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 FIDES REFORMATA 4/2 (1999) Os que Morrem na Infância: são todos salvos? Uma Avaliação Teológico-Confessional Reformada  João Alves dos Santos*  Introdução O futuro eterno dos que morrem na infância sempre foi motivo de preocupação para os pais, assim como de controvérsia para os teólogos. A preocupação dos pais se explica por razões afetivas e sentimentais, e a dos teólogos, pela escassez de informações bíblicas sobre o assunto. Um fato que impressiona, todavia, é a constatação de que um grande número de reconhecidos teólogos reformados que tratam do assunto, para não citar os de outras convicções, afastam-se da linha consistente e lógica que caracteriza o sistema de doutrina calvinista para enveredar, nesse ponto, pelos caminhos da especulação e de argumentos que são mais próprios da linha arminiana de pensamento. Teólogos como Charles Hodge, A.A. Hodge e J. Oliver Buswell, por exemplo, acreditam que todas as crianças que morrem na infância são salvas. 1 A própria Igreja Presbiteriana do Norte dos Estados Unidos, no início do século XX, anexou à Confissão de Fé de Westminster  uma declaração explicativa na qual, em referência ao capítulo X, seção 3 (que trata do modo de salvação dos eleitos que são incapazes de serem chamados pela vocação eficaz — a saber, os que morrem na infância e os mentalmente incapazes), afirma o seguinte: “... Em referência ao capítulo X, seção 3, da Confissão de Fé, não se deve pensar, por causa da linguagem ali empregada, que os que morrem na infância se percam. Cremos que todos esses estão incluídos na eleição da graça e são regenerados e salvos por Cristo, mediante o Espírito que opera quando, onde e como quer.” 2 Nosso propósito é examinar a questão à luz da Bíblia e do raciocínio lógico, que caracteriza o sistema reformado de doutrina, para verificarmos se é legítimo acreditar que todas as pessoas que morrem na infância são salvas. 3 I. A BASE BÍBLICA QUANTO À SALVAÇÃO DAS CRIANÇAS A Bíblia não distingue entre adultos e crianças quanto ao assunto da salvação. Se uns e outros são salvos, o são com base na mesma obra meritória e redentora de Cristo. Vejamos o que as Escrituras dizem sobre o assunto:  A. As crianças não são salvas por inocência, pois encontram-se todas debaixo do pecado e, portanto, estão condenadas e perdidas.  A Bíblia não reconhece a teoria pelagiana segundo a qual todos nascem na mesma condição de Adão antes da queda, isto é, sem pecado. Segundo essa teoria, as crianças não precisam da obra expiatória de Cristo, nem da regeneração do Espírito. Somente quando atingem a idade do raciocínio e praticam pecados conscientes (atuais), passam a ser pecadoras. Pelo contrário, as Escrituras ensinam que:  1. Todas as pessoas, sem exceção, são pecadoras e culpadas : “Todos se extraviaram e juntamente se corromperam: não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Sl 14.3); “... pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos,

João Alves

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Estudo que fala sobre a salvação de crianças, será que realmente as crianças já estão salvas.

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  • FIDES REFORMATA 4/2 (1999)

    Os que Morrem na Infncia: so todos salvos? Uma Avaliao Teolgico-Confessional Reformada

    Joo Alves dos Santos*

    Introduo

    O futuro eterno dos que morrem na infncia sempre foi motivo de preocupao para ospais, assim como de controvrsia para os telogos. A preocupao dos pais se explica porrazes afetivas e sentimentais, e a dos telogos, pela escassez de informaes bblicassobre o assunto.

    Um fato que impressiona, todavia, a constatao de que um grande nmero dereconhecidos telogos reformados que tratam do assunto, para no citar os de outrasconvices, afastam-se da linha consistente e lgica que caracteriza o sistema dedoutrina calvinista para enveredar, nesse ponto, pelos caminhos da especulao e deargumentos que so mais prprios da linha arminiana de pensamento. Telogos comoCharles Hodge, A.A. Hodge e J. Oliver Buswell, por exemplo, acreditam que todas ascrianas que morrem na infncia so salvas.1 A prpria Igreja Presbiteriana do Norte dosEstados Unidos, no incio do sculo XX, anexou Confisso de F de Westminster umadeclarao explicativa na qual, em referncia ao captulo X, seo 3 (que trata do modode salvao dos eleitos que so incapazes de serem chamados pela vocao eficaz asaber, os que morrem na infncia e os mentalmente incapazes), afirma o seguinte: ...Em referncia ao captulo X, seo 3, da Confisso de F, no se deve pensar, por causada linguagem ali empregada, que os que morrem na infncia se percam. Cremos quetodos esses esto includos na eleio da graa e so regenerados e salvos por Cristo,mediante o Esprito que opera quando, onde e como quer.2 Nosso propsito examinara questo luz da Bblia e do raciocnio lgico, que caracteriza o sistema reformado dedoutrina, para verificarmos se legtimo acreditar que todas as pessoas que morrem nainfncia so salvas.3

    I. A BASE BBLICA QUANTO SALVAO DAS CRIANAS

    A Bblia no distingue entre adultos e crianas quanto ao assunto da salvao. Se uns eoutros so salvos, o so com base na mesma obra meritria e redentora de Cristo.Vejamos o que as Escrituras dizem sobre o assunto:

    A. As crianas no so salvas por inocncia, pois encontram-se todas debaixo do pecadoe, portanto, esto condenadas e perdidas.

    A Bblia no reconhece a teoria pelagiana segundo a qual todos nascem na mesmacondio de Ado antes da queda, isto , sem pecado. Segundo essa teoria, as crianasno precisam da obra expiatria de Cristo, nem da regenerao do Esprito. Somentequando atingem a idade do raciocnio e praticam pecados conscientes (atuais), passam aser pecadoras. Pelo contrrio, as Escrituras ensinam que:

    1. Todas as pessoas, sem exceo, so pecadoras e culpadas: Todos seextraviaram e juntamente se corromperam: no h quem faa o bem, no h nem umsequer (Sl 14.3); ... pois j temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos,

  • esto debaixo do pecado; como est escrito: no h justo, nem sequer um... (Rm 3.9-10).

    2. Todas as pessoas j nascem em estado de pecado e, portanto, sob a ira econdenao de Deus. Eu nasci na iniqidade, e em pecado me concebeu minha me(Sl 52.5); Portanto, assim como por um s homem entrou o pecado no mundo, e pelopecado a morte, assim tambm a morte passou a todos os homens porque todospecaram (Rm 5.12); ... e ramos por natureza filhos da ira, como tambm os demais(Ef 2.3b). Todos pecaram em Ado por ser ele cabea e representante da raa humana. Aprimeira transgresso foi uma transgresso de todos ns, grandes e pequenos. H umasolidariedade inescapvel da raa humana, na questo do pecado. Trazemos desde aconcepo a culpa e a corrupo do pecado original. Esse pecado nos imputado nosomente porque descendemos de Ado, mas porque ele era o nosso representante noPacto das Obras. Quando Ado quebrou este pacto, ns todos o quebramos tambm.Ezekiel Hopkins, explicando o texto de Ezequiel 18.20, que afirma que a alma que pecar,essa morrer e que o filho no levar a iniqidade do pai, nem o pai a iniqidade dofilho, coloca a questo nos seguintes termos que to bem elucidam a nossaresponsabilidade pelo pecado original:

    Estas expresses no podem significar sofrimentos temporais, pois eu j tenhodemonstrado que Deus os pode infligir e de fato os inflige sobre os filhos, devido aopecado dos pais; mas significam punies futuras e morte eterna: que ningum perecereternamente pelos crimes de seu pai, mas to somente pelos seus prprios. Mas, dirvoc, como pode ser que estejamos sujeitos morte eterna pelo pecado de outro, se ofilho no levar a iniqidade de seu pai e somente a alma que pecar, essa morrer? Eurespondo: A verdade ainda esta, porque ns somos as almas que pecaram; ns, emAdo, nosso representante constitudo, em quem ns entramos em aliana com Deus eem quem ns quebramos aquela aliana. Portanto, Deus inflige a morte eterna sobre asua posteridade no como uma punio pelo pecado de Ado, mas pelo seu prprio, poiso pecado de Ado foi seu; embora no cometido pessoalmente por ela, foi legal ejudicialmente atribudo a ela.4

    Ao homem no assiste o direito de questionar a sabedoria ou a justia de Deus porconstituir Ado seu representante: Quem s tu, homem, para discutires com Deus?Porventura pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim? (Rm 9.20).De acordo com a lei desse pacto, a desobedincia de Ado desobedincia nossa e amorte em que Ado incorreu tambm a mesma em que todos incorremos. O mesmoEzekiel Hopkins, comentando citao de um terceiro, declara:

    Assim, os filhos de Ado no so culpados do pecado original apenas quando soconcebidos e nascem, mas na realidade pecaram originalmente no mesmo instante emque Ado de fato pecou por comer do fruto proibido, pois eles estavam em Ado comoseu representante e, por essa razo, sua transgresso foi tambm, legalmente, deles.5

    Entendo que isto que Davi quer dizer com as palavras Eu nasci na iniqidade, e empecado me concebeu minha me. Paulo faz o mesmo quando declara: ...pela ofensa deum, e por meio de um s, reinou a morte... e ... por uma s ofensa veio o juzo sobretodos os homens para condenao... (Rm 5.17, 18).

    Os que defendem a salvao de todos os que morrem na infncia argumentam, com baseem Romanos 5, especialmente o v. 18, que, assim como todas as crianas estocondenadas e mortas em Ado, da mesma forma todas esto salvas em Cristo, o segundo

  • Ado, pois as duas clusulas do v. 18 so extensivas a todos os homens. O texto diz:Pois assim como por uma s ofensa veio o juzo sobre todos os homens paracondenao, assim tambm por um s ato de justia veio a graa sobre todos os homenspara a justificao que d vida. Se todas as crianas esto includas no primeiro Ado,como seu representante, todas devem estar, igualmente, no segundo Ado. Se todas seperdem em Ado, todas se salvam em Cristo, argumentam.

    Mas ser que, luz da Bblia e, particularmente, do ensino de Paulo, essa relao deigualdade absoluta pode ser mantida? O texto no est falando s de crianas, mas detodas as pessoas da raa humana, indistintamente. Se a relao de igualdade absolutapuder ser provada, ento Paulo estar dizendo que todos os homens se salvam, pois eleafirma que por um s ato de justia veio a graa sobre todos os homens para ajustificao que d vida. No verso anterior, o de nmero 17, ele no estabelece esseparalelo de igualdade numrica, mas refere-se apenas queles que recebem aabundncia da graa e o dom da justia como os que reinaro em vida por meio de ums, a saber, Jesus Cristo. Nos versos 15 e 19 o apstolo no usa a expresso todos,mas muitos, para se referir aos que esto representados tanto em Ado como emCristo. Em 1 Co 15.22 Paulo diz que ... assim como em Ado todos morrem, assimtambm todos sero vivificados em Cristo. Se temos que entender o princpio deigualdade numrica em Rm 5.18, ento temos que igualmente entend-lo aqui. EstariaPaulo ensinando que todos os homens sero vivificados em Cristo, visto que todosmorrem em Ado? claro que nenhum telogo cristo conservador, para no dizerreformado, aceitaria essa equivalncia. Isto seria acreditar no universalismo da salvao.E por que, ento, teramos que concluir que o todos dos que esto representados emAdo igual ao todos dos que esto representados em Cristo? O nico paraleloestabelecido em Romanos 5, de forma absoluta, o da representao. Desta forma,Paulo est dizendo que todos os que esto representados em Ado (e luz de outrostextos, alm deste, isso inclui toda a raa humana) morreram com ele, e que todos osque esto representados em Cristo (s os eleitos, luz de diversos textos: Mt 1.21;20.28; 26.28; Jo 10.11,24-29; At 20.28; Ef 5.25-27; Rm 8.32-34; Hb 9.15) serojustificados nele. Textos como Rm 8.31-34 e 2 Co 5.14 e 15 claramente mostram, peloseu contexto, que quando a Bblia afirma que Cristo morreu por todos, refere-se apenasaos eleitos e a ningum mais, sejam crianas ou adultos.6

    Desta forma, acreditamos que o texto de Romanos 5 no ensina que todas as crianasesto, necessariamente, representadas em Cristo, o segundo Ado, como no esto todosos adultos, qualquer que seja a idade em que morram. Esto, sim, representadas emAdo, e por isso mesmo, mortas em delitos e pecados. A propenso para o pecado queelas demonstram desde cedo, e que at os pelagianos reconhecem, evidncia de suanatureza pecaminosa.

    B. No h outro meio de salvao a no ser atravs da obra expiatria de Cristo.

    Temos visto que s h dois representantes apresentados na Bblia: Ado e Cristo (Rm5.15ss.). Todos os que estavam representados em Ado caram com ele. Da mesmaforma, somente os que estiverem representados em Cristo vivero com ele. Ele ocabea da nova criao (1 Co 15.20ss.). Somente a justia de Cristo, constituda pelosmritos de sua obra (vida de obedincia perfeita e morte substitutiva) pode justificar opecador perante Deus. As crianas no tm justia prpria, como no a tm os adultos.Portanto, a salvao uma questo inteiramente de graa e no de justia para com oshomens: ...sendo justificados gratuitamente, por sua graa, mediante a redeno que hem Cristo Jesus (Rm 3.24). uma questo de justia para com Cristo, que a adquiriu

  • com sua obra. Em Atos 4.12 lemos que ...no h salvao em nenhum outro; porqueabaixo do cu no existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importaque sejamos salvos.

    C. A salvao aplicada atravs da obra regeneradora do Esprito, pela qual ele comunicaa f.

    A Bblia apresenta a salvao como sendo pela f. A f, porm, no uma capacidadehumana (obra humana), mas um dom de Deus: Porque pela graa sois salvos, mediantea f; e isto no vem de vs, dom de Deus; no de obras, para que ningum se glorie(Ef 2.8-9). A f parte do conjunto de dons decorrentes da salvao. Ela dada peloEsprito Santo no ato da regenerao, capacitando o homem a aceitar a oferta doevangelho. A Confisso de F de Westminster declara que ...na vocao o homem inteiramente passivo, at que, vivificado e renovado pelo Esprito Santo, fica habilitado acorresponder a ela e a receber a graa nela oferecida e comunicada (captulo X, seo2). Isto significa que antes que o homem possa crer ele precisa ser regenerado. Ele nocr para poder ser regenerado, mas regenerado para poder crer (Jo 6.37,44; Ef 2.5).De Ldia dito que o Senhor lhe abriu o corao para atender s coisas que Paulo dizia(At 16.14).

    De igual forma, na converso o arrependimento que acompanha a f dom de Deus. Osjudeus, ouvindo o testemunho de Pedro, glorificaram a Deus, dizendo: Logo, tambmaos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para vida (At 11.18). Paulo afirmaque a bondade de Deus que conduz o homem ao arrependimento (Rm 2.4) erecomenda a disciplina com mansido, na expectativa de que Deus conceda oarrependimento (2 Tm 2.25).

    O entendimento dessas verdades fundamental para se estabelecer o modo como ascrianas e os incapazes podem ser salvos, pois elas mostram que a regeneraoindepende da f e do arrependimento. Doutra forma, como poderiam ser salvos aquelesque no podem se arrepender e crer, em situaes normais? o que demonstraremos noitem E.

    D. A f, que fruto da obra regeneradora do Esprito Santo, comunicada aos que Deuselegeu desde a eternidade para serem salvos, e somente a esses.

    Deus chama eficazmente aqueles a quem elegeu, e somente a esses: E aos quepredestinou, a esses tambm chamou (Rm 8.30). Em Atos 13.48 lemos que os quecreram eram os que haviam sido destinados para a vida eterna. O decreto da eleio vemprimeiro e produz a f, pela chamada eficaz, que equivalente regenerao. Isto podeser visto em textos como 2 Ts 2.13,14; Jo 5.21; 15.16; Ef 2.5; Fp 2.13; Tg 1.18, etc. eest magnificamente sumariado nos termos da seo 1, do captulo X da Confisso de F:

    Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e s esses, ele servido, no tempo porele determinado e aceito, chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Esprito,tirando-os por Jesus Cristo daquele estado de pecado e morte em que esto pornatureza, e transpondo-os para a graa e salvao. Isto ele o faz, iluminando os seusentendimentos espiritualmente a fim de compreenderem as cousas de Deus para asalvao, tirando-lhes os seus coraes de pedra e dando-lhes coraes de carne,renovando as suas vontades e determinando-as pela sua onipotncia para aquilo que bom e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vm mui

  • livremente, sendo para isso dispostos pela sua graa.

    A f vem a ser, portanto, um dom decorrente do decreto soberano da eleio. Os eleitosso chamados pelo Esprito de Deus, atravs da pregao do Evangelho, e habilitados acrer: De sorte que a f pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus (Rm 10.17),7 ou Eassim, a f vem pela pregao e a pregao pela palavra de Cristo.8 evidente que tudoisso diz respeito somente aos adultos, queles que podem ser habilitados a crer. A grandenfase da Bblia repousa sobre o modo como Deus salva os adultos ou aqueles que,mesmo sendo ainda crianas, tm condies de ser chamados pela pregao doEvangelho. Mas como fica a situao daqueles que, por imaturidade ou incapacidademental, no so suscetveis de assim serem chamados e receberem o dom da f? o queveremos a seguir.

    E. A f s pode ser dada queles que tm condies de exerc-la.

    Sendo a f um dom que exercido pelo ser humano atravs de um ato consciente,segue-se que ela s pode ser dada queles eleitos que j atingiram a idade dodiscernimento (intelectual e moral), qualquer que seja essa idade. Alguns escolsticos eat mesmo telogos de nossa poca, interpretando mal a passagem de Marcos 16.16,defendem a doutrina de uma suposta f infantil, qual chamam de f presumida,f implcita, f sem conhecimento ou f infusa. O motivo dessa criao anmala asuposio de que a f em Cristo uma condio indispensvel para a salvao de todasas pessoas, inclusive das crianas.9 As Escrituras nada tm a dizer a respeito desse tipode f. evidente que o texto de Marcos 16.16 s pode referir-se a pessoas capazes dediscernimento, pois a f pressupe conhecimento e entendimento. Desde que as crianasno tm essa capacidade, a f no lhes pode ser atribuda.

    preciso estabelecer, todavia, que embora seja impossvel criana o exerccio da f,no lhe impossvel a regenerao, pois, como j vimos, esta independe daquela. Assimcomo a criana no precisa cometer o primeiro pecado consciente para ser pecadora, poissua natureza j pecaminosa sem o seu conhecimento consciente disto, assim tambm,no pela mesma razo mas de igual forma, ela no precisa exercer o seu primeiro ato dejustia (no prpria), crendo, para que tenha sua natureza transformada e seja salva. OEsprito que regenera age quando, onde e como quer (Jo 3.8). A Bblia fala de crianascheias do Esprito Santo antes mesmo de seu nascimento (Jr 1.5; Lc 1.41,44) e, por isso,presumivelmente regeneradas. A nica condio indispensvel, luz da Bblia, paraalgum ser regenerado (criana ou adulto), que seja eleito para a salvao e, portanto,esteja representado em Cristo na sua obra expiatria. Se a salvao dependesse, emtodos os casos, sem exceo, de ouvir, entender e aceitar o Evangelho, ento ningumque morresse na infncia e nenhum deficiente mental seria salvo. Todavia cremos quemuitos nessas condies o so, por estarem includos no soberano decreto da eleio. oque diz a Confisso de F:

    As crianas eleitas, que morrem na infncia, so regeneradas e salvas por Cristo, pormeio do Esprito que opera quando, onde e como lhe apraz. Do mesmo modo so salvastodas as outras pessoas eleitas, incapazes de serem exteriormente chamadas peloministrio da palavra.10

    Podemos concluir, ento, vista desses fatos, que a f no elemento essencial salvao das crianas e dos mentalmente incapazes. Todos os que forem regenerados nainfncia certamente iro exercer a f se chegarem idade ou ao domnio da razo, assimcomo vo praticar pecados conscientes tambm. A f, porm, ser apenas fruto da

  • regenerao, assim como esses pecados conscientes sero o resultado de uma naturezapecaminosa e no a causa da mesma.

    F. A salvao matria que depende nica e exclusivamente do soberano beneplcito deDeus.

    Se na regenerao o ser humano passivo, e at mesmo a f e o arrependimento sodons que ele recebe de Deus como resultado dessa obra nele operada, os quais podemnem existir no caso dos menores e dos incapazes, segue-se que a salvao matria tosomente da graa de Deus, que no est condicionada a qualquer fator humano. A idadeem que algum morre ou a sua condio mental no podem determinar a sua salvao. Oque determina esse fato estar o seu nome escrito no livro da vida (Fp 4.3; Ap 13.8;17.8; 20.15; 21.27). o que Paulo chama de propsito de Deus quanto eleio (Rm9.11). Segundo esse propsito, no depende de quem quer, ou de quem corre, mas deusar Deus a sua misericrdia (Rm 9.16).

    S os eleitos de Deus sero regenerados pelo Esprito e recebero os benefcios da obrade Cristo como seu representante e fiador no Pacto da Graa (2 Tm 2.19). Se foremregenerados na infncia e atingirem o domnio da razo (estado de conscincia) ou seforem chamados eficazmente na idade adulta, exercero a f. Se no atingirem esseestado, sero regenerados e salvos por Cristo, sem f, por meio da operao soberana doEsprito.

    II. TODOS OS QUE MORREM NA INFNCIA SO ELEITOS?

    A doutrina bblica ensina que a eleio eterna e, portanto, todos nascem como infanteseleitos ou no (Ef 1.4-4; 2 Ts 2.13; 2 Tm 1.9). A nica questo que pode ser levantada se todos os que morrem na infncia so necessariamente eleitos. Referimo-nos, naintroduo, ao fato de que muitos renomados telogos calvinistas acreditam que todos osque morrem antes da idade do discernimento so salvos, sejam filhos de crentes ou no,o que equivale a crer que todos os que morrem na infncia so eleitos. verdade que aBblia tem muito pouco a dizer diretamente sobre o assunto, mas em harmonia com osistema reformado de doutrina soteriolgica, comumente conhecido como os Cinco Pontosdo Calvinismo, dificilmente essa convico pode ser sustentada sem que um ou maisdesses pontos, logicamente ligados entre si, seja ferido.

    A. A questo considerada do ponto de vista da Confisso de F de Westminster.

    J citamos no captulo anterior o texto do captulo X, seo 3: As crianas eleitas, quemorrem na infncia, so regeneradas e salvas por Cristo... Esta expresso tem sidoentendida de dois modos diferentes.

    Aqueles que defendem a salvao de todos os que morrem na infncia entendem que aConfisso de F afirma serem eleitas todas as crianas nessa situao. Desta forma, aConfisso estaria ensinando que as crianas que morrem na infncia, por serem eleitas,so regeneradas e salvas por Cristo. Um exemplo desse entendimento visto nainterpretao de A.A. Hodge. Ele afirma:

    A expresso crianas eleitas precisa e adequada ao seu propsito. No pretendeinsinuar que haja algumas crianas no eleitas, mas simplesmente reala os fatos de que:(a) todas as crianas nascem debaixo da justa condenao; (b) nenhuma criana tem emsi qualquer direito salvao; (c) a salvao de cada criana, precisamente como a

  • salvao de cada adulto, deve ter sua base absoluta na soberana eleio divina. Issoseria to verdadeiro se todos os adultos fossem eleitos, quanto o agora que somentealguns adultos so eleitos. Portanto, no menos verdadeiro, j que temos boas razespara crer que todas as crianas so eleitas. A Confisso de F adere acuradamente, nesteponto, aos fatos revelados. indubitavelmente revelado que ningum, quer adulto quercriana, salvo exceto com base em uma eleio soberana; isto , toda a salvaodestinada raa humana por pura graa. No positivamente revelado que todas ascrianas so eleitas, seno que somos levados, por muitas razes, a nutrir fortemente afirme esperana de que esse seja o fato. A Confisso de F afirma o que indubitavelmente revelado, e deixa de lado aquilo sobre o que a revelao decidiu noinsistir, sem a sugesto de uma opinio positiva sobre um ou outro lado.11

    Surpreendentemente, essa foi a interpretao que prevaleceu desde o sculo passado nasigrejas presbiterianas dos Estados Unidos. Em 1813 os presbiterianos do ramo chamadoCumberland mudaram o texto da Confisso de F para dizer o seguinte: Todas ascrianas que morrem na infncia so regeneradas e salvas por Cristo.... Foi a primeiravez que esse texto da Confisso foi alterado. Em 1883, em outra reviso, a alterao foimantida.12 A Igreja Presbiteriana do sul, embora recusasse mudar este texto, mais deuma vez explicou que o sentido em que ele deveria ser entendido era o de que ningumque morresse na infncia se perdia13 e de que a Confisso de F, nesta seo, noensina a perdio de qualquer criana que morre na infncia, pelo fato de que o contrasteestabelecido nele no entre crianas eleitas e no eleitas que morrem na infncia, masentre pessoas eleitas que morrem na infncia e pessoas eleitas que no morrem nainfncia.14 Essa mesma interpretao foi novamente afirmada em 1902, acrescentandoque o texto apenas quer mostrar que os que morrem na infncia so salvos de um mododiferente dos adultos, que so capazes de ser chamados exteriormente pelo ministrio daPalavra. E acrescenta: Alm disso, estamos persuadidos de que as Escrituras Sagradas,quando devidamente interpretadas, garantem-nos amplamente a crena de que todos osque morrem na infncia esto includos na eleio da graa e so regenerados e salvospor Cristo, atravs do Esprito.15 Em 1903, a Igreja Presbiteriana do Norte acrescentou anota, j citada anteriormente, em que interpreta a Confisso de F no sentido de quetodos os que morrem na infncia so eleitos e salvos.16

    Os que acreditam que possvel haver crianas no eleitas que morrem na infncia,entendem que a expresso se refere tambm ao modo como as crianas que morrem nainfncia so salvas, mas limitando o nmero dessas crianas apenas s eleitas. Assim, aConfisso de F estaria ensinando que as crianas que morrem na infncia, se foremeleitas, so regeneradas e salvas por Cristo. como interpreta G. I. Williamson, quandoafirma: Esta parte da Confisso ensina: 1) que h alguns seres humanos que soincapazes de ser exteriormente chamados pelo ministrio da palavra, 2) que esses taispodem ser eleitos, e 3) que nesses casos o Esprito opera quando, onde e como quer.17 Aseguir declara, referindo-se ainda Confisso de Westminster:

    Ela apenas diz crianas eleitas, que morrem na infncia, sem especular quantas dessaspessoas, muitas ou poucas, possa haver. E o mesmo verdade com respeito a todas asoutras pessoas incapazes de ser exteriormente chamadas pelo ministrio da palavra.Pode-se supor que sejam muito poucas em nmero, ou muitas. O ponto importante que, desde que a Escritura no o diz, no podemos nem ousamos dizer tambm.18

    Entendemos que este ltimo o modo correto de interpretar o texto confessional, pelas

  • seguintes razes:

    1. Na lngua em que foi originalmente escrito, dificilmente o texto poderiaaceitar outra interpretao.

    A redao em ingls : Elect infants, dying in infancy, are regenerated and saved byChrist through the Spirit, who worketh when and where and how he pleaseth. So also areall other elect persons, who are incapable of being outwardly called by the ministry of theword.19 Uma comparao entre as duas tradues em portugus, a anterior20 e a atual,mostra que esta ltima bem mais clara e mais fiel ao original: As crianas eleitas quemorrem na infncia so regeneradas e salvas por Cristo, por meio do Esprito, que operaquando, onde e como quer. Do mesmo modo so salvas todas as outras pessoas eleitasincapazes de serem exteriormente chamadas pelo ministrio da palavra.

    Dificilmente o texto em ingls, assim como a sua melhor traduo em portugus, dariammargem a uma dupla interpretao. O adjetivo eleitas restringe a idia do sujeito edeixa aberta a possibilidade da existncia de crianas no eleitas. Que este oentendimento natural da expresso, para qualquer pessoa que a leia sem preconceitos,fica evidente pela prpria necessidade que diferentes ramos do presbiterianismosentiram, como vimos, de acrescentar nota explicativa sobre ela, pronunciar-se a seurespeito ou at mesmo de mudar o seu texto, para faz-lo dizer outra coisa.

    Na parte introdutria da Declarao Explicativa da Igreja do Norte, que traz a nota acimamencionada, existe a justificativa de que os dois pontos que compem a declarao sofeitos em virtude de haver um desejo de que a Igreja repudie certas inferncias tiradasda linguagem da Confisso de F e tambm se faa uma declarao formal quanto acertos aspectos da verdade revelada que parecem carecer, em nossos dias, de umaexposio mais explcita.21 Seguem ento as duas notas: a primeira virtualmentenegando a expiao limitada, a vocao eficaz (graa irresistvel) e a prpria eleio. E asegunda, afirmando que todas as crianas que morrem na infncia so eleitas e salvas.Percebe-se que a explicao foi dada para facilitar a entrada, na Igreja, de oficiais quetinham dificuldades de receber e adotar a Confisso de F nos termos claros e coerentesde seu sistema reformado de doutrina.22 O prprio fato de a Igreja protestar contracertas concluses que alguns tiravam da fraseologia da Confisso, como diz a sentenaque introduz a Declarao,23 testifica que aquele era o sentido natural que os telogos deWestminster quiseram dar ao texto, ou seja, o de limitar a afirmao apenas s crianaseleitas, deixando em aberto a outra questo em que a Bblia no clara.

    2. O sistema de doutrina da Confisso de Westminster dificilmente comportariaoutra interpretao.

    Seria inteiramente estranho ao esprito da Confisso declarar que todas as crianas quemorrem na infncia, assim como todas as outras pessoas incapazes de seremexteriormente chamadas, so eleitas. Em que base pode algum saber quem so oseleitos de Deus, sem que estes manifestem a f e correspondam chamada do Esprito?Com que autoridade poderiam os telogos de Westminster discriminar pessoas e declararque certas categorias delas so eleitas e sero salvas? Que outro sentido tencionaram dars expresses crianas eleitas, que morrem na infncia e todas as outras pessoaseleitas, incapazes de serem exteriormente chamadas seno o de que nessas categoriaspodem existir crianas e outras pessoas incapazes no eleitas?

    A Confisso de F no afirma categoricamente que h crianas no eleitas que morrem na

  • infncia. Mas tambm no afirma que todas as crianas que morrem na infncia soeleitas. Interpret-la assim ir alm do que afirma o seu texto. Coerentemente, elaafirma que s as crianas eleitas que morrem na infncia que so salvas. Ela no dizquantas so. Pelos seus termos podem ser poucas ou muitas, todas ou nenhuma. Ostelogos de Westminster mostraram equilbrio, coerncia e sabedoria. No foram alm darevelao. No ousaram declarar que todos os que morrem na infncia e todos osincapazes so eleitos e salvos. A prpria declarao explicativa da Igreja Americana nosparece incoerente, pois se, como afirma, o Esprito opera quando, onde e como quer, oque verdade bblica indisputvel, como podemos saber que ele opera em todos os quemorrem na infncia e em todos os incapazes mentais? Como pode o homem decidir emque classes de pessoas o Esprito opera a regenerao?

    B. A questo considerada do ponto de vista bblico.

    A Bblia bastante clara e categrica a respeito do modo de salvao dos adultoscapazes. Com referncia salvao dos que morrem na infncia e dos mentalmenteincapazes, j no encontramos a mesma riqueza de informao. No primeiro captulodeste trabalho procuramos estabelecer a base bblica para a salvao das pessoas,inclusive das crianas. Aquela foi uma discusso em tese, luz de todo o ensino bblico.Alguns textos, no obstante, so citados casuisticamente para justificar a crena de quetodas as crianas que morrem na infncia so eleitas e salvas. Trs deles so os maisimportantes e os mais usados em defesa dessa idia. Cumpre estud-los juntamente comos argumentos deles inferidos:

    1. A esperana de Davi de encontrar o seu filho nos cus

    (2 Sm 12.22-23).

    Estando enfermo o filho de Bate-Seba com Davi, este jejuava e chorava. Depois que omenino morreu, ao contrrio do que todos esperavam, Davi ficou confortado e disse,explicando o seu comportamento: Vivendo ainda a criana, jejuei e chorei, porque dizia:Quem sabe se o Senhor se compadecer de mim, e continuar viva a criana? Porm,agora que morta, por que jejuaria eu? Poderei eu faz-la voltar? Eu irei a ela, porm elano voltar para mim (vv. 22-23).

    Afirma-se que esse texto mostra, por inferncia, que as crianas que morrem na infnciaso salvas, pois Davi esperava reencontrar-se com seu filho e esse era o motivo de seuconsolo. Entendemos que h trs pontos que precisam ser provados antes que o textopossa ser usado para ensinar a salvao universal dos que morrem na infncia:

    a) O primeiro se, realmente, a expresso eu irei a ela significa um encontro no futuro,em algum lugar de bem-aventurana (cus). possvel interpretar assim as palavras deDavi, mas a expresso tambm usada para referir-se sepultura, ao final inevitvel detodos os mortais, ao estado dos mortos, do qual no h retorno. Clericus a parafraseia daseguinte forma: Eu irei ao morto, o morto no vir a mim.24 O mesmo verbo (halakh) usado nesse sentido por Davi em 1 Rs 2.2, quando dava instrues a Salomo, logo antesde sua morte. Eu vou pelo caminho de todos os mortais, disse ele. O verbo tambm usado neste sentido em Ec 9.10, na expresso ...porque no alm, para onde tu vais, noh obra, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma. O versculo 23 dotexto em questo, lido neste contexto (Porm, agora que morta, por que jejuaria eu?Poderei eu faz-la voltar? Eu irei a ela, porm ela no voltar para mim), argumenta emfavor da idia de que Davi estava falando da sua ida para o lugar de onde no h

  • retorno. A idia da morte de algum como reunio com o seu povo encontradatambm em Gn 25.8 e 49.33. Portanto, a interpretao de que o texto fala da esperanade Davi de encontrar o seu filho no cu possvel, mas, talvez, no a mais provvel.

    b) O segundo ponto se, realmente, o motivo de Davi cessar o seu jejum e a suaprostrao na presena do Senhor era por estar confortado com a esperana dereencontrar o seu filho nos cus. Dadas as circunstncias em que a criana foi gerada(fruto de uma relao pecaminosa) e o fato evidente de que Deus estava punindo aoprprio Davi atravs daquela enfermidade na criana (v. 14), mais provvel que eleestivesse, com sua atitude penitente, buscando aplacar a ira de Deus e ganhar o seufavor e perdo, mais do que simplesmente evitar a morte do filho. A preservao da vidada criana seria, ento, o sinal visvel do favor divino. Morta a criana, nada mais havia aser feito a no ser descansar na justia e na graa de Deus. Esta a interpretao de O.von Gerlach.25 A atitude de Davi, no compreendida pelos seus servos por ser maisespiritual do que afetiva, argumenta em favor desse ponto de vista. Essa atitude pode sertambm vista e melhor compreendida atravs da splica do Salmo 51.

    Assim, o conforto de Davi estaria muito mais na soluo dada por Deus ao problema doseu pecado do que propriamente na expectativa de reencontrar o seu filho, ainda queesta tambm pudesse estar presente em sua mente. Se o motivo do conforto estava naesperana do reencontro, por que no descansou desde o incio nessa esperana e naprovidncia de Deus, ao invs de afligir-se e penitenciar-se? Ao dizer: Vivendo ainda acriana, jejuei e chorei, porque dizia: Quem sabe se o Senhor se compadecer de mim econtinuar viva a criana (v. 22), Davi deixa entender que sabia que era por sua causaque a criana estava sendo atingida. Com o desfecho do caso, s lhe restava aceitar ajustia de Deus e descansar na sua misericrdia.

    c) O terceiro ponto a ser provado se a expectativa de Davi de reencontrar o seu filhonos cus, caso seja esta a melhor interpretao, pode justificar a crena na salvao detodas as crianas que morrem na infncia, sejam elas filhas do Pacto ou no. Duasverdades precisam ser ressaltadas aqui: 1) Ainda que seja legtimo aos pais crentesesperar que seus filhos, herdeiros da promessa e membros do Pacto (Gn 17.7; Sl 105.8-10; Ez 16.20-21; At 2.39; Gl 3.29), estejam includos no nmero dos eleitos (qualquerque seja a ocasio da sua morte), no h uma garantia explcita da parte de Deus de queisto certamente acontece. Se esta fosse a situao em todos os casos, teramos queacreditar que todos os filhos de crentes se salvam, independentemente da idade em quemorrem. A promessa no se restringe apenas aos que morrem na infncia.26 No caso deDavi, teramos registrada a sua expectativa, a sua esperana, mas no uma declaraoformal de Deus. 2) A expectativa de Davi, ainda que legtima, no serve de base para seextrair dela um princpio vlido para todas as crianas, indistintamente. A Bblia noestabelece, como fator determinante de eleio, a idade em que algum morre.

    2. A declarao de Jesus de que o Reino de Deus dos pequeninos

    Deixai vir a mim os pequeninos e no os embaraceis, porque dos tais o reino de Deus(Lc 18.16 e passagens paralelas).

    Esta a passagem mais citada em defesa da tese em questo. A afirmao de Jesusporque dos tais o reino de Deus entendida como uma prova definitiva de que todosos que morrem na infncia so eleitos e salvos, porque Jesus, supostamente, declarouque o Reino de Deus pertence a todas as crianas. Vejamos se essa posio pode ser

  • sustentada.

    Primeiramente, preciso considerar as circunstncias em que Jesus proferiu essaspalavras. Crianas estavam sendo trazidas para que ele as abenoasse, mas os discpulosrepreendiam os que as traziam. Diante disto, Jesus as recebe e faz essa preciosa econfortadora declarao. preciso notar que tais palavras so mais de repreenso do quede promessa. Elas foram dirigidas primariamente aos discpulos, que, por suas atitudes,davam a entender que o ministrio de Jesus s tinha a ver com adultos. ento que elese serve da oportunidade no apenas para declarar que crianas tambm participam doReino de Deus, mas que elas prprias so uma ilustrao de como se recebe esse Reino(v. 17).

    luz do ensino bblico, tudo o que pode ser depreendido das palavras de Jesus que noapenas adultos, mas crianas tambm participam, como eleitos, do Reino de Deus.Crianas tambm podem ser trazidas a Jesus e abenoadas e salvas por ele, e nosomente adultos.

    Porm, certamente Jesus no estava falando de todas as crianas e muito menosdaquelas que morrem na infncia. Isso pode ser demonstrado pelas seguintes razes:

    a) As palavras foram ditas para repreender os discpulos que, indevidamente, queriamimpedir as crianas de virem a Cristo, discriminando-as. O objetivo de Jesus no era,certamente, o de ensinar nessa hora uma doutrina sobre o nmero de crianas que sosalvas, mas mostrar aos discpulos que crianas tambm fazem parte do nmero dossalvos e, por conseguinte, podem receber a graa da salvao ainda na infncia.

    b) Se Jesus estivesse ensinando que todas as crianas so herdeiras do Reino de Deus,teramos de acreditar que algumas ou muitas delas, ao crescer, perdem essa herana eso excludas do Reino, pois nem todas as pessoas se salvam. Isto equivaleria a dizer quea salvao pode ser perdida, contrariando o ensino bblico da perseverana dos santos.

    c) No h nessa passagem, nem nos textos paralelos, a menor indicao de que Jesusestivesse se referindo a crianas que morrem na infncia. Pelo contrrio, referia-se acrianas vivas que estavam sendo trazidas a ele.

    d) A expresso dos tais no significa, necessariamente, que o Reino de Deus de todasas crianas, indistintamente, mas que de crianas tais como aquelas que Jesusabenoou. Esse o sentido do adjetivo pronominal demonstrativo ton toiouton, que,quando usado com o artigo, como aqui, significa desse tipo, tais como estas.27 Assim,aplicada ao texto, a expresso quer dizer crianas desse tipo ou crianas tais comoestas. Um outro exemplo desse uso encontrado em Marcos 9.36-37, onde se l queJesus trazendo uma criana, colocou-a no meio deles e, tomando-a nos braos, disse-lhes: Qualquer que receber uma criana, tal como esta, em meu nome, a mim merecebe... A expresso tal como esta a mesma usada em Lc 18.16 e nas passagensparalelas. Ela indica apenas que Jesus se referia a crianas como aquelas que eleabenoou, isto , da mesma categoria ou idade, e no universalmente a todas ascrianas, como um grupo solidrio e indivisvel.

    e) Calvino entendia que o fato de Jesus impor as mos e orar por aquelas crianas (Mt19.13; Mc 10.16), a pedido dos que as traziam, no era um gesto sem significado ouvazio. Segundo ele, Jesus no poderia apresentar as crianas solenemente a Deus sem

  • dar-lhes pureza. Desta forma, Jesus as abenoava para que pudessem ser recebidas nonmero dos filhos de Deus, do que se depreende que eram renovadas pelo Esprito para aesperana da salvao.28

    Desse entendimento de Calvino pode-se deduzir que somente aquelas crianas a quemJesus abenoou estavam sendo, naquele ato, apresentadas a Deus para serem contadasno nmero dos seus filhos. No se ensina, portanto, que todas as crianas estonecessariamente no Reino de Deus s por serem crianas ou enquanto o so, e muitomenos que o Reino lhes pertence necessariamente se morrerem na infncia.

    Tudo o que aqui se afirma que as crianas so to capazes de ser regeneradas como osadultos e, como estes, tambm so herdeiras do Reino de Deus, se forem eleitas. A idadeno faz diferena para a incluso no Reino.

    3. A afirmao de Jesus de que no da vontade de vosso Pai celeste queperea um s destes pequeninos (Mt 18.14).

    Por pequeninos muitos entendem tratar-se de criancinhas e de criancinhas apenas.Assim, a afirmao de Jesus seria uma prova de que todas as criancinhas que morrem nainfncia so eleitas e salvas, pois no da vontade de Deus que uma s delas se perca.Estudando-se o texto, porm, nota-se que essa concluso no pode ser tirada assim tofacilmente.

    No certo nem provvel que Jesus esteja falando apenas de criancinhas. O contexto usaconsistentemente a expresso pequeninos (ton mikron touton), a partir do v. 6, para sereferir aos seus (vv. 6, 10,14). Antes Jesus havia colocado uma criana (paidion) no meiodos discpulos para ensinar uma lio de humildade e dar ilustraes da converso (vv.2,3,4,5). No v. 6, tratando dos tropeos, ele qualifica esses pequeninos comopequeninos que crem em mim. Percebe-se que, ainda que se trate de crianas, no setrata de todas elas, nem de recm-nascidos, mas de crianas capazes de crer, que jatingiram a idade da razo, e de crianas que de fato crem em Jesus. Se forem crianas,so crianas em idade suficiente para tropear ou escandalizar-se.

    Nos versos 11-13 esses pequeninos so comparados a ovelhas, e nesse contexto daparbola da ovelha perdida que Jesus a concluiu dizendo: Assim, no da vontade devosso Pai celeste que perea um s destes pequeninos (v. 14). A palavra assim houtos, que significa deste modo, da mesma maneira. Com esse termo, Jesusidentifica os pequeninos com as ovelhas da parbola. Em Joo 10.14, ele diz: Eu sou obom pastor; conheo as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim.

    Do contexto, portanto, se conclui que os pequeninos aqui mencionados no socriancinhas incapazes de discernimento, nem criancinhas que morrem na infncia, mascrentes no Senhor Jesus, grandes ou pequenos, a quem ele chama de suas ovelhas. com respeito a esses que Jesus disse que no da vontade de vosso Pai celeste queperea um s destes pequeninos.

    C. A questo considerada do ponto de vista lgico-doutrinrio.

    Acreditando-se que todas as crianas que morrem na infncia so eleitas e salvas,seguem-se as seguintes implicaes:

  • 1. Nega-se a liberdade dos decretos de Deus. Deus no poderia decretar que a morte dealgum no eleito se desse antes que este atingisse a idade da razo. Isto equivaleria aatribuir a todo ser humano no eleito um perodo de existncia em que gozaria deimortalidade fsica. Certamente h algumas coisas que Deus, pela sua natureza, no podefazer, por envolver um princpio de contradio. Ele no pode pecar nem contradizer-se,pois isto contrrio sua natureza. Seria deixar de ser Deus. Qualquer decreto nestadireo seria inconcebvel. No a mesma coisa, porm, negar a Deus a liberdade dedecretar ou no o tempo da morte do no eleito. Seria restringir a sua vontade e aliberdade e incondicionalidade dos seus decretos. Que homem pode dizer o que Deuspode ou no decretar, sem que isto lhe seja revelado?

    2. Atribui-se ao homem, em ltima anlise, o poder de decidir sobre a eleio de qualquerpessoa at idade do discernimento. Se morrer na infncia garantia de salvao, entoaqueles que assassinam crianas asseguram-lhes a eleio e acabam por lhes prestar umgrande servio. Herodes teria sido um grande benfeitor ao mandar matar todas ascrianas de Belm, menores de dois anos, garantindo-lhes a salvao. E que dizer dasmes que abortam os seus filhos? No seria mais seguro confirmar o seu destino eternodesta forma do que correr o risco de deix-los nascer, crescer e vir eventualmente aperder-se? A considerao lgica e mostra quo absurda a crena na certeza desalvao de todos os que morrem na infncia.

    D. A questo considerada do ponto de vista de Calvino.

    Assim como em outros assuntos de controvrsia entre calvinistas, discute-se qual seria aposio de Calvino sobre essa questo. No comeo do sculo, mais precisamente em1909, a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (Igreja do Sul) comemorou o 400aniversrio do nascimento de Calvino publicando um livro de discursos em sua memria,apresentados perante a Assemblia Geral reunida em Savannah, na Gergia. Um dessesdiscursos, pronunciado pelo Rev. R.A. Webb, na poca professor do Seminrio Teolgicode Kentucky, tem como tema: A Doutrina de Calvino sobre a Salvao dasCrianas.29 Nesse discurso o autor pretende demonstrar, conforme a tendncia da poca,que Calvino nunca deixou entender em seus escritos que crianas podem morrer e noser salvas. Sua tese baseia-se nos seguintes pontos:

    1. Calvino certamente ensinou a doutrina da predestinao e com ela classificou toda ahumanidade como eleitos e reprovados.

    2. Ele igualmente ensinou que a predestinao determina o destino eterno dos sereshumanos e que ningum pode escapar quilo que est fixado pelo decreto divino.

    3. Ele tambm ensinou que a predestinao eterna, isto , anterior ao nascimento dequalquer pessoa e, conseqentemente, todas as crianas nascem ou como crianaseleitas ou no eleitas.

    4. No caso das crianas eleitas que morrem na infncia, Calvino ensinou duas coisas: a) ofato da sua salvao e b) o modo de sua salvao, atravs de uma prvia regeneraopelo Senhor.

    5. No caso das crianas no eleitas, ele nunca ensinou que qualquer delas morreria nainfncia.30

    O referido autor faz uma distino entre condenao e punio para explicar seu ponto de

  • vista sobre as convices de Calvino. Condenao, para ele, o pronunciamento dasentena, e punio a sua execuo. Entre a imposio da sentena e a sua execuopode intervir um perodo de tempo longo ou breve. Dessa forma, segundo ele, Calvinoensina que todas as crianas no eleitas so condenadas com base em seu pecadooriginal, isto , j receberam uma sentena de condenao, mas no ensina que aquelasentena tenha sido jamais executada ao no eleito enquanto criana. So condenadasquando crianas, mas executadas somente quando pessoas adultas. So condenadas combase no pecado original ou admico, mas realmente perecem apenas com base no pecadoatual ou pessoal, afirma esse autor.31

    O argumento usado por R. A. Webb para interpretar Calvino dessa forma a nfasedada pelo grande telogo ao fato de que os rprobos produzem32 ou causam a suaprpria destruio.33 Realmente essa nfase encontrada em Calvino, como se depreendedo prprio ttulo do Livro III, captulo 24, das Institutas.

    Mas ser correta a interpretao que esse autor faz da posio de Calvino? Concordamosintegralmente com os quatro primeiros itens que compem a sua anlise, pois eles sobem evidentes nos escritos do esclarecido telogo. Quanto idia de que Calvinoensinasse que Deus s pune algum com base no pecado atual e, por conseguinte, quecrianas no eleitas no morrem na infncia at que causem a sua prpria destruio,no nos parece sustentvel, pelas seguintes razes:

    a) A distino entre condenao e punio, embora seja tecnicamente correta, no pareceser feita por Calvino com o objetivo desejado pelo autor. No certo que Calvinoacreditasse que, embora condenadas pelo pecado original, as crianas s pudessem serpunidas ou s o fossem depois que se tornassem culpadas do pecado atual. As prpriascitaes de Calvino que Webb pretende explicar em seu discurso deixam evidente queaquela distino no pode ser feita, como veremos mais adiante.

    b) Na nfase que Calvino d ao fato de que os rprobos causam a sua prpria destruiono est presente a idia de que Deus no pode punir ningum apenas com base nopecado original. Alis, essa nfase no to grande assim. Ela s est destacada nottulo do captulo 24 do livro III,34 pois na discusso do assunto, ela est contrabalanadacom o soberano e imutvel decreto de Deus pelo qual os mpios so destinados para adestruio, para mostrar a sua glria. Ele declara:

    Assim como Deus, pela operao eficaz de sua chamada, conduz os eleitos salvao aque por seu eterno decreto (plano) os tem predestinado, assim tambm ele dispe seusjuzos contra os rprobos, pelos quais executa seu plano com relao a estes. Que dizer,ento, daqueles que ele criou para desonra em vida e destruio na morte, a fim de quese tornem os instrumentos de sua ira e exemplos de sua severidade? Para que atinjam oseu fim, ele algumas vezes os priva da capacidade de ouvir a sua palavra, e em outrasvezes os cega e os endurece mais com a prpria pregao dela (Institutas 3.24.12).35

    Respondendo pergunta por que Deus concede graa sobre uns e pretere outros, eleexplica:

    Quanto aos primeiros, Lucas d a razo: porque eles foram ordenados para a vida (At13.48). Quanto aos outros, que podemos pensar a no ser que so vasos de ira paradesonra (Rm 9.21-22)? Portanto, no nos envergonhemos de dizer com Agostinho:

  • Deus poderia, diz ele, mudar a vontade dos homens maus para o bem porque todo-poderoso. bvio que poderia. E por que no o faz? Porque ele no quer. Porque ele noquer questo que repousa com ele (Institutas 3.24.13).36

    Outra declarao que demonstra que Calvino no est dando nfase neste captulo aopecado atual como condicionante para a punio ou execuo de algum a seguinte:Portanto, o supremo Juiz d lugar sua predestinao quando deixa em cegueiraaqueles que ele j uma vez condenou e privou de participao na sua luz (Institutas3.24.12).37 E ainda, tratando do endurecimento do corao, prossegue:

    O fato de que os rprobos no obedecem Palavra de Deus quando lhes pregada serde modo justo atribudo maldade e depravao de seus coraes, desde que seacrescente ao mesmo tempo que eles tm sido entregues a esta depravao porqueforam suscitados pelo justo, porm inescrutvel, juzo de Deus para mostrar a sua glriamediante a sua prpria condenao (Institutas 3.24.14).38

    Muito mais poderia ser citado de Calvino contra a suposta crena de que coloca o pecadoconsciente do no eleito como condio para Deus puni-lo. As citaes apresentadasmostram que o reformador acreditava que o pecado consciente pode no ser a causa dapunio, nem mesmo a sua oportunidade, mas o seu resultado. porque o homem reprovado, preterido, no eleito, que Deus o abandona cegueira e sua prpriadestruio. O pecado consciente, em muitos casos, vem a ser conseqncia dareprovao e parte do prprio juzo, devido culpa original. Sendo assim, ele no podeser condio indispensvel para a punio.

    c) evidente que, no contexto em que Calvino afirma que os rprobos causam a suaprpria destruio, ele est se referindo apenas aos adultos ou queles que j atingiram aidade da razo. Estes, certamente, constituem a grande maioria dos no salvos. Calvinotrata, naquele captulo, da regra, no da exceo da norma geral e no de um casoespecfico, como o dos indivduos que morrem na infncia. Tomar essa afirmao e fazerdela um princpio geral e absoluto, como faz o autor referido, no apenas violar regrasde interpretao contextual, mas atentar contra todo o sistema calvinista de doutrina.Perguntamos: se Calvino acreditasse que Deus precisa esperar que a criana no eleitapratique o primeiro pecado pessoal para, efetivamente, poder puni-la, como ele resolveriao problema dos incapazes e imbecis que nunca vo praticar uma transgressoconsciente? Seriam todos eleitos por uma questo de incapacidade natural? Se Deus nopode punir uma criana apenas na base do pecado original, no pode punir igualmente oincapaz, e a eleio deixa de ser uma questo de graa, da parte de Deus. Por queCalvino nada diz sobre a impossibilidade de Deus punir os incapazes no eleitos namesma base em que, supostamente, ele no pode punir os infantes no eleitos? Aresposta bvia: Calvino no se refere a crianas nem a incapazes, quando afirma queos rprobos causam a sua prpria destruio.

    d) Embora no trate do assunto de maneira direta e tpica, pois apenas o aborda nadiscusso de temas mais controvertidos e prticos, como, por exemplo, o do batismoinfantil, mesmo assim podemos inferir dos ensinos de Calvino que ele no diferencia entrecondenao e punio, como elementos que limitem ou at determinem o propsito deDeus para com os que morrem na infncia. As seguintes declaraes, que Webb, semsucesso, ao nosso ver, tentou explicar, so claras demais para comportar outro ponto devista e falam por si ss:

    d1. Discorrendo sobre o modo como crianas so regeneradas, mesmo sem ter o

  • conhecimento do bem e do mal, ele declara:

    Respondemos que a obra de Deus, embora alm de nosso entendimento, no anulada.Porque perfeitamente claro que aquelas crianas que devem ser salvas (pois algumasso seguramente salvas desde aquela primeira idade) so previamente regeneradas peloSenhor (Institutas, 4.16.17).39

    d2. Escrevendo sobre a natureza do pecado original, afirma:

    E por essa razo, mesmo as crianas, enquanto trazem consigo sua condenao desde oventre materno, so culpadas no pela falta de outrem, mas pela sua prpria. Pois,embora os frutos de sua iniqidade ainda no tenham aparecido, elas tm a sementeencerrada dentro de si. Com efeito, toda a sua natureza uma semente de pecado; dapoder ser apenas odiosa e abominvel a Deus. Segue-se disso que corretamenteconsiderada pecado vista de Deus, pois sem culpa no haveria acusao (Institutas,2.1.8).40

    d3. Na sua controvrsia com Pighius sobre o pecado original, Calvino discorre:

    Se Pighius sustenta que o pecado original no suficiente para lanar na perdio oshomens, e que o conselho secreto de Deus no deve ser admitido, que far ele comcrianas e infantes que, antes que tenham alcanado uma idade em que possam produzirquaisquer espcimes de obras (boas ou ms) so arrebatadas desta vida? Quando ascondies de nascimento e morte eram iguais aos que morriam em Sodoma e emJerusalm, e no havia diferena nas suas obras, por que Cristo, no ltimo dia, comalguns sua direita, separar outros sua esquerda? Quem no adorar a maravilhosadeciso de Deus pela qual ocorre que alguns nascem em Jerusalm, de onde logo passampara uma vida melhor, enquanto Sodoma, a entrada para a regio inferior, recebe outrosem seu nascimento? Alm disso, de nenhum modo nego que Cristo concede o galardoda justia ao eleito, assim como o rprobo sofrer, ento, por sua impiedade e seuscrimes.41

    d4. Argumentando sobre o decreto da queda de Ado e de seus descendentes, declara:

    Novamente pergunto: Como que a queda de Ado envolveu irremediavelmente tantasnaes (povos) juntamente com seus filhos infantes na morte eterna, a menos que tenhasido esta a vontade de Deus? (Institutas, 3.23.7).42

    Cremos que essas citaes so suficientes para evidenciar o pensamento de Calvino.Todavia, entendemos que o argumento mais forte para se supor que ele no ousarialimitar a autoridade e o direito de Deus de punir pessoas no eleitas antes de cometeremo primeiro pecado consciente deve ser encontrado, no nas suas palavras, mas no seuprprio sistema doutrinrio. Seu conceito de pecado original exige aquela concluso. Seem nenhum lugar a Bblia afirma ou deixa entender qualquer limitao justia e aopoder de Deus de punir o no eleito apenas com base no pecado original, no temos odireito de supor que o prncipe dos exegetas pensasse dessa forma. De acordo com osistema por ele ensinado, se Deus condenasse todos, sem exceo, perdio eterna,ainda assim estaria no exerccio da sua justia.

    Cremos que o melhor resumo ou sumrio do sistema calvinista sobre o pecado original

  • encontra-se na Confisso de F. Nela lemos o seguinte:

    I) Nossos primeiros pais, seduzidos pela astcia e tentao de Satans, pecaram,comendo do fruto proibido... II) Por este pecado eles decaram da sua retido original eda comunho com Deus, e assim se tornaram mortos em pecado e inteiramentecorrompidos em todas as suas faculdades e partes do corpo e da alma. III) Sendo eles otronco de toda a humanidade, o delito dos seus pecados foi imputado a seus filhos; e amesma morte em pecado, bem como a sua natureza corrompida, foram transmitidas atoda a sua posteridade, que deles procede por gerao ordinria. IV) Desta corrupooriginal pela qual ficamos totalmente indispostos, adversos a todo o bem e inteiramenteinclinados a todo o mal, que procedem todas as transgresses atuais. V) Esta corrupoda natureza persiste, durante esta vida, naqueles que so regenerados; e, embora sejaela perdoada e mortificada por Cristo, todavia tanto ela, como os seus impulsos, so reale propriamente pecado. VI) Todo o pecado, tanto o original como o atual, sendotransgresso da justa lei de Deus e a ela contrrio, torna, pela sua prpria natureza,culpado o pecador e por essa culpa est ele sujeito ira de Deus e maldio da lei e,portanto, exposto morte, com todas as misrias espirituais, temporais e eternas.43

    Ser que nessa linguagem h lugar para se supor que Deus no pode punirimediatamente o rprobo com base apenas no pecado original? De acordo com aConfisso de Westminster, a corrupo da natureza no apenas leva ao pecado(consciente), mas ela prpria pecado. Precisa Deus esperar que a natureza corrompidado homem pratique um ato de pecado, quando ela j pecado em si? Calvino declarou amesma verdade na citao j mencionada e aqui repetida:

    E por essa razo, mesmo as crianas, enquanto trazem consigo sua condenao desde oventre materno, so culpadas no pela falta de outrem, mas pela sua prpria. Pois,embora os frutos de sua iniqidade ainda no tenham aparecido, elas tm a sementeencerrada dentro de si. Com efeito, toda a sua natureza uma semente de pecado; dapoder ser apenas odiosa e abominvel a Deus. Segue-se disso que corretamenteconsiderada pecado vista de Deus, pois sem culpa no haveria acusao (Institutas2.1.8).44

    E no tem Deus o direito de punir o pecado? Citamos novamente as palavras de EzekielHopkins:

    ...Deus inflige a morte eterna sobre a sua posteridade no como uma punio pelopecado de Ado, mas pelo seu prprio, pois o pecado de Ado foi seu; embora nocometido pessoalmente por ela, foi legal e judicialmente atribudo a ela.45

    Se crianas so salvas, e cremos que muitas certamente o so, no porque Deus nopode conden-las, caso morram antes do primeiro pecado consciente, mas porque fazemparte do livre e soberano decreto divino da eleio. No por causa de qualquer fator oumrito humano, mas to somente pela livre graa de Deus. Cremos que esta a posiode Calvino, mas, principalmente, que a posio da Bblia, e ele no costumava afastar-se dela.

    Concluso

    Concluindo, podemos sumariar nosso estudo nos seguintes pontos:

    a) As crianas que morrem na infncia, se forem eleitas, so regeneradas pelo Esprito

  • Santo sem o uso dos meios ordinrios, e salvas pelos mritos de Cristo.

    b) No podemos determinar quantas e quais so as crianas que so salvas nessasituao, pois esse conhecimento pertence exclusivamente a Deus.

    c) legtimo aos pais crentes, em virtude da promessa do Pacto (Gn 17.7), esperar queseus filhos mortos na infncia sejam salvos, sem que essa esperana, todavia, possa serassegurada como uma garantia infalvel da parte de Deus.

    d) Deus, na sua soberania e justia, no precisa esperar que os rprobos cheguem idade do discernimento e pratiquem o primeiro pecado atual para poder lan-los naperdio eterna.

    e) A salvao no depende do momento em que algum ceifado desta vida, nem dequalquer fator ou mrito humano, mas to somente do livre e soberano decreto eletivo deDeus.

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    * O autor ministro presbiteriano e tem os graus de mestrado em Divindade (1972) emestrado em Teologia (AT, 1974) pelo Faith Theological Seminary, em Filadlfia, e demestrado em Teologia (NT) pelo Seminrio Presbiteriano Rev. Jos Manoel da Conceio(1984). professor assistente de Novo Testamento no Centro Presbiteriano de Ps-Graduao Andrew Jumper e tambm leciona no Seminrio Presbiteriano Rev. JosManoel da Conceio, em So Paulo.

    1 Ver C. Hodge, Systematic Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1970), Vol. I, 26-27;A.A. Hodge, Confisso de F de Westminster, 1 ed. (So Paulo: Os Puritanos, 1999),239; J.O. Buswell, A Systematic Theology of. the Christian Religion (1972), Vol. II, 161-62.

    2 Confisso de F e Catecismo Maior da Igreja Presbiteriana, 7 ed. (So Paulo: CasaEditora Presbiteriana, 1980), 7. A citao foi, assim como outras, retirada das ediesmais recentes em portugus.

    3 Os que quiserem conhecer mais sobre a histria dessa doutrina podero encontrarum resumo no artigo de B.B. Warfield The Development of the Doctrine of InfantSalvation, em Studies in Theology (Grand Rapids: Baker, 1991), 411-444, e umtratamento mais longo sobre as vrias correntes de pensamento acerca do assunto dado por R.A. Webb em The Theology of Infant Salvation, reeditado por SprinklePublications, em 1981.

    4 Ezekiel Hopkins, The Works of. Ezekiel Hopkins (Filadlfia: Leighton Publications,1874), Vol. II, 176.

    5 Ibid., 177.

    6 Para uma discusso mais profunda deste assunto, ver o livro Por Quem CristoMorreu?, de John Owen, publicado por Publicaes Evanglicas Selecionadas, de SoPaulo.

  • 7 Ver Edio Revista e Corrigida.

    8 Ver Edio Revista e Atualizada..

    9 Ver verbete Infant Salvation, em Cyclopaedia of Biblical, Theological andEcclesiastical Literature, ed. J. MClintock e J. Strong (Nova York: Harper & Brothers,1883), Vol. IV, 578.

    10 Cap. X, Seo 3, edio de 1991, da Casa Editora Presbiteriana. Edies maisantigas tinham como texto o seguinte: As crianas que morrem na infncia, sendoeleitas, so regeneradas e por Cristo salvas, por meio do Esprito, que opera quando,onde e como quer. Do mesmo modo so salvas todas as outras pessoas incapazes deserem exteriormente chamadas pelo ministrio da palavra. O texto atual mais claro emais fiel ao original.

    11 A. A. Hodge, Confisso de F de Westminster, 230-240 (itlicos do autor).

    12 Ver R.A. Webb, The Theology of Infant Salvation (Harrisonburg: SprinklePublications, 1981), 306.

    13 Ver Atas da Assemblia Geral de 1900, p. 614, citadas por Webb, Theology of InfantSalvation, 307.

    14 Ver Atas da Assemblia Geral de 1901, p. 59, ibid.

    15 Ver Atas da Assemblia Geral de 1902, p. 265, ibid., 307-308.

    16 A nota diz Em referncia ao Captulo X, Seo 3, da Confisso de F, no se devepensar, por causa da linguagem ali empregada, que os que morrem na infncia sepercam. Cremos que todos esses esto includos na eleio da graa e so regenerados esalvos por Cristo, mediante o Esprito que opera quando, onde e como quer. O texto emingls ainda mais enftico, pois diz qualquer que morra na infncia e no os quemorrem na infncia. Ver The Constitution of the Presbyterian Church in the United Statesof America (Filadlfia: Board of Christian Education of the Presbyterian Church in theU.S.A., 1956), 90.

    17 G.I. Williamson, The Westminster Confession of Faith for Study Classes (Filadlfia:Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1964), 91.

    18 Ibid., 91-92.

    19 Westminster Confession of Faith (Lochcarron, Ross-shire: The PublicationsCommittee of Free Presbyterian Church of Scotland, 1976), 55.

    20 Ver nota 8.

    21 Ibid.

    22 Felizmente essa nota j foi retirada de nossa edio em portugus, pois no est de

  • acordo com o teor da Confisso.

    23 Confisso de F e Catecismo Maior da Igreja Presbiteriana, 7 edio (So Paulo:Casa Editora Presbiteriana, 1980), p. 7 da Introduo.

    24 Clericus, citado por C.F. Keil e F. Delitzsch em Commentary on the Old Testament(Grand Rapids: Eerdmans, 1973), Vol. 2 (2 volumes em 1), 393.

    25 O. von Gerlach, citado por C.F. Keil e F. Delitzsch, Commentary on the OldTestament, 393.

    26 O Art. XVII dos Cnones de Dort, referindo-se aos filhos de crentes que morrem nainfncia, afirma: Devemos julgar a respeito da vontade de Deus com base na suaPalavra. Ela testifica que os filhos de crentes so santos, no por natureza mas emvirtude da aliana da graa, na qual esto includos com seus pais. Por isso os pais quetemem a Deus no devem ter dvida da eleio e salvao de seus filhos, que Deuschama desta vida ainda na infncia (http://www.ipb.org.br/download/candort.doc). Aspromessas do Pacto, todavia, no se limitam aos filhos que morrem na infncia. Elasservem de conforto nesta situao, mas no se limitam apenas a ela.

    27 Ver A Greek-English Lexicon of. the New Testament, de W. Bauer, trads. e eds. W.F.Arndt e F.W Gingrich, (Chicago: The University of. Chicago Press, 1973), 828-29.

    28 Joo Calvino, Commentary on A Harmony of. the Evangelists, Matthew, Mark, andLuke, 1 ed. (Grand Rapids: Baker), Vol. II, 391.

    29 R.A. Webb, em Calvin Memorial Addresses (Richmond: Presbyterian Committee ofPublication, 1909), 107-126.

    30 Ibid., 110-11.

    31 Ibid., 111.

    32 O termo aqui usado no sentido de fazer por merecer, produzir por esforoprprio.

    33 Webb, em Calvin Memorial Addresses, 122-23.

    34 O ttulo, conforme a traduo de Waldyr Carvalho Luz : A eleio confirmadapela vocao de Deus, mas os rprobos para si engendram a justa perdio a que foramdestinados. As Institutas (So Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989), Vol. III, 427.

    35 Joo Calvino, Institutes of. the Christian Religion, ed. J.T. Mcneill, trad.. F.L. Battles(Filadlfia: Westminster Press, 1967), Vol. II, 978.

    36 Ibid., 979.

    37 Ibid.

  • 38 Ibid., 981

    39 Ibid., Vol. II, 1340.

    40 Ibid., Vol. I, 251.

    41 Joo Calvino, em De Aeterna Dei Predestinatione, Tomo VIII, citado por R.A. Webbem Calvin Memorial Adresses, 117-18.

    42 Joo Calvino, Institutes, Vol. II, 955. nesse lugar que Calvino pronuncia aexpresso que se tornou famosa, chamando o decreto da reprovao de terrveldecreto.

    43 Confisso de F de Westminster, Captulo VI.

    44 Joo Calvino, Institutes, Vol. I, 251.

    45 Ver nota 4.