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Jogos de Linguagem

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Essay on the philosophy of communication's concept of language games, as presented by Ludwig Wittgenstein and John Searle

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JOGOS DE LINGUAGEM

Ensaio em torno de conceitos de Searle e Wittgenstein

Artur Alves, 2003Ciências da Comunicação Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa

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ÍNDICE

1. Introdução ..................................................................................................3

2. Definição e delimitação do conceito .........................................................4

3. Searle, Wittgenstein e o background .........................................................7

4. Considerações finais ..................................................................................9

5. Bibliografia ...............................................................................................11

Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Partilha nos termos da mesma Licença 2.5 Portugal. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/pt/ ou envie uma carta para Creative Commons, 171 Second Street, Suite 300, San Francisco, California 94105, USA.

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1. INTRODUÇÃO

O conceito de jogo de linguagem, introduzido por Wittgenstein, mostra-se essencial

para uma filosofia da linguagem, bem como para uma filosofia da comunicação.

Sobre ele assentam, aliás, uma série de concepções centrais para toda o conjunto de formu-

lações elaboradas em torno das perspectivas pragmáticas da comunicação. Linguistas deve-

dores de Wittgenstein, como Austin, Searle e Grice, situam-se nesta linha - cada um deles

construindo uma formulação própria do conceito de jogo de linguagem - apresentam uma

interpretação desta noção exposta por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas. Assim, esta

ideia está presente no conceito de acto de linguagem, ou speech act.

O pano de fundo destas ideias é constituído pela ideia que a linguagem é um acto, uma

acção, em que estão envolvidas dimensões comportamentais, psicológicas e mentais, tanto

conscientes como inconscientes. Assim, afirmar o jogo de linguagem é negar a deficiência de

teorias como a de Russel e Quine (e também, embora de modo diferente, do Wittgenstein

do Tractatus Logico-Philosophicus), baseadas em concepções semânticas, em que a lingua-

gem é tomada como reflexo do valor de verdade do mundo e, assim, privilegiam a função

descritiva da imagem. A alternativa é reflectir sobre o valor performativo da linguagem, i.e.,

sobre a dimensão ilocutória que subjaz a grande parte da comunicação linguística. A função

constativa da linguagem tem, assim, pouco interesse para uma teoria comunicacional, face à

relevância da interacção e transacção de sentido intencionais presentes nos actos de lingua-

gem.

Neste curto ensaio, serão desenvolvidas duas questões. A primeira diz respeito à defini-

ção e delimitação do conceito de jogo de linguagem, na concepção de Ludwig Wittgenstein

exposta ao longo das Investigações Filosóficas. Aqui, é de particular importância a noção de

regra ou norma de uso, como “indicadores” que instituem o uso e aprendizagem da lingua-

gem.

A segunda parte será dedicada à exploração das noções de forma de vida e background,

nas formulações do filósofo austríaco e de John Searle, sendo particularmente relevante para

tal estudo a abordagem das interdependências e interacção na construção de uma comuni-

dade linguística.

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2. DEFINIÇÃO E DELIMITAÇÃO DO CONCEITO

O método através do qual Wittgenstein chega à ideia de jogo de linguagem é extre-

mamente interessante. O seu famoso exemplo de uma linguagem usada por dois

pedreiros (A e B) constituída apenas por nomes (simultaneamente usados como ordens), é

usado em toda a primeira parte das Investigações Filosóficas. Prosseguir no estudo da lingua-

gem através de exemplos é, aliás, tido como um dos métodos didácticos preferenciais. As-

sim, desde o início do livro, Ludwig Wittgenstein toma de Santo Agostinho a ideia de que a

linguagem se aprende ao longo da vida, embora não exclusivamente de modo ostensivo. Há,

contudo, certos aspectos da citação da §1 das Investigações1 que são de extrema importância

para a definição dos jogos de linguagem, ainda que se possam relacionar também com uma

teoria da aprendizagem linguística e comunicacional.

Na concepção de Santo Agostinho, tal como para o Wittgenstein do Tractatus Logico-

Philosophicus, a linguagem tem um valor maioritariamente denotativo, ou proposicional,

repousando sobretudo nessa relação entre as palavras e os objectos designados, que permite

o uso de uma didáctica ostensiva. Ou seja, apenas por existir tal relação é possível apontar

para algo e dar-lhe um nome - «Isto (em frente à ponta do meu dedo) é (aquilo que se designa

como) um copo». Pode dizer-se que este é um modo simultaneamente verbal e não-verbal

de aprendizagem de uma língua. Contudo, nada nos diz acerca da construção do significado:

apenas nos indica um uso possível para uma palavra. Afinal de contas, o que é o significado,

senão o uso? É o próprio W. quem o afirma, na §43: «Para uma grande classe de casos - em-

bora não para todos - do emprego da palavra “sentido” pode dar-se a seguinte explicação: o

sentido de uma palavra é o seu uso na linguagem»2. Ou seja, não é necessário procurar uma

explicação para o significado das palavras que não passe pela sua aplicação pragmática numa

determinada forma de vida.

Mas voltemos ao exemplo de ostensão; este é já, por si mesmo, um jogo de linguagem,

cujo sucesso pedagógico depende da compreensão de um conjunto de mecanismos, i.e., de

regras. São regras que definem o uso - passível de compreensão, ou seja, o uso correcto - de

uma palavra, conjunto de palavras, ou de uma língua natural completa, cada qual com seu

grau de complexidade. O que significa que, de algum modo, o jogo de linguagem de ostensão

ou nomeação é apenas um jogo de correspondências, e não explica como é possível com-

preender a própria ostensão (o apontar e designar). De facto, tal perspectiva parece assumir

uma espécie de gramática prévia, imanente, à maneira de N. Chomsky.

1 Wittgenstein, 2002:171-173.2 Op. cit., pg. 189.

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Compreender o significado de uma palavra e aprender uma linguagem parece, assim,

depender de mais do que uma relação de correspondência. A função das palavras não é so-

mente designar. Tudo o que elas são, tudo aquilo para que elas servem está contido nos usos

que são convencionados, que são atribuídos pelos falantes de uma linguagem: a linguagem é

um instrumento com funções extremamente diversificadas. O uso é também aprendizagem.

Dizer que a palavra “copo” designa este objecto à minha frente não descreve o uso. Este

pode ser melhor apreendido com uma exploração gramatical (expressão também usada por

Wittgenstein), uma enumeração dos usos possíveis da palavra, ou das situações em que tal

palavra pode, hipoteticamente, ser usada. Como refere o autor, o facto de uma palavra poder

ser usada com tantos sentidos, em tão diversas situações, confunde-nos quanto ao significado

e aplicação que podem ter. É importante ter em conta que as palavras que parecem possuir

apenas um sentido complexo podem ter mais do que um uso possível. Saber quais são esses

usos é conhecer o sentido das palavras.

Portanto, possuir melhor “treino” no uso das palavras, maior conhecimento dos jogos de

linguagem, é ter um melhor conhecimento da linguagem. A aquisição destes conhecimentos

pode ocorrer das mais diversas formas - desde a ostensão, o exemplo, a repetição, até as len-

galengas e melopeias, ditados e canções da infância e das culturas orais. O conceito de jogo

de linguagem pode referir-se a todos eles, a linguagens primitivas, ou mesmo até a linguagens

completas.

A pura memorização parece ter um papel extremamente importante: é a partir dela que

a criança vai aprendendo os sons, olhando para os objectos presentes e ausentes, até que,

por fim, poderá compreender o conteúdo, o uso de cada uma das palavras. De certo modo,

a repetição é uma forma de compreensão: o uso mecânico é um prenúncio de um uso com-

preensivo, com sentido. Para Wittgenstein, toda a linguagem é constituída e aprendida atra-

vés deste tipo de jogos de linguagem; ou melhor: o uso da linguagem e a sua aprendizagem

quotidiana dependem do desenrolar contínuo das capacidades de uso. Se a competência de

uso da linguagem é comum ao género humano, a performance é construída pelo indivíduo,

ao longo da vida. Esta é, aliás, uma problemática bem explorada pela Linguística e filosofia

da comunicação, mas que não pode ser, para bem da necessária brevidade, abordada neste

curto ensaio.

O facto de a linguagem poder ser usada sem o domínio dos conceitos envolvidos torna

os jogos de linguagem bastante semelhantes aos jogos clássicos: é necessário seguir regras de

comportamento bem definidas, para que o uso seja reconhecido como legítimo e adequado.

Quando se aprende xadrez, por exemplo, as regras vão sendo aprendidas com o uso das pri-

meiras partidas. Ao longo do tempo, todavia, o jogo torna-se mais fácil e fluido, deixando de

ser necessário prestar atenção às regras individuais - passa a haver mais “uso” espontâneo e

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menos cumprimento auto-consciente das regras. E assim, é possível um conjunto virtualmente

infinito de movimentos, de variações e de partidas, reunidas, como é dito por Wittgenstein,

numa «actividade ou forma de vida»3.

As regras, por seu lado, são convencionais. Têm de ser apreendidas, por assim dizer, tal

como são, sem discussão. Nos jogos de linguagem, as regras de uso são expostas e “embebi-

das” na própria cultura - cada fragmento de linguagem responde a um propósito específico.

Talvez isso explique a dificuldade em entender o processo de aquisição de uma linguagem e

a possibilidade de criação e manutenção de uma forma de vida.

3 Idem, pg. 204.

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3. SEARLE, WITTGENSTEIN E O BACKGROUND

Apesar de serem impostas como parte de um sistema comunicacional, as regras de

uso de jogos de linguagem, i.e., a forma de usar eficaz e compreensivelmente um

jogo de linguagem, evoluem. Transformam-se com as gerações, moldando a própria vitali-

dade da língua. Os jogos modificam-se com elas, aparecendo novas formas de uso, novos

conjuntos e famílias de jogos completamente distintos: ou seja, são criados sentidos. Aliás,

Wittgenstein relaciona as palavras “linguagem” e “inventar” no conceito de forma de vida,

enquanto entidade ou instituição - por assim dizer - na qual as regras são forjadas.

No livro Intencionalidade, John Searle apresenta uma possível explicação para o modo

como esses jogos de linguagem permeiam o indivíduo e a sociedade. Sendo a comunicação

uma necessidade de qualquer comunidade, pode ser tido como normal uma certa exigência

“plástica” das formas em que se verte. Não esqueçamos, também, o carácter histórico, mu-

tável, dos conteúdos. Contudo, subjacente a este conjunto de factores está um certo número

de crenças básicas, bastante rígidas, das quais não temos consciência. Estas crenças básicas

formam o background, elemento essencial para a construção de representações linguísticas

e comunicacionais.

Ora, a grande dificuldade que se nos coloca é justamente como delimitar conceptual-

mente esta noção. Se é fácil dizer que se trata de um conjunto de estados pré-intencionais,

não é possível dar um exemplo coerente, que não seja, ele próprio, uma representação

evocando um background prévio, etc. Esta mîse-en-abyme é também o grande problema de

regressão infinita de que Searle fala na página 191 e seguintes da sua obra.

Indo de encontro àquilo que já dissemos acerca da aprendizagem do jogo de xadrez,

podemos dizer que as regras do jogo são comparáveis ao background quando se tornam

absolutamente transparentes - quando a prática do jogo se afirma de modo total sobre o

cumprimento das regras. Ou seja, passa a haver apenas jogo. Mas de onde surgem as regras?

Segundo Searle, o «(...) background deriva, de facto, de toda a série de relações que cada ser

biológico- social tem com o mundo à sua volta»3. A hesitação em chamar-lhes representa-

ções do funcionamento do mundo pode dever-se a uma noção predominantemente “física”

de representação. Não obstante, ao contrário de uma representação clássica (um símbolo,

por exemplo), que se deixa sempre ver como medium, o background é a própria condição

de possibilidade de constituição da experiência. Aqui incluímos, naturalmente, a interacção

com outros seres humanos, que institui a comunidade enquanto tal.

Os jogos de linguagem instalam-se dentro dessa comunidade de partilha, sendo o back-groundessa espécie de estados, crenças, hábitos e práticas - pré-intencionais - que é comum

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ao conjunto de pessoas. É, para Wittgenstein (que usa a designação de “forma de vida”) o

fundo sobre o qual os jogos de linguagem são executados, partilhados e compreendidos. O

seu dinamismo subjaz ao dinamismo dos próprios jogos e respectivos usos. Se assim não

fosse, a comunicação intersubjectiva numa dada forma de vida teria uma função puramente

fática, em que os usos são estáticos.

A própria existência do background atesta de uma relação mais ou menos específica

com o Mundo, com a realidade. É, de certo ponto de vista, a própria condição da possibili-

dade do realismo: «Parece que eu nunca poderia mostrar ou provar que há um mundo real

independente das representações que tenho dele. Mas claro que nunca poderia mostrar

ou provar isso, dado que qualquer acto de mostrar ou provar isso, dado que qualquer acto

de mostrar ou provar pressupõe o Background, e o Background é a concretização do meu

comprometimento com o realismo»�. Perante a inacessibilidade do Mundo, são estes estados

não-intencionais que permitem falar da realidade, afirmando a necessidade de uma ade-

quação da linguagem com o Mundo. São também a pré-condição de estados intencionais,

essenciais para a comunicação.

A dificuldade de definição deve-se, como Searle nos recorda, ao uso de uma «linguagem

intencionalista» desadequada para falar de questões da ordem da pré-intencionalidade. Esta

limitação é, evidentemente, determinante: os jogos de linguagem que usamos são insuficien-

tes quando passamos para além da sua própria fronteira. Assim , a pragmática de Searle e

Wittgenstein depara-se com aquilo que, sendo essencial para a construção e partilha de uma

linguagem e experiência em comunidade, só muito dificilmente pode ser abordado.

Uma situação prática em que as diferenças de background poderia surgir em toda a sua

dimensão convencional e contingente seria a de interpretação ou tradução radical. Quine,

analisando o problema, chega à tese da indeterminação da tradução radical, afirma que a

ostensão não é suficiente para dar uma tradução exacta. Mas, mais do que isso, devemos

deixar de pensar numa correspondência um-para-um entre palavras de linguagens diferentes.

A verdade é que as Weltanschauungen e os mundos da vida das duas formas de vida são in-

comensuráveis, e o sentido imediato não é apreensível a partir de uma perspectiva exógena.

Assim, a interpretação e tradução - dir-se-ia que também a comunicação - dependem da par-

tilha pelos interlocutores de um conjunto de estados pré-comunicacionais. Até eles estarem

estabelecidos, a correcção do sentido de uma dada tradução é indeterminável.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Explorar todos os conceitos e questões levantadas, ainda que ao de leve, nes-

tas páginas seria, pura e simplesmente, o equivalente a procurar uma teoria da

comunicação e da linguagem, percorrendo caminhos já visitados por Habermas, Sear-

le e Wittgenstein. Por isso, sendo o nosso objectivo o de, modestamente, encontrar um

sentido para a noção de jogo de linguagem - ou seja, explorar o conceito de modo a Ter

uma ideia mais precisa daquilo que ele significa e implica. Assim, depois destas páginas,

é possível compreender a íntima relação entre os jogos de linguagem e a forma de vida

em que eles se integram e, de algum modo, ajudam a formar. Aliás, não podemos dei-

xar de considerar que o ideal de comunicação racional de Habermas - uma situação ide-

al de fala em que todos os interlocutores partilham um conjunto de regras ou critérios e

cujo objectivo último é o consenso - só seria verdadeiramente exequível dentro de uma

comunidade que partilha o mesmo background e um conjunto de jogos de linguagem.

No famoso exemplo do pedreiro e do servente, temos uma comunidade e um jogo de

linguagem extremamente restrito, que mostra como um número limitado de relações com

o Mundo (a construção, com os seus materiais, ordens, leis da Física, hierarquias, hábitos,

etc.) se reflecte no uso comunicacional da linguagem. Isto prova, sem dúvida, que a didác-

tica adoptada por Wittgenstein resulta: é um método que, ainda que não muito sistemático,

deixa entrever simultaneamente a complexidade dos fenómenos e os mitos explicativos que

os ofuscam. A compreensão linguística não é um processo mecânico, de correspondên-

cia clara e delimitada. Como o filósofo austríaco afirma, tem muito a ver com processos

não conscientes. Searle adopta esta mesma perspectiva, afirmando que o uso e aprendi-

zagem dos jogos de linguagem só faz sentido se um background for partilhado. Por isto,

não é possível uma linguagem privada, solipsista: no mínimo, são necessárias duas pesso-

as para que algo semelhante possa ter lugar. Consequentemente, isto permite-nos pensar

que, numa situação de tradução radical, a dificuldade reside tanto na apreensão (“absor-

ção” parece ser uma palavra mais adequada) de Weltanschauung e Lebenswelt que se-

jam estranhos - uma alteridade radical do sujeito com que nos confrontamos, como na

decifração e utilização adequada dos significados. Só então passamos a uma comunicação

“real”, que se dá no uso sem pensar (intencionalmente) nas regras que o tornam possível.

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5. BIBLIOGRAFIA

MURPHY, John P. (1992) – O Pragmatismo - de Peirce a Davidson (Or. Pragmatism, 1990), Trad. Jorge Costa, Lisboa, Edições Asa, 191 pp.;

SEARLE, John R., (1999) - Intencionalidade - um Ensaio de Filosofia da Mente (Or. Intentionality - an Essay in the Philosophy of Mind, 1983), Trad. Madalena Poole da Costa, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 346 pp.;

WITTGENSTEIN, Ludwig (2002) - Investigações Filosóficas (Or. Philosophical Investigations, 1953), Trad. M. S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 450 pp.