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7/23/2019 Jorge Luis Borges - Fervor de Buenos Aires rev
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FERVOR DEBUENOS AIRES*****
Jorge Luis Borges 1923 -
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Este livro: Fervor de Buenos Aires parte integrante da coleo:
JJOORRGGEE LLUUIISS BBOORRGGEESS OOBBRRAASS CCOOMMPPLLEETTAASSVOLUME 1
1923-1949Ttulo do original em espanhol: Jorge Luis Borges Obras Completas
98-3272Copyright1998 by Maria Kodama Copyright 1998 das tradues by Editora Globo S.A.
1 Reimpresso-9/98 2 Reimpresso-1/99 3 Reimpresso 12/99
Edio baseada em: Jorge Luis Borges Obras Completas,
publicada por Emec Editores S.A., 1989, Barcelona Espanha.
Coordenao editorial: Carlos V. Fras
Capa: Joseph Llbach / Emec Editores
Ilustrao: Alberto Ciupiak
Coordenao editorial da edio brasileira: Eliana S
Assessoria editorial: Jorge Schwartz
Preparao de textos: Maria Carolina de Arajo
Reviso de textos: Flvio Martins, Levon Yacubian,
Luciana Vieira Alves e Mrcia Menin
Projeto grfico: Alves e Miranda Editorial Ltda.
Fotolitos: GraphBox
Agradecimentos a Antonio Fernndez Ferrer, Maite Celada, Ana Cecilia Olmos,
Blas Matamoro, Fernando Paixo, Daniel Samoilovich e Michel Sleiman
Agradecimentos especiais a lida Lois
Direitos mundiais em lngua portuguesa, para o Brasil, cedidos
EDITORA GLOBO S.A.
Avenida Jaguar, 1485
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CEP O5346-9O2 Tel.: 3767-7OOO, So Paulo, SP
E-mail: [email protected]
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ouforma, seja mecnico ou eletrnico, fotocpia, gravao
etc. nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorizao da editora.
Impresso e acabamento:
Grfica Crculo
CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Cmara Brasileira do Livro, SPBorges, Jorge Luis, 1899-1986.
Obras completas de Jorge Luis Borges_ volume 1 / Jorge Luis Borges. So Paulo : Globo, 1999.
Ttulo original: Obras completas Jorge Luis Borges.Vrios tradutores.
V. 1. 1923-1949 / v. 2. 1952-1972 / v. 3. 1975-1985 / v. 4. 1975-1988 ISBN 85-25O-2877-O (v. 1) / ISBN 85-25O-2878-9 (v. 2) ISBN 85-25O-2879-7 (v. 3) / ISBN 85-25O-288O-O
(v. 4.)
1. Fico argentina 1. Ttulo.ndices para catlogo sistemtico
1. Fico : Sculo 2O : Literatura argentina ar863.4
2. Sculo 2O : Fico : Literatura argentina ar863.4CDD-ar863.4
FERVOR DE BUENOS AIRESFervor de Buenos Aires
Traduo de Glauco Mattoso e Jorge Schwartz
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http://groups.google.com/group/digitalsource
Este livro foi digitalizado e distribudo GRATUITAMENTE pela equipeDigital Source com a inteno de facilitar o acesso ao conhecimento a quemno pode pagar e tambm proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidadede conhecerem novas obras. Se quiser outros ttulos nos procure:
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, ser um prazer receb-loem nosso grupo.
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FFEERRVVOORR DDEEBBUUEENNOOSS
AAIIRREESS- 1923 -
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PRLOGO -
NNNNo reescrevi o livro. Mitiguei seus excessos barrocos, limei asperezas,
risquei sentimentalismos e imprecises e, no decurso desse labor s vezesgrato e outras vezes incmodo, senti que aquele rapaz que em 1923 o escreveu
j era essencialmente que significa essencialmente? o senhor que agora se
resigna ou corrige. Somos o mesmo; os dois descremos do fracasso e do
sucesso, das escolas literrias e de seus dogmas; os dois somos devotos de
Schopenhauer, de Stevenson e de Whitman. Para mim, Fervor de Buenos Aires prefigura tudo o que faria depois. Pelo que deixava entrever, pelo que
prometia de algum modo, aprovaram-no generosamente Enrique Dez-Canedo
e Alfonso Reyes.
Como os de 1969, os jovens de 1923 eram tmidos. Temerosos de uma
ntima pobreza, tratavam como agora de escamote-la sob inocentes
novidades ruidosas. Eu, por exemplo, me propus demasiados fins: arremedar
certas fealdades (que me agradavam) de Miguel de Unamuno, ser um escritor
espanhol do sculo XVII, ser Macedonio Fernndez, descobrir as metforas
que Lugones j havia descoberto, cantar uma Buenos Aires de casas baixas e,
para o poente ou para o sul, de chcaras gradeadas.
Naquele tempo, procurava os entardeceres, os arrabaldes e a desdita;
agora, as manhs, o centro e a serenidade.
J. L. B.Buenos Aires, 18 de agosto de 1969.
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A QUEM LER
SSSSe as pginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me oleitor a descortesia de t-lo usurpado eu, previamente. Nossos nadas pouco
diferem; trivial e fortuita a circunstncia de que sejas tu o leitor destes
exerccios, e eu seu redator.
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AS RUAS
As ruas de Buenos Airesj so minhas entranhas.No as vidas ruas,incmodas de turba e de agitao,mas as ruas entediadas do bairro,
quase invisveis de to habituais,enternecidas de penumbra e de ocasoe aquelas mais longnquasprivadas de rvores piedosasonde austeras casinhas apenas se aventuram,abrumadas por imortais distncias,a perder-se na profunda visode cu e de planura.
So para o solitrio uma promessaporque milhares de almas singulares as povoam,nicas ante Deus e no tempoe sem dvida preciosas.Para o Oeste, o Norte e o Sulse desfraldaram e so tambm a ptria as ruas;oxal nos versos que trao estejam essas bandeiras.
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LA RECOLETA
Convencidos de caducidadepor tantas nobres certezas do p,demoramos e baixamos a vozentre as lentas filas de pantees,cuja retrica de sombra e de mrmore
promete ou prefigura a desejveldignidade de ter morrido.Belos so os sepulcros,o desnudo latim e as petrificadas datas fatais,a conjuno do mrmore e da flore as pracinhas com frescor de ptioe os muitos ontens da histriahoje detida e nica.
Confundimos essa paz com a mortee cremos anelar nosso fime anelamos o sonho e a indiferena.Vibrante nas espadas e na paixoe adormecida na hera,s a vida existe.O espao e o tempo so formas suas,so instrumentos mgicos da alma,
e quando esta se apague,se apagarocom ela o espao, o tempo e a morte,como ao cessar a luzcaduca o simulacro dos espelhosque a tarde j foi apagando.Sombra benigna das rvores,vento com pssaros que sobre as ramas ondeia,alma que se dispersa em outras almas,
fora um milagre que alguma vez deixaram de ser,milagre incompreensvel,embora sua imaginria repetio
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infame com horror nossos dias.Estas coisas pensei em La Recoleta,no lugar de minha cinza.
O SUL
De um dos teus ptios ter olhadoas antigas estrelas,do banco dasombra ter olhadoessas luzes dispersas
que minha ignorncia no aprendeu a nomearnem a ordenar em constelaes,ter sentido o crculo da guana secreta cisterna,O odor do jasmim e da madressilva,o silncio do pssaro adormecido,o arco do saguo, a umidade essas coisas so, talvez, o poema.
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RUA DESCONHECIDA
Penumbra da pombachamaram os hebreus iniciao da tardequando a sombra no entorpece os passose a vinda da noite se advertecomo msica esperada e antiga,
como um grato declive.Nessa hora em que a luztem uma finura de areia,dei com uma rua ignorada,aberta em nobre largura de terrao,cujas cornijas e paredes mostravacores brandas como o prprio cuque comovia o fundo.
Tudo a mediania das casas,as modestas balaustradas e aldravas,talvez uma esperana de menina rias sacadas -entrou no meu vazio coraocom limpidez de lgrima.Qui essa hora da tarde de pratadesse sua ternura rua,fazendo-a to real como um verso
esquecido e recuperado.S depois refletique aquela rua da tarde era alheia,que toda casa um candelabroonde as vidas dos homens ardemcomo velas isoladas,que todo imediato passo nossocaminha sobre Glgotas.
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A PRAA SAN MARTN
A Macedonio Fernndez
Em busca da tardefui esquadrinhando em vo as ruas.J estavam os alpendres entorpecidos de sombra.Com fino brunimento de mognoa tarde inteira tinha-se remansado na praa,serena e sazonada,benfeitora e sutil como uma lmpada,
clara como uma fronte,grave como gesto de homem enlutado.Todo sentir se aquietasob a absolvio das rvores jacarands, accias cujas piedosas curvasatenuam a rigidez da impossvel esttuae em cuja rede se exalta
a glria das luzes eqidistantesdo leve azul e da terra avermelhada.Como se v bem a tardedo fcil sossego dos bancos!Abaixoo porto anela latitudes longnquase a profunda praa igualadora de almasse abre como a morte, como o sonho.
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O TRUCO
Quarenta naipes deslocaram a vida.Pintados talisms de papelonos fazem olvidar nossos destinose uma criao risonhavai povoando o tempo roubadocom as floridas travessurasde uma mitologia caseira.Nos lindes da mesaa vida dos outros se detm.
Dentro h um estranho pas:as aventuras do truco e do aceito,a autoridade do s de espadas,como dom Juan Manuel, onipotente,e o sete de ouros tilintando esperana.Uma lentido preguiosavai demorando as palavrase como as alternativas do jogo
se repetem e se repetem,os jogadores desta noitecopiam antigas vazas:fato que ressuscita um pouco, muito pouco,as geraes dos antepassadosque legaram ao tempo de Buenos Airesos mesmos versos e as mesmas diabruras.
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UM PTIO
Com a tardecansaram as duas ou trs cores do ptio.Esta noite, a lua, o claro crculo,no domina seu espao.Ptio, cu canalizado.
O ptio o declivepelo qual se derrama o cu na casa.Serena,a eternidade espera na encruzilhada de estrelas.Grato viver na amizade escurade um saguo, de uma parreira e de uma cisterna.
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INSCRIO SEPULCRAL
Para meu bisav, o coronel Isidoro Surez
Dilatou seu valor sobre os Andes.Afrontou montanhas e exrcitos.A audcia foi costume de sua espada.Imps na planura de Junntrmino venturoso batalhae s lanas do Peru deu sangue espanhol.
Seu censo de faanhas escreveuem prosa rgida como os clarins belssonos.Elegeu o honroso desterro.Agora um pouco de cinza e de glria.
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A ROSA
A rosa,a imarcescvel rosa que no canto,a que peso e fragrncia,a do negro jardim na alta noite,a de qualquer jardim e qualquer tarde,
a rosa que ressurge da tnuecinza pela arte da alquimia,a rosa dos persas e de Ariosto,a que sempre est s,a que sempre a rosa das rosas,a jovem flor platnica,a ardente e cega rosa que no canto,a rosa inalcanvel.
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BAIRRO RECONQUISTADO
Ningum viu a formosura das ruasat que em pavoroso clamor
o cu esverdeado desabouem abatimento de gua e de sombra.O temporal foi unnimee aborrecvel aos olhares foi o mundo,mas quando um arco bendissecom as cores do perdo a tarde,e um odor de terra molhadaalentou os jardins,
nos pusemos a andar pelas ruascomo por uma recuperada herdade,e nas vidraas houve generosidades de sole nas folhas luzentesgravou sua trmula imortalidade o estio.
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SALA VAZIA
Os mveis de mogno perpetuamentre a indeciso do brocadosua tertlia de sempre.Os daguerretiposmentem sua falsa cercaniade tempo detido num espelhoe ante nosso exame se perdem
como datas inteisde embaados aniversrios.E faz muito temposuas angustiadas vozes nos buscame agora esto apenasnas manhs iniciais de nossa infncia.A luz do dia de hojeexalta os vidros da janela
vinda da rua de clamor e de vertigeme encurrala e apaga a voz maciados antepassados.
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ROSAS
Na sala tranqilacujo relgio austero derramaum tempo j sem aventuras nem assombrosobre a decente brancura
que amortalha a paixo vermelha do mogno,algum, como repreenso carinhosa,pronunciou o nome familiar e temido.A imagem do tiranoabarrotou o instante,no clara como um mrmore na tarde,mas grande e umbrosacomo a sombra de uma montanha remota
e conjecturas e memriassucederam-se meno eventualcomo um eco insondvel.Famosamente infameseu nome foi desolao nas casas,idoltrico amor na gauchageme horror do talho na garganta.Hoje o olvido apaga seu censo de mortes,
porque so venais as mortesse as pensamos como parte do Tempo,essa imortalidade infatigvelque aniquila com silenciosa culpa as raase em cuja ferida sempre abertaque o ltimo deus haver de estancar no ltimo dia,cabe todo o sangue derramado.No sei se Rosas
foi s um vido punhal como os avs diziam;creio que foi como tu e euum fato entre os fatos
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que viveu na soobra cotidianae dirigiu para exaltaes e penasa incerteza dos outros.Agora o mar uma longa separaoentre a cinza e a ptria.
J toda vida, por humilde que seja,pode pisar seu nada e sua noite.J Deus o ter esquecidoe menos uma injria que uma piedadedemorar sua infinita dissoluocom esmolas de dio.
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FINAL DE ANO
Nem o pormenor simblicode substituir um trs por um doisnem essa metfora baldiaque convoca um lapso que morre e outro que surgenem o cumprimento de um processo astronmico
aturdem e solapamo altiplano desta noitee nos obrigam a esperaras doze irreparveis badaladas.A causa verdadeira a suspeita geral e embaadado enigma do Tempo; o assombro ante o milagre
de que a despeito de infinitos acasos,de que a despeito de que somosas gotas do rio de Herclito,perdure algo em ns:imvel.
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AOUGUE
Mais vil que um lupanaro aougue rubrica como uma afronta a rua.Sobre o dintel
uma cega cabea de vacareside a algazarrade carne charra e mrmores finaiscom a remota majestade de um dolo.
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ARRABALDE
A Guillermo de Torre
O arrabalde o reflexo de nosso tdio.Meus passos claudicaramquando iam pisar o horizonte
e fiquei entre as casas,quadriculadas em quarteiresdiferentes e iguaiscomo se fossem todas elasmontonas recordaes repetidasde um s quarteiro.O matinho precrio,desesperadamente esperanado,
salpicava as pedras da ruae divisei na profundezaos naipes de cores do poentee senti Buenos Aires.Esta cidade que acreditei ser meu passado meu porvir, meu presente;os anos que vivi na Europa so ilusrios,eu estava sempre (e estarei) em Buenos Aires.
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REMORSO POR QUALQUERMORTE
Livre da memria e da esperana,ilimitado, abstrato, quase futuro,o morto no um morto: a morte.Como o Deus dos msticos,de Quem devem negar-se todos os predicados,o morto ubiquamente alheiono seno a perdio e ausncia do mundo.Tudo dele roubamos,no lhe deixamos nem uma cor nem uma slaba:
aqui est o ptio que j no compartilham seus olhos,ali a calada onde sua esperana espreitava.At o que pensamos poderia estar pensando ele tambm;repartimos como ladreso caudal das noites e dos dias.
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JARDIM
Valetas,serras speras,dunas,sitiadas por ofegantes singradurase pelas lguas de temporal e de areia
que do fundo do deserto se aglomeram.Num declive est o jardim.Cada arvorezinha uma selva de folhas.Assediada em vopelos estreis morros silenciososque apressam a noite com sua sombrae o triste mar de inteis verdores.Todo o jardim uma luz aprazvel
que ilumina a tarde.O jardinzinho como um dia de festana pobreza da terra.Yacimientos del Chubut 1922.
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INSCRIO EM QUALQUERSEPULCRO
No arrisque o mrmore temerriogrrulas transgresses onipotncia do esquecimento,
enumerando com meticulosidadeo nome, a opinio, os acontecimentos, a ptria.Tanto avelrio bem atribudo est s trevaso mrmore no fale o que calam os homens.O essencial da vida fenecidaa trmula esperana, o milagre implacvel da dor e o assombro do gozosempre perdurar.Cegamente reclama durao a alma arbitrria
quando a tem assegurada em vidas alheias,quando tu mesmo s o espelho e a rplicadaqueles que no alcanaram teu tempoe outros sero (e so) tua imortalidade na terra.
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A VOLTA
Ao cabo dos anos de desterrovoltei casa de minha infnciae ainda me alheio o seu mbito.Minhas mos tocaram as rvorescomo quem acaricia algum que dormee repeti antigos caminhos
como se recobrasse um verso esquecidoe vi ao espalhar da tardea frgil lua novaque se achegou ao amparo sombrioda palmeira de folhas altas,como ao seu ninho o pssaro.Que caterva de cusabarcar entre suas paredes o ptio,
quantos hericos poentesmilitaro na profundeza da ruae quantas quebradias luas novasinfundiro ao jardim sua ternura,antes que volte a reconhecer-me a casae de novo seja um hbito!
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AFTERGLOW
Sempre comovedor o ocasopor indigente ou charro que sejaporm mais comovedor ainda aquele brilho desesperado e final
que enferruja a planciequando o sol ltimo afundou.Nos di suster essa luz intensa e distinta,essa alucinao que impe ao espaoo unnime medo da sombrae que cessa de repentequando notamos sua falsidade,como cessam os sonhos
quando sabemos que sonhamos.
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AMANHECER
Na profunda noite universalque apenas contradizem os postes de luzuma ventura perdida
ofendera as ruas taciturnascomo pressentimento trmulodo amanhecer horrvel que rondaos arrabaldes desmantelados do mundo.Curioso pela sombrae acovardado pela ameaa da aurorarevivi a tremenda conjecturade Schopenhauer e de Berkeley
que declara que o mundo uma atividade da mente,um sonho das almas,sem base nem propsito nem volume.E j que as idiasno so eternas como o mrmoremas imortais como um bosque ou um rio,a doutrina anterior
assumiu outra forma na aurorae a superstio dessa horaquando a luz como uma trepadeiravai implicar as paredes da sombra,persuadiu minha razoe traou o capricho seguinte:Se esto alheias de substncia as coisase se esta numerosa Buenos Aires
no mais que um sonhoque erigem em compartilhada magia as almas,h um instante
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em que periga desmedidamente seu sere o instante estremecido da aurora,quando so poucos os que sonham o mundoe s alguns notvagos conservam,cinzenta e apenas esboada,
a imagem das ruasque definiro depois com os outros.Hora em que o sonho pertinaz da vidacorre perigo de quebranto,hora em que seria fcil a Deusmatar de todo Sua obra!Porm de novo o mundo se salvou.A luz discorre inventando sujas cores
e com algum remorsode cumplicidade no ressurgimento do dia,solicito minha casa,atnita e glacial An luz branca,enquanto um pssaro detm o silncioe a noite gasta,permaneceu nos olhos dos cegos.
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BENARES
Falsa e densacomo um jardim calcado num espelho,a imaginada urbeque no viram nunca meus olhosentretece distncias
e repete suas casas inalcanveis.O brusco soldesgarra a complexa escuridode templos, muladares, crceres, ptiose escalar os murose resplandecer num rio sagrado.Ofegante,a cidade que oprimiu uma folhagem de estrelas
transborda o horizontee na manh cheiade passos e de sonhoa luz vai abrindo como ramas as ruas.Juntamente amanheceem todas as persianas que olham para o orientee a voz de um muezimaflige de sua alta torre
o ar deste diae anuncia cidade dos muitos deusesa solido de Deus.(E pensarque enquanto brinco com duvidosas imagens,a cidade que canto persistenum lugar predestinado do mundo,com sua topografia precisa,
povoada como um sonho,com hospitais e quartise lentas alamedas
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e homens de lbios podresque sentem frio nos dentes.)
AUSNCIA
Hei de levantar a vasta vidaque ainda agora teu espelho:cada manh hei de reconstitu-la.Desde que te afastaste,quantos lugares se tornaram vos
e sem sentido, iguais a luzes no dia.Tardes que foram nicho de tua imagem,msicas em que sempre me aguardavas,palavras daquele tempo,eu terei que quebr-las com minhas mos.Em que ribanceira esconderei minha almapara que no veja tua ausnciaque como um sol terrvel, sem ocaso,
brilha definitiva e desapiedada?Tua ausncia me rodeiacomo a corda garganta.O mar no qual se afunda.
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SINGELEZA
A Hayde Lange
Abre-se a cancela do jardimcom a docilidade da pginaque uma freqente devoo interrogae dentro os olharesno precisam deter-se nos objetos
que j esto cabalmente na memria.Conheo os costumes e as almase esse dialeto de alusesque todo agrupamento humano vai urdindo.No necessito falarnem mentir privilgios;bem me conhecem aqueles que aqui me rodeiam,bem sabem minhas penas e minha fraqueza.
Isso alcanar o mais alto,o que talvez nos dar o Cu:no admiraes nem vitriasmas simplesmente ser admitidoscomo parte de uma Realidade inegvel,como as pedras e as rvores.
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CAMINHADA
Cheirosa como um mate curadoa noite aproxima agrestes lonjurase desanuvia as ruasque acompanham minha solido,feitas de vago medo e de longas linhas.
A brisa traz pressgios de campo,doura das quintas, memrias dos lamos,que faro tremer sob rigidez de asfaltoa detida terra vivaque oprime o peso das casas.Em vo a furtiva noite felinainquieta as sacadas fechadasque na tarde mostraram
a notria esperana das meninas.Tambm est o silncio nos vestbulos.Na cncava sombravertem um tempo vasto e generosoos relgios da meia-noite magnfica,um tempo caudalosoonde todo o sonhar encontra acolhida,tempo de largueza dalma, diferente
dos avaros termos que medemas tarefas do dia.Eu sou o nico espectador desta rua;se a deixasse de ver, ela morreria.(Advirto um longo paredo eriadode uma agresso de arestase um farol amarelo que aventurasua indeciso de luz.
Tambm advirto estrelas vacilantes.)Grandiosa e vivacomo a plumagem escura de um Anjo
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cujas asas tapam o dia,a noite perde as medocres ruas.
A NOITE DE SO JOO
O poente implacvel em esplendoresquebrou a fio de espada as distncias.Suave como um salgueiral est a noite.
Vermelhos fascamos redemoinhos das bruscas fogueiras;lenha sacrificadaque se dessangra em altas labaredas,bandeira viva e cega travessura.A sombra aprazvel como uma lonjura;hoje as ruas lembramque foram campo um dia.
Toda a santa noite a solido rezandoseu rosrio de estrelas esparramadas.
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CERCANIAS
Os ptios e sua antiga certeza,os ptios aliceradosna terra e no cu.As janelas com gradeda qual a rua
se torna familiar como uma lmpada.As alcovas profundasonde arde em quieta chama o mognoe o espelho de tnues resplendores como um remanso na sombra.As encruzilhadas escurasque lanceiam quatro infinitas distnciasem arrabaldes de silncio.
Nomeei os lugaresonde se esparrama a ternurae estou s e comigo.
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SBADOS
A C. G.
Fora h um ocaso, jia escuraengastada no tempo,e uma profunda cidade cega
de homens que no te viram.A tarde cala ou canta.Algum descrucifica as aspiraescravadas no piano.Sempre, a multido de tua formosura.
***A despeito de teu desamortua formosura
esbanja seu milagre pelo tempo.Est em ti a venturacomo a primavera na folha nova.J quase no sou ningum,sou to-somente essa aspiraoque se perde na tarde.Em ti est a delciacomo est a crueldade nas espadas.
***Agravando a grade est a noite.Na sala severase buscam como cegos nossas duas solides.Sobrevive tardea brancura gloriosa de tua carne.Em nosso amor h uma penaque se parece com a alma.
***Tuque ontem eras s toda a formosura
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s tambm todo o amor, agora.
TROFU
Como quem percorre uma costamaravilhado com a multido do mar,
alvissarado de luz e prdigo espao,eu fui o espectador de tua formosuradurante um longo dia.Nos despedimos ao anoitecere em gradual solidoao voltar pela rua cujos rostos ainda te conhecem,escureceu minha ventura, pensandoque de to nobre profuso de memrias
perdurariam escassamente uma ou duaspara ser decoro da almana imortalidade de sua andana.
7/23/2019 Jorge Luis Borges - Fervor de Buenos Aires rev
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ENTARDECERES
A clara multido de um poenteexaltou a rua,a rua aberta como um vasto sonho
para qualquer acaso.O lmpido arvoredoperde o ltimo pssaro, o ouro ltimo.A mo esfarrapada de um mendigoagrava a tristeza da tarde.O silncio que habita os espelhosforou seu crcere.A escureza o sangue
das coisas feridas.No incerto ocasoa tarde mutiladafoi umas pobres cores.
7/23/2019 Jorge Luis Borges - Fervor de Buenos Aires rev
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CAMPOS ENTARDECIDOS
O poente de p como um Arcanjotiranizou o caminho.
A solido povoada como um sonhose remansou ao redor do vilarejo.Os cincerros recolhem a tristezadispersa da tarde. A lua nova uma vozinha do cu. medida que vai anoitecendovolta a ser campo o vilarejo.O poente que no se cicatriza
ainda lhe di a tarde.As trmulas cores se resguardamnas entranhas das coisas.No dormitrio vazioa noite fechar os espelhos.
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DESPEDIDA
Entre meu amor e eu ho de levantar-setrezentas noites como trezentas paredese o mar ser magia entre ns.
No haver seno recordaes. tardes merecidas pela pena,noites esperanadas de olhar-te,campos de meu caminho,firmamento que estou vendo e perdendo...Definitiva como um mrmoreentristecer tua ausncia outras tardes.
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LINHAS QUE POSSO TERESCRITO E PERDIDO POR
VOLTA DE 1922. . .
Silenciosas batalhas do ocasoem arrabaldes ltimos,sempre antigas derrotas de uma guerra no cu,albas ruinosas que nos chegamdo fundo deserto do espaocomo do fundo do tempo,negros jardins da chuva, uma esfinge de um livroque eu tinha medo de abrire cuja imagem volta nos sonhos,a corrupo e o eco que seremos,a lua sobre o mrmore,rvores que se elevam e perduramcomo divindades tranqilas,a mtua noite e a esperada tarde,Walt Whitman, cujo nome o universo,a espada valorosa de um reino silencioso leito de um rio,
os saxes, os rabes e os godosque, sem o saber, me engendraram,sou eu essas coisas e as outrasou so chaves secretas e rduas lgebrasdo que no saberemos nunca?
7/23/2019 Jorge Luis Borges - Fervor de Buenos Aires rev
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NOTAS
RUA DESCONHECIDA. inexata a notcia dos primeiros versos. DeQuincey (Writings, terceiro volume, pgina 293) anota que, segundo anomenclatura judaica, a penumbra da aurora tem o nome de penumbra dapomba; a do entardecer, do corvo.
O TRUCO. Nesta pgina de duvidoso valor assoma pela primeira vez umaidia que sempre me inquietou. Sua declarao mais cabal est em "Sentir-seen muerte" ( El Idioma de los Argentinos, 1928) e em Nueva refutacin deltiempo (Otras Inquisiciones,1952).Seu erro, j denunciado por Parmnides e Zeno de Elia, postular que otempo est feito de instantes individuais, que possvel separ-los uns dosoutros, assim como o espao de pontos.
ROSAS. Ao escrever este poema, eu no ignorava que um av de meus avsera antepassado de Rosas. O fato nada tem de singular, se considerar-mos aescassez da populao e o carter quase incestuoso de nossa histria.Por volta de 1922 ningum pressentia o revisionismo. Este passatempo consisteem "revisar" a histria argentina, no para indagar a verdade mas para chegar auma concluso de antemo resolvida: a justificativa de Rosas ou de qualqueroutro dspota disponvel. Continuo sendo, como se percebe, um selvagem
unitrio.
7/23/2019 Jorge Luis Borges - Fervor de Buenos Aires rev
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NDICE
FERVOR DE BUENOS AIRES (1923)Prlogo
A quem ler
As ruas
La Recoleta
O Sul
Rua desconhecida
A Praa San Martn
O trucoUm ptio
Inscrio sepulcral
A rosa
Bairro reconquistado
Sala vazia
Rosas
Final de ano
AougueArrabalde
Remorso por qualquer morte
Jardim
Inscrio em qualquer sepulcro
A volta
Afterglow
Amanhecer
BenaresAusncia
Singeleza
Caminhada
A noite de So Joo
Cercanias
Sbados
Trofu
EntardeceresCampos entardecidos
Despedida
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Linhas que posso ter escrito e
perdido por volta de 1922.. .
Notas
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