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    Memria e opinio *

    Pierre Laborie

    Todo mundo pode falar longamente sobre a memria, todo mundo tem sua opinio a

    respeito da opinio. Nem uma nem outra pertencem propriamente ao campo do historiador, por

    mais aberto e hospitaleiro que ele seja. Elas se inserem no espao extensvel do saber imediato e

    de suas falsas paisagens Potemkin,1 bem como do senso comum e de suas intuies, mas

    tambm de suas prevenes, mal-entendidos, imprecises e confuses. Alis, antes de mais nada,

    cabe lembrar o risco de render-se facilidade ilusria desse tipo de noes conceituais. A

    despeito do que seu uso frequentemente d a entender, lcito duvidar de sua capacidade de

    apreender em sua generalidade fenmenos de natureza fundamentalmente complexa, seja porque

    dizem respeito ao mental coletivo, seja porque se caracterizam por uma extraordinria

    diversidade de expresso e de sentido. Vamos repetir: a opinio no uma categoria universal, e

    sim uma construo que resulta de sua prpria histria e que contribuiu para produzi-la. Por sua

    vez, antes de poder ser identificada por uma de suas mltiplas manifestaes, sobretudo no

    plural que a palavra memria deve ser empregada.

    Essa exposio preliminar visa to somente situar o esprito com que me proponho

    abordar tais questes. Se meu ofcio de historiador me levou a trabalhar com a memria e a

    opinio como formas de representaes coletivas, o tema desta coletnea me permitiu consider-

    las de outra forma e descobrir, sob um ngulo diferente, possibilidades que eu supunha

    erroneamente estarem esgotadas.2 Esforo intelectual salutar, portanto, uma vez que no me

    havia ocorrido refletir sobre os dois conceitos conjuntamente e descobrir o que poderia ser tirado

    dessa relao.3Vale dizer, no entanto, que se a ideia era boa, as coisas no se revelaram simples.

    *Traduo de Luiz Alberto Monjardim.1Aluso ao favorito de Catarina II que, por ocasio da viagem da imperatriz Crimia, em 1787, fez erigir ao longoda estrada aldeias de fachada povoadas de figurantes.2 Meu duplo agradecimento a Denise Rollemberg, que me props esse tema e me convidou para participar doseminrio.3A no ser fortuitamente, ao estudar casos particulares.

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    Isso porque, para ser franco, devo dizer que esse tipo de reflexo novo para mim, com todas as

    limitaes e insuficincias que lhe so inerentes.

    Como abordar tais questes do ponto de vista da histria e do historiador? Como

    apreender ao mesmo tempo e num mesmo movimento dois objetos vistos geralmente como no

    constitudos, de limites mal definidos, a tal ponto que, no caso da opinio, podemos considerar

    inapreensvel? diferena de outros temas mais tradicionalmente associados memria, no

    se percebem de imediato todos os vnculos e relaes existentes entre as duas noes, e sim que

    elas remetem evidentemente ao mental-emocionalcoletivo, ao universo dos imaginrios sociais.

    Voltaremos a esse ponto, mas, nos dois casos, tanto na natureza como no funcionamento da

    memria e da opinio, aqui entendidas exclusivamente em sua dimenso coletiva, o papel da

    relao com o tempo e dos sistemas de representaes parece central. Sem buscar definies alis

    inacessveis, tentando diz-lo em poucas palavras, uma primeira tentativa de esclarecimento de

    algumas caractersticas principais da memria e da opinio deveria ajudar a ressaltar a

    importncia desses dois traos, de um lado e de outro.

    Atravs da rememorao de fragmentos do passado, cada memria social transmite ao

    presente uma das mltiplas representaes do passado que ela quer exprimir. Entre diversos

    outros fatores, ela se constri sob influncia dos cdigos e das preocupaes do presente, por

    vezes mesmo em funo dos fins do presente.

    Os fenmenos de opinio refletem representaes do presente que, apesar das aparncias,

    no exprimem unicamente a relao dos atores sociais com esse mesmo presente. Eles traduzem

    as reaes cambiantes do sentimento coletivo diante das interrogaes ou dos acontecimentos do

    presente, mas tambm diante de questes atemporais reformuladas ao presente. Nas hierarquias

    de importncia ligadas ao contexto, eles remetem, pois, ao mesmo tempo viso do presente, s

    interpretaes do passado e s expectativas do futuro.

    Nessas duas vises esquemticas, claro, o modo de relao com o tempo, especialmente

    o presente, tem papel primordial, inclusive quando se trata de memria e de passado. Esse trao

    comum apenas um elemento de um conjunto de semelhanas e diferenas cujo inventrio de

    interesse apenas limitado. Por outro lado, h muito que aprender com a observao das

    interferncias de fato, das interaes e das influncias recprocas entre os dois fenmenos. Em

    suma, como vimos e tornaremos a ver, a memria intervm na fabricao da opinio pela

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    influncia das representaes dominantes do passado. Por sua vez, a opinio tem papel decisivo

    na validao social e na legitimao da memria ao dar credibilidade a seu discurso por meio de

    sua divulgao, processo que pode ser amplificado pela mdia.

    No que nos concerne aqui, evidentemente so as encruzilhadas e as passarelas entre

    opinio e memria que merecem especial ateno. Que tipos de ligaes, que relaes e

    influncias recprocas existem entre memria e opinio? Quais os seus efeitos sobre os dois

    fenmenos, e com que consequncias? Assim formulado, o problema que atravessa esta

    exposio parece relativamente simples de se colocar. Mas ver com clareza de incio no basta

    para dissipar a bruma que envolve as zonas de interferncias. Teoricamente fcil estabelecer

    distines entre opinio e memria, mas o mesmo no ocorre quando os dois fenmenos se

    sobrepem. Da novas interrogaes: at que ponto a opinio depende das interpretaes do

    passado que as estratgias memoriais podem tentar lhe impor, por exemplo, ocupando

    metodicamente o espao miditico? At que ponto, por outro lado, o papel da memria como ator

    social depende da aceitao e da visibilidade por ela adquiridas graas ao eco e caixa de

    ressonncia que a opinio lhe propicia? Como se efetuam a apropriao coletiva de um discurso

    da memria e sua transformao em vulgata difundida pela opinio? Que acontece quando os

    usos sociais transformam a memria em objeto de opinio? Que sucede com essa memria e seu

    estatuto histrico quando ela se torna uma questo de opinio?

    Como se v, so muitas questes interligadas, interrogaes e cruzamentos complexos,

    dificuldades diante das quais todos os argumentos so reversveis. Muitas questes impossveis

    de apreender em sua totalidade, ainda mais em tempo limitado. Sem perder de vista a inevitvel

    superposio dos questionamentos, darei aqui prioridade quilo que julguei ter percebido como

    intenes no tema proposto. A saber, procurar refletir sobre os dois processos de construo, sua

    interaes e seus efeitos; depois, mais alm, no campo que diz respeito ao trabalho de elucidao

    da histria, sobre suas exigncias. Nessa perspectiva, trs eixos principais porm tratados de

    maneira desigualmarcam a articulao desta exposio:

    diante da impreciso que reina nos espaos comuns memria e opinio, e diante dos usosque geram a confuso e que a exploram por vezes, necessrio rever alguns dados bsicos sobre

    a memria e a opinio para um breve trabalho de esclarecimento, mesmo que sumrio;

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    em seguida, preciso tentar estabelecer um inventrio comparativo das caractersticas maissignificativas dos dois fenmenos, notando que so as mesmas ferramentas conceituais que

    servem, nos dois casos, para empreender o esforo de esclarecimento;

    a ltima parte ser dedicada problemtica transversal. Focalizar os cruzamentos,

    interferncias e interaes entre memria e opinio. Da uma srie de problemas criados pelo

    estatuto histrico das duas noes e pelos efeitos das estratgias memoriais, com seus riscos de

    desvios, de deturpao de sentido, chegando por vezes ao embuste.

    Por ltimo, cabe observar que o tema e essa uma de suas dificuldades remete

    constantemente a abstraes e questes epistemolgicas referentes ideia e a escrita da histria.

    Sempre que possvel, faremos referncia a situaes histricas ligadas sobretudo memria do

    segundo conflito mundial na Frana e mais precisamente vulgata memorial miditica que

    supostamente reflete as atitudes coletivas dos franceses sob Vichy e a ocupao alem. Sua

    construo e sua condio atual de verdade dominante na opinio revelam de modo muito

    significativo os problemas da relao estreita porm difusa, raramente explicitada, entre memria

    e opinio.

    I. Alguns lembretes

    Algumas indicaes bsicas so aqui indispensveis. Referem-se elas opinio e

    memria, incluindo uma rpida reviso daquilo que diz respeito histria e marca seu territrio.

    Tais dados elementares visam to somente fazer compreender melhor de que esto falando os

    historiadores quando se referem opinio e memria.

    Sobre a opinio

    No voltaremos aqui aos questionamentos habituais, espcie de exerccios obrigatrios

    que geralmente precedem as tentativas de reflexo sobre a opinio. No abordaremos os

    problemas recorrentes da natureza e da realidade social da opinio pblica, nem da escolha do

    termo mais apropriado,4 muito menos do valor, do papel ou do sentido a serem atribudos s

    sondagens de opinio. Mas, queiramos ou no, a afirmao incessante de uma equivalncia entre

    sondagens e opinio tornou-se um fato sociocultural que no pode ser ignorado. Por sua repetio

    4Em vez de falar de expresso da opinio pblica, rigorosamente enquadrada pelas cincias sociais, mas objeto dedebate permanente, falaremos de histria simplesmente da opinio ou, ainda, de fenmenos, fatos, acontecimentos deopinio. A ideia de movimento e a escolha do plural evidentemente no se devem ao acaso.

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    pluricotidiana, mecnica, a frequncia de uso serve de prova da existncia da opinio. Prova

    revelia, que no prova nada e que de modo algum resolve o problema.

    Isto posto, podemos destacar alguns dados sobre o funcionamento e a percepo da

    opinio:

    1. As manifestaes explcitas e visveis do apenas uma legibilidade parcial opinio.

    Cumpre igualmente evitar trs grandes armadilhas ligadas s aparncias: as da proximidade, do

    sentido e da linguagem.

    A familiaridade do uso da opinio uma falcia. Leva a crer que tudo uma questo de

    bom senso, de lgica, de uma opinio sobre a opinio... Essa falsa ideia corroborada pelo uso de

    sondagens que levam a crer que a opinio no s uma realidade mensurvel, mas tambm

    acessvel, fcil de perceber, compreender e interpretar. Na verdade, para alm dos sobressaltosemocionais e das aparentes agitaes espetaculares, trata-se de um fenmeno coletivo complexo,

    opaco, de legibilidade imediata enganosa.

    Os fenmenos de opinio fazem lembrar as fachadas em trompe-loeil. O que se v nem

    sempre o que .

    A realidade da opinio no depende de sua expresso manifesta. No s ela existe

    externamente sua manifestao explcita, como tambm, ao contrrio do que geralmente se diz,

    suas manifestaes mais visveis, mais espetaculares, no so obrigatoriamente as maissignificativas. Chega-se assim a uma ideia primordial para a compreenso do fenmeno: a

    opinio que se manifesta abertamente no necessariamente a opinio que se tem. Essa iluso ou

    essa falsa percepo concerne ao mesmo tempo ao sentido das reaes e ao modo de

    funcionamento da opinio. Para alguns, como se sabe, no s a expresso da opinio resulta do

    trompe loeil, como tambm ela prpria no passa de uma iluso, de um artefato.

    Na aparncia, e isso reforado pelas perguntas das sondagens (sim/no, a favor/contra),

    a opinio exterioriza seus pontos de vista numa linguagem binria que mascara umfuncionamento complexo. Na realidade, sua expresso bem mais opaca, especialmente em

    situaes de crise. A fabricao da opinio envolve tenses e contradies que se manifestam por

    atitudes aparentemente contrrias lgica mas que tm sua lgica, diferente , por

    ambivalncias, pelo pensamento dbio e suas zonas cinzentas. Linguagem difcil de traduzir, em

    que as incoerncias no so percebidas como tais, em que nem tudo se reduz razo.

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    2. A opinio um processo, um movimento em evoluo permanente influenciado por

    mltiplos fatores, o qual exprime uma relao com o tempo e dele decorre. Depende, obviamente,

    do contexto e das categorias utilizadas, mas tambm dos regimes de temporalidades, das

    representaes cruzadas entre passado, presente e futuro.O sentido que a memria dominante

    ou as diversas memrias sociais d ao passado intervm de maneira decisiva nas

    representaes que a opinio faz do presente.

    3. Em histria, os fenmenos de opinio, para serem compreendidos, no podem ser

    isolados e considerados separadamente. O sentido que se possa dar s reaes da opinio ou ao

    seu movimento depende estreitamente das relaes com o tempo e das interaes com o contexto.

    Eis porque nenhum fato de opinio poder ser corretamente apreendido, elucidado, se for tomado

    por si s, artificialmente destacado da espessura do tempo e de seu ambiente mental-emocional.

    No entanto, isso que freqentemente se observa nos estudos de opinio, segmentados e focados

    em funo dos problemas sobre os quais ela se pronuncia. Cada expresso de opinio, cada fato

    de opinio fazem parte de um todo imbricado, que deve ser apreendido em sua totalidade para

    no ser descaracterizado.

    Sobre a memria

    Reduzir a memria a alguns dados elementares um exerccio ainda mais perigoso que no

    caso da opinio, um sobrevoo inevitavelmente lacunar.1. A memria a base da identidade, e sua dimenso identitria evidentemente

    fundamental. Pessoas e sociedades so feitos de memriae de lacunas de memria... Ela torna

    a dar existncia quilo que existiu mas no existe mais, ela uma representao presente de uma

    coisa ausente (Paul Ricoeur).

    2. As memrias so plurais, a palavra e a ideia so multiformes.

    O termo memria comporta mltiplos usos e empregos, acarretando por vezes confuso e

    mudana de sentido. O mais importante, ao menos na Frana, o mais frequente na linguagem

    memorial-miditica, a perniciosa equivalncia disseminada entre memria e histria, a falta de

    distanciamento crtico entre a memria e seus usos.

    Alm disso, o termo remete a diferentes expresses de rememorao do passado: memria

    coletiva, social, familiar, memria histrica, memria de testemunhas, de propagadores de

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    entre justia e histria, pelos processos considerados como lies de histria que ficam na

    memria, que confirmam precisamente a relao entre memria e opinio.

    Porm, uma vez mais, as coisas so simples apenas na teoria. Na realidade sabemos quo

    difcil observar de maneira intransigente essas exigncias e esses limites. As fronteiras so

    porosas. Onde, no entanto, se faz necessrio manter o rigor, o emprego das palavras deveria

    suscitar uma vigilncia particular dos historiadores. Com todo o respeito e amizade que tenho por

    Philippe Joutard, pergunto-me se noes como memria histrica podem nos trazer maior

    clareza.

    II. Semelhanas e diferenas

    Relacionar a memria com a opinio faz surgir uma srie de semelhanas, diferenas,

    interferncias e influncias recprocas. Trataremos por alto das primeiras, pois so a amplitude e

    a importncia das interaes o aspecto que aqui mais nos interessa e que ser examinado na

    terceira e ltima parte deste texto.

    Semelhanas

    Vistos de fora, os pontos de semelhana entre memria e opinio remetem principalmente

    inconsistncia dos objetos. Como j indicado na parte introdutria, estamos diante de noes

    moles: fluidez, definio impossvel ou aproximativa, plasticidade, acesso e compreenso

    fceis, na aparncia, do nvel do senso comum.

    Em segundo lugar, pode-se apenas destacar o papel central das representaes mentais,

    presentes em todos os nveis e fases da construo ou da recepo. Representao do passado

    condicionada ou no pela memria dominante na construo da opinio, representaes do

    passado visto do presente na fabricao da memria, representao que fazemos da opinio dos

    outros etc.

    Enfim, para ser breve, sem nos alongarmos no assunto, v-se que, tanto para falar daopinio como da memria, os historiadores utilizam as mesmas ferramentas conceituais,

    especialmente no que concerne s condies de recepo e aos processos de captao e

    apropriao, identificveis por toda parte. A transformao de um discurso da memria em

    vulgata pelo efeito de legitimao exercido pela opinio obscurece a distino entre os dois

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    fenmenos. A mensagem da memria e, mais alm, a interpretao do passado de que ela

    portadora entram assim no domnio nebuloso das questes de opinio.

    Diferenas

    Por questo de simplicidade, as principais diferenas podem ser listadas segundo uma

    classificao temtica, em funo da natureza das duas noes, de seu estatuto, de seu modo de

    relacionamento com o real, de funcionamento e de expresso.

    Diferena de natureza

    Pode haver interrogaes sobre as figuras e os contornos da memria, mas no sobre sua

    realidade, ao contrrio da opinio.

    No mesmo registro, a memria um elemento estruturante da representao do mundonas sociedades humanas, da relao dos homens com o mundo. J a opinio e suas reaes so

    apenas um dos reflexos passageiros dessa relao com o mundo. Elas no a constroem, so um

    ds seus reflexos fragmentrios.

    Diferena de estatuto

    A memria exprime certezas, prendendo-as, fixando-as; ela depositria de uma verdade

    que pode adquirir um carter sagrado. O imperativo do dever de memria pertence a essa

    configurao. Evidentemente, no existe dever de opinio! Ela no transmite nenhuma

    injuno, permanecendoem princpioum espao de debate, de reflexo crtica, de evoluo

    constante, de mudana, de viradas, de retornos... o lugar das ambivalncias, das contradies,

    das lgicas de pensamento que no so lgicas da razo, mas que tm sua razo de ser.

    Diferenas no modo de relacionamento com o real, nos modos de funcionamento e de expresso

    Apesar de reconstruir representaes do passado, a memria se baseia na experincia do

    vivido. Ela transmite o real, ela rememora, ela testemunha sofrimento, ressentimento, s vezesfelicidade... Essa funo de testemunho tem um papel estruturante, podendo levar a memria a

    colocar no centro de sua razo de ser um real de traos desintegrados (Auschwitz).

    J a opinio funciona nas percepes e representaes do mundo, do acontecimento ou

    dos fatos da sociedade. As emoes no esto ausentes dessas percepes e de seus efeitos, mas,

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    mesmo quando seu papel importante, elas no duram como as marcas. Assemelham-se mais a

    variveis de durao limitada do que a longas permanncias. Tais diferenas remetem mais

    amplamente quela da relao com o tempo, j mencionada.

    Lembremos, enfim, que o discurso da opinio ao mesmo tempo binrio e complexo,

    explcito e implcito, segundo os nveis e as formas de expresso, ao passo que o da memria

    procura transmitir certezas, declara o bem e o mal, o justo e o injusto.

    III. Interaes e usos

    Se tais diferenas entre opinio e memria devem estar sempre presentes em nossa mente,

    so as interferncias, as interaes e seus efeitos que aqui nos interessam prioritariamente, pois

    suscitam indagaes a respeito do problema do sentido. Como j foi dito, a incerteza se instala

    quando os dois fenmenos se juntam para se nutrirem um do outro e se dilurem em parte,

    formando um binmio opinio/memria de prticas ao mesmo tempo antropofgicas e inventivas.

    A memria coletiva no necessita da opinio para existir. Existe sem ela, ator social invisvel,

    subterrneo, presente e arraigado nas estruturas mentais das sociedades humanas. Mas ela s se

    torna verdadeiramente coletiva e dominante, e portanto um fato social, quando conta com a

    intermediao, a aceitao e o apoio da opinio.

    A memria como ator social , pois, em parte dependente de sua recepo na opinio. Os

    processos de validao, apropriao e legitimao parecem reduzir os problemas de memria aquestes de opinio. Se, como veremos, tal reduo no contestvel, poder-se-ia ento dizer que

    a memria se torna dependente da visibilidade que ela encontra em sua recepo na opinio?

    Uma vez mais, isso seria simplificar, pois tudo se passa numa relao interativa, e a opinio, por

    sua vez, dependente do discurso sobre o passado formulado pela memria. Trs grandes

    questes permitem diz-lo de outra forma: que acontece com a memria quando ela se torna ao

    mesmo tempo questo de opinio e estratgia de opinio para o presente? Como e por que a

    opinio, espelho da sensibilidade coletiva, se reconhece num discurso da memria? Como se d o

    processo de apropriao que transforma um discurso da memria em vulgata tornada verdade

    evidente na e para a opinio? Como e por que, por exemplo, na Frana, a partir dos anos 1970, os

    franceses se apropriaram da vulgata sobre as atitudes coletivas durante a guerra e aparentemente

    aderiram a essa viso do passado?

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    No possvel apreender o conjunto das questes levantadas, muito menos fornecer

    resposta para todas elas. A reflexo se limitar aqui a evidenciar os efeitos marcantes das

    comparaes entre opinio e memria e a tentar separar os problemas mais significativos.

    Interaes

    A opinio no encontra com a memria somente atravs de suas injunes eventuais.

    Desnecessrio lembrar que, conscientemente ou no, ela se fabrica com as imagens do passado.

    Na Frana, por exemplo, impossvel explicar a adeso ao marechal Ptain em junho e julho de

    1940 sem levar em conta a representao do passado de que ele ento se tornara smbolo, a do

    vencedor de Verdun (1916). Smbolo do passado a que os acontecimentos do presente

    derrocada do pas, inimaginvel para os contemporneos emprestavam um significado

    particular. Nem que fosse apenas no tocante s relaes entre a opinio e esse mesmo velhomarechal, poderamos multiplicar as explicaes do mesmo tipo: o acontecimento presente

    reinveste o sentido do passado, dando-lhe um acrscimo de sentido carregado de influncia. 6

    Essa reintroduo do passado assim repensado na leitura que a opinio faz do presente pe em

    relevo, alis, o papel mais geral das temporalidades ao mesmo tempo superpostas e cruzadas

    no funcionamento da opinio.

    Assim, uma opinio fabricada ela mesma com a memria que se exprime sobre a

    memria dando sua aprovao ou no a uma interpretao do passado formulada precisamentepor uma das diversas memrias. A opinio feita de memria, mas por sua vez tambm a fabrica

    pela adeso a um relato, atravs de suas funes de validao, autenticao e legitimao, e por

    seu poder de difuso. Num pas ou num grupo social, esse reconhecimento que a opinio confere

    ou nega a esta ou aquela viso do passado, assim como seus ajustes ou suas contestaes

    eventuais em funo das circunstncias so, evidentemente, para o historiador espelhos

    reveladores da evoluo da sensibilidade e do mental coletivos.

    As vicissitudes da memria dos anos de guerra na Frana abundam em exemplos. Durante

    cerca de 30 anos aps o fim da II Guerra Mundial os franceses reconheceram-se numa viso do

    passado que identificava seu pas queles que haviam resistido ao regime de Vichy e ocupao

    alem. Identificao simblica, e no, como frequentemente se ouve dizer, de modo caricatural,

    se afirmando e se vendo como resistentes, por usurpao.

    6Tomei emprestada a expresso de Hannah Arendt.

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    A partir de meados dos anos 1970, essa percepo foi denunciada como uma falcia e

    substituda por outra viso que hoje se tornou dominante. Largamente difundida pelos veculos de

    opinio, ela v na representao anterior apenas um souvenir-cran (recordao encobridora),

    uma honraria inventada para mascarar a realidade de um pas que teria sido fraco, pusilnime e

    cmplice dos invasores. Ela associa a Resistncia a uma minoria marginalizada, de importncia

    equivalente em nmero daquela outra minoria engajada na colaborao.7

    A opinio fabrica a memria de que ela tambm feita, mas suas funes de validao e

    legitimao podem advir de uma interveno da prpria memria, de uma solicitao que tanto

    pode resultar das imposies das leis memoriais como de outros tipos de coero. Mas a

    intimidao, a obrigao de se lembrar ou a injuno s sero entendidas se forem difundidas por

    um movimento de opinio. Na Frana, a noo de dever de memria sua forma mais comum,

    mecanicamente retomada pelo discurso politicamente correto e pela mdia, onde ela afirmada

    como uma evidncia. No entanto ela cria problema e no apenas para os historiadores crticos,

    suspeitos de defenderem ciosamente seu territrio precisamente porque est em vias de se

    tornar uma questo de opinio.8

    Mudana de estatuto e de sentido

    Entre os problemas ligados aos efeitos do vaivm entre memria e opiniosem dvida

    mais importantes que to somente a questo das injunes da memria

    esto aquelesdecorrentes de suas mudanas de estatuto.

    Ao ajudar o discurso da memria a sair de sua visibilidade limitada, a opinio aumenta a

    sua fora, seu pblico e sua influncia. Mas, e isso importante, ela transforma sua natureza

    fazendo da verdade sobre o passado uma questo de opinio, conferindo s representaes da

    memria um estatuto de verdade. Faz-se da autenticidade, justamente atribuda memria, uma

    espcie de garantia e de certeza de verdade. Por mudanas sucessivas, passa-se da memria

    portadora de umaverdade memria lugar e expresso daverdade sobre o passado. O que era

    um relato, uma representao ou um ponto de vista sobre o passado torna-se a histria desse

    7 No se trata de julgar como historiador o fundamento de vises divergentes, e sim de ilustrar as variaes davulgata e de sua aceitao na opinio.8Sobre esses problemas, remeto o leitor ao livro de Ricoeur (2000) e ao debate por ele suscitado. O tom de um artigo

    publicado no jornalLe Monde(22-8-2008) sobre as opinies relativizadas desse filsofo (j falecido) sobre o deverde memria do Holocausto revelador das tenses ligadas s questes memoriais.

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    passado. Os usos polticos, identitrios e outros da memria a arrastam para o terreno instvel da

    opinio e se aproveitam da confuso entre memria e histria. A linguagem dos meios de

    comunicao j no importa, e a simplicidade do discurso binrio, justiceiro e compassivo da

    memria convm perfeitamente ao modo de funcionamento deles, alrgico expresso da

    complexidade. A validao e a legitimao da memria pela opinio facilitam objetivamente a

    mudana para enunciados do tipo a memria a histria verdadeira, diferentemente daquela dos

    historiadores, abstrata, distante e fria cuja repetio ainda acaba servindo como

    demonstrao.9

    Sacralizao

    Talvez esteja a o problema principal. Quando a opinio se apropria da memria, e de

    certo modo apodera-se desta colocando-a em posio dominante, com todos os seus meios depersuaso a seu servio, ela transforma uma questo de opinio referente interpretao do

    passado numa verdade evidente sobre o passado. A legitimao pelo suporte da opinio vem a

    reforar um dos traos caractersticos do funcionamento da memria, que a afirmao

    irrevogvel de sua verdade. Sem ser seu nico fator, a sacralizao da memria se apresenta

    como um dos produtos do binmio memria/opinio. Ela pode chegar a instituir tabus, a pr no

    ndex trabalhos de historiadores que no estejam conformes.10Acrescente-se que essa espcie de

    religio da memria, com seus dogmas e interdies, empenhada em lutar contra a amnsia, cria

    necessariamente, por sua vez, lacunas de memria.

    Desvios e riscos de deturpao

    O funcionamento do binmio memria/opinio e seus efeitos, assim como aqueles ligados

    aos usos sociais de uma memria que se tornou uma questo de opinio, suscita inevitavelmente

    questionamentos sobre o papel da histria, sobre o que dela resta, sobre o que ela se torna e sobre

    qual pode ser o seu lugar nesse dispositivo.

    9Observando-se o que aconteceu com Le chagrin et la piti, filme de Marcel Ophuls (1971) sobre a memria dosanos de guerra numa cidade provinciana da Frana, e fazendo-se uma anlise rigorosa das fases que marcam aevoluo de seu estatuto memorial na opinio, possvel ver como se do essas mudanas sucessivas.10A propsito de acontecimentos dolorosos de responsabilidades controversas, ou de questes ligadas aos excessosdo expurgo na Frana ps-libertao, muitos so os historiadores da Resistncia suspeitos de intenes malvolas porterem se recusado a retomarem por conta prpria reconstrues arranjadas previamente. Sobre os problemascolocados pela histria e a memria do Holocausto, so bem conhecidas as dificuldades encontradas por HannahArendt, Raul Hilberg e Peter Novick em suas respectivas pocas.

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    A transformao da memria numa preocupao social e num problema de opinio

    acabou por difundir modos de anlise do passado suscetveis de contestao. Eles indicam um

    ntido abrandamento das exigncias de mtodo que caracterizam a especificidade da histria

    como disciplina intelectual. A ndole justiceira e militante da memria perfeitamente legtima

    de seu prprio ponto de vista acentuada ainda mais quando ela se faz portadora de

    questionamentos ou mesmo de reivindicaes identitrias, leva a raciocinar sobre o passado em

    funo unicamente dos fins do presente. Da a banalizao quase sistemtica do emprego do

    anacronismo, especialmente do anacronismo mental, o mais propcio s manipulaes e cuja

    importncia fundamental para a construo de sentido. Banalizao que se estende igualmente

    argumentao pelo erro do raciocnio teleolgico e pela falsidade de suas lgicas invertidas,

    quase caricatas. No apenas julga-se o passado atravs de encadeamentos artificialmente

    reconstrudos, com categorias alheias aos modos de pensar ou s possibilidades de conhecimentodo perodo estudado, mas tambm raciocina-se como se os homens se comportassem com uma

    prescincia de um futuro que no entanto desconhecem e que em grande parte imprevisvel. O

    binmio memria/opinio propicia estranhas leituras do passado nas quais se analisam os

    comportamentos em funo do que deveriam ter sido, a partir de um sistema de valores ou de

    hierarquias pertencentes ao presente, artificialmente decalcadas sobre o passado e instauradas

    como exemplares, absolutas e eternas. Tudo isso sob o julgamento da opinio cujas flutuaes,

    por vezes sob influncia, to bem conhecemos.

    A esse enfoque enviesado do passado, que quase uma negao ou uma espcie de

    naufrgio da histria, somam-se ainda ambiguidades sobre as funes atribudas memria.

    Assim como no ocorreria a ningum a ideia de contestar o ato de fidelidade que representa o

    desejo de preservar a lembrana e de salv-la do esquecimento, tambm pode causar

    perplexidade o fato de se justificar a importncia da memria por seu suposto papel de medicina

    preventiva dos riscos do futuro. Todos conhecem a frase famosa que afirma a necessidade de se

    conhecer o passado para no v-lo repetir-se. Poderamos citar uma centena de exemplos

    mostrando que existem usos simplificadores que beiram o embuste.11

    Embuste da fidelidade memria que se caracteriza quando a autoridade moral inerente

    memria do sofrimento, reforada pelo peso e o apoio de uma opinio majoritria, serve para

    11Um dos exemplos trgicos nos dado pela memria onipresente da Grande Guerra e seu pacifismo militante dosanos 1930 na Frana, terminando com um novo conflito com a Alemanha.

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    justificar o pior. Apenas um exemplo. Na Frana, em 1949, escritores12 que denunciaram a

    existncia do gulag na Unio Sovitica foram violentamente caluniados por Les lettres

    franaises, prestigioso semanrio do Partido Comunista fundado na clandestinidade dos anos da

    ocupao e dirigido pelo escritor Louis Aragon. Durante os processos por difamao, os

    resistentes e deportados opuseram a verdade de sua memria insuspeita aos depoimentos dos

    querelantes afirmando a existncia de campos de trabalhos forados na Unio Sovitica.

    Valendo-se da legitimidade que lhes conferia sua experincia nos campos de concentrao

    nazistas e invocando a fidelidade memria das vtimas, personalidades ilustres acusaram

    duramente de mentirosos aqueles que denunciavam os campos e o sistema de represso na Unio

    Sovitica.13Os escritores difamados venceram os processos, mas a opinio permaneceu sensvel

    verdadetransmitida pela memria.

    Evidentemente, os desvios da memria por sua vez no devem nos cegar. No h aqui um

    processo contra a memria movido pela histria, um falso processo do falso contra o verdadeiro.

    No h guerra ou confronto entre memria e histria, nem defesa exclusiva de um territrio que

    os historiadores queiram reservar somente para si. No apenas no h histria sem memria,

    como tambm os recursos insubstituveis desta ltima so uma matriz da histria. Com a

    condio de que e os problemas comeam a sejam submetidos ao crivo e ao rigor das

    exigncias de mtodo, como todos os objetos da histria e como deve ser a escrita da prpria

    histria.

    Portanto, o papel e a legitimidade da memria no esto em causa, e quanto a isso no

    deve haver nenhuma ambiguidade. O que est em questo aqui evidentemente a alquimia das

    relaes entre memria e opinio, as transformaes causadas pelos modos como elas so usadas,

    as interferncias confusas que criam situaes de concorrncia, de conflito ou mesmo de guerra

    das memrias. A memria pode se tornar um material explosivo quando no transmite seno

    ideologia, disfarada de elemento suplementar. Ela se presta a vrias deturpaes quando

    12Os casos Kravchenko e David Rousset. Este ltimo, tendo sobrevivido deportao, escreveu em 1946 o livroLunivers concentrationaire(ver Rousset, 1981).13O comunista Pierre Daix (amigo de Aragon e jornalista deLes lettres franaises) declarou sua matrcula n 59807de deportado para Mauthausen, e Marie-Claude Vaillant-Couturier, deportada para Auschwitz e depois Ravensbrck,

    personalidade comunista emblemtica, contestou o depoimento de Margarete Buber-Neuman, que conhecera tanto oscampos soviticos quanto os nazistas, dizendo considerar o sistema penitencirio sovitico o mais desejvel para omundo inteiro.

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    tratada de maneira ingnua, unicamente pelo prisma da compaixo, do sofrimento, do

    ressentimento e das reivindicaes identitrias.

    A memria ensinada h pouco tempo na Frana, no secundrio, atravs do exemplo da

    II Guerra Mundial. Sem falar dos contedos, s vezes discutveis porquanto meros reflexos das

    tendncias vigentes e da vulgata atual, foroso reconhecer com pesar que a maioria dos livros

    didticos no toma nenhuma precauo metodolgica para alertar sobre um tema que no

    histria, mas que em nada se apresenta como diferente, como outro, como necessariamente

    distinto.

    Concluses

    Que deduzir desse percurso incompleto, simplificado, e no entanto difcil, em que tudo

    permanentemente se sobrepe?

    Ao conduzi-la sobre o terreno pouco firme e movedio da opinio, ao transform-la num

    problema de opinio, os usos sociais, polticos e identitrios da memria alteram sua natureza e

    modificam suas funes. Eles mostram que a memria tem a ver tambm com a ideologia, que

    ela pode desvirtuar-se a ponto de por vezes no ter a ver seno com a ideologia.

    Estreitamente ligada a seus usos, a apreenso da memria depende igualmente do modo

    como ela se exprime. Entre a onda de denncias contra uma memria tirnica e os silncios da

    memria, memrias silenciosas porquanto sufocadas ou inaudveis, existe um espao

    considervel, um mundo de diferenas. Na anlise dos diversos nveis de expresso, tudo revela a

    importncia primordial da relao com o tempo, dos cruzamentos de temporalidades e das

    aparncias enganosas.

    Diante das questes apresentadas, as respostas no raro parecem frgeis. Por que razo

    uma sociedade num dado momento de sua histria se reconhece numa representao do passado

    transmitida pela memria uma questo que permanece em aberto. Ela fica no plano da

    interpretao, com os riscos de um superinterpretao.

    Estas modestas observaes a respeito do binmio memria/opinio reformulam o

    problema fundamental do sentido a ser atribudo relao dos homens com seu passado. Como

    ao mesmo tempo ser fiel ao passado e libertar-se dele? Uma determinada concepo da memria

    abre caminho para uma espcie de sujeio ao passado ou de recluso no passado. J a histria

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    diz que a compreenso do passado deve fornecer a chave para se livrar de um fardo s vezes

    pesado demais e para tornar possvel o viver juntos.

    Em 20 de julho de 1949, aqui, no Rio de Janeiro, Lucien Febvre no falou sobre a

    memria, mas enfatizou justamente a necessidade de no se deixar esmagar pelo passado pelo

    acmulo desumano de fatos herdados, pela presso irresistvel dos mortos oprimindo os vivos.

    Falou da necessidade, para se viver, de se opor aosonho assassinoque pretendia impor aos vivos

    uma lei inviolvel porquanto ditada pelos mortos. Disse ele ento, e deixo-lhe a ltima palavra,

    mais atual do que nunca: a histria um meio de organizar o passado para que ele no pese

    demais sobre os ombros dos homens. em funo da vida que ela interroga a morte. 14

    Referncias

    FEBVRE, Lucien. Vers une autre histoire. In: _____. Combats pour lhistoire. Paris: Armand

    Colin, 1992.

    LAVABRE, Marie-Claire. Le fil rouge. Sociologie de la mmoire communiste. Paris: FNSP,

    1994.

    RICOEUR, Paul.La mmoire, lhistoire, loubli.Paris: Seuil, 2000.

    ROUSSET, David.Lunivers concentrationnaire.Paris: Minuit, 1981.

    14Febvre, 1992.