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7/24/2019 Jessica Raquel Rodeguero Stefanuto
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Jssica Raquel Rodeguero Stefanuto
Fetichismo na Msica: do conceito adorniano reflexo sobre
(im)possibilidades formativas.
Araraquara
Programa de Ps-Graduao em Educao EscolarMestrado
UNESP
2014
7/24/2019 Jessica Raquel Rodeguero Stefanuto
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Jssica Raquel Rodeguero Stefanuto
Fetichismo na Msica: do conceito adorniano reflexo sobre
(im)possibilidades formativas.
Dissertao apresentada bancaexaminadora, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em EducaoEscolar, sob orientao do prof. Dr. AriFernando Maia.
Araraquara
Programa de Ps-Graduao em Educao Escolar
UNESP
2014
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RESUMO
O presente trabalho pretende discutir o conceito de fetichismo na msica de T.
W. Adorno considerando que ele pode auxiliar no desenvolvimento de uma educao
musical crtica e emancipatria. As principais referncias so suas obras de crtica
musical, mas se buscar tambm uma atualizao do pensamento do autor frente nova
configurao histrica atual. Para Adorno a crtica ao fetichismo na msica vai alm da
discusso acerca da Indstria Cultural, remetendo ao contexto sacrificial e ritualstico
presente no surgimento da msica e s caractersticas do processo de racionalizao e
desencantamento do mundo que, na modernidade, se refletem nela. Tal conceito
apresenta-se, na obra adorniana, em trs mbitos intimamente relacionados: o mbito da
msica sria e da esttica musical, incluindo as dimenses tcnica, da produo e da
execuo; o mbito social incluindo as funes e utilidades que os variados estilos
musicais vm assumindo ao longo do tempo, e o mbito subjetivo, incluindo uma
discusso sobre a relao que os ouvintes estabelecem com as mais variadas produes
musicais. A semiformao dominante no campo musical torna necessrio pensar a
educao em sua dupla dimenso, tanto adaptativa como crtica, mas ressaltando esta
ltima e os limites impostos pela indstria cultural musical para a formao.
Palavras chave: T. W. Adorno, filosofia da msica, fetichismo na msica, regresso da
audio, semiformao, educao musical.
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ABSTRACT
This thesis discusses T. W. Adornos concept of fetishism in music considering his
relevance to develop a critical and emancipatory musical education. The main
references are his works on musical criticism, but it also seek an update of the author'sthinking ahead to the new current historical setting. The Adornos critique of fetishism
in music goes beyond the discussion of Cultural Industry, it referring the sacrificial and
ritualistic context in the emergence of the music and the characteristics of
rationalization and disenchantment of the world that, in modernity, keep in the music.
This concept is articulated in Adorno's work in three related areas: the scope of serious
music and musical aesthetics, including technical dimensions, production and
execution; the social context including the functions and values that varied musical
styles have assumed over time, and the subjective sphere, including a discussion of the
relationship listeners have with the musical productions. The dominant semiformation
in the musical field makes it necessary to think about education in a dual dimension,
both adaptive as critical, but emphasizing the latter and the limits imposed by the music
industry for education
Key words: T. W. Adorno, philosophy of music, fetishism in music, regressive
listening, semiformation, music education.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo, aqui, especialmente:
Ao professor Dr. Ari Fernando Maia, o acolhimento e a orientao deste
trabalho, a pacincia, a dedicao, e agradeo tambm a crtica e a desconstruo que
foram essenciais para a construo deste texto.
Ao meu pai, Jos Antnio, todo amor e todo apoio.
minha me, Maria ngela, o amparo, o amor e a torcida.
Aos meus irmos, Mriam, Lucas e Andr, a presena mesmo distante, a
compreenso, as conversas, as risadas, a companhia, os telefonemas, as visitas.
Aos professores da Escola Municipal de Ensino Artstico de Itpolis: Eliandra,
Sandra, Adriana, Eud e, especialmente, Ana Maria Broderhausen, minha professora
de piano. Esse trabalho seria impensvel sem tudo que aprendi com vocs.
Mainara Barbieri, amiga que escapa do tempo e da distncia.
professora Dr Nilma Renildes da Silva agradeo a amizade, o incentivo e a
confiana.
Olvia, a companhia dedicada e paciente.
Aos amigos que enriqueceram o mestrado: Simone Cheroglu, Fernando Pizoni,
Bruno Vitti, Giuliana Sorbara, Elaine Scarlatto e especialmente, Juliana Duci, Juliana
Pimenta e Bruno Perozzi. Agradeo a companhia, as conversas, as piadas, os escritos, as
leituras, as discusses, o apoio, enfim, agradeo termos compartilhado momentos muito
ricos nessa aventura.
Aos colegas da FACOL que compartilharam cotidianamente as alegrias e
dificuldades da tarefa educativa.
Aos meus alunos, que me fazem professora e me instigam a pensar a Educao.
Ao professor Dr. Luis Antnio Calmon Nabuco Lastria agradeo a arguiocuidadosa deste trabalho ainda em fase de projeto.
Ao professor Dr. Sinsio Ferraz Bueno e professora Dr Monique Andries
Nogueira agradeo a presena e a significativa contribuio nas bancas do exame de
qualificao e da defesa.
Lidiane, que sempre fez mgica na secretaria de ps-graduao.
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Como se fora a brincadeira de roda
Memria!
Jogo do trabalho na dana das mos
Macias!
O suor dos corpos, na cano da vida
Histrias!
O suor da vida no calor de irmos
Magia!
Como um animal que sabe da floresta
Memria!
Redescobrir o sal que est na prpria pele
Macia!
Redescobrir o doce no lamber das lnguas
Macias!
Redescobrir o gosto e o sabor da festaMagia!
Luiz Gonzaga Jr.
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NDICE
Introduo................................................................................................................... p. 09
Captulo 1: Fetichismo, Msica e Emancipao......................................................... p.15
1.1 Msica e tcnica: dos primrdios do domnio da natureza racionalizaotipicamente ocidental....................................................................................................p.24
1.2 Msica e Linguagem: o espao para a dialtica.....................................................p.39
1.3 Msica emancipada: autonomia da dissonncia.................................................... p.42
Captulo 2: Fetichismo e Sociologia da Msica.......................................................... p.49
2.1 Msica e o fetichismo da mercadoria.................................................................... p.51
2.2 Fetichismo e Indstria Cultural............................................................................. p.57
2.3 Sobre funo social e finalidade das msicas populares ...................................... p.68
2.4 Teoria do ouvinte .................................................................................................. p.77
2.4.1. Construo social do gosto musical ........................................................ p.80
2.4.2. Ajustamento x fuga: semelhanas entre o ouvinte e o fascista ............... p.85
2.4.3. Tipos de comportamento do ouvinte e novas tecnologias ...................... p.89
Captulo 3: Fetichismo e formao cultural ............................................................. p.102
3.1Formao, semiformao e ressentimento ........................................................... p.104
3.2 Fetichismo e regresso da audio ..................................................................... p.112
3.3 (Im)possibilidades formativas ............................................................................ p.115
Consideraes finais ................................................................................................. p.121
Referncias ............................................................................................................... p.125
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Porque o estremecimento passou e, apesar de tudo, sobrevive, que as obras de arte o
objectivam como suas cpias.
T. W. Adorno, Teoria Esttica
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INTRODUO
A msica tem sua origem nas manifestaes coletivas, ritualsticas, de culto
sacrificial e, portanto, ela nasce vinculada ao mito, magia e aos ritos de oferenda aos
deuses em troca do apaziguamento dos homens. Isso implica que, desde a origem, eainda hoje, a msica repleta de fantasia e feitios, mas tambm de racionalidade que,
j nos primrdios, buscava o controle da natureza atravs da ordenao dos sons. Ao
mesmo tempo em que o desenvolvimento da racionalidade musical acompanha o
desenrolar da racionalidade extra musical, por sua linguagem intrinsecamente no-
conceitual, a organizao dos sons ainda se mantm como refgio para elementos de
fantasia que manifestam resistncia administrao desmedida, e expressa uma
contradio: simultaneamente esse encanto desejado e buscado por meio da msica e
temido, como expresso da conexo com a natureza a que o homem no pode retornar.
A flauta de P e o pnico correspondente ao seu som, no mito grego, apontam
o carter ambguo da experincia musical desde o seu incio, uma vez que ela ao mesmo
tempo manifesta aqueles instintos e desejos que foram reprimidos pela civilizao e
representa um meio para dirigi-los e racionaliz-los (ADORNO, 1938/1991). O
potencial da msica como refgio para aquilo que, expulso da cultura, fascina e
aterroriza os homens, permanece pela idiossincrasia de sua linguagem intrnseca. No
entanto, tambm permanece o potencial, que parece ser predominante na indstria
cultural, de a msica pregar uma falsa harmonia e uma falsa conciliao do homem com
a natureza, com o finito e com o assustador, atravs de um encantamento agradvel que
conforta e conforma.
Atualmente, notrio que estamos diante de um cenrio de crescente
preenchimento dos espaos e do tempo por msicas fetichizadasas msicas aparecem
corriqueiramente como um preenchimento de ambientes, tal como se elas fossem papis
de parede - e de um desenvolvimento tcnico que possibilita que os sujeitos encontrem
e possuam canes e queas carreguem consigo em aparelhos de execuo musical
que so utilizados nos mais variados ambientes e durante as mais variadas atividades.
Ainda que no contexto brasileiro ela no ocupe o centro de discusses acaloradas e bem
fundamentadas tal como ocupou no contexto em que viveu Theodor Adorno
(ALMEIDA, 2007), a msica um elemento bastante acessvel e presente no cotidiano
das pessoas. Apesar disso, no se percebe uma valorizao dos profissionais de ensino
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de msica1 ou investimento em estudos e no acesso a uma educao musical
especializada e crtica, como se o encantamento, a satisfao e a utilidade
proporcionadas por uma audio mediana das msicas favoritas fossem os elementos
mais importantes e a finalidade bvia de todo material musical e como se esse cenrio
no tivesse uma correspondncia com um cenrio social de conformismo e
dessensibilizao.
Na indstria cultural, os elementos encantatrios da msica se manifestam de
forma reprimida, administrada e irrefletida, o que motiva o desenvolvimento da presente
pesquisa que, por sua vez, focaliza as seguintes questes: afinal, o que faz com que a
msica seja capaz de encantar? Ser s uma artimanha da forma mercadoria para fazer-
se necessria e desejada? E decorrente disso: como o estudo sobre o encantamento que
as msicas potencialmente provocam pode contribuir para a reflexo acerca de uma
educao musical com vistas emancipao? Uma educao que vise o conhecimento
musical sem reflexo sobre os elementos de feitio da msica no seria, ela mesma, uma
educao fetichista? Para responder a essas perguntas, este trabalho se volta para o
conceito defetichismo na msica, discutido por T. W. Adorno em alguns momentos de
sua produo de crtica cultural e musical e busca refletir, a partir dele, sobre as
possibilidades formativas que encontramos num contexto de recusa formao.
O conceito em questo parece ser importante inclusive para compreender a
prpria crtica musical realizada pelo autor e pertinente estud-lo e debat-lo quando
se evidencia um crescente preenchimento dos ambientes j ruidosos por msicas de
sucesso sem qualquer qualidade artstica. O modo como a msica se presentifica no
contexto atual, sendo tantas vezes idolatrada, revela que a relao dos seres humanos
com a msica traz consigo algo de irracional, como se se tratasse de um feitio lanado
pelos sons e pelos aparatos tcnicos sobre um sujeito ouvinte que jaz encantado e
paralisado. Nesse caminho, pensar uma formao cultural a partir da discusso doconceito de fetichismo na msica fornece uma perspectiva crtica para alm dos
contedos musicais, pois traz tona elementos que remetem relao dos homens com
a natureza, com o desenvolvimento da racionalidade ocidental e com o medo, e implica
repensar o conformismo em prol de uma indignao com a situao vigente no mundo.
1 importante lembrar que, no Brasil, a profisso de educador musical no existe no Cdigo deProfisses do Ministrio do Trabalho. A educao musical tambm no consta como subrea das reas de
Artes ou de Educao, nas listas emitidas pelas agncias de fomento. Isso implica que, oficialmente, noexiste educao musical no Brasil. (FONTERRADA, M. T. de O. De tramas e fios: um ensaio sobremsica e educao. So Paulo: Unesp, 2003).
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A necessidade e relevncia de aprofundar e explanar os estudos adornianos na
rea da Sociologia e Filosofia da Msica se mostram na vinculao inevitvel da msica
com a crescente e irrefrevel racionalizao e tecnificao de nosso tempo, que elimina
da sociedade como um todo e de cada sujeito o que resta de imensurabilidade. Voltar-se
para os estudos acerca da msica fetichizada dedicar-se a um aspecto relevante e atual
da obra adorniana que j contm em si a esperana de uma formao cultural e de uma
msica que seja diferente da conformao que elas adquirem na sociedade radicalmente
tecnificada. Diante da irrefrevel regresso advinda do progresso irrefrevel, cabe a
realizao da crtica radical da sociedade e da prpria racionalizao como forma de
fazer jus ao pensamento racional e, nesse sentido, Adorno foi profcuo em realizar a
crtica radical da sociedade a partir da crtica imanente do material musical.
Num sentido amplo, Adorno, em vrios textos (1938/1991, 1941/1986,
1956/2008, 1958/2009, 1968/1986, 1970/2011, 1973/2011, 1978/1999), problematiza ao
menos trs aspectos do fetichismo na msica, a saber: o mbito estritamente musical, ou
composicional, acerca da tcnica intrnseca s obras, da produo e da execuo
musical; o mbito social, sobre as funes e utilidades que as msicas vm assumindo
ao longo do tempo; e o mbito subjetivo, sobre os modos como os sujeitos recebem e
percebem os sons. Cada um desses aspectos, mutuamente relacionados, ensejam
discusses que em alguma medida colaboram para se pensar e discutir sobre uma
formao cultural e musical que almeje a emancipao dos sujeitos.
Fundamentando-se, ento, nos trabalhos adornianos, o primeiro captulo deste
trabalho objetiva discutir as formas de fetichizao que se vinculam ao material musical
justamente pelo seu carter etreo e sua linguagem no conceitual. Essa perspectiva leva
em conta o fato de que a Histria das msicas deve ser pensada para alm do momento
em que a msica produzida na lgica da mercadoria j que se considera o
desenvolvimento do material musical para alm dos perodos comumente consideradosde caracterizao da msica ocidental tipicamente europeia, o que remete a crtica para
alm da configurao das msicas na indstria cultural. Compreender o fetiche que
envolve as msicas requer que o pensamento seja remetido aos primrdios, s primeiras
manifestaes musicais, ao contexto em que essas manifestaes provavelmente se
davam e ao carter sagrado que mediava a relao dos ouvintes com as msicas.
Alm disso, requer um olhar que vincule o desenvolvimento musical ao prprio
desenvolvimento da racionalidade e do processo civilizatrio, uma vez que, sendo asmsicas produes humanas e culturais, elas so necessariamente produtos sociais que
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trazem em si marcas de seu momento histrico e organizao social. Tendo isso em
vista, preciso problematizar que justamente o encanto, a magia, o rito, o culto, a
fantasia, o fetiche e a adorao que se fizeram presentes nos primrdios da Histria da
humanidade e da criao musical, vo sendo paulatinamente banidos e acusados de mito
ao longo do desenvolvimento da civilizao ocidental.
sabido que, num sentido freudiano, no se reprime algo sem que esse algo
retorne de algum outro modo. As tentativas de administrar e de expurgar os vestgios de
magia da msica que relembram aos homens uma relao com a natureza que no mais
existe, mas que ainda fascina e aterroriza, marcam o desenvolvimento da racionalidade
musical e a tornam fetichizada de outras maneiras, regressando para uma nova forma
daquilo que se pretendeu fugir. As possibilidades de emancipao do material musical
so pensadas a partir de composies que, ao contrrio de desejar banir qualquer
fetiche, encarem as possibilidades tcnicas, as contradies e as tarefas do momento
histrico, bem como a criatividade do artista, e se faam obras verdadeiramente
artsticas. Ainda no primeiro captulo, ento, discutem-se as formas de emancipao do
material musical dos tabus e supersties que se inculcaram nas estruturas de
organizao musical ao longo do processo de racionalizao tipicamente ocidental.
O segundo captulo objetiva discutir o conceito de fetichismo na msica
levando em considerao uma mediao da sociologia da msica, ou seja, considerando
as relaes entre as msicas e os ouvintes sendo esses necessariamente seres sociais e,
portanto, com um ouvido e uma percepo construdos histrica e socialmente.
necessrio considerar que existe uma dialtica entre as diferentes mediaes aqui
estudadas e que as separaes feitas tm carter didtico. Nesse caminho, discute-se
como as msicas passam a assumir as mais variadas funes para os ouvintes, as quais
se distanciam de qualquer preocupao com a verdade e com a lida com a contradio.
As msicas, ao contrrio de buscarem uma emancipao dos ouvintes, parecem seorganizar muito mais em favor da ideologia vigente, coadunando-se com os sistemas de
organizao de poder hegemnicos e encantando os ouvintes que so levados ao esforo
de uma obedincia resignada.
Nesse captulo tambm se discute o envolvimento das msicas com o fetiche
tpico das mercadorias. Com o que foi discutido at aqui, j parece ser claro que essa
forma de fetichizao do material musical no a nica, at porque h um considervel
tempo histrico antes da constituio de uma lgica mercadolgica que invadiu a tudo ea todos. A msica sequestrada pela indstria cultural passa a tambm carregar consigo o
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fetiche tpico das mercadorias, mas ainda assim, por sua linguagem no conceitual, as
msicas guardam possibilidades de resistncia que precisam ser levadas em
considerao quando se pensa seu papel formativo e seu carter emancipador. Ou seja,
mesmo quando envolta com o fetichismo das mercadorias, as msicas mantm certas
peculiaridades que precisam ser pensadas em favor das prprias msicas.
A discusso sobre uma psicologia social do ouvinte ganha lugar tambm no
segundo captulo, afinal, a tarefa de pensar a constituio da msica como um cimento
social encantatrio deve levar em conta a constituio do prprio ouvinte, de sua
personalidade, dos hbitos e tabus que so tpicos de determinados momentos
histricos. Uma aceitao da situao vigente tendo a cumplicidade de determinadas
msicas no pode ser compreendida sem que se envidem esforos no sentido de
compreender como ocorre essa aceitao fetichista nos prprios sujeitos. O fetichismo
na msica tem como contrapartida subjetiva uma regresso dos sentidos e a promoo
de uma relao cega e irrefletida com os bens da cultura que merece reflexo.
Nesse caminho, o terceiro captulo complementa essa discusso pensando a
funo formativa da msica e seu papel dentro de um contexto educativo que, tal como
compreende Adorno, deve mirar-se no imperativo categrico de que as condies que
permitiram Auschwitz no mais se repitam. Ora, se a cultura no emancipatria por si
s, j que altos nveis de apropriao e compreenso de bens culturais podem coexistir
com as mais crassas atrocidades, urgente e necessrio que se produzam discusses
acerca das (im)possibilidades emancipatrias da msica, essa produo cultural que
permeia quase que ubiquamente os ambientes cotidianos. Os conceitos de regresso da
audio e de semiformao so discutidos aqui no esforo de compreender as
contrapartidas subjetivas e tambm as formas fragmentadas e reificadas de se
estabelecer relao com os elementos da cultura.
A discusso acerca do fetichismo na msica traz elementos novos para sepensar a educao musical bem como para a construo de uma reflexo que possibilite
a elaborao de princpios educativos tendo em vista as possibilidades de resistncia, de
inadequao e de emancipao que a msica pode carregar consigo. preciso, portanto,
pensar a formao musical tanto positiva como negativamente, uma vez que parece que
encontramos problemas anteriores ao educar musicalmente. Comportamentos de recusa
e fria em relao formao cultural no podem ser menosprezados. Pensar as
possibilidades de formao de ouvintes conscientes, considerando a reflexo sobre asimpossibilidades formativas, , ento, a discusso que finaliza este trabalho.
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A dissonncia a verdade da harmonia.
T. W. Adorno, Teoria Esttica.
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Captulo 1
Fetichismo, Msica e Emancipao
Antes de iniciar a discusso acerca do fetichismo na msica, vlido pensar
etimologicamente a palavrafetiche. Um autor contemporneo, Christoph Trcke (2010),
remete obraDu culte des dieux fetiches (1760),de autoria de Charles De Brosses2para
explanar a palavrafetiche: a palavra fetiche vem do portugusfeitio: obra de magia.
Por trs est o latim factitius: feito artificialmente (p.199). Trcke faz esse
apontamento numa parte de seu texto dedicada mercadoria fetiche.
Vladimir Safatle, num texto que especificamente discute a questo do
fetichismo (2010), com foco maior para a perspectiva freudiana, tambm encontra em
De Brosses uma das primeiras caracterizaes sobre o tema:
Enunciado pela primeira vez em 1756 pelo escritor francs Charles deBrosses, membro da Acadmie ds Inscriptions et Belle-Lettres deParis e colaborador da Enciclopdia de Diderot e dAlambert, ofetichismo aparecia como pea maior de uma operao que visava aestabelecer os limites precisos entre nossas sociedade esclarecidas esociedades primitivas pretensamente vtimas de um sistema encantadode crenas supersticiosas (p.21).
Caracterizando sociedades primitivas, o termo fetiche j estava presente nas
reflexes dos sculos XVII e XVIII:
De fato, o termo nasce do impacto das Grandes Navegaes noimaginrio europeu. Vendo a maneira com que os objetos inanimadose animais eram compreendidos como dotados de foras sobrenaturaispor tribos africanas, os navegantes portugueses descreveram taisobjetos comofetissos (SAFATLE, 2010, p. 32).
Safatle (2010) pontua, ento que, para De Brosses, o termo fetissodiz respeito
a algo divino, coisa encantada devido sua pretensa derivao da ra iz latina fatum
(destino, orculo),fanum (lugar consagrado) efari (falar, dizer), deixando de lado a raiz
latina derivada de factio (modo de fazer), facticius (artificial, falso), que era a correta
(p.32).
2
De Brosses (1709 1777) era um escritor francs, membro da Acadmie ds Inscriptions et Belle-Lettres de Paris e colaborador da Enciclopdia de Diderot e dAlambert (SAFATLE, 2010).
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possvel perceber que o termo fetichismo remete inicialmente para a
atribuio de qualidades sobrenaturais a objetos que so fruto da ao dos prprios
homens. Tambm se refere inicialmente a caractersticas de povos ditos primitivos e
infantis. Bruno Latour (2002) quem, com uma provocativa ironia, discute a produo
de fetiches modernos e busca descrever, no contexto das Grandes Navegaes, como os
portugueses, cobertos de amuletos da Virgem e dos santos (p.15), acusaram os
africanos de primitivos por adorarem fetiches.
K. Marx tambm faz meno ao conceito para a definio de fetichismo da
mercadoria, no volume Primeiro dO Capital, ao considerar as caractersticas
metafsicas e teolgicas que envolvem os objetos tornados mercadorias. nos estudos
de Adorno, no entanto, que se encontra a discusso sobre o fetichismo na mercadoria
cultural e, especificamente, o fetichismo na msica, considerando as peculiaridades do
material musical e sua organizao e percepo pelos ouvintes ao longo da Histria.
Discutir um conceito, de modo geral, tende a ser um esforo no sentido de
conter completamente o objeto, abarcando-o em sua totalidade na tentativa de conhec-
lo. Para T. W. Adorno, porm, essa tentativa de abarcar a totalidade necessariamente
frustrada: a dialtica no diz inicialmente seno queos objetos no se dissolvem em
seus conceitos, que esses conceitos entram por fim em contradio com a norma
tradicional da adaequatio (1967/2009, p.12). Para o autor, o conceito no abarca
completamente o objeto nem se mantm esttico numa lgica de adequao e
objetivao. A contradio, por sua vez, presente no conceito, fornece um indcio da
no-verdade da identidade (ADORNO, 1967/2009, p.12), lembrando que a
correspondncia total do conceito com o objeto falsa e que a totalidade do conceito
ilusria.
Ao mesmo tempo, para o autor, pensar significa identificar (ADORNO,
1967/2009, p.12-13), ou seja, o conceito condio e substncia para o pensamento etem seu contrapeso no pensamento reduzido a frmulas, ideal do pretenso
esclarecimento (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006). Essa lgica do pensamento
que busca a identificao, a equivalncia e a unidade, porm, insuficiente: chocando-
se com os seus prprios limites, esse pensamento ultrapassa a si mesmo (ADORNO,
1967/2009, p.13). A insuficincia inevitvel do pensamento seria, ento, potencialmente
capaz de impeli-lo at a dialtica.
Tratar, pois, de um conceito referente ao pensamento dialtico e negativo de T.W. Adorno soa como um paradoxo se no se levar em conta tanto a existncia de
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contradies no interior do conceito como de elementos que no se contm no mbito
conceitual, contrariando a adequatiotradicional e a busca desesperada por objetividade.
com essa perspectiva que o presente trabalho se lana ao desafio de ampliar a
compreenso sobre o conceito de fetichismo na msica no pensamento adorniano e, a
partir dele, pensar a formao: a utopia do conhecimento seria abrir o no -conceitual
com conceitos, sem equipar-lo a esses conceitos (ADORNO, 1967/2009, p.17).
Adorno contextualiza sua filosofia da msica considerando o processo que
inexoravelmente levou a uma cultura em que o desenvolvimento da tcnica e da cincia
no se d sem as mais grotescas contradies, em que se confundem pensamento e
matemtica e na qual os indivduos so privados da liberdade e da autonomia que
seriam potncia de uma racionalidade emancipatria. Nesse processo, a razo perverte-
se em ratio, numa pretensa objetividade que elimina as possibilidades dela voltar-se
para si mesma e reconhecer seus limites e possibilidades de superao, sendo, afinal,
uma razo capaz de esclarecer-se. As contradies que esto presentes na cultura se
expressam tambm no campo musical, no qual coexistem a reduo da razo ao clculo
e a ampliao da racionalizao para abarcar o que dela pretende escapar.
A crtica adorniana, ao contemplar a presena de sons ordenados desde os
primrdios da Histria humana e apontar para uma relao entre msica, linguagem e o
processo de dominao da natureza, vai para alm da crtica indstria cultural. Essa
crtica remete a uma discusso sobre a relao entre elementos mticos no material
musical e o gradual processo de racionalizao que se reflete nele, assim como relao
entre msica e linguagem, s funes que a msica desempenha na sociedade burguesa
e, finalmente, aos problemas da regresso da audio. O conceito de fetichismo da
mercadoria, portanto, levado em considerao na obra adorniana, mas no suficiente
para explicar as vrias formas de fetiche que envolvem as msicas.
Nesse sentido, nota-se uma articulao entre msica e filosofia que coloca emestreita relao os conceitos filosficos e musicais: os estudos do autor no qual este
trabalho se fundamenta consideram que os modos como historicamente se d o
desenvolvimento da forma musical esto fundamentalmente relacionados ao problema
dos processos de racionalizao e desencantamento do mundo. Tais processos, prprios
de uma sociedade crescentemente tecnificada, acabam por ter uma expresso musical,
na medida em que sua lgica se expressa tambm na msica. Adorno (1970/2011)
afirma que a arte, desde os seus mais antigos vestgios, encontra-se j demasiadoimpregnada de racionalidade (p. 501), mas importante ressaltar que a racionalidade
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primitiva, relacionada mimese, ainda que seja racionalidade, no pode ser confundida
com a racionalizao tpica do ocidente moderno, que discutida por Max Weber
(1921/1995) e retomada na Dialtica do Esclarecimento de Horkheimer e Adorno
(1947/2006).
Se para Adorno (1970/2011, p.135) analisar as obras artsticas equivale a
perceber a histria imanente nelas armazenada, oesforo despendido nesse primeiro
captulo de compreender a fetichizao do material musical que est relacionada
intimamente ao processo composicional e ao processo de racionalizao e
desencantamento do mundo, o qual cinde violentamente esprito e matria e busca banir
os elementos subjetivos da cultura e assim, inevitavelmente, da estrutura interna da
msica. Esse aspecto composicional relativo estrutura interna das obras musicais, ou
seja, lgica da ordenao dos sons, alturas, timbres, duraes e silncios que
compem a linguagem e a tcnica intrnseca s obras musicais.
importante acrescentar que embora existam caractersticas universalmente
presentes na forma musical, como o fato dela sempre se organizar como arte temporal,
h diferenas importantssimas entre, por exemplo, o canto gregoriano, a msica
barroca, a romntica e aquela que se emancipa da tonalidade. Em cada uma delas se
expressa de um modo distinto a tenso entre as possibilidades tcnicas e a expresso,
consubstanciando em cada momento um conjunto de possibilidades estticas. Alm
disso, as formas e contedos musicais tm carter social, ou seja, expressam tambm
um determinado momento do desenvolvimento da racionalidade.
Msica se faz de som e silncio se desenvolvendo no tempo 3. Ela , portanto,
uma arte essencialmente temporal. O som produzido por uma sequncia de impulsos e
repousos que compem a onda sonora. Para Wisnik, representar o som como uma onda
significa que ele ocorre no tempo sob a forma de uma periodicidade, ou seja, uma
ocorrncia repetida dentro de uma certa frequncia (1989, p.17). Essa periodicidade efrequncia fazem com que a onda sonora contenha a partida e a contrapa rtida do
movimento: a ascenso da onda representa impulsos que caem ciclicamente e geram
um novo impulso (WISNIK, 1989, p.17).
Essa relao entre opostos, como impulso e repouso na onda sonora, marca a
estrutura da msica desde seus elementos mais especficos. O tmpano auditivo, por
3Sobre a fsica do som ver WISNIK, J. M. O som e o sentido uma outra histria das msicas, Ed.Companhia das Letras, 1989.
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exemplo, registra a onda sonora, ao capt-la, como uma srie de compresses e
descompresses. Ele entraria em espasmo se no houvesse esse movimento de opostos e
s houvesse compresso. Desse modo, no h som sem silncio: o som presena e
ausncia, e est, por menos que isso aparea, permeado de silncio (WISNIK, 1989,
p.18). Tambm o silncio est permeado de sons: mesmo quando no ouvimos os
barulhos do mundo, fechados numa cabine prova de som, ouvimos o barulhismo do
nosso prprio corpo (WISNIK, 1989, p.18). A estrutura sonora , portanto, rica de
relaes entre opostos.
Wisnik (1989, p.26-27) afirma que a natureza oferece tanto a experincia do
som com frequncias regulares, constantes, estveis, como aquelas que p roduzem o
som afinado, com altura definida quanto a experincia do som de frequncias
irregulares, inconstantes, instveis, como aquelas que produzem barulhos, manchas,
rabiscos sonoros, rudos:
Um som constante, com altura definida, se ope a toda sorte debarulhos percutidos provocados pelo choque dos objetos. Um somafinado pulsa atravs de um perodo reconhecvel, uma constnciafreqencial. Um rudo uma mancha em que no distinguimosfrequncia constante, uma oscilao que nos soa desordenada(WISNIK, 1989, p.27).
No entanto, seres de cultura que somos, ultrapassamos a caracterizao fsica
acerca do som e do rudo: nosso ouvido, construdo histrica e culturalmente, passa a
diferenciar som agradvel de rudo a partir de outros elementos e valores engendrados
no processo de racionalizao do mundo e nas relaes de poder. A racionalizao do
material sonoro e a percepo desses sons no so neutras, pois participam de um
processo que identifica som ordenado e razo (ATTALI, 1977/2003). Poder, ordem e
rudo se relacionam intimamente e superam qualquer definio fsica de rudo.Attali (1977/2003) explicita que rudo tanto violncia, algo que incomoda,
que desconecta e interrompe uma transmisso, como tambm percebido como fonte de
exaltao. O rudo se faz simulacro do assassinato ritual. At mesmo biologicamente,
Attali afirma que rudo uma fonte de dor, j que depois de certo limite ele se torna
uma arma mortfera: o ouvido, que transforma sinal sonoro em impulso eltrico
endereado para o crebro, pode ser danificado e at destrudo, quando a frequncia
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sonora ultrapassar 20000 hertz ou quando a intensidade ultrapassar 80 decibis4(p.27).
Outras consequncias do excesso de rudo citadas pelo autor so a diminuio da
capacidade intelectual, acelerao dos batimentos cardacos e da respirao, retardo no
processo digestivo, hipertenso, entre outros. O rudo, aquilo que se sacrifica como
vtima, possui, assim, um estado ambivalente e peculiar, pois a vtima ao mesmo
tempo adorada e excluda (ATTALI, 1977/2003, p.26).
Ao fazer uma anlise do quadro Carnivals Quarrel With Lent, de Pieter
Brueghel5, Atalli (1977/2003) afirma que o pintor tornou audvel o confronto poltico
entre harmonia e dissonncia, ordem e desordem, rudo e silncio. A relao entre o
festival e a quaresma aparece para ele como uma relao poltica e ideolgica da qual o
som e o rudo so representantes simblicos. Para Atalli, a ordenao dos sons e o
movimento de excluso do rudo no processo de desenvolvimento da msica acontecem
intimamente relacionados organizao poltico-econmica da poca. Existe assim,
uma relao da msica com o poder, pois a msica , primordialmente, a domesticao
e a ritualizao dessa arma como um simulacro do ritual assassino que canaliza a
violncia, ou seja, ela uma forma menor de sacrifcio (ATTALI, 1977/2003).
Sacrifica-se aquilo que considerado rudo em prol de uma ordem que almeja
extirpar a violncia. No entanto, cria-se uma ordem pretensamente imutvel, fixa e
universal que tambm violenta! E assim, para Attali (1977/2003), toda msica pode
ser definida como um rudo ao qual dado forma de acordo com um cdigo, ou seja, de
acordo com as regras do arranjo que teoricamente conhecvel pelo ouvinte. A
significao do som se faz, assim, bastante complexa: o valor de um som determinado
em relao a outros sons e isso dentro de uma cultura especfica (ATTALI, 1977/2003).
O fato a ser sublinhado que essa ordenao no simplesmente dada, mas criada, j
que a msica inscrita dentro do prprio poder que produz a sociedade e a significao
dos sons se associa quase sempre a um discurso hierrquico (ATTALI, 1977/2003).A ordenao sacrificial ganha contornos matemticos e torna-se pretensamente
idntica lgica matemtica. Weber matematicamente claro ao explicar a ordenao
4No ingls: The ear, which transforms sound signals into electric impulses addressed to the brain, can be
damage, and even destroyed, when the frequency of a sound exceeds 20,000 hertz, or when its intensityexceeds 80 decibels.
5 Pieter Brueghel (1525-1569) foi um pintor renascentista flamengo, comumente nomeado como
Brueghel, O Velho. O quadro citado uma pintura a leo sobre madeira de 1m18 x 1m64 que data de1559 e se encontra no Museu de Histria da Arte, em Viena, ustria.
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da msica e descrever as leis pretensamente imutveis e invariveis que caracterizam a
msica ocidental racionalizada e qual nosso ouvido moderno familiarizado:
toda msica racionalizada harmonicamente parte da oitava (relao de
frequncias 1:2) e a divide nos dois intervalos de quinta (2:3) e quarta(3:4), portanto em duas fraes do esquema n/n+1, chamadas fraesprprias, que tambm esto na base de todos os nossos intervalosmusicais abaixo da quinta (WEBER, 1995, p.53).
Assim, msica no apenas a objetividade fsica da onda sonora, mas a
fora que sons, silncios e rudos significam e evocam em determinados momentos da
cultura (WISNIK, 1989). Isso implica que o que considerado som afinado ou
agradvel e o que considerado rudo incmodo, varia ao longo da Histria e das
culturas nas mais variadas localidades geogrficas sempre imbudo de valores para
alm da caracterizao fsica do som. O quanto esse jogo de opostos pode ser explorado
nas construes musicais tambm bastante relativo ao momento histrico da cultura e
da poltica.
A tentativa de evitar o rudo antiga. Wisnik (1989) afirma que:
A histria da adoo e da rejeio da msica pela Igreja, durante toda
a Idade Mdia, cheia de idas e voltas. Por um a lado, h momentosde rigorismo em que a prpria msica concebida, toda, como rudodiablico a ser evitado (quando se percebe, at com razo, que impossvel purg-la de componentes ruidosos: a msica abre sempre oflanco da falha, da assimetria, do excesso, da incompletude e dodesejo). Em outros momentos so os barulhos animados das msicaspopulares, suas percusses, cantos e danas, que nunca se calaram nahistria humana, que entram em alguma medida nas igrejas e chegama se misturar com os cantos litrgicos em sugestivas polifonias (veja-se por exemplo o caso dos motejos, cantos a vrias vozes misturandoelementos sacros e profanos). Essa histria participa da luta entre ocarnaval (que entroniza no calendrio cristo aqueles ritos pagos que
liberam o rudo e a corporalidade) e a quaresma (com seu somsilencioso e asctico) (WISNIK, 1989, p.41).
A msica tonal moderna, por exemplo, continua a evitar o rudo, sendo
executada inclusive em ambientes que idealmente isolam os considerados rudos
(WISNIK, 1989). Ao contrrio, a partir do sculo XX, a msica que ultrapassa a
tonalidade incorpora rudos que alargam o campo sonoro do que considerado som
musical. A incorporao de barulhos de todo tipo nas msicas do sculo XX guarda
relao com o fato dos ouvidos dos homens desse tempo terem sido constitudos aps a
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Revoluo Industrial e aps a Primeira Guerra, ou seja, depois de que rudos
inimaginveis e assustadores at ento passaram a compor a cena da vida cotidiana. Ou
seja, a lgica que indica o que som agradvel ou desagradvel, som musical ou rudo,
som que remete a ordem ou a desordem, s pode ser compreendida historicamente.
Tambm os conceitos de consonncia e dissonncia, referentes
respectivamente aos sons que ouvimos e que trazem a sensao de repouso ou que, ao
contrrio, sugerem a necessidade de uma resoluo, devem ser pensados em relao
inescapvel com a cultura e o momento histrico. Schoenberg (1922/2001) quem
afirma que:
As expresses consonncia e dissonncia, usadas como antteses, so
falsas. Tudo depende, to somente, da crescente capacidade do ouvidoanalisador em familiarizar-se com os harmnicos mais distantes,ampliando o conceito de som eufnico, suscetvel de fazer arte (...).O que hoje distante, amanh pode ser prximo; apenas umaquesto da capacidade de aproximar-se. A evoluo da msica temseguido esse curso: incluindo no domnio dos recursos artsticos, umnmero cada vez maior de possibilidades de complexos j existentesna constituio do som (SCHOENBERG, 1922/2001, p59).
Almeida (2007, p.297) sintetiza: "A idia de consonncia e dissonncia
estabelecida, portanto, no pela fsica, mas pela histria". Assim, possvel afirmar quea organizao interna da msica no se d apartada de seu contexto social, mas ao
contrrio, acolhe em sua estrutura interna elementos e sentidos que vo muito alm da
mera objetividade fsica do som, abarcando poderes polticos e econmicos . No por
acaso, afirmou Adorno, a tonalidade foi a linguagem musical da era burguesa
(ADORNO, 1968/1986, p.155). Tambm no se aparta das formas de audio de seus
ouvintes: a organizao dos sons conta algo de seu contexto e traz as marcas e
possibilidades do seu tempo, podendo essa caracterizao ser percebida de variadas
maneiras ou nem ao menos ser compreendida pelos sujeitos o que no impede seu
poder poltico. Em outras palavras, o ouvido dos sujeitos tambm construdo histrica
e socialmente.
Para discutir o conceito de fetichismo na msica, Adorno atentou para a
Histria presente nas obras de arte. Portanto, o conceito de fetichismo na msica no
discutido apenas em seu texto de 1938, intitulado O fetichismo na msica e a regresso
da audio, mas uma temtica que perpassa sua obra de crtica musical. Nesse
movimento de atentar para a Histria da racionalizao, a crtica adorniana ultrapassa a
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crtica ao fetichismo da mercadoria e abarca uma crtica do fetichismo na msica em
relao inescapvel com o processo de racionalizao e desencantamento do mundo.
Adorno remete ao trabalho weberiano Os fundamentos racionais e sociolgicos da
msica (1921/1995), o qual trata da categoria racionalizao para discutir as
construes musicais:
Max Weber, autor do projeto mais compreensivo e ambicioso de umasociologia da msica at a data [...] ressaltou a categoria daracionalizao como a categoria decisiva do ponto de vista dasociologia da msica e assim, a ops ao irracionalismo dominante naconsiderao da msica, sem que, no entanto, sua tese ricamentedocumentada tivesse mudado muito na religio burguesa da msica6(ADORNO, 1970b/2006, p.13-14).
o processo de racionalizao do mundo que, penetrando na msica,
gradativamente busca afastar os elementos contraditrios que compem a estrutura
musical e que procuram identificar rudo, desordem, maldade e, por outro lado, razo,
harmonia e bem estar. A harmonia musical como um sistema de poder torna audvel a
legitimidade da ordem do mundo: como poderia uma ordem que trouxe uma msica
to maravilhosa ao mundo no ser desejada por Deus e requerida pela cincia?7
(ATTALI, 1977/2003, p.61). A harmonia capturada pela lgica racional ocidental
moderna mascara uma organizao hierrquica e conflituosa, pois probe o rudo, a
dissonncia e o conflito mesmo que, evidentemente, eles continuem a existir
(ATTALI, 1977/2003).
Adorno tambm claro ao afirmar que a msica, mesmo participando desse
movimento progressivo de racionalizao, traz ainda consigo justamente aquilo que foi
expulso nesse processo de desencantamento: dentro da evoluo global em que
participou da racionalidade progressiva, no entanto, ao mesmo tempo, a msica sempre
foi tambm a voz do que no caminho dessa racionalidade se deixava para trs ou se
6No espanhol Max Weber, autor del proyecto ms comprehensivo y ambicioso de uma sociologa de la
msica hasta la fecha [...] resalt la categoria de racionalizacin como la categoria decisiva desde elpunto de vista de la sociologia de la msica y, com ello se opuso al irracionalismo dominante em laconsideracin de la msica, sin que, por l dems, su ricamente documentada tesis hubiera cambiadomucho em la religin burguesa de la msica.
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No ingls: how could anorder that brought such wonderful music into the world not be the one desiredby God and required by science?.
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sacrificava como vtima8 (ADORNO, 1970b/2006, p.14). Como feita de sons, a
msica no se deixa ordenar de uma vez por todas: os sons afinados pela cultura, que
fazem a msica, estaro sempre dialogando com o rudo, a instabilidade, a dissonncia
(WISNIK, 1989, p.27). Da o movimento de se atentar ao processo de desencantamento
do mundo e s modificaes tcnicas incutidas na msica, bem como s possibilidades
de fantasia e magia que tambm permanecem, para compreender as formas de fetiche
que compem o material musical alm da msica comercial da Indstria Cultural.
1.1 Msica e tcnica: dos primrdios da dominao da natureza racionalizaotipicamente ocidental
No grego, tcnica techn identificada arte, situando-a junto aoartesanato e aos ofcios. Por sua vez, musik techna arte das musasidentifica o que
hoje chamamos msica. V-se que a tcnica tinha um significado inseparvel da arte,
bem como o mito, um significado inseparvel da organizao dos sons. Esses sentidos
no se mantiveram ao longo do processo de racionalizao do mundo, porm essas
relaes entre msica e mito e entre tcnica e artesanato no foram completamente
resolvidas e integradas.
Adorno (1970/2011), no entanto, reflete sobre o problema que colocado
quando se busca uma origem da msica, em outras palavras, reflete sobre a dificuldade
em se estabelecer um momento inicial que, sendo a msica produto da ao tipicamente
humana, remeteria a um marco de fundao da prpria cultura: como poder ento
buscar-se a origem histrica de algo que no nenhum produto da natureza e que
pressuposto pela histria humana? (ADORNO, 1970/2011, p.494).Trcke (2008), na
obra Filosofia do Sonho, busca ampliar a compreenso acerca da formao da cultura
desenvolvendo uma profunda arqueologia. No entanto, sobre o estabelecimento de uma
origem, ele tambm afirma que:
Os comeos tm a sua prpria manha. Quem, por exemplo, permite ocomeo da sociedade moderna no sculo 19 e a arte moderna nosculo 20, logo estar confrontado com uma via moderna nos fins daIdade Mdia e imagens de expresso surrealista do barroco primitivo.Quem procura o comeo da burguesia na poca da Renascena,depara-se com a pergunta de por que j no quer deixar valer a polis
8No espanhol Dentro de la evolucin global em que participo de la racionalidad progresiva, sin
embargo, al mismo tiempo, la msica sienpre fue tambim la voz de l que em la senda de esaracionalidad se dejaba atrs o se le sacrificaba como vctima (ADORNO, 1970b/2006, p.14).
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tica como burguesia primitiva. Onde h comeos h formasprecedentes (TRCKE, 2008, p.98, grifos do autor).
Apesar disso possvel pensar acerca de um contexto que possibilite ampliar a
compreenso sobre os primrdios e Adorno (1958/2009) traz elementos que remetem aesse incio e s formas musicais mais primitivas. Esse autor relembra que:
Toda msica e especialmente a polifonia (...) teve sua origem emexecues coletivas do culto e da dana, fato que nunca foi superado ereduzido a simples ponto de partida pelo desenvolvimento damsica para a liberdade, mas a origem histrica est ainda implcitacom seu sentido prprio, mesmo que a msica tenha rompido htempos com toda execuo coletiva (ADORNO, 1958/2009, p. 24).
Os primrdios da musik techn, portanto,podem ser relacionados aos rituais
mgicos que os homens, em coletivo, realizavam em busca de apaziguamento e controle
da natureza pavorosa e desconhecida. Essas primeiras execues foram coletivas e se
deram num contexto em que predominava uma relao mimtica entre os homens e a
natureza: nesse mbito mgico, o feiticeiro torna-se semelhante aos demnios; para
assust-los ou suaviz-los, ele assume um ar assustadio ou suave (HORKHEIMER e
ADORNO, 1947/2006, p.21). O feiticeiro, na tentativa de controlar a natureza, imita
aquilo que apavora os homens: todo ritual inclui uma representao dos
acontecimentos bem como do processo a ser influenciado pela magia (HORKHEIMER
e ADORNO, 1947/2006, p.20).
Nesse contexto ritualstico e sagrado, a msica era um elemento mgico,
venerado e, por isso, fetichista. Ela possua um fetiche que Adorno chamar na Teoria
Esttica (1970/2011, p.35) de fetiche arcaico. Arcaico por ser retrospectivamente
discutido: aos sujeitos modernos possvel discutir que esse fetichismo remete ao
contexto, um tanto nebuloso, dos primrdios da msica, em que as produes musicais
relacionavam-se aos trabalhos mgicos de feiticeiros e eram restritas a determinadas
cerimnias rituais. Essa forma de fetichizao do material musical parece circunscrever-
se a esse momento intrinsecamente mgico da Histria das msicas, podendo, no
entanto, aparecer velado, como um sintoma, em produes musicais no decorrer do
processo evolutivo da tcnica musical, quando a magia vai sendo brutalmente
reprimida.
A forma arcaica de fetichizao do material musical diferencia-se do feticheque se desenvolve ao longo do processo de desencantamento do mundo porque, no
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contexto de magia, a dominao aparece escancarada e no camuflada em iluses ou
confortos ideolgicos: a inteno , de fato, dominar a natureza em prol da
sobrevivncia humana. E a relao dos homens com essa natureza, no contexto mgico,
leva em conta aquele animismo que foi acusado de ser mitolgico pelo processo de
esclarecimento. Nas palavras de Horkheimer e Adorno: a magia pura e simples
inverdade, mas nela a dominao ainda no negada, ao se colocar transformada na
pura verdade, como a base do mundo que a ela sucumbiu (1947/2006, p.21).
Num tempo anterior linguagem alfabtica racionalizada e escrita, o canto
ocupava um lugar sagrado, mtico e dependia da transmisso oral e da memria. Neste
passado pr-histrico, a vida e a morte haviam se explicado e entrelaado nos mitos
(HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p.19). Para Wisnik (1989) os mitos centram
as narrativas sobre a msica no mbito do smbolo sacrificial. A origem dos
instrumentos musicais tambm remete lgica do sacrifcio: as flautas so feitas de
ossos, as cordas de intestinos, tambores so feitos de pele, as trompas e as cornetas de
chifres (p.35). Nesse contexto, oanimal sacrificado para que produza o instrumento,
assim como o rudo sacrificado para que seja convertido em som, para que possa
sobrevir o som(p.35).
No sacrifcio de uma vtima, espera-se realizar uma troca com os deuses:
oferece-se o bode expiatrio para que os deuses deem em troca apaziguamento aos
homens. A msica, em seus primrdios, realizava o mesmo movimento: o som o
bode expiatrio que a msica sacrifica, convertendo o rudo mortfero em pulso
ordenado e harmnico (WISNIK, 1989, p.34). Para Trcke (2010) essa relao
centrada no pavor: a troca foi nos seus primrdios uma legtima defesa contra o pavor
e por isso tinha por objetivo nada menos que o equilbrio nervoso e csmico da
excitao, deuses apaziguados, poderes naturais no mais ameaadores, relaes
pacificadas, em suma, um mundo aprumado (p.217).As discusses de Wisnik (1989), Attali (1977/2003) e Trcke (2008)
convergem quando eles pensam a msica como elemento ordenador, ou seja, como o
mais intenso modelo utpico da sociedade harmonizada e/ou, ao mesmo tempo, a mais
bem acabada representao ideolgica [...] de que ela no tem conflitos (WISNIK,
1989, p.34). Nesse raciocnio, um som em unssono capaz de, magicamente, evocar
um fundamento sonoro que, por sua vez, tambm um fundamento de um universo
social pretensamente harmnico: as sociedades existem na medida em que possamfazer msica, ou seja, travar um acordo mnimo sobre a constituio de uma ordem
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entre as violncias que possam atingi-la do exterior e as violncias que as dividem a
partir do seu interior (WISNIK, 1989, p.33-34)
Na Teogonia, de Hesodo, a manifestao da palavra cantada presentifica os
deuses e a ordem social de equilbrio, harmonia e prosperidade instaurada pelo poder de
Zeus. O canto se organiza como um apelo sensual com a finalidade de dominao e
ordenao. Nesse contexto, os deuses j no se identificam diretamente aos elementos
da natureza, mas passam a represent-los, signific-los: os deuses separam-se dos
elementos materiais como sua suprema manifestao. De agora em diante, o ser se
resolve no logos (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p.21). Os homens no
mais imitam a natureza para control-la, mas passam a se identificar imagem e
semelhana do poder invisvel e, a este poder, assemelham-se pelo comando e pelo
olhar de senhor (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p.21).
Na msica tambm se expressa esse movimento de a lgica mimtica
gradualmente tornar-se uma lgica de representao e significao. Schoenberg
(1922/2001) afirma que a arte , em seu estgio mais elementar, uma simples imitao
da natureza (p.55).O sistema tonal, enquanto forma posterior de ordenao dos sons,
faz a mediao entre uma linguagem musical mais ou menos espontnea dos homens,
uma linguagem, por assim dizer, falada, imediata, e normas que haviam se cristalizado
dentro dessa linguagem (ADORNO, 1968/1986, p.150). Schoenberg (1922/2001)
tambm afirma que o sistema temperado o qual somente um expediente para
dominar as dificuldades materiais tem pouca semelhana com a natureza (p.60). A
msica progressivamente se afasta da mimesepara imitar o logos.
preciso considerar que a musik techn nasce num contexto mitolgico e
mgico em que existe uma fungibilidade especfica: em vez do deus, o animal
sacrificial que massacrado (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p.22). A
cincia d fim a essa especificidade: a cincia no precisa dessa substitutividadeespecfica, pois os animais utilizados nos experimentos so um mero exemplar,
facilmente descartveis e fungveis (ZUIN, 1999, p.11-12). Considerando que a
unidade e a equivalncia so os elementos que permitem a calculabilidade e, portanto, o
conhecimento do mundo, a cincia passa a se afastar do objeto que buscava conhecer:
como a cincia, a magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese, no pelo
distanciamento progressivo em relao ao objeto (HORKHEIMER e ADORNO,
1947/2006, p.22).
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A lgica da organizao dos elementos musicais gradualmente passa de um
contexto em que a relao dos homens com a natureza era mediada pela lgica da
identidade com aquilo que apavora, da troca especfica sacrificial que repete a situao
assustadora, permitindo distines que levam tenso viva elementos necessariamente
distintos, para um contexto em que a equivalncia e o distanciamento dos objetos regem
todos os mbitos da vida humana. Para Horkheimer e Adorno (1947/2006, p.27), antes,
os fetiches estavam sob a lei da igualdade. Agora a prpria igualdade torna-se fetiche.
Portanto, a msica fetichista desde os primrdios, porm nem sempre sua funo
encantatria foi conivente com a ideologia burguesa.
A concepo atual de tcnica como procedimento resultado desse longo
processo de racionalizao que, ao buscar a identificao e a unidade de todos os
mbitos da vida com a cincia, cinde mtodo e contedo (ADORNO, 1970/2011,
1970b/2006). Porm, para Adorno, esse processo de racionalizao no consegue ser
completo na obra de arte: sobre toda a tcnica artstica paira, em relao com o seu
telos, uma sombra de irracionalidade (1970/2011, p.331). O encantamento arcaico
persiste ainda, inextirpvel, mas em alguma medida negado e recalcado, no fetichismo
atual. Para o autor (1970b/2006), a tcnica, em seu sentido grego, a representao
externa de algo interior.
Em msica, tcnica, e, portanto, a expresso de algo interior, significa a
realizao do contedo espiritual por meio dos sons, seja por meio da produo ou da
reproduo dos sons: a totalidade dos recursos musicais a tcnica musical: a
organizao da prpria coisa e sua traduo para o fenomnico9 (ADORNO,
1970b/2006, p. 233). Evidentemente, em msica essa objetivao da obra ganha um
carter peculiar, pois a tcnica capaz de representar a msica em partitura, por
exemplo, mas isso no equivale a sua manifestao: a msica objetivada quando
executada e sua objetivao etrea e espiritual, mas, ainda assim, intimamenterelacionada tcnica. Para Adorno, porm, esses dois momentos, tanto a produo
como a execuo dos sons, so abarcados pelo conceito de tcnica (ADORNO,
1970b/2006).
A organizao tcnica da obra capaz de fornecer alguma objetividade e, de
qualquer modo, lhe d um sentido, por isso, a tcnica se faz chave para o conhecimento
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Na verso em espanhol: La totalidad de los recursos musicales es la tcnica musical: la organizacin dela cosa misma y su traducin a lo fenomnico.
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da arte: a obra de arte se converte num contexto de sentido em virtude de sua
organizao tcnica; nada h nela que no se legitime necessariamente como tcnico10
(ADORNO, 1970b/2006, p.233). , portanto, necessrio conhecer a linguagem tcnica
da msica para adentrar seu contedo. Porm, se a msica no pode ser compreendida
sem que se compreenda sua tcnica intrnseca, tambm a tcnica deve ser compreendida
mediante compreenso da obra (ADORNO, 1970/2011).
A msica artstica, por sua vez, no apenas tcnica, mas tambm contedo.
Para o pensamento dialtico de Adorno, contedo e tcnica so idnticos e noidnticos:
noidnticos porque a obra de arte tem sua vida justamente na tenso entre o interior e o
exterior e porque a obra s pode ser considerada artstica quando apontar para alm de
si mesma, apontamento que apenas se vislumbra quando se mantm em relao dialtica
elementos contrrios, como interno e externo; porm, como em composio s existe o
que realizado, a manifestao do contedo espiritual s se d por meio da tcnica. E
aqui se identificam contedo e tcnica: interior e exterior se geram reciprocamente
(ADORNO, 1970b/2006).
Nessa dinmica entre tcnica e contedo permanecem resduos de fantasia e
utopia caractersticos dessa dialtica que, recalcados pela lgica civilizatria, podem se
expressar sintomaticamente como um fetichismo paralisante. Tendo em vista a
necessidade de existncia de tenso de opostos na construo musical, Adorno pontua
que o trabalho tcnico na arte se torna sem sentido, ou mesmo falso, sempre que ela
ignora essa noidentidade e trata coisas diferentes como iguais, multiplicando laranjas e
mquinas de escrever11(ADORNO, 1978/1999, p. 204). Pode-se falar tambm de um
fetichismo na msica quando ela condenada a falsas identidades. A presso econmica
um fator que, para Adorno (1958/2009), promove a reduo de tenses a formas
equivalentes, tanto no interior da obra como nos mecanismos externos a ela:
Esta tenso, que se resolve na obra de arte, a tenso entre sujeito eobjeto, entre interior e exterior. Hoje, quando sob a presso daorganizao econmica total, ambos os elementos se integram numafalsa identidade, numa conivncia das massas com o aparato de poder,
10Na verso em espanhol: La obra de arte se convierte en contexto de sentido en virtud de suorganizacin tcnica; nada hay en ella que no se legitime necesariamente como tcnico.
11No ingls The technical work of art becomes meaningless, or even false, whenever it ignores this
nonidentity, and treats unlike things alike, multiplying oranges and typewriters (ADORNO, T. W. SoundFigures, 1978, p.204)
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e junto com a tenso se dissolvem o estmulo criador do compositor ea fora de gravitao da obra (...). (ADORNO, 1958/2009, p.27)
A regncia do princpio de equivalncia, que iguala fenmenos
necessariamente contraditrios tal como na relao entre subjetividade e objetividade,faz com que tempo e espao terminem sendo reduzidos tambm a um denominador
comum, tanto durante a composio como na forma de audio. Adorno far, na
Filosofia da nova msica (1958/2009), crtica espacializao do tempo na obra de
Stravinsky. Quanto a isso, Almeida (2007) exemplifica que:
Em ambas as peas [Ragtime para Onze Instrumentos e Piano-Rag-Music, de Stravinsky], assim como ragtime daHistria do Soldado, a
nfase na sincopa surge, literalmente, como uma ideia fora do lugar.Pois se o efeito da recusa do tempo forte justamente o de quebrar auniformidade rtmica, em uma msica na qual essa uniformidade nemmesmo considerada, a sncopa acaba revertendo em seu contrrio.Paradoxalmente, so as notas em tempo forte que agora passam acausar estranhamento (ALMEIDA, 2007, p. 134).
Para ele, essa forma de construo de Stravinsky, esse virtuosismo rtmico,
aliado descontinuidade dos ncleos temticos e s constantes sequncias sobre
ostinatos, estilhaa a temporalidade interna da msica (ALMEIDA, 2007, p.134). Tal
estilhaamento impede a construo do nexo e da coerncia da msica que se
desenvolveriam no tempo.
Adorno (1978/1999) acrescenta que o fenmeno fsico musical e as
caractersticas especficas da msica, no podem ser tornados idnticos, assim como o
movimento temporal da msica, enquanto tempo-durao, ao invs de tempo
espacializado, inseparvel de uma no-identidade de cada instante musical, os quais se
articulam e no meramente se justapem de forma inerte e independente. Nas palavras
do autor:
O fato de todos os elementos e dimenses musicais serem reduzidos aum denominador comum a fim de promover uma estrutura geral desentido, liberta de qualquer elemento alheio imposto externamente,tem o efeito paradoxal de debilitar a verdadeira idia do significado daestrutura. (ADORNO, 1978/1999, p. 202-203)12.
12No ingles The fact that all musical elements and dimensions are reduced to a common denominator inorder to promote a total structure of meaning, liberated from any foreign, externally imposed element, has
the paradoxical effect of undermining the very idea of meaningful structure (ADORNO, T. W. SoundFigures, 1978, p.202-203)
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Reduzir o tempo a espao tambm rompe com o movimento que, na obra
artstica, indica um devir, um algo a mais que vai alm da prpria obra. Romper com
esse devir condenar a msica tambm a um fetichismo que a transforma em ideologia
ao atestar o existente afirmando-o como o nico e melhor modo de organizao
possvel, como um isso. Nesse sentido a msica se converte em ideologia em seu
sentido mais pregnante no ps-guerra, e tpico da indstria cultural: a mera afirmao de
que o que existe no poderia ser de outra forma (HORKHEIMER e ADORNO,
1956/1973). No difcil ver, entretanto, que h outras formas de ideologia vinculadas
msica, como ser explicitado adiante quando discutirmos as funes que Adorno
atribui msica.
Aquilo que se mostra alheio ordenao vigente do mundo e relembra a
angstia e o medo do desconhecido e incontrolvel banido e tornado tabu. J no
programa tico-musical de Plato veem-se traos de um saneamento de estilo
espartano(ADORNO, 1938/1991, p.81). Pela ordem e disciplina platnicas, a msica
empurrada a um movimento especfico de seleo de sons: nos atrativos proibidos
entrelaam-se a variedade do prazer dos sentidos e a conscincia diferenciada
(ADORNO, 1938/1991, p.81). Esses aspectos censurados pela disciplina platnica,
sintomaticamente retornam na grande msica ocidental: o prazer dos sentidos como
porta de entrada da dimenso harmnica e finalmente colorstica (ADORNO,
1938/1991, p.81). Isso demonstra que as caractersticas que so banidas em um
momento da racionalizao, violentamente e sem elaborao, retornam modificadas, tal
como sintomas, em outros momentos da civilizao.
A lgica formal, a calculabilidade, o reconhecimento apenas daquilo que
redutvel unidade e a equivalncias permutveis entre si e entre todo e qualquer corpo,
so as formas de controle do mundo a que o processo de esclarecimento permitiuhegemonia. Inverte-se a lgica da dominao: se os homens buscavam a identificao
natureza para delimit-la de forma declarada, agora os homens se afastam da natureza
na certeza da dominao e consideram-se imagem e semelhana do poder invisvel.
Mas os mitos j se encontravam sob a disciplina e poder enaltecidos pelo racionalismo:
eles j eram produto do esclarecimento (HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006).
O pensamento ordenador e a cincia, na busca pela unidade e pela
equivalncia, substituem o lugar dos espritos e demnios pelo cu e sua hierarquia, asprticas de feitiaria pelo sacrifcio e pelo trabalho servil, regido pelo comando. Se do
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medo o homem presume estar livre quando no h nada mais de desconhecido
(HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p. 26), o processo de desencantamento do
mundo busca uma relao de afastamento entre os homens e os objetos para que estes
sejam melhor manipulados e, assim, dominados. Pretensamente, essa relao almeja o
conhecimento, porm culmina em alienao daquilo que se pretendia dominar.
Na msica essa dinmica, que reflete o movimento do processo de
esclarecimento, se expressa nos diferentes modos como as msicas modal, tonal e ps-
tonal simbolizam o par ordem/desordem. Segundo o exemplo de Wisnik (1989), a
msica modal, pr-capitalista, a ruidosa, brilhante e intensa ritualizao da trama
simblica em que a msica est investida de um poder (mgico, teraputico e
destrutivo) que faz com que a sua prtica seja cercada de interdies e cuidados rituais
(WISNIK, 1989, p.35). Essa msica centrada no ritmo e tem forte presena das
percusses. Tambm tem forte presena de timbres, vozes, vocalizes e sotaques
(WISNIK, 1989). No entanto, as msicas modais so msicas que procuram o som
purosabendo que ele est sempre vivamente permeado de rudo, afinal, os deuses so
ruidosos (WISNIK, 1989, p.39, grifos do autor). Ou seja, o carter fetichista da
msica modal ainda explcito, mgico, e encara o contraditrio sem buscar expulsar o
rudo.
O canto gregoriano inaugura a tradio ocidental que caminha para a msica
barroca, clssica e romntica dos sculos XVII, XVIII e XIX. Ele caracteriza-se por
evitar o acompanhamento instrumental, e preferir vozes masculinas cantadas em
unssono e capela, na caixa de ressonncia da igreja (WISNIK, 1989, p.41). Quando
o canto gregoriano evita o acompanhamento colorstico de instrumentos e evita a
pulsao rtmica, transformando-a na pronunciao do texto litrgico, ele desvia a
msica modal para o domnio das alturas. Essa configurao prepara o terreno para o
surgimento da msica tonal (WISNIK, 1989).Cabe marcar que essa modificao na estrutura interna da msica quer filtrar
todo o rudo, como se fosse possvel projetar uma ordem sonora completamente livre da
ameaa da violncia mortfera que est na origem do som (WISNIK, 1989, p.42).
Assim, o fetichismo passa a identificar ordem afinao numa busca de reproduzir na
terra a suposta ordenao divina. Ele deixa de ser explcito e d as mos ideologia
burguesa, prometendo e anunciando um valor universal, sem conflito ou violncia. A
msica lanada tentativa de excluir o rudo criando o embuste de que o rudo pode,afinal, ser excludo. E, ainda assim, a exemplo do trtono, o tabu permanece.
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A busca de eliminao da incomensurabilidade e do desconhecido culmina,
assim, por condenar o esclarecimento a um retorno mitologia:
A insossa sabedoria para a qual no h nada de novo sob o sol, porque
todas as cartas do jogo sem-sentido j teriam sido jogadas, porquetodos os grandes pensamentos j teriam sido pensados, porque asdescobertas possveis poderiam ser projetadas de antemo, e oshomens estariam forados a assegurar a autoconservao pelaadaptao essa insossa sabedoria reproduz to somente a sabedoriafantstica que ela rejeita: a ratificao do destino que, pela retribuio,reproduz sem cessar o que j era. O que seria diferente igualado(HORKHEIMER e ADORNO, 1947/2006, p.23).
A aspirao em eliminar aspectos subjetivos da cultura e amputar qualquer
forma de feitio segue resignada e as msicas no passam por esse processo de formailesa, pois a tentativa de eliminar qualquer forma de desordem e irracionalidade das
obras musicais em si mesma fetichista. O racionalismo tpico do ocidente buscou
gradualmente enquadrar tambm a tcnica musical na lgica das cincias, propondo
notaes, nomenclaturas e representaes que se pretendeu que fossem universais.
Desse modo, todo msico que conhecesse a notao seria capaz de reproduzir um som
sem experincia prvia ou memorizao, mas devido leitura de sinais que
distinguissem visualmente a altura, o tempo e o ritmo, independente do estilo musicalou do contexto no qual se desse a execuo (REZENDE, 2008).
Adorno afirma que uma religio burguesa da msica se constri nesse
processo de racionalizao, o qual, por sua vez, um processo de aburguesamento da
msica:
A [religio burguesa] da msica , inquestionavelmente, a histria deuma racionalizao progressiva. Teve fases como a reforma de
Guido
13
, introduo notao mensural, a inveno do baixo cifrado,a afinao temperada, finalmente a tendncia, desde Bach irresistvel,hoje levada ao extremo, da construo musical integral14(ADORNO,1970b/2006, p.14).
13 Guido dArezzo (991dC 1033) foi um terico italiano da msica que criou e implementou umreforma na notao musical no Ocidente, fazendo uso de linhas e espaos similares ao pentagramamoderno e modificando assim a relao com a escrita musical. Contando com o apoio de papas, essanotao fez parte do contedo a ser disseminado pelas cruzadas. Ver REZENDE, 2008.
14No espanhol La de la msica es, incuestionablemente, la historia de uma racionalizacin progresiva.Tuvo fases como la reforma de Guido, la introducin de la notacin mensural, la invencin del bajo
cifrado, la afinacin temperada, finalmente la tendncia, desde Bach irresistible, hoy llevada ao extremo,a la construccin musical integral(ADORNO, 1970b/2006, p.14).
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A crtica de Adorno ao processo de racionalizao, porm, no vem em defesa
desconsiderao da tcnica musical em prol de uma pureza ou legitimidade da obra de
arte: a tcnica um dos elementos necessrios msica e a obra de arte s existe
enquanto dialtica entre o contedo subjetivo e a tcnica que torna exprimvel tal
contedo: seria agradvel ao hbito vulgar elimin-la; mas seria falso, porque a tcnica
de uma obra constituda pelos seus problemas, pela tarefa aportica que essa obra se
pe objetivamente (ADORNO, 1970/2011, p.323).
A busca de objetividade e racionalizao, na tentativa de eliminar o
irracionalismo na msica culmina por eliminar justamente elementos cuja necessria
tenso e diferena compem a totalidade da obra de arte, condenando a msica a um
fetichismo sequestrado pela ratio. Nas palavras de Adorno (1958/2009):
O elemento no conceitual e no concreto da msica (...) f-lacontrria ratioda vendibilidade. Somente na era do cinema sonoro,do rdio e das formas musicais de propaganda, a msica ficou,precisamente em sua irracionalidade, inteiramente sequestrada pelaratio comercial (p. 15, grifos nossos).
Diante da adoo desmedida das possibilidades tcnicas, a tecnologia
extramusical, produzida por uma sociedade que torna suspeito tudo que no se submeteao critrio da calculabilidade (ADORNO e HORKHEIMER, 1947/2006), torna-se
elemento interno msica, deixando de estar presente como uma possibilidade corretiva
da obra de arte. Tal admisso faz da tcnica uma autoridade exclusiva que acaba por
levar a msica irracionalidade da qual se procurou fugir: a necessidade matemtica
que se impe de fora do fenmeno musical, sem a mediao da subjetividade, tem
alguma afinidade com o acaso absoluto15(ADORNO, 1978/1999, p. 205). atravs da
eliminao da subjetividade que um projeto designado a conquistar a natureza terminaadorando o resultado fossilizado da manipulao como se isso se fizesse por si
mesmo16(ADORNO, 1978/1999, p. 202).
15No ingls An abstract, mathematical necessity that imposes itself on the musical phenomenon fromoutside, without subjective mediation, has some affinity with absolute chance (ADORNO, T. W. SoundFigures, 1978, p. 205).
16No ingls Precisely through its elimination, subjectivity is unconsciously taken to an extreme, a
project designed to conquer nature that ends up worshiping the fossilized result of its manipulations as ifit were being in itself (ADORNO, T. W. Sound Figures, 1978, p.202).
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No caso especfico da msica ocidental, o elemento irracional no meramente
eliminado, mas resolvido e integrado prpria racionalidade (SAFATLE, 2007), a
exemplo da tonalidade menor, que fornece ao sistema o antigo tremor exorcizado pela
racionalidade do prprio sistema (ADORNO, 1973/2011, p. 120), fazendo as vezes de
pelo ouriado e sendo calculadamente utilizada em exaltaes fascistas ou que pregam o
entusiasmo irracional pela prpria morte. Se essa administrao do racional e do
irracional na msica sria chega a dispor a tcnica no lugar de uma autoridade
exclusiva, na msica popular industrializada, por sua vez, como se discutir mais
profundamente no segundo captulo, os mecanismos arcaicos so controlados e
socializados de ponta a ponta(ADORNO, 1973/2011, p. 120).
Nesse extremo da desconsiderao da dialtica entre esprito e matria, em se
tratando de uma composio sria, a msica condenada a uma fossilizao por aderir
desmedidamente tcnica e ao estilo impostos de fora, alheios quela relao em que o
artista se depara com um problema histrico a ser trabalhado junto tcnica musical
(ADORNO, 1978/1999). Essa fossilizao uma forma de fetiche tpica da msica na
poca da plena racionalizao instrumentalizada, ou seja, ao recusar violentamente as
formas mgicas e fetichistas, ao legitimar a lgica formal a despeito da convivncia do
contraditrio, o processo de racionalizao se recusa a enfrentar o movimento dialtico
da cultura e condena a msica ao retorno ao fetichismo.
No trabalho j citado de Almeida (2007) um exemplo dessa objetivao
extremada se encontra no neoclassicismo: diante de um problema historicamente
justificado, o neoclassicismo no o enfrenta diretamente, mas busca uma falsa soluo
no retorno a formas no mais justificadas (ALMEIDA, 2007, p.170). O neoclassicismo
de Hindemith um exemplo mais especfico: ele pede que a execuo de suas peas se
faa com uma atitude de mquina(p.164). No texto Msica e Tcnica(ADORNO,
1978/2009 e 1970b/2006), Adorno usa como exemplo desse cmulo da objetivao osexperimentos de msica aleatria17que caem num acaso esvaziado.
Se mesmo no contexto de produo da msica sria corre-se o risco de
extrapolar o uso da tcnica e de formas enrijecidas condenando a msica fossilizao e
ao fetichismo, na msica popular e comercial esse problema ainda mais gritante:
17A msica aleatria (do latim, alea significa dado) procura a liberdade e joga com a imprevisibilidade,o acaso e a sorte, tanto durante a composio, como no momento da execuo. As notas que sero usadas,
que lugar ocuparo e em que ordem sero executadas algo que pode ser escolhido jogando-se dados(BENNET, R. Uma breve histria da msica, 1986).
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O conceito de tcnica na indstria cultual s tem em comum o nomecom aquele vlido para as obras de arte. Este diz respeito organizao imanente da coisa, sua lgica interna. A tcnica daindstria cultural, por seu turno, na medida em que diz respeito mais
distribuio e reproduo mecnica, permanece ao mesmo tempoexterna ao seu objeto (ADORNO, 1962/1986, p. 95).
As formas de fetichizao tpicas da indstria cultural sero discutidas mais
frente, mas aqui interessante considerar que a fossilizao do material musical e,
portanto, tambm a fetichizao, so praticamente um pressuposto das construes
musicais na lgica da indstria cultural em funo da adequao do material musical s
lgicas de racionalizao externas prpria racionalidade do material.
Outra forma de fetichizao do material musical a busca desmedida por sanara objetividade e mergulhar num solipsismo que recusa suas relaes com a
materialidade e busca uma existncia puramente espiritual. No movimento civilizatrio,
as obras de arte so tambm condenadas ruptura violenta entre matria e esprito: nos
traos do que foi ultrapassado pela evoluo geral, toda arte est maculada de uma
suspeita hipoteca de tudo o que no foi bem seguido e regressivo (ADORNO,
1970/2011, p. 500). Mais uma vez, Adorno (1958/2009) remete a essa antiqussima
dvida que a msica contraiu ao separar o esprito do fsico:
A dialtica hegeliana de senhor e escravo chega por fim ao senhorsupremo, ao esprito que domina a natureza. Quanto mais este espritoavana para a autonomia, mais se afasta da relao concreta com tudoo que domina, homens e matria por igual. Logo que domina em suaprpria esfera (que a da livre produo artstica), o esprito dominatudo at a ltima entidade material; comea a girar sobre si mesmocomo se estivesse aprisionado e desligado de tudo quanto lhe opostoe de cuja penetrao havia recebido seu significado prprio(ADORNO, 1958/2009, p.26).
E o esprito, que foi expulso como algo perigoso e irracional, d coisa o
carter de metafsica, desliga-se de suas determinaes materiais, e se torna fetichista:
A plenitude perfeita da liberdade espiritual coincide com a castraodo esprito. Seu carter fetichista e sua hipstase como pura forma dereflexo tornam-se evidentes desde o momento em que o esprito jno permanece subordinado ao que no em si esprito, mas que,como elemento subentendido de todas as formas espirituais, o nicofator que a elas confere substancialidade (ADORNO, 1958/2009,
p.26).
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A partir da brutal ciso entre matria e esprito, rompe-se a necessria dialtica
e tenso que permitem msica manifestar seu contedo de verdade. Assim, a msica
pode ser construda tendendo a ser demasiadamente espiritual, ou seja, sem sua base
material e determinao objetiva que lhe d substancialidade. Arvora-se a, na pretenso
de uma expresso que seja puramente espiritual, encantatria e fantasmtica, e se
entrega ao fetichismo.
Na obra Crtica dialtica em Theodor Adorno - Msica e verdade nos anos
20, ao discutir o Expressionismo18, Almeida (2007) fornece um exemplo de como o
jovem Adorno se preocupou com a veracidade da obra de arte num movimento de
absolutizao do eu, que, apesar de nascido do incmodo com a sociedade vigente e no
sem contradies, se descola das determinaes materiais. O autor afirma que omovimento expressionista buscou resolver as contradies entre o eu e o mundo, mas
no pela reconciliao e, assim, os expressionistas buscam no prprio Eu o
fundamento do mundo que o constrange (ALMEIDA, 2007, p.39).
Mesmo na esperana de transformar o mundo ps Primeira Guerra, a arte
expressionista mergulha na subjetividade do eu e tende ao solipsismo. Almeida
(2007) no se refere fetichizao da msica, mas parece ser possvel considerar o
momento expressionista como um exemplo da tendncia fetichizao do material poreste momento almejar uma pureza subjetiva: como o Expressionismo absolutiza o
Eu, justamente pela proposta de expressar uma vivncia do mundo livre de
constrangimentos formais, corre o risco de perder essa relao com o tpico, e assim sua
veracidade e validade, sucumbindo ao solipsismo (p.40).Ao no buscar a reconciliao
entre o eu e o mundo, mas algo como uma recusa, ou uma fuga, a obra de arte tenderia a
uma falsidade que pode ser considerada fetichista.
possvel, ento, afirmar que, para Adorno, tanto a extrema objetivao do
material musical quanto a construo de uma obra musical que se arvora numa
espiritualidade descolada da determinao material, produzem uma fetichizao da
msica no mbito tcnico, ou seja, tanto a entrega intangibilidade fetichista como a
recusa amedrontada de toda e qualquer forma de fetiche, condenam a msica a um
retorno que sintomaticamente fetichista. A desconsiderao do material musical
enquanto dialtica e tenso entre elementos distintos e contraditrios, entre esprito e
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Sugere-se aqui a leitura de MATTOS, C. V. de, Expressionismo alemo, arte e vida, para uma melhorcompreenso da crtica adorniana a esse movimento artstico.
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matria, entre racionalidade e magia, produz uma msica enfeitiada que recusa sua
tarefa no movimento dialtico e contraditrio da Histria.
Uma forma de elaborao da fetichizao do material musical que o artista
enfrente a tarefa aportica da msica frente s contradies histricas e mantenha a
necessidade de tenso e dialtica no interior da obra, concebendo a composio como
uma resposta a problemas histricos configurados no conjunto de possibilidades sonoras
e formais que se impem ao artista (ALMEIDA, 2007, p.101) como o faz, ao menos
em uma fase de seu trabalho, Schoenberg, o compositor dialtico19 (ADORNO,
1934/2008). Por sua vez, a possibilidade de manter a dialtica e a tenso na estrutura
interior, composicional, e exterior, social, se d pela prpria linguagem tcnica da
msica, pelo aspecto incondicionalmente tcnico do seu poder encantatrio
(ADORNO, 1970/2011, p.327).
Frisa-se: a possibilidade da prpria estrutura da obra de arte ser construda
como elaborao da fetichizao do material musical torna o material musical dialtico
e artstico. Em outras palavras, a msica pode ser composicionalmente pensada em
considerao dialtica e contradio de elementos mgicos e racionais. No entanto,
vale marcar, mesmo a msica que enfrenta sua tarefa histrica e composicionalmente
encara a dialtica pode ser condenada a um retorno no elaborado ao fetiche devido a
outros aspectos: pode ser envolta pelo fetiche da mercadoria ou pode ser percebida de
forma fetichizada por ouvintes regredidos. Beethoven, por exemplo, leva a tcnica de
19No texto intitulado El compositor dialtico (1934/2008), Adorno explica a dialtica na obra deSchonberg afirmando que: Em Schnberg no se trata do arbtrio e do capricho de um artistasubjetivamente desvinculado, tal por exemplo como quando ele quis etiquetar-se de expressionista. Mastampouco se trata do trabalho de um arteso cego que vai atrs de sua matria fazendo clculos, semintervir nela ele mesmo espontaneamente. O que em verdade melhor caracteriza Schnberg; o que deveser entendido como origem de sua histria estilstica assim como de suas tcnicas; o nico de onde talvezse possa extrair um conhecimento srio, uma troca de princpios e, do ponto de vista da histria,
extremamente exemplar no modo de comportar-se com seu material por parte do compositor. Este j noostenta ser seu criador nem tampouco obedece a sua regra previamente dada. (...) Mas esse sentido podequalificar-se de dialtico. Em Schnberg a contradio entre rigor e liberdade no se supera no milagre daforma (p.213-214, traduo minha). No espanhol: Em Schnberg no se trata del arbtrio y el caprichode um artista subjetivamente desvinculado, tal por ejemplo como cuando se lo quiso etiquetarexpressionista. Pero tampoco se trata del trabajo de um artesano cigo que v detrs de su matria haciendoclculos, sin intervenir em ella ya espontneamente El mismo. Lo que em verdad caracteriza msbien a Schnberg; lo que debe entenderse como origen de su historia estilstica a s como de sus tcnicas;lo nico de donde quiz pueda extrairse um conocimiento serio, es um cambio de princpios y, desde elpunto de vista de la historia, sumamente ejemplaren el modo de comportarse com su material por partedel compositor. ste ya no alardea de ser su creador ni tampoco obedece a su regla previamente dada. (...)
Pero este sentido puede calificarse de dialctico. Em Schnberg la contradiccin entre rigor y libertad nose supera ya en el milagro de la forma (p.213-214).
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seu tempo mxima possibilidade, podendo-se dizer que, sua obra, em grande medida,
encara a tarefa aportica da msica de seu tempo : o Beethoven tardio preside rejeio
musical da nova ordem burguesa