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129 dossi ê RESUMO O presente artigo analisa as ações civis públi- cas propostas em relação às usinas hidrelétri- cas de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, to- das na Amazônia brasileira. Os dados levan- tados permitem expor e analisar o contexto de propositura das ACP, bem como as deman- das que as originaram. Os resultados mos- tram que o licenciamento ambiental tem sido deficitário no controle e mitigação de impac- tos sociais. A maior parte das demandas judi- ciais está relacionada às irregularidades do procedimento do licenciamento, principal- mente em relação à participação das popula- ções impactadas, à qualidade e abrangência dos estudos de impacto ambiental e de viabi- lidade ambiental e ao cumprimento de condi- cionantes das licenças – afetando de várias formas populações vulneráveis. Dessa forma, discussões que ocorreriam no âmbito do li- cenciamento ambiental estão sendo desloca- das para o Judiciário. Nos pronunciamentos dados pelos magistrados, nos casos conside- rados, têm preponderado a não intervenção do Judiciário nas decisões tomadas pelos ór- gãos licenciadores do Executivo. PALAVRAS-CHAVE Licenciamento ambiental. Judicialização. Ações civis públicas. Impactos sociais. Hi- drelétricas. Amazônia. ABSTRACT The paper analyses all the legal actions pro- posed in relation to the hydroelectric power plants of Belo Monte, Jirau and Santo Anto- nio in the Amazonia. Through the analysis of judicial claims, it is possible to expose and analyse its context, as well as the social demands that it have originated. The majori- ty of the judicial demands tend to relate to non-compliance of licensing requirements – severely affecting vulnerable social groups. Therefore, discussions and decisions that should occur within the licensing procedure are being transferred to the Judiciary. Main- ly, the judges have decided not to intervene in the decisions taken by the licensing agen- cies (which are part of the Executive Bran- ch). These decisions are based on the absen- ce of proof of the impacts (which refers to the presumption of legality of the adminis- trative acts) and on the perception of the ju- dges that they should not intervene in public policy issues. KEYWORDS Environmental licensing. Judicialization. Judicial claims. Social impacts. Hydroelec- tric dams. Amazon. Flávia Silva Scabin Nelson Novaes Pedroso Junior Júlia Cortez da Cunha Cruz JUDICIALIZAÇÃO DE GRANDES EMPREENDIMENTOS NO BRASIL: UMA VISÃO SOBRE OS IMPACTOS DA INSTALAÇÃO DE USINAS HIDRELÉTRICAS EM POPULAÇÕES LOCAIS NA AMAZÔNIA

Judicialização de grandes empreendimentos no brasil: uma visão sobre os impactos da instalação de usinas hidrelétricas em populações locais na amazônia

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O presente artigo analisa as ações civis públicaspropostas em relação às usinas hidrelétricasde Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, todasna Amazônia brasileira. Os dados levantadospermitem expor e analisar o contextode propositura das ACP, bem como as demandasque as originaram. Os resultados mostramque o licenciamento ambiental tem sidodeficitário no controle e mitigação de impactossociais. A maior parte das demandas judiciaisestá relacionada às irregularidades doprocedimento do licenciamento, principalmenteem relação à participação das popula-ções impactadas, à qualidade e abrangênciados estudos de impacto ambiental e de viabilidadeambiental e ao cumprimento de condicionantesdas licenças – afetando de váriasformas populações vulneráveis. Dessa forma,discussões que ocorreriam no âmbito do licenciamentoambiental estão sendo deslocadaspara o Judiciário. Nos pronunciamentosdados pelos magistrados, nos casos considerados,têm preponderado a não intervençãodo Judiciário nas decisões tomadas pelos órgãoslicenciadores do Executivo.

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    dossi

    Resumo O presente artigo analisa as aes civis pbli-cas propostas em relao s usinas hidreltri-cas de Belo Monte, Jirau e Santo Antnio, to-das na Amaznia brasileira. Os dados levan-tados permitem expor e analisar o contexto de propositura das ACP, bem como as deman-das que as originaram. Os resultados mos-tram que o licenciamento ambiental tem sido deficitrio no controle e mitigao de impac-tos sociais. A maior parte das demandas judi-ciais est relacionada s irregularidades do procedimento do licenciamento, principal-mente em relao participao das popula-es impactadas, qualidade e abrangncia dos estudos de impacto ambiental e de viabi-lidade ambiental e ao cumprimento de condi-cionantes das licenas afetando de vrias formas populaes vulnerveis. Dessa forma, discusses que ocorreriam no mbito do li-cenciamento ambiental esto sendo desloca-das para o Judicirio. Nos pronunciamentos dados pelos magistrados, nos casos conside-rados, tm preponderado a no interveno do Judicirio nas decises tomadas pelos r-gos licenciadores do Executivo.

    PalavRas-chave Licenciamento ambiental. Judicializao. Aes civis pblicas. Impactos sociais. Hi-dreltricas. Amaznia.

    abstRact The paper analyses all the legal actions pro-posed in relation to the hydroelectric power plants of Belo Monte, Jirau and Santo Anto-nio in the Amazonia. Through the analysis of judicial claims, it is possible to expose and analyse its context, as well as the social demands that it have originated. The majori-ty of the judicial demands tend to relate to non-compliance of licensing requirements severely affecting vulnerable social groups. Therefore, discussions and decisions that should occur within the licensing procedure are being transferred to the Judiciary. Main-ly, the judges have decided not to intervene in the decisions taken by the licensing agen-cies (which are part of the Executive Bran-ch). These decisions are based on the absen-ce of proof of the impacts (which refers to the presumption of legality of the adminis-trative acts) and on the perception of the ju-dges that they should not intervene in public policy issues.

    KeywoRdsEnvironmental licensing. Judicialization. Judicial claims. Social impacts. Hydroelec-tric dams. Amazon.

    Flvia Silva Scabin Nelson Novaes Pedroso Junior

    Jlia Cortez da Cunha Cruz

    Judicializao de grandes empreendimentos no brasil: uma viso sobre os impactos da instalao de usinas hidreltricas em populaes locais na amaznia

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    1 Introduo

    O licenciamento ambiental constitui um dos principais instrumentos para a consecuo da Poltica Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), funcionando como uma das formas de controle da or-dem econmica, ao adequ-la defesa do meio ambiente (BENJAMIN, 1992). Seu principal objetivo a preveno do dano ambiental, o que significa no apenas a escolha pela interveno que comprova-damente cause menos impacto, mas tam-bm a adoo de medidas mitigadoras dos impactos ambientais causados.

    Trata-se de um procedimento adminis-trativo requerido para a implantao, am-pliao e operao de empreendimentos potencialmente causadores de degradao ambiental e que, em vista dos princpios adotados pela legislao ambiental e ad-ministrativa, deve se realizar por meio da transparncia quanto aos efeitos ambien-tais de um determinado projeto; consulta aos interessados e s decises administrati-vas informadas e motivadas.

    Na prtica, so diversos os seus desafios, dada a falta de informaes sobre o Brasil, a ausncia de clareza sobre a competncia dos entes federados e sobre o papel de cada ator social no licenciamento ambiental, as-sim como sobre o que espera a lei ao definir um conceito de impacto ambiental que vai alm da proteo das florestas e inclui o bem estar da populao.

    No caso de grandes empreendimentos, o cumprimento das obrigaes relaciona-das aos impactos nas populaes locais um dos principais desafios (FEARNSIDE, 1989, 2001; TEIXEIRA et al., 2012). Isso, por diferentes razes, que incluem a falta de capacidade tcnica dos rgos licencia-dores para lidar com a dimenso humana, a

    baixa efetividade dos mecanismos de parti-cipao e a elaborao de diagnsticos in-capazes de garantir a proteo dos direitos das populaes impactadas.

    Assim, cada vez mais as discusses en-volvendo grandes empreendimentos e suas relaes com o desenvolvimento local tm sido levadas ao Poder Judicirio, fazendo com que este se debruce sobre a avalia-o de impactos nas populaes locais e as medidas de mitigao e compensao decididas no contexto do licenciamento ambiental desses projetos. Nesse sentido, o Ministrio Pblico tem desempenhado um papel ativo por meio de recomendaes ao rgo licenciador e da propositura de aes judiciais que buscam garantir os direitos de populaes locais.

    O presente artigo visa compreender as razes da judicializao no caso dos pro-cessos de licenciamento ambiental de gran-des projetos hidreltricos, com o objetivo de identificar em quais circunstncias se entende que o licenciamento no capaz de cumprir seus propsitos. Foram consi-deradas todas as aes civis pblicas (ACP) propostas para as hidreltricas de Belo Monte, Jirau e Santo Antnio, desde a sua concepo at abril de 2014. No foram consideradas as aes judiciais propostas que no as civis pblicas, como as traba-lhistas isso porque as ACP renem em si a qualidade de representar uma coletividade, alm de serem o instrumento judicial mais utilizado na defesa dos direitos das popu-laes inseridas nas reas de influncia dos projetos analisados.

    A partir da anlise de casos judicializados, o presente estudo considera (i) se h momen-tos do processo de licenciamento ambiental em que a judicializao mais frequente; (ii) o contedo das questes colocadas ao Judi-cirio; (iii) a capacidade da judicializao de

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    impactar as decises tomadas no mbito do licenciamento e (iv) das razes do Judicirio para tomar suas decises.

    A anlise dos dados levantados apre-sentada em trs etapas: na primeira, feita uma breve contextualizao do licencia-mento ambiental de usinas hidreltricas na Amaznia; na segunda, analisado o licenciamento ambiental das hidreltricas de Belo Monte, Jirau e Santo Antnio, com nfase nos conflitos socioambientais e na judicializao dos trs casos por meio de aes civis pblicas; na terceira, reali-zada anlise das decises dadas s aes, incluindo a discusso da capacidade do ju-dicirio em lidar com conflitos sociais no resolvidos no mbito do processo adminis-trativo do licenciamento.

    2 licenciamento de hidreltricas

    O crescimento da economia brasileira, intensificado nas ltimas duas dcadas, um dos responsveis pelo aumento gra-dual da demanda de energia no pas. Sem conseguir expandir a capacidade instalada na mesma proporo que o consumo de energia aumenta, o setor eltrico tem sido apontado como um gargalo em potencial do crescimento econmico, situao agra-vada aps a crise de energia que ocorreu em 2001 no pas. Para atender crescente demanda energtica, uma srie de medidas vem sendo tomadas, desde reformas regu-latrias e criao da Empresa de Energia Eltrica (EPE) at a concepo de projetos de produo energtica.

    Atualmente, a energia eltrica no Brasil provm predominantemente da sua matriz hdrica. De acordo com o mais recente Pla-no Decenal de Expanso de Energia (BRA-SIL, 2013), a hidroeletricidade se manter predominante dentre as diversas fontes de gerao, com expanso direcionada princi-palmente ao aproveitamento hidreltrico na regio amaznica. Alm das usinas hidrel-tricas j instaladas e em operao na regio, outras vm sendo construdas ou planejadas. Ainda segundo o Plano Decenal (BRASIL, 2013), s na regio amaznica est previs-ta a concluso da construo de oito usinas hidreltricas at 2018, sendo elas Jirau, Coli-der, Ferreira Gomes, Belo Monte, Teles Pires, Salto Apiacs, Cachoeira Caldeiro e Sinop. J para o perodo de 2018 a 2022 so previs-tas mais nove usinas na regio: So Manoel, So Luiz do Tapajs, Jatob, Tabajara, Cas-tanheira, Bem Querer, Salto Augusto Baixo, So Simo Alto e Marab (BRASIL, 2013).1

    De acordo com o relatrio do Banco Mundial (2008), problemas durante o licen-ciamento ambiental de projetos hidreltri-cos no Brasil tm causado a impossibilida-de de sua implantao de forma previsvel e dentro de prazos razoveis. A m qualidade dos estudos de impacto ambiental (EIA) e da sua respectiva avaliao, a falta de um sistema adequado para resoluo de con-flitos, a ausncia de regras claras para a compensao social e a carncia de profis-sionais da rea social no rgo ambiental federal so alguns dos principais problemas no licenciamento de hidreltricas aponta-dos no relatrio (BANCO MUNDIAL, 2008).

    1. O presente artigo parte do cenrio atual de predominncia da energia hidreltrica no Brasil para anali-sar a judicializao de grandes projetos hidreltricos na Amaznia. No faz, pois, uma crtica aos mode-los energticos adotados, limitando-se a analisar as consequncias negativas dessas escolhas quando so levadas ao judicirio. Para anlises mais abrangentes e crticas da produo energtica no Brasil, ver Gol-demberg e Moreira (2005), Goldemberg e Lucon (2007), Sachs (2007) e Tolmasquim (2012).

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    Apesar das novas tecnologias e da in-troduo de instrumentos particulares aplicveis a projetos hidreltricos, confli-tos decorrentes de impactos causados por esse tipo de empreendimento, sobretudo em relao s populaes locais, tm sido frequentes, em especial na Amaznia (BER-MANN, 2013; FEARNSIDE, 2014; FONSE-CA, 2013; LAMONTAGNE, 2010; NASCI-MENTO, 2010; WERNER, 2010). O relatrio do Comit Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH, 2010), apresentado aps quatro anos de anlise da construo de barragens hidrel-tricas no Brasil, aponta que violaes aos direitos das populaes do entorno tm sido recorrentes durante a implementao de barragens, causando o aumento das de-sigualdades sociais e da pobreza.

    Em virtude de impactos como estes, a so-ciedade civil vem se organizando para rea-gir e lutar contra problemas que deveriam ter sido evitados e mitigados por meio do licenciamento. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) foi formado a partir deste processo, destacando-se por ser um movimento social construdo diretamente pelas populaes impactadas. Neste senti-do, tambm se destaca o Movimento Xingu Vivo, coletivo de organizaes e movimen-tos sociais das regies impactadas pela Hi-dreltrica de Belo Monte. Alm disso, uma srie de Organizaes No Governamentais (ONGs) nacionais e internacionais tambm vm se juntando mobilizao, como o Instituto Socioambiental (ISA), Amigos da Terra, International Rivers, Greenpea-ce, World Wide Fund for Nature, Amazon Watch, dentre outros.

    3 o licenciamento ambiental de belo monte, Jirau e santo antonio e os conflitos decorrentes

    3.1 histrico dos projetos e do licenciamento

    As usinas de Jirau e Santo Antnio constituem o complexo hidreltrico e hi-drovirio do Rio Madeira, uma das princi-pais obras do Plano de Acelerao do Cres-cimento (PAC) do governo federal. Ambas se localizam em Rondnia, sendo Santo Antnio a mais prxima da capital Porto Velho, 7 km rio acima, e Jirau mais 136 km a montante. De acordo com relatrio pro-duzido por Amigos da Terra e Bank Track (2008), o processo de licenciamento am-biental das duas usinas tem sido extrema-mente controverso, com forte interveno poltica e pareceres tcnicos contraditrios sobre a viabilidade e os riscos socioam-bientais inerentes ao projeto. Parte desses riscos diz respeito aos impactos causados s diversas populaes indgenas e ribeirinhas inseridas nas reas de influncia dos proje-tos, alm da capital Porto Velho.

    Em 2003, foi solicitada a abertura do processo de licenciamento das duas usi-nas. No ano seguinte, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (IBAMA) emitiu Termo de Refe-rncia (TR) para o EIA que, elaborado para atestar a viabilidade das duas usinas de for-ma integrada, foi protocolado no IBAMA em maio de 2005. Quase dois anos depois, em 3 de maro de 2007, o IBAMA emitiu o Parecer Tcnico n. 014/2007 atestando a inviabilidade ambiental do empreendimento e a insuficincia do estudo de impacto am-biental elaborado, recomendando, dessa for-ma, a no concesso da licena prvia (LP) e a necessidade de estudos complementares.

    Contrariando o parecer elaborado pelos tcnicos do IBAMA, quatro meses depois, em 9 de julho de 2007, o mesmo rgo emi-tiu LP vlida para as duas usinas. O restan-

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    te do processo de licenciamento seguiu de forma separada para cada usina. Em 13 de novembro de 2008, o IBAMA emitiu a li-cena de instalao (LI) de Jirau e, em 19 de outubro de 2012, a sua licena de operao (LO). No caso da UHE de Santo Antnio, em 13 de agosto de 2008 o IBAMA emitiu a LI, a qual foi retificada no dia 18 do mesmo ms, e em 14 de setembro de 2011 emitiu a LO.

    A Usina Hidreltrica de Belo Monte est localizada na regio conhecida como Volta Grande do Xingu, no Par, prxima ci-dade de Altamira e cuja rea de abrangn-cia inclui outros dez municpios. Alm dos centros urbanos, existem na regio diversas populaes indgenas e ribeirinhas. Estes locais esto integrados pela rodovia Tran-samaznica e pelo prprio Rio Xingu, nos trechos em que navegvel. Assim como as usinas do Rio Madeira, Belo Monte tam-bm uma das principais obras do PAC do governo federal.

    O projeto de aproveitamento do poten-cial hidreltrico do Rio Xingu remonta d-cada de 1970. No incio da dcada de 1990, os estudos para instalao da usina foram paralisados, devido presso poltica, au-sncia de solues tcnicas viveis para o projeto e indisponibilidade de recursos. O projeto s foi retomado em 1994, com a apresentao Eletrobrs de uma nova verso que apresentava melhorias do ponto de vista tcnico e ambiental, incluindo di-minuio da rea inundada e no inunda-o das reas indgenas. Assim, passaram a ser realizados novos estudos de viabili-dade para a usina. No perodo dos apages do incio dos anos 2000, o governo federal tomou diversas medidas emergenciais, com o objetivo de diminuir o dficit energtico do pas, sendo uma delas a viabilizao de Belo Monte. Com isso, a sociedade civil e o Ministrio Pblico retomaram a mobili-

    zao poltica contra Belo Monte, inclusive por meios judiciais.

    Em julho de 2005, a Cmara dos Depu-tados e o Senado aprovaram Decreto Legis-lativo autorizando a Eletrobrs a completar os estudos, sem que fossem consultadas populaes indgenas e locais. Aps amplo trmite administrativo, em janeiro de 2011, o IBAMA concedeu a LI para as instalaes provisrias de Belo Monte e, em junho, a LI definitiva, quando iniciaram-se as obras civis. Vale ressaltar que o financiamento da obra tem ligaes expressivas com o setor pblico. Em 2012, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES) aprovou financiamento de 22,5 bilhes destinados construo da Usina, totalizando mais de dois teros do custo total da obra (que, poca, estava estima-do em 28,9 bilhes). Embora o banco te-nha estabelecido auditoria socioambiental independente para averiguar a regularida-de socioambiental do projeto, o Ministrio Pblico Federal tem buscado corresponsa-bilizar o BNDES pelos danos que possam ser causados por projetos que financia. Por exemplo, em setembro de 2013, o MPF do Par entrou com ao civil pblica, atri-buindo a corresponsabilidade do banco por impactos negativos que porventura ocor-ram aos ndios Xikrin pela falta de previso de impactos e compensaes sobre o Rio Bacaj no EIA/RIMA.

    3.2 Judicializao das usinas de belo monte, Jirau e santo antnio

    Diversas aes judiciais tm sido pro-postas contra a construo de grandes empreendimentos no Brasil. Nos casos das Usinas de Santo Antnio, Jirau e Belo Monte, grande parte dessas aes trata dos impactos desses projetos s populaes lo-

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    cais e questiona a ausncia de escuta pr-via queles que sofrero impactos e sobre o cumprimento de condicionantes do li-cenciamento ambiental que serviriam para mitigar e compensar esses impactos em re-lao aos direitos das populaes afetadas. De alguma maneira, essas aes questio-nam a forma como esses empreendimentos vm sendo planejados e implantados no pas. Em que momentos a judicializao mais frequente? Quais so suas causas e sua capacidade para alterar decises toma-das no mbito do licenciamento?

    Para responder a esses questionamentos, so analisadas, a seguir, todas as aes ci-vis pblicas propostas nos casos das Usinas Hidreltricas de Jirau, Santo Antnio e Belo Monte, totalizando quarenta aes. Em rela-o a essas demandas judiciais, so analisa-das as pessoas e instituies colocadas nos plos passivos, o momento de proposio em considerao fase do licenciamento, seus objetos e objetivos, alm da autopercepo do Judicirio em relao sua funo quan-do se trata de intervir em processo de licen-ciamento de grandes empreendimentos.

    Com o objetivo de identificar as razes pelas quais ocorre a judicializao, as de-mandas judiciais foram classificadas em demandas sociais, ambientais e procedi-mentais. Para separar as questes sociais das ambientais, foi utilizada a conceituao de impacto ambiental da Resoluo Conse-lho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) 01/1986. De acordo com essa resoluo, o impacto ambiental consiste em alterao das propriedades fsicas, qumicas e biol-gicas do meio ambiente, causada por qual-quer forma de matria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indi-retamente afetam: (i) a sade, a segurana e o bem-estar da populao; (ii) as ativida-des sociais e econmicas; (iii) a biota; (iv)

    as condies estticas e sanitrias do meio ambiente; (v) a qualidade dos recursos am-bientais. Apesar de todas essas condies se fazerem sentir nas comunidades locais, a enumerao apresentada permite distinguir os impactos relacionados sua condio socioeconmica (i e ii) daqueles que diro respeito s alteraes das qualidades fsicas do meio-ambiente (iii, iv e v). As demandas procedimentais, por sua vez, dizem respei-to a questionamentos relacionados forma como se realizou o licenciamento. Todas essas demandas podem ser formuladas em termos de direitos, o que legitimaria sua discusso pelo Judicirio.

    Apesar de as alteraes provocadas ao meio ambiente serem muitas vezes sinr-gicas ou apresentarem-se conjuntamente, a classificao entre as trs categorias per-mite identificar para que tipo de questes o Judicirio identificado como espao de interlocuo alternativamente ao proces-so de licenciamento ambiental. Com isso, evidencia-se para que situaes o procedi-mento do licenciamento percebido como insuficiente ou deficitrio.

    3.2.1 objetivos e demandas das acP

    Das quarenta ACP analisadas, todas dizem respeito direta ou indiretamente ao processo de licenciamento ambiental das usinas. Na maioria, a relao entre a viola-o de direitos e o licenciamento ambiental direta e questiona a falha na execuo de algum procedimento do licenciamento, seja por impacto ou ameaa de impacto sobre componentes ambientais e/ou sociais locais decorrentes das obras civis ou da operao das usinas. A minoria relaciona-se de for-ma indireta com o licenciamento, como o caso da ao n. 25997-08.2010.4.01.3900, referente a Belo Monte, que embora pea

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    a nulidade da LP emitida para a usina, apresenta como motivao a falta de re-gulamentao da explorao de recursos hdricos em terras indgenas, exigida pela Constituio Federal.

    Demandas de cunho social foram as mais frequentes (n=26), enquanto onze tra-tavam de algum aspecto exclusivamente ambiental, e as demais (n=9) diziam respei-to principalmente a algum procedimento do licenciamento ou deste derivado. Como exemplo desse ltimo grupo, possvel ci-tar a realizao de estudos de viabilidade ambiental sem termo de referncia anterior, associao irregular com entidade privada para elaborao do EIA, concluso do EIA sem avaliao ambiental integrada finali-zada, mudana de local do projeto aps a concluso do EIA, aplicao dos recursos de compensao ambiental, dentre outros.

    Dos procedimentos do licenciamento re-lacionados aos aspectos sociais e ambien-tais, o EIA um dos que mais geram aes em decorrncia de deficincias e insuficin-cias dos estudos, incluindo as consultas pblicas realizadas durante sua elaborao. O descumprimento das condicionantes es-tabelecidas nas licenas tambm gera um nmero significativo de aes, inclusive quando licenas so emitidas sem o cum-primento total das condicionantes estipula-das na licena anterior.

    Das demandas sociais judicializadas, a mais frequente envolve a insuficincia das audincias e consultas pblicas antes do Ter-mo de Referncia (TR), durante os estudos socioambientais e aps a concluso do EIA/RIMA, proposta majoritariamente durante a etapa preparatria para obteno da LP. Aps a LP, o mais comum so aes decorrentes de impactos sociais durante as obras civis e o cumprimento parcial ou nulo de condicio-nantes voltadas compensao ou mitigao

    de impactos sobre as populaes locais. Cabe mencionar o fato de que as trs usinas pos-suem populaes indgenas nas suas reas de influncia, responsveis pela totalidade ou parte das motivaes de cunho social de doze das quarenta ACP, sendo doze de Belo Monte e quatro de Santo Antnio, duas destas com-partilhadas com Jirau.

    Dos pedidos formulados, os mais fre-quentes reclamam por interferncia nas licenas (n=20), sendo que cinco deman-davam o impedimento de novas licenas, nove a suspenso (1 todas, 3 LP, 4 LI e 1 LO) e sete a nulidades das licenas existen-tes (4 de LP e 4 de LI). Dos nove pedidos de suspenso de licena, um se estendia a to-das as vigentes e trs se referiam LP, qua-tro LI e 1 LO. Somam-se a essas os dois pedidos de nulidade e quatro de suspenso de todo o processo de licenciamento.

    A exigncia do cumprimento de condicio-nantes tambm bastante frequente nas ACP analisadas: dos dez pedidos levantados com esse fim, o que significa das aes propos-tas, um foi formulado de forma abrangente e os demais se referiam a medidas especficas de compensao/mitigao de impactos so-ciais, tais como a incluso de mais um muni-cpio nas aes de compensao, a adequao de projetos de reassentamento, a execuo de plano emergencial, a concluso de cadastro socioeconmico, a realizao de regulariza-o fundiria, a ampliao de criao de re-serva indgena e a elaborao de projeto para construo de belvedere.

    Os impactos decorrentes das obras ou da operao das usinas tambm tm sido judicializados. Cinco pedidos foram formu-lados para indenizar os contextos impacta-dos, sendo um referente ao meio ambiente, um ao componente indgena especfico e trs ao social. Destes, um tambm pediu a remoo imediata dos ribeirinhos afetados

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    pelo enchimento do reservatrio alm do previsto, e outro o provimento das necessi-dades bsicas das populaes atingidas pe-las cheias nas reas de influncia da Usinas Hidreltricas (UHE) de Santo Antnio.

    Os pedidos no se referem apenas s li-cenas, condicionantes e indenizaes, mas tambm aos momentos anteriores obten-o da LP. Nesse caso, o pedido mais fre-quente diz respeito complementao, atualizao, reviso ou mesmo nulidade do EIA (n=6). Momentos ainda mais iniciais do processo tambm motivam a proposio de ACP. Dos seis pedidos levantados, dois deles exigem a declarao de ilegalidade da reali-zao do EVA e um a nulidade do Inventrio Hidreltrico do Xingu. Ainda que uma das principais razes para a judicializao seja a deficincia e insuficincia de consulta e participao pblica durante o processo de licenciamento, apenas uma destas aes re-ferentes aos procedimentos iniciais trata da consulta s populaes indgenas afetadas. J sobre os leiles, duas ACP pedem o im-pedimento de sua realizao; uma, sua sus-penso e uma, a nulidade dos j realizados.

    Das obras previstas aps a obteno de LI, duas ACP pedem o impedimento dessas; uma, a sua paralisao e duas, o impedi-mento da elevao da cota do reservatrio. A preservao de bem histrico tambm recorrente, motivando quatro pedidos das ACP analisadas.

    3.2.2 momentos de proposio e os processos de licenciamento

    Das quarenta ACP levantadas, mais da metade (n=23) foi proposta durante a ins-talao do empreendimento, ou seja, aps a emisso da LI. Belo Monte, a nica das trs usinas analisadas que ainda no obteve LO, apresentou tambm uma quantidade relativa de ACP durante a preparao dos estudos e procedimentos necessrios para a obteno de LP (n=6). Santo Antnio e Jirau sofreram trs ACP de forma conjunta nessa fase. Aps a LO, a maior incidncia de ACP foi propos-ta para Santo Antnio (n=4) (Grfico 1). O maior perodo desde a obteno da LO (quase 3 anos), a mudana nos nveis do reservatrio e as cheias de 2014 justificam esse dado.

    Grfico 1 - momentos do licenciamento em que ocorrem a proposio das acP

    Antes da LP Aps LP Aps LI Aps LO

    12

    10

    8

    6

    4

    2

    0

    Belo Monte

    Jirau

    Santo Antnio

  • Judicializao de grandes empreendimentos no Brasil 137

    Como apresentado anteriormente, parte das ACP proposta durante as etapas que precedem a emisso da LP. Se observados os momentos do processo de licenciamento aos quais as demandas das ACP se referem, as etapas que precedem a emisso da LP

    so ainda maiores, uma vez que parte das demandas das ACP propostas em estgios posteriores do licenciamento referem-se aos estudos e procedimentos necessrios para a obteno da primeira licena.

    Grfico 2 - momentos do processo de licenciamento aos quais as demandas das acP se referem.

    3.2.3 Plos passivos das aes

    Levantar as instituies e pessoas que so colocadas com mais frequncia no plo passivo das aes civis pblicas possibilita analisar aqueles a quem mais comumente se imputa causar impactos ou sua amea-a. Isso no significa que diferentes atores no possam ser responsabilizados, o que se deve ao esquema de responsabilidade ju-rdica adotado no Brasil (no caso de dano ambiental, a responsabilidade solidria em relao a todos que, de alguma forma, concorreram para a sua causa). Para Belo Monte, as 12 ACP aps a emisso da LP

    tiveram como polo passivo a Norte Ener-gia (n=11), empreendedora do projeto. As 8 anteriores LP acionaram principalmente o IBAMA (n=5), os proponentes do projeto e dos estudos de viabilidade, a Eletronorte (n=4) e a Eletrobrs (n=6) (Grfico 3). Se consideradas as 19 aes, o IBAMA, rgo executivo responsvel pelo licenciamento, foi polo passivo de 57,9% das aes, en-quanto os proponentes/empreendedores, agrupando aqui Eletrobrs, Eletronorte e Norte Energia, foram acionados em todas (100%). O BNDES, principal financiador do empreendimento, foi polo passivo de trs aes (15,8%).

    Belo Monte

    Jirau

    Santo Antnio

    Antes

    da LP

    Aps

    da LP

    Aps

    da LI

    Aps

    da LO

    Comp

    ensa

    o

    10

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  • 138 R. Ps Ci. Soc. v.11, n.22, jul/dez. 2014

    Grfico 3 - Polos passivos das acP analisadas

    Para as usinas de Jirau e Santo An-tnio, foram propostas vinte e uma ACP, sendo sete comuns s duas usinas, oito ex-clusivas para Jirau e seis para Santo Ant-nio. Das quinze propostas para Jirau, nove tiveram o IBAMA como um dos polos pas-sivos (60%) e sete a Unio e a Energia Sus-tentvel (46,7%), empreendedora da usina (Grfico 3). Das cinco primeiras ACP, pro-postas antes do leilo, quatro acionaram a Central Furnas, proponente do projeto de Jirau. Somando essas com as da Energia Sustentvel, so 11 (73,3%) as ACP cujo plo passivo o proponente/empreen-dedor, equivalendo-se ao IBAMA, rgo licenciador da UHE de Jirau. A Agncia

    Nacional de Energia Eltrica (ANEEL) foi acionada em cinco aes (33%), trs delas relacionadas ao leilo de concesso.

    Os polos passivos das ACP da UHE San-to Antnio se assemelham s de Jirau, mas com mais incidncia do IBAMA como um dos acionados, sendo nove no total (69,2%). A Central Furnas (proponente) e a Madei-ra Energia e a Santo Antnio Energia (em-preendedores), juntas, so polo passivo de 11 das 13 aes (84,6%). Assim como para Jirau, a Unio e a ANEEL tambm apare-cem de forma significativa como polo pas-sivo, 38,5% e 30,8% em relao ao total de ACP, respectivamente (Grfico 3).

    Unio

    Estad

    o

    Munic

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    Belo Monte

    Jirau

    Santo Antnio

    Total

  • Judicializao de grandes empreendimentos no Brasil 139

    4 as decises do judicirio: incapacidade em resolver conflitos que o licenciamento tambm no consegue?

    4.1 como decide o Judicirio?

    A expanso do Poder Judicirio, que pode ser observada no apenas pelo nme-ro crescente de processos de controle ju-dicial de decises dos outros poderes, mas tambm pelo amplo escopo de temas ana-lisados judicialmente, marca fundamental das sociedades democrticas contempor-neas (TATE; VALLINDER, 1995).

    Do ponto de vista do processo poltico, essa expanso potencializa a transformao da jurisdio em parte integrante do pro-cesso de formulao de polticas pblicas, ao mesmo tempo em que garante a todos os cidados a capacidade de interpelar seus governantes, de tom-los ao p da letra e de intim-los a respeitarem as promessas contidas na lei (GARAPON, 2001, p. 49).

    No propsito desse artigo investigar se o que chamado de expanso do Judi-cirio positivo ou se caberia apenas s instncias da democracia o benefcio de to-mar decises difceis. Fato que, no Brasil,

    sempre que qualquer ao, deciso ou po-ltica significar leso ou ameaa de leso a direitos, o Judicirio poder ser acionado em benefcio desses direitos2. Esse um di-reito ao qual a Constituio de 1988 atribui um estado diferenciado, de direito funda-mental, e que se concretiza por um con-junto de instrumentos - como a defensoria pblica, os juizados especiais etc. Aes ju-diciais podem ser acionadas por qualquer indivduo, inclusive ante a possibilidade de que direitos sejam violados, por meio de pedidos liminares.3

    4.1.1 as liminares e a suspenso de segurana

    No caso das UHE de Belo Monte, Santo Antnio e Jirau, o Judicirio foi acionado quarenta vezes at maio de 2014. O pedido liminar foi recurso utilizado em todos esses casos sob o argumento dos danos irrevers-veis que as usinas trariam para o meio am-biente e populaes locais.

    No complexo do Rio Madeira, a liminar foi deferida em apenas quatro casos. Entre-tanto, em todos eles, a medida foi suspensa por meio de agravo de instrumento.4 J no

    2. Nos termos da Constituio Federal de 1988, a lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio le-so ou ameaa a direito (art. 5, XXXV).3. Em processo judicial, uma medida liminar deciso judicial provisria, que se toma quando h a possibili-dade de ocorrer dano grave ou irreparvel (periculum in mora) em decorrncia da demora da deciso judicial, em casos em que a veracidade dos fundamentos invocados (fumus boni juris) pelo requerente notria. Nos termos do Cdigo de Processo Civil, Lei n 5.869/1973, o pedido liminar vem regulado da seguinte forma: Art. 273. O juiz poder, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela preten-dida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequvoca, se convena da verossimilhana da alegao e: I - haja fundado receio de dano irreparvel ou de difcil reparao; ou II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propsito protelatrio do ru.4. O agravo de instrumento um mecanismo processual estabelecido pelo cdigo de processo civil para questionar decises interlocutrias ou seja, decises judiciais proferidas durante o curso do processo, que no do uma soluo final controvrsia, As decises liminares, como so apenas decises preliminares no revestidas de carter definitivo, podem ser questionadas por meio deste recurso. Em relao s usinas do Rio Madeira, a ferramenta do agravo de instrumento foi sucessivamente utilizada para retirar os efei-

  • 140 R. Ps Ci. Soc. v.11, n.22, jul/dez. 2014

    caso de Belo Monte, a situao distinta. Das dezenove aes analisadas, em doze casos, o juzo de primeira instncia defe-riu pedido de medida liminar. Entretanto, destas doze liminares, oito tiveram seus efeitos suspensos seja por meio de ao de suspenso de segurana5 ou por agravo de instrumento. Das quatro aes restan-tes, trs ainda no foram apreciadas pelo Tribunal. Ou seja, manteve-se um provi-mento liminar em apenas um caso - o pri-meiro, que tratava da necessidade de lici-tao. So duas as razes para que, apesar de muito utilizado, o pedido liminar no perdure. Um deles a utilizao de recur-sos judiciais, como o caso do agravo de instrumento e dos embargos de declarao, que tm a suspenso de efeitos com um de seus atributos. Nos outros casos, os efeitos da liminar so suspensos com a utilizao de Suspenso de Segurana, que pode ser utilizada pelo Poder Pblico nos casos em que as liminares possam causar grave leso ordem, sade, segurana e econo-mia pblicas. Assim, diante da concesso de uma medida liminar a favor do Mi-nistrio Pblico Federal, a Unio e os de-mais entes pblicos envolvidos adotaram

    a prtica de interpor perante o Tribunal Regional Federal um pedido de suspenso de seus efeitos. Desta forma, estabelece-se meio de controle sobre decises que afetam o Poder Pblico. No caso da UHE de Belo Monte, este controle exercido de modo a garantir a continuidade dos trabalhos quando liminares de primeira instncia de-terminam sua paralisao.

    Dentre as aes civis pblicas analisa-das, houve seis casos em que o deferimento de medidas liminares levou interposio de aes de suspenso de segurana. A sua interposio foi fundamentada por meio de trs argumentos principais: a obedincia das determinaes legais, a invaso da es-fera de discricionariedade administrativa e os futuros prejuzos econmicos e ambien-tais. O primeiro argumento enfatiza a lega-lidade das posturas tomadas pelo IBAMA e a ausncia de vcios formais nas licenas e demais documentos jurdicos (como a auto-rizao emitida pelo Congresso Nacional). Este suposto estrito cumprimento da lei o pano de fundo dos dois argumentos subse-quentes, articulados como prova de grave leso ordem e economia pblicas. Se-gundo a lgica proposta pelo Poder Pblico,

    tos de decises liminares que determinavam a paralisao das obras. Ou seja, foi utilizado para garantir que a construo continuasse, apesar de estar sendo contestada judicialmente.5. A Suspenso de Segurana um mecanismo processual utilizado para suspender os efeitos de medidas liminares contra o Poder Pblico. Sua disciplina jurdica est baseada em uma srie de instrumentos. O instituto foi inserido no ordenamento jurdico por meio da Lei n 191 de 1936, e posteriormente retoma-do pela Lei n. 4.348 de 1964. Com o objetivo declarado de permitir coletividade o expurgamento de me-didas judiciais consideradas temerrias, a Suspenso de Segurana reflete o autoritarismo do momento po-ltico em que a Lei 4.348/1964 foi promulgada, conforme exposto por Bermann (2013). Na prtica, a nor-ma retirava do cidado a possibilidade de segurana frente a aes autoritrias praticadas pelo regime mi-litar. Atualmente, sua regulao se d pela Lei n 8.437/92, cujo artigo 4 assim estabelece: Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fun-damentado, a execuo da liminar nas aes movidas contra o Poder Pblico ou seus agentes, a requeri-mento do Ministrio Pblico ou da pessoa jurdica de direito pblico interessada, em caso de manifesto in-teresse pblico ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave leso ordem, sade, segurana e economia pblicas.

  • Judicializao de grandes empreendimentos no Brasil 141

    as liminares invadem a esfera da discricio-nariedade administrativa, pois as decises relativas obra so de competncia do Po-der Executivo, que age com base em crit-rios de convenincia e oportunidade. Tendo por premissa a legalidade do processo de licenciamento, sustenta-se que a substitui-o de decises administrativas por decises judiciais usurparia a competncia do Poder Executivo para determinar os rumos da po-ltica energtica nacional e a forma de exe-cut-la. Finalmente, o ltimo argumento se baseia nos prejuzos econmicos que seriam causados pela liminar. Estes prejuzos no se restringem queles imediatamente causados pela paralisao dos trabalhos, mas tambm incluem perdas financeiras em longo prazo, visto que seria necessrio construir novas usinas que poderiam inclusive gerar im-pactos ambientais maiores.

    Estas teses foram consideradas e aco-lhidas pelo Poder Judicirio. Em todos os casos em que houve Suspenso de Segu-rana, foi proferida deciso favorvel ao Poder Pblico, determinando a suspenso dos efeitos da medida liminar determina-da em primeira instncia e a consequente continuidade dos trabalho6. Em todas elas, a deciso mencionou expressamente que a liminar em questo causava grave dano ordem pblica por invadir a esfera de dis-cricionariedade administrativa e usurpar a competncia privativa da administrao pblica sobre a matria.

    Em relao legalidade do processo de licenciamento, interessante observar que

    as decises fazem preponderantemente dois tipos de consideraes. Em alguns casos, h pronunciamento sobre o mrito da contro-vrsia (ainda que breve), como exemplifi-cado pela anlise a respeito da competn-cia do Congresso Nacional para aprovar o Decreto que autorizou a construo da UHE de Belo Monte. Entretanto, em rela-o a outras matrias, o Judicirio se retira da discusso, limitando-se a constatar que os atos do IBAMA e da Fundao Nacional do ndio (FUNAI) gozam de presuno de veracidade e legalidade, sem uma anlise mais profunda sobre o direito requerido e pretensamente violado.7 O argumento se baseia no carter tcnico da matria e na consequente aptido dos rgos referidos para decidir a matria.

    Se somados a presuno de legalidade dos atos dos rgos pblicos envolvidos e o reconhecimento da discricionariedade administrativa sobre a matria, o que se tem a negativa, pelo prprio Poder Judi-cirio, da possibilidade de realizar controle de legalidade sobre atos da administrao em sede de liminar nesses casos. Mediante tal negativa, o resultado o Judicirio se abster de apreciar leso ou ameaa de di-reito, uma vez que a efetividade do controle jurisdicional depende, nestes casos, da con-cesso de liminar (especialmente porque o julgamento definitivo da ao poder se dar com as usinas j construdas). Ressal-te-se que isto acontece sem que o Tribunal seja obrigado a ouvir a parte interessada na concesso da liminar.

    6. Embora algumas aes de suspenso de segurana tenham sido indeferidas, isto se deveu ao fato de que a liminar j havia sido suspensa por meio de outra ao julgada anteriormente.7. Na ao n. 25999.75.2010.4.01.3900, por exemplo, foi decidido que: o IBAMA o rgo responsvel pela aprovao do licenciamento, no sendo possvel a suspenso do procedimento com base em conjec-turas sobre supostas irregularidades ou ilegalidades, uma vez que os atos emanados pelo rgo ambiental tm presuno de legalidade.

  • 142 R. Ps Ci. Soc. v.11, n.22, jul/dez. 2014

    Esta situao no escapou crtica de membros do prprio Poder Judicirio. Na ao n 968-19.2011.4.01.3900 para Belo Monte, travou-se interessante debate entre o Presidente do Tribunal Federal da 1 Re-gio (que deferiu, como de costume, medida de Suspenso de Segurana no mbito desta ao) e o Desembargador Souza Prudente, que julgou o Recurso de Apelao propos-to pelo Ministrio Pblico Federal. Em sua argumentao, o Desembargador enfatizou que, por garantia constitucional, nenhuma leso ser excluda da tutela jurisdicional. Este direito fundamental especialmente re-levante em virtude da natureza da demanda, que envolve interesses coletivos e difusos de ordem transfronteiria e intergeracional. A prpria natureza destas questes sobrepe-nas a discusses de ordem meramente eco-nmica o que desautorizaria, segundo o Desembargador, a utilizao do mecanismo de Suspenso de Segurana.8

    Alm disso, o Desembargador esclarece que, na Suspenso de Segurana, opera-se um controle poltico do ato judicial que se distingue do controle jurdico exercido, por exemplo, quando da concesso da limi-nar ou quando da apreciao da apelao. Neste sentido, o Ministro Joaquim Barbosa, Presidente do Supremo Tribunal Federal, tambm j se pronunciou a respeito da gra-vidade e excepcionalidade do instrumento. No mbito da Medida Cautelar de Suspen-so de Liminar n. 712/MG, disse ele que a suspenso de liminar medida gravssima, de profunda invasividade, na medida em que dispensa ampla cognio, bem como contraditrio completo.

    4.1.2 decises judiciais de mrito

    At o fim do perodo analisado, um nico provimento judicial, das quaren-ta aes propostas, transitou em julga-do (ao n. 2001.39.00.005867-6 / 5850-73.2001.4.01.3900 para Belo Monte). Nessa ao, proposta em 2001, o trnsito em julgado se deu apenas em 2010 ou seja, a deciso acerca da necessidade de licitao para elaborao do EIA s tran-sitou em julgado quando a LP estava para ser concedida. Em relao a Belo Monte, em mdia so trs anos entre a propositura da ao e a deciso definitiva de primei-ra instncia, tempo que pode se estender ainda mais em casos que envolvem con-flito de competncia - como na ao n 25999.75.2010.4.01.3900, que teve deciso de mrito na primeira instncia apenas sete anos aps sua interposio. Porm, isso no significa que a mdia de trs anos seja suficiente para dirimir a questo, uma vez que, aps a deciso definitiva de primeira instncia, h uma grande quantidade de re-cursos que podem ser interpostos.

    No caso do Complexo Rio Madeira, em relao ao qual foram propostas vinte e uma ACP, quatorze delas ainda no tiveram jul-gamento de mrito em primeira instncia, sendo que a primeira foi proposta em fe-vereiro de 2006. No houve nenhum pro-vimento transitado em julgado. Em apenas uma ao o pedido foi deferido (e apenas em parte) entretanto, a questo analisada se refere exclusivamente alocao de re-cursos de compensao ambiental para uni-dades de conservao; ou seja, em nenhum

    8. Este ponto tambm levantado por Bermann (2013), segundo quem: as sucessivas leis que moldam atualmente o instituto da Suspenso da Segurana retomam o conflito inicial entre o interesse particular em relao ao interesse pblico, e o estendem para a esfera do interesse coletivo em conflito com o inte-resse pblico, o que caracteriza um inequvoco excesso no entendimento da amplitude deste instrumento.

  • Judicializao de grandes empreendimentos no Brasil 143

    caso houve provimento definitivo em favor dos direitos das populaes afetadas.

    Nas decises de primeira instncia de Belo Monte, das dezenove aes, oito tive-ram o mrito apreciado, trs foram extintas sem resoluo de mrito e oito aguardam julgamento. Das oito que tiveram o mrito apreciado, em sete se decidiu pela improce-dncia da ao. O nico caso de procedn-cia foi o primeiro, que tratava da necessi-dade de licitao para realizao do EIA. Em todos os casos de improcedncia, houve apelao, das quais trs foram julgadas. Uma delas manteve a deciso de primei-ra instncia e duas a reverteram, de modo a proteger o direito dos envolvidos. Vale ressaltar que, nestes dois casos, a questo abordada envolvia a participao da popu-lao local, incluindo povos indgenas, no processo de licenciamento. A razo de de-ciso destes casos a proteo dos direitos da populao e do meio ambiente, interesse difuso que h de sobrepor-se a discusses de ordem meramente econmica, justifi-cando sua interveno com base na inafas-tabilidade do Judicirio em apreciar leso ou ameaa a direito.

    Como se observou, grande parte das aes propostas visava a garantia de direi-tos das populaes afetadas por esses pro-jetos. Nessas aes, argumentou-se contra a construo das usinas e em favor do cum-primento das condicionantes do licencia-mento ambiental, com base especialmente nos direitos dos indgenas de terem suas terras demarcadas e de serem ouvidos no processo de licenciamento e, no caso das populaes locais, dentre as quais esto os ribeirinhos, o direito moradia e ao aces-so infraestrutura bsica, esgoto, sade e

    educao. Todos esses direitos vm assegu-rados pela Constituio Brasileira de 1988.

    Apesar disso, a posio do Judicirio brasileiro no caso das aes propostas em relao a Belo Monte, Santo Antnio e Ji-rau foi, em grande parte das decises, de recolhimento. Isso, por duas razes princi-pais: porque no havia provas suficientes que mostrassem o dano ou perigo de dano; e porque se entendeu que no cabia ao Ju-dicirio apreciar a questo.

    Nos casos em que se decidiu pela im-procedncia da ao, no se chegou a con-siderar se havia ou no leso ou ameaa a direito. De maneira similar ao ocorrido nas aes de Suspenso de Segurana, a dis-cusso dos tribunais assumiu outros dois caminhos: (i) o de ponderar se a questo era poltica, no sentido de afastar a com-petncia do Judicirio; ou (ii) o de saber se a questo trazida tona fazia ou no parte do processo de licenciamento ambiental, no sentido de se tratar de questo tcnica.

    4.1.2.1 Questes polticas

    A discusso sobre o papel do Judicirio nas questes polticas no assunto novo e remete discusso da separao dos po-deres. Na teoria, essa discusso leva con-siderao de requisitos a justificarem as circunstncias em que o Judicirio deve ou no intervir nas decises tomadas pelos ou-tros poderes: Legislativo e Executivo.9 Nos casos analisados, essa justamente a ques-to que se coloca quando se decide que no cabe ao Judicirio interferir em poltica governamental, sobre a qual deve decidir o Executivo a partir de critrios de conve-nincia e oportunidade.10

    9. Veja-se, por exemplo, Henkin (1994) e Marshall (1961).10. Um exemplo a deciso que negou a liminar ACP 11: [...] Todos os rgos e entidades do Executi-vo aos quais competia essa escolhas, em diferentes escalas, esto a favor do aproveitamento hidreltrico

  • 144 R. Ps Ci. Soc. v.11, n.22, jul/dez. 2014

    Nesses casos, em que o argumento pol-tico foi decisivo, o Judicirio assumiu uma postura consequencialista em relao aos resultados de sua interveno nos objeti-vos do Executivo, acolhendo ao argumen-to feito pela Unio de que a suspenso das obras das usinas se converteria em malef-cios para a Administrao, impactando os cofres pblicos.11

    fato que se coloca que a interveno judicial deve ser feita com critrio e prudn-cia nesses casos, mas, em nenhum momen-to, na deciso, apresentam-se quais seriam os critrios que justificariam a interveno.

    No nico caso da amostra a discutir re-quisitos para a interveno do Judicirio, o da ao n 0001618-57.2011.4.01.3903, para Belo Monte, retoma-se ao julgada pelo Supremo Tribunal Brasileiro sobre as

    restries oramentrias para garantia de polticas pblicas de sade, a ADPF 45.12 No se menciona, porm, que o Ministro Celso de Mello apoia essa construo na afirmao de que exceo a justificar a interveno do Judicirio nesses casos seria o comprometi-mento dos direitos individuais e coletivos.13

    4.1.2. 2 Questes tcnicas

    Questo diferente considerar se o Ju-dicirio ou no o melhor lugar para se tomar determinada deciso. Em diversos momentos, nos casos analisados, o Judici-rio reconhece que a construo das usinas impacta os direitos das populaes do seu entorno, mas abdica de intervir ao conside-rar que se trata de matria j considerada pelo licenciamento ambiental.

    Belo Monte - Unio, MMA, Advocacia Geral da Unio, ANEEL, IBAMA, FUNAI etc. A interferncia da ati-vidade jurisdicional em polticas pblicas, nas atribuies especficas e privativas da Administrao, im-plicando no raro alteraes na conduo do planejamento da sua atuao, tema desafiante e de grande atualidade, deve ser feita com critrio e prudncia, de forma pontual e calcada em dados objetivos e tc-nicos que justifiquem a interveno judicial. No pode o Judicirio substituir-se ao Executivo nas esco-lhas diretas de poltica governamental, naquilo que representa a sua atuao institucional, que envolve convenincia e oportunidade, sob pena de violao da CF quando traa a engenharia tripartite do exerc-cio do poder. ACP 0028944-98.2011.4.01.3900.11. Essa ponderao apareceu, por exemplo, na seguinte deciso do Tribunal Regional Federal: A deciso de primeiro grau, se mantida, acarretar grave leso ordem e economia pblicas. A interferncia da ati-vidade jurisdicional em polticas pblicas, nas atribuies especficas e privativas da Administrao, im-plicando no raro alteraes na conduo do planejamento de sua atuao, deve ser feita com critrio e prudncia, de forma pontual e calcada em dados objetivos e tcnicos que justifiquem a interveno judi-cial Tribunal Regional Federal 1 AGRSLT 0021954-88.2010.4.01.0000/PA Rel. Olindo Menezes: [...].12. A referncia a essa ao se d para emprestar a seguinte concluso do Ministro Celso de Mello: a in-terveno judicial na seara da implementao e controle de polticas pblicas no poder jamais estar des-vinculadas dos seguintes requisitos: a existncia de um mnimo existencial a ser garantido ao cidado; a razoabilidade da pretenso deduzida perante o Poder Pblico e, por fim, a existncia de disponibilidade fi-nanceira do Estado e a necessidade que se verifique sua omisso em grau to elevado por parte do Poder Pblico (excepcionalidade), apta a justificar a singular interveno.13. Todavia, preciso esclarecer que, no mbito das funes institucionais do Poder Judicirio, e nas do Su-premo Tribunal Federal, no se incluem as atribuies de formular e de implementar polticas pblicas. As-sim, de forma excepcional, tal atribuio recair nossa Suprema Corte somente quando os rgos estatais competentes, por descumprirem os encargos poltico-jurdicos que sobre eles incidem, vierem a comprome-ter, com tal comportamento, a eficcia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de clusulas revestidas de contedo programtico.

  • Judicializao de grandes empreendimentos no Brasil 145

    Aqui, h duas possibilidades: ou o Judici-rio assume que h presuno de legitimidade nos atos da agncia ambiental e demais ins-tituies intervenientes, at que se comprove o contrrio; ou decide com base nas anlises feitas pela agncia ambiental e demais inter-venientes. Nos dois cenrios, o Judicirio est lidando com limites da prpria institucionali-dade, de produzir provas ou adentrar assun-tos tcnicos complexos, como por exemplo os que esto relacionados s dimenses de um impacto ambiental.

    A ACP n. 2008.41.00.005474-0 para Ji-rau um exemplo do primeiro tipo. Nesse caso, em que se coloca a possibilidade de a anlise ambiental produzida para a UHE de Jirau no ter contemplado os impactos do empreendimento sobre os usos e costumes das populaes indgenas e de participao da sociedade rondoniense no debate, a de-sembargadora ressalta serem os atos admi-nistrativos presumidamente legais, at que se apresentem fatos novos que comprovem danos ao meio ambiente que no estejam sendo objeto de exame pelos rgos admi-nistrativos responsveis. No se questiona, por exemplo, a qualidade da deciso toma-da pelo rgo ambiental em relao a afas-tar a leso ou ameaa a direito, bastando a referncia de que a questo ali considera-da para que o Judicirio deixe de apreciar as informaes trazidas na inicial.

    Exemplo semelhante o da ACP n. 0001618-57.2011.4.01.3903 para Belo Mon-te. Nesse caso, discute-se que muitas das fa-mlias impactadas ainda no teriam sido ca-dastradas, apesar do que fora estabelecido em condicionante da licena prvia de instalao (que deveria ter sido cumprida antes do in-cio das obras). De acordo com o Ministrio Pblico, algumas famlias desconhecem os impactos que sofrero e se sero ou no con-templadas pela medida de mitigao, o que atentaria contra seu direito de moradia.14

    Se, nos dois casos, o Judicirio se apoia na existncia do processo do licenciamento e na capacidade do procedimento adminis-trativo para decidir sobre polticas de mi-tigao e compensao, questo diferente a apresentada no julgamento liminar da ACP n. 0001618-57.2011.4.01.3903 para Belo Monte, em que o Judicirio utiliza-se dos argumentos e informaes produzidas no bojo do licenciamento para decidir que no h uma violao, supondo que o rgo licenciador tem melhores condies de to-mar determinada deciso.15

    Em um dos poucos casos em que o Judi-cirio acolhe o pedido feito pelo Ministrio Pblico para a defesa do direito de moradia no entorno de Belo Monte, o fato de haver pesquisa realizada pela Universidade Fede-ral do Par (UFPA) parece facilitar bastante o trabalho do juiz na anlise da liminar,

    14. Nesse caso, o Judicirio considera o trmite do licenciamento para decidir que no deve intervir: [...] No caso em discusso, entende que no se verifica a existncia de situao excepcional com grau de rele-vncia apto a deflagrar a imediata interveno postulada pelo Ministrio Pblico. fato que os ocupantes e proprietrios da rea na Volta Grande do Xingu esto sujeitas aos efeitos da construo da UHE de Belo Monte, fazendo jus respectiva indenizao ou realocao para minimizar os efeitos adversos do empreen-dimento sobre o seu modo de vida. Todavia, fato, tambm, que tal processo dever correr em diversas fa-ses atinentes ao prprio licenciamento ambiental, em conjunto com polticas fundirias para a regio.15. De acordo com deciso proferida na ao n 0001618-57.2011.4.01.3903: no restou suficiente de-monstrada a alegada urgncia de que o cadastro socioeconmico seja concludo no exguo prazo de 60 dias. Alis, a licena de instalao sequer atribui prazo para o cumprimento da condicionante.

  • 146 R. Ps Ci. Soc. v.11, n.22, jul/dez. 2014

    que se refere aos dados colhidos pela Uni-versidade na quase totalidade do seu voto, contrapondo-se s informaes produzidas no contexto do licenciamento ambiental.16

    5 concluso

    Diversas aes judiciais tm sido pro-postas contra a construo de grandes empreendimentos no Brasil. Nos casos das UHE de Santo Antnio, Jirau e Belo Monte, grande parte dessas aes trata dos impac-tos desses projetos nas populaes locais e questiona sobre a ausncia de escuta pr-via queles que sofrero impactos e sobre o cumprimento de condicionantes do li-cenciamento ambiental que serviriam para mitigar e compensar esses impactos em re-lao aos direitos das comunidades. Neste ltimo caso, ou se cobra o cumprimento de condicionante no cumprida dentro da fase do licenciamento para a qual foi requerida, ou se apontam impactos subdimensionados nos relatrios ambientais (EIA/RIMA) e, portanto, ignorados pelos planos de miti-gao e pelas polticas pblicas locais.

    Nesses casos, pode-se observar que o Judicirio tem funcionado como nica ins-tncia de soluo de controvrsias, ante a ausncia e/ou inefetividade de canais que possam assim funcionar dentro do processo de licenciamento ambiental. Apesar desta constncia, o que se observa so padres

    distintos nos casos aqui considerados. Nas aes referentes a Belo Monte, o Judici-rio tem intervindo por meio de liminar nos casos em que se demonstra violao aos direitos das populaes impactadas ou s regras do prprio licenciamento. Porm, essas decises so revogadas em segunda instncia, quando o Judicirio se abstm de decidir, sob o fundamento de se tratar de grave leso ordem, sade e econo-mia pblicas, sobre o qu cabe decidir o Executivo. J nas aes de Santo Antnio e Jirau, o Judicirio tem indeferido as aes relacionadas ao licenciamento ambiental de ambas as usinas, com exceo de duas aes que contestam a violao de direitos moradia e dignidade humana das popula-es impactadas.

    Com isso, o que se observa um mo-vimento de recolhimento do Judicirio. Mesmo em casos em que se argumentou a violao ou ameaa a violao a direitos das populaes locais, no h apreciao das violaes alegadas. Isso em razo de ausncia de provas, a qual se remete a uma presuno de legalidade dos atos adminis-trativos tomados no contexto do licencia-mento, ou da percepo do Judicirio de que no deve intervir em questes de pol-tica governamental.

    Portanto, se no processo de licencia-mento os mecanismos administrativos so insuficientes para resolver os conflitos que

    16. A deciso da liminar da ACP n 0002708-66.2012.4.01.3903 assim estabelece: percebe-se que h ve-rossimilhana nas concluses dos estudos realizados pela UFPA e que indicam uma probabilidade de que houve inconsistncia nas medies realizadas pelas empresas contratadas pela Norte Energia no EIA con-cernentes rea passvel de alagamento pelo empreendimento. Considerando que mais de 9 mil morado-res no sero inseridos na cota 100, o que justifica a percepo do risco, autorizando a concesso da limi-nar para determinar que a NESA providencie o cadastramento dos moradores do permetro urbano de Al-tamira no prazo de 60 dias, em conformidade com estudos da UFPA, sob pena de multa diria de R$10.000, alm de que sejam identificados e avaliados todos os imveis do permetro urbano de Altamira onde se lo-caliza a cota 100, sob pena de mesma multa diria.

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    emergem, tampouco o Judicirio se apre-senta como instncia adequada. As aes de Suspenso de Segurana impedem que as decises tenham qualquer efeito at o trnsito em julgado da ao principal o que, na maioria dos casos, no ocorrer antes da construo da usina. Assim, em-bora o Ministrio Pblico e a sociedade ci-vil continuamente proponham demandas, e embora o Judicirio profira diferentes decises sobre seus pedidos, a Suspenso de Segurana faz com que estas aes no tenham qualquer efeito prtico.

    A todos os brasileiros se garante o direi-to de ver leso ou ameaa de leso a direitos apreciada pelo Judicirio o que constitui garantia da eficcia de todos os seus outros direitos. No entanto, a violao de direitos durante o processo de licenciamento am-biental de hidreltricas tem sido apreciada pelo Judicirio de forma assimtrica. Como apontado por Rocha e Tedesco (s/d), a re-corrncia ao Judicirio em pouco tem aju-dado as populaes locais, sendo que em alguns casos tem agravado esta assimetria em favor dos consrcios, significando, no limite, a instalao das hidreltricas alheia-mente vontade das populaes locais.

    Na presente pesquisa fica evidente que, pelo menos nos casos analisados, os consr-cios empreendedores so os principais po-los passivos das ACP, seguidos pelo prprio IBAMA. Assim, a no apreciao de alega-das violaes colocadas ao Judicirio tem se revertido em favor de ambos (empreende-dores e rgo licenciador), com nus para os aspectos sociais e ambientais impactados ou ameaados de leso, ou mesmo para o prprio procedimento do licenciamento am-biental que, ao no ser cumprido adequada-mente como determinado por suas normas, acaba enfraquecido como instrumento de preveno de danos socioambientais.

    Assim como desenvolvido no presente artigo, Rocha e Tedesco (s/d) tambm anali-saram algumas decises de ACP de hidrel-tricas. Os autores perceberam que anli-ses sobre casos especficos tm sido feitas a partir de uma macro perspectiva sobre uma iminente crise energtica - que estaria sendo prevenida atravs de um plano que no pode ter o seu conjunto prejudicado por esses casos isolados. Esse e outros ar-gumentos de ordem poltica fazem parte da concepo de projetos hidreltricos que derivam de planos, programas e polticas pblicas de desenvolvimento, no signifi-cando, pois, que no podem ser analisados por um tribunal. Certamente haver deci-ses polticas para as quais o prprio direi-to confere amplo poder autoridade pol-tica para agir da forma que desejar. Nesses casos, a autoridade poltica , ento, livre para agir dentro, mas no sem a lei. (BA-RAK, 2006, p. 181).

    Alm da necessidade das decises do Judicirio envolverem questes polticas e tcnicas, o tempo que as ACP levam para ser julgadas tambm deve ser considerado. O perodo do trmite das aes nos tribunais poderia at ser relativamente longo, desde que liminares no fossem suspensas e obras continuadas. Como apresentado durante a anlise das quarenta ACP, a maior parte das aes so propostas durante as etapas iniciais do licenciamento ambiental das hi-dreltricas, antes da emisso da LP. Mesmo entre aquelas propostas aps as licenas de instalao e operao, so comuns as que se referem s demandas surgidas nas etapas anteriores. Isso s refora os argumentos expostos anteriormente, da assimetria de poderes entre concessionrias e populaes locais e da inabilidade do Judicirio em re-solver conflitos no solucionados durante os procedimentos previstos pelo licencia-

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    mento ambiental. Essa anlise sugere, ainda, a necessidade de uma abordagem baseada em direitos durante estgios preliminares do processo de tomada de decises, concepo de projetos e seu licenciamento de forma a se evitar a judicializao.

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    Notas sobRe os autoRes

    Nelson Novaes Pedroso Junior doutor em Ecologia Humana pela Universidade de So Paulo, mestre em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de So Carlos e bi-logo pela Universidade Estadual Paulista. membro do Grupo de Pesquisa em Ecologia Humana em Florestas Tropicais, do Diretrio dos Grupos de Pesquisa no Brasil do CNPq e da Rede Brasil USA em Ambiente, Sociedade e Governana. Atualmente, responsvel pela linha Estado de Direito e Meio Ambiente no Centro de Pesquisa Jurdica Aplicada da FGV Direito SP.

    Flavia Silva Scabin professora e pesquisado-ra na Escola de Direito da Fundao Getlio Vargas. graduada em direito pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo e mestre em Cincia Poltica pela Universidade de So Paulo (USP). Atualmente, doutoranda na Fa-culdade de Filosofia, Letras e Cincias Huma-nas da USP. Tambm membro do Centro Re-gional de Mudana Climtica e Tomada de De-ciso da UNESCO.

    Julia Cortez da Cunha Cruz mestranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direi-to da Universidade de So Paulo e possui gra-duao em direito pela mesma instituio. Atualmente, atua como pesquisadora da linha Estado de Direito e Meio Ambiente no Centro de Pesquisa Jurdica Aplicada e como pesqui-sadora do Grupo de Direitos Humanos e Em-presa, ambos da Escola de Direito da Fundao Getlio Vargas.

    Recebido em: 26.06.2014aprovado em: 19.12.2014