DE HEIDEGGER A BAUDRILLARD:

De Heidegger a Baudrillard:

os paradoxos da tcnicaJuremir Machado da Silva/PUCRS

De Martin Heidegger a Jean Baudrillard, sem citar outros pensadores menos cotados na atual bolsa de valores do mercado intelectual globalizado, a tcnica tem sido vista como vontade de poder. Rastreada na longa noite epistemolgica da suspeita, raramente foi iluminada como vontade de potncia. A questo, porm, de envergadura. Definida como vontade de poder, a tcnica seria um dos principais sintomas da impotncia do homem em reger seu prprio destino. Tomada como vontade de potncia, implica a relativizao do dispositivo do poder como emblema flico (castrado) da razo.

Do poder potncia, a questo de tenso criadora. Scarlett Marton lembra que em Assim falou Zaratustra Nietzsche formulou o conceito de vontade de potncia (Marton, 1990, p.29). No caso, a especialista brasileira usa conscientemente o termo potncia. Nem todas as tradues nem todos os estudiosos de Nietzsche fazem a mesma escolha. Muitos recorrem expresso vontade de poder. Isso pode ocorrer em manuais para estudantes de primeiro e segundo graus: A vontade de poder o bem supremo da vida, devendo o homem superar-se e ao mundo, tornando-se um super-homem (Cretella Jnior, 1976, p.164).

O problema da terminologia no se resume, porm, fragilidade das obras de vulgarizao. H manuais precisos: A moral de senhores positiva, porque baseado no sim vida, e se configura sob o signo da plenitude, do acrscimo. Por isso essa moral est fundada na capacidade de criao, de inveno. E o resultado a alegria, conseqncia da afirmao da potncia (Aranha e Martins, 1986, p.309). Da mesma forma, Marton enfatiza que para Nietzsche vida e vontade de potncia se identificam (Marton, 1990, p.30).

Srgio Paulo Rouanet, no seu inflamado ensaio A Verdade e a iluso do ps-modernismo, incorre em vontade de poder. No texto, Rouanet tenta refutar as ms interpretaes recentes de uma srie de autores clssicos, entre os quais Nietzsche, vtima, no seu entender, da falta de rigor conceitual dos ps-modernos: A polissemia irritante quando se trata de definir um conceito (Rouanet, 1987, p.229). sempre curioso ver um filsofo do rigor atacar seus oponentes com adjetivos. Mas, de fato, a diversidade impede o conforto da unidade.

Essencial, entretanto, o perfil de Nietzsche traado por Rouanet: um crtico da modernidade esvaziada pela razo e pela moral (perspectiva tambm encontrada em Heidegger). O Nietzsche de Rouanet, porm, no passadista: A crtica da modernidade assume em Nietzsche a forma de uma Vernunfkritk devastadora a genealogia que desmascara o bem e o mal, o dever e a culpa, como simples mscaras da vontade de poder... (Rouanet, 1987, p.241). O diplomata faz da vontade de potncia um simulacro do poder.

Nietzsche, numa dessas suas passagens cruelmente francas, em Sobre o niilismo, apontara em outra direo: Foi a moral, portanto, que ensinou mais profundamente a odiar e desprezar aquilo que o trao caracterstico fundamental dos dominantes: sua vontade de potncia (Nietzsche, 1978, p.384). Claramente a vontade de potncia no se apresenta como criticvel. Menos ainda como instrumento de disfarce do poder. Para Nietzsche, a vida mesma vontade de potncia (Nietzsche, 1978, p.384). Ora, se assim, tudo seria mscara da vontade do poder. Logo, tal categoria no teria a menor pertinncia operativa.

No caso, o que vem a ser potncia? Em francs, de maneira geral, as tradues e os especialistas trabalham com volont de puissance, embora isso seja compreendido como vontade de poder. Segundo Jean-Michel Besnier, Nietzsche pensador da suspeita, revelador da infinidade da hermenutica, para quem a linguagem no diz exatamente o que diz (Nietzsche apud Besnier, 1993, p.354). Vtima do que denunciou, o jogo infinito das interpretaes, o filsofo da potncia v-se, com freqncia, transmutado em alicerce do poder.

Gianni Vattimo, um dos maiores experts contemporneos em Nietzsche e em Heidegger, evidentemente no se engana quanto ao significado do conceito, embora a traduo portuguesa no lhe seja fiel: Eterno retorno no quer dizer que no exista o tempo linear, mas que existe a circularidade do todo; e a vontade de poder [grifo meu] no significa que, na realidade, no existam valores, ordens, etc., mas que apenas existem foras (Vattimo, 1980, p.106). A potenza uma fora, uma torrente, um magma irrefrevel. O poder, um mecanismo de dominao. Vattimo salienta que, para Nietzsche, a arte funciona como atividade de desestruturao, ou seja, enquanto vontade de potncia (e no de poder). Potncia e desconstruo andam juntas.

A traduo brasileira do livro pstumo, organizado por Elisabeth, irm de Nietzsche, e Richard Oehler, primo do filsofo, mesmo Vontade de potncia (Nietzsche, 1945). Na Frana, onde o tema no menos ambguo, Michel Maffesoli tem sido um dos pensadores mais determinados no combate confuso semntica, responsvel por um mal-entendido conceitual extraordinrio, entre poder e potncia. Mesmo quando se escreve vontade de potncia, opera-se com vontade de poder.

Para Maffesoli, a potncia, subterrnea, cristaliza o jogo social de vontades e de interesses e determina o poder. Mais do que isso: Se as sociedades permanecem coesas, apesar das flutuaes do poder, graas potncia que as estrutura organicamente. Pguy dizia que tudo comea em mstica e termina em poltica. Na modernidade, a mstica degradou-se em poltica. Hoje, o que mantm a socialidade novamente mais a mstica do que a poltica. Ou seja, a potncia simblica que organiza o social a partir de um imaginrio cultural (Revista Famecos, n 10, 1999, p. 22).

Se poder significa uma relao, no algo que se detm, a cincia poltica nem sempre teoriza suficientemente a potncia. Mario Stoppino, em artigo para o Dicionrio de Poltica, dirigido por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, refere-se ao poder potencial, descrito como uma relao entre atitudes para agir (Stoppino in Bobbio, Matteucci e Pasquino, 1986, p.936). Entre conflito e negociao, o poder, em todas as suas formas, entre as quais a potencial, pe em funcionamento algum grau de interatividade. Entre poder e potncia no deveria existir confuso. O primeiro implica a submisso e o controle. A ltima, libertao e efervescncia. Se o poder calcula e ordena, a potncia deturpa e desvia. Em que situao se pe a tcnica?

A essncia da tcnica

Heidegger concebeu a tcnica como prolongamento da metafsica. Resultado do desencantamento da natureza, a genealogia da tcnica, no seu entender, compreenderia, de acordo com a terminologia de Jean-Michel Besnier e de inmeros heideggerianos, trs momentos: cartesiano, kantiano e nietzschiano. No primeiro, o homem pretende legitimamente dominar a natureza. Graas evoluo da cincia, tenta fazer com que o natural se torne um apndice do artificial, a cultura. Os fins do homem justificam o controle da natureza que o antecede e contm.

No momento kantiano, a associao entre tcnica, cincia e fins antropolgicos alcana o campo poltico. Trata-se, ento, de dominar a natureza em nome da emancipao e da autonomia da humanidade. Consolida-se o ideal do progresso, ancorado numa racionalidade orientada para a prtica e comprometida com o futuro das sociedades. Espera-se que os avanos tcnicos e cientficos favoream a construo da felicidade e culturas do Bem e do Verdadeiro. Passa-se da possibilidade cartesiana de manipulao progressiva da natureza ao imperativo categrico da transformao do natural (interveno da tcnica) em benefcio do cultural.

no momento nietzschiano, terceira etapa da aventura moderna, que se instauraria, de fato, o mundo da tcnica, com o projeto emancipacionista ou a vontade de emancipao cedendo lugar vontade de poder; os fins nobres da humanidade sendo substitudos por uma vontade incondicionada, voltada para si mesma. A hegemonia do mundo da tcnica consistiria numa vertigem circular da vontade de vontade: a dominao pela dominao, o controle pelo controle, a tcnica como uma finalidade em si mesma. Da o carter inumano e fatal do imaginrio tecnolgico (Besnier, 1993, pp.504-506).

Heidegger, salienta Besnier, nunca admitiu que o considerassem um adversrio da tcnica. Dizia jamais ter falado contra esta nem ter denunciado o seu carter demonaco. Afirmava querer somente compreender a essncia da tcnica. Da mesma forma, no responsabilizava o homem pela hegemonia da tcnica nem acreditava na eficcia das lamentaes contra o avano desta. Para ele, paradoxalmente, a tcnica , numa primeira leitura, incontrolvel. Logo, o homem nada pode fazer e est absolvido. Resta ver claro: O reino da Gestell significa isto: o homem sofre o controle, a demanda e a influncia de uma potncia que se manifesta na essncia da tcnica e que ele mesmo no domina. Conduzir-nos a ver isso: o pensamento no pretende nada alm disso (Heidegger apud Besnier, 1993, p.506).

A filosofia anti-humanista de Heidegger, nessa primeira percepo, absolve o homem ao declarar-lhe inexoravelmente prisioneiro. A vontade de potncia corresponde, no caso, ao poder da tcnica (do imaginrio tecnolgico como extenso incontornvel do homem) sobre o mundo. Por trs da neutralidade da busca da essncia, parece esconder-se uma aparncia por demais visvel: a transformao do criador em fantoche da criatura.

Na potica filosfica de Martin Heidegger, entretanto, o caminho um caminho do pensamento (Heidegger, 1980, p.9). Que caminhos faz o caminhante alemo? Que atalhos e desvios toma quando se ocupa da tcnica? Para ele, a tcnica no pode ser confundida com a essncia da tcnica. O pior que pode acontecer ao analista, explica, consiste em considerar a tcnica como neutra. Duas concepes parecem-lhe dignas de interpretao: a que toma a tcnica como meio de certos fins e a que a entende como atividade do homem. Ambas coincidem enquanto concepo instrumental (Heidegger, 1980, p.10).***

Se a tcnica instrumento, os homens gostariam de ser mestres da sua utilizao, orientando-a para fins espirituais. Desejo que aumentaria com o crescimento da ameaa de perda de controle sobre a tcnica. Heidegger sente-se, ento, obrigado a fundamentar alguns pontos. Por exemplo: de que derivam um meio e um fim? O meio determina um resultado. O que produz efeito (conseqncia), uma causa. Existem quatro causas: causa materialis (a matria com a qual se fabrica algo), causa formalis (a forma que molda a matria), causa finalis (a finalidade) e causa efficiens (aquela que produz o efeito), na qual se insere a noo instrumental (Heidegger, 1980, p.12).

A tcnica, portanto, remeteria a uma causa efficiens, responsvel pelo fazer-vir, pelo emergir de algo, pela produo. Esta implica a passagem do escondido ao revelado, do encoberto ao descoberto. Produzir desencantar, desvelar, revelar, descobrir. Para Heidegger a essncia da tcnica, como produzir, diz respeito a esse descobrimento, pois todo produzir baseia-se numa revelao: Assim, a tcnica no somente um meio: um modo de desvendar (Heidegger, 1980, p.18).

Heidegger quer saber o que se esconde por trs da noo instrumental. A tcnica moderna, associada cincia, obedece a um tipo particular de revelao, diferente da produo. Trata-se da provocao. Atravs desta, extrai-se da natureza uma energia. O moinho, esclarece Heidegger, oferecia suas ps ao sopro do vento e nada acumulava. J os minerais so arrancados do solo. O agricultor de antigamente confiava a semente s foras naturais sem provocar a terra. Mas a agricultura industrializada requer uma provocao, a utilizao mxima ao menor custo (Heidegger, 1980, p.21).

Mesmo que conteste as acusaes de nostalgia, Heidegger ope dois modos de relacionamento com a natureza e conclui categoricamente: A revelao que rege completamente a tcnica moderna caracteriza-se como uma interpelao (...), no sentido de uma provocao (Heidegger, 1980, p.22). Tal provocao, em Heidegger, significa o ato pelo qual se arranca da natureza uma energia escondida que altera o meio original. O homem o sujeito dessa interpelao. E aqui comea o problema central da questo da tcnica. Sujeito livre? Autnomo? Que sujeito?

Sujeito que provoca e provocado ao mesmo tempo. Interpelante interpelado. Assim, o homem nunca o mestre absoluto da sua obra de interpelao. Ao provocar a natureza, transforma-se com a transformao que opera. O desvendar pela tcnica ultrapassa a condio humana. Em que consiste, enfim, essa interpelao tcnica? Na submisso da natureza razo. Segundo Heiddeger, a tcnica controla, submete e inspeciona a natureza: Ao carter imperioso e conquistador da tcnica, opem-se a modicidade e a docilidade da coisa (Heidegger, 1980, p.26).

Na Era da Tcnica, a moderna, o grau de provocao, logo de submisso da natureza razo, pela tcnica, atinge o apogeu. Submeter a natureza representa, num primeiro momento, a vitria do homem sobre o meio. Se a tcnica pode ser vista como instrumento, a essncia da tcnica reside na submisso, no controle (poder) da natureza, sem que o homem possa escapar. Heidegger faz a ltima pergunta: que controlar, submeter razo? No nada de tcnico, nada de maqunico, mas um modo de desvendar, de revelao, que vai alm do ato humano.

Se a essncia da tcnica est no controle pela razo, Heidegger conclui, ento, que a tcnica no pode ser vista como fatalidade nem como um processo inevitvel que no se poderia modificar (Heidegger, 1980, p.34). Nem revolta contra um ente diablico nem deslumbramento, Heidegger reivindica um apelo libertador: compreender a essncia da tcnica, identificar o perigo existente na revelao racional que tudo reduz ao nvel de causa efficiens. O filsofo teme que a verdade mais profunda seja encoberta pelas revelaes superficiais da tcnica.

A ameaa que pesa sobre o homem no provm, em primeiro lugar, das mquinas e dos aparelhos da tcnica, cuja ao pode ser eventualmente mortal. A verdadeira ameaa j atingiu o homem no seu ser. O reino da submisso razo ameaa-nos com a possibilidade de que o homem seja impedido de voltar a uma revelao mais original e de ouvir assim o chamado de uma verdade mais fundamental (Heidegger, 1980, p.37).

Heidegger teme o excesso de luz tanto quanto Baudrillard denuncia a transparncia do mal. Trata-se de uma defesa do mistrio, do ainda no revelado, do no submetido. O tom messinico, religioso ou mesmo apocalptico da formulao relativiza-se quando o filsofo recorre ao poeta Hlderlin: Mas, onde est o perigo,/ cresce tambm o que salva (Hlderlin apud Heidegger, 1980, p.38). Se a essncia da tcnica no tcnica, melhor seria procur-la alhures, por exemplo, no da arte.

Heidegger, em seu ensaio sobre a tcnica, quis mostrar que tomar a tcnica como instrumento significa no compreender a sua essncia. Como, pois, localizar o que salva? Antes de tudo, percebendo o que na tcnica essencial, em vez de nos deixarmos fascinar pelas coisas da tcnica (Heidegger, 1980, p.44).

Sob o vu supostamente imparcial da eliminao de todo ponto de vista moral sobre o mundo, ao menos no campo do saber, no se abrigaria um prenncio de ressentimento, justamente no sentido nietzschiano do termo? Ou, com suas metforas telricas, estaria o pensador do ser e do tempo enfatizando as iluses do virtual, a impotncia da potncia em ato, canibalizada pelo poder da racionalidade instrumental e pragmtica?

Do ressentimento ironia

Gilles Deleuze teorizou o ressentimento em Nietzsche como o triunfo do fraco enquanto fraco, a revolta dos escravos e a sua vitria enquanto escravos (Deleuze, 1990, p.176). No ressentimento, abriga-se a impotncia, a incapacidade, mesmo sutilmente formulada, de aceitar a superao de um estado de coisas. A crtica, pautada pelo dever-ser, costuma atribuir aos fundamentos um privilgio da origem sobre a existncia.

Nada mais repugnante para Nietzsche do que o ressentimento do conhecimento contra a vida. Nietzsche censura freqentemente ao conhecimento a sua pretenso de se opor vida, de medir e julgar a vida, de se tomar a si mesmo como um fim (Deleuze, 1990, p.176). No Heidegger da questo da tcnica no est excluda a possibilidade do ressentimento do filsofo legislador contra a pujana do que , do que a est, do que se impe.

Tantos camelos carregam os fardos de Zaratustra que se poderia esquecer de escutar a voz da criana que habita o filsofo. Nietzsche concebe a vontade de potncia como mundo secreto da volpia, no qual cada ser deve empreender o grande vo da autonomia: Quereis um nome para esse mundo? Uma soluo para todos os seus enigmas? Uma luz tambm para vs, vs os mais escondidos, os mais fortes, os mais intrpidos, os mais da meia-noite? Esse mundo a vontade de potncia e nada alm disso! E tambm vs prprios sois essa vontade de potncia e nada alm disso! (Nietzsche, 1978, p.397).

Como Heidegger, Nietzsche repudia a transparncia total e admira os mistrios da escurido, do escondido, do que escapa revelao absoluta, mas, ao contrrio de Heidegger, no favorece a essncia em detrimento da existncia. Se a tcnica pe-se como problema para Heidegger, dilui-se em Nietzsche enquanto fenmeno contingente.

J o nietzschiano Jean Baudrillard, quando se trata de tcnica, parece muito prximo de Martin Heidegger. At mesmo na inteno de ruptura com os pontos de vistas morais (temtica nietzschiana por excelncia), o paroxista indiferente no se distanciaria do autor de Ser e Tempo. Ser mesmo? No so poucas as passagens de obras de Baudrillard que podem ser citadas para tentar comprovar tal hiptese. Em A Transparncia do mal o golpe quase mortal: A imagem do homem sentado, contemplando, num dia de greve, sua tela de televiso vazia, constituir no futuro uma das mais belas imagens da antropologia do sculo XX (Baudrillard, 1990, p.19).

O fragmento acima tem a vantagem de referir-se ao mundo tecnolgico da mdia. Ser que em tempos de Internet a previso continua vlida. Em se tratando de imaginrio da tcnica, Baudrillard pode ser mais custico. Basta ver a amarga ironia em Histria de clones o original e seu duplo: Recorrncia que o prprio contrrio do Eterno Retorno (do Mesmo) segundo Nietzsche. Este supe que as coisas sejam tomadas numa cadeia necessria e fatal, que as ultrapassa. Nada disso, hoje, onde elas so tomadas numa contigidade ao infinito e sem amanh (Baudrillard, 1999, p.173).

Ausncia de futuro, ruptura com o passado, presente vazio. Conseqncia de um mundo desvendado pela violncia da tcnica: O Eterno retorno hoje o do infinitamente pequeno, do fractal, a repetio obsessiva de uma escala microscpica e inumana. No se trata mais da exaltao da vontade nem da afirmao soberana de um acontecimento, de um devir, e sua consagrao por um signo imutvel, como queria Nietzsche a recorrncia viral dos microprocessos, inelutvel tambm, mas que nenhum signo potente torna sensvel imaginao (Baudrillard, 1999, p.173).

A verdade fundamental perde-se na aparncia da grande revelao. Entre Heidegger e Baudrillard, porm, existe um abismo sob forma de uma figura de linguagem: a ironia. Quando a crtica se torna um lamento, s resta apelar ao irnico. Exemplo: Estamos pura e simplesmente pelas vias paradoxais da cincia e do progresso, em benefcio da monotonia biolgica do reino anterior, da perpetuao de uma vida minimal e indiferenciada, da qual conservamos talvez a nostalgia anulando a maior revoluo no reino animado: a passagem da multiplicao indiferenciada, protozoria e bacterial, da imortalidade dos seres monocelulares, reproduo sexuada e morte imprescritvel de todo ser individual (Baudrillard, 1999, p.170).

Com Baudrillard, os momentos cartesiano, kantiano e nietzschiano da tcnica estariam superados. Chega-se ao momento chapliniano, minimalista, recorrente, oco, derrisrio, fatal. Nem poder nem potncia, Jean Baudrillard constata a metstase de um tecido que, fruto da inteligncia artificial, como gosta de dizer, no salva o homem de sua estupidez natural. Nas novas tecnologias da comunicao, Baudrillard no encontra a irredutibilidade ao valor de troca, caracterstica do valor radical. Sobra o simulacro da interatividade.

Heidegger, como Nietzsche, atribua arte uma potncia (embora no utilizasse o termo) capaz de desestruturar o poder da razo instrumental. Porm, no viu na tcnica, tal qual pde observ-la em seu tempo, o carter liberador que lhe conferido hoje. Baudrillard tampouco. Tero as novas tecnologias da comunicao conciliado Nietzsche e Heidegger atravs do discurso de Maffesoli? Este, de resto, costuma aplicar os versos de Hlderlin, citados por Heidegger, para afirmar a potncia do risco.

Se Heidegger tem razo, preciso evitar o esquecimento do Ser e retornar imediatamente ao Ser nas suas origens. Franco-atirador, Pierre Lvy pretende que, pela tcnica, no ciberespao, o homem est em plena reconciliao consigo mesmo e com a natureza. No universal sem totalidade, a interpelao j no seria uma provocao, mas novamente um fazer-vir, uma produo, uma interao, uma simbiose. A pgina do latim pagus remete, destaca Lvy, ao campo do campons. Surge um novo tempo, uma nova era, uma nova pgina. Homem e natureza venceriam o cartesianismo no momento virtual.

Virtualmente, no h mais separao entre os proprietrios e os outros. Todo mundo ter o seu campo e todos campos confluem. Eis aqui o paganismo generalizado at ao monotesmo, o universal sem totalidade (Lvy in Martins e Silva, 1999, p.215). A crer em Lvy, a tecnologia do ciberespao sinaliza o fim da vontade de poder e a vitria, sem ressentimento, da vontade de potncia. Todos se tornam criadores, super-homens do microscpico, disseminado em escala planetria, no oceano da Teia. O Ser volta ao fundamento.

A desconfiana ante a tcnica, segundo alguns estudiosos, reflete somente posturas simplificadoras. Jol de Rosnay v no avano tecnolgico atual um progresso espetacular da complexidade pela qual homem e natureza alcanam um novo patamar de negociao: O salto do milnio est apenas comeando. Compreender o universo imaterial e a emergncia da pessoa consiste numa dimenso profunda e significativa do informacional (Rosnay in Martins e Silva, 1999, p.218).

Se Maffesoli acerta, recuperando para Lvy, Rosnay e outros uma categoria filosfica essencial, a de potncia, Heidegger e Nietzsche so ultrapassados e confirmados ao mesmo tempo. Ultrapassados, respectivamente, no temor interpelao provocativa (poder) e no niilismo; confirmados, tambm pela ordem, na relativizao de um papel nefasto da tcnica e na fora da potncia como desconstruo, desvio, virulncia e criao. Nietzsche, num eterno retorno, corrigiria Heidegger. As novas tecnologias, com seus intelectuais orgnicos, dariam nova fundamentao ao par homem - natureza. O controle da razo converter-se-ia em negociao e em interao.

A potncia, conforme Michel Maffesoli, estrutura o social. Atravs dela, a energia coletiva, a fora imaginal do estar-junto busca uma via, fora de todos os caminhos balizados pelo racionalismo da modernidade, sempre mantendo a exigncia tica bsica de toda sociedade, aprender a viver, saindo de si, com o outro (Maffesoli, 1997, p.90). Internet, emblema da tcnica em seu apogeu ps-cartesiano, seria a prova do que diz o pensador do tribalismo urbano.

Restam as pedras no caminho. Jean Baudrillard, assim como tantos outros que no sero citados por falta de espao, atualiza outro Nietzsche e outro Heidegger, quem sabe os verdadeiros. Na impossibilidade decisria do discurso sobre o objeto, subsiste a gerao infinita de narrativas que cercam a coisa, iludidas com a sua docilidade, desconhecedoras, talvez, de uma resistncia passiva, nessa mesma docilidade, revelao. O prprio Baudrillard sabe que a massa, por exemplo, neutraliza a mensagem pela indiferena, no pela ao.

A essncia da tcnica s ser o controle pela razo enquanto a concepo de tcnica for instrumental (poder). Tomada como potncia, a essncia da tcnica transmuta-se em distoro, torrente, libertao. Pode a essncia variar? No existe sumo que no se altere com o tempo. Enquanto se multiplicam os discursos que roam a pele fria da tcnica, esta multiplica as prticas que esquentam a superfcie da Terra.

De Heidegger a Baudrillard, o principal paradoxo relativo tcnica consiste em falar sobre esta enquanto se deseja, em verdade, falar dela. O sobre, simulao de elipse, acabou por tornar-se um pretexto, nem sempre explcito, para assentar discursos que cercam mas no atingem o corao do objeto, embora no postulem outra coisa. A tcnica um instrumento que no se pode manusear; somente definir. Negativa e infinitamente.

Referncias bibliogrficas

ARANHA, Maria Lcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando, So Paulo, Moderna, 1986.

BAUDRILLARD, Jean. Tela total: mito-ironias sobre a era do virtual e da imagem, Porto Alegre, Sulina, 1999.

___ A Transparncia do mal: ensaio sobre os fenmenos extremos, Campinas, Papirus, 1990.

BESNIER, Jean-Michel. Histoire de la philosophie moderne et contemporaine, Paris, Grasset, 1993.

BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica, Braslia, Editora da Universidade de Braslia, 1986.

CRETELLA Jr., Jos. Novssima histria da filosofia, Rio de Janeiro, Forense-Universitria, 1976.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia, Porto, Rs, 1990.

HEIDEGGER, Martin. La Question de la Technique, in Essais et Confrences, Paris, Gallimard, 1980.MAFFESOLI, Michel, A Transfigurao do poltico: a tribalizao do mundo, Porto Alegre, Sulina, 1997.

___ Por uma poltica de transfigurao (entrevista), in Revista Famecos, n 10, 1999.

MARTINS, Francisco Menezes e SILVA, Juremir Machado (orgs.), Para navegar no sculo 21: tecnologias do imaginrio e cibercultura, Porto Alegre, Sulina/Edipucrs, 1999.

MARTON, Scarlett. Nietzsche: das foras csmicas aos valores humanos, So Paulo, Brasiliense, 1990.

NIETZSCHE, F. A Vontade de potncia, Porto Alegre, Globo, 1945.

____ Assim falou Zaratustra, So Paulo, Editora Abril (coleo Os Pensadores), 1978.

____ Sobre o niilismo e o eterno retorno, So Paulo, Editora Abril (coleo Os Pensadores), 1978.

ROUANET, Srgio Paulo. As Razes do Iluminismo, So Paulo, Companhia das Letras, 1987.

VATTIMO, Gianni. As Aventuras da diferena, Lisboa, Edies 70, 1980, traduo de Jos Eduardo Rodil.

*** As citaes de Heidegger foram traduzidas da traduo francesa de Essais et confrences livremente para este artigo.