso, ele tentou se virar em direo draenaia. A luz que emanava do

    corpo dela o ofuscava. No existia luz naquele lugar. Trevas banhavam tudo ao

    redor. O homem se virou por completo e Gliter sentiu o ar escapar por

    completo enquanto um tremor percorria todo o seu corpo.

  • A revelao atingira a sacerdotisa como um soco no estmago. No

    mesmo instante em que viu o jovem se voltar de olhos fechados e resistentes

    ao brilho que emanava dela mesma, a draenaia entendeu onde estava. Pela Luz.

    No pode ser. No pode ser. E ento lembrou de tudo que acontecera e sabia

    exatamente onde estava. Sabia exatamente quem era aquele homem.

    Ningum em toda Azeroth seria capaz de sequer conceber o que se

    passava ali. A mente de um dos maiores inimigos que Azeroth j enfrentara

    ainda vivia. Ou parte dela. E era exatamente onde Gliter estava: na mente de

    Arthas Menethil.

    Nesse momento o homem abriu os olhos, revelando olhos cinzentos,

    como tudo mais nele, porm o sofrimento daquele olhar era quase insuportvel

    sacerdotisa. As sombras que enfrentara, a draenaia lembrou com horror, eram

    vtimas de Arthas. Eram atormentaes que agora o perseguiriam para sempre,

    preso como estava em suas prprias trevas. Que sina! Tanto sofrimento em vida

    e em morte!

    - A Luz - a voz do homem ainda era um dbil lamento. - Por que no

    veio antes

    Gliter sentiu as lgrimas inundarem seus olhos e ento escorrerem por

    seu rosto. No sabia que essa reao era possvel ali onde estava.

    - Eu - a sacerdortisa disse lentamente com profundo pesar - eu no

    sabia eu sinto muito.

    Como algum poderia imaginar que ainda havia conscincia no corpo

    destrudo de Arthas? A sacerdotisa estivera l alguns anos antes. Testemunhara

    pessoalmente a queda do Lich Rei. Lembrava-se com nitidez de suas ltimas

    palavras. As trevas o clamaram, ao final. Todos pensaram que era o fim. Mas ali

    estava ela. E ele. Por que ela?

  • A conscincia de onde estava tambm alertou a sacerdotisa sobre os

    perigos que corria. No posso me deixar manipular. Essa a mente dele.

    Funciona do jeito que ele quer. Preciso manter a concentrao e achar um jeito de

    sair daqui. Luz, por favor me guie. A prece no diminua a certeza que comeava

    a se instalar em seu corao. Em seu ntimo sabia que ele no representava

    perigo. No mais.

    - Voc - Arthas mantinha o olhar distante - a filha de - o antigo

    prncipe de Lordaeron no parecia lembrar o nome que buscava.

    - Sim. - respondeu suavemente a sacerdotisa, recuperando seu tom de

    voz plcido e, adotando certa austeridade, completou: Sou Gliter, a Filha da

    Luz. Filha do prprio Profeta Velen!

    O curioso reconhecimento da draenaia por parte de Arthas a fizera

    perceber o quanto estavam estranhamente ligados. Eram criaes de duas

    contrapartes. Ela, filha nica e querida do Profeta Velen, o Divino. E ele, uma

    criao de Kiljaeden, que j fora como um irmo para seu pai. No. No ele,

    mas o Lich Rei, pensou. Aquele era Arthas Menethil, antigo herdeiro de

    Lordaeron. O Lich Rei estava morto. Impossvel no pensar tambm no marido.

    Velen, Archimonde, Kiljaeden. Seria tudo apenas coincidncia? A Luz realmente

    tem desgnios prprios.

    Arthas tentava absorver a informao. Sua mente no parecia processar

    nada alm de trevas. A sacerdotisa no pde evitar esquecer a presena de seu

    hospedeiro por alguns instantes e se expandir por sua mente. Agora que sabia

    onde estava, sabia como agir e o que procurar. Com os olhos fechados, a

    draenaia desvendou as trevas e expandiu sua conscincia por toda a mente de

    Arthas. Sabia dos perigos.

    Sentiu seu corpo aumentar. A representao de sua presena na mente

    de Arthas cresceu at que o pobre homem cinzento quase sumisse de vista l

    embaixo, em um cho de trevas. Do alto podia ver com clareza e alm da

  • escurido. Contemplava um horizonte abaixo de seu corpo e o que via era

    estarrecedor.

    Gliter foi imediatamente assolada com milhares e milhares de imagens

    de torturas, carnificinas e genocdios. Toda sorte de maldades perpetradas pelo

    Lich Rei desfilavam quilmetros abaixo da sacerdotisa. Mesmo quela distncia,

    a draenaia precisava manter o autocontrole e no se concentrar por muito

    tempo em nenhuma das imagens. Ouviu a voz de Terenas Menethil, O que est

    fazendo meu filho?. Ouviu o grito desesperado de Sylvanas Correventos sendo

    torturada. Ouviu milhares e milhares de vozes indistintas clamando por suas

    vidas. Sabia que no aguentaria tanta dor. Sentia seu gigantesco corpo tremer e

    no duvidava que, se estivesse no plano fsico, seu corpo reagiria violentamente

    quele espetculo macabro.

    Ser que no h nada a ser recuperado? A mente dele est totalmente

    destruda? A draenaia no sabia responder s perguntas que sua mente afiada

    elaborava, mas ainda assim procurava um propsito para aquilo tudo. Luz, por

    que estou aqui? Por que preciso presenciar tudo isso? Por que participo dessa

    punio? Estou sendo punida tambm? No posso suportar! Ela sentia os olhos

    midos. Estaria chorando em seu corpo fsico? Onde estaria seu corpo fsico? A

    mente da draenaia vagueava e a concentrao parecia cada vez mais difcil.

    Um ponto afastado em meio s trevas chamou a ateno da

    sacerdotisa. Um ponto de claridade, no de luz. Opaco e tremeluzente,

    sobrevivendo incerto em meio completa escurido. Estava distante de onde se

    encontrava o prprio Arthas. E inacessvel. Mas no para ela. O que existe ali? A

    sacerdotisa se sentiu uma invasora e teria ruborizado no plano fsico. Mas onde

    estava no poderia se importar com cortesias e constrangimentos.

    O passo curto de suas gigantescas pernas aproximou-na da rea de

    claridade em menos de um segundo, por mais distante que estivesse de onde

    se encontrava. A sacerdotisa encolheu seu tamanho e adentrou a pequena rea

  • poupada das trevas. Um alvio a inundou instantaneamente. Era como respirar

    aps longos minutos embaixo dgua.

    Encontrava-se em um quarto ricamente ornamentado ao estilo dos

    humanos. As paredes de pedras claras bem polidas, adornadas de flmulas

    azuis e douradas, as cores da Aliana. Atravs de uma ampla janela entrava uma

    luz clida; era quase possvel sentir a brisa. Uma criana de cabelos dourados

    brincava distraidamente com bonecos de madeira em um pequeno combate

    imaginrio. Anduin? Uma memria de Anduin? Ou seria o prprio Arthas quando

    criana? A sacerdotisa, confusa, no conseguia decidir.

    - Papai! Papai!! a voz infantil seria um alento a qualquer corao.

    A porta do amplo cmodo se abriu e a draenaia sufocou um grito,

    levando as delicadas mos boca em uma expresso de terror. A criana de

    cabelos louros largou sua pequena batalha de madeira e correu em direo ao

    pai. Arthas Menethil, coroado rei de Lordaeron, resplandecente em um manto

    azul, ladeado por sua esposa, a Rainha Jaina. Ambos dourados e belos como um

    dia de sol de vero. A criana se agarrava com selvageria ao pescoo do pai,

    como se pela ltima vez.

    E Gliter chorou.

    A sacerdotisa sentiu o corpo cair e as lgrimas descerem o rosto.

    Entregou-se com abandono a um pranto profundo. O sofrimento a machucava,

    golpeava com fora sua conscincia. Uma dor no estmago e um aperto no

    peito ameaavam suas faculdades. No era uma memria, afinal. Era um anseio.

    Gliter presenciara o mais profundo desejo da mente de Arthas Menethil e isso a

    devastara. E ele no tinha mais acesso a esse desejo e nem a qualquer outra

    memria agradvel que ela sabia existirem em algum lugar ali. Que coisa

    horrvel. Quanto sofrimento! Eu no posso suportar!

  • - Gliter!! havia desamparo na voz e na expresso de Faonn.

    Demorou alguns segundos para o Sumo Sacerdote das Sombras

    entender parte do que se passava. Graas viso aguada de Volk conseguiram

    identificar a atividade hostil antes de aterrissarem. Goholl, em comunho com

    os elementos, os direcionou em segurana para a proteo de um conjunto de

    estalagmites do lado oposto escadaria do trono de gelo.

    Uma ladainha crescente e montona pairava sobre o lugar. Runas roxas

    brilhavam sombrias a toda volta do esquife de Arthas Menethil e uma fumaa

    densa se espalhava de maneira doentia. Braseiros postados s quatro pontas do

    tmulo lutavam contra o clima para permanecerem acesos. Ao centro de tudo,

    um vulto encapuzado erguia os braos aos cus, um cajado simples em uma

    das mos. A julgar pela voz feminina, a mulher entoava cnticos em alguma

    lngua desconhecida aos trs veteranos da Vem Tormenta e era respondida por

    seis aclitos ajoelhados ao redor do gelo eterno.

    Era possvel identificar um vulto acorrentado em cima do esquife do

    antigo herdeiro de Terenas Menethil. O humano - no restava dvidas de que

    era um - gritava improprios e ameaas em uma voz grossa e um sotaque que

    indicava ser nativo da prpria Nortndria:

    - Sua vaca bexiguenta! Vou estripar voc com minhas prprias mos,

    est ouvindo?! Vou usar seu crnio como pote de mijo!

    A mulher encapuzada permanecia alheia s provocaes.

    - timo! sussurrou Goholl em um quase tom de deboche agora

    temos dois resgates.

    Os culos do xam identificaram um sinal trmico bem prximo de

    onde estavam. Virando-se rapidamente e ajustando a lente, Goholl viu o

    diminuto corpo da cria de Tarecgosa, cado em desamparo bem na beirada da

  • plataforma. O draenei suspirou em alvio, pois a leitura trmica indicava calor e

    portanto a dragonetinha estava viva. Pensou em sussurrar trs resgates, mas

    se deteve.

    Saber que Gliter estava viva dera certo alvio a Faonn e aos outros. O

    sacerdote conhecia a priso em que a esposa se encontrava e sabia que no

    estava em dor. O casulo de sombra apenas suspendia a conscincia de sua

    vtima; certamente uma obra da mulher encapuzada. O homem acorrentado,

    por sua vez, parecia em um perigo mais eminente.

    - Parece que temos um ritual para impedir e dois resgates a realizar.

    Promissor! Volk parecia empolgado com a possibilidade de uma batalha.

    Faonn analisava a situao. Era impossvel no lembrar do confronto

    com o Lich Rei alguns anos antes. Mesmo distncia e encerrado em gelo,

    conseguia ver o brilho azul nefasto do elmo utilizado por Bolvar Fordragon no

    topo do trono de gelo. O atual Lich Rei ao menos parecia indiferente s visitas

    em seus domnios. Quanto mais cedo terminassem, mais cedo sairiam daquele

    lugar maligno.

    - Muito bem. comeou Faonn em um sussurro lmpido a prioridade

    so os resgates. Gliter e o boca-suja ali o sujeito acorrentado continuava com

    seus improprios so o nosso foco. O casulo de sombra mantm a conscincia

    dela suspensa. Faonn apontava para a draenaia encerrada na bolha de sombra

    - causado pela mulher encapuzada. Um ataque concentrao dela consegue

    libertar Gliter facilmente.

    - E esse ritual, chefe? O que ser isso? perguntou Goholl olhando

    curioso para o desenrolar da cena volta do esquife.

    - Algo me diz que saberemos em breve. E no vamos gostar da

    resposta. Faonn fez uma pequena pausa Vamos terminar logo isso.

  • - Com certeza no em prol do orfanato de Ventobravo. debochou

    Goholl. Como vamos fazer?

    - Eu posso dar cabo dos aclitos, Faonn. sugeriu Volk em um sussurro

    que mais parecia um rosnado.

    - Seis?? Goholl olhou incrdulo para o ladino, que deu de ombros,

    indiferente. O sacerdote draenei assentiu.

    - Eu cuido da sacerdotisa. o lder do grupo fez uma pequena pausa e

    olhou ao redor, analisando o terreno mais uma vez. Seu olhar encontrou

    novamente a esposa inconsciente envolta em sombras e a sensao de urgncia

    cresceu em seu peito:

    Goholl, providencie uma distrao e nos d suporte.

    O xam sorriu satisfeito. A mente prtica do engenheiro draenei j havia

    esquadrinhado todo o local. Os elementos sabiam de suas necessidades e

    estavam dispostos a ajudar. Esprito do fogo, meu grande amigo, sei que foi

    trazido a este lugar com propsitos malignos. O olhar do xam estava fixo nos

    braseiros que rodeavam o esquife de gelo. Peo seu auxlio. Duas pessoas

    correm perigo e talvez muitas outras se no impedirmos o que quer que esteja

    para acontecer aqui. Estes braseiros no so dignos de sua majestade, meu

    amigo. Seja livre. E o fogo se fez livre.

    As pequenas chamas dos braseiros se tornaram labaredas de quase trs

    metros. O vento continuava soprando forte e gelado e ento os elementos

    travaram uma pequena batalha, como sempre acontecia entre eles. Goholl

    observou maravilhado por alguns segundos. Os elementos o fascinavam e

    comungar com eles era sempre como se fosse a primeira vez. Havia uma

    expectativa angustiante e ento a satisfao quando era atendido. O fogo

    lambeu o manto de um dos aclitos, que no conseguiu conter um grito.

    Imediatamente a sacerdotisa interrompeu seu canto e os outros seguidores se

  • levantaram. A mulher lentamente se virou na direo de Faonn e Goholl, pois

    Volk j espreitava as sombras:

    - No estamos sozinhos! bradou em uma voz furiosa.

    Gliter levantou assustada. Arthas estava ao seu lado. Instintivamente a

    sacerdotisa se afastou e sentiu uma suave bolha dourada envolver seu corpo.

    Tudo era trevas como antes. O antigo prncipe de Lordaeron, no entanto,

    parecia menos confuso.

    - Voc... iniciou sua luz mantm as trevas afastadas... mantm eles

    afastados. Arthas claramente se referia aos seres de sombra.

    A sacerdotisa no sabia o que responder. A lembrana do desejo de

    Arthas a deixara desnorteada. No entendia o propsito de sua permanncia na

    mente do herdeiro da linhagem Menethil.

    - No sei o que se passa aqui. No conheo os desgnios da Luz. Mas

    preciso sair deste ela fez uma pausa procurando uma palavra adequada e no

    conseguiu encontrar lugar.

    - Acho que sou o responsvel, de certa forma. era tristeza o que a

    sacerdotisa via no olhar do antigo paladino? Acredito que eu a tenha atrado.

    Eu precisava de ajuda e voc foi a nica pessoa capaz de captar meu pedido.

    - Eu poderia ter morrido! declarou a sacerdotisa, magoada.

    - Eu sinto muito. No sei como ocorreu. Arthas estava de frente para a

    draenaia, que mesmo na projeo mental era maior do que ele. Eu... foi a vez

    dele procurar palavras senti um vcuo sugando minha conscincia. Uma

    cantoria me expulsando desse lugar.

  • Gliter olhou intrigada. A postura de seu hospedeiro era sincera.

    Ampliando sua conscincia ao redor, no identificou nenhuma tentativa de

    manipulao. No havia falsidade nas intenes de Arthas. Ele realmente est

    preocupado!

    - No existem dias ou noites aqui. As memrias me assolam

    ininterruptamente. As vezes eu luto, as vezes eu fujo. Mas no existe lugar para

    me esconder. Presencio a morte de meu pai diariamente. ele fez uma pequena

    pausa, ressentido por minhas prprias mos. suspirou - Escuto ele perguntar

    o que estou fazendo. E mais uma vez. E outra. E no tem fim. E eu nunca

    respondo. Eu...

    A sacerdotisa estendeu o brao delicado e iluminado interrompendo-o.

    Palavras no eram necessrias. Mesmo antes de vivenciar a cena na mente de

    seu hospedeiro, ela sabia. Todos em Azeroth sabiam o que se passara. Sabiam

    como Terenas Menethil morrera. Gliter no achou que Arthas fosse chorar. E ele

    realmente no o fez. No porque no quisesse, mas porque no podia. No

    existiam lgrimas suficientes para todo o mal que causara.

    - Voc dizia que estava sendo sugado para fora daqui. O que isso pode

    significar? a sacerdotisa se forou contra as memrias que a cercavam. Sua

    presena trouxera certo alvio mente de Arthas, mas as memrias estavam

    volta. Ela podia sentir.

    - Sim. O cntico me chama. algo... externo.

    A draenaia pensou sobre aquilo por um instante. Arthas parecia

    acompanhar seu raciocnio:

    - Onde est meu... ele sabia qual palavra utilizar, mas hesitava em

    pronuncia-la.

  • - No topo da Cidadela da Coroa de Gelo, at onde sei. Jai... a

    sacerdotisa se interrompeu e se corrigiu. Foi feito um esquife de gelo. ela

    completou, solene.

    Gliter ficou em silncio por alguns momentos. No sabia o quanto seus

    pensamentos estavam vulnerveis ali na mente de Arthas. No sabia o quanto

    ele podia captar de seus sentimentos. Ergueu suas barreiras mentais o mais

    forte que podia. Luz, eu sinto tanta compaixo. Sei que ele no merece, mas no

    consigo pensar de outra forma. Como posso sentir compaixo... por ele? Seus

    erros no podem ser expiados.

    Alguma coisa estava perturbando o descanso de Arthas Menethil e a

    sacerdotisa desconfiava que suas intenes no eram boas. Lembrava

    claramente de sua queda prxima Cidadela da Coroa de Gelo. De alguma

    forma seu corpo era mantido inconsciente. Teria sido forada a entrar na mente

    de Arthas?

    - Eu preciso ir embora! Gliter declarou de repente.

    Arthas baixou levemente a cabea e a tristeza que ela primeiramente

    notara em seu olhar retornou com violncia. O sofrimento era pungente demais

    e causava sacerdotisa um profundo mal estar. Desviar o olhar no era digno;

    ela no se permitira. Ambos sabiam o que implicaria a ausncia da draenaia e

    da luz que a envolvia. Trevas completas. Para todo o sempre.

    E ento ela soube o que fazer.

    - No existe nada que eu ou voc possamos fazer que expie seus erros,

    Arthas. declarou solene. A projeo de Arthas era cinza feito pedra e encarava

    a sacerdotisa com seriedade. Voc perpetrou atrocidades. Devastou cidades,

    extinguiu reinos, torturou e ceifou milhares de vidas.

    Gliter parou por alguns instantes e olhou a escurido ao seu redor.

    Podia sentir as memrias de sombras espreitando. No ousavam se aproximar

  • da Filha da Luz, mas assolariam todo o lugar assim que ela se fosse. A

    sacerdotisa se voltou novamente para Arthas em um esboo de sorriso, triste e

    complacente, e doura na voz:

    - Ainda assim eu no posso ser indiferente ao seu sofrimento.

    Austera, a alta sacerdotisa da Luz, filha querida e nica do Profeta Velen,

    o Divino, se aproximou daquele que fora um dos maiores inimigos de Azeroth:

    - Voc j foi um paladino da Luz, Arthas. ela fez uma pequena pausa,

    as chamas azuis que eram seus olhos encarando o olhar cinzento e derrotado

    dele - Que voc enfrente suas memrias pelo menos com dignidade.

    Dizendo isso, Gliter colocou com firmeza sua delicada mo direita sobre

    a cabea de Arthas Menethil. A sacerdotisa entoou uma silenciosa prece Luz e

    sentiu o formigamento percorrer todo seu brao, a partir do ombro. Ao chegar

    mo e preencher as extremidades dos dedos ela sentiu o jorro de luz se

    desprender e inundar o prncipe herdeiro do extinto reino de Lordaeron. E ele

    gritou. Um grito constante, ensurdecedor e penitente. De sua boca jorrava luz e

    tambm de seus olhos.

    Por um breve instante a Luz varreu todas as trevas daquela mente

    devastada. Ento, conforme o grito de Arthas morria, a escurido retornava.

    Densa, pungente e com o flego renovado; as memrias de sombra

    sussurravam dio e culpa, mas o prncipe herdeiro de Lordaeron j no era mais

    cinzento. Luz, que eu tenha feito a coisa certa.

    Arthas Menethil ergueu-se em cores. Purificado pela Luz, seus cabelos

    se tornaram dourados como o ouro polido e seus olhos de um profundo azul

    celeste. Os trapos cinzentos que vestia deram lugar armadura esmaltada em

    prata, dourado e azul. Uma longa capa azulada pendia por fivelas em formato

    de leo. O paladino encarava Gliter com estupefao. Seu corpo agora emanava

    uma claridade singela, porm firme.

  • - O que voc fez? perguntou incerto. Eu no mereo...

    Gliter inclinou levemente a cabea e seu sorriso era pura bondade.

    - Apliquei em voc uma penitncia, Arthas. A Luz decidiu o resultado.

    Ela quem o julgou.

    Arthas olhava suas prprias mos enluvadas com espanto.

    - No se engane continuou a sacerdotisa com seriedade As

    memrias do que fez no podem ser apagadas. Fazem parte de voc. Seu

    passado sempre ser um tormento e ento suavizou a voz - Mas as boas

    memrias no mais esto sufocadas. Voc est livre para procura-las e vivencia-

    las tambm.

    - So to poucas... a voz do paladino era um triste murmrio.

    Gliter ficou em silncio. No havia mais o que dizer ou fazer.

    A sacerdotisa das sombras, percebendo a ameaa ao seu ritual, retirou

    uma adaga de seu manto e rapidamente apunhalou o humano acorrentado na

    altura do abdome.

    - AAAAAGHH!!!! gritou o homem sua cadela maldita!!

    - Est feito! entoou ela O ritual foi concludo! Nerzhul retornar!!

    - timo! Uma viva louca de Nerzhul! Algumas coisas nunca mudam!

    debochou Goholl enquanto lanava as chamas dos braseiros em direo aos

    aclitos.

    A esta altura Volk j havia neutralizado dois seguidores, que nem ao

    menos souberam o que os atingira. Os corpos jaziam em poas de sangue. Um

  • deles em espasmos convulsivos, efeito do veneno letal do ladino, que j se

    encaminhava ao terceiro.

    Faonn se lanou com ferocidade contra a sacerdotisa das sombras, que

    revelou ser uma orquisa. Segurando o cajado com a mo esquerda, o grande

    sacerdote estendeu a mo direita contra a inimiga e sentiu o prazer sinistro da

    energia sombria percorrer seu brao.

    - Dor! gritou ele em uma aterrorizante expresso.

    A orquisa deu um grito e arqueou, se recompondo logo em seguida.

    Observando atentamente, Goholl se antecipou ao que viria. Sendo dois

    sacerdotes das sombras, provavelmente iriam copiar os ataques um do outro

    por algum tempo, imaginou. De qualquer forma, o xam no pensou duas

    vezes. Com um vigoroso gesto de sua mo, um totem surgiu aos ps de Faonn,

    batendo-lhe na altura dos joelhos, em um formato similar a uma jarra, runas

    girando e cintilando ao seu redor.

    Goholl correu em direo ao esquife empunhando Torall.

    Diferente das maas comuns, a arma do xam possua uma esfera

    translcida e indestrutvel em sua parte de esmagamento. Forjada em tempos

    imemoriais, Torall se consumia em descarga eltrica: a arma perfeita para um

    xam. Quando um aclito se postou em seu caminho, o draenei elevou a maa

    por apenas alguns segundos. No observou diretamente - seus olhos estavam

    fixos no inimigo -, mas sorriu com satisfao quando uma descarga eltrica

    irrompeu dos cus diretamente no globo de Torall. O xam imediatamente

    golpeou o seguidor das sombras. O impacto destroou o rosto do inimigo em

    uma exploso eltrica, deixando o corpo cair eletrocutado em espasmos.

    Os sacerdotes de sombra, draenei e orquisa mediam foras e domnio

    das sombras. Faonn forava sua mente contra a sacerdotisa e sentia a barreira

    mental erguida em defesa. Sem dvida ela bem treinada, pensou. Tampouco

    os aguilhes mentais da orquisa surtiam qualquer efeito sobre Faonn. O lder da

  • Vem Tormenta mantinha a mente hermeticamente selada e sentia o ataque se

    despedaar como gravetos contra os portes de Altaforja.

    - Desista, orquisa! Seus seguidores esto todos mortos! Voc no vai

    conseguir escapar! bradou Faonn e era verdade. Volk liquidara com extrema

    facilidade cinco dos aclitos, enquanto o sexto fora despedaado por Goholl e

    sua Torall.

    A orquisa soltou uma gargalhada histrica.

    - Minha vida pouco importa! Meu propsito foi cumprido! Nerzhul

    despertar e com ele a Lua Negra.

    - No seja idiota, mulher! O que no existe no pode ser desperto! A

    existncia de Nerzhul foi banida! vociferou o sacerdote das sombras.

    Os dois disputavam poder de ataque com aoite mental. Um lastro de

    energia sombria, canalizado pelos dois sacerdotes, se chocava em uma fora

    avassaladora e equilibrada, ora pendendo para um lado, ora para o outro.

    Espectros de sombra desprendiam-se de ambos e vagueavam sem rumo pelo

    pinculo superior.

    - J foi o suficiente! gritou Faonn e sua fria chamou a ateno de

    Volk, que se postou ao seu lado.

    O sacerdote bateu com fora seu cajado no cho e um rastro de sombra

    se espalhou em direo mulher, se transformando em tentculos de sombra

    assim que a atingiram. Uma fina fumaa purprea pairava sobre os tentculos,

    que se contorciam enquanto seguravam a orquisa. A julgar pelas expresses

    que ela fazia, o aperto doa mais do que ela esperara. Faonn sorriu

    maliciosamente e ento a energia roxa que flua violentamente de suas mos se

    tornou mais densa e azulada: insanidade.

  • A uma instruo de Faonn, o ladino se moveu com tanta rapidez que

    parecia invisvel. O movimento no passou despercebido orquisa, que jogou a

    cabea para trs em mais uma gargalhada rouca:

    - No to depressa!

    Por um momento Faonn imaginou ser reflexo da insanidade sombria

    com que ele a assolara, mas ento percebeu a inteno da sacerdotisa. A mo

    esquerda da orquisa se voltou para trs em direo a Gliter.

    - Algo me dizia que a linda draenaia cada do cu serviria para alguma

    coisa. Foi somente por esse motivo que lhe poupei a vida. E imaginem s...

    sorriu com malcia. Afastem-se!! bradou ela.

    O sumo sacerdote das sombras cerrou os dentes e deixou o fluxo de

    insanidade se tornar novamente aoite mental, para ento diminuir a

    intensidade. A sacerdotisa tambm cessou seu ataque, mas estranhou o sorriso

    largo que se abriu no rosto de Faonn.

    Preocupado como estava, o sacerdote pouco desviara o olhar de sua

    esposa e percebeu quando a marca dos Naaru apareceu brilhando em azul

    poucos centmetros acima da testa da amada. Gliter abriu os olhos e Faonn

    conhecia aquele olhar. E por isso sorrira.

    O homem acorrentado recobrou a conscincia quando Goholl banhou

    seu corpo em uma corrente de gua conjurada. O barulho do mar batendo em

    rochas despertou o humano e ele abriu seus vivos olhos verdes.

    Os cabelos ruivos e escuros estavam presos em duas compridas tranas;

    da mesma cor era a barba curta e desgrenhada. Ambos com crostas de sangue

    seco. O rosto feroz encararou Goholl com estupefao:

  • - Que porra voc?? perguntou incrdulo, com seu sotaque rspido e

    grosseiro.

    - Algum que salvou sua vida e merece um pouco mais de respeito,

    humano! bufou o xam. Humanos!! O ferimento na barriga do homem no era

    mais que uma cicatriz esbranquiada aps a cura do draenei.

    Goholl, em hbeis golpes de sua maa eletrizada, arrebentou com

    facilidade as correntes que prendiam o homem desbocado ao esquife de Arthas

    Menethil. O xam no pde deixar de lanar um rpido olhar imagem

    embaada do corpo que ali jazia. Um desconforto tomou sua mente.

    - Tem minha gratido, criatura! disse o homem esfregando os pulsos

    doloridos, as correntes ainda pendendo dos grilhes. E ento, com um rosnado

    similar ao de um worgen e um brado de guerra em um dialeto que Goholl

    desconhecia, ele saltou.

    Saltou ao mesmo tempo em que Gliter abrira os olhos em uma fria de

    energia azul. Os vincos em torno de sua delicada boca eram aterrorizantes. Com

    mnima dificuldade a draenaia se envolveu em uma bolha de energia dourada,

    que expandiu e dissipou seu casulo roxo como se fosse uma bolha de sabo. A

    orquisa imediatamente olhou apavorada em direo draenaia, cuja luz se

    expandia assustadoramente.

    O momento de distrao foi o suficiente para que o humano atingisse a

    sacerdotisa das sombras com as correntes presas a seu corpo. Alguma proteo

    maligna a salvara do poder total do impacto, que poderia ter despedaado seu

    corpo, dada a fora de seu atacante. Mas em seguida ele j havia envolvido o

    pescoo da orquisa com as correntes. Com uma fora descomunal o nortenho

    comeou a estrangular a mulher. Puxava as correntes dos dois lados e gritava

    em uma fria insana, at que o pescoo da orquisa se partiu e a presso o

    arremessou aos ps da escadaria do trono de gelo.

  • - Acho que curei ele um pouquinho demais... sussurrou Goholl para si

    mesmo.

    Quando Gliter aterrissou na plataforma, Faonn j estava l e abraou-a

    com desespero. A conexo mental dos dois se reestabelecera no momento em

    que a sacerdotisa abrira os olhos, mas ainda assim ele precisava falar:

    - Minha luz! sussurrou em uma voz embargada. Eu... eu...

    A sacerdotisa sorriu com os olhos marejados e beijou o sacerdote das

    sombras. Gliter brilhava em luz e Faonn era translcido em trevas. E se

    completavam como noite e dia.

    - Meus amigos, no gostaria de interromper, mas... a voz gutural de

    Volk demonstrava apreenso pela primeira vez desde que saram de Exeria. Os

    draeneis, incluindo Goholl, e tambm o humano resgatado, olharam

    assombrados para o esquife de gelo eterno ainda com a mancha escura do

    sangue do sacrifcio. Pequena no incio, uma rachadura se estendeu e se

    ramificou infinitamente por toda a extenso do tmulo de Arthas Menethil.

    - Inacreditvel! murmurou Goholl.

    Um calafrio percorreu a espinha de todos que estavam ali, inclusive do

    humano, que no sabia exatamente do que se tratava:

    - Que porra essa? perguntou sua frase genrica para toda e

    qualquer dvida. Mas suas mos agarravam a corrente com fora e sua postura

    era defensiva. Como eu queria uma espada! murmurou.

    Imediatamente Faonn se colocou frente do grupo. O vento comeou a

    soprar com nova fora no pinculo superior. Empunhando seu cajado com

    austeridade, o sacerdote mantinha a expresso sria, embora em seu interior se

    perguntasse se daria tempo de bater em retirada. O que poderiam eles contra...

  • - Existe conscincia ali... interrompeu Gliter Ele est tentando

    quebrar o esquife. no havia surpresa na voz da sacerdotisa, apenas uma leve

    insegurana.

    Um guincho estridente cortou o ar gelado enquanto o grupo observava

    o esquife se partir lentamente. Uma nova ameaa pairava sobre eles. As asas

    brancas abertas majestosamente, o corpo feminino adornado por peas de

    armadura negra. Um elmo ladeado por asas cobria-lhe o rosto por inteiro,

    ocultando qualquer expresso.

    - Uma Valkyr observou Gliter com espanto e tambm certo

    encantamento.

    - A rachadura do esquife deve t-la despertado... de alguma forma.

    concluiu Faonn.

    - Ah sim! Garrosh e Asa da Morte tambm devem chegar a qualquer

    momento! debochou Goholl, incrdulo. Os amigos, embora em prontido de

    combate, pareceriam absortos com o acmulo de problemas dos ltimos

    segundos. Volk, porm, estava alerta. A mente pragmtica do ladino era

    treinada para resolues rpidas.

    - Goholl! o ladino praticamente sacudiu o xam. Preciso de uma

    ajuda. Na verdade um empurrozinho.

    O draenei franziu o cenho em confuso por alguns segundos, mas

    ento pareceu entender o pedido do worgen:

    - Tem certeza? perguntou incerto.

    - A margem de dvida de 0,19191919%! respondeu o ladino.

    Goholl no pde deixar de sorrir. Achava fundamental manter o corao

    leve, mesmo em meio batalha, e com Volk era sempre mais fcil. O worgen

    era de uma determinao imperturbvel. Segurando com fora o punho de

    Torall, o xam comeou a gira-la acima da cabea, em amplos movimentos

  • circulares. Mais uma vez venho at voc, meu amigo Ar. Mais uma vez preciso de

    ajuda esta noite para deter um grande mal que ameaa todos ns. O ar se agitou

    sua disposio e um rodamoinho comeou a se formar.

    Volk se apoiou nas patas traseiras e impulsionou o corpo em um

    impressionante salto. A corrente de ar, que comeara a formar um poderoso

    rodamoinho o pegou bem em cheio. O ladino rodopiou no ar algumas vezes,

    sob os olhares espantados de Faonn, Gliter e do guerreiro nrdico, e se lanou

    contra a Valkyr.

    - Mortais! O que pensam que esto fazendo? Como ousam profanar

    este local? bradou a vrykul morta-viva.

    O worgen agarrou a Valkyr pelos ps; por pouco no a alcanou. O

    puxo desestabilizou o vo e ela caiu alguns metros, se estabilizando no ar logo

    em seguida.

    - Co maldito!! bradou em sua voz inumana.

    A vrykul brandiu sua lana que reluzia em uma energia branca doentia e

    fez sucessivas tentativas para derrubar o ladino, que se esquivava facilmente

    impulsionando o corpo de um lado para o outro.

    E o esquife se partiu por completo.

    O corpo de Arthas Menethil caiu inerte entre os estilhaos de gelo, que

    comeavam a se esvair em uma nvoa densa. Ainda vestido em sua maligna

    armadura de Lich Rei, o baque pesado contra o solo pareceu levar uma

    eternidade e atingiu o corao de todos com um medo lancinante.

    A sacerdotisa da Luz, mesmo aps estar na mente de Arthas Menethil

    no conseguia vislumbrar o que aconteceria ali. Era realmente possvel que ele

    despertasse? E de que forma despertaria?

  • - O gelo eterno se quebrou. Apenas isso, no ? Vamos chamar um

    mago e ajeitar. sugeriu Goholl, o receio embargando a voz.

    - O gelo eterno s pode ser quebrado por dentro... afirmou Faonn

    sombriamente, os olhos fixos no corpo liberto do gelo.

    A nvoa, parecendo pesada, se prendeu ao cho, se espalhando por

    toda a base da escadaria que levava ao trono de gelo, onde Bolvar, pelo menos,

    continuava encerrado em sua fria viglia. Um ligeiro movimento foi denunciado

    pela pesada armadura de saronita.

    - Preparem-se!

    O guerreiro nrdico j havia se acostumado presena das

    desconhecidas criaturas azuladas e at mesmo do lobo falante, mas tinha receio

    do que acabara de se libertar do gelo. O que quer que fosse, deveria ser

    poderoso, para incutir tanto receio aos seus salvadores. Mas sua coragem era

    notvel; mesmo sem uma espada ou qualquer outra arma, se postara ao lado

    dos draeneis, as correntes presas ao braos como sua nica arma.

    O sumo sacerdote das sombras segurou com firmeza o cajado que

    empunhava. No era possvel saber a cor original da arma, pois como tudo

    empunhado por Faonn, estava consumido por sombras, adotando a mesma

    aparncia purprea translcida do draenei. Orbes de sombra surgiram como

    pequenos pontos ao redor de seu corpo e se expandiram ao tamanho de um

    grande punho cerrado. Circulavam o sacerdote de forma agitada, acumulando o

    poder sombrio que ele desencadeava.

    A valkyr acertara o ladino de raspo, rasgando o flanco de sua

    armadura de couro e arrancando sangue. Volk uivou. No um uivo de dor, mas

    sim de clera. Ainda segurando as pernas de sua inimiga, o worgen balanou o

    corpo e, em uma acrobacia formidvel, se lanou s costas da morta-viva. Mais

  • uma vez o voo dos dois se desestabilizou para em seguida se corrigir. O

    combate com o ladino distrara a valkyr do que acontecia metros abaixo.

    Utilizando uma das mos para segurar e se manter nas costas da

    grande valkyr, o ladino empunhou sua adaga mortfera com a mo esquerda;

    anos de muito treinamento garantiam plena ambidestria ao worgen. A vrykul,

    no entanto, tambm no era destreinada. Em mais um golpe de sua lana,

    conseguiu arrancar a adaga da mo de Volk. Os dois no ouviram o retinir de

    metal quando a arma caiu na escadaria glida.

    Remexendo-se violentamente, a valkyr tentava a todo custo se livrar do

    passageiro indesejvel daquele voo. Volk tentou alcanar o arsenal escondido

    em suas grevas, mas a criatura alada se revirava violentamente, fazendo com

    que o ladino precisasse das duas mos para se manter nos ares. L embaixo,

    Goholl assistia a tudo pronto para curar agressivamente o ladino se precisasse.

    No arriscava atacar pois poderia machucar o amigo.

    Volk ento cedeu sua natureza worgen. Agarrando a valkyr com suas

    patas dianteiras, arrancou em um s golpe a nica proteo que ela possua no

    pescoo e ombros, atirando-a aos ares. Goholl observou com assombro quando

    o worgen, sempre to polido e silencioso, se entregou a um uivo selvagem,

    esquecendo tudo que se passava metros abaixo, e ento abocanhou o pescoo

    da Valkyr.

    O lquido viscoso e azulado jorrou da valkyr conforme Volk rasgava seu

    pescoo com as presas afiadas, e queimou a garganta do worgen em um

    primeiro momento. O xam, atento a tudo que se passava, j estava ministrando

    uma onda curativa e o ladino prosseguiu com seu ataque. O worgen balanava

    a cabea conforme dilacerava a inimiga em uma mordida selvagem. A valkyr

    nem ao menos gritou. Em segundos a cabea pendia sem vida e as asas da

    vrykul pararam de bater, iniciando uma longa queda.

  • O ladino se apoiou no corpo sem vida e deu um impulso seguido por

    uma cambalhota, aterrissando de p e com extrema destreza prximo ao xam

    curador. A valkyr caiu em um baque surdo na outra extremidade da plataforma.

    - Realmente me assusta quando voc faz essas coisas. observou um

    incrdulo Goholl com o cenho franzido.

    - Perdoe-me, meu amigo. o calor da batalha. o wogen respondeu

    polidamente, limpando a boca.

    O xam estava prestes a acrescentar uma piada, mas ento o corpo que

    j pertencera ao Lich Rei estava novamente de p.

    O cavaleiro da morte recm-erguido encarou o grupo por longos

    minutos. Uma tenso pungente os assolava diante da possvel ameaa de um

    dos piores inimigos que Azeroth tivera. Faonn, Gliter, Goholl e Volk, at mesmo

    o guerreiro nortenho, sua maneira, eram combatentes valorosos, mas a

    maioria se lembrava do quanto fora necessrio e do quanto fora sacrificado

    para derrotar o Lich Rei. Se o cavaleiro erguido ali fosse realmente o rei do

    flagelo, eles no tinham chance alguma. Mas ainda assim morreriam lutando.

    - Arthas... sussurrou Gliter para si mesma.

    A sacerdotisa da Luz fez uma prece silenciosa, pedindo leveza aos

    coraes e foi prontamente atendida. Os cinco sentiram a mente desanuviar e

    uma reconfortante sensao se espalhar. A draenaia ento tocou delicadamente

    o ombro do marido e ele viu.

    Em sua mente, em no mais que trs segundos, Faonn experimentou a

    estadia da esposa na mente de Arthas Menethil. As memrias o assolaram, mas

    a sacerdotisa fora cuidadosa ao projetar os eventos. At ento o sacerdote no

    podia imaginar o que se passara enquanto a sacerdotisa estivera em suspenso

    na bolha sombria. Ao mesmo tempo em que via as cenas, o draenei tambm

  • tomava conscincia da compreenso de Gliter sobre todos os eventos. E Faonn

    no era indiferente sabedoria da filha do Profeta Velen, o Divino. Mais ainda, o

    sacerdote confiava no julgamento da esposa.

    - Arthas! proferiu solenemente o draenei em uma voz alta e imperiosa.

    A armadura negra esculpida em caveiras continuava aterrorizante,

    embora a suntuosa capa nada mais fosse que um trapo esvoaante. Os cabelos

    brancos e sem vida balanavam com estranha leveza ao vento. Davam a

    impresso de que se despedaariam a qualquer momento. Olhos brilhavam em

    energia doentia azul e o rosto plido encarava inexpressivamente o grupo.

    Gliter tinha dificuldades para associar a imagem do cavaleiro da morte

    ao Arthas que acabara de deixar em sua mente e at mesmo ao Arthas cinzento

    devastado pelas memrias de seu passado. Mas era Arthas. Somente ele. Essa

    constatao era compartilhada com Faonn; estavam novamente ligados como

    um s. Sombra e Luz em complemento.

    - Tentaram restaurar a conscincia de Nerzhul ao seu corpo.

    continuou Faonn; o restante do grupo continuava observando apreensivamente.

    No sei o que teriam conseguido se no tivssemos impedido. ele fez uma

    pequena pausa - Sequer sei se conseguimos impedir...

    O cavaleiro da morte rompeu seu silncio em uma voz metlica, grave e

    fria:

    - Nerzhul h muito no existe!

    Goholl e Volk perceberam quando seu lder relaxou um pouco a

    postura. As orbes sombrias diminuram a velocidade e tambm o tamanho.

    - desnecessrio falar sobre todas as atrocidades ocorridas, Arthas.

    Arthas alternava o olhar do sacerdote das sombras para a sacerdotisa

    da Luz, que adotara uma expresso inescrutvel.

  • - Minha esposa comungou de sua mente e eu confio na compreenso

    dela. continuou o draenei Tenho meu entendimento sobre trevas e sombras.

    ele fez uma pequena pausa e deu um pequeno passo frente Mas tambm

    entendo sobre redeno atravs da Luz. o sacerdote das sombras ento

    encarou Gliter por alguns segundos, que respondeu com um doce e iluminado

    sorriso.

    - No h reparo. bradou Faonn - Mas pode haver redeno. A Luz

    novamente reside em voc. Transformada, mas ainda assim Luz.

    Pela primeira vez Arthas encarou Bolvar Fordragon no alto do trono de

    gelo, encerrado eternamente em viglia ao flagelo. Gliter pensou enxergar uma

    sombra de tristeza sobre seu rosto, mas no imaginou que fossem emoes

    possveis a um cavaleiro da morte. Longos minutos se passaram.

    Os draeneis e Volk tinham certeza de que no havia mais perigo ali,

    embora o guerreiro humano no parecesse ter ideia do que ocorria. Ele no faz

    ideia do que tenha sido o Lich Rei, pensou Volk. O pensamento parecia simples,

    mas o ladino compreendeu a dimenso e importncia da atividade da Vem

    Tormenta e de outros grupos que se espalhavam por toda Azeroth. Uma parte

    do mundo ainda se mantm inocente. por isso que lutamos.

    Volk, mortfero com adagas e venenos, era de poucas palavras, porm

    sua mente era afiada e objetiva. No vivenciara, nem ao menos sabia da

    incurso de Gliter na mente de Arthas, mas conseguia entender profundamente

    o que se passava ali. O worgen, que lutara bravamente contra o flagelo e

    perdera entes queridos em Gilneas, se dirigiu ao cavaleiro da morte, em sua voz

    gutural:

    - A existncia plena na possibilidade de redeno! Voc no pode

    devolver as vidas que tirou, verdade, mas pode impedir que outras sejam

    ceifadas por mal semelhante.

  • Novamente silncio. O vento uivava e ameaava apagar os braseiros,

    que providenciavam a nica iluminao daquela noite escura. Eles sabiam,

    porm, que o fogo no se apagaria enquanto Goholl estivesse ali. Tampouco o

    vento os aoitaria com violncia, como geralmente fazia quela altura da

    Nortndria.

    - Ningum deve saber que estou... ele fez uma pequena pausa, ciente

    de que a palavra no se adequava sua situao - vivo. olhou mais uma vez

    com abandono para a figura de Bolvar Fodragon no trono de gelo. As correntes

    que uma vez amarraram o venerado paladino ainda pendiam nos pilares - J

    trouxe destruio demais a esse mundo.

    O barulho do Retalhador de Nuvens se fez ouvir distncia. Bolvar

    Fordragon precisava novamente de seu silncio gelado.

    * * *

    A noite caa suavemente em Dalaran. As luzes dos postes bruxuleavam,

    iluminando fracamente as ruas naquela noite sem luar. O vento frio balanou o

    manto negro do vulto na varanda superior da estalagem, mas ele permaneceu

    impassvel. Os olhos fixos no prdio frente.

    - Est tudo certo! irrompeu uma voz masculina rude, de sotaque

    nrdico. Consegui um mago para nos teleportar at l.

    O vulto no se mexeu, parecendo no ouvir o homem atrs de si, ou

    no se importando.

    - Marnazus, no isso?

    - Darnassus! corrigiu a voz em um som metlico e frio caracterstico

    dos cavaleiros da morte.

  • O homem ruivo considerou a correo:

    - Porra! Espero que no cobrem mais pelo teleporte! soltou uma

    gargalhada spera e alta.

    Os cabelos tranados e limpos presos em fivelas de prata, a barba um

    pouco suja de farelo e molho, os olhos verdes animados. Um forte hlito de

    cerveja antecedia suas palavras. O guerreiro nrdico resgatado na Cidadela da

    Coroa de gelo utilizava um grande cinturo de prata, de onde pendia sua

    espada, calas de pele de foca e o musculoso torso nu. Grandes braadeiras de

    couro de rhino adornavam seus punhos.

    - E como por l? indagou o nortenho, a voz um tanto sonhadora.

    - Um matagal insuportvel! respondeu o vulto depois de algum

    tempo.

    O nortenho mais uma vez soltou uma sonora gargalhada.

    - E para l que ns vamos?

    - Eu vou. Voc livre para fazer o que quiser. a voz metlica

    respondeu com indiferena.

    O guerreiro nrdico balanou a cabea e pegou uma caneca de cerveja

    de uma mesa prxima. Olhou seu contedo distraidamente e tomou um grande

    gole:

    - No me restou muito depois que minha aldeia foi massacrada. fez

    uma pequena pausa, pensativo - Boas lutas fazem boas canes. Um pouco de

    glria para minha velha amiga aqui. bateu no punho de couro marrom da

    espada embainhada. - Os caras azuis parecem ser gente boa. Principalmente

    por... ele se interrompeu, constrangido, no deixando a cerveja falar por si.

    - Por me aceitarem? completou a voz metlica com ressentimento.

    O nortenho no respondeu e se virou para sair:

  • - Ragnrr? chamou o vulto.

    O guerreiro se deteve por um momento e ento o vulto completou:

    - Obrigado.

    Ragnrr sorriu, mesmo sabendo que o vulto no o veria, e saiu da

    sacada, os passos pesados.

    Os cabelos brancos, quebradios e sem vida, adejaram ao vento da

    noite de Dalaran. Os antigos olhos azuis de Arthas Menethil deram lugar a

    rbitas vazias preenchidas por uma doentia luz azul, cravada em um rosto

    plido e de expresso severa. Fitavam a construo imediatamente frente, um

    dos muitos edifcios dirigidos pelo Kirin Tor, onde um casal se beijava luz das

    poucas estrelas daquela noite.

    Era impossvel decifrar seus sentimentos, se que poderia se chamar

    assim qualquer coisa que se removia dentro dele. Observava com ateno e

    tambm resignao. No conhecia aquele rapaz. Um tipo atltico de cabelo azul

    negro. Beijava a moa com uma paixo respeitosa, ele era forado a admitir.

    O cavaleiro da morte no poderia deixar de reconhecer aquela mulher,

    mesmo que seus cabelos agora fossem brancos como o dele. No pela idade,

    ele tinha certeza; alguma atividade mgica de que ele sequer desconfiava. Em

    algum outro tempo ele teria rido pela coincidncia. Era possvel perceber uma

    madeixa dourada conforme ela se mexia e a luz de algum poste banhava seu

    rosto. O mesmo rosto. Mais duro, talvez, mas ainda assim belo como se

    lembrava.

    A mulher estacou por um instante, num quase sobressalto. Seus olhos

    perscrutaram ao redor e se dirigiram curiosos varanda do outro lado da rua a

    tempo de enxergar um vulto saindo da noite e entrando na estalagem.

    E Arthas Menethil se foi da Nortndria.

    No havia mais nada ali para ele.