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INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA JANIVALDO PACHECO CORDEIRO DOS (DES)CAMINHOS DE ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS AO AUTÍSTICO MUNDO DE SOFIA A MATEMÁTICA E O TEATRO DOS ABSURDOS Vitória 2015

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INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E

MATEMÁTICA

JANIVALDO PACHECO CORDEIRO

DOS (DES)CAMINHOS DE ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS AO AUTÍSTICO

MUNDO DE SOFIA – A MATEMÁTICA E O TEATRO DOS ABSURDOS

Vitória 2015

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JANIVALDO PACHECO CORDEIRO

DOS (DES)CAMINHOS DE ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS AO AUTÍSTICO

MUNDO DE SOFIA - A MATEMÁTICA E O TEATRO DOS ABSURDOS

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática do campus Vitória do Instituto Federal do Espírito Santo como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação em Ciências e Matemática.

Orientador: Prof. Dr. Edmar Reis Thiengo

Vitória

2015

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(Biblioteca Nilo Peçanha do Instituto Federal do Espírito Santo)

C794d Cordeiro, Janivaldo Pacheco. Dos (des)caminhos de Alice no país das maravilhas ao autístico

mundo de Sofia – a matemática e o teatro dos absurdos / Janivaldo Pacheco Cordeiro. – 2015.

186 f. : il. ; 30 cm Orientador: Edmar Reis Thiengo.

Dissertação (mestrado) – Instituto Federal do Espírito Santo,

Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemática, Vitória, 2015.

1. Matemática - Estudo e ensino. 2. Educação inclusiva. 3.

Autismo. I. Thiengo, Edmar Reis. II. Instituto Federal do Espírito Santo. III. Título.

CDD 21: 510.7

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Às memórias de Dôdo e Quequê.

Aos meus pais pela simplicidade, dedicação e amor aos filhos.

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Se reflito sobre o conceito de “ser”,

não tenho como deixar de lado da minha reflexão o conceito oposto, ou seja,

o “não ser”.

É impossível pensarmos que somos,

sem que no momento seguinte nos lembremos de que um dia não seremos mais.

A tensão entre “ser” e “não ser” é resolvida pelo conceito de “transformar-se”.

Pois o fato de uma coisa se transformar significa, de certa forma, que ela é e não é

(GAARDER, 1995, p. 392).

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AGRADECIMENTOS

Todos os dias quando acordo

Não tenho mais

O tempo que passou

Mas tenho muito tempo

Temos todo o tempo do mundo

(Renato Russo – Tempo Perdido)

É tempo de agradecer. De olhar para os céus e dessa vez, pelo menos dessa vez

não fez pedidos e, sim agradecer! Talvez um pedido de agradecimento, para não

perder o costume do solicitar sempre.

Deus, eu Te peço: muito obrigado!

Agradecimento especialíssimo à minha mãe de quem penso ter herdado toda

paciência do mundo:

Mãe, você é minha diva! Amo você!

Agradecimento tão especialíssimo quanto, ao meu pai, exemplo de vida, que não

mediu esforços para nos educar e nos ensinou desde novos a respeitar os outros e a

vencer por méritos próprios:

Pai você é meu herói! Amo você!

Sem deixar cair a grandeza da especialidade do agradecimento à você

Edmar Reis Thiengo,

por acreditar em mim, por acreditar naquele projetinho inicial de ideias frágeis e

imaturas. Obrigado muito mais que especialíssimo por me ajudar a perceber que

temos o nosso próprio tempo!

Thiengo, obrigado por contribuir, significativamente, para a pessoa que me torno

hoje!

Que Deus o ilumine por todo sempre para que sua luz continue a guiar a todos

aqueles que de ti necessitam!

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Você é um grande amigo!

À Alex Jordane

pelas valiosas contribuições e pelas palavras de apoio a este trabalho. Pela acolhida

no mestrado, na disciplina lecionada, nas qualificações e pelos projetos realizados

em conjunto comigo.

O carinho especial a nós atribuídos potencializam numa relação de amizade

À Carlos Eduardo Ferraço,

agradeço por aceitar a participação neste trabalho, pelo tempo dedicado, e pelas

preciosas contribuições na qualificação que foram essenciais para os ´novos´ rumos

que foram tomados.

À Robson Onofre e Allana Rezende pelo incentivo e pelo ‘tempo perdido’

estudando comigo nas tardes de sábado e domingo para a aprovação nesse

mestrado. À Allana por ter lido diversas vezes este trabalho

e contribuído sensivelmente.

Robson e Allana nosso tempo não foi perdido!

Aos professores do mestrado

que sabiamente compartilharam conosco os seus conhecimentos.

Aos amigos do mestrado, em especial à Organdizinha, Flávio e Nahun

companheiros inseparáveis! E ‘forevermente’ amigos!

Aos meus sobrinhos e sobrinhas: Denise, André, Heloísa, Jorge Neto, Laís,

Larissa, Letícia, Mayara, Jade, Isabel, Daniel, Gabriel, Murilo, que me ensinam

todo dia a amar;

e as outrazinhas que ainda estão por vir.

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Sempre em frente

Não temos tempo a perder

Somos tão jovens!!!

Aos meus irmãos Marilene, Agnaldo, Dôdo (em memória), Quequê (em memória),

Edgard, Iran e Marly, que sempre acreditaram em mim. E aos cunhados: Fabrício,

Nicinha, Cassinha e Mery. Amo vocês!

Então me abraça forte!

Aos amigos Fabiano e Adriano por sempre me motivarem à estudar, a crescer, a ser

melhor, mas sem esquecer do cineminha e da limonada em alguns

finais de semana.

À Aline Saigg pelo amor, orações e conselhos nos momentos de conflito.

Aos amigos do trabalho que se tornaram amigos ‘do peito’: Sílvia, Mara,

Patrícia, Paty, Érica, Alice, Zezé, Rachel, Jeane, Regina, Mellyssia, Tatiana,

Zenilda, Jamilly, Elisângela, Adriana e tantos outros...,

o meu muitíssimo obrigado!

À Alcione pela multidão de risos trazidos à nossa vida!

À Professora do AEE.pelo carinho e dedicação.

A Alice e Sofia por inquietarem e desarrumarem a conformidade de minha vida!

Obrigadíssimo!

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- [...]Na certa você já ouviu falar do teatro do absurdo.1

- Sim.

- E você entende o que a palavra “absurdo” significa?

- Significa alguma coisa sem sentido ou irracional, não é?

- Exatamente. O “teatro do absurdo” está preocupado em mostrar a falta de sentido da vida.

O que se espera é que o público assista à peça, mas também reaja a ela. Não era objetivo

deste teatro, portanto, fazer uma apologia da falta de sentido da vida. Ao contrário: por

meio da representação e da exposição às claras do absurdo, em cenas do cotidiano, por

exemplo, o público era levado a refletir sobre a possibilidade de uma vida mais verdadeira, mais

essencial.

- Continue.

- Frequentemente, o “teatro do absurdo” aborda situações absolutamente triviais. O homem é

representado exatamente como é. Mas quando você leva para o palco de um teatro o que

acontece, por exemplo, dentro do banheiro de uma casa como todas as outras, numa manhã

como todas as outras, o público acaba rindo. Este riso pode ser entendido como um mecanismo

de defesa contra o fato de as pessoas se verem representadas sem rodeios no palco

(GAARDER, 1995, p. 490 – 491, destaques do autor).

1 Diálogo entre Sofia Amundsen e o seu professor de filosofia. Sobre a referência ao teatro, a expectativa é que o leitor se (re)conheça em várias situações deste texto.

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CAMPUS VITÓRIA

Avenida Vitória, 1729 – Bairro Jucutuquara – 29040-780 – Vitória – ES

27 3331-2110

RESUMO

Na tentativa de discursar sobre os saberesfazeres e imagensnarrativas de/sobre

crianças especiais desenvolvidos nos espaçostempos de uma escola, e também

sobre a matemática e a inclusão, este estudo propõe acompanhar e analisar o

cotidiano dessas crianças nas aulas de matemática e no atendimento educacional

especializado. Para isso, adentrou-se no cotidiano escolar dessas alunas,

acompanhando-as na sala de aula e no atendimento educacional especializado no

sentido de entender as redes construídas e desconstruídas, os saberesfazeres e os

(des)caminhos aos quais estão expostas. Entre eles, elencam-se o despreparo dos

profissionais envolvidos nesse processo, a falta de políticas de aperfeiçoamento

desse profissional e de outras que assegurem a permanência da criança especial na

escola, as condições físicas precárias dos estabelecimentos de ensino, além das

discriminações às quais estão sujeitas. Com o intuito de enriquecer esta reflexão,

dialogamos com Certeau, Foucault, Ferraço, e Alves como principais referenciais

teóricos. A discussão estabelecida envolveu um pouco daquilo que ao longo foi

sendo, em nós, (des)construído sobre a inclusão dos alunos especiais na sala de

aula, e aos (des)encantos aos quais foi possível sentir. Esta proposta não pretende,

contudo, se articular em conceitos sistemáticos, fechados e limitados em si mesmos,

pelo contrário o objetivo é fazer uma ampla abertura para reflexões futuras sobre o

cotidiano e as pesquisas com o mesmo, tecidas, primordialmente, em uma

perspectiva inclusiva. Buscar respostas sobre a forma como elas estão sendo

incluídas na escola. A proposta pode se tornar uma tentativa de sensibilizar os

outros alunos e as demais pessoas envolvidas nesse cotidiano sobre a importância

de respeitar, aceitar e se colocar no lugar do outro. A pesquisa foi realizada em uma

Escola Estadual situada no município de Vila Velha/ES, referência em inclusão

nesse município.

Palavras-chave: Cotidianos. Autismo. Educação Matemática Inclusiva.

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CAMPUS VITÓRIA

Avenida Vitória, 1729 – Bairro Jucutuquara – 29040-780 – Vitória – ES

27 3331-2110

ABSTRACT

In an attempt to speak about the doing-knowledges and narrative images of/on

special children developed in space and times of a school, and also on the math and

the inclusion, this study proposes monitoring and analyzing the daily lives of these

children in math classes and specialized educational services. For this, it entered in

the daily school life of these students, following them in the classroom and

specialized educational services in order to understand the constructed and

deconstructed networks, doings knowledges and the (mis) direction to which they are

exposed. Among them, we mentioned the unpreparedness of the professionals

involved in this process, the lack of such professional development and other policies

to ensure special child staying in school, poor physical conditions of schools, in

addition to the discrimination to which they are subject. In order to enrich this

reflection, we dialogue with Certeau, Foucault, Ferraço, and Alves as main theorical

frameworks. The discussion established involved a little of what was being over in us

(un) built on the inclusion of special students in the classroom, and (un) charms to

which it was possible to feel. This proposal doesn’t mean, however, to be articulated

in systematic, closed concepts and limited in themselves, otherwise the goal is to

make a wide opening for future reflections on the daily and searches with the same,

written primarily in an inclusive perspective . Trying to find answers on how they are

being included in the school. The proposal can make an attempt to raise awareness

among other students and other people involved in this environment about the

importance of respect, accept and put yourself in the others place. The survey was

conducted in a state school in the municipality of Vila Velha / ES, reference on

inclusion in this municipality.

Keywords: Environments. Autism. Inclusive Mathematic Education.

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SUMÁRIO

1 PROCLAMA PRIMA O EDITO “COMECE!”, DIZ SOBRANCEIRA. MAIS

GENTIL, SEGUNDA ESPERA: “QUE NÃO CONTENHA ASNEIRA!” TERTIA

A CADA MINUTO DETÉM O CONTO, FACEIRA ............................................ 14

1.1 “PARA QUE LADO? PARA QUE LADO?” .......................................................... 15

1.2 “AGORA ESTOU ME ABRINDO COMO O MAIOR TELESCÓPIO QUE JÁ

EXISTIU! ADEUS PÉS!” ....................................................................................... 21

1.2.1 Descendo pela toca do coelho .......................................................................... 23

1.2.2 O conselho de uma lagarta ................................................................................ 26

1.3 A POÇA DE LÁGRIMAS ....................................................................................... 29

2 A CORRIDA-CAUCUS E UMA LONGA HISTÓRIA.......................................... 34

2.1 O DEPOIMENTO DE ALICE ................................................................................ 39

2.2 DE ALICE E SEU FASCINANTE PAÍS DAS MARAVILHAS AO ... COMPLEXO

MUNDO DE SOFIA ............................................................................................... 44

2.3 “SOFIA, SOFIA... QUEM É VOCÊ? DE ONDE VOCÊ VEM? POR QUE

VOCÊ ENTROU NA MINHA VIDA?” ................................................................... 46

3 O COELHO MANDA UM RECADO PELO LAGARTO ..................................... 55

3.1 OU O UNIVERSO SEMPRE EXISTIU, OU ENTÃO UM DIA SURGIU DO

NADA... ................................................................................................................... 55

3.2 UM CHÁ MUITO LOUCO...................................................................................... 61

3.2.1 O campo de croqué da rainha ........................................................................... 64

3.2.2 A Duquesa ............................................................................................................. 68

3.2.3 Bia: a convidada para a festa filosófica nos jardins de Sofia .................... 71

3.3 O QUE FAZEMOS COM OS MOSQUITOS, SOFIA? VOCÊ PODE ME

DIZER? ................................................................................................................... 76

4 QUE SE ABRAM AS CORTINAS, SOFIA! ........................................................ 91

5 E AGORA VOCÊ PRECISA SE DECIDIR, QUERIDA SOFIA: VOCÊ É UMA

CRIANÇA QUE AINDA NÃO SE “ACOSTUMOU” COM O MUNDO? ....... 173

REFERÊNCIAS ................................................................................................... 182

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Juntos na tarde dourada

Suavemente a deslizar,

Nossos remos, sem destreza,

Dois bracinhos a manejar,

Pequeninas mãos que fingem

Nossa direção guiar.

As Três cruéis! Nesta hora,

Sob este sonho de tempo,

Implorarem por histórias

Com o mínimo de alento!

Mas que pode a pobre voz

Contra três línguas sedentas?

1 PROCLAMA PRIMA O EDITO “COMECE!”, DIZ SOBRANCEIRA. MAIS GENTIL, SEGUNDA ESPERA: “QUE NÃO CONTENHA ASNEIRA!” TERTIA A CADA MINUTO DETÉM O CONTO, FACEIRA

E de repente o silêncio,

Com os passos da ilusão

Perseguem a criança-sonho

Pelas terras da invenção,

Falando a seres bizarros...

Uma verdade, outra não.

E assim que a história secava

As fontes da fantasia,

Em vão tentava o cansado

Desfazer o que tecia,

“Mais, só depois...” “É depois!”

Gritavam com alegria.

Forjou-se assim, lentamente,

O País das Maravilhas,

Está pronto para a casa

Já foi virada a quilha

Pela alegre equipagem

Sob um sol que já não brilha.

Com mãe gentil, entre os sonhos,

Alice! Guarda este conto

Na memória da infância,

Sob seu místico manto,

Grinalda que um peregrino

Colheu em terras de encanto.

(CARROL, 1998, p. 3-4).

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1.1 “PARA QUE LADO? PARA QUE LADO?”2

A história a qual se pretende contar não é a de um conto de fadas. Até poderia ser,

se o espaçotempo3 em que me encontro fosse realmente um País de Maravilhas.

Uma personagem de uma dessa história, que é verídica, poderia ser Alice, e é

Alice4! Porém é uma Alice do mundo real, que sofre de Desordem Mitocondrial

associada à Deficiência Intelectual, mas que se aventura por um mundo tão

estranho, tão esquisito, tão mágico, tão encantador, quanto o da outra Alice. É muito

provável que essa duplicidade de “Alices” possa causar confusões. Não é esse o

objetivo! Todavia, pretende-se que essa possível troca, ora real ora imaginária,

provoque reflexões. O foco desta pesquisa não é somente ela! Entretanto, é

importante mencionar em diversas partes deste texto que foi por meio dela que o

meu interesse pelos alunos especiais se fez mais presente.

Esta é uma primeira parte da história a ser contada. Não há entre elas uma que seja

mais importante: ambas se complementam. A primeira impulsiona a segunda e a

segunda provoca reflexões sobre a primeira. A outra parte da história é a história de

Sofia, personagem que será conhecida mais adiante.

Para início, ouço, então, o Rei do “País das maravilhas”, e tentarei seguir a sua

ordem:

Comece pelo começo, disse o Rei muito sério, “e continue até chegar ao fim, então pare”

(CARROL, 1998, p. 164)5.

2 CARROL, 1998, p. 22. 3 O uso de palavras agrupadas dessa forma é utilizada por cotidianistas, como Nilda Alves e Carlos Eduardo Ferraço para atribuir um novo sentido e ressaltar que esses processos acontecem juntos, dependentes, entrelaçados. 4 Nome fictício em alusão à personagem Alice no País das Maravilhas: uma criança perdida em um mundo que a considerava diferente. 5 Volta e meia o texto será agraciado por frases dos livros: Alice no País das Maravilhas de Lewis Carol e O Mundo de Sofia de Jostein Gaarder, com o intuito provocar reflexões, pausar a leitura, dar

um tempo: sincronizar o texto com a vida. Tais trechos serão grafados em fonte especial para dar

destaque e leveza e, ao mesmo tempo, “desnormatizar” a norma, fugir da modelização. O uso

desses trechos poderá causar troca de interlocutores. O texto, em geral é um diálogo direcionado ao leitor, porém partes dele poderá ser um diálogo entre mim e Alice, ou entre mim e Sofia, personagens dos livros. É necessário salientar que esta parte estética, apoiada pela literatura, música e poesia, é de fundamental importância para a fluidez da pesquisa e aproximação com o universo dos sujeitos envolvidos. Em alguns momentos dispensou-se propositalmente o uso da ênclise ou da próclise, com o intuito de não fugir de mim mesmo.

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Nesse momento, fiquei a pensar onde seria o começo. E, mergulhado nesse conto

de fadas, lembro-me do meu tempo de infância, das histórias contadas e que me

fascinavam, fazendo-me viajar, e assim me pergunto: mas é preciso ir tão longe?

Não corro o risco de trazer asneiras?

Atendendo ao impositivo do rei, resgato em meu auxílio uma história tão linda e tão

conflitante, que se apresenta metade louca e, por incrível que isso possa parecer, a

outra metade também. A história de Alice no País das Maravilhas nos envolve e nos

deixa ora insanos, ora reflexivos. Quem de nós nunca conversou com um bicho,

quer seja um gato ou um pássaro? Sentiu-se pequeno e grande? Perdido ou

achado?... Assim, sirvo-me do diálogo entre Alice e o gato, e reflito sobre aonde

quero chegar, ou de onde devo partir:

“Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar pra sair

daqui?”

“Isso depende bastante de onde você quer chegar”, disse o Gato.

“O lugar não me importa muito...”, disse Alice.

“Então não importa que caminho você vai tomar, disse o Gato

“... desde que eu chegue a algum lugar”, acrescentou Alice em forma

de explicação.

“Oh, você vai certamente chegar a algum lugar”, disse o Gato, “se

caminhar bastante.” (CARROL, 1998, p.84).

E assim, parto como Alice, nessa caoticidade que é o seu mundo e que também é o

meu, embora sejam mundos distintos. Vou chegar a algum lugar se eu caminhar

bastante. Mesmo que obstáculos sejam encontrados, ou até mesmo que nesse

caminho surjam “Rainhas de Copas” que mandem cortar a cabeça, ou “Chapeleiros

Malucos” que apontem charadas insolúveis.

Assim, nessa caminhada, dividido entre esses dois mundos, entre duas Alices (ou

várias delas) e, com isso, nem sei se eu continuo sendo eu mesmo, ou se já existe

um novo eu. Ora estou no país das maravilhas de Alice, ora no espaçotempo da

Alice de minha sala de aula. Enquanto uma é personagem principal de sua história,

a outra parece lutar e acreditar que o simples fato de ser percebida pelos outros, de

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ser vista, de ser tocada, abraçada, a faz feliz. Dessa forma, materializa-se a

dicotomia dos dois mundos: dos sonhos e o real.

Inserido no lugar de Alice, (a de Carrol), começo a observar um mundo que é tão

caótico quanto o País das Maravilhas. Há seres diferentes lá, como os daqui. Há

também quem não respeite os seres de lá e há pessoas lá que não são

consideradas normais, como aqui. E, então, percebo que não sou uma pessoa

normal, talvez ninguém seja, se é que a normalidade existe. Também fica visível

que, assim como Alice, a cada segundo, minuto, hora ou dia, é preciso tomar

decisões, mas o medo de ser julgado, mal interpretado conduz a escolhas, que nem

sempre são as melhores.

Coloco-me agora como Alice estudante. Alice é deficiente, (e quem em sua

“completude” não é?) e, mesmo assim, é normal, porque é humana. Agora sim

encontro-me perdido. Há tantas coisas acontecendo! E nesse movimento me

desperto para alguns episódios intrigantes e me surpreendo pensando: são poucos

os que a vêem, poucos falam com ela, e quando falam, a tratam feito criança. Às

vezes, é possível pensar que ela não existe e é uma alma a vagar pela vida, ou

adquiriu super poderes e, agora, é uma Alice invisibilizada. Talvez isso despertasse

sentimentos contraditórios e, entre tantos pensamentos, um deles apresentaria o

fato de Alice “não ser vista” para evitar “trabalhos” maiores.

E, então, torno-me o professor que vê Alice, mas que não a enxerga e fica a se

preocupar sobre os saberesfazeres que são necessários para lidar com ela e ainda,

sobre as teoriaspráticasteóricas adequadas que é preciso desenvolver para ajudá-la,

já que a sua presença instiga imagensnarrativas. Alice é mais uma entre centenas

de meus alunos. É especial, como cada aluno deveria ser. Assim, entre tantas

reflexões, para entendê-las basta saber que ela é minha aluna, e devo percebê-la

desse modo.

Se está lendo este texto agora, provavelmente deve ser um professor, ou pretende

vir a ser. Por isso, sinta-se convidado a pensar em seus alunos especiais e a

problematizar sobre as imagensnarrativas feitas deles. Possivelmente, os seus

pensamentos foram na direção daqueles que são vistos como coitadinhos, como

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aqueles possuidores das maiores dificuldades de aprendizagem e, como

consequência, “não há muito o que fazer por eles, pois estão aqui só para

socialização”. Se o seu pensamento emergiu assim, pode-se afirmar que viu Alice

personificada na imagem do seu aluno especial. Se os seus pensamentos são

contrários a esses, está alguns passos à frente.

Completamente “clichetizada”, Alice é observada com seus sonhos perceptíveis de

se sentir ‘viva’ e, ao mesmo tempo, com “o seu não aprender nada do que

ensinamos” e “com o estigma de que “está no lugar errado”. Afinal, “aqui não é

APAE6 e nem PESTALOZZI]”7, já disse uma de suas professoras! E, com isso, cria-

se para Alice imagensnarrativas pejorativas de sua aparência, limitando as suas

ditas (in)habilidades às suas deficiências físicas e intelectuais. As dificuldades de

aprendizado de Alice não são vistas como as dificuldades do professor em ensiná-la.

Nesse contexto, Alice é minha aluna, sem ser; Alice faz parte da sala, sem fazer;

Alice é ser humano, sem ser. Assim, também sou professor de Alice, sem ser, pois é

bem mais fácil para mim, invisibilizá-la, como já feito com tantos outros que por suas

deficiências também foram invisibilizados. Alice impulsionou-me à pesquisa, abriu-

me os olhos, despertou-me os sentidos. Sua ausência8 conduziu ao envolvimento

com o mundo de Sofia9 e a trouxe para a pesquisa e, por meio delas, foi possível

perceber tantas outras crianças que necessitam da atenção de todo educador.

E assim, fatos como esse, que tramam e destramam os cotidianos, colocam o

professor à prova todos os dias, mas, entre as dificuldades e obstáculos a serem

trespassados, é preciso fazer escolhas, tomar decisões, percorrer caminhos.

No trilhar desse caminho, você é, portanto, convidado a percorrê-lo junto comigo e,

de antemão, agradeço pelo interesse e pela paciência. Se boas escolhas foram

feitas, ainda não é possível dizer, porém momentaneamente estou feliz com elas e,

por enquanto, bastam-me!

6 Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais. 7 Entidade de assistência para pessoas com deficiência intelectual. 8 Essa ausência é explicada no capítulo 2. 9 Essa questão será melhor detalhada no capítulo 2.

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Desejo que este trabalho seja inspirador para novas pesquisas, que supere

(pré)conceitos, como superei, que amplie o horizonte como ampliei o meu e que, por

conseguinte, tornou-me melhor.

Para isso, foi necessário abrir a cabeça, escancarar de vez as portas do armário que

me prendia. E...

“Quando nos damos conta, passamos de lagarta à borboleta. Já analisou o quanto a lagarta sofre até

se transformar em borboleta? Por instinto, ela sabe que algo de muito grande acontecerá em seu

organismo e que terá que sair do cômodo e seguro casulo para enfrentar o desconhecido (MORAES,

s.d., s.p.).”

E, desse modo, aceitei o desafio de ter a capacidade de me identificar com outra

pessoa, de me colocar no lugar dela e, assim, compreendê-la (BECHARA, 2011).

Para isso, é preciso compreender que o papel de professor requer uma identificação

com o outro e respeitar cada ser humano da maneira como é, livrar-se de

preconceitos, de julgar-se melhor do que os outros.

E assim como Tennyson convida, você é convidado a fazê-lo também:

...Vamos, meus amigos,

Não é tão tarde para buscar um mundo novo.

Desatracai, e sentados bem em ordem batei

Nas esteiras sonantes; pois meu intento continua a de

Velejar além do pôr-do-sol, e dos mergulhos

De todas as estrelas ocíduas, até que eu morra.

Pode ser que os golfos nos devorem:

Pode ser que toquemos as Ilhas Afortunadas,[...]

(TENNYSON, 1842, s.p.).

Com esses fundamentos, mergulhei no mundo dos cotidianos, das pesquisas

no/do/com os cotidianos entrelaçados em uma perspectiva ainda mais apaixonante,

em uma rede de comunhão tecida entre os sujeitos e a matemática observada numa

perspectiva inclusiva. As amplas possibilidades de contagiar “o mundo” na busca de

humanizá-lo, os seus vieses que podem incluir, colaborar, crescer e não marginalizar

qualquer indivíduo que esteja sujeito a ele. Para tanto, foi preciso se render ao

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mundo do autismo e ao “mundo de Sofia”, já que não foi mais possível contar com a

presença de Alice, pois ela não pôde mais comparecer às aulas. Portanto,

estabeleceu-se uma dedicação a essa criança e a “seu mundo isolado”, ou de

maneira mais óbvia, aconteceu um sair do meu e adentrar/conhecer o seu, pois

talvez seja mais fácil o meu deslocamento (nesse momento) ao invés do dela para,

assim compreender um pouco mais desse “infinito particular”, desse mundo singular.

Por conseguinte, nessa perspectiva, houve neste trabalho uma procura direcionada

ao valorizar as diferenças, entender os limites e os avanços dos envolvidos nesta

pesquisa, colaborando, ouvindo, apontando caminhos, acertando, errando, mas,

acima de tudo, procurando colocar sentimentos e explorar os sentidos em todos os

momentos.

Nosso desafio está em problematizar essa confluência entre o cotidiano dos alunos

especiais e a matemática, e que precisa ser pensada, enredada, enlaçada com nós

que, ao mesmo tempo firmes, oferecem possibilidades de desatar outros que se

tornaram cegos, principalmente quando focada nesse público, uma vez que muitas

vezes sua deficiência é vista como a própria barreira da dificuldade.

Para tanto, a proposta foi acompanhar duas alunas especiais, Alice e Sofia, no

cotidiano escolar e em algumas atividades curriculares de alfabetização e processos

de contagens, desenvolvidas apenas com Sofia, uma vez que não foi possível a

participação integral de Alice no decorrer da pesquisa.

O problema situou-se, mergulhando com todos os sentidos, na busca para

responder à seguinte questão: “como acontece o processo inclusivo das alunas

Sofia e Alice em uma escola pública de Vila Velha, particularmente nas aulas de

matemática?”

Nessa perspectiva, de maneira mais geral, pretende-se com este trabalho

problematizar sobre os saberesfazeres matemáticos e as imagensnarrativas

provocadas por alunas especiais nos espaçostempos de uma escola regular.

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Para tanto, de forma mais específica propôs-se: (a) problematizar as redes tecidas

entre saberesfazeres e espaçostempos dos sujeitos envolvidos nas aulas de

matemática, (b) problematizar as relações, os encontros e os diálogos produzidos

em torno desses alunos, personificados nas figuras de Alice e Sofia e (c)

problematizar as produções dos sujeitos envolvidos na pesquisa em uma dimensão

ético-estético-político.

Pode ser que assim seja possível entender melhor a vida, pode ser que toquemos as

nossas Ilhas Afortunadas... É, pode ser!

1.2 “AGORA ESTOU ME ABRINDO COMO O MAIOR TELESCÓPIO QUE JÁ EXISTIU! ADEUS PÉS!10”

Ou o poço era muito fundo, ou ela estava caindo muito devagar, pois teve bastante tempo

para olhar ao redor enquanto caía e para se perguntar o que iria acontecer a seguir (CARROL,

1998, p.13).

A história começa um pouco antes disso. Alice encontra um coelho que, às pressas,

corre em direção à toca. Ela não se surpreende com as falas do coelho “Oh, meu

Deus! Oh, meu Deus! Vou chegar tarde!”. Mesmo achando que deveria se

surpreender. Alice seguiu o coelho e adentra a toca sem sequer pensar como é que

iria sair dela de novo.

E, então, assim como Alice adentra uma toca sem pensar no que a espera, entrei,

por força do acaso, no curso de Ciências/Matemática. Nesse período, também tive

bastante tempo para olhar ao meu redor e me questionar, por diversas vezes, o que

iria acontecer a seguir.

A decisão de entrar para a Educação, em 1998, foi como sendo a última das minhas

escolhas. A maioria dos jovens do interior, - como eu que sou de uma pequena

cidade: Serra dos Aimorés – MG, sonha em ser médico pelo relevo dado a essa

profissão, ou então advogado. Ainda não sei se o sonho era meu, ou se era do meu

pai. Tornar-me “doutor” faria de mim o orgulho de meus pais e dos meus irmãos.

10 CARROL, 1998, P.23

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Enfim, terminado o 2º grau em 1996, tentei vestibulares de Medicina e Direito, sem

sucesso nos anos de 1996 e 1997, respectivamente.

Entristecido, resolvi fazer o magistério para não ficar parado e assim tomei gosto

pela área. Excelentes professores me fizeram sentir a importância dessa profissão e

o quanto eu poderia ser importante na vida de meus alunos. Essa percepção ocorreu

quando surgiu a primeira oportunidade de substituir um professor na escola em que

havia estudado. Pois, o término do ensino médio permitiu a aventura e dar os

primeiros passos, embora titubeantes, para substituir uma licença para tratamento

de saúde de uma colega. A empolgação com o novo, o medo, a vontade de poder

ensinar os outros causaram insônia, porém também foi desafiador. A licença durou

apenas quinze dias, mas a satisfação de ter o dever cumprido, de saber que foi

importante para mim prevaleceu. Depois dessa, outras licenças surgiram e, assim,

cada vez mais adentrei o impressionante mundo da Educação.

No ano de 1999, em continuação aos estudos, prestei vestibular para

Ciências/Matemática na Universidade do Estado da Bahia, Campus X, em Teixeira

de Freitas. Em 2000, já estava de mudança para aquela cidade e matriculado no

curso. Estudava de dia e trabalhava como professor, à noite. E como não poderia

escolher, pois precisava trabalhar, consegui trabalho na rede municipal de

educação, lecionando para alunos da Educação de Jovens e Adultos - EJA do

ensino fundamental as disciplinas de Português, Geografia e Matemática.

Dois anos depois, algo me fez acreditar que sair da educação e ingressar em uma

outra carreira pública me faria mais feliz. Nunca entendi como alguém poderia estar

bem em uma sala de aula com todo o descaso e desmotivação que os professores

vivenciam, seja pelos alunos descompromissados, pelo salário degradante pago

pelo governo, pela falta de união da categoria, ou pelo desapego das famílias, entre

outros fatores. Então, voltei para Minas Gerais para servir a Polícia Civil daquele

Estado. Foram precisos exatos dois anos para perceber que havia me equivocado.

Tempos depois, conclui a faculdade, fiz pós-graduação à distância, também em

Matemática e resolvi voltar para a educação. Trabalhei nos municípios de Serra dos

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Aimorés – MG, Lajedão - BA e, por fim, em Mucuri – BA onde fui concursado por

quase dois anos.

Insatisfeito e infeliz naquele momento, sentia que algo em minha vida não estava

completo. Bom sentir isso, bom saber que a vida nunca está completa. Isso estimula

a vontade de buscar mais, de correr atrás, de ir além, isso vivifica. Dessa forma,

resolvi fazer o concurso para professor de Matemática no Estado do Espírito Santo,

cargo ocupado até hoje trabalhando em duas cadeiras.

1.2.1 Descendo pela toca do coelho

Primeiro, tentou olhar para baixo e descobrir onde ia chegar, mas estava escuro demais para

ver alguma coisa (CARROL, 1998, p.13).

Assim como Alice, que não enxergava por estar escuro, o pensamento sobre

inclusão implicada em cegueira pessoal. Porém, com as muitas pedras encontradas

pelo caminho da educação foram construídas paredes sólidas, ora de defesa e ora

de distanciamento do propósito de educador. Isso conduz à lembrança dos alunos

especiais, que por muitas vezes, são consideradas como pedras no caminho.

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra

(Carlos Drummond de Andrade)

É muito provável que o poema de Drummond cause certo estranhamento, mas era

esse o sentimento ao ver um aluno especial em sala de aula e, além disso, havia a

dificuldade de se compreender a razão pela qual as diferenças dele o tornava

“especial”. Porque não era assim que eles eram vistos, mas sim como pedras no

caminho que precisavam ser contornadas! E, semelhantes às pedras, esperava-se

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que ficassem imóveis, quietas, silenciosas. Todavia, isso seria apenas um paliativo,

pois a solução definitiva seria retirá-las do caminho.

“Você deve envergonhar-se de si [...]” disse Alice (CARROL, 1998, p.25).

A universidade cursada não ofertou nenhuma disciplina sobre inclusão, educação

especial ou práticas inclusivas. Não se discutia muito a respeito desse assunto. O

contágio ocorria pelos números e pouco importavam as práticas pedagógicas

inclusivas.

Entretanto, o primeiro contato com alunos com necessidades educacionais

especiais11 aconteceu quando ainda era universitário e trabalhava em uma escola

municipal da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Nesta escola havia um aluno

especial e, é claro, sem ideia alguma de como trabalhar com ele. Pouco se discutia

sobre a inclusão e poucos acreditavam que o trabalho era possível. Infelizmente,

não foi possível deduzir o que esse aluno tinha, qual era sua real necessidade, mas

11 Esta expressão deve ser entendida com referência às necessidades de todos os alunos que, por quaisquer que sejam os motivos, enfrentam obstáculos no processo educativo.

Alguém já parou para pensar como seria ser uma pedra?

Quanta beleza pode estar escondida em uma delas? Há

pedras lindas, exóticas, mas também há somente pedras...

Quanta frieza e indiferença ela pode conter? Para alguns e

para mim mesmo, num momento: pedra de tropeços, mas que

se transformaram em pedras que impulsionam, que me

fizeram abrir os olhos fatigados da alma e olhar para tais

pedras e perceber uma beleza ainda não existente, por falta

de minha sensibilidade

(Reflexões com Thiengo, Abril de 2014)

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pelo seu comportamento, pelas suas falas em sala de aula, percebeu-se que era

“diferenciado”. Assim, encontrei-me diante do meu primeiro aluno completamente

invisibilizado.

No Espírito Santo ocorreu um maior contato com alunos com necessidades

educacionais especiais, entretanto, eles já não eram somente “as pedras no

caminho”. Isso porque, além do fato de se sentir despreparado, ecoava no ambiente

escolar as falas de alguns funcionários:

Mais uma vez as crianças são “clichetizadas”, julgadas incapazes de aprender por

apresentar alguma deficiência, ou por serem diferenciadas, limitando-se, assim, suas

presenças em sala de aula como processo único de socialização. Processo esse

que, mesmo sendo importante, nem sempre acontece. E, então, o aluno especial é

invisibilizado mais uma vez, mesmo quando a ele é dado uma atividade mecânica,

repetitiva ou sem sentido com o objetivo único de mantê-lo ocupado, ou de atribuir-

lhe uma nota de avaliação.

Muitas vezes, adotei essa postura, isso porque compreender e aceitar o propósito da

inclusão implicaria em mais trabalho, mas posso afirmar que hoje tenho superado

essa fase. A postura adotada, assim, igualou-se a de muitos outros. Embora se

desconheça a forma de trabalho de outros professores, pode-se dizer que não havia

Fulano é inclusão! Está aqui

só para socialização!

Não se preocupe com

fulano. Dá a média para

ele.

Passo qualquer coisa só pra dizer que fulano

tá fazendo algo.

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nada de especial nos planejamentos. Destarte, não importa qual prática o colega

realize, é preciso pensar em uma prática pessoal coerente. Essa perspectiva inicia

um novo olhar referente às questões inclusivas, que pouco a pouco começa a se

tornar comum no cotidiano, bem como contribui para modificar o fazer e o ser.

Alice foi uma dessas pedras transformadas em diamante. E seu brilho ofuscou o

meu preconceito!

1.2.2 O conselho de uma lagarta

“Quem sou eu e quem é você? Nessa história ainda não sei dizer...”

(Rock Estrela – Léo Jaime)

Em sua busca incessante, Alice envereda-se nos caminhos do País das Maravilhas.

Indecisa, reflexiva e um tanto perdida. Alice encontra uma grande lagarta azul,

sentada no topo de um cogumelo:

“Quem é você?”, disse a Lagarta.

Não era um começo de conversa muito estimulante. Alice respondeu

um pouco tímida: “Eu... eu...no momento não sei, minha

senhora...pelo menos sei quem eu era quando me levantei hoje de

manhã, mas acho que devo ter mudado várias vezes desde então”.

“O que você quer dizer?”, disse a Lagarta ríspida. “Explique-se!”

“Acho que infelizmente não posso me explicar, minha senhora”, disse

Alice, “porque já não sou eu, entende? (CARROL, 1998 p. 60-61).

Quem sou eu? Essa é uma pergunta difícil de responder! Sou o que sou agora, e

serei mais do que sou daqui a pouco. Posso dizer sobre quem eu era, e antes de

começar a escrever sobre inclusão, quero colocar aqui a minha visão do que até

hoje pensava sobre ela. Porque o olhar para alguém que não considerava “normal”

em meio aos outros produzia uma angústia que apertava o peito. E onde se

localizava a diferença12, localizava-se também o preconceito, que fazia excluir,

repulsar, contornar a pedra, e nesses contornos entender que os atos pessoais

denotavam perversidade.

12 A diferença aqui empregada é vista como aquilo que difere da “dita” normalidade.

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Por muito tempo me senti ilha! Por diversas, discriminei, apontei, julguei e me isolei.

Pois o desejo era estar junto daqueles que para mim eram normais, comuns,

“melhores do que eu”. Havia algo dificultando a minha aproximação àqueles que

sempre foram excluídos, era como se houvesse entre nós uma grande parede, uma

muralha.

A aproximação a um aluno com deficiência causava medo. Possivelmente, o medo

seria que aquela diferença revelasse alguma deficiência pessoal, e com isso verificar

que os alunos pudessem não ter dificuldades em aprendizagem, mas sim que o

grande problema poderia estar no método de ensino utilizado.

Para Ferraço (2008), ao se problematizar o currículo e o cotidiano,

[...] a questão das dificuldades ou dos problemas em aprender não pode ser atribuída ao sujeito de forma isolada, senão teríamos que pensar, inclusive, em dificuldades de “ensinagem”, dentre tantas outras dificuldade e problemas que poderíamos supor. (FERRAÇO, 2008 p. 18).

Assim, ao encontrar Alice e conviver com ela, observou-se o quanto ela era feliz

estando ali, junto aos outros. Essa constatação deu início a um processo de

(des)construção de um mundo a partir do momento reflexivo realizado sobre aquilo

que até então era velado. E o medo existente agora consistia em não ser aceito por

ela. Alice não é gente como a gente, há uma pureza escancarada em seu rosto! Há

quem diga que Deus a colocou em nossas vidas para nos mostrar o quão pequenos

somos e aprender com ela. Colocou-a em minha vida para me mostrar que há

beleza naquilo que não considerava belo. Ela é especial!

“Nada a temer senão o correr da luta

Nada a fazer senão esquecer o medo

Abrir o peito a força, numa procura

Fugir às armadilhas da mata escura”

Alice me fez refletir sobre mim, educador e “eu, caçador de mim”.

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“Por tanto amor

Por tanta emoção

A vida me fez assim

Doce ou atroz

Manso ou feroz

Eu, caçador de mim.”

(Eu, caçador de mim. Milton Nascimento)

Mais do que se tornar caçadores de si mesmo, é preciso se encontrar nos outros e

agir com dedicação em tudo o que fizer. (Re)conhecer que “a vida é tão

desconhecida e mágica, dorme, às vezes, do seu lado... calada”13. Nesse contexto,

com a pureza de seus atos, Alice fez sua conquista dia a dia e, aos poucos,

proporcionou reconstruir em mim uma imagem diferente da que se tinha dela,

demonstrando a sua leveza e gentileza, a sua vontade de viver e a felicidade de

estar conosco. Apontando o quanto a vida é mágica e bela!

Se lembra daquelas paredes que construí?

Bem, elas estão desmoronando

E elas nem sequer resistiram à queda

Elas nem sequer fizeram barulho

Eu encontrei um jeito de te deixar entrar

Mas eu nunca tive dúvida

De pé em frente da luz da sua auréola

Eu tenho o meu anjo agora

É como se eu tivesse sido acordado

Cada regra que tive que quebrar...

(Halo – Beyoncé)14

Dessa forma, e com toda a dita ‘normalidade’, foi possível se ver no lugar de Alice e

passar a sentir as possíveis dores de ser discriminado, invisibilizado. E, na

perspectiva de se encontrar no outro, de se perceber no outro, de quebrar

preconceitos, é fundamental refletir:

É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico. O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo (FREIRE 1996, p. 39).

E ainda o autor, completa:

13Cazuza 14Tradução nossa.

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Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero, ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia (FREIRE, 1996, p. 39-40).

E agora, sobre o título desta seção. Pois bem, o conselho era para Alice ao receber

da lagarta um cogumelo: “um lado fará você crescer, e o outro fará você

diminuir” (CARROL, 1998, p.66). Já com o cogumelo nas mãos, Alice não

percebe a existência de dois lados “e como o cogumelo era exatamente redondo”

(CARROL, 1998, p. 67), arrancou um pedacinho de cada lado. Dessa forma, assim

como ela, optou-se pelos dois: um que proporcionará crescimento para aceitar o

novo, respeitando o velho; e o que possibilitará diminuir quando se sentir ilha ou

muralha e admitir o concreto de cada ser. Ainda que não se saiba dizer quem sou.

1.3 A POÇA DE LÁGRIMAS

Para baixo, para baixo, para baixo.

A queda nunca ia chegar ao fim?

(CARROL, 1998, p.14, grifo do autor).

Já no País das Maravilhas, Alice (des)caminha a fim de buscar um sentido para toda

aquela loucura, até encontrar, quem sabe um dos personagens mais curiosos dessa

história, o gato de Cheshire.

[...] ”Que tipo de pessoas vivem aqui?”

“nessa direção”, disse o gato, girando a pata direita, “mora um

Chapeleiro. E nesta direção” apontando com a pata esquerda, “mora

uma Lebre de Março. Visite quem você quiser, ambos são loucos.”

“Mas eu não ando com loucos”, observou Alice.

“Oh, você não tem como evitar”, disse o Gato, “somos todos loucos

por aqui. Eu sou louco. Você é louca”.

“Como é que sabe que eu sou louca?” disse Alice.

“Você deve ser”, disse o Gato, “senão não teria vindo para cá.”

(CARROL, 1998 p. 84-85).

Quanta tolice de Alice achar que não anda com loucos! E como disse o gato, somos

todos loucos. Afinal, todos possuem a sua dose de loucura. E sendo assim,

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considero completamente certeiro afirmar que a escola “regular” é a dita-cuja escola

normal. Que confuso! Convém explicar: não há regularidade ou normalidade alguma

e, mesmo assim, seus integrantes se julgam no direito de padronizar as coisas.

Decerto a escola modeliza o que a sociedade defende: a de excluir não somente os

loucos, mas tudo aquilo que ameaça a sua tranquilidade.

A norma é o elemento que, ao mesmo tempo em que individualiza, remete ao conjunto dos indivíduos; por isso, ela permite a comparação entre os indivíduos. Nesse processo de individualizar e, ao mesmo tempo, remeter ao conjunto, dão-se as comparações horizontais – entre os elementos individuais – e verticais – entre cada elemento e o conjunto. E, ao se fazer isso, chama-se de anormal aqueles cuja diferença em relação à maioria se convencionou ser excessivo, insuportável. Tal diferença passa a ser considerada um desvio, isto é algo indesejável porque des-via, tira do rumo, leva à perdição (VEIGA-NETO, 2003 p.75, grifos do autor).

Seria preciso, então, partir da ideia de que deveriam existir dois mundos: um para

quem é julgado louco e outro para aquele que não é julgado louco! Que despautério!

Que loucura, uma vez que na condição de Simão Bacamarte15 estaria apto a fazer

isso e a construção da Casa Verde seria o mundo no qual os loucos poderiam viver

tranquilamente.

O fato é que Alice não está na Casa Verde! E, estando em um mundo que julgam

não ser o dela, tornam-na invisibilizada! Colegas não a veem, professores não a

percebem. Ela se torna, assim, mais uma na multidão que é discriminada e rejeitada,

como todas as minorias desrespeitadas em seus direitos, desejos, sonhos. Nesse

ponto, desponta a percepção de como a inclusão pode se tornar perversa. Nada é

feito por Alice, além de uma atividade qualquer, quando é feita, e muitas vezes

infantilizada, mecanizada - para que ela não fique sem fazer nada! Assim, deve-se

refletir sobre qual é o papel da escola com os alunos especiais, bem como o papel

de professor com todos os seus alunos.

Sendo a escola um lugar público e democrático, parece ser incoerente a existência

de leis que obriguem um sujeito ser aceito e, ao mesmo tempo, parece contraditório

que certas minorias tendem a ser protegidas por leis em uma sociedade que se

afirma democrática, mas que fere o direito individual de ser o que deseja, ou ainda,

15 Simão Bacamarte, personagem de Machado de Assis, no livro O Alienista.

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fere o direito daqueles que não escolheram ser o que são. É indigna a discriminação

do ser humano por ser diferente seja qual for esta diferença.

Analisando por esse aspecto o discurso deste trabalho parece em vão. Mas não é

bem isso que acontece. Vive-se em uma sociedade a qual discrimina o que foge à

normalidade, o que “desvia” dos padrões julgados pela sociedade como aceitáveis.

É nesse sentido que se concorda com a necessidade de se estimular o diálogo,

[...] em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos (FREIRE, 1996, p.67).

Miranda (2011, p.12) explica que “para Vygotsky, a inserção da criança com

deficiência no meio social e cultural oportuniza-lhe a possibilidade de interação e

internalização de conceitos de forma a favorecer o desenvolvimento de suas funções

psíquicas superiores”. Há de se convir que não é correto existir qualquer tipo de

discriminação, menos ainda em um lugar de aprendizados, tão social e democrático

quanto a escola.

A escola como uma instituição fundamental na construção da cidadania deve necessariamente servir como modelo social e criar culturas que celebrem a diversidade, sejam inclusivas e não alimentem o preconceito e a discriminação contra qualquer grupo social (FERREIRA, 2006, p. 222).

Mesmo concordando com FERREIRA (2006), os pensamentos de que jamais seria

possível ajudar um aluno com necessidades educacionais especiais tornaram-se

constantes. Por isso, quando soube que Alice seria minha aluna e quando a conheci,

vi aquela criança frágil, cadeirante e com inúmeras dificuldades, a primeira ideia foi

solicitar à coordenação da escola que a trocasse de sala, ou que eu mesmo trocasse

de turma para não ter esse contato com ela. Assim, meu “problema” estaria

resolvido. Teria contornado a pedra, porém em outras turmas também havia outras

Alices.

Inúmeras vezes ouve-se a fala de que a inclusão não é possível. E por diversas

vezes, com preconceito pessoal, desiste-se de tentar ensinar uma criança por julgar

que ela não tem capacidade de aprender por ser deficiente. Certamente, outros que

também já vivenciaram isso e não quiseram mudar jamais viram o sorriso

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estampado no rosto, como vi em Alice, ao adentrar a sala de aula dizendo, com

muita dificuldade, a mensagem traduzida por sua cuidadora16,

.17

pois por uma semana ela se esteve ausente da escola, por não ter quem a levasse.

Eu a percebi feliz. Parecia que esta Alice havia feito daquele espaçotempo o seu

País das maravilhas.

“Gostaria de não ter chorado tanto!”, disse Alice, enquanto nadava ao redor, tentando

encontrar o seu caminho (CARROL, 1998, p. 30).

Enquanto Alice chora a ponto de inundar a sala e molhar a todos, é imprescindível

pontuar sobre esta pesquisa e como ocorreu o interesse pela área da inclusão.

Desse modo, o primeiro capítulo apresentará uma abordagem sobre os

(des)caminhos em torno da vida acadêmica e profissional do pesquisador, alguns

pontos de vista a respeito da educação inclusiva, e as imagensnarrativas

provocadas pelos alunos especiais na escola. Nesse capítulo, a presença de Alice e

o seu País das Maravilhas é de fundamental importância para a descoberta do meu

“eu, caçador de mim!”

O segundo capítulo apresenta algumas situações absurdas testemunhadas durante

a pesquisa, um aprofundamento sobre a Educação Inclusiva, a despedida física de

Alice e o conhecimento do Mundo de Sofia. Pretende também apresentar o autismo

e discutir noções básicas sobre o que é numeralização.

O terceiro capítulo envolve a revisão de literatura, os intercessores teóricos e as

inúmeras (in)certezas sobre os sujeitos e os modos de pesquisa com os cotidianos.

Nele, são apresentados os demais sujeitos desta pesquisa, bem como o ambiente

no qual foi realizada.

16 Funcionária contratada para auxiliar, na escola, o aluno especial em suas necessidades fisiológicas e locomoção. Este servidor não pode permanecer em sala de aula com o intuito de orientá-lo em suas tarefas curriculares, no entanto ela ajudava Alice também nas atividades curriculares. 17 Os diálogos transcritos do diário de bordo serão aqui inseridos neste modelo de caixa de texto.

Alice via cuidadora: Que saudade dos meus amigos!

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Platéia preparada, no quarto capítulo, abrem-se as cortinas para discussão,

análises e reflexões, resultantes dos encontros e (des)encontros entre os sujeitos

dessa pesquisa.

Por fim, no quinto capítulo, constatou-se a impossibilidade de finalizar esta

pesquisa, mas foi possível chegar à algumas considerações (in)conclusivas

fundamentais, pois é fato que as pesquisas com os cotidianos não podem ser dadas

como acabadas.

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2 A CORRIDA-CAUCUS E UMA LONGA HISTÓRIA

“O que eu ia dizendo”, disse o Dodo num tom ofendido,

“era que a melhor coisa para nos secar seria uma corrida-caucus.”

“O que é uma corrida-caucus?” disse Alice [...]

“Ora”, disse o Dodo, “a melhor maneira de explicar é fazer.”

(CARROL, 1998 p.38).

Assim, enquanto autor-personagem-escritor-aprendiz-professor, posso relatar que a

tal corrida-caucus acontece pelas escolas por onde passei, mas infelizmente é mal

interpretada. Ela pode ser analisada de duas maneiras; a primeira delas como um

“faz de conta” da Educação Inclusiva e a segunda, como realmente a Educação

Inclusiva possa ou deva acontecer. Na primeira, finge-se acreditar que o aluno

aprende, pois o profissional finge que ensina; a escola simula que inclui, e a

sociedade encobre, tentando demonstrar que todos são iguais em direitos e deveres.

Na primeira versão da corrida não há ganhadores! Só enganadores. Na segunda,

têm-se uma visão mais humanizada, vista como um discurso que pode contribuir

para um entendimento mais adequado da inclusão.

Dessa forma, para se compreender melhor o que é uma corrida-caucus, é o próprio

autor do livro quem narra o feito do Dodo:

Primeiro ele traçou uma pista de corrida, numa espécie de círculo (“a

forma exata não tem importância”, disse), e depois todo o grupo foi

colocado ao longo da pista, aqui e ali. Não houve nada de “Um, dois,

três, já!”, eles começavam a correr quando desejavam, por isso não era

fácil saber quando a corrida tinha chegado ao fim. Entretanto, quando

já tinham corrido por meia hora ou mais, e estavam de novo bem

secos, o Dodo de repente gritou: “Acabou a corrida!”, e todos

aglomeraram ao redor dele, ofegando e perguntando: “Mas quem

ganhou?” [...] Por fim, o Dodo disse: “Todos ganharam, e todos

devem receber prêmios” (CARROLL 1998, p.39, grifo do autor).

Refletindo um pouco mais sobre esse “faz de conta”, é assim que parece estar a

Educação Inclusiva, não se sabe por onde começar, pois não há “um, dois, três, já!”,

pois cada um tem o seu tempo. Não se sabe como incluir, pois não há forma exata

para isso, não há uma receita, cada ser tem a sua necessidade, e não se sabe

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aonde se deseja e precisa chegar, pois o valor encontra-se direcionado mais a

resultados avaliativos do que a processos elaborados em parceria. A única certeza

existente é a de que o aluno está lá, aguardando ser visto, sentido, ouvido, tocado e

ensinado para além de sua deficiência. Contudo, é possível perceber essa

ignorância como um estímulo para a busca de uma luz norteadora. Não saber incluir,

não saber aonde chegar, não saber por onde começar transforma-se no pontapé

inicial e, nessas tentativas, todos se tornam vencedores a cada obstáculo

conquistado, ou a cada “derrota” refletida. E, em meio a essa escassez de

experiência, há também aprendizado, pois aponta o quanto existe de deficiência em

cada um em certos aspectos. Se o aluno com deficiência vai correr, disputar com os

demais e ganhar essa corrida, não é possível saber; assim como também não há

garantia que nenhum outro aluno vá, ou se os professores conseguirão. Mas é

preciso garantir a ele, e a cada um dos envolvidos nesse contexto, que a capacidade

está para mais de suas próprias limitações. É preciso compreender que a presença

do aluno na sala de aula vai muito além de aprender conteúdos, muitas vezes

obsoletos. Se necessário for, deve-se fazer de Dodos e iniciar a corrida-caucus, para

que se perceba a vitória de todos, ainda que, em um primeiro momento, seja vista

como mínima.

Parte das crianças especiais que está na escola acabam por se evadir, pois, muitas

vezes, o argumento do professor de não se sentir preparado ou de duvidar da

capacidade do aluno deficiente e, às vezes, a resistência da escola em acolhê-los,

contribuem para o não atendimento desse público em suas necessidades.

Ferreira (2006) aponta que

[...] enquanto a ignorância geral sobre o potencial das pessoas com deficiência (vistas como uma “entidade” sem características individuais) e a crença na sua “incapacidade” reinarem soberanas acima da lei que garante seus direitos à educação, as necessidades desse grupo social jamais ganharão visibilidade e, consequentemente, nunca os sistemas educacionais se modificarão para acomodá-los e para criar os serviços necessários à sua educação (FERREIRA, 2006, p. 221-222).

Entre os motivos que podem promover esse não acolhimento e o “despreparo”

docente para atender de forma satisfatória esse público estão a ocorrência de fatos

discriminatórios nas salas de aulas e a infantilização das atividades curriculares,

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geralmente ligadas ao desenho e à pintura. Tais fatos corroboram para que as

famílias desacreditem em uma educação inclusiva que realmente produza mudanças

ao perceber a insegurança do sistema, optando-se, dessa forma, por mantê-los nas

escolas especiais.

Alice não ficou muito surpresa com isso, pois já estava se acostumando a que coisas estranhas

acontecessem (CARROL, 1998, p.86).

Ainda mais cruel é a histórica invisibilização sofrida por esse grupo “especial” que,

por suas características diferenciadas, e nem sempre perceptíveis, são julgados,

estigmatizados e marginalizados.

Sobre a corrida-caucus é importante analisá-la sob a ótica de que, mesmo

enxergando a totalidade dos alunos e a importância de estar juntos, convivendo,

“competindo” e se ajudando, é imprescindível voltar ao individual e lançar o olhar a

cada um dos alunos e perceber que cada um aprende no seu tempo, que vence no

seu tempo, que “disputa” à sua maneira.

Uma escola é inclusiva se ela for capaz de abraçar “às necessidades diversas de

seus alunos, acomodando ambos os estilos e ritmos de aprendizagem e

assegurando uma educação de qualidade a todos” (UNESCO, 1994, s.p.).

Com certeza, a inclusão é uma realidade cada vez mais consolidada na prática

escolar cotidiana. É um caminho sem volta e,

Embora tenhamos trabalhado durante quase três décadas sobre os modelos de resposta para atender, em nossas escolas, aos alunos com deficiência, ainda estamos no debate sobre qual é a melhor estratégia (HEREDERO, p.193, 2010).

Ampliando a ideia de Heredero (2010), muitos nem sabem qual estratégia. Além

disso, outras questões que precisam ser exploradas ou respondidas consomem os

profissionais quando se deparam com um aluno especial. Entre elas, está o

tratamento dado a esses alunos e sobre o convívio deles com os demais, a

necessidade de se realizar uma análise capaz de verificar o nível de

felicidade/aceitação, e também da ocorrência concreta de uma socialização entre

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eles. Além de repensar metodologias alternativas para trabalhar com esses alunos

no sentido de melhor atendê-los.

O trabalho para e pela inclusão se deve também ao fato de que é por meio da

interação entre os indivíduos que ocorre o aprendizado. Não se deve ater,

simplesmente, ao fato de que aprender seja somente o escrito, o falado ou o

estudado. Defende-se, portanto, a ideia de aprender, também, as relações sociais

necessárias para a vida em sociedade, tais como o respeito às diferenças, a

igualdade de direitos e a convivência pacífica. Não se refere apenas a minimizar as

atividades a serem desenvolvidas, infantilizá-las ou mecanizá-las a fim de mantê-los

ocupados, e sim desenvolver propostas que atendam as especificidades de cada

um.

Muitas vezes, o aluno especial não frequenta regularmente as aulas porque elas são

desconectadas da sua realidade, ou porque não lhe é ofertado a garantia e a

assistência devida. Estar na sala de aula, com os demais alunos, não significa

exatamente estar se socializando, mas é um passo importante para que esse e os

demais processos ocorram. “Vygotsky tem como um de seus pressupostos básicos a

ideia de que o ser humano constitui-se enquanto tal na sua relação com o outro

social” (OLIVEIRA, 1992, p.24).

Entretanto, percebe-se certa negligência também no processo em que a inclusão é

vista apenas como socialização, pois, mesmo estando na sala de aula, muitas vezes

o aluno especial é excluído de quase todas as atividades. Assim, cabe ao professor

intermediar esses processos com atividades que promovam a interação entre os

sujeitos.

Para o aluno autista, por exemplo, a socialização torna-se fundamental para o seu

desenvolvimento, pois

[...] as atividades interativas não só inibem o isolamento, mas também reduzem comportamentos inadequados. Assim, a convivência do aluno autista com outros alunos, conduziria para essa quebra de barreira que o autista tem em se socializar (CUNHA, 2012, p. 63).

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Essa questão da socialização tão comumente falada pelos educadores tem reduzido

os processos inclusivos dos alunos com deficiência ao simples fato de se fazer

presente, ignorando-se em que condições, qual o nível de aprendizagem, se estão

felizes e se realmente a socialização se manifesta.

De acordo com a Constituição Brasileira (1988), toda escola tem a obrigatoriedade

de matricular crianças e jovens nas instituições de ensino. Entretanto, a matrícula

por si só não é suficiente. É necessário garantir o acesso, a permanência e o

aprendizado de todos, quaisquer que sejam as suas necessidades. Embora a

Constituição preveja o direito à educação para todos, observa-se, contudo, uma

realidade bem diferente. Ter o direito garantido é um fato, ter esse direito atendido

no que tange às necessidades da pessoa com deficiência ainda se encontra

timidamente alcançado.

A Declaração de Salamanca, na luta por uma Educação para Todos, reconhece:

[...] a necessidade e urgência do providenciamento de educação para as crianças, jovens e adultos com necessidades educacionais especiais dentro do sistema regular de ensino e re-endossamos a Estrutura de Ação em Educação Especial, em que, pelo espírito de cujas provisões e recomendações governo e organizações sejam guiados (UNESCO, 1994,

s.p.).

Adendo a isso, a declaração proclama à criança, entre outros, o direito fundamental

à educação, e reconhece que “toda criança possui características, interesses,

habilidades e necessidades de aprendizagem que são únicas”, e ainda

[...] aqueles com necessidades educacionais especiais devem ter acesso à escola regular, que deveria acomodá-los dentro de uma Pedagogia centrada na criança, capaz de satisfazer a tais necessidades (UNESCO, 1994, s.p.).

Nesse sentido, é necessário (re)pensar como esses alunos aprendem. E, no caso

específico da educação matemática, pensar como está ocorrendo o processo de

envolvimento com essa disciplina, bem como o de assimilação. Integrado a isso, é

preciso pensar em uma matemática que inclua e proporcione a aproximação do

aluno com a mesma, reconhecendo sua importância. Faz-se necessário também

refletir se as práticas pedagógicas utilizadas promovem a socialização e garantem a

aprendizagem desses indivíduos.

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Convém relatar que o primeiro contato com Alice revelou um sentimento de não ter

condições de trabalhar, de que “não contribuiria com seu aprendizado, que não fui

preparado para isso e, cheguei até dizer que não sou pago para fazer isso”.

Interessante observar como esses discursos pessoais são coletivos, tornam-se

cômodos clichês que mantêm muitos em uma zona de conforto. Parece que os

professores que não entendem a Inclusão Escolar, ensaia a fala de que ser/estar

capacitados para isso ou para aquilo. E, de fato, não se encontram suficientemente

preparados! Pois, pouco a pouco, a vida colabora nesse processo preparando,

desatando nós, construindo conceitos e (re)estabelecendo outros, cruzando destinos

e sentimentos.

A mesa era grande, mas estavam todos aglomerados num de seus

cantos. “Não há lugar! Não há lugar!” gritaram quando viram Alice se

aproximar. “Há muito lugar!”, disse Alice indignada, e ela se sentou

numa grande poltrona junto a uma das pontas da mesa (CARROL,

1998, p. 90).

Na certa sempre haverá lugares para Alice, mas nem sempre será convidada para

sentar. Nem todas as pessoas estão dispostas a acolher as diferenças. Mas, já que

sabiamente se impôs, mostrou que esse lugar também é seu por direito, que tal

contar um pouco de sua vida, um pouco desses (des)caminhos?

2.1 O DEPOIMENTO DE ALICE

“Estou aqui!”, gritou Alice, esquecendo completamente na comoção do momento o quanto

crescera nos últimos minutos”(CARROL, 1998, p. 159).

Se Alice tivesse desenvoltura para falar, certamente diria o quanto se sente bem

estando naquela escola. Comentaria também das saudades dos colegas, dos

professores, do recreio e até do namoradinho que em seus pensamentos julga ter.

Porém, Alice não tem essa facilidade.

É bem provável que teria percebido o jeito distanciado e indiferente que olhava para

ela e na certa falaria sobre isso também, e quem sabe completaria sobre as

mudanças que ela vislumbrou em mim.

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Além disso, diria sobre os sentidos aflorados por essa experiência e pela força de

todos eles, que tornaram possível perceber o ser humano através da imagem

negativa que fazia dela. Surge, então, a percepção do quanto ela cresceu nesses

últimos meses, o quanto ela se desenvolveu, seja com os colegas, seja no

atendimento educacional especializado, seja na vida! E o quanto Alice faz cada um

crescer e refletir. Daí, pode-se dizer que é uma Alice feliz, apesar de suas limitadas

possibilidades.

Faz parte dos (des)caminhos de Alice as suas dificuldades, não restritas unicamente

à sua vontade ou às suas limitações. Porque, apesar de morar em uma localidade

próxima à escola, há adversidades para sua locomoção como o seu apartamento

ficar no terceiro andar de um prédio que não tem elevador. Assim, só é possível ir

para a escola se o pai estiver disponível, pois a mãe não tem forças para descer

com a filha os três andares de escadas.

Ao chegar à escola - quando consegue chegar - a criança se depara ainda com o

despreparo e, às vezes, preconceito dos profissionais sobre suas limitações e

potencialidades, o que dificulta o processo de ensinoaprendizagem e que repercute

no seu desenvolvimento global e, consequentemente, interfere em sua alardeada

inclusão.

Alice não fala sobre isso, não fala quase nada. Não em uma linguagem que se está

acostumada a ouvir ou a observar. Mas fala com o olhar, com o esboço de um

sorriso e de gargalhadas. Comunica-se com seus sentimentos. E quando fala ou

tenta se comunicar não é para reclamar. Entretanto, se Alice pudesse dizer, diria que

não é mais uma criança, apesar do tratamento infantilizado que lhe oferecem! Que

tem 18 anos e que não gostaria de ficar só brincando em sala de aula, ou que até

gostaria de continuar brincando com sua boneca que sempre traz em seu colo; que

gostaria de aprender também; que não gostaria de ficar o tempo todo desenhando,

pintando, ou parada, observando. Penso que Alice não culparia ninguém pelo fato

de ser como é! Não culparia os professores, por não saber desenvolver um trabalho

que possa realmente significar algo para ela. Não falaria de suas dificuldades de

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aprendizagem mas, provavelmente, falaria sobre a (in)capacidade da escola de criar

metodologias que possam alcançá-la. Teria dito também que o professor se

enganou quando disse para sua mãe que ela estaria ali só para socialização. Ah,

Alice diria tanta coisa, mas não diz! Não pode dizer. Não com palavras!

Em tantas ignorâncias, em tantas interrogações permanecidas em suspenso, seria preciso, sem dúvida, deter-se: aí está fixado o fim do discurso, e o recomeço talvez do trabalho. Há ainda algumas palavras a dizer. Palavras cujo estatuto é, sem dúvida, difícil de justificar, pois se trata de introduzir no último instante e como que por um lance de teatro artificial, uma personagem que não figurara ainda no grande jogo clássico das representações (FOUCAULT, 1999, p. 423 - 424).

Sendo assim, em meios a tantos ditos, Alice é personagem de uma história e não é

vista como protagonista dela: a história de sua vida, ou de “não vida”. E em vez de

protagonista, Alice é vista como anti-heroína, vilã, aquela que veio provocar o caos,

a desarmonia da sala de aula. Pobre Alice! Viva Alice! Que bom que ela consegue

provocar os sentidos e retirar todos do lugar comum!

Pobre Alice! Rica Alice! Ainda que sendo duas Alices ou várias delas, uma no mundo

real, e outra em um conto de fadas, a torcida é para que ambas tenham finais

felizes, e se encontrem com a felicidade; sejam sozinhas, seja com príncipes ou

princesas, seja com amigos ou família, mas que sejam felizes. Uma lá e outra cá, ou

juntas. E, mesmo estando elas em realidades tão distantes, ambas se aproximam

nesse diálogo entre o Rei, a Rainha e Alice:

“Que o júri considere o veredicto”, disse o Rei pela vigésima vez

naquele dia.

“Não, não!”, disse a Rainha. “A sentença primeiro... depois o

veredicto.”

“Mas que tolice!”, disse Alice em voz alta. “Que ideia de ter a

sentença primeiro!”

“Cale-se!”, disse a Rainha, vermelha de raiva.

“Não me calo!” disse Alice.

“Cortem a cabeça dela!”, gritou a Rainha com toda a força dos

pulmões.

Ninguém se moveu (CARROl, 1998, p. 168).

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E com isso, também, poucos se moveram (ou se movem) no sentido de modificar

esta realidade. Mas, em sã consciência, ninguém ousaria contrariar a ordem de uma

Rainha, a não ser que queira perder a cabeça!

Da mesma maneira como no País das Maravilhas, a Alice daqui também já foi

previamente sentenciada, embora haja contendas relativas ao veredicto, ainda assim

condenada à exclusão pelo fato de ser deficiente e, para muitos, inumana:

O diálogo ocorrido recentemente entre professores da EJA reflete as ideias desses

professores e, quem sabe, a ingenuidade de suas propostas. Assim, para o

professor A, separar os diferentes os tornariam iguais e, assim, não haveria

problemas de preconceito e discriminação. A pensa sob sua ótica, mas pelo jeito,

jamais pensou pela ótica do seu filho. E, desse modo, novos clichês se criam em

torno da Educação Especial e Inclusiva.

“Poderiam me dizer, por favor, disse Alice um pouco tímida, “por que

é que estão pintando as rosas?”

[...]

“Ora o caso é o seguinte, Senhorita, esta roseira deveria ser vermelha,

mas plantamos uma branca por engano, se a Rainha descobrir, vamos

todos perder a cabeça [...]” (CARROL, 1998, p. 105-106).

Porém, a Rainha não parece entender que não se deve pintar os outros com a

“nossa” cor. E não se pode perder a cabeça por causa desse mundo colorido. Não

A: Eles precisam ficar no canto deles! Não vê como são discriminados? C: Eles quem? Interrompendo o diálogo entre A e B.

A: Os alunos especiais. Deveriam ir para a Escola Especial. Não sei como trabalhar com eles

B: É sério que você pensa assim? Acha mesmo que eles deveriam ficar separados?

A: Sim. Veja bem, o que estamos fazendo? Nada! Lá pelo menos eles aprendem alguma coisa! Têm atenção! Estão entre iguais! Sem discriminação.

C: E você acha justa essa separação? Então é assim que devemos fazer com os homossexuais? Com os negros? Com as minorias? E se fosse um filho seu?

A: Se fosse um filho meu, eu jamais colocaria numa escola regular. Preferiria que ficasse separado.

(Diálogos de recreio, Abril de 2014).

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cortaram a cabeça de Alice, mas conseguiram silenciá-la momentaneamente. Alice

não apareceu mais na escola, não frequentou todos os dias, mas, com certeza,

gostaria de frequentar. Agora, Alice deixou de ser invisibilizada e passou a ser uma

lembrança para alguns e, para outros, quem sabe, um alívio. Não é preciso mais se

preocupar em “criar” atividades para ela, em planejar aulas diferenciadas. Por

características peculiares de sua deficiência, necessita de cuidados especiais: um

cuidador, possivelmente um “chapeleiro maluco” para acompanhá-la na escola e

auxiliá-la em suas necessidades. Porém, por motivos de ordem pessoal, esse cargo

ficou vago. Diversas solicitações de substituição foram requisitadas, sem êxito: “O

ano é eleitoral, não é possível contratar ninguém!”, ou “o pedido foi feito, mas

ninguém se interessou pelo cargo”. E, assim, a Alice do mundo real não acordou de

um sonho – apesar de ter cochilado em muitas de minhas aulas – não confundiu

realidade com ficção, não ficou na dúvida quando o seu veredicto foi anunciado:

“três meses sem comparecer a escola, reprovada! Reprovada por faltas!” Isso não é

engraçado, é triste: a mesma sentença do ano anterior nessa escola quando todos

os alunos com deficiência foram reprovados! Provocaram a Rainha e ela ficou

vermelha de raiva. “Cortem-lhes as cabeças! Eles não têm a nossa cor!”

A frase poderia ser até cômica se não fosse mais uma tragédia. Mais um dos

grandes absurdos desse teatro: a mesma pessoa que diz que “estão aqui só para

socialização” defende a reprovação dos mesmos. Não atingiram os objetivos!

Certamente aqueles do professor que se julgava despreparado para trabalhar com o

aluno especial. E o conselho decidiu que ela estava certa. Contra Alice ainda pesava

o grande número de faltas! O Conselho ratificou a decisão da Rainha!

“Acho que entenderia isso melhor”, disse Alice muito polidamente, “se o viesse por escrito.

Não consigo acompanhar muito bem o sentido assim de ouvido” (CARROL, 1998 p.123).

Ah, se Alice pudesse entender! Se pudesse brigar pelos seus direitos, certamente

teria questionado: “Garantia de acesso e permanência, inclusão, igualdade de

direitos”, e tantas outras conversas bonitas, tantos papéis e, haja personagens para

- Não é porque é especial que tem que ser aprovado! (CONSELHO DE CLASSE, 2013).

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tantos teatros: um verdadeiro absurdo! E, para quê e para quem? Com certeza não

eram para Alice.

Contudo, a força de uma pressão da família dessa vez conduziu a uma reavaliação

da sentença dada, e se decidiu aprová-la! Afinal, não era sua responsabilidade a

escola não dispor um cuidador para auxiliá-la.

Bem nesse momento Alice sentiu uma sensação muito curiosa, que a intrigou bastante até

descobrir do que se tratava: ela estava começando a crescer de novo (CARROL, 1998, p.

152).

Alice não é uma personagem, não representa papel algum. Não é um fantoche que

se possa manipular. Alice é real, usa cadeira de rodas, não pode levantar-se dela,

andar e correr como as outras crianças, tem coordenação motora comprometida,

‘retardo mental’18, microcefalia, miopia alta, problemas de audição, entre outros

sintomas característicos produzidos pela falta de energia em suas células.

E mesmo sendo assim, tão necessitada de cuidados e atenção, Alice (des)caminha

em um mundo quase indiferente a ela; entre tantos olhares retos e atravessados,

falas tortas e também de carinho; entre friezas e afagos, entre verdades e clichês,

vive Alice em sua cadeira de rodas, ocultada em seu canto, mesmo sendo

claramente perceptível a sua presença; quase imóvel, às vezes com sua boneca no

colo, às vezes cochilando, escutando tudo isso e muito mais, pois sempre viu, ouviu

e sentiu além do que se imagina. No entanto,

Continuou sentada, de olhos fechados, e meio que acreditou estar no País das Maravilhas,

embora soubesse que bastava abrir os olhos para que tudo se transformasse na realidade

monótona... (CARROL, 1997, p. 171).

2.2 DE ALICE E SEU FASCINANTE PAÍS DAS MARAVILHAS AO COMPLEXO MUNDO DE SOFIA

- Olá!- disse Sofia.

A pequena figura virou-se.

18 Conforme laudo médico

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- Sou o Ursinho Pooh – disse- É pena que eu tenha me perdido na floresta, pois de resto o

dia está lindo hoje. Sabe, eu nunca vi você...

- Talvez seja eu quem nunca tenha estado aqui – respondeu Sofia.

[...]

- Já ouvi falar de você, Ursinho Pooh.

- Então na certa você é Alice. [...] Você bebeu um líquido que fez você diminuir, diminuir, até

ficar pequenininha. Depois bebeu outro líquido que fez você crescer, crescer até ficar bem

grandona.

- Eu não sou Alice.

- Não importa quem somos. O mais importante é que somos

- Eu me chamo Sofia

- Prazer em conhecê-la, Sofia. Como disse, acho que você é nova por estas bandas

(GAARDER, 1995, p. 362 – 363, grifo do autor).

Alice não é a única aluna especial da escola. Além dela e outros, há também Sofia,

autista, e que não se destaca tanto pela sua deficiência. A escolha desse nome

remete à obra de Jostein Gaarder: O Mundo de Sofia, por existir a ideia precoce de

que o autista tem seu mundo próprio. À primeira vista, ela não destoa do grupo como

Alice. Tímida, fala pouco, apresenta dificuldade para se envolver com os outros.

O seu jeito incomum gera comentários de professores, funcionários da escola e até

mesmo dos coleguinhas. Mas, mesmo tendo aparência comum e nenhuma

deficiência física, Sofia já sofre bullying19. Não é convidada para brincar porque,

segundo comentários, “é desengonçada”, corre diferente, comporta-se diferente. A

diferença entre Alice e Sofia é visivelmente perceptível, no entanto, a discriminação

para ambas é igualmente cruel. Se Alice não pode correr e brincar com as colegas

por causa de suas limitações, Sofia pode, mas nem sempre é convidada e, nem sei

se compreende o porquê dessa exclusão.

Mesmo sendo discriminadas, há uma diferença entre Sofia e Alice que se

sobressaiu: Alice tem coleguinhas que às vezes brincam com ela, conversam com

ela, cantam com ela. Sofia, não! Sofia vive isolada e tem apenas uma única

amiguinha, que parece tentar protegê-la o tempo todo, sempre ao seu lado, e que

19 Forma de agressão física ou psicológica, intencional e repetida, praticada por uma pessoa ou grupo com a intenção de intimidar ou ofender alguém, podendo causar traumas, problemas de relacionamento etc. (BECHARA, 2011, p. 358).

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tenta lhe ensinar os deveres mesmo com dificuldades. Seu nome é Emy20. A

dedicação de Emy à Sofia é tão admirável pois parece que Emy não tenta trazer

Sofia ao mundo “normal”, mas sim adentrar ao dela!

Contudo, foi preciso se desprender de Alice, pois ela foi “convidada a se retirar” do

seu País das Maravilhas por ordem da “Rainha de Copas”. Assim, prefiro pensar que

Alice vive em um mundo de sonhos e fantasias, e que possivelmente prefira assim!

Talvez, dentro da zona de conforto, seja melhor assim! Por isso, a reflexão gira em

torno do não ter feito muito por ela quando era seu professor, mas também do muito

que ela fez por mim! Esse fazer desemboca em um agradecimento por mostrar

novos caminhos, mesmo que ela não saiba. O fato é que a saída abrupta de Alice

produziu um grande choque e trouxe dificuldades para se desprender dela, o que

acabou por influenciar os rumos no decorrer desta pesquisa e, por conseguinte, a

fuga obrigatória para o mundo autístico de Sofia.

Desse modo, agora é fundamental dedicar-se a problematizar esse mundo, sem,

contudo, ter pretensões de querer “mudá-lo”, mas sim de compreender melhor esse

universo e, com isso, tentar transformar a perspectiva na vida desses sujeitos e das

pessoas que os cercam.

2.3 “SOFIA, SOFIA... QUEM É VOCÊ? DE ONDE VOCÊ VEM? POR QUE VOCÊ ENTROU NA MINHA VIDA?”21

Quem é você?

Se ela soubesse! É claro que ela era Sofia Amundsen, mas quem era esta pessoa? Isto ela ainda

não tinha descoberto direito (GAARDER, 1995, p.15, grifos do autor).

Sofia tem 9 anos é a segunda filha de um casal que atualmente está separado. De

acordo com o laudo médico, apresenta autismo leve/moderado associado à

deficiência intelectual. É uma criança tímida e, ao contrário de muitas outras

crianças, tem dificuldades de comunicação e socialização, principalmente com quem

não tem a sua confiança. Sofia parece ter mesmo o seu mundo. Um mundo singular

em que só entra quem tem a sua permissão.

20 Nome fictício. 21 GAARDER, 1995, p.503.

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Vem, cara, me retrate

Não é impossível

Eu não sou difícil de ler

Faça sua parte

Eu sou daqui, eu não sou de Marte

(Infinito Particular - Arnaldo Antunes / Carlinhos Brown / Marisa Monte)

As características de Sofia acima retratadas são apontadas por Silva, Gaiato e

Reveles (2012) como um transtorno global do desenvolvimento infantil, e

caracteriza-se por um conjunto de sintomas que afeta as áreas da socialização,

comunicação e do comportamento, e, dentre elas, a mais comprometida é a

interação social. “Desta tríade (socialização-comunicação-comportamento) a

dificuldade de socialização é a base dos sintomas do funcionamento autístico” (Silva

et al, 2012 p.21), a falta desta, acarreta no comprometimento das outras. Cunha

(2012) acrescenta o interesse em atividades restrito-repetitivas.

Sofia não se cansa de desenhar e pintar, demonstrando interesse particular nessas

atividades. Quando lhe entregam alguma tarefa a ser realizada, ela se interessa

apenas pelas figuras e assim, começa a pintá-las. Não diz, não pergunta, não

retruca: só observa!

Se me interesso por cavalos ou pedras preciosas, não posso querer que todos os outros tenham

o mesmo interesse (GAARDER, 1995, p.24).

Concentrada em sua pintura, vez ou outra solta algumas de suas frases que podem

parecer engraçadas, para quem a entende, ou para quem não a entende pode

parecer “má-criação”:

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Frases soltas e sem sentido, revelando situações passadas e que no momento

podem não ter algum contexto, por causa da ecolalia, sintoma característico da

pessoa autista.

A linguagem usada por crianças com ASD pode ser repetitiva e não fluente. Podem usar frases feitas que ouviram antes, em um vídeo, programa de TV, escola ou de adultos. Na maioria das vezes, essas frases são usadas adequadamente, mas têm um tom estranho, por exemplo, “Estou faminto mãe” (de 101 Dálmatas). Alguns profissionais denominam isso de “ecolalia retardada” (WILLIAMS; WRIGHT, 2008, p. 74, grifos do autor).

Essas frases ditas por Sofia, geralmente tem entonação diferenciada daquela usual.

O “isso aí, muito bem!”, por exemplo, é uma forma que a professora do AEE utiliza

para elogiá-la. Temple Grandin, em filme homônimo - que conta a história de sua

vida - repetia para sua tia, constantemente: “Você quer que eu abra o portão?” em

entonação semelhante à de um filme que possivelmente marcou em sua memória.

Na sequência, essa personagem será abordada com mais profundidade.

De maneira geral, os estudiosos têm chegado a um denominador comum quanto aos

sintomas do autismo, Distúrbio do Espectro Autista (em inglês sigla ASD22), os quais

atingem a comunicação, a interação social, a imaginação e o comportamento

(WILLIAMS; WRIGHT, 2008, p. 3).

“Escrever sobre autismo tem sido, historicamente, um desafio para todos os

profissionais envolvidos com essa questão” (BOSA, 2002, p. 21). A autora explica

que as várias incertezas que permeiam a síndrome suscitam tanto “interesse e

controvérsias”, entre elas “destaca-se a questão da definição, a etiologia, o

diagnóstico, a avaliação e a intervenção”.

22 Autistic Spectrum Disorder

“Ele ta virando um zumbi!”, “Ela é a cara da riqueza!”, “Eu vi o sinal do SBT”, “Isso aí, muito bem!”, “Por que é importante para a escola!” “Eu não sou pra frente!”

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O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR), publicado

pela Associação Americana de Psiquiatria, e a Classificação Internacional de

Doenças (CID 10) da Organização Mundial de Saúde (OMS), estão em

conformidade ao descrever o autismo, conforme a tabela 1:

Tabela 1 – Descrição do autismo pela DSM-IV e OMS

DSM-IV CID-10

Transtorno autista Autismo infantil

TGD-SOE Autismo atípico

Transtorno desintegrativo da infância Transtorno desintegrativo da infância (Síndrome de Heller)

Transtorno de Rett Síndrome de Rett

Fonte: Tuchman e Rapin (2009, apud GOERGEN, 2013).

Na mais recente classificação, no DSM-5 (APA 2013), o autismo pertence à categoria denominada transtornos de neurodesenvolvimento, recebendo o nome de transtornos do espectro do autismo (TEA). Assim, o TEA é definido como um distúrbio do desenvolvimento neurológico que deve estar presente desde a infância, apresentando déficit nas dimensões sociocomunicativa e

comportamental (SCHMIDT, 2013, p. 13).

É muito importante que os pais estejam atentos ao comportamento dos filhos, pois

quanto antes perceberem atitudes autísticas, maiores são as possibilidades de

auxiliar no desenvolvimento dessas crianças.

O que você pensaria? Bem, isto não importa. Mas será que já passou pela sua cabeça que você

pode ser uma marciana? (GAARDER, 1995, p. 28).

É lógico que Sofia não é uma marciana, nem personagem criada para compor uma

história. Sofia é autista, e nem por isso deve ser percebida como uma extraterrestre,

como alguém que foge à normalidade.

Atualmente, Sofia é aluna do 3º ano do ensino fundamental I, não sabe ler e nem

escrever e isso significa afirmar que Sofia não sabe fazer a leitura dos textos

escritos, não sabe representar o que é solicitado que ela escreva: “a, e, i, o, u” para

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começar seu processo de alfabetização, e também não sabe contar, limitando seus

interesses na escola pelo desenho e pintura.

No meu infinito particular Em alguns instantes

Sou pequenina e também gigante

(Infinito Particular – Arnaldo Antunes / Carlinhos Brown / Marisa Monte)

O fato de Sofia não saber contar, despertou o interesse particular em acompanhá-la

em suas aulas de matemática e no atendimento educacional especializado. Afinal,

Sofia não era alfabetizada e muito menos numeralizada, apesar de distinguir

números de letras. Nesse sentido, é necessário, neste momento, discutir essa

relação da criança com sua numeralização. Indiferente, Sofia sacudiu os ombros

(GAARDER, 1995, p. 494).

Algumas crianças chegam na pré-escola sabendo dizer os números e, às vezes, até mesmo, sabendo escrevê-los. Isso não significa que já tenham construído o conceito de número ou de quantidade. Antes de escrever numerais, de registrar conceitos, é preciso desenvolver muitas atividades com as crianças para que elas elaborem esta construção (DANTE,1996, p. 140, grifos do autor).

Sofia não é tão diferente dos demais alunos, pois demonstra já ter vivenciado

situações cotidianas em que os conceitos de números são utilizados. Entende-se

que a numeralização (ou alfabetização matemática) também seja importante para a

sua autonomia na tomada de decisões. Dante (1996, p.15), evidencia o fato de que

“Não há uma só criança que não saiba nada. Alguma coisa ela sempre sabe. O

ponto de partida de qualquer atividade é este: o que ela já sabe, por mais simples

que seja”.

No entendimento de Nunes e Bryant (1997), numeralização designa a criança ou

adulto que possua certo domínio do sistema numérico e das operações matemáticas

e que possa pensar com conhecimento matemático.Para ela, atualmente,

numeralização vai além de resolver as cinco operações básicas da matemática. Ser

numeralizado é perceber a matemática presente em situações cotidianas, como

leitura e interpretações de dados em gráficos, jornais e revistas; é ser capaz de

pensar e discutir relações numéricas.

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Desejaríamos que a palavra numeralizado implicasse a posse de dois atributos. O primeiro é uma “familiaridade” com números e a habilidade de fazer uso de habilidades matemáticas que capacitam um indivíduo a enfrentar as demandas práticas de sua vida cotidiana. O segundo é a habilidade de ter alguma apreciação e compreensão das informações que são apresentadas em termos matemáticos, por exemplo em gráficos, mapas e tabelas ou por referências a aumento e redução de porcentagem. Considerados juntos, estes implicam que deveria se esperar que uma pessoa numeralizada fosse capaz de apreciar e entender algumas das formas pelas quais a matemática pode ser usada como um meio de comunicação (COCKCROFT, 1982, apud, NUNES e BRYANT, 1997, p. 19).

O ensino da Matemática, para D’Ambrósio (1993), significa desenvolver a

capacidade do aluno para manejar situações reais que se apresentam a cada

momento, de maneira distinta, por ser útil como orientação para a vida, o trabalho e

porque ajuda a pensar com clareza e a raciocinar melhor.

A numeralização está envolvida em diferentes contextos de aprendizagem na escola, mas conceitos matemáticos não são sempre claramente definidos como tal, porque eles são apresentados como ideias, não como números (NUNES e BRYANT, 1997, p. 19).

Corroborando com Nunes e Bryant (1997), defende-se a ideia de que a

numeralização perpassa por outras disciplinas da escola, assim como a

alfabetização. Para ela, “cada professor na escola primária ou secundária deveria

ver-se envolvido no sentido de numeralização”. E completa, “a numeralização

também está envolvida na vida cotidiana e no trabalho”, no entanto, não é

reconhecida como conhecimento matemático.

[...] ser numeralizado significa pensar matematicamente sobre situações. Para pensar matematicamente, precisamos conhecer os sistemas matemáticos de representação que utilizaremos como ferramentas. Estes sistemas devem ter sentido, ou seja, devem estar relacionados às situações nas quais podem ser usados. E precisamos ser capazes de entender a lógica destas situações, as invariáveis, para que possamos escolher as formas apropriadas da matemática. Deste modo, não é suficiente aprender procedimentos; é necessário transformar esses procedimentos em ferramentas de pensamento (NUNES e Bryant, 1997, p. 31, grifos dos autores).

Com o intuito de iniciar esse processo de contagem, deve-se que este se inicia antes

mesmo de as crianças chegarem à escola. A maioria delas já chega à escola

sabendo contar e com noções de quantidade. A contagem, então, passa a ser o

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nosso começo na exploração do conhecimento matemático. Para Dante (1996), é

fundamental que a criança sinta que saiba alguma coisa.

Partindo daí, estaremos ligando o novo com as experiências já vivenciadas. Não há descontinuidade. A criança sente-se mais segura e começa a arriscar-se mais, a descobrir, a contar o que descobriu, a aventurar-se mais um busca do novo (DANTE, 1996, p. 15).

De acordo com os PCNs (1997), aprender e ensinar Matemática no ensino

fundamental requer que o professor conheça as principais características dessa

ciência; conhecer a história de vida de seus alunos, sua vivência de aprendizagens,

conhecimentos informais sobre o assunto, entre outras condições. Além disso, deve

ter clareza sobre suas próprias concepções sobre a Matemática.

- Isto soa tão místico que vou precisar de um tempo para conseguir digerir. Mas gostei dessa

última frase que você disse (GAARDER, 1995, p. 395).

Tudo no seu tempo, Sofia! Sem afobamentos! Podemos prosseguir?

- Acho que não quero ouvir mais nada (GAARDER, 1995, p. 273).

Muita calma, Sofia, eu sei o quanto esse tema pode não ser envolvente para você!

Voltemos então à discussão sobre o autismo.

Atualmente, há divergências nos rótulos utilizados para descrever o autismo. Tais

divergências são muito comuns devido à dificuldade de se obter um diagnóstico

médico preciso, pois os comportamentos observados variam de pessoa para pessoa

em sua gravidade e combinação de sintomas. E mesmo que crianças sejam

diagnosticadas com o mesmo grau de autismo, ainda assim, há diferenças em seus

comportamentos e níveis de “inteligência”. É preciso considerar o fato de alguns

médicos utilizarem palavras diferentes para descrevê-lo, o que, de certa forma, gera

confusões.

O mundo é portátil

Pra quem não tem nada a esconder

Olha a minha cara

É só mistério, não tem segredo

(Infinito Particular – Arnaldo Antunes / Carlinhos Brown / Marisa Monte)

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Crianças autistas ainda podem apresentar uma espécie de cegueira mental –

“dificuldades em entender o ponto de vista ou as ideias ou sentimentos alheios”

(WILLIAMS; WRIGHT, 2008, p. 33). Nesse sentido, as crianças com a síndrome

podem parecer muito egoístas, não por ser, mas por não conseguir se colocar no

lugar do outro. Há nelas uma dificuldade em compreender os sentimentos alheios.

Tal desinteresse pelo outro é explicado por estudiosos por meio da Teoria da Mente

(TOM).

A Teoria da Mente (TOM) refere-se a nossa habilidade de fazer suposições precisas sobre o que os outros pensam ou sentem ou nos ajuda a prever o que farão. Trata-se de uma aptidão crucial para a vida em sociedade; e a cegueira mental causa problemas nesse ponto (WILLIAMS 2008, p. 33).

Assim, algumas crianças autistas desenvolvem essas aptidões tardiamente e em

grau menor do que as crianças sem autismo. A cegueira mental, então, dificulta a

compreensão de significados. Uma criança autista pode ver “o todo” e se interessar

apenas por um detalhe. Como em casos em que ela vê um carrinho de brinquedo,

mas a sua atenção está voltada para a roda.

Do mesmo modo, as brincadeiras simbólicas, como o brincar de faz de conta encontram-se pouco presentes ou até ausentes. Isso porque o pensar com concretude, a necessidade de ter vivenciado a situação, inúmeras vezes, e a limitada função de imitação dificultam, ou mesmo incapacitam, a habilidade desenvolvimental prioritária para a abstração (GOERGEN, 2013, p. 33).

Nesse sentido, “o indivíduo com autismo mantém-se privado da capacidade de

interpretar e representar mentalmente situações presentes nas relações humanas,

desde as mais agradáveis até as mais conflitivas"(BEYER, 2002, p. 112).

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Assim, tentou-se descrever Sofia e um pouco do “seu” mundo. Há tantas outras

coisas que poderiam ser ditas! E serão em momento oportuno. Quis-se apenas

situar o leitor em torno do mundo singular de Sofia!

Vem, cara, me repara

Não vê, tá na cara, sou porta-bandeira de mim

Só não se perca ao entrar

No meu infinito particular

(Infinito Particular – Arnaldo Antunes / Carlinhos Brown / Marisa Monte)

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3 O COELHO MANDA UM RECADO PELO LAGARTO

Era o Coelho Branco, voltando a passos lentos e olhando ansiosamente ao redor, como se

tivesse perdido alguma coisa. [...] Alice logo compreendeu que ele estava atrás do leque e do

par de luvinhas brancas, e muito bondosamente começou a procurá-los [...] (CARROL, 1998,

p.46).

3.1 OU O UNIVERSO SEMPRE EXISTIU, OU ENTÃO UM DIA SURGIU DO NADA23...

E se a minha discussão começasse de onde eu nem pudesse imaginar? E se

passasse por mim um coelho com um relógio em uma de suas patas dizendo “Oh,

meu Deus! Oh, meu Deus...! Vou chegar tarde!” (CARROL, 1998, p. 12). E se ao

abrir a minha caixa de correios encontrasse um envelope com uma mensagem me

perguntando “Quem é você?” ou “De onde vem o mundo?” (GAARDER, 1995, p.20).

E se...

Por isso propus-me a buscar respostas: as minhas respostas! A procurar o meu par

de luvinhas brancas. Ou então, a cavar mais perguntas: O que eu vou fazer? Onde

encontrar? Quem já disse isso? E assim, estava decidido e inseguro, sentindo o

peso e o alívio de investigar os sentidos dados ao autismo, os cotidianos e a

matemática. Sentindo-me um pouco do lagarto à espera do recado dado pelo

coelho.

Então, entre essas redes de saberesfazeres e o emaranhado de possibilidades,

coube o pensar quais fios as teceriam e como seriam trançados, esticados, puxados

e amarrados para assim ampliar minha rede de conhecimentos e experiências

no/do/com os cotidianos.

Para tanto, o princípio foi vasculhar sobre as pesquisas realizadas no/do/com os

cotidianos e com os temas aos quais pretendíamos investigar e, como diria Alves,

passei a “beber em fontes diferentes” na tentativa de descobrir produções que se

assemelhassem ao meu desejo de descobertas ou a fragmentos dessas temáticas.

23GAARDER, 1995, p. 542.

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De súbito, surgiu um pouco de tristeza com tal busca, pois não havia fontes para

“matar” completamente a minha sede desses conhecimentos entrelaçados. Umas

discutiam as temáticas do autismo e da Matemática, outras cotidianos e currículo e,

nenhuma delas envolvia integralmente os temas de nossa proposta. No entanto, a

frustração pelo desencontro também foi motivadora, e nossa tentativa de descrever

tais processos impulsionaram a pesquisa.

E, assim dialogando com Robers (2013) tomei a liberdade de usar as suas, e agora,

nossas palavras

Eu não queria só transcrever o que outros já produziram para justificar minha pesquisa, a minha preocupação era produzir sentidos a partir das publicações encontradas, mas estava fechada a novas experiências (ROBERS, 2013, p.18).

E, por mais de uma vez, das inúmeras vezes, foi o meu orientador que me

tranquilizou. E o meu medo era sempre o “E se não der certo?, “E se eu não

conseguir ensiná-la?” Então, pude entender que os conceitos de certo e errado,

aqueles que me amedrontavam, poderiam não ter tanta importância ou sentidos.

E se o que importa é o processo, vale mais viver o acontecimento do que efetivamente aquilo que se adquire com essa passagem. Então, como e qual o sentido de se quantificar o acontecimento aprender? Pobre pedagogia, que se perde em querer quantificar o quântico, a ruptura, o inquantificável... (GALLO, 2012, p. 5).

Assim, comecei a me debruçar nessas pesquisas, naquelas dissertações e teses

recebidas do orientador, e em outras da internet, nos livros organizados por Ferraço

e Nilda Alves, nos artigos disponibilizados, nas conversas ouvidas e nos olhares

muitas vezes atravessados.

Logo de início, destaca-se a primeira dessas pesquisas, a qual provocou a sensação

de estar mergulhado dentro de sua história. Os diálogos, os incentivos pareciam

vividos e ouvidos por mim. A dissertação de Robers (2013) relata o currículo vivido

no curso de ambientação institucional do Ifes.

A pesquisa buscou um mergulho no cotidiano do Curso de Ambientação Institucional – CAI do Instituto Federal de Educação do Espírito Santo – Ifes, para problematizar as redes de saberesfazeres que são tecidas pelos sujeitos que realizam o currículo do curso, ou seja, todos aqueles que, de

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forma mais direta ou indireta, estão envolvidos na tessitura e compartilhamento das redes cotidianas desses currículos (ROBERS, 2013, p.5).

A leitura rápida dessa dissertação proporcionou a abertura de novos horizontes,

possibilitando o conhecimento dos novos sentidos embutidos nas escritas utilizadas

por Ferraço e Alves, e a apresentação do que é uma pesquisa no/do/com os

cotidianos. Além dessa, outras duas pesquisas me foram entregues - outra

dissertação e uma tese - que também me auxiliaram muito nesse percurso.

A dissertação de Oliveira (2013): Imagensnarrativas de “mulher” produzidas por

sujeitxs24 praticantes do currículo do Ifes, discute

[...] as imagensnarrativas de mulher produzidas por sujeitxs dos cursos técnicos do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), bem como as relações de gênero e poder ali tecidas (OLIVEIRA, 2013, p.6).

Tão importante quanto a primeira, esta tornou possível aprofundar um pouco mais a

respeito dos processos metodológicos e compreender que “esse tipo de pesquisa

não pretende explicar uma realidade dada ou apreensível e que antes, ela prioriza

as perguntas ao invés das respostas” (OLIVEIRA, 2103, p. 27).

Entretanto, a pesquisa que despertou bastante a atenção foi a tese de doutorado de

Piontkovsky (2103, gritos da autora) - Hibridizações curriculares nos cotidianos de

uma escola no ensino médio: ou sobre a força dos jovens na invenção de uma vida

bonita. O colorido de suas páginas, a força da música e da poesia, as reflexões tão

pertinentes, o encaixe perfeito da arte se sobressaíram, e produziram uma

identificação de ideias. Assim, a partir daí por vezes, pequei pelo excesso ou pela

escassez (em minha opinião) de dados artísticos.

A pesquisa com os cotidianos traz a necessidade desse entendimento do poetamúsico, apontando para a perda das convicções de que a complexidade da vida cotidiana possa ser inteiramente apreendida, compreendida, ou seguramente explicada [...] (PIONTKOVSKY, 2013, p.165, grifos da autora).

24 Oliveira utilizou uma escolha linguística e política por uma grafia que não eleja um gênero (masculino ou feminino) como norma-padrão, sendo esta uma tendência nas produções dos Estudos Feministas e da Teoria Queer.

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Para Piontkovsky (2013), é preciso se abandonar às certezas, às explicações e ir ao

encontro das descontinuidades, da produção de sentidos, das visibilidades e

invisibilidades, das singularidades das experiências...

Essa pesquisa causou muita preocupação porque compará-la com este trabalho, e

também com a das outras colegas, produziu apreensão e certo nervosismo: “Meu

Deus, tá tudo errado, não está igual, nem parecida!” Contudo, despontou a

descoberta de que não tinha que ser igual ou parecida, mas sim ser única, singular,

exclusiva, minha essência, meus sentidos, minhas lutas, minhas observações...

Que as palavras que eu falo

não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor

apenas respeitadas como a única coisa

que resta a um homem inundado de sentimentos

porque metade de mim é o que ouço

mas a outra metade é o que calo.

(Metade - Oswaldo Montenegro)

As pesquisas no/do/com os cotidianos, as quais tive contato, foram importantíssimas

para a escolha e definição do referencial teórico. Por meio delas, iniciei os estudos

sobre Foucault , Certeau, Alves e Ferraço, elementos fundamentais para a base

teórica desta dissertação.

Na busca por compreender melhor a educação em uma perspectiva inclusiva voltada

para a área da matemática, algumas pesquisas incomodaram e outras

surpreenderam. De certa forma, todas contribuíram para o enriquecimento e a

desconstrução de pensamentos preconceituosos e, acima de tudo, pela

(des)construção do meu ser que, por vezes, não me reconhecia.

Destaca-se entre as pesquisas encontradas a de Amaro: Educação inclusiva,

aprendizagem e cotidiano escolar, cujo estudo para o mestrado resultou na

publicação de um livro. Em seu trabalho, o autor discorre, apoiado nos princípios de

inclusão, sobre “a interdependência entre pessoas, objetos, espaço, tempo e

atividades no cotidiano escolar para favorecer o desenvolvimento e a aprendizagem

dos alunos.” Discute ainda quais instrumentos são necessários para avaliação e

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intervenção, e investiga como compreender a educação inclusiva em uma

perspectiva construtivista.

Para entender melhor os (des)caminhos atravessados por Sofia, o objetivo foi

aprofundar nas pesquisas com o autismo e procurar propostas metodológicas que

facilitassem o seu aprendizado e sua socialização, bem como desfazer a imagem de

que o autista vive em mundo próprio, não aprende, não se socializa etc.

Com uma proposta bem similar à esta pesquisa, Nunes, Azevedo e Schmidt

destacam o trabalho de Pedrosa (2010), que analisou as interações de uma criança

autista com seus colegas, com sua professora e demais funcionários da escola.

Os resultados indicaram que o aluno parecia satisfeito em seu contexto escolar. Era aceito por seus pares e professora, e estabelecia com eles interações positivas. A docente empenhava-se em estimular comportamentos de autonomia no aluno, mas, corroborando o apresentado em outros estudos, também se queixava por desconhecer as especificidades do autismo. Registros indicaram, ainda, o preconceito e a discriminação expostos por funcionários que interagiam como aluno nos diferentes espaços da escola. Pedrosa (2010) ressalta a necessidade da equipe técnica da escola participar de cursos de capacitação para a inclusão, conhecer as especificidades dos alunos com deficiência, assim como os recursos pedagógicos que viabilizam sua aprendizagem (NUNES, AZEVEDO e SCHMIDT, 2013, p. 563).

Sobre o Autismo e as práticas inclusivas em Matemática, há o trabalho de Bertazzo

e Ramburguer (2011): Autismo e Matemática: práticas que fazem a diferença e

viabilizam a inclusão social. Nesse trabalho, os autores buscam refletir e

problematizar, com o auxílio de uma professora da educação especial, como

práticas metodológicas de ensino dessa disciplina interferem no processo de

aprendizagem para alunos autistas.

Praça (2011), em sua dissertação do Mestrado Profissional em Educação

Matemática pela UFJF/MG, discute a inclusão do aluno autista na escola. Seu

trabalho Uma reflexão acerca da inclusão de aluno autista no ensino regular objetiva

o desenvolvimento de jogos e certas atividades manuais e concretas para serem

aplicadas e, posteriormente, analisadas, como contribuições para uma

aprendizagem matemática significativa ao aluno autista.

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Gomes (2007), em um artigo publicado na Revista Brasileira de Educação Especial,

discute o Autismo e o ensino de habilidades acadêmicas: adição e subtração. Esse

artigo aborda o ensino de habilidades de adição e subtração para uma aluna autista,

e desenvolve procedimentos adaptados com base em descrições sobre o quadro de

autismo, princípios de aprendizagem da análise experimental do comportamento,

técnicas de ensino e observação direta do repertório da participante.

Em todas as pesquisas encontradas, observou-se que os estudos estavam

direcionados sempre ao entendimento de que o deficiente, o diferenciado, “o

estranho” é que precisa ser incluído sob a compreensão da “dita” normalidade, na

ótica de currículos hegemônicos em função da necessidade de normalizar,

modelizar, classificar e nunca em outra perspectiva.

Dessa forma, embora surgisse o cansaço provocado pela leitura, recorria-se a outros

meios de informação e foi o filme Temple Grandin que possibilitou finalmente

compreender que todos possuem capacidades de aprender, basta apenas encontrar

o meio apropriado, sensibilidade, paciência, orientação e acima de tudo, é

necessário acreditar no próprio potencial e também no potencial das outras pessoas.

O longa-metragem lançado em 2010 para a televisão tem a direção de Mick Jackson e retrata a cinebiografia sobre a vida de uma pessoa com autismo, Temple Grandin, interpretada por Claire Daines. Por não desenvolver a fala até os quatro anos de idade foi levada para avaliação psiquiátrica por sua mãe, interpretada por Julia Ormond, quando recebe o diagnóstico de autismo em meados da década de 1950. Claramente impactada com a notícia, recebe explicações de que essa desordem teria sido ocasionada por restrições afetivas por parte de sua mãe (SCHIMDT, 2012, s.p.).

Grandin sempre teve apoio familiar e incentivo aos estudos, pois demonstrava

notáveis habilidades. Como qualquer outra criança especial, sofreu com as

perseguições nas escolas pelos colegas e com o (des)preparo de professores. Até

que um desses professores acreditou nela e viu a mente brilhante que possuía.

Temple Grandin é PhD em engenharia agropecuária e uma respeitada especialista

no assunto, é professora na Universidade do Estado do Colorado (EUA) e autora de

diversos livros sobre autismo.

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Dessa forma, o aprofundamento ao buscar novos textos, novos vídeos, novos

desafios produziu um encantamento pelo ser autista, artista, verdadeiro, ingênuo,

sincero, amigo e mais um trilhão de adjetivos subsequentes.

Que a arte me aponte uma resposta

Mesmo que ela mesma não saiba

E que ninguém a tente complicar

Pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer

(Metade - Oswaldo Montenegro)

3.2 UM CHÁ MUITO LOUCO

Se para isto você tem de perder-se enquanto Sofia Amundsen, então talvez sirva de consolo o

reconhecimento de que um dia terá de perder este “eu cotidiano”, de uma forma ou de outra

(GAARDER, 1995, p. 154).

Não é por menos que o condutor desse chá seja o Chapeleiro Maluco e, por isso,

justifica-se o título deste capítulo. Nele, os convidados discutem a seu bel- prazer

sobre o assunto que lhes convêm, conforme diz a Lebre de Março “Então deveria dizer

o que quer dizer” (CARROL, 1998, p. 91).

Paralelamente a esse chá, Sofia resolveu convidar os seus amigos para uma festa

filosófica:

- Querida Sofia! [...] Gostaria de lembrar a todos que esta é uma festa filosófica. Por isso,

vou fazer um discurso filosófico (GAARDER, 1995, p. 510).

Assim, resolveu-se juntar a esse chá um pouco dessa filosofia. Por isso, este

capítulo abordará o referencial teórico, contudo, é preciso lembrar que ele será

conduzido por uma espécie de Chapeleiro Filosófico Maluco, e a qualquer tempo

também serão abordados o método utilizado, o local e os demais convidados desta

pesquisa.

“É o que eu faço”, respondeu Alice apressada, “pelo menos... pelo

menos eu quero dizer o que digo... é a mesma coisa.”

“Nem um pouco!”, disse o Chapeleiro. “Ora, você poderia dizer que

‘vejo o que como’ é a mesma coisa que ‘como o que vejo’!” (CARROL,

1998, p. 91).

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Não, senhor Chapeleiro! Não seja tão maluco! Venda os seus chapéus que não são

seus como disse ao Rei, “Eu os tenho para vender” (CARROL, 1998, 152). E não me

venha com essas esquisitices: como vou saber “Por que um corvo é parecido com uma

escrivaninha?” (CARROL, 1998, p. 91). Não ouso te responder isso. No entanto, gosto

do jeito de como vê as coisas, de como leva à vida, ou de como ela te leva! No

fundo, acho que gostaria de ser como você ao conduzir esta pesquisa, a pensar

como você e a revirar do avesso essas teorias e métodos diferenciados que me

foram apresentados, sem me preocupar tanto, sem me esgotar tanto, sem me

esquecer tanto... Talvez você seja capaz de mostrar-me o caminho.

“Não me lembro!”, disse o Chapeleiro (CARROL, 1998, 155).

Para quem pesquisa os cotidianos, é muito comum a percepção do quanto a vida se

(re)inventa a todo o momento. Cada dia, cada instante e cada pensamento distante

são viagens em procura por algo que nem sempre se está esperando, afinal, “o

predicado de toda a vida é a incerteza e a contingência” (BRIGGS; PEAT, 2000, p.

18) ou o melhor seria dizer, então, na surpresa do inesperado, do imperceptível, ou

quiçá, sejam viagens na procura do próprio eu.

Viajar é transportar-se sem muita bagagem para melhor receber o que as andanças têm a oferecer (...) é despir-se de si mesmo, dos hábitos cotidianos, das realidades previsíveis, da rotina imutável, e renascer virgem e curioso, aberto ao que lhe vai ser ensinado. (...) Viajar é olhar para dentro e desmascarar-se (...) Viajar requer liberdade para arriscar (...) Viajando você é reinventado. (...) Sair de casa é a oportunidade de sermos estrangeiros e independentes, e essa é a chave para aniquilar tabus. A maioria de nossos medos é herdada. Viajando é que descobrimos nossa coragem e atrevimento, nosso instinto de sobrevivência e conhecimento. Viajar minimiza preconceitos (MEDEIROS, 1999 apud BOSA; BAPTISTA, 2002, p.12).

Medeiros (1999) suscita envolvimento e surpreende ao explicar aquilo que possa

não ter, ou necessite de explicação, ou quem sabe a explicação seja esta: a de dizer

o que deixa todos no limiar dos significados, sendo sem ser; imaginando sem

imaginar, viajando sem ao menos sair do lugar. Esse pensamento lembra o livro “A

Sabedoria do Caos”, o qual aponta “sete lições que vão mudar sua vida”, em que o

autor inicia uma das lições com um questionamento sobre a vida.

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A vida é simples ou complexa? A teoria dos caos diz que pode ser as duas coisas, e mais – pode ser ambas ao mesmo tempo. O caos revela que o que parece incrivelmente complicado pode ter uma origem simples, enquanto a simplicidade superficial pode ocultar algo de assombrosa complexidade (BRIGGS; PEAT, 2000, p. 81).

Assim, percebe-se que pesquisar o cotidiano é pesquisar a vida e as transformações

sofridas ao longo desse processo e, como aponta Certeau (1994, p. 38, grifos do

autor), “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” e revela a

sua complexidade, pois “essas práticas, volta e meia, exacerbam e desencaminham

as nossas lógicas” (CERTEAU, 1994, p.43). Desse modo, como ondas em um mar

revolto, ou até mesmo tranquilo, a vida se (re)inventa criando e, quem sabe,

recriando possibilidades e oportunidades que faz o ser humano perder a mesmice do

“eu cotidiano”!

É só uma questão de saber através de que lentes você observa tudo isto

(GAARDER, 1995, p. 271).

Para Certeau (1996, p. 207), “a vida entretém e desloca, ela usa, quebra e refaz, ela

cria novas configurações de seres e objetos, através das práticas cotidianas dos

vivos, sempre semelhantes e diferentes”. Nesse sentido, as pesquisas no/do/com os

cotidianos dedicam a estudar as representações e/ou os comportamentos na

sociedade e, “graças ao conhecimento desses objetos sociais, parece possível e

necessário balizar o uso que deles fazem os grupos ou os indivíduos” (CERTEAU,

1994, p.39).

Destaca-se dessa forma a importância deste trabalho ao observar e descrever os

(des)caminhos percorridos por Alice e Sofia, alunas especiais em uma escola que,

de tão diversa, jamais deveria ser chamada de “regular”, mas sim de (des)regular,

assim como nas aulas de Matemática e no atendimento educacional especializado

(AEE). Como afirma Certeau, ao retratar os seres sempre semelhantes e diferentes,

é permitido acreditar na possibilidade de se perceber, idealizar, planejar e quem

sabe interferir em tais (des)caminhos.

Acho que entendo o que ele quer dizer. Mas não me agrada o pensamento de que não sou eu

quem decide sobre mim mesma (GAARDER, 1995, p. 272).

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Assim, confia-se na reflexão do (im)previsível dessas relações nem sempre

rotineiras e cotidianas da escola, dos fatos e dos boatos, das relações estabelecidas

entre professor e aluno, professor e professor, alunos e alunos, das relações entre

gentes.

[...] o espaço privado deve saber abrir-se a fluxos de pessoas que entram e saem, ser o lugar de passagem de uma circulação contínua, onde se cruzam objetos, pessoas, palavras e ideias. Pois a vida também é mobilidade, impaciência por mudança, relação com um plural do outro (CERTEAU, 1996, p. 207).

Se me permitem, aproveitando as falas de Certeau sobre o espaço privado, faz-se

necessário abrir um parêntese e descrever um pouco sobre o local da pesquisa mas,

se não for permitido, lembrem-se de quem está à frente deste chá!

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!

José Régio – Cântico Negro

3.2.1 O campo de croqué da rainha

A pesquisa foi desenvolvida em uma Escola Estadual de Ensino Fundamental e

Médio no município de Vila Velha, cuja identidade vai-se preservar. A escolha deste

local ocorreu pelo fato de ser referência nesse município como escola inclusiva, em

que há diversos alunos especiais com especialidades bem distintas. Além disso,

atende a um público bem diversificado, desde as séries inicias às finais, EJA e curso

técnico de libras.

[...] a pesquisa se dedicou sobretudo às práticas do espaço, às maneiras de frequentar um lugar, aos processos complexos (...) e aos mil modos de instaurar uma confiabilidade nas situações sofridas, isto é, de abrir ali uma possibilidade de vivê-las reintroduzindo dentro delas a mobilidade plural de interesses e prazeres, uma arte de manipular e comprazer-se (CERTEAU, 1994, p. 50-51).

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Atualmente, a escola possui cerca de 900 alunos matriculados, sendo que 9 são

“especiais”. Do público chamado especial, 8 possui laudos médicos e/ou

psicológicos, e 5 deles participam do Atendimento Educacional Especializado (AEE)

no turno oposto às aulas regulares.

Com um número aproximado de 80 professores, cerca de 10 apresentam algum tipo

de curso na área de Educação Especial ou Inclusiva, sendo 5 deles intérpretes de

Libras/Língua Portuguesa.

Em se tratando do espaço físico, a escola é composta de dois pavimentos: 1º andar

e térreo; não possui elevadores e nem rampas de acesso ao segundo piso. No seu

exterior, foram construídas recentemente calçadas cidadãs e rampas facilitadoras de

locomoção. Os banheiros coletivos para alunos não possuem adaptações e o

banheiro masculino do professor foi adaptado para cadeirantes; vale destacar que

esse é o banheiro utilizado por Alice. Possui uma sala de recursos na qual acontece

o AEE, uma biblioteca cujo acervo conta com poucos livros sobre inclusão ou

educação especial, laboratório de informática com máquinas novas, porém com

internet de baixa velocidade e ainda há turnos em que não funciona por ausência de

funcionário responsável pelo setor. Há também secretaria, diretoria, sala de

professores, sala de planejamento, coordenação, laboratório de química utilizado

como depósito, cantina, refeitório improvisado no pátio, quadra esportiva não coberta

e doze salas de aula.

As observações realizadas aconteceram na sala de aula e no atendimento

educacional especializado (AEE). Contudo, as atividades práticas foram

desenvolvidas no AEE.

Feita essa apresentação, o parêntese se fecha apenas pela obrigação de ser

fechado academicamente. Será reaberto quando for conveniente, quando for

necessário!

Você ainda está aí, Sofia? Vamos continuar... (GAARDER, 1995, p. 26).

Assim, volto a me reportar com o Régio, a não me definir, a não me limitar e a ser

essa metamorfose ambulante tão quanto a música cantada por Raul Seixas, tão

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quanto o poema do José Régio... tão constante e inconstante, tanto caos, quanto

serenidade, e a observar esse vendaval de diversidades, que é a vida e, é isso...

Pois essa pluralidade fascina, essa diversidade alimenta, guia em busca de uma

igualdade que difere uns e outros, são esses locais em que a vida acontece que

permite sonhar, pesquisar, colaborar, e respeitar o ser em sua singularidade e os

seres em suas multiplicidades. Para Certeau (1994, p. 38), cada individualidade é o

lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas

determinações relacionais.

Nesse sentido, ao perceber o mundo do autista, das (não) relações pelas quais

Sofia passa na escola e daquelas vividas por Alice, refletiu-se sobre suas

individualidades, suas singularidades, suas subjetividades e coube o pensar sobre “o

que dizer dessa história muda?” (CERTEAU, 1994, p. 35), ou o que dizer dessa

“encenação da vida cotidiana” (CERTEAU, 1996, p. 38) que a escola supõe propor

aos seus alunos? Ao pensar o cotidiano desses alunos especiais, reflete-se ainda, à

luz do autor “os efeitos marcados por esses heróis obscuros de que somos

devedores e aos quais nos assemelhamos” (CERTEAU, 1996, p. 32). Há de se

considerar que se aprende muito a cada dia, com cada ser e isso conduz a pensar o

porquê de sermos também especiais.

Sofia viu uma aranha que se movia segura energicamente sobre o

musgo, um pulgão subindo e descendo por um raminho de grama e um

pequeno exército de formigas trabalhando em conjunto. E mesmo entre

as formigas, cada uma tinha o seu jeito particular de levantar as

pernas (GAARDER, 1995, p. 401).

Sofia e Alice são como esses heróis obscuros retratados por Certeau; são heroínas

de si mesmas, vivem inocentemente alegres apesar das adversidades encontradas

em seus caminhos, apesar das atividades infantilizadas e mecanizadas com o fim de

torná-las ocupadas.

E são tantos os argumentos explicativos a respeito da invisibilidade de Sofia, de

Alice, que acabam por culpá-las por suas condições. “Sofia é autista! Alice é

deficiente!” – quando não se usam outros adjetivos. A culpa dos “seus” fracassos é

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quase que dizer que elas são excluídas por suas próprias responsabilidades; “[...]

metáforas de uma disseminação da língua que não tem mais autor, mas se torna o

discurso ou a citação indefinida do outro” (CERTEAU, 1994, p. 59). Alguns desses

discursos são muito naturalizados:

O autor ressalta que as pessoas tendem a culpar o outro por aquilo que é de

responsabilidade própria (CERTEAU, 1994). São os clichês criados em torno

daqueles que, para um conforto pessoal, é mais fácil responsabilizá-los pela

ignorância alheia.

Desse modo,

[...] a escola torna-se uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a operação do ensino. Tratar-se-á cada vez menos daquelas justas em que os alunos defrontam forças cada vez mais de uma comparação perpétua de cada um com todos, que permite ao mesmo tempo medir e sancionar (FOUCAULT, 2013, p. 178).

Nesse sentido, Sofia é sempre comparada aos outros:

e Alice, pobre Alice! Quando era comparada: “é deficiente!”.

É perigoso o raciocínio segregador centrado na deficiência. É preciso verificar as potencialidades dos indivíduos com deficiências. Dizer que alguém “não consegue fazer nada”, em razão de uma limitação física e/ou intelectual é limitar a vida, pois o nada, no caso, torna-se muita coisa (FIGUEIRA, 2014, p. 61).

É perigoso, preconceituoso e desmotivador.

- Sempre me sinto mal quando reconheço que tenho algum preconceito

(GAARDER, 1995, p.297).

Por ela não conseguir aprender, por não prestar atenção ou ainda, por que ‘eu’ não

fui preparado para trabalhar com crianças especiais.

é atônita, incapaz, se isola...

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Eu também Sofia, sinto-me péssimo quando percebo que discriminei alguém! E

quando me lembro das vezes que fingir não ser preconceituoso, e praticar o bulliyng

com meus colegas usando aquilo que julgava engraçado para poder diminuí-los.

Quando não andava com fulano ou beltrano por possuírem comportamentos

diferenciados. Ah, Sofia! Como me policio para não ser mais assim e com essa luta,

com esse vislumbre, quantas vezes tenho me percebido nas falas do outro; naqueles

diálogos discriminatórios que eu tanto colaborei.

Alice não gostou nem um pouco do tom desse comentário, e achou melhor mudar de assunto.

Enquanto tentava se decidir por um tema [...] (CARROL, 1998, p. 78).

Certo, enquanto Alice não se decide, outro parêntese será aberto para descrever

dois convidados de Sofia bem curiosos deste chá filosófico: A Duquesa, professora

da sala de aula na qual Sofia estuda e Bia, professora do Atendimento Educacional

Especializado, velha conhecida de Alice.

3.2.2 A Duquesa25

“Pensando de novo?”perguntou a Duquesa, com outra pontada do

pequeno queixo agudo.

“Tenho o direito de pensar”, disse Alice rispidamente, pois ela estava

começando a ficar um pouco preocupada.

“Tanto quanto os porcos têm o direito de voar”, disse a Duquesa

(CARROL, 1998, p. 124).

Como é possível perceber, a Duquesa é uma personagem da história de Alice

convidada para este chá filosófico nos jardins da casa de Sofia. Na ficção,

apresenta-se como uma pessoa de temperamento instável, às vezes calma, às

vezes nervosa e, por isso, a analogia à professora de Sofia.

25 Apesar de reproduzida a realidade sobre esta personagem/professora não foi nossa intenção culpabilizá-la por seus atos que, antes de qualquer julgamento, lembremos que é humana e por isso, passível de falhas. Reconheço-me por vezes em suas ações e por isso, ao representar os seus atos, também represento vários que outras vezes foram praticados por mim.

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Graduada em Pedagogia com especializações em (a) Educação Especial e Inclusiva

e (b) Alfabetização, é professora nas redes municipal e estadual. Sempre relata as

dificuldades de Sofia em aprender ou prestar atenção em suas aulas. Segundo ela:

Ainda que tenha passado pelos cursos de formação destinados à Educação Especial

e à alfabetização, a Duquesa não se sente capacitada em trabalhar com crianças

com necessidades especiais. Nas aulas presenciadas pelo pesquisador não houve

atividades diferenciadas planejadas, exclusivamente, para Sofia, ou que partissem

das dificuldades dela, ou ainda aulas que motivassem a sua atenção, ou dos demais

alunos. Sofia não faz avaliações e nem sempre recebe as atividades que os demais

alunos recebem. E como observado, vive a desenhar e pintar, enquanto a professora

ocupa-se, parte do tempo de suas aulas, sentada em sua mesa realizando algumas

atividades e aguardando que os alunos terminem os exercícios propostos.

“Oh, não me amole!”, disse a Duquesa. “Nunca suportei números.” (CARROL, 1998, p. 80).

No primeiro dia de investigações, ela advertiu que não seria permitido filmar, gravar

ou fotografar as suas aulas. A Duquesa é uma professora do tipo tradicional,

daquelas que reclamam se um aluno olha para o colega do lado, ou conversa com

outro. Os alunos se comportam “bem”, costumeiramente educados. Talvez esse

‘bom’ comportamento é movido por medo à professora, que normalmente resolve

toda a indisciplina com um olhar ou um falar mais alto. Nas aulas observadas,

comenta sobre assuntos diversos, não pertinentes ao seu trabalho, como conversas

de corredores, problemas com familiares de alunos, desentendimentos entre colegas

de trabalho, festas entre outros assuntos. Enquanto estive presente, várias dessas

conversas foram escutadas na presença de todos os alunos. Volta e meia, ela

buscava afirmação dos mesmos com a frase:

Duquesa: Nada do que faço consegue prender a atenção de Sofia e, pois já que não sabe ler ou escrever, vive a desenhar e pintar e, por não ser alfabetizada combinei com a professora do AEE para que fizesse isso por ela.

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Ela parecia distante de seus alunos em uma relação limitada profissionalmente em

ser somente, estudante e professor.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempo que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 24).

Mas não havia essa aproximação! Essa re-flexão de verbos e ações. A Duquesa não

gostava de ser amolada, desafiada, e até mesmo importunada. A Duquesa não lhes

dava atenção, nem mesmo quando a atingiam (CARROL, 1998, p.79). Pobres crianças! Por

vezes houve o receio de que os alunos não a confirmassem. Eu mesmo jamais

confirmei com palavras algumas de suas frases, não queria criar atritos ou

comprometer a pesquisa, e então, ouvia tudo silenciosamente.

O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar: um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam (FOUCAULT, 2010, p. 165).

O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar,

tem como função maior “adestrar” (FOUCAULT, 2010, p. 164). Nesse sentido,

convém a reflexão se o “bom” comportamento apresentado pelos alunos da sala de

aula da professora seria por medo das suas retaliações, e pelo medo de sofrer

humilhações; e se aqueles alunos não eram comportados e sim, adestrados por um

poder intimidador. Talvez a Duquesa agisse assim para conseguir desempenhar o

seu trabalho da maneira que ela julgue certo. Assim, também já o fiz. Já apropriei de

um poder do qual julgava ter para subjugar os outros...

Duquesa: Não foi gente? Não foi verdade? A mãe [da aluna tal] não quis me bater?

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[...] pode ser que você um dia tropece em si mesma. Pode ser que um belo dia você para o

que está fazendo e passe a se ver de uma forma completamente diferente (GAARDER, 1995,

p.28). Acho que eu levei esse tropeção, esse topada no peito do pé que

ocasionalmente a vida nos dá, para que possamos também olhar para baixo. Eu me

via nas ações da Duquesa.

Entretanto, “o que alguns veem como limitação, como algo apenas negativo, outros

veem como condição de possibilidade para que algo exista, portanto algo afirmativo”

(FIGUEIRA, 2014, p. 62). Essas pessoas não desvinculam o pensamento da vida e

enxergam o deficiente como o ser humano normal que é, ou seja, não limitando as

suas capacidades às suas deficiências. Uma dessas pessoas cuja alegria expandiu

a minha mente é a Bia, a professora do AEE.

Sofia tinha sérias dúvidas sobre isto (GAARDER, 1995, p. 118).

Pode-se compreender perfeitamente o ponto que Sofia duvidava, pois também tive

momentos de incertezas de mim mesmo, dos outros e de tudo! Mas, em alguns

desses momentos era preciso acreditar. Dessa forma, a figura da Bia provocou

dificuldades em atrelá-la a algum personagem dos livros, sendo necessário dizer que

ela se tornou uma convidada especial, ou, quem sabe, ela se aproxima do professor

Alberto do livro ‘O Mundo de Sofia’, ou da Lebre de Março ou do Chapeleiro Maluco

de Alice...

- Desculpe se começo a ficar irritada com todas essas alusões misteriosas (GAARDER, 1995,

p. 521).

Não são misteriosas, Sofia: Bia ora se assemelha a um e ora se assemelha a outros,

e essa é a sua essência. Te peço paciência, uma hora tudo se esclarecerá!

3.2.3 Bia: a convidada para a festa filosófica nos jardins de Sofia

Coincidência ou não, a escolha do nome Bia, aconteceu por considerar simples,

pequeno e ao mesmo tempo pelo som de sua pronúncia transmitir certo ar

carinhoso. Embora não estivesse apegado a significados, resolvi por acaso conferir

o seu significado: Bia: “aquela que traz felicidade!”, “a que faz alguém feliz!”. E não é

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que combinou? Bia é contratada pelo Estado para trabalhar 40 horas nessa escola.

É graduada em Educação Física, com as seguintes especializações (a)

Psicomotricidade, (b) Filosofia e Psicanálise na Educação (c) Psicopedagogia e (d)

Educação Especial e Inclusiva, além de vasta experiência educacional na

PESTALOZZI e APAE.

O atendimento à Sofia ocorre nas segundas e quartas-feiras, das 10h às 12h, porém

recentemente acrescentou também as sextas-feiras, por sentir necessidade de

desenvolver atividades de coordenação motora com Sofia. Bia é uma profissional

que demonstra preocupação com o aprendizado de seus alunos especiais, busca

recursos diferenciados e utiliza de métodos diversos para o ensino e a

aprendizagem. Sempre que possível, procura entrar na sala de aula de seus alunos

para acompanhar o trabalho do professor e, com isso, pensar em recursos que

aproximem o conteúdo ao aluno em sala de aula e, posteriormente, reforçá-lo no

AEE.

Bia reclama da falta de interesse de alguns professores em planejar com ela, em sua

maioria, dizem que “estão ocupados demais, com serviços demais e provas demais

para corrigir”. Às vezes se emociona e desabafa por se encontrar “sozinha” nessa

luta. Relata, com tristeza, que desenvolve materiais para que os professores

trabalhem em sala de aula com esses alunos – sem ser essa sua obrigação –

porém, queixa-se que esses materiais ficam guardados nos armários e nunca viu

ninguém utilizá-los. Outro dia, ligou-me em prantos para dizer que Sofia não queria

entrar na sala de aula e que já não sabia como proceder, pois não era a primeira vez

que isso acontecia.

“Aquela que faz alguém feliz!” Poderia ter definição melhor para ela? Bia sempre

estava disposta no trabalho. Sempre sorridente, alegre, contagiante. E também tão

envolvida com a causa dos alunos especiais. Outro dia, após chegar à escola,

encontrei Alice com seus pés em cima dos pés da Bia e, como se fossem uma única

pessoa, andavam pelos corredores, pacientemente, com sorrisos largos e

contagiantes. A Alice que antes era invisibilizada estava agora ensaiando com Bia

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alguns pequenos passos, sendo tocada, beijada, abraçada, sentida, cada vez que

correspondia a um estímulo!

Convém ressaltar a diferença feita pelo e com o trabalho realizado pela Bia entre

tantos outros alunos! Poderiam dizer: “mas ela é paga para isso!”, “Não faz mais do

que sua obrigação!”. No entanto, Bia é uma pessoa especial por se entregar assim

ao seu trabalho. Há tantas outras pessoas que também são pagas para isso ou

aquilo, todavia o máximo que fazem é entregar uma atividade qualquer para ocupar

o tempo do aluno e este não atrapalhar o seu. Haveria mil coisas para falar de Bia.

Contudo, uma dos mais importantes foi um dos nossos diálogos em que conversei

com ela sobre a preocupação em terminar esta pesquisa com Sofia e sobre o receio

de elas não estarem nessa escola no próximo ano, pois isso dificultaria conduzir os

próximos passos da pesquisa. E a “quebra” da rotina ocasionada pela saída de

Sofia, complicar a sua vida.

Utilizando-se de empatia, Bia ligou e, por meio do viva-voz, assim que a mãe de

Sofia, Dona Júlia26, atendeu, Bia iniciou um diálogo com ela perguntando o que era

preciso saber e a resposta soou como música aos nossos ouvidos:

Nesse momento, com a emoção aflorada, passei a refletir sobre aquilo que é

possível e necessário fazer por essas crianças e suas respectivas famílias. Bia,

realmente se entrega ao seu trabalho, se envolve com ele. Apesar de esperar por

26 Nome fictício.

Bia: “Jan, eu pretendo continuar nesta escola! Apesar de todos os percalços (que

você sabe quais são) eu gostaria de continuar aqui!”

Jan: “Mas e Sofia, será que continua?”

Bia: “Vou ligar para a mãe dela para saber!”

Dona Júlia: Ela vai estudar onde você for trabalhar, pois em nenhuma outra escola

ninguém deu tanta importância à minha filha como você dá!

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resultados ‘concretos’, Bia não perde a paciência quando um de seus alunos não

responde ‘corretamente’. Às vezes, o apego se encontra direcionado tanto aos

conteúdos, às avaliações, às notas, que culmina no esquecimento do que é

primordial nesse processo: as relações, as negociações, as trocas condensadas em

aprendizado.

Sofia nunca tinha pensado a este respeito. Mas quanto mais pensava

sobre o assunto, tanto mais claro lhe parecia que, no fundo, saber que

não se sabe também é uma forma de conhecimento. De qualquer

modo, não lhe ocorria nada mais estúpido do que pessoas que batem o

pé em suas opiniões sobre coisas das quais não fazem a menor ideia

(GAARDER, 1995, p.74).

Fecha parênteses!

Assim, (des)caminham as Sofias com suas “dificuldades de aprendizagem”. Para

uns, Sofia vive em um mundo isolado, no seu Mundo de Sofia. Para outros, é um ser

humano, uma oportunidade de aprendizado, de vivência, de amor e carinho. Parece

que Sofia é duas pessoas, tem dupla identidade, ou várias que se confundem em

espaçostempos tão iguais e tão diferentes. Quem ouve os comentários a respeito

dela pode não identificar que se trata da mesma Sofia. E quando a veem, criam-se e

(re)criam-se as suas imagensnarrativas.

Podemos vê-lo agora num instante de pausa, no centro neutro dessa oscilação. Seu talhe escuro, seu rosto claro são meios-termos entre o visível e o invisível [...] Ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompatíveis” (FOUCAULT, 1999, p.4).

Foucault (1999) faz referência a um pintor e a uma plateia a observá-lo em seu

trabalho. Para nós, a referência está no observar os alunos especiais, nas reflexões

e imagensnarrativas realizadas em torno deles, nessas oscilações entre o que se

pensa sobre suas habilidades, o que se realiza enquanto professores, e a realidade

vivida por eles.

Para mim que a observo, posso perceber que Sofia existe, e que Alice ‘re-siste’,

contudo não posso fazer delas o meu ponto cego, como um pintor e o ponto

invisível. No entanto, se não me coloco no lugar delas, no lugar deles, esqueço que

esse ponto também sou eu, é você,

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[...] pois esse ponto somos nós mesmos: nosso corpo, nosso rosto, nossos olhos. O espetáculo [...] é portanto, duas vezes invisível: uma vez que não é representado no espaço do quadro e uma vez que se situa precisamente nesse ponto cego, nesse esconderijo essencial onde nosso olhar se furta a nós mesmos no momento em que olharmos. E, no entanto, como poderíamos deixar de ver essa invisibilidade, que está ai sob nossos olhos [...]? (FOUCAULT, 1999, p. 4).

Esse ponto cego é representado por mim quando ignoro a presença de Sofia e de

Alice em sala de aula e deixo-as à mercê de atividades, muitas vezes, não

planejadas para elas. Esquecidas, escurecidas e até mesmo “apagadas”.

Complementando essa reflexão à luz das ideias foucaultianas e o exercício do

poder, ele esclarece que:

O poder é o que se vê, se mostra, se manifesta e, de maneira paradoxal, encontra o princípio de sua força no movimento com o qual o exibe. Aqueles sobre o qual ele é exercido podem ficar esquecidos; só recebem luz daquela parte do poder que lhes é concedida, ou do reflexo que mostram um instante (FOUCAULT, 2010, p. 179).

E então, esses sujeitos viveram por muito tempo nessa penumbra provocada pela

falta de luz em alguns olhares, enquanto outros captam a essência por trás desses,

assim como nós, “seres ordinários” (CERTEAU, 1994). E, no entanto, “essa tênue

linha de visibilidade envolve, em troca, toda uma rede complexa de incertezas, de

trocas e de evasivas” (FOUCAULT, 1999, p. 5). Se são percebidos, os profissionais

se julgam incapazes e se apóiam na necessidade de capacitação, aprimoramento,

entendimento para trabalhar com eles; se invisibilizados, ignoram-se as

responsabilidades. Se são sentidos, há muito o que aprender com eles, se são

excluídos deixa-se de vivenciar, quem sabe, o mais puro e verdadeiro sentimento.

Desse modo, no palco em que todos somos protagonistas, “só dirige os olhos para

nós na medida em que nos encontramos no lugar dos seus motivos” (FOUCAULT,

1999), cabendo questionamentos sobre essa grade curricular muitas vezes

desmotivadora, ou pelas aulas desestimulantes lecionadas, que não provocam nem

estimulam a curiosidade de nossos estudantes.

[...] Sofia lembrou-se muito bem de situações nas quais sua mãe ou o professor da escola

tinham tentado lhe ensinar alguma coisa para a qual ela não estava receptiva (GAARDER,

1995, p.74).

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Em oposto ao palco estão os expectadores, os alunos ou até mesmo, os

expectarodoresalunos e “estamos em excesso” (FOUCAULT, 1999), docentes e

discentes. No entanto, ao lecionar, o costume é fechar os olhos para o que

incomoda, a pintar o belo, a enxergar somente as bailarinas, aquelas imortalizadas

na voz de Chico Buarque, a buscar a modelização, a normalização.

3.3 O QUE FAZEMOS COM OS MOSQUITOS, SOFIA? VOCÊ PODE ME DIZER?27

Não faço a menor ideia, pensou Sofia.

Mas também ninguém sabe!

E apesar disso Sofia achou a pergunta pertinente

(GAARDER, 1995, p. 17).

Quando “meu” orientador e eu começamos a falar sobre currículo – cujo projeto

original de entrada no mestrado era “Currículo Adaptado para Alunos com

Deficiência Mental”-, logo perguntou: “O que você entende sobre currículo?, Em que

perspectiva você quer trabalhar?”. Confesso que senti calafrios com a pergunta. O

bate-papo foi pelo Facebook28, e o medo de decepcioná-lo com a resposta, me fez

correr ao Google e pesquisar: “Currículo”. Demorei um pouco a responder, pois

percebi que precisava ser mais específico. Então, digitei de novo: “Currículo

escolar”. Assim, digitei o que acredito que não era o que ele esperava “verouvir”.

Tentei florear a resposta, mas logo resumi:

ER Thiengo: o que vc entende por currículo? Jan Cordeiro: Então ER Thiengo: qual a perspectiva de currículo vc quer trabalhar? Jan Cordeiro: o que eu entendo Grade curricular Formação cidadã Aquisição de competências e habilidades O q eu penso.

Bastou esse diálogo para perceber o meu desconhecimento sobre currículo, e a

pergunta sobre a perspectiva só redobraram os calafrios. Eu era uma tábua rasa e

os meus pensamentos igualmente rasos, os meus discursos repetitivos como

“papagaios de pirata”. Descobri que nada sabia e não tinha perspectiva alguma para

27 GAARDER, 1995, p.81 28 Rede social na qual é ‘permitido’ escrita abreviada de palavras por mensagens instantâneas.

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responder. Dessa forma, que formação cidadã poderia ser dada se nem mesmo

aceitava o deficiente em sala de aula; se continuava a ensinar conteúdos tão

desvinculados da prática e alguns deles nem, ao menos, sabia relacioná-los em seu

propósito. Serviria para brincar quando um aluno perguntava: “Pra que estudar

isso?” E a resposta viria certeira: “Quem sabe um dia você não se torne um

professor!” Essa sempre foi uma resposta a conteúdos de grades curriculares nem

sempre entendíveis e praticáveis em detrimento à valorização do que realmente

poderia ser realidade para o estudante.

Assim, transcorreram-se mais alguns segundos e as perguntas não paravam de

seguir. Era um caos total; um desconhecimento de que currículos poderiam ter

tantos significados: “Currículo pensado?”, “Currículo praticado”. “Currículo

oculto?”(...). E, desse modo, surgiu a reflexão: “Existe currículo oculto?”. Após essa

tempestade cerebral, o diálogo prolongou por alguns segundos e, no final, escreveu:

Diante dessa realidade, aos poucos, ocorreu o aprendizado a respeito das

discussões curriculares em uma perspectiva cotidianista, de valorização dos

saberesfazeres, das imagensnarrativas e do dentrofora da sala de aula; dessas

[...] tentativas de fazer mover o pensamento “com” as diferentes noções de currículo [...] ou provocar outros sentidos para o currículo que possam favorecer movimentos em direção à desconstrução, à rasura de conceitos enclausurados que, de tão acostumados a esse confinamento, custam a perceber a potência e a riqueza da vida direcionada para se pensar-sentir o que é currículo (FERRAÇO, 2011, p. 11).

Quando se fala em currículo, a primeira ideia que surge é: os conteúdos a serem

trabalhados e forma de “transmiti-los”. E, ao planejar, elegem-se aqueles os quais

devem ser priorizados. Entretanto, percebe-se que as questões curriculares vão

muito “além dos documentos-textos escritos” (FERRAÇO, 2011, p. 11) e incluem

uma vasta diversidade. Perceber essa diversidade, na escola, e descobrir caminhos

a serem percorridos, se não os melhores, mas os possíveis é tarefa fundamental do

professor e cabe a ele ter sutileza nessa percepção. Essa diversidade tão presente

nos dias de hoje não é exclusiva aos alunos portadores de necessidades especiais,

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mas sim a todos, à coletividade, a uma escola que inclua verdadeiramente a todos,

sem qualquer distinção.

Nesse ponto,

[...] ensinar atendendo às diferenças dos alunos, mas sem diferenciar o ensino para cada um, depende, entre outras condições, de se abandonar um ensino transmissivo e de se adotar uma pedagogia ativa, dialógica, interativa, integradora, que se contrapõe a toda e qualquer visão unidirecional, de transferência unitária, individualizada e hierárquica do saber (MANTOAN 2003, p. 70-71).

Para Mantoan (2006, p. 192), “as propostas educativas devem ter como eixo o

convívio com as diferenças, a aprendizagem como experiência relacional,

participativa, que produz sentido para o aluno”. É preciso desenvolver uma

pedagogia centrada na criança.

É claro que, às vezes, a tendência é proteger aqueles que são mais frágeis, com um

olhar acolhedor, de sensibilidade e até mesmo por sermos humanos. Por isso é

preciso se lembrar daqueles cujas deficiências não estão tão explícitas. Essa

questão trouxe à lembrança a música cantada por Chico Buarque que expressa

muito bem a realidade com beleza e suavidade.

Ciranda Da Bailarina

Chico Buarque/Têtes Raides

Procurando bem Todo mundo tem pereba

Marca de bexiga ou vacina E tem piriri, tem lombriga, tem ameba

Só a bailarina que não tem E não tem coceira

Berruga nem frieira Nem falta de maneira

Ela não tem

Futucando bem Todo mundo tem piolho

Ou tem cheiro de creolina Todo mundo tem um irmão meio zarolho

Só a bailarina que não tem Nem unha encardida

Nem dente com comida Nem casca de ferida

Ela não tem

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Não livra ninguém Todo mundo tem remela

Quando acorda às seis da matina Teve escarlatina

Ou tem febre amarela Só a bailarina que não tem

Medo de subir, gente Medo de cair, gente

Medo de vertigem Quem não tem

Confessando bem

Todo mundo faz pecado Logo assim que a missa termina

Todo mundo tem um primeiro namorado Só a bailarina que não tem

Sujo atrás da orelha Bigode de groselha

Calcinha um pouco velha Ela não tem

O padre também

Pode até ficar vermelho Se o vento levanta a batina

Reparando bem, todo mundo tem pentelho Só a bailarina que não tem

Sala sem mobília Goteira na vasilha

Problema na família Quem não tem

Procurando bem

Todo mundo tem...

Isso posto, percebe-se que a desapontamento com a educação é imaginar que

todos os alunos são bailarinas e que prática cotidiana deve ser direcionada a elas.

Não se questiona as diferenças porque é cômodo trabalhar para bailarinas. Elas são

lindas, são perfeitas, é fácil se adaptar a elas. Entretanto, é preciso mudar,

transgredir, fugir da modelização, aceitar e se adequar à real diversidade existente

na sociedade. E nisso, defende-se

[...] a urgência de se pensar a escola contextualizada em meio à complexidade e às tensões vividas na/da sociedade contemporânea, assumindo-a em sua tessitura social e em força inventiva de outros mundos, de outras possibilidades de vida para todos aqueles que a frequentam (FERRAÇO, 2011, p. 11).

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Desse modo, é importante conhecer a história de cada um de nossos alunos, para,

assim, direcionar a prática em uma proposta inclusiva. Nessa perspectiva da

diversidade, e fundamentado em estudos e em pesquisas no/do/com os cotidianos é

que se deve direcionar o alerta para a necessidade de

[...] discutir os currículos escolares na ideia de que as escolas possuem, sempre, intensos contatos com outras redes educativas. Dessa maneira, o dentrofora que esses contatos permitem exige que pensemos bem largamente os conhecimentos e conteúdos que formam e conformam os currículos escolares (ALVES, 2012, p. 41).

Para Alves (2012), “o entendimento desse dentrofora nos faz compreender que é

impossível aos processos desenvolvidos nos currículos escolares não incorporarem

os processos sociais mais amplos”. Desse modo, nessa linha de pensamento, tornar

invisível os problemas acometidos na vida, e na vida escolar, e aquilo que é tão

visível, não colabora para o desenvolvimento social cidadão. É desumano ver uma

criança precisar de ajuda, procurar aprender, querer ser vista, bem como fingir não

enxergá-la.

Do exposto, surgiu na imaginação uma Sofia com seu jeito “desengonçado”

ensaiando os belos passos de uma bailarina enquanto Alice rodopiava em sua

cadeira de rodas. Ao mesmo tempo, vale refletir sobre o que a escola deve fazer

nesse contexto de diversidades, do Maravilhoso País de Alice ao enigmático Mundo

de Sofia, desses mundos tão iguais e diferentes. Como é possível, então, contribuir

para a criação de:

Mundos plurais onde caibam todos. Mundos que possam nos ajudar a escapar dos discursos de discriminação do outro. Mundos que nos ajudem a resistir aos perversos olhares e discursos que, de tão naturalizados, não conseguem ver que a vida se gosta e sempre insiste em continuar sendo vida, e que a escola pode e deve contribuir para esses processos de alargamento dos mundos-vidas de seus sujeitos (FERRAÇO, 2011, p. 12, grifo do autor).

Com certeza, não há uma receita para fazer ‘dar certo’ e muito menos uma varinha

de condão para resolver os problemas da vida, pois a vida, se (re)inventa, se

transforma, vivifica. Torna-se sim válido o aprendizado e o esforço para se conhecer

e se compreender melhor a educação inclusiva, não em uma perspectiva de olhar

para o aluno com necessidades educacionais especiais com um olhar de pena, de

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compaixão, mas principalmente pelo fato de serem pessoas, que como tal

necessitam, entre tantos, do aprendizado, da convivência e da atenção.

Assim, problematizar, e não definir o currículo - também em uma perspectiva

inclusiva desses sujeitos especiais- requer a tentativa de “pensar com eles e não de

pensar sobre eles” (FERRAÇO, 2011, p. 19, grifos do autor). Isso lembra o “Nada

sobre nós, sem nós” - tema de um seminário que participei em comemoração ao dia

de lutas das pessoas com deficiência, em Vitória em setembro/2014. E com razão:

não se deve pensar em políticas públicas sem a participação dos mais interessados

nelas. Assim como não se deve planejar um currículo sem a participação da

comunidade que o envolve, sem haver essa aproximação dos saberesfazeres aos

quais estão inseridos. Do contrário, a preocupação ainda repousaria sobre o que

fazer com os mosquitos!

Na escola, Sofia tinha dificuldade de se concentrar no que o professor

falava. De uma hora para outra, começou a achar que ele só falava de

coisas que não eram importantes. Por que não falar sobre o que é ser

humano, ou então sobre o que é o mundo onde ele tinha surgido?

(GAARDER, 1995, p. 22).

Também já passei por isso Sofia, na certa Alice também. Eu também pensava a

respeito disso e daquilo, só não perguntava muito. Naquela época, criança não

deveria ser tão curiosa! Não deveria fazer perguntas desviantes do conteúdo!

Todavia, sua reflexão provocou um desvio para outro campo, e agora surge a

necessidade de falar um pouco sobre o método e aquilo que ainda falta dizer.

“Vamos, já consegui realizar metade do meu plano! Como são intrigantes todas estas

mudanças! Nunca sei ao certo o que vou ser no próximo minuto! Voltei ao meu tamanho

normal, agora é entrar naquele lindo jardim... Mas como é que vou fazer isso?” (CARROL,

1998, p. 72).

Calma, Alice, por acaso você foi convidada para a festa filosófica que Sofia está

fazendo no jardim de sua casa? Sabe ao menos como tudo foi feito? Que material foi

utilizado?

A vida tem sons que pra gente ouvir

Precisa entender que um amor de verdade

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É feito canção, qualquer coisa assim,

Que tem seu começo, seu meio e seu fim...

(Começo, meio e fim – Roupa Nova)

Para responder às perguntas feitas à Alice, mais um parênteses será aberto para

descrever o que foi possível observar-conversar-investigar-sentir-ouvir-silenciar-

interpretar durante a pesquisa, quais materiais foram utilizados e como a

investigação foi realizada.

, iniciar um texto, sem mais nem menos, apenas com uma vírgula cabe a pessoas

ousadas como Clarice em seu livro “Uma aprendizagem ou livro dos prazeres”. Que

deslumbre! Que intrigante! Que curioso! Quanta ousadia de alguém que escreve tão

lindamente desafiar a língua portuguesa dessa maneira. Olha Clarice

desnormalizando a norma! Subvertendo, colocando acima dessas regras o seu jeito

peculiar de ser, de escrever.

Contudo, antes de iniciar seu livro daquela maneira, Lispector menciona a respeito

dessa escrita, em uma nota:

Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu (LISPECTOR, 1998).

Eu me vi nessas palavras. Nessas palavras que temporariamente pertenceram a

Clarice e, agora, não têm mais proprietário. Está muito acima dela e muito acima de

mim falar dessas existências, ou tentar falar das “vidas de algumas linhas ou de

algumas páginas, desventuras e aventuras sem nome, juntadas num punhado de

palavras” (FOUCAULT, 2003, s.p.). E (ab)usando mais um pouco de Foucault, este

trabalho não pretende apenas falar “de algumas linhas” ou “de algumas páginas”,

mas sim falar em algumas linhas, em algumas páginas aquilo que pude então sentir.

Foi preciso essa liberdade para escrever, minha pesquisa exigiu! Nesse espaço me

tornei dois, sendo um eu mais forte que o outro. O mais fraco era aquele que seguia

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as normas, comportado, alinhado, e o mais forte era aquele que não se preocupava

com a ênclise, com a próclise ou com a mesóclise, escrevia mesmo “me sentia, ao

invés de sentia-me, usava fontes diferentes: “Você usa vários tipos de fontes

diferentes”, “Não estou acostumado com essa liberdade de sua escrita”, “Tá

enfeitando demais o pavão!”, “Nossa, quanta frescuragem!”... Se eram críticas ou

elogios não me preocupavam, pois

Este não é um livro de história. A escolha que nele se encontra não seguiu outra regra mais importante do que meu gosto, meu prazer, uma emoção, o riso, a surpresa, um certo assombro ou qualquer outro sentimento, do qual teria dificuldades, talvez, em justificar a intensidade [...] (FOUCAULT, 2003, s.p.).

Talvez isso justifique a escolha pela pesquisa no/do/com os cotidianos. Esse

afloramento [...] “das relações rigorosas, mas não refletidas, das correlações que

escapam a qualquer experiência vivida”; (FOUCAULT, 2005, p. 16). Pesquisa

cotidianista e, mesmo que não seja necessário classificá-la (e por que fazer isso se

defendo a não classificação naturalizada de tudo?), o outro eu, o mais fraco, diz ser

qualitativa. A norma não exige, mas pede: é qualitativa, é cotidianista e é uma

mistura disso tudo. Possivelmente isso justifique a famosa frase da Nilda: “Mergulhar

com todos os sentidos!” Esse tipo de pesquisa permite isso.

É preciso pôr em questão, novamente, essas sínteses acabadas, esses

agrupamentos que, na maioria das vezes, são aceitos antes de qualquer

exame, esses laços cuja validade é reconhecida desde o início; é preciso

desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se tem o hábito

de interligar os discursos dos homens; é preciso expulsá-las da sombra

onde reinam. E ao invés de deixá-las ter valor espontaneamente, aceitar

tratar apenas, por questão de cuidado com o método e em primeira

instância, de uma população de acontecimentos dispersos (FOUCAULT,

2005, p. 24).

Agora, meus dois eus se juntam, e somos, temporariamente, um só para repetir que

“a vida tem sons que para gente ouvir é preciso entender”, que é necessário muito

mais do que bons ouvidos para escutar. É preciso ter sentidos! Todos os sentidos

aguçados para poder interpretar inclusive os silêncios.

O silêncio pode, por vezes, inserir-se na prática da resistência e entendo-o também como forma de conversação. E como é necessário exercitar a escuta para ouvir o silêncio. Soa estranho o que acabei de escrever, mas é isso mesmo! O silenciar é uma arte e por trás dele pode estar um tanto de

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palavras mudas ou emudecidas, que, em determinados momentos causam um barulho terrível a quem as ouve. É o estatuto interno da expressão... (ROBERS, 2013, p. 78, grifo nosso).

Dessa forma, o método de pesquisa encontra-se nas conversas e muito também nos

silêncios e nas vozes silenciadas pela normalidade, pelas dificuldades de

comunicação, pela falta de socialização, pela inércia e pelas ações que por si só já

dizem muito. Encontra-se nos encontros e desencontros, nos encantos e

desencantos, nos (des)caminhos dos sujeitos envolvidos e nas experiências vividas

pela pesquisa.

Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre (LARROSA, 2002, p. 25).

Alves (2012, p. 36) acredita que as pesquisas com os cotidianos estimulam a pensar

as metodologias, “criando-as para desenvolver processos de pesquisas novos”.

[...] estamos condenados à improvisação. Somos como atores que são

colocados num palco sem termos decorado um papel, sem um roteiro

definido e sem um “ponto” para nos sussurrar ao ouvido o que

devemos dizer ou fazer. Nós mesmos temos de decidir como queremos

viver (GAARDER, 1995, p. 486).

Nessa perspectiva, Sofia provocou-nos um envolvimento em seu mundo. E então,

essa pesquisa direcionou sua atenção à sentidos nem mesmos percebidos.

Conforme eram acompanhadas as tentativas de alfabetizá-la e numeralizá-la,

observou-se também as conversas originadas em torno disso, das (in)certezas que

permeavam o ensinoaprendizagem e, ocasionalmente, atribuía-se mais valores ao

que era dito, pensado, silenciado do que aos resultados escritos. A proposta era

seguir o fluxo, como um rio a caminho do mar. Se Sofia quisesse estudar,

compreender, assim seria feito; se quisesse “viajar”, brincar, pintar, desenhar, sorrir,

compartilhava-se com ela as suas vontades – pois essas experiências resultavam

em aprendizados.

- Um rio também muda constantemente. Isto não significa, porém,

que você não possa falar sobre este rio. Só que você não pode

perguntar em que ponto do vale o rio é o rio “mais verdadeiro”.

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- É verdade, pois o rio é o rio não importa onde (GAARDER, 1995,

p.386).

Ao comparar com o rio que segue o fluxo ao caminho do mar, é possível imaginar

que a vida segue continuadamente na mesma rotina. Porém, relembrando as

palavras de Sofia (GAARDER, 1995, p. 335): “[...] o fato de o mar estar calmo na

superfície não significa que alguma coisa não esteja acontecendo nas profundezas”;

ou ainda, as palavras de Briggs e Peat (1945, p.15-16): “Se você se sentar para

observar o rio, começará a notar que ele é, ao mesmo tempo, estável e inconstante.”

Desse modo, o rio é outra metáfora para nós mesmos. Como ele, nosso corpo físico encontra-se em contínua renovação e transformação, à medida que as células vão sendo regularmente substituídas. Enquanto isso, o “eu” que acreditamos existir dentro do corpo, em nosso centro psicológico, também constitui um fluxo. Somos tanto a “mesma” pessoa que éramos dez anos atrás quanto um indivíduo totalmente novo [...] (BRIGGS; PEAT, 1945, p. 16).

Pesquisar o cotidiano requer transpor e evidenciar aquilo que o ser humano está

habituado a não ver, a invisibilizar, e a não sentir ou, como diria Alves (2012, p. 35-

36) quando destaca os espaçostempos vazios, “aquelas temáticas ou questões às

quais não demos, ainda, a atenção devida e que, se o fizéssemos, ajudaria no

melhor entendimento dos processos curriculares nos/dos/com os cotidianos”.

Para isso, foi preciso conhecer e discutir e nunca ignorar, os percalços enfrentados e

confrontados, as políticas impostas e a falta de políticas necessárias e

imprescindíveis e, ainda, “[...] as “políticas oficiais” – de currículo; de formação de

professores; de condições materiais de trabalho, dentro das quais os baixos salários

profissionais ganhavam relevo [...]” (ALVES, 2012, p. 39).

Assim, no contexto escolar desta pesquisa, quando as discussões se tornavam

calorosas é que as realidades se afloravam e com discursos quase sempre

repetitivos:

Não ganho

pra isso!

Não tenho

tempo

para

planejar.

Só lembro

deles quando

entro na sala

de aula.

Não

concordo

com essa

política!

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O vivenciar desses discursos na sala dos professores provocava, por vezes, um

aborrecimento, na tentativa de compreender o que -e por que- diziam, e sem ser

compreendido.

A vida tem sons que pra gente ouvir

Precisa aprender a começar de novo

É como tocar o mesmo violão

E nele compor uma nova canção

(Começo, meio e fim – Roupa Nova)

Por essas e outras, é preciso ter coragem para seguir adiante, levantar-se do chão,

apostar na força do (re)começo e apostar “na força das

conversas/conversações/narrações não só para a produção de dados para a

pesquisa, mas para a invenção de uma vida bonita (ROBERS, 2013, p. 72).”

[...] a arte de conversar: as retóricas da conversa ordinária são práticas

transformadoras “de situação de palavras”, de produções verbais onde o

entrelaçamento das posições locutoras instaura um tecido oral sem

proprietários individuais, as criações de uma comunicação que não pertence

a ninguém. A conversa é um efeito provisório e coletivo de competências na

arte de manipular “lugares comuns” e jogar com o inevitável dos

acontecimentos para torná-los habitáveis (CERTEAU, 1994, p.50).

Além da invenção de uma vida bonita, acredita-se na força dos diálogos como

provocador de sentidos, procurando, com isso, “atingir a complexidade das redes

tecidas entre instâncias e dimensões da realidade impossíveis de ser captada por

outros tipos de estudo e pesquisas” (OLIVEIRA, 2012, p. 55).

Entendemos, portanto, que investigar a vida cotidiana em sua complexidade constitutiva permite tecer conhecimentos que não podem ser tecidos de outra forma. Esses conhecimentos, por sua vez, se enredam aos processos de reflexão em torno da emancipação social e, por isso, acreditamos que esse tipo de pesquisa e de reflexãoação vale a pena e é necessário (OLIVEIRA, 2012, p. 53).

Ferraço (2011, p. 45) alerta que as pesquisas com o cotidiano acabam envolvendo

os próprios pesquisadores nessas redes, para ele

[...] estamos envolvidos na criação/tessitura das redes de narrativasimagens daqueles momentos, não sendo possível negar que também somos responsáveis pelos conhecimentos que estamos produzindo sobre as escolas com as nossas pesquisas, o que nos leva a assumir, com Certeau (1994, 1996), a nossa condição de pesquisador praticante, à medida que

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nos propomos a realizar uma pesquisa narrando histórias tecidas por tantas outras histórias (FERRAÇO, 2011, p. 45).

Assim, mergulhado nesse cotidiano escolar, tornei-me um

observadorpesquisadorpraticante de todos os sentidos possíveis de serem captados.

Nas conversas de recreio, na sala dos professores, biblioteca, corredores, nos

conselhos de classe, planejamentos, no fabuloso país das maravilhas de Alice e no

misterioso mundo de Sofia, sempre procurando problematizar as questões inclusivas

e em defesa da permanência dos alunos especiais na escola regular.

Portanto, voltar o olhar para as pessoas e as coisas do presente, para a vida comum e sua diferenciação indefinida. Reencontrar “o gosto da germinação inominável” e tudo o que constitui o vivo do sujeito. Ver o gelo frágil dos hábitos, o solo movediço dos partidos tomados onde se incisam circulações sociais e costumeiras, onde se descobrem atalhos. Aceitar como dignas de interesse, de análise e de registro aquelas práticas ordinárias consideradas insignificantes. Aprender a olhar esses modos de fazer, fugidios e modestos, que muitas vezes são o único lugar de inventividade possível do sujeito: invenções precárias sem nada capaz de consolidá-las, sem língua que possa articulá-las, sem reconhecimento para enaltecê-las [...] (CERTEAU, 1996, p. 217, grifos do autor).

E como isso tudo foi registrado? Nem sempre foi possível gravar, filmar, ou

fotografar. Em algumas vezes foi preciso confiar na memória, outras vezes, no diário

de bordo. As observações no AEE, algumas vezes foram gravadas em áudio e

depois transcritas, outras foram filmadas evitando-se identificar qualquer um dos

participantes e, outras vezes, observadas e escritas em um caderninho preto!

Dispensou-se o uso de questionários, e muitos dos dados pessoais coletados foram

por meio de conversas descontraídas em meio a risos e outros sentidos.

Na tentativa de alfabetizar e numeralizar Sofia, foram utilizados materiais

pedagógicos da sala de recursos e outros materiais como, tampinhas, palitos,

botões, etc.

E em meio a erros a acertos desses (des)caminhos, as experiências foram

relatadas, os movimentos (des)construídos nos diferentes espaçostempos com o

uso de narrativas a fim de problematizar, compreender, desatar os nós que amarram

a vida escolar de Sofia e dos seus pares, em uma tentativa de produção de dados

com os cotidianos da escola (PIONTKOVSKY, 2013).

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Dados que não são considerados como fontes a serem analisadas, mas que trazem a possibilidade de problematização dos sentidos produzidos, buscando novas significações, evidenciando fluxos e desdobramentos no/do trabalho realizado. São, portanto, imagensnarrativas (FERRAÇO, 2011) que operam movimentos e falam da potência das redes de saberesfazeres, de modos de produção de vida (PIONTKOVSKY, 2013, p. 183, grifos da autora).

Imagensnarrativas que transcendem os espaçostempos da escola até o ponto que

Sofia deixava de ser aquela Sofia ali presente, assim como Alice deixou de ser Alice,

passando a ser percebida nos (des)caminhos de Sofia.

Como posso “ver” uma flor, por exemplo? Você já pensou nisso, Sofia? Se não pensou, está aí

uma boa oportunidade para fazê-lo (GAARDER, 1995, p. 51).

Assim, o desenvolvimento do estudo em campo iniciou-se em 7 de abril de 2014

com a visita à escola, pela manhã, com o intuito de acompanhar o Atendimento

Educacional Especializado (AEE). Optou-se por iniciar esse trabalho pelo AEE para

estreitar os laços com a professora Bia e a aluna.

Sofia era atendida individualmente e os assuntos eram abordados quase que

simultaneamente, variando entre o aprendizado de cores, vogais, números, nome da

aluna e atividades que buscavam aprimorar a sua coordenação motora fina. Por

meio de observações, as quais me inquietaram muito, pude direcionar o pensamento

às dificuldades a serem enfrentadas para lhe ensinar matemática.

Após o período de greve ocorrido no ano de 2014, as atividades foram retomadas no

dia 9 de junho. Esse dia marcou a tentativa junto com a Bia de acompanhar o

planejamento dos professores, porém sem sucesso, pois a resposta deles veio em

coro:

Segundo relato de Bia, sempre havia um motivo para esse planejamento não

acontecer, sendo que em todo o semestre letivo, para o planejamento semanal, ela

conseguiu apenas se reunir com eles em três ocasiões.

“estamos muito ocupados com finalização de pautas, provas e trabalhos a corrigir”

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Durante toda a pesquisa, alguns encontros com Sofia na sala de aula foram

observados, os quais forneceram uma noção do cotidiano dessa aluna na classe e

no recreio. Essas observações ocorreram apenas nas aulas de matemática que, de

acordo com a Duquesa, eram sempre geminadas, nas segundas, quartas e sextas-

feiras da semana.

Infere-se da observação desse período, que Sofia falta muito às aulas regulares, fato

que pouco ocorre no AEE. Por esse motivo e, por compreender as peculiaridades

dessa aluna, a opção foi concentrar as pesquisas no contraturno das aulas

regulares.

O atendimento no AEE para Sofia foi alterado e ocorre sempre das 10h às 12h, nas

segundas e quartas-feiras, pois, segundo Bia, Sofia apresentava-se bastante

sonolenta nas primeiras horas da manhã, conforme confirmado observações

realizadas.

Sobre esse fato, convém ressaltar que:

Problemas com o sono são mais comuns em crianças, principalmente naquelas com ASD. Em geral, a criança tem dificuldades em adormecer e acorda durante a noite. Quando dorme mal, tem maior probabilidade de apresentar mau humor durante o dia e mais dificuldade de concentração (WILLIAMS; WRIGHT, 2008, p. 224).

Salvo os raríssimos casos de agressividade, não se percebe em Sofia quadros de

mau humor ou, se ocorreram, foram imperceptíveis visto que Sofia apresenta-se,

geralmente, calma. O que se destaca são as frequentes dificuldades de

concentração.

As fotos a seguir apresentam o ambiente da sala de recurso, local onde Bia faz o

Atendimento Educacional Especializado. É um lugar muito colorido, com diversos

materiais que podem contribuir para o aprendizado do aluno especial, apesar de o

ambiente se apresentar um pouco tumultuado. Nele, há um professor surdo e mais

dois intérpretes de libras. Para o atendimento à Sofia, às vezes, o local parece

inapropriado, pois há muito barulho, divisão de espaços e a quantidade excessiva de

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materiais na prateleira pode dar uma ideia de falta de organização, além de ser

constante o “entra e sai” de alunos.

Foto 1 - Painel de abertura da Sala de Recursos

Foto 2 - Sala de Recursos onde ocorre o AEE.

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014 Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014

Foto 3 - Divisória da Sala de Recursos Foto 4 - Sala de Planejamento do AEE.

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014

Até aqui, compartilhamos um pouco de alguns fragmentos de tantas conversas que

foram capturadas, entendidas, evitadas... No próximo capítulo, objetivou-se compor

alguns desses diálogos e as impressões obtidas de como tem ocorrido o processo

de inclusão.

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4 QUE SE ABRAM AS CORTINAS, SOFIA!29

Segunda-feira, 7 de Abril de 2014

[...] às vezes é certo pensar que se tem de sair de determinado lugar, mesmo que não se

sabia para onde ir (GAARDER, 1995, p. 491, grifo do autor).

No primeiro encontro, Sofia e Bia encontravam-se na quadra de esportes brincando

de jogar bola uma para outra. Aproximei-me e perguntei se poderia brincar também.

Bia perguntou à Sofia e ela balançou a cabeça afirmativamente. Segundo Bia, essa

atividade tem o objetivo de treinar a coordenação motora da aluna: “Semana

passada ela não conseguia pegar a bola, hoje está conseguindo!”, disse Bia. Após

um tempo, já sentados no chão da quadra e com um alfabeto produzido em EVA,

começou a perguntar à Sofia sobre as letras.

Referindo-se a qualquer letra que Bia mostrasse e quando era corrigida, ela repetia,

porém tempos depois voltava a dizer que era “B de Vitória”. Essa situação resultou

em um mergulho em um grande vazio na busca por respostas e, em meio a tantas

incertezas, o que se evidenciava era apenas o longo caminho a ser trilhado. Isso

porque Sofia tinha dificuldades em aprender, enquanto ainda nem sabíamos das

nossas dificuldades em ensinar. Por enquanto, as imagensnarrativas feitas de Sofia

ou as que ela provocou são a sua vida em mundo próprio e a visão de que ela

relacionava letras a algum nome.

Além disso, não estava clara qual a relação da palavra/resposta Vitória nesse

contexto. Poderia ser a cidade ou o fato de estarmos jogando e com isso alguém

venceria. Mais tarde, esclareceu-se que se tratava de sua irmã.

29 GAARDER, 1995, p. 77.

Bia: - Que letrinha é essa?

Sofia: - B de Vitória.

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Quarta-feira, 4 de Junho de 2014

Parecia-lhe estar vendo as cores pela primeira vez. Talvez ela tivesse visto sombras até então,

e não as ideias claras (GAARDER, 1995, p. 108).

Bia iniciou a atividade no AEE com Sofia utilizando um exercício manipulativo de

separação de botões coloridos, sendo quatro cores separadas em vasilhames:

verde, amarelo, azul e vermelho. Quando cheguei, ela já estava realizando as

atividades e, logo que lhe disse “bom dia”, respondeu “estou trabalhando”.

Foto 5 - Sofia ‘trabalhando’ na separação de cores

Foto 6 - Bia orientando Sofia na pintura do desenho de sua mão

Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014 Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014

Bia achou graça de suas palavras e sorriu para mim. Segundo ela, o objetivo da

atividade, além da concentração, é a de identificação das cores. “Ela sente

dificuldades em reconhecê-las”.

Para que ela pintasse as unhas de amarelo, Bia usou como molde a mão de Sofia e

a desenhou. Mostrou o relógio amarelo em seu braço e. em seguida. entregou-lhe o

desenho de um sol, para que a mesma o pintasse. Após terminar, entregou-lhe o

desenho de uma nuvem, a qual Bia diz ser azul, para que fosse colorida. Era o

nosso segundo encontro com Sofia, e então preferi não interferir dizendo que a

nuvem, geralmente, é branca. Ao término, perguntamos: “qual a cor da nuvem?”

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Com o intuito de chamar a atenção de Sofia, Bia, volta e meia, cria,

espontaneamente, músicas para auxiliar na memorização das cores, porém Sofia

parece não corresponder às expectativas.

Bia pergunta por três vezes sobre a cor da nuvem e Sofia repete sempre que é

amarelo. As perguntas feitas de maneiras diferentes e “atropeladas” pareciam

confundir Sofia e, assim, as suas respostas não foram processadas conforme nossa

expectativa, visto que foram perguntadas sobre a nossa lógica de raciocínio.

Bia aguarda que Sofia finalize de pintar os desenhos e elogia:

Bia estava com um tênis vermelho, reproduziu a imagem deste em uma folha de

papel e entregou a Sofia.

Bia: Que cor é o meu sapato?

Sofia: Amarelo!

Bia: Amarelo, não! Vermelho! Então, pega a cor para pintar o sapato.

Bia: Nossa, que nuvem linda! Que cor você pintou?

Sofia: Amarelo!

Bia: E que cor é o Sol?

Sofia: Verde.

Bia: Agora vamos pintar o sapato de Tia Bia.

Sofia: Amarelo, [silenciou-se por um instante]:verde!

Bia:“Qual a cor da nuvem?”

Sofia: Amarelo.

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Nesse momento, Sofia pega o frasco que continha a cor vermelha.

Bia e eu sorrimos discretamente de sua resposta. Sofia não estava errada. Bia disse

ser a “cor certa”, e ela apenas reproduziu o que ouviu. Para Silva et al (2012), ao se

dirigir à criança autista, as perguntas devem ser claras, objetivas, com vocabulário

simplificado. O desejo de que Sofia terminasse a aula conhecendo as cores fazia

com que as perguntas saíssem afobadas. Na verdade, Sofia já reconhecia, só não

sabia denominá-las, pois conseguia separar os botões em seus respectivos

vasilhames, conforme suas cores.

Provavelmente, Bia não alcançou os seus objetivos nessa atividade, pois exagerou

na quantidade de cores para ensinar. Com certeza, o ensino de uma cor única por

vez, em objetos variados, pode trazer melhores resultados.

Foto 7 - Sofia pintando a nuvem de ‘azul’ Foto 8 - O sapato de Bia pintado por Sofia: ‘cor certa!’

Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014 Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014

Bia: Muito bem pegou a cor certa! [Elogiou Bia]. “Que cor é essa?”

Sofia: Cor certa!

Bia: Que cor é essa?

Sofia: Cor certa!

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Segunda-feira, 9 de junho de 2014

Quando encontramos alguma coisa que não conseguimos classificar, levamos um verdadeiro

choque (GAARDER, 1995, p. 128).

Com o intuito de estimular a concentração e curiosidade de Sofia, Bia entregou-lhe

um brinquedinho com sólidos geométricos de tamanhos diferenciados, cujo objetivo

era agrupar aqueles de formatos iguais. Em seguida, continuou com um exercício

cujo objetivo era de concentração e coordenação visomotora. Tal atividade consistia

em colocar “pedrinhas” em orifícios de forma que seria inserida apenas “uma de

cada vez”, repetia Bia a cada pedra colocada. Por diversas vezes Sofia quis inserir

várias ao mesmo tempo para que acabasse logo. Em uma das vezes disse: “Eu vou

ganhar!” e repetiu “uma de cada vez”. Segundo Bia, a atividade desenvolve o senso

de planejamento e organização. Nessa atividade, Sofia permaneceu um bom tempo

em silêncio, parecendo está concentrada.

Foto 9 - Sofia colocando pedrinhas no orifício da caixa e Bia acompanhando a realização desta atividade

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Para Bia, a maneira posicionada de Sofia, possibilita que a mesma não se disperse

com qualquer outro acontecimento na sala de aula. Ao tomar essa atitude, Bia se

inspira no método TEACCH30 como modelo de ensinoaprendizagem.

30 O Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handcapped Children (TEACCH) é uma das técnicas que pode ser associada à terapia. Começou a ser elaborado na década de 1960, na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, pelo Dr. Eric Shopler e colaboradores, e hoje é bastante utilizado no mundo todo, inclusive nas salas de aula. Trata-se de um programa que

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Na tentativa de alfabetizá-la, a professora escreveu o primeiro nome de Sofia em

uma folha de papel e perguntou o que estava escrito. Ela disse “está escrito” e em

seguida, disse em voz alta o seu nome completo.

Em outra atividade, passou letra por letra do seu nome, e ao falar a letra L do seu

sobrenome, Sofia completava (de Luan Santana), I (de índio).

Nas atividades de circular letras de seu nome em um “caça-letras”, Sofia acertava à

medida que Bia solicitava uma das letras. Cada acerto era comemorado por Bia com

o elogio “isso aí, muito bem!”

O elogio e a aprovação [...], geram menos motivação em crianças com ASD do que em outras. Porque elas têm dificuldade em entender o ponto de vista ou as reações emocionais alheias, não costumam ter praticamente nenhum interesse no fato de os adultos estarem ou não satisfeitos com elas (WILLIAMS; WRIGHT, 2008, p. 84).

Conversamos um pouco a respeito da questão do elogio e da dificuldade do autista

compreender os sentimentos alheios. Bia discordava e acreditava que Sofia

compreendia tanto os elogios ditos quantos os sentimentos de outras pessoas. Não

houve insistência nesse fato, pois queria acreditar que Bia estava certa. Queria

acreditar que Sofia compreendia tudo o que dizíamos.

Outra atividade para aprender seu nome foi a de encontrá-lo entre outros e colori-lo.

Ela localizou corretamente e começou a pintá-lo. No exercício de “caça-palavras”,

teve dificuldades em encontrar o seu nome, e Bia teve que indicar a localização dele.

combina diferentes materiais concretos e visuais, que auxilia as crianças a estruturarem o seu ambiente e a sua rotina. O TEACCH é um modelo de intervenção que, através de uma “estrutura externa”, organização de espaço, materiais e atividades, permite que as crianças do espectro autista criem mentalmente “estruturas internas”, transformando-as em “estratégias”, para que possam crescer e se desenvolver de forma que consigam o máximo de autonomia na idade adulta (SILVA et al, 2012, p. 218-219).

Sofia: Eu quero o V de Xuxa.

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O exercício seguinte consistia em colar barbante na primeira letra do nome. Quando

perguntado que letra era aquela, ela disse “V”. Após essa atividade, a professora

escolheu uma letra e perguntou que letra era aquela e ela disse “B”, em seguida “A”,

e depois “M de Maria.”

Houve uma intervenção discreta ao dizer a Bia que deveria ter aproveitado o

momento para que Sofia fizesse alguma atividade relacionada a números, pensando

na oportunidade de aproveitar o seu interesse. Porém, Bia preferiu continuar com o

planejado.

Bia, então, entrega a Sofia uma folha de papel com um desenho que se

assemelhava a um rosto, porém sem os órgãos do sentido, como disse Bia ao

entregá-lo. Nessa atividade: “Sofia tem que colar os olhos, o nariz, a boca, as

orelhas e ainda os cabelos”.

E mais uma vez Sofia respondeu além das intenções perguntadas por Bia. Claro que

a pergunta daria possibilidade a qualquer tipo de resposta, pois foi feita de maneira

abrangente.

Ao fazer a atividade Sofia “se elogia” algumas vezes, repetindo os elogios que Bia

sempre faz: “É isso ai, muito bem!”

Algumas crianças vivem ecoando, isto é, reproduzem falas imediatas ou remotas. Podem, por exemplo, narrar episódios do seu desenho favorito no meio da aula de português, e isso não é um comportamento social adequado. Devem ser pontuadas e redirecionadas para o aprendizado,

Sofia : Quero fazer um número.

Bia: “Depois”.

Bia: O que Sofia tem?

Sofia: Tenho olho, boca, cabelo. Tenho mãe também, irmã...

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quebrando essa dispersão e evitando falas disfuncionais em momentos impróprios (SILVA et al, 2012, p. 120).

Bia resolve contar as letras do nome de Sofia. Aponta cada letra e em seguida diz os

números 1, 2, 3, 4 e 5, realizando, assim, a correspondência termo a termo. No final,

pergunta:

Nesse processo, algumas coisas incomodavam: a disposição de Sofia voltada para a

parede por um lado permitia a sua concentração e a não dispersão, uma vez que a

sala de recursos volta e meia é adentrada por outras pessoas. Por outro, coibia o

contato visual com ela, o ‘olhar olho no olho’, o conversar frente a frente, a

possibilidade de Sofia comunicar-se com os outros. Além disso, preocupava-me

essa simultaneidade de atividades diversas para o mesmo dia . A princípio, evitei

intervir muito no processo entre elas, pois nas vezes que quis opinar, Bia sempre

retrucava.

mesmo dia na sala de aula no período vespertino

Fui à escola conversar com a professora de Sofia sobre a pesquisa e a necessidade

de observá-la nas aulas de matemática. A aula já havia começado e a professora

estava sentada à mesa, fazendo recortes, enquanto os alunos realizavam uma

atividade de pintura. Sofia estava sentada em uma das últimas carteiras. Fiz um

sinal que precisava conversar com ela e, assim que se aproximou da porta,

começamos o diálogo: “Boa tarde! Sou o professor Janivaldo, sou mestrando do Ifes

e desenvolvo uma pesquisa sobre “o cotidiano do aluno autista na escola”. Nesse

momento, a professora olha para Sofia e voltou o olhar para mim reticente e, então,

completei: “Eu já observo Sofia no Atendimento Educacional Especializado e, com

sua permissão, gostaria de acompanhá-la nas aulas de Matemática”. Por um

momento, ela me olhou desconfiada. Acredito que teria feito o mesmo, pois ter outro

Bia: Quantas letras têm seu nome?”

Sofia: L.

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profissional em minhas aulas poderia causar-me desconforto. A Duquesa, em

seguida, iniciou o seu discurso:

- Acho que nunca vou entender como é ser outra pessoa. Não há duas pessoas iguais em todo

o mundo (GAARDER, 1995, p. 401).

Nesse momento, Sofia olha para mim e abre um sorriso, reconhecendo-me. O

comentário da professora provocou certa tristeza porque, mesmo sem intenção, ela

não pensou se suas palavras poderiam ser entendidas por Sofia e pelos seus

colegas. Ainda em pé, próximos a porta, continuou:

A professora explicou que as aulas de matemática seriam após o recreio e, se

quisesse retornar mais tarde, não teria problemas.

Ao sair, encontrei-me pensativo nas palavras da professora e aquela comparação

ficou ecoando em meus ouvidos. Fiquei reflexivo sobre essa necessidade de se

comparar e ainda a respeito dos pensamentos de Sofia e demais alunos em razão

daquele discurso.

Fiquei apreensivo, arredio e inquieto. As falas da professora, a forma de se reportar

a Sofia, as comparações realizadas, o tom de voz e as expressões faciais causam a

qualquer pesquisador que busca as melhores alternativas para os movimentos

vivenciados na escola certo desconforto. Sobre isso, Foucault (2006) escreve:

Duquesa: Eu trabalho na cidade vizinha e lá também tenho um aluno autista:

superinteligente e amigável. Não me dá nenhum trabalho. Sofia é o oposto dele.

Duquesa: Sofia é atônita! Não presta atenção em nada. Não sabe ler, não sabe

escrever e vive a desenhar! Eu não sei como trabalhar com ela e por isso, fico de

mãos atadas. Combinei com a professora do AEE para que ela a alfabetize e ensine

a contar. Aqui nas minhas aulas ela só desenha e pinta e, para completar,

falta muito à aula,

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[...] inquietação diante do que é o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; inquietação diante dessa existência transitória destinada a se apagar sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence; inquietação de sentir sob essa atividade, todavia cotidiana e cinzenta, poderes e perigos que mal se imagina; inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas palavras cujo uso há tanto tempo reduziu as asperidades (FOUCAULT 2006, p.8).

Conferindo poder àquelas palavras, pode-se imaginar sobre os possíveis poderes

liberados ao se posicionar Sofia como o oposto do outro, bem como sobre as ideias

formadas pelos seus colegas quando ouviram tal discurso, complementando com a

seguinte questão: Que imagensnarrativas seus colegas fazem ao avistar Sofia? Não

posso responder por eles! Mas inserindo-se no lugar deles é perfeitamente possível

imaginar Sofia como alguém incapaz de estar naquele meio. Afinal, o que é ser o

oposto de ser inteligente?

Nomear o que fazemos, em educação ou em qualquer outro lugar, como técnica aplicada, como práxis reflexiva ou como experiência dotada de sentido, não é somente uma questão terminológica. As palavras com que nomeamos o que somos, o que fizemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras palavras são lutas em que se joga algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras (BOMDÍA, 2002, p. 21).

E o poder dessas palavras contribuem para a formação dessas imagensnarrativas.

Ao confrontar a capacidade de Sofia com seu outro aluno, a professora está

colaborando significativamente para reforçar as imagensnarrativas que seus

coleguinhas já possuíam, pois avaliza a fala de outros colegas, familiares e demais

pessoas envolvidas no processo.

Sofia não responde, não se defende, nem parece se ofender com as palavras

faladasescutadas assim como Alice também não o fazia. É provável que estivessem

calejadas e anestesiadas, aproveitando a ocasião e permitindo se sentir invisíveis

nessa “pura existência verbal que faz desses infelizes [...] seres quase fictícios [...]”

(FOUCAULT, 2003, s.p.).

Isso posto era necessário verificar se Sofia tinha em si o sentimento de

pertencimento “[...] que é decisivo para a identidade de um usuário ou de um grupo,

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na medida em que essa identidade lhe permite assumir o seu lugar na rede das

relações sociais inscritas no ambiente” (CERTEAU, 1996, p.40, grifo do autor).

Assim se confirmou que a observação deveria ser feita além das quatro paredes da

sala de aula, começando por acompanhar a hora do recreio. Nesse mesmo dia, após

retornar mais cedo à escola, observei a recreação dos alunos. Assim que me viu,

Sofia se aproximou sorridente e, acompanhada com a sua amiga Emy, sentaram-se

ao meu lado e iniciaram o diálogo:

Emy continuou a fazer perguntas a Sofia sobre adição de números naturais e ela

sempre repetia as perguntas de Emy como resposta. Até que acabou o recreio e

ambas correram em direção à sala de aula. Aguardei um pouco e, em seguida,

encaminhei para a classe.

Na sala de aula, a professora distribuiu as atividades de Matemática para todos os

alunos, com exceção de Sofia, que continuou a pintar uma figura da aula anterior. A

Emy: Você é o professor de Sofia?

Jan: Não! Por que vocês não vão brincar com as outras meninas? Perguntei.

Emy: Porque ninguém gosta dela. Só eu e Walky somos amigas dela.

Jan: Por que não gostam dela?

Emy: Por que ela é quieta, não consegue correr como as outras. Ela é diferente.

Nós somos amigas desde a 1ª série.

Jan: Você sabe ler, Emy? [Quis mudar o assunto, pois pensei que tal

discurso poderia deixar Sofia triste].

Emy: Não, mas estou aprendendo. Meus irmãos entraram na escola sabendo ler e

escrever, eu não!

Jan: Mas você vai aprender!

Emy: Sabia que Sofia sabe fazer contas? Bem simples, mas sabe! Quer

ver?[E voltando-se para Sofia]

Emy: 1 + 1? Sofia: 1 + 1!

Emy [tocando o rosto de Sofia]: “Quantos” que é 1 + 1? Sofia: 1 +1. Emy: 2 + 1? Sofia: 2 + 1.

Emy: “Quantos” que é? Sofia: 2 + 1.

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motivação era a Copa de 2014 e consistia em adição e subtração de números

naturais e outra sobre estatística com pintura de gráfico.

A professora separa uma atividade para Sofia sobre a identificação de objetos com

desenhos para colorir. A princípio, perguntou a Sofia quantos corações havia no

desenho, mas ela permaneceu calada e começou a pintar. Ao terminar a pintura

Sofia se levanta e vai mostrar o seu caderno à professora. Esta separa uma

segunda atividade de mesmo objetivo que a primeira: desenhos para colorir. Sofia

volta a sentar em sua cadeira e começa a pintar. Dificilmente fala com alguém ou

alguém fala com ela, com exceção de Emy, que senta sempre ao seu lado, e

dificilmente, também, os alunos falam entre si.

A Duquesa faz a correção das atividades na lousa e os alunos participam oralmente

com os cálculos nesse momento, Sofia permanece como se realmente estivesse em

seu mundo, no seu infinito particular.

Terminada a pintura, a professora passa outra atividade para Sofia sobre

quantidades. Como provocação, perguntou à Sofia quantos elementos havia na

figura e Sofia permaneceu muda. Nesse momento, olha para mim como se quisesse

me dizer algo. Em seguida, volta-se para Sofia e disse: “Pinte!”. Sofia pegou o lápis

e começou a pintar. Ao perceber que o lápis estava sem ponta, mostrou para a

professora, indicando que o lápis precisava ser apontado.

A professora volta a corrigir atividades na lousa e escolhe alguns alunos para ajudar

na resolução dos problemas. Sofia não é escolhida. Emy também não. Ambas tem

dificuldades com os números. A Duquesa determina que os alunos colem as

atividades no caderno dizendo: “Só três pinguinhos de cola!” Em torno dessa fala faz

um discurso sobre os excessos. Sofia se levanta e leva a atividade para a professora

demonstrando que havia terminado. A professora solicitou o seu caderno para fazer

a colagem, porém os outros alunos são estimulados e orientados a fazerem por si

mesmos.

O professor sempre deve promover a independência. Assim como os pais em casa, é importante incentivar a criança a fazer suas coisas sozinha, tais

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como se cuidar, lavar as mãos, fechar os potes de tinta, guardar o material (SILVA et al, 2012, p. 124).

Uma terceira tarefa foi entregue à Sofia: um desenho de uma casa com variado

número de corações desenhados.

Essa atividade tinha como cabeçalho o nome de outra escola, sendo, portanto, uma

tarefa elaborada para outra realidade, para outros alunos. Surgiram na memória as

palavras de Bia sobre a falta de planejamento com os professores, os planos de

curso entregues a cada ano que, às vezes só têm as datas alteradas, bem como as

atividades planejadas iguaizinhas para turmas de realidades distintas. E, é claro,

para finalizar, lembrar da cópia carbono!

"Carbono para planejamento - Alô, é da casa da D. Mariazinha? - Sim. Com quem deseja falar? - Com a própria. Aqui é Carmen, lá da mesma escola onde ela trabalha. - Pode falar Carmen, aqui quem fala é Mariazinha. - Mas que ótimo te pegar em casa. É sobre o maldito planejamento do ensino. Eu nem sei por onde começar e o meu diretor quer essa coisa para amanhã cedo. - Olha: pegue o mesmo do ano passado. Muda uma ou duas sentenças e entregue. Todo mundo faz isso. Só que eu comecei a lecionar este ano, sabe? E a outra professora que eu substituí nem tinha plano. Dá pra você me ajudar? - Eu aqui em casa só tenho a minha cópia carbono. Acho que ela não dá xerox - está meio apagada... - Cópia carbono? - Lá na escola quem faz o plano é a D. Chiquita. Ela datilografa as cópias com carbono para facilitar. Imagine se eu vou perder tempo com isso. O diretor nem verifica: ele pega, dá uma olhada por cima e tranca na gaveta. - É mesmo é? E você tem por acaso o telefone da Chiquita? Vou entrar nessa também! - Deixa eu ver... Aqui está: 23-8166. Só que ela cobra, viu? - Cobra? Quanto? - Serviço profissional, minha filha! Ou você acha que a colega ia trabalhar de graça? Já basta a exploração do governo. E com essa inflação, não sei o preço atual do plano. Mas vale, viu? Vem com capa e bem datilografado. Máquina elétrica e tudo... Nem precisa revisar... - Obrigado pela recomendação. Vou ligar agora mesmo para casa dela pra encomendar. Um abração, tá!

Duquesa: Você vai pintar só os corações. Só os corações! Tem vários corações

escondidos pela casa. Pinte-os! Depois você pode pintar a casa toda!

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- Só mais um conselho antes de desligar: guarde uma cópia com você. Assim no ano que vem você não precisa tirar dinheiro do bolso de novo. É isso aí, tchau!” (SILVA, 1996, p. 35-36).

Essa prática ainda utilizada atualmente reflete a postura de alguns profissionais que

trabalham em duas ou mais escolas e são obrigados a apresentar planejamento

inicial para turmas que ainda não conhece. Isso porque, geralmente, ao iniciar o ano

letivo, cobra-se o plano trimestral dos conteúdos a serem abordados durante esse

período, suas respectivas metodologias, os processos avaliativos e os projetos a

serem trabalhados.

Sofia sentiu novamente que as diferenças haviam deixado de ser importantes (GAARDER,

1995, p. 402).

É assim mesmo, Sofia, mas esperamos que esse seu sentimento seja temporário!

As diferenças são muito importantes e é por elas e para elas que a atenção deve

estar voltada. Planejar pensando nas diferenças é um caminho para se alcançar

todos.

Por um momento, a professora precisou buscar uma apostila para um dos alunos.

Assim que saiu da sala, Emy chamou Sofia e, mostrando a apostila que estava em

suas mãos, perguntou:

Sofia respondeu corretamente às perguntas de Emy, o que provocou sorrisos!

Apesar de não ter dito o nome da letra fez associações com suas iniciais,

Emy: Que letra é essa?[apontando a letra a]

Sofia: de avião!

Emy: Essa? [apontando a letra i]).

Sofia: de igreja.

Emy: Essa? [mostrando a letra o].

Sofia: De ovo!

Emy: E essa? [mostrando a letra S]

Sofia: de Sofia.

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demonstrando que havia aprendizado em suas palavras. Para Silva et al (2012, p.

117), “quanto mais associações ele conseguir fazer com sua vida cotidiana, melhor

será a aplicação prática desse conhecimento”.

Enquanto dialogavam, os alunos permaneceram em silêncio, volta e meia uma

pergunta, um sorriso, uma brincadeira, comportamentos corriqueiros de alunos em

sala de aula que são feitos e desfeitos a todo o momento.

O insignificante cessa de pertencer ao silêncio, ao rumor que passa ou à confissão fugidia. Todas essas coisas que compõem o comum, o detalhe sem importância, a obscuridade, os dias sem glória, a vida comum [...] Elas se tornaram descritíveis e passíveis de transcrição, na própria medida em que foram atravessadas pelos mecanismos de um poder político (FOUCAULT, 2003, s.p.)

Permanecendo assim até o retorno da Duquesa, automaticamente aqueles que

estavam em pé retornaram aos seus lugares, bem como o silêncio voltou a reinar,

demonstrando o poder exercido por ela.

Como o poder seria leve e fácil, sem dúvida, de desmantelar, se ele não fizesse senão vigiar, espreitar, surpreender, interditar e punir; mas ele incita, suscita, produz; ele não é simplesmente orelha e olho; ele faz agir e falar (FOUCAULT, 2003, s.p.).

Os alunos retomaram as atividades a serem realizadas, enquanto Sofia... Ah, Sofia!

Ela pintava cuidadosamente cada um daqueles coraçõezinhos escondidos naquela

casa e, em seguida, poderia “pintar a casa toda” em tempo suficiente para

permanecer também “escondida”, mecanizada, sossegada, invisibilizada, ocupada,

até que a aula terminasse.

Quarta- feira, 11 de junho de 2014

-Ela não parece mais ser a mesma. Ela é como um universo de muitos contos fantásticos

(GAARDER, 1995, p. 402).

Enquanto Sofia se concentra na atividade de separação de cores, comecei a

conversar com ela:

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Para Silva et al (2012), é importante que o professor estimule o aluno autista a

relatar fatos passados e cotidianos, pois, por apresentar dificuldades na

comunicação, faz-se necessário esse treino, até mesmo para que seja possível

descobrir o que se passa na vida desses sujeitos, e também para que a família

acompanhe a vida escolar dos mesmos a fim de que possam relatar-lhes fatos

ocorridos na escola, como bullying e agressões.

As informações desencontradas de Sofia foram investigadas um pouco mais por

meio das histórias intrínsecas a elas. Na verdade, ela havia se mudado de Novo

México para a Ponta da Fruta, também em Vila Velha, porém bem mais distante da

escola. Não se conseguiu a informação se realmente Sofia havia apanhado, e a

única certeza era a barba de Luan Santana. Era incrível a ‘presença’ deste cantor

em sua vida.

Sofia passou a manhã falando da cantora Aline Barros. Em um desses momentos,

olhou para mim, pegou no meu rosto e disse: “Você é Satanás”, e rindo bastante me

disse: “Você tá virando zumbi!” Acerca disso, sua mãe nos contou que Sofia havia

assistido a um filme sobre zumbis há alguns meses.

Na sala de AEE, Sofia ficou em uma mesa separada enquanto eu e Bia ficamos em

outra para dialogar sobre as atividades. Tempos depois, Sofia começa a falar:

Jan: Bom dia!

Sofia: Bom dia!

Jan: Por que você não veio à aula ontem?

Sofia: Porque eu mudei.

Jan: Para onde?

Sofia: Novo México.

Jan: E o que sua mãe fez pra você ontem?

Sofia: Me bateu.

Jan: Mas, por quê?

Sofia: Porque eu tô vivendo em pecado. Quando eu encontrar Luan Santana vou

correr dele. Ele é horroroso! Tá de barba!

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Ao falar de Emy que havia faltado, Sofia poderia estar falando de si mesma

“Crianças com ASD podem misturar os pronomes “eu” e “você” [...]. Além disso,

podem continuar a referir-se a si mesmos pelo próprio nome” (WILLIAMS;

WHRIGHT, 2008, p. 71).

Enquanto Sofia separava os botões coloridos, provocamos novo diálogo:

Sofia continua a fazer associações, às vezes absurdas para falar de cores. A cor

vermelha, por exemplo, era dita como “a cor do sangue que sai da minha boca”,

frase esta já repetida por Bia.

But I see your true colors

Shining through

I see your true colors

(True Colors - Billy Steinberg / Tom Kelly)

Mas eu vejo suas cores reais

Brilhando por dentro.

Eu vejo suas cores reais31

(Cores Reais -- Billy Steinberg / Tom Kelly)

31 Tradução nossa

Sofia: Porque é importante para a escola.

Jan: Quem é importante para a escola?

Sofia: Luan Santana!

Jan: Você é importante para a escola, sabia?

Sofia: Emy faltou!

Jan: Emy não faltou, você quem faltou ontem.

Sofia: Ela mudou de escola?

Jan: Não.

Sofia: Você tá virando um zumbi! [apontando para Bia].

Jan: Que cor você tá separando?

Sofia: Cor da árvore!

Jan: E qual a cor da árvore?

Sofia: Bandeira!

Jan: E qual é a cor da bandeira do Brasil?

Sofia: Verde.

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Sim Sofia, vemos em você as suas cores reais e a pureza por detrás delas. Porém, a

conversa com a mãe deixou transparecer que a família não tem tanto envolvimento

com aquela criança, talvez pela humildade demonstrada, talvez por ignorância às

necessidades do autista, ou por falta de tempo em acompanhar Sofia em suas

atividades e até mesmo pela falta de parceria com Bia e a família, ajudando-lhes

com informações complementares.

Quarta- feira, 11 de junho de 2014

- É exatamente isso que me incomoda um pouco. Para mim, este é um exemplo típico de algo

em que só se pode acreditar, mas que não se pode saber (p. 339, grifos do autor).

As atividades para todos os alunos, inclusive Sofia, era de pintura. Nesse dia, as

aulas tiveram horário reduzido.

É importante que as crianças com autismo estejam na escola e participem dela integralmente. Diversas atividades podem ser adaptadas para que ela faça as mesmas atividades dos colegas em sala de aula. Assim, ela se sentirá melhor e mais estimulada (SILVA et al, 2012, p. 223 – 224).

Nesse caso, mesmo não sendo uma atividade adaptada, ou pensada em interesses

restritos à Sofia, houve certo envolvimento dela e uma vontade de compartilhar

sentidos com os outros colegas. Embora ela sempre pintasse, geralmente, a única a

pintar nestas aulas, agora estaria “entre iguais”, pintando, colorindo, trocando cores

entre os colegas, socializando imagens e talvez se sentindo parte integrante do

grupo.

Foto 10 - A taça pintada por Sofia

Foto 11 - Atividade de colorir

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014 Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

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Quarta- feira, 25 de junho de 2014 (AEE)

O que importa para mim, querida Sofia, é que você não esteja entre aqueles que consideram o

mundo uma evidência (GAARDER, 1995, p. 28).

Bia iniciou o atendimento à Sofia com uma atividade a qual denominou “caixa

mágica”. Nela foram colocadas doze figuras geométricas, confeccionadas em

madeira, de cores e formas distintas, sendo 3 retângulos verdes, 3 círculos

vermelhos, 3 quadrados azuis e 3 triângulos amarelos. Essa caixa contém orifícios

laterais nos quais o aluno introduz as mãos para a captura dos objetos. Bia solicita a

cor e Sofia tenta procurá-la entre os objetos, mas sem vê-los. O objetivo era que

Sofia associasse a cor ao objeto e sua forma, induzindo-a a memorização. Bia

lamenta por não ter obtido o êxito desejado.

Foto 12 - Caixa mágica

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

No entanto, pareceu ser um exercício inadequado, pois Sofia não reconhece as

formas e, se vendo as cores já tinha dificuldades em identificá-las, sem vê-las era

basicamente impossível.

Bia, assim como eu, esperava por “melhores” resultados, aqueles resultados

visíveis, palpáveis. No entanto, era possível saber que “aqui ainda subsiste um

“saber”, mas sem o seu aparelho técnico [...] ou cujas maneiras não têm legitimidade

aos olhos de uma racionalidade produtivista” (CERTEAU, 1994, p. 141). Sofia estava

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se interagindo, permitindo-se, descobrindo no seu tempo, envolvendo-se em uma

espécie de corrida-caucus. Para Bia, o sucesso estaria em ela dizer “retângulo

verde”, ou “triângulo amarelo”, para Sofia, poderia tratar-se apenas de uma

brincadeira de sorrisos fáceis e de mistérios a serem descobertos. Custou-se

entender que:

“[...] os sujeitos praticantes das escolas produzem diferentes maneiras de experimentar-problematizar os currículos oficiais em meio aos múltiplos processos de usos, negociações, traduções e mímicas [...] (FERRAÇO, 2009, apud FERRAÇO 2013, p. 85).

O maior desafio era captar a mensagem por detrás dos silêncios, do olhar curioso de

Sofia, das falas ‘desconexas’ [...] Nesse sentido, interessava menos a relação do

que estava lá dentro com aquilo que o aluno inventava, e mais o que era ‘inventado’

pelo aluno, como possibilidades criativas e inventivas (ALVES; OLIVEIRA, 2005,

p.79).

Ela sentia uma coisa que nunca tinha sentido antes: na escola, e também por toda a parte, as

pessoas só se preocupavam com trivialidades. Mas havia questões maiores, mas graves, cujas

respostas eram mais importantes do que as matérias normais da escola (GAARDER, 1995, p.

22).

Com certeza, Sofia estava pensando certo. Sofia pensava no que realmente era

importante para ela naquele momento.

Para que essa compreensão fosse possível foi preciso nos libertar das nossas

certezas e por um pouco de lado as teorias aprendidas ao longo dos estudos

realizados, as quais “negaram a existência dos cotidianos e dos conhecimentos que

nele são tecidos” (ALVES; OLIVEIRA, 2005, p.89).

Como na maioria das vezes, Sofia se apresentou dispersa, parecendo estar com

sono. Faz uso de frases desconexas e fala de situações passadas. O exercício da

caixa mágica pareceu, para ela, ser envolvente e desinteressante ao mesmo tempo.

Bia então convida Sofia para assistir e ouvir no computador a música “Aquarela” de

Toquinho. A princípio, Sofia teve dificuldades de se posicionar frente ao computador,

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pois a caixa de som emitia barulhos estranhos. Com calma e muita conversa, Bia a

convenceu a se sentar e acompanhar o vídeo.

Algumas crianças ficam assustadíssimas com certos sons [...] É muito comum crianças com ASD temerem, ao extremo, sons altos feitos por cortadores de grama, motores de helicóptero, aspiradores de pó, trânsito pesado ou sinetas escolares. Na maioria dos casos, a reação instantânea da criança ao vê-los ou ouvi-los é levar aos mãos aos ouvidos (WILLIAMS; WRIGHT, 2008, p.61).

Em outro momento, Bia cantou com Sofia e pedia para ela que completasse a frase

com a palavra que faltava. Em seguida, resolveram dançar. Nesse momento, a caixa

de som fez alguns estranhos ruídos e, imediatamente, Sofia afastou-se com medo,

tampando os ouvidos. Mais uma vez teve dificuldades em retornar para a sala,

cabendo a Bia convencê-la para o retorno.

Foto 13 - Sofia com o ‘pompom’, o qual Bia denominou aquarela.

Foto 14 - Bia e Sofia dançam a música Aquarela de Toquinho

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014 Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014

Ao final da aula, Bia mostrou uma cartilha que utilizará como tentativa de alfabetizar

Sofia e , provavelmente, será utilizada na sala de aula.

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Foto 15 - Apostila com atividades para “alfabetização de alunos autistas”

Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014

A apostila em questão não foi elaborada por Bia: “Uma amiga fez e me emprestou”,

disse. Bia acreditava que essa apostila poderia auxiliar na alfabetização de Sofia e

que, em parceria com a Duquesa, poderia ser utilizada em sala de aula.

Não havia nada de especial na apostila. Parecia aquela velha cartilha utilizada na

alfabetização: “Caminho Suave”. Fiquei a refletir sobre essa busca padronizada de

ensinoaprendizagem. Começar com vogais e depois com o “BA-BE-BI-BO-BU”; falar

em vogais ou consoantes para alguém que possivelmente ainda não reconhece nem

ao menos os símbolos. Contudo, nunca presenciei a utilização desta apostila. A

opção era por atividades fotocopiadas e, durante o processo de alfabetização, era

constante Bia corrigir Sofia:

Por diversas vezes, essa mensagem e frases semelhantes ecoaram na sala,

resultando na reflexão sobre a importância de ser ou não vogal, de ser ou não

consoante, de ser ou não ser algo a mais do que ser “M”. Se era vogal ou

consoante, isso não faria menor diferença já que Sofia não reconhecia as letras. Mas

o fato é que Bia insistia nesses detalhes por acreditar ser relevantes.

Bia para Sofia: M não é vogal!

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Segunda-feira, 30 de Junho de 2014

Sonolenta, Sofia esfregou os olhos. Tentou lembrar-se de tudo o que tinha acontecido no dia

anterior. Mas tudo aquilo lhe parecia peças desconexas de um quebra-cabeça (GAARDER, 1995,

p. 330).

Bia iniciou a aula com uma atividade de reconhecimento das vogais do alfabeto,

utilizando material concreto confeccionado em EVA. Com uma tarefa de

alfabetização composta por figuras, Bia solicita que Sofia complete as palavras com

a vogal que falta. Ao perguntar sobre a vogal ou outra letra, Sofia sempre faz

associações.

Bia convida Sofia para ler as palavrinhas e leu insistentemente por seis vezes,

pedindo para que ela repetisse:

Com o objetivo de motivar Sofia, Bia a convida para assistir a um vídeo com músicas

sobre vogais. Sofia senta em frente ao computador e começa a assistir ao vídeo.

Após alguns ruídos pede, insistentemente, para sair dali logo após a caixa de som

ter feito um barulho estranho. Ambas se levantam e Bia a convida para dançar. Ao

terminar a dança, Sofia veio para o meu lado e começou a sorrir e apontando o dedo

para Bia disse:

Sofia: U de uva, L de Luan Santana, O de olho, A de avião

Bia: Hoje ela não quer responder, está muito dispersa! Tá com sono [Lamentou].

Sofia: Ela é um morcego e você é um bicho!”

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Bia começa a assistir a um vídeo no computador sobre vogais e Sofia logo se

interessou em ver também. Sentou-se ao lado de Bia e começou a repetir as

palavras que o vídeo dizia, sem que alguém solicitasse. Ao terminar o vídeo, Sofia

pediu que o repetisse.

Ao final da aula, como de costume, dei tchau e, então, Sofia se levantou e me beijou

a testa. O gesto inesperado de Sofia nos deixou admirados. E nos fez refletir ainda

mais sobre o ato carinhoso e inesperado daquela criança vista como isolada,

‘egoísta’, da aluna não sociável que, ‘de repente’, me deu um beijo.

Segunda-feira, 21 de julho de 2014

- Colecionar bonecas Barbie é uma coisa. Ser uma Barbie é ainda pior...

(GAARDER, 1995, p. 407).

Bia iniciou o dia com Sofia desenvolvendo atividades de coordenação-motora. Em

seguida, Sofia desenhou corações em uma folha de papel e começou a recortá-los

para a produção de um cartaz. Em meio aos recortes, Sofia quebra o silêncio e nos

convida a refletir sobre fatos inesperados:

Esse diálogo causou um devaneio em torno da mensagem transmitida por Bia e os

sentidos dados a essas palavras ou aos sentidos compreendidos por Sofia. Pois o

Sofia: Você assiste filme?

Bia: Não. Eu não tenho tempo!

Sofia: Você assiste televisão?

Bia: Não.

Sofia: Você assiste Barbie?

Bia: Não. Eu não assisto Barbie. Eu me sinto uma Barbie!

Sofia: Você é uma princesa? Como é o nome dele?

Bia: Dele quem?

Sofia: Dele, seu filho?

Bia: Murilo e Gabriel.

Sofia: Eu não sou uma mala! Ele é Barbie?

Bia: Quem é Barbie?

Sofia: Seu filho!

Bia: Não! Homem não pode ser Barbie. É feio para o homem.

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autista costuma fazer a tradução “ao pé da letra” do que é ouvido, e assim criar

imagens deturpadas de diálogos mal interpretados. “Crianças com autismo podem

ter a conclusão errada porque têm problemas em referir-se ao contexto e detalhes,

um em relação ao outro. A maioria das pessoas fazem isso intuitivamente, sem

pensar” (WILLIAMS; WRIGHT, 2008, p. 44).

É muito provável que Sofia não tenha colocado peso algum naquelas palavrasideias

de Bia, muito menos dado importância àquilo. O sentido dado por Bia pode ter sido

entendido de outra forma por Sofia. Palavras ditas sem reflexão, ou de ‘supetão’,

podem revelar pensamentos e ideias pessoais nem sempre agradáveis. E se Sofia

tivesse feito perguntas a respeito?

Alguém teria respostas para elas? De qualquer forma, Sofia achava mais importante refletir

sobre elas do que quebrar a cabeça decorando verbos irregulares (GAARDER, 1995, p.22).

Sofia não fez perguntas, não demonstrou reação; o que de certa forma trouxe alívio,

pois, preferi não imaginar quais seriam as respostas que ela teria. No entanto, as

ideias intrínsecas às palavras de Bia foram de encontro do sentido ético-estético-

político dado à educação, uma vez que

O que, sobretudo, me move a ser ético é saber que, sendo a educação, por sua própria natureza, diretiva e política, eu devo, sem jamais negar meu sonho ou minha utopia aos educandos, respeitá-los. Defender com seriedade, rigorosamente, mas também apaixonadamente, uma tese, uma posição, uma preferência, estimulando e respeitando, ao mesmo tempo, ao discurso contrário, é a melhor forma de ensinar, de um lado, o direito de termos o dever de “brigar” por nossas ideias, por nossos sonhos e não apenas de aprender a sintaxe do verbo haver, do outro, o respeito mútuo (FREIRE, 2002, p.78).

Assim, pode-se afirmar que opiniões pessoais não devem interferir na educação das

crianças e, ainda, que ideias que valorizam somente ‘a norma’ não devem ser

utilizadas em espaços libertadores como a escola.

Queiramos ou não, as redes cotidianas estão atravessadas por diferentes contextos de vida e valores, o que, a nosso ver, proporciona a dimensão de complexidade para a educação que defendemos, ou seja, complexo por ser tecido junto no cotidiano vivido (FERRAÇO, 2008, p. 31).

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Nesse sentido, inserido nesses cotidianos, (des)construímos ideias e disseminamos

outras, e às vezes nem percebemos o quão determinante podem ser esses

processos.

Nesses processos diferentes e complexos de viver e criar nos múltiplos espaços/tempos cotidianos nos quais nos inserimos, ganha importância a compreensão de como se formam “as redes de subjetividades que cada um de nós é” (SANTOS, 1995 e 2000 apud ALVES; OLIVEIRA, 2005, p.88).

Sofia não externalizou questionamentos sobre “o homem não poder ser Barbie”, ou

em ser “feio para o homem ser Barbie”, mas pode ter feito algum questionamento

interno, e se entende que em algum momento essa fala poderia voltar à tona. Assim

como o “eu não sou mala” dito por Sofia que, por algumas vezes, Bia se direcionou a

ela dessa maneira.

Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vamos ou que sentimos e de como vemos ou sentimos o que nomeamos (BOMDÍA, 2002, p. 21).

Bia externalizou um pensamento seu. Sofia pode ter feito a simples interpretação de

que um homem não pode ser uma boneca. No entanto, evidencia-se o cuidado que

é preciso ter com as palavras e ideias de ordem pessoal.

Mas é claro que não dava para ter certeza, pois o fato de uma criança não falar não

significava necessariamente que em sua cabeça não houvesse ideias (GAARDER, 1995, p.117).

Silenciosamente, Sofia continuou suas atividades. Recortou todos os corações para

montar o cartaz. Posteriormente, Bia solicitou que ela os contasse, porém Sofia não

o fez. Bia diz que vai contar e começa:

Bia começa a contar os corações solicitando a ajuda de Sofia.

Bia: 1, 2, 3, [...], 20. Agora é a sua vez [disse ].

Sofia: 1, 2, 20, 30...

Bia: Não! Vamos contar direito?

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Para Nunes e Bryant (1997), ao contar conjuntos, a criança precisa ter noção que o

último número falado representa a quantidade de elementos desse conjunto, ter

também a noção de que, não importa a ordem inicial de contagem dos objetos, se da

esquerda para a direita ou vice-versa, ou se do meio para os extremos; ela precisa

saber que isso não importa, bem como compreender a utilidade da contagem.

Bia pediu que Sofia colasse os desenhos dos corações e ela os colou, procurando

organizá-los como faz a maioria dos autistas: enfileirados. Silva et al (2012, p. 94)

relata que há casos em que pessoas autistas “passam horas engajadas em uma

simples brincadeira de empilhar caixas ou enfileirar carrinhos”. Para eles, é dessa

maneira enfileirada que está organizado.

Bia segurou na mão de Sofia e, apontando os corações, um a um começaram a

contar. Sofia sequer olhava para as figuras e contou sozinha até o 7 e parou. Bia

completou “8” e Sofia continuou “ 9, 10, 20, 30...”

Para contar apropriadamente, deve-se respeitar um conjunto de princípios e, caso

não o faça, não alcançará resultados precisos. Um desses princípios é a

correspondência termo a termo (NUNES; BRYANT 1997, p. 36), ou seja, cada

elemento deve ser contato apenas uma única vez. Nunes e Bryant (1997) identificam

ainda dois outros princípios: o da ordem constante (há uma ordem lógica a ser

Sofia: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 17, 19, 20.

Bia: Agora vamos colar os corações.

Bia: Conta para mim quantos corações você colou?

Sofia: 2, 9... [sem olhar para a figura].

Bia: Não! Conta com a tia...

Sofia: 3, 4, 5 ...

Bia: Vamos contar?!

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seguida 1, 2, 3...) e o último número contado representa o total de elementos desse

conjunto, como já mencionado anteriormente.

Estas três exigências são indiscutíveis. Uma criança que não as respeita não está definitivamente contando apropriadamente, e qualquer criança que de fato as respeita consistentemente está se saindo bem. Não se poderia dizer que esta última criança entende o que ela está fazendo [...] (NUNES; BRYANT 1997, p. 37).

Nunes estimula uma reflexão sobre o próprio conceito de ser numeralizado. Como a

autora afirma, mesmo que a criança faça a leitura corretamente isso não significa

que esteja consciente de seu ato. Assim, o fato de Sofia não corresponder às

expectativas também não permite afirmar que ela não estaria aprendendo.

Bia tenta outra estratégia para auxiliar na contagem. Desenha os números em uma

folha e pede que Sofia desenhe-os abaixo dos corações. Em seguida, solicita que

conte apontando para os números. Sofia conta sem qualquer relação entre o número

e a quantidade relacionada. Terminada a tarefa, Sofia sorri e aponta o dedo para

mim:

Foto 16 - Sofia confeccionando cartaz. Foto 17 - Corações enfileirados

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Fonte: Arquivo do pesquisador

“Você é um zumbi!”

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119

Segunda-feira, 11 de Agosto de 2014

Afinal de contas, uma coisa era certa: todas as flores e árvores, todos os homens e animais

eram “imperfeitos” (GAARDER, 1995, p. 108).

Bia prepara os materiais para o início da aula. Escreve em uma cartolina o nome

SOFIA de um lado e, do outro, as vogais. Junta a isso o material concreto, contendo

as letras do seu nome. Para motivar o interesse, Bia procura em um site um vídeo

no qual uma mãe ensina ao filho as vogais do alfabeto.

O vídeo é uma repetição de vogais associadas às imagens. Sofia assiste

atentamente e repete o som das vogais quando solicitado. Com as escritas na

cartolina, Bia pede a Sofia que faça a leitura. Sofia faz a leitura dos símbolos

corretamente e utiliza a mesma entonação na voz, utilizada pelo vídeo. Ao olhar para

mim, sorridente:

Algumas vezes transformei-me mesmo em um zumbi. Brinquei, literalmente, que

estava virando e, isso fez com que Sofia se alegrasse, sorrisse bastante e pedia

para que eu repetisse novamente. Isso me aproximava dela e, ao mesmo tempo, me

permitia refletir bastante. Tornei-me zumbi de mim mesmo! Virei noites a pensar de

que maneira poderia ajudar aquela incrível criança. Eu era um zumbi nas aulas

observadas no AEE, sem ideias novas que pudesse contribuir para aquele processo

de ensinoaprendizagem, sentindo-me de mãos e mentes amarradas.

Agora, a tarefa seguinte é a de recorte. Com um jornal Bia solicita à Sofia que

recorte algumas palavras dele. Enquanto Sofia realizava as tarefas, começamos a

dialogar:

“Ele vai virar um zumbi!”

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Bia vai olhar no calendário o dia do aniversário de Sofia: “dia 9 de outubro32”, disse.

Bia retorna com a atividade das vogais abrindo um jornal. Localiza uma manchete

que começa com a letra A e pergunta:

Bia retorna ao exercício anterior [da cartolina] e solicita que Sofia repita a atividade.

Sofia repete as vogais corretamente. Volta ao jornal, recorta a letra A e cola no

caderno. Em seguida, apontando a letra E no jornal, Bia pergunta:

32 Datas fictícias

Bia: Hoje é aniversário de minha irmã!

Jan: E que dia é o seu aniversário?

Bia: Dia 30

Jan: E o seu Sofia?

Sofia: Dia 9.

Jan: Dia 9? De que mês?

Sofia: Porque é mais tarde!

Jan: O que você gostaria de ganhar de presente?

Sofia: Um Galaxy!

Jan: Que dia é mesmo é seu aniversário?

Sofia: Dia 19.

Bia: Dia 9 de outubro, repete!

Sofia: Dia 9 de outubro.

Jan: Que dia é seu aniversário?

Sofia: Dia 9!

Jan: E o que você gostaria de ganhar?

Sofia: Uma Barbie!

Bia: Que vogal é essa?

Sofia: M.

Bia: M? M não é vogal. Que vogal é essa?

Sofia: M.

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Bia convida Sofia para recortar a letra i. Procura no jornal, localiza, mostra a Sofia e

pede que ela corte. Na sequência, solicita o recorte da letra o. Sofia encontra a letra

O e faz biquinho (bolinha), como ensinado pela professora.

Após recortar e colar todas as vogais, Bia convida Sofia para que a mesma leia:

Foto 18 - Sofia colando as vogais recortadas no jornal

Foto 19 - As colagens feitas por Sofia e a escrita das vogais realizada por ela

Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014 Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014

Bia:Que letra é essa?

Sofia: M

Bia: Essa é a letra E, de elefante. Corte e cole a letra E.

Bia: E agora, falta qual?[ apontando para a letra U] – “Faz biquinho pra falar: Sofia: Uuuuuuuuuuuu... Bia: Isso ai, muito bem!

Sofia: a, e, i, o, uuuuuuuuuuuuu...

Bia: Muito bem! Agora você vai escrever as vogais.

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Sofia escreve as vogais na ordem usual e a professora comemora. Em seguida,

retorna ao notebook para que Sofia jogue. Depois de várias tentativas, por

problemas de conexão com a internet, consegue colocar um jogo. “Não é este que

eu gostaria”, lamenta Bia. Em busca de um novo jogo educativo, explora o site

“escola games”. Nele encontra o jogo procurado, joga algumas vezes com Sofia e

depois pede para que ela continue sozinha. Nesse momento, comento com Bia

sobre a maneira diferente de Sofia pegar no mouse e na tesoura.

Foto 20 - Sofia utilizando o mouse em um jogo da internet

Foto 21 - Sofia utilizando a tesoura para recortar vogais

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014 Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Ninguém respondeu à sua pergunta. Não havia barulho de música alguma e Bia

continuou com a atividade. Para Bia, em sua primeira tentativa, Sofia não fez

corretamente. Na segunda vez, fez o A e, em seguida, o U, em seguida perguntou:

Sofia: Quem tá fazendo barulho? A música?

Bia: Agora você vai fazer sozinha as vogais. Sem ver as vogais,

vou até escondê-las.

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“Vem sim, Bia. O U vem depois de todas as vogais! Mas não vemos diferença nisso,

e para nós não está errado! Sofia está corretíssima”. Era o que deveria ter sido dito

nessa hora, porém Bia provavelmente não aceitaria esse argumento. Preferia

continuar “[...] nas tentativas em vão de buscar assegurar obediência a um sentido

único, preestabelecido, em relação ao conhecimento ou a uma informação”

(FERRAÇO, 2008, p. 17).

Foto 22 - Bia ensina Sofia o jeito ‘normal’ de utilizar o mouse.

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Às vezes, Bia lembrava a Duquesa (personagem do livro), principalmente quando

procurava atribuir moral a todos os atos e/ou queria ter sempre razão mesmo

quando não tinha certeza dos fatos!

“É verdade”, disse a Duquesa“, e a moral disso é... ‘Oh, é o amor que faz o mundo girar!’”

(CARROL, 1998, p. 121).

Bia desenhou alguns retângulos no papel e dentro deles escreveu as vogais, uma

em cada retângulo. “Agora você vai fazer sozinha” – disse Bia. Antes de começar a

fazer, Sofia desenha os retângulos e depois escreve dentro deles as vogais. Bia

Sofia: Tá errado?

Bia: Tá! Você fez a letra A e em seguida o U. O U não vem depois do A.

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pediu mais uma vez, e novamente ela desenhou os retângulos antes de começar a

fazer.

Foto 23 - Sofia realizando a tarefa de escrever as vogais

Foto 24 - As vogais escritas por Sofia.

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014 Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Nessa última vez, escreveu as letras A, E, I e R. Ao perceber que o R não fazia parte

do grupo, tentou apagar e fez a letra O por cima. Parece que apesar de Sofia ainda

não dominar os conceitos de vogal ou consoante, reconheceu que a letra R não faria

parte do grupo solicitado por Bia e por iniciativa própria quis apagá-lo.

Apesar das tentativas de Bia em engessar sentidos às tarefas, pode-se afirmar que o

dia de hoje foi bastante produtivo. Sofia demonstrou interesse em realizar as

atividades, parecia que ela se afastou um pouco do seu mundo ou que nós visitamos

o dela.

Mesmo dia no período da tarde (hora do recreio)

Seus amigos, estes sim talvez pudesse escolher, mas não tinha tido a chance de escolher-se a

si própria. Não tinha decidido se quer ser uma pessoa (GAARDER, 1995, p. 16).

O “recreio dos pequenos”33 acontece das 15h às 15h30min. Enquanto algumas

turmas brincam no pátio, outros alunos estudam nas salas de aula ao lado. O

barulho incomoda os professores e alunos que ainda estão estudando.

33 O recreio, nessa escola, ocorre em duas etapas: "o recreio dos pequenos" é destinado às crianças do Ensino Fundamental I (séries inicias) e, em seguida, ocorre o recreio dos maiores.

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Sentado em um dos bancos do refeitório improvisado, observo Sofia pegar seu prato

de comida, sentar-se em um banco próximo e, observar as outras crianças

brincarem enquanto se alimenta. Às vezes, repetitivamente, bate palmas,

característica do autismo exemplificada como disfunções comportamentais. Ao

terminar sua refeição, aproximou-se de mim, tocou meu ombro e sorriu. Até outras

crianças chamarem:

Para Silva et al., “[...] as crianças com autismo geralmente têm fascínio especial por

música. Não pela letra em si, mas sim pela melodia.” A autora explica que, por meio

da música, as crianças podem compartilhar o que sentem.

Sofia não tocava música alguma, apenas batia as mãos sobre a mesa, fazendo um

batuque desritmado, pelo menos aos meus ouvidos. Mas, por trás de tudo aquilo,

por detrás das imagensnarrativas que fazia de Sofia, é perfeitamente possível

perceber que ela “combina os seus fragmentos e cria algo não-sabido no espaço

organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de

significações” (CERTEAU, 1994, p. 265). Era impossível definir Sofia pela sua

multiplicidade. Era injusto reduzi-la a uma única palavra: autista.

Mas, quem é você? Você é Sofia Amundsen, mas também é expressão de algo infinitamente

maior (GAARDER, 1995, p. 217).

De repente, Sofia para tocar a ‘música’ e:

Jan: Vá brincar com elas!

Sofia: Não! [batendo na mesa com as mãos] Você tá ouvindo a música?

Jan: Que música?

Sofia: A que eu estou tocando!

Jan: De quem é?

Sofia: De Luan Santana!

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Sofia se diverte vendo as crianças brincarem, com movimentos de vai e vem, pula, ri

e me abraça. Uma criança sentada no banco a observa e me pergunta:

Eu deveria ter dito que todos somos especiais, como tenho feito ultimamente. Mas a

pergunta feita por uma criança me surpreendeu.

Ambas se afastam para brincar, mas sentaram-se e um banco e ficaram ali

observando as pessoas por um instante. Ao soar o sinal de finalização do recreio,

ela e a colega levantam-se e começam a formar a fila de retorno à sala. Neste

momento, brincaram com os coleguinhas da fila.

Mesmo dia na sala de aula

Para muitas pessoas, o mundo é tão incompreensível quanto o coelhinho branco que um mágico

tira de uma cartola que, há poucos instantes, estava vazia (GAARDER, 1995, p.26).

Na sala, a Duquesa estava chamando a atenção de alguns alunos, utilizando

expressões populares com os mesmos:

“Não fica perto de Walk, não!” – disse ela.

Jan: Por quê?

Sofia: Porque ela tem piolho! Não fica perto de Walk, porque ela tem piolho.

“Ela é especial, não é?”

Jan: Sim! Como você sabe?

Criança: Eu já vi outra vez! Eu vou brincar!

Jan: Convide Sofia!

Criança para Sofia: Vamos brincar?

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O professor deve estar sempre atento para a maneira como usa as palavras. Uma característica marcante no autismo é a interpretação literal do que é dito. Por exemplo, essas crianças têm grande dificuldade de entender ironias e jogos de palavras; por isso, ao dar uma orientação ou fazer uma pergunta de duplo sentido, o professor pode ser mal interpretado (SILVA et al, 2012, p. 123).

Assim, frases como essas, ditas de maneira maliciosa e/ou com sentidos figurados,

ou duplo sentido, podem causar em crianças com autismo a interpretação fiel de

suas palavras. Deve-se ter o cuidado de dizer certos ditados populares, pois

crianças com autismo não conseguem entender a essência implícita nesses ditados.

Para crianças com dificuldades relacionadas ao espectro do autismo, sua própria linguagem pode parecer tão confusa quanto os idiomas estrangeiros para a maioria das pessoas. Quase sempre isso acontece porque elas se esforçam muito para entender a essência da situação, visto que não conseguem entender o significado das palavras dento do contexto correto (WILLIAMS; WRIGHT, 2008, p. 44).

Mas a Duquesa não tinha muito cuidado com as palavras. Agia de forma muito

espontânea e naturalizada. Falava o que pensava e, às vezes, de forma austera. Era

comum o seu domínio até mesmo pelo olhar e pela “[...] convicção de que as

palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes

mecanismos de subjetivação” (LARROSA, 2002, p. 20-21).

Por acaso se exerce nesta casa alguma espécie de censura? (GAARDER, 1995, p. 458).

Sim, Sofia, por mais incrível que isso possa parecer, exerce! Hoje é dia de avaliação

e com o intuito de revisar a matéria da prova, a professora trouxe uma atividade de

reforço das operações de adição e subtração de números naturais e seus termos:

parcelas, minuendo, subtraendo, resto ou diferença.

Sofia pega a atividade e escreve algarismos aleatoriamente. Essa atitude causou

surpresa, pois ficou perceptível que ela sabia que se tratava de números, ou seja,

“Você tá muito pra frente!”,

“Amanheceu de ovo virado?”,

“Professor não é filho de chocadeira!”

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existia a possibilidade de Sofia aprender o que era ensinado. Dessa forma, houve

uma tentativa de orientá-la na realização do exercício, porém sem obter êxito. Sofia

não parece estar interessada em realizar essa tarefa. Pega seu caderno e começa a

pintar, em meio à sua concentração diz: “Eu não sou pra frente!”, respondi: “Ela não

estava falando com você!”

Oito mais quatro são doze, Sofia. Podemos estar absolutamente certos

quanto a isso. Trata-se de um exemplo para as verdades racionais,

sobre as quais falaram todos os filósofos desde Descartes. Mas nós as

incluímos em nossas orações antes de dormir? E por acaso ficamos

quebrando a cabeça sobre elas em nosso leito de morte? Não. Por mais

“objetivas” ou “genéricas” que tais verdades sejam, é exatamente por

isso que elas são tão pouco importantes para a existência de cada um

(GAARDER, 1995, p. 406).

Sofia não estava preocupada com o resultado de operações mecanizadas e sem

sentido naquele momento. Não se imaginava em quais verdades ela pensava, mas

provavelmente se sentir pertencente àquela turma possibilitaria a ela pensar com

eles e, se assim sentisse, com o tempo aprenderia também essas e outras coisas

tão pouco importantes, aprenderia a pensar nelas.

E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras (BOMDÍA, 2002, p. 21).

Talvez ela se importasse mais em se perceber como aluna ‘de carne e osso’

presente como qualquer outro daquela sala.

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Foto 25 - Atividade de matemática entregue à Sofia pela Duquesa

Foto 26 - Produções de Sofia em relação à atividade.

Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2004 Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2004

A Duquesa separa o material dourado para revisar as ordens e classes. Todos os

alunos contribuem com perguntas e respostas, com exceção de Sofia. Quando eu

digo para ela prestar atenção, responde: “Não!”. E volta a pintar.

A falta de planejamento da Duquesa com a Bia torna o processo de

ensinoaprendizagem mais complexo para Sofia. As professoras não ‘falam’ a mesma

língua e parecem trilhar caminhos cada vez mais distantes. Sofia não se interessa

pelas tarefas da Duquesa e o contrário também parece ser verdadeiro.

Quinta-feira, 14 de Agosto de 2014

Não era extraordinário estar viva naquele momento e ser personagem de uma aventura

maravilhosa como a vida?(GAARDER, 1995, p.16).

A aula começa normalmente às 13h. Quando cheguei à 13h20min, a sala de aula ao

lado estava sem professor e uma aluna chorava muito dizendo que um aluno havia

batido nela. Desci com a criança que chorava para a coordenação e, ao chegar lá,

deparei-me com Bia. Logo começou a conversar comigo:

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Bia não parava de falar e, quando quis justificar a minha ausência, completou:

Bia estava tão afoita que mal me deixava falar. “Que legal!” – eu disse. Ela

completou:

Bia falou por mais uns dez minutos e, então, pedi licença para retornar à sala de

aula. “Vai lá, tudo bem! Depois conversamos!” - disse ela com o ar de quem gostaria

de continuar a desatar os seus nós, muitos deles cegos!

É como querer tapar o buraco de uma toupeira. Você pode até conseguir, mas com certeza ela

virá à superfície em algum ponto (GAARDER, 1995, p. 466).

Ao chegar à sala, os alunos estavam fazendo recortes em encarte de supermercado.

Com o objetivo de aprofundar os conhecimentos sobre adição dos números

Bia: “Por que você não veio ontem? Você precisava ver como a aula foi boa. A

Duquesa não veio e eu assumi a turma. E fiz uma aula inclusiva. Você precisava

estar aqui...” – disse entusiasmada.

“Eu brinquei com eles a música de Dona Baratinha. Fiz todo o teatro. E você

precisava ver como Sofia participou. Cantou, brincou com as outras crianças. Quando

terminei, perguntei aos alunos. Quem quer ser a Dona Baratinha? Quatro alunos

disseram que sim, inclusive Sofia. E quando ela disse que queria os demais alunos

gritavam: “ela não sabe, tia! Ela não sabe!”. “Sabe, sim! – eu dizia e Sofia veio e se

divertiu muito.”,

“Sabe, eu tenho deixado a desejar com o meu papel de orientação aos professores.

E vejo também falta de vontade por parte deles. Tô preparando um material para

ajudar, mas tem professor que não quer; que faz de bobo. Tem professor, então, que

parece ser bipolar. Tem gente que tenho até medo de falar e achar ruim... Menino,

você viu a morte de Eduardo Campos? Você precisa ver, tem professor que faz

gracinha com isso. Não pode! O cara deixou um filho Down de 7 meses. Por falar em

política, queria te convidar...”

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decimais, a tarefa proposta pela professora era recortar valores de produtos que

somassem R$ 70,00. Enquanto os alunos faziam recortes, Sofia estava desenhando

e pintando. Sentei-me próximo a ela e perguntei:

Sofia continuou a desenhar, não respondeu. Estávamos sentados nas primeiras

cadeiras da fila e a Duquesa sugeriu que fôssemos para o fundo da sala, com o

discurso de que ficaríamos mais à vontade.

Apesar de discordar, fui para o fundo da sala por vontade da Sofia. Lembrei-me do

ponto cego! Das visibilidades que incomodam. Nas vontades de ter todos os

problemas afastados. E, quanto a ser filmado, desconhecia tal fato, porém depois

obtive essa informação, conforme abaixo explanado.

A escola ganhou uma verba que deveria ser utilizada pois, caso contrário, seria

devolvida. O colegiado decidiu pela compra de câmeras e pela instalação delas em

sala de aula, com o argumento de aumentar a segurança.

Alguns professores questionaram sobre a ‘legalidade’ dessas câmeras em sala de

aula e dessa vigilância permanente. É claro que esse sistema panóptico abalaria as

estruturas dos sujeitos que, vigiados, policiariam os seus próprios atos.

Entretanto, a diretoria do colegiado justificou-se argumentando que as câmeras não

eram para filmar o professor, pois estavam posicionadas em um ângulo em que o

Jan: Você não trouxe o encarte?

Sofia: Não!

Jan: Por quê?

Duquesa: Ou você não quer ser filmado?[riu]

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mesmo não seria visto, e sim inibir comportamentos inadequados dos alunos, como

quebra de carteiras, pichações entre outras possibilidades.

Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanentemente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; [...] que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce (FOUCAULT, 2013, p. 191).

Algumas vezes adentrei a sala e as câmeras estavam voltadas para o teto, e depois

de algumas contendas ocorridas na escola, os professores foram comunicados de

que elas foram desligadas, mas que não comentassem aos alunos.

- É verdade mesmo que ninguém pode nos ver?

- Só aqueles que são iguais a nós. Talvez encontremos alguns deles (GAARDER, 1995, p.

521).

No fundo da sala, Sofia continuou a desenhar e a Duquesa entregou uma atividade

para diferenciação de números e letras. Sofia fez a atividade corretamente. A

professora aproximou-se e explicou um segundo exercício, porém Sofia não se

interessou.

Em seguida, uma nova tarefa lhe foi entregue: a de ligar pontos enumerados para

formar um desenho. Auxiliei Sofia na sequência numérica e perguntei: “o que

formou?”, ela disse: “uma maçã!” E era mesmo uma maçã, um pouco diferente,

quase única. Sofia ficou a pintar até a hora do recreio.

Após essa atividade, houve o recreio e, no retorno do recreio, as professoras do 3º e

4º anos juntaram as turmas para que assistissem ao filme “Pato Donald no país da

matemágica”.

Sofia ficou algum tempo parada, sem dizer nada. Virou-se algumas vezes e não sossegou

enquanto não tinha examinado a sala por todos os ângulos (GAARDER, 1995, p. 213).

Sofia pareceu não estar à vontade quando as turmas foram unidas, provavelmente

por ter quebrado a sua rotina. Sentou-se bem na frente, muito próximo à porta.

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Sentei-me em uma cadeira próxima à sua e disse: “Preste atenção ao filme”. Sofia

séria respondeu: “Tô prestando!” No entanto, em momento algum Sofia olhou para o

vídeo.

De certa forma o curta não exerceria tanto fascínio sobre qualquer uma daquelas

crianças a não ser pelo fato de ser um desenho animado, pois os temas comentados

não eram familiares a eles, bem como às professoras que, ao final, solicitaram que

fizesse comentários a respeito do filme. Algumas crianças fizeram algumas

perguntas a respeito das diferenças entre quadrados e cubos, retângulos e

paralelepípedos. Após a explicação, a Duquesa comentou:

Terça-feira, 19 de Agosto de 2014 (dia do planejamento)

Nós mesmos contribuímos para o que sentimos e percebemos, pois somos nós que escolhemos

aquilo que nos é importante (GAARDER, 1995, p. 488).

A convite de Bia aceitei acompanhar o planejamento semanal realizado com os

demais professores. Cheguei à sala do AEE e logo perguntei:

Tá vendo, disso eu não sabia! Acho um despropósito essas crianças não terem um

professor especialista de matemática para elas. A gente não sabe tudo!

Jan: É hoje o dia do planejamento com os professores das séries iniciais?

Bia: Sim, mas hoje eu não vou fazer!

Jan: Mas, por que, pode me dizer? Bia: Porque estou cansada! Além das inúmeras coisas que tenho que fazer e as

inúmeras coisas que os professores têm que fazer, como o tal realinhamento, colocar

pautas em dia, planejamento, ainda fico sendo maltratada, mal respondida...

Jan: Como assim?

Bia: Outro dia fui sentar com ‘quem você sabe quem’ e convidei para planejar, e ela

disse “Agora não posso, eu tenho as minhas coisas para fazer.” Como se planejar

não fosse uma dessas coisas.

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Bia lamentou o modo grosseiro como foi dada a resposta, desestimulando o seu

trabalho e como se esse planejamento não fizesse parte das ‘coisas que ela tem a

fazer’. Assim, Bia comentou que esperaria o encerramento do trimestre para reiniciar

o planejamento coletivo.

Já na sala dos professores, em que deveriam estar planejando, sentei-me junto a

eles e comecei a observá-los. Eram quatro professores que ficaram conversando

amenidades por quase duas horas. Quando faltava meia hora para o recreio dos

pequenos, um dos professores se levantou e disse: “Vou para o meu cafofo terminar

minhas coisas!”. Outra professora a acompanhou e ambas foram para a sala de

planejamento.

Apesar da vontade de acompanhá-los, o não convite demonstrou que minha

presença não era necessária. De qualquer forma, esse fato trouxe uma lembrança

do tempo ocioso desperdiçado, da quantidade de vezes que se fica a ‘bater papo’

com os colegas nos horários destinados aos planejamentos. Porém, quando se é

questionado sobre alguma pendência devida à escola, culpa-se a falta de tempo.

“[...] mais importante do que a busca de uma VERDADE com letras maiúsculas era a busca

por verdades que são importantes para a vida de cada indivíduo (GAARDER, 1995, p. 404).

Segunda-feira, 25 de Agosto de 2014

Somente quando agimos, e, sobretudo, quando fazemos uma escolha, é que nos relacionamos

com nossa própria existência (GAARDER, 1995, p. 405).

Em companhia de Sofia em uma das mesas da sala do AEE e, enquanto Bia

preparava o material, ela quebra o silêncio:

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Sofia escolhe entre as letras e pega a letra E.

-Não somos nós que podemos ser irônicos. Nós não passamos de vítimas indefesas de tal

ironia. Quando uma criança faz um desenho numa folha de papel, não podemos perguntar ao

papel que desenho é aquele (GAARDER, 1995,p. 396, grifos do autor).

Minha preferência era que Bia permitisse que Sofia desenhasse o que era de sua

vontade para, a partir desses desenhos, contextualizá-los de forma a descobrir o

motivo de fazê-los e, ao mesmo tempo, procurar ensinar os conteúdos necessários

para sua alfabetização ou sua numeralização. Contudo, a postura de Bia

demonstrava a dificuldade em agir diferente. Não existia o processo de se libertar

das amarras da educação formal, nem a percepção de que “[...] a implantação

Sofia: Hoje eu vou na casa do André.

Jan: Quem é André?

Sofia: A mãe chamou a atenção dele...

Jan: Por quê?

Sofia: Hoje eu vou na casa do André.

Bia: Você lembra dessas letrinhas?

Sofia: Lembro.

Bia: Qual é a letra A?

Bia: Essa é a letra A?

Sofia: Não!

Bia: Qual é a letra A?

Sofia: Essa! – pegando a letra A.

Bia: Quais são as vogais?

Sofia: A, E, I, O, U – apontando para mim diz: “Ele é feio. Ele é um zumbi.

[...]

Sofia: Vou desenhar Zezé e Luciano.

Bia: Depois você desenha. Diz pra mim “A” de que?

Sofia: A de avião.

Bia: Então, desenhe um avião.

Sofia: Vou desenhar um avião e uma escada.

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massiva de ensinos normalizados tornou impossíveis ou invisíveis as relações

intersubjetivas da aprendizagem tradicional” (CERTEAU, 1994, p. 262).

Com isso, qualquer pretensão de engessar sentidos ou de estabelecer

trilhos de pensamentos a serem seguidos é, sumariamente e todo tempo,

violada pelos movimentos das redes cotidianas de saberesfazeres, que

produzem danças e deslizamentos de significados impossíveis de serem

previstos ou controlados (FERRAÇO, 2008, p. 17).

Porém, Sofia permitia perder-se quase o tempo todo e talvez não fosse ela a

“perdida”. Isso porque a preocupação por não conseguir ensiná-la era visível, visto

que os caminhos dela ainda não tinham sido descobertos, significando que os

nossos sentidos permaneciam engessados.

A hora me lembra o tempo que se perdeu

Perder é não ter a bússola

É não ter aquilo que era seu

E o que você quer?

Orientação?

(Confesso – Ana Carolina)

Em continuidade ao trabalho, Sofia escreveu as vogais de acordo com a sequência

usual, desenhou o avião e a escada. Desenhou o sol e disse que era amarelo,

nuvens azuis e coração “amarelo”. Nesse momento, Bia comenta: “Eu, hein!

Amarelo? Isso é vermelho!” Sofia não disse nada, ficou um bom tempo em silêncio e

de repente:

Sofia: Eu, hein! Vou desenhar Luan Santana. Eu tô pintando o avião!

Bia: Que cor?

Sofia: Amarelo.

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Foto 27 - O avião, a escada e a casa produzidos por Sofia.

Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014

Bia começa a fazer perguntas para que Sofia relate um pouco da sua vida, da sua

rotina:

Bia ficou em silêncio. E Sofia completou:

Sempre que se refere à mãe, Sofia utiliza a terceira pessoa. Nunca ouvi dizer “minha

mãe”, mas sempre “Dona Júlia”. Algumas vezes sente a necessidade de que sejam

feitas perguntas para ela mesma responder, como aconteceu no diálogo “Quem

mais? Pergunta!” Essa atitude causou certa surpresa, pois denotou o seu interesse

por aquela informação.

Bia: De quem é essa casa?

Sofia: Dona Júlia! [referindo-se à mãe].

Bia: Quem mais?

Sofia: Vitória [referindo-se à irmã]

Bia: Quem mais?

Sofia: Sofia [referindo-se a ela mesma].

Sofia: Quem mais? Pergunta! Bia: Quem mais?

Sofia: Felícia! Jan: Quem é Felícia? Sofia: De Chiquititas.

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Nesse momento, Bia separa um material numérico associado a quantidades (1, 2, 3,

4 e 5) mostrando e repetindo algumas vezes com Sofia. “Agora só você”, diz Bia,

mostrando os números enfileirados na ordem começando pelo 1.

Foto 28 - Bia ensinando Sofia a contar.

Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014

Sofia apenas diz os números, sem se preocupar com as quantidades.Bia manifesta

o desejo de continuar o trabalho com Sofia no próximo ano. Contudo, relata sobre as

dificuldades encontradas em trabalhar com os professores dessa escola e comenta

também sobre o trabalho realizado no ano anterior, lamentando que nem todos

estão comprometidos com a Educação Especial ou Inclusiva. Mostra preocupação

com a continuidade do trabalho com Sofia.

Você está tão acostumada com um evento se seguindo ao outro que acha que ele vai acontecer

todas as vezes (GAARDER, 1995, p. 295).

É possível entender bem a tristeza e a decepção estampadas nos olhos de Bia, bem

como fazer algumas previsões, caso ela não permaneça na escola. Realmente, há

Bia: Vamos aprender os números?

Sofia: 2, 3, 4.

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poucos profissionais que acreditam na Educação Inclusiva ou que agem para poder

acreditar, pelo menos, nessa possibilidade. Assim, é perfeitamente possível temer

também pelo futuro de Alices e Sofias para os próximos anos. É visível o

envolvimento de Bia com a causa e, às vezes, seu comportamento lembra o de o

Dodo na sua corrida-caucus:

Sim, Bia, todos ganham no seu tempo e todos são premiados. Uma pena que nem a

todos é garantido o direito de alcançar a linha de chegada, apesar de reconhecê-los

como vencedores. Agora já posso afirmar que começo a compreender o significado

de serem especiais.

É nesse sentido que entendemos as práticas curriculares cotidianas como

‘multicoloridas’, pois suas tonalidades vão depender sempre das

possibilidades daqueles que fazem e das circunstâncias nas quais estão

envolvidos (ALVES; OLIVEIRA, 2005, p.97).

Porém, nem tão carregado de cores assim como deveria ser, pois às vezes não

passam de variações nos tons de cinza, uma vez que ainda há uma penumbra que

obscurece muitos olhos.

Após a conversa e essa constatação, Bia continuou a desenvolver trabalhos com

Sofia, na tentativa de numeralizá-la. Quis usar o computador, mas a escola estava

sem o responsável pelo laboratório de informática, lamentando, assim, a ausência

quase que permanente desse profissional.

Bia: Todos ganham com a Educação Inclusiva!

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Foto 29 - Sofia colorindo atividades de numeralização

Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014

Enquanto Sofia realiza as atividades propostas, Bia a convida para cantar e começa:

“Mariana conta um, Mariana conta um...”

Bia lamentava com razão sobre o ‘descaso’ dos governantes com a educação e em

particular com a educação inclusiva. Apesar disso, sempre demonstrou interesse em

articular várias atividades para o aprendizado de Sofia. A preocupação de Bia em

relação à continuidade do trabalho era realmente tocante. Por um lado, Sofia poderia

não se adaptar a essa quebra abrupta de sua rotina, por outro existia o receio sobre

a postura de um novo profissional ainda não conhecido.

Quarta-feira, 27 de Agosto de 2014

Não nascemos com expectativas já prontas acerca de como o mundo é, ou de como as coisas se

comportam no mundo. O mundo é como é, e nós vamos experimentando isso pouco a pouco

(GAARDER, 1995, p.297).

Enquanto Bia prepara o material, Sofia fica rabiscando o papel cantando: “Mariana

conta um, Mariana conta um...” Entre frases desconexas, canta outro refrão de outra

música: “Não quero dinheiro, eu só quero amar...”

Bia: A gente tenta usar de vários recursos, mas nem sempre é possível. [Lamentou].

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A música de Tim Maia, ouvida na própria escola, faz parte de uma apresentação que

estava sendo ensaiada no palco do pátio para a mostra cultural. Às 10h47min, Bia

convida Sofia para iniciar a aula e, enquanto o vídeo “carrega”, Sofia: “Não quero

dinheiro, eu só quero amar, só quero amar...”

O vídeo começa. Trata-se de uma animação em que um fantoche semelhante a um

macaco interage com quem o assiste. Sofia repete as falas pedidas pelo macaco

fazendo a mesma entonação na voz. Por final, responde ao beijo e ao tchau do

macaco.

Bia passou outro vídeo que pareceu ser mais interessante para Sofia. Tinha uma

música suave e desenhos de animais. Sofia acompanha e canta a música,

ensinando contar de um até dez.

1 sol brilha no céu

2 gatos sobem na árvore

3 vacas andam no pasto

4 peixes nadam na água

5 pombas voam no horizonte

6 crianças brincam na areia

7 flores crescem no vaso

8 galos ciscam no chão

9 borboletas voam no ar

10 abelhas fazem mel ...

1..2... 3... 4... 5... 6 ...7.. 8... 9 ....10

Bia explora o vídeo com Sofia até que ela perde o interesse e começa a não prestar

mais a atenção e a responder de qualquer jeito. Bia finaliza o vídeo e a convida a

desenhar os elementos apresentados.

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Enquanto desenha, Sofia começa a cantar uma música com palavras estranhas ao

meu ouvido.

Sofia olha para o sol no vídeo e comenta:

Ao lado do sol, Sofia desenha o número 4.

Bia: “Quantas abelhas fazem mel?”

[Perguntou a Sofia, fazendo a interpretação do vídeo].

Sofia [olhando para mim]: Quantas abelhas fazem mel?

Jan: No vídeo tinha 10 abelhas!

Sofia: “No vídeo, tinha 10 abelhas!” [repetiu Sofia para Bia].

Jan: “Que música é essa?” – perguntei

Sofia: É de Lady Gaga!

Jan: Quem te ensinou a cantar em inglês?

Sofia: Eu canto pela internet.

Jan: Você tem internet em casa?

Sofia: Dona Júlia!

Sofia:Tá faltando o olho!

Jan: Mas o sol não tem olho! [provoquei]

Sofia: O meu vai ter olho!

Jan: Que número é esse?” – perguntei.

Sofia: 7.

Jan: Não! Esse é o número 4.

Bia intervém e diz: É somente “um sol que brilha no céu...” Faça o número 1!

Sofia: Mas eu quero pintar!

Bia: Mas por quê? Este é o número 4!

Sofia: Mas o sol tem olho.

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Bia avança o vídeo e agora Sofia deve desenhar a cena “dois gatos sobem na

árvore”. Sofia desenha e Bia pergunta:

Foto 30 - O sol com olhos e os dois gatos que sobem na árvore

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Bia olha entristecida, parece não compreender o que se passa na cabeça de Sofia.

Porém não esmorece, deixa que Sofia pinte até acabar a aula.

Quinta-feira, 28, de Agosto de 2014 .

É que estou mudando o tempo todo. Por exemplo, não sou hoje a

mesma Sofia de quatro anos atrás. Meu humor e a forma como eu

mesma me vejo modificam-se de um minuto para outro. É como se de

repente eu passasse a ser outra pessoa, completamente diferente

(GAARDER, 1995, p. 292-293).

A professora está aplicando avaliação de língua portuguesa. Até o momento Sofia

não chegou. Não compareceu nesse dia. A professora então começa a lamentar as

faltas de Sofia.

Bia: Quantos gatos sobem na árvore?

Sofia: 10.

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Esperei mais um pouco e como não havia indícios de que chegaria, desci para

verificar o porquê de Sofia não ter aparecido. Fui falar com Bia.

Ela disse que na segunda-feira à tarde Sofia chegou à escola e foi direto para o

AEE. Mas, quando pediu a Sofia subir para a sala de aula, ela começou a chorar

muito dizendo que não queria ir. Bia, então, acompanhou Sofia até a sala e, ao

chegar lá, Sofia apontou que gostaria de ir para a sala ao lado, outra turma.

O comportamento de Sofia descrito por Bia era incomum. Bia relatou que

ultimamente estava acontecendo com regularidade.

Quarta-feira, 3 de Setembro de 2014

Ah... ela não queria mais pensar sobre isso. Talvez sua mãe tivesse mesmo razão quando dizia

que ela andava um tanto fora do ar nos últimos dias (GAARDER, 1995, p. 93).

Na chegada, encontrei Bia dando comida na boca de Sofia porque quando ela se

alimenta sozinha perde muito tempo com distrações.

Duquesa: Ela falta muito, quase não vem!

Bia: Acredita que a professora não demonstrou a menor simpatia?” [lamentou Bia],

“nunca tem tempo para planejar comigo, [completou].

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Enquanto Sofia é alimentada por Bia, fala frases conectadas com sua realidade

ainda difusa para nós, sem continuidade, sobre ladrões, celulares e portão de casa.

Bia tenta contextualizar os fatos, contando histórias e buscando significado em todo

aquele emaranhado de falas nem sempre entendidas.

Enquanto fala, Sofia parece viajar em seus pensamentos e nos convida a viajar com

eles.

Em poucos minutos, Sofia volta sorridente:

Jan: Bom dia!

Sofia: Gabriela tá machucada!

Jan: Como ela se machucou?

Sofia: Acho que eu tô com o pé quebrado!

Jan: Não tá não!

Sofia: Acho que eu tô com o pé quebrado!

Bia: Não tá! Quando a gente tá com o pé quebrado a gente não consegue colocar

o pé no chão.

Sofia: Eu tava no ônibus.

Sofia: A polícia chama a atenção da gente!

Bia: Isso, chama sim! E ela prende o ladrão também!

Sofia: É! Roubar o cachorro!

Bia: É, roubar o cachorro!

Sofia: A polícia pega eles.

Sofia: Rouba DVD!

Bia: Que DVD?

Sofia: De Aline Barros.

Bia para Jan: Você observou a quantidade de comida que ela come? Vamos lavar

a boca?- convidando Sofia ao banheiro.

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Nesse momento, Bia adentrou a sala nervosa:

Foi observado novamente junto à Bia sobre a dificuldade do autista em entender

certas situações, emoções e convenções sociais. Porém, a receptividade não foi

boa, contra-argumentando que Sofia sabia reconhecer tais situações.

Bia retoma a atividade da aula passada e começa a brincar com os desenhos feitos

por Sofia, a começar pelo sol, mostrando para ela.

Sofia se lembrou de minha fala da aula passada. Bia não respondeu. E então ela

continuou.

Sofia: Deixei a feiosa lá!

Jan: Ela é feiosa?

Sofia: O ladrão rouba o celular para ouvir música! [disse Sofia, com um sorriso].

Jan: Que ladrão?

Sofia: Luan Santana!

Jan: Ele é ladrão?

Sofia: Não! Ele é bonzinho! O ladrão rouba a mochila.

Bia: Sofia, você não pode dizer que a pessoa não tem braço! [Bia referia-se a uma

funcionária da escola que não tem um dos braços] Ela ficou triste!

Sofia: Ela ficou triste! (repetindo baixinho como se fosse para si mesma).

Jan: Você sabe quando a pessoa tá triste?

Sofia: Ela chora!

Sofia: O sol tem olho?

Sofia: O sol tem boca? Ele fala?

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Bia encostou o desenho do sol em seu rosto, como se usasse uma máscara, e

começou a conversar com Sofia.

Bia não respondeu às perguntas de Sofia sobre o sol e os seus sentidos. Será que

não seria nesses momentos de curiosidade que Sofia aprenderia? Sofia continuou a

verouvir o vídeo, a pintar e a desenhar até o término da aula.

Durante as aulas seguintes, Bia continuou a trabalhar com Sofia a música dos

bichinhos e os números. Sofia ilustrava cada um daqueles versos em meio a

atividades de numeralização, alfabetização e o aprendizado de cores. No final, as

produções de Sofia foram fixadas nas paredes do AEE.

Foto 31 - Ilustrações da música

Bia com cara de Sol: Eu sou o sol e brilho no céu!

Quantos sol brilha no céu?

Sofia: Um!

Bia: Muito bem! Agora é você! Fala com o tio Jan.

Sofia com cara de sol: Oi, eu sou o sol.

Jan: Olá, sol, de que cor você é?

Sofia: Não! Você tem que perguntar: “Quantos sol brilham no céu?”

Jan: “Quantos sol brilham no céu?”

Sofia: Um!

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Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Foto 32 - Um bingo para Sofia Foto 33 - Bia ensina números a Sofia por meio de jogos na internet

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Fonte: Arquivo do Pesquisador, 2014

Foto 34 - Acerte o alvo Foto 35 - Brincando com as notas musicais

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Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014 Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O triste de tudo isso é que, à medida que crescemos, nos acostumamos não apenas com a lei

da gravidade. Acostumamo-nos, ao mesmo tempo, com o mundo em si (GAARDER, 1995, p.

29).

Por um período de quase 40 dias, a Duquesa teve problemas de saúde e precisou

se afastar de suas atividades laborativas. Em todo esse tempo, as crianças ficaram

sem professor substituto e as aulas presenciais eram somente de Arte e Educação

Física, com horário especial, frequentando a escola somente um dia da semana.

- Posso sentir o fogo da minha indignação ardendo em fortes labaredas (GAARDER, 1995,

p.392).

Eu também Sofia. Isso é de deixar qualquer pessoa indignada. Com certeza, Alice,

que também já havia passado por isso, também se sentiu assim. De certa forma,

existe uma permissividade gritante para que tal absurdo aconteça. Porque, embora

pais, mães, diretor, professores e alunos ficassem revoltados com o tamanho

descaso, nada foi resolvido até que a Duquesa voltasse e assumisse a turma.

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- Às vezes é constrangedor ver tudo o que as pessoas engolem sem reagir (GAARDER, 1995,

p. 491).

Com a aula começando às 13 h, a professora iniciou a sua tarde justificando as suas

faltas. Aparentando simpatia com a turma, convidou os alunos a abrir os cadernos

para começar a aula de Matemática. Nesse período, comentou sobre a ausência de

uma colega de trabalho, cuja situação desestruturou um pouco a escola.

Depois das justificativas, avisou os alunos da retomada dos conteúdos de adição,

subtração e multiplicação, pois “estão errando muito ainda”, seguido de “iniciaremos

em pares, o jogo de dominó”.

Nesse contexto, colocou no quadro contas de multiplicação de números, um

problema e avisou que “não era difícil”. Explicou, pacientemente, os dois exercícios,

leu e interpretou para os alunos, dizendo o que teria que ser feito.

Sofia chegou às 13h40min e a professora convidou-a para entrar. “Sente-se aqui na

frente” – disse para Sofia. Porém, assim que me viu, Sofia sorriu e sinalizou para ela

que queria sentar-se ao meu lado. Veio em minha direção e se sentou.

Da mesa, a professora disse que havia trazido um dominó de cores para Sofia,

entregando-me para que jogar com ela. Sentado frente a frente com Sofia, ela

começou a posicionar as pedras do dominó uma após a outra. Tentei iniciar o jogo,

porém sem sucesso.

Dessa forma, a opção foi observar Sofia na sua arrumação de pedras enfileiradas,

que mais parecia ser uma organização de peças do que o iniciar de um jogo, e

também pensar de que forma poderia incitá-la para um interesse além da atividade

Duquesa: “A coordenadora começou a criar caso”; “os alunos foram dispensados...”;

Isso não pode acontecer...”, [desabafou conosco].

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restrito-repetitiva de desenhar e pintar. E, ao mesmo tempo, refletir sobre o

imperativo da professora: “Trouxe um dominó para você brincar com ela!” O que me

pareceu ser uma “transferência de obrigações”, pois foi a oportunidade de

pesquisar “com” e não o pesquisar “sobre”.

Assim, a tentativa de jogar por alguns minutos, associando cores e números logo

acabou quando Sofia apontou o dedo para o meu caderno. O sinal parecia indicar

que desejava uma folha. Então, perguntei:

Frequentemente, havia uma preocupação para que Sofia se interessasse pelas

coisas do mundo “normal”: aprender a contar, ler, escrever..., somado a uma tristeza

ao imaginar alguém na idade dela sem saber nada disso. Cabe também uma

reflexão sobre a postura da Duquesa, e sobre o trabalho da Bia que, mesmo com

todo o esforço igualmente parecia não obter tanto êxito.

Muitas vezes pode parecer que nada adianta. Por mais que você se esforce, a criança parece não entender o que está tentando ensinar. Saiba: ela pode aprender de maneira diferente ou mais lenta, mas é capaz de conseguir, sim! Insista e discuta sempre com os profissionais novas maneiras e técnicas criativas capazes de trazer o estímulo necessário para que ela consiga aprender de forma mais eficaz. Persistência, perseverança e disciplina são as palavras-chave (SILVA et al, 2012, p. 101).

Na sequência, Sofia pegou a folha e começou a desenhar. Nem sequer olhou para o

quadro. Inconformado, peguei outra folha, escrevi o nome dela e, embaixo, seu

nome pontilhado, Entreguei a folha sem dizer nada. Ela cobriu e pôs-se a desenhar.

A atividade tornou-se mecanizada ou já era assim. Nem eu mesmo sabia por que

havia feito aquilo. Pontilhar e cobrir nomes!

Jan: O que é?

Sofia: Folha!

Jan: Você quer uma folha?

Sofia: É!

Jan: Você vai fazer a atividade do quadro?

Sofia: É!

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Nesse momento, a professora se aproxima e começa uma fala sobre a falta de

assistência do Estado a alunos especiais, e também, mais uma vez, aborda o

apatismo de Sofia e as dificuldades dela relacionadas à concentração e à

aprendizagem, transferindo todas as possibilidades:

[...] no lugar da idéia de dificuldade ou problema de aprendizagem, que, como já foi dito, só se sustenta numa perspectiva da individualidade singular, propomos e defendemos a idéia de possibilidades de conhecimento (FERRAÇO, 2008, p. 17, grifos do autor).

Assim, “as dificuldades” de Sofia em aprender parecem incapacitá-la ao

desenvolvimento de possíveis conhecimentos. Mais uma vez, não se trata de

minimizar as atividades propostas a ela, e sim provocá-la em torno de suas

habilidades. Além disso, a Duquesa demonstra, por meio de sua fala, desconhecer

metodologias para ensiná-la, ao mesmo tempo, cita e compara ao seu aluno autista

da outra rede em que trabalha.

Apesar de concordar com a Duquesa sobre a precária assistência dada aos nossos

alunos, porém não fiquei à vontade quando mais uma vez a professora inicia o seu

processo de comparação. Porque, como educador, é fundamental lembrar-se de que

cada ser é único, uns com mais facilidades, outros com mais fragilidades...

Para ela, “A família de Sofia não tem o mesmo envolvimento”. E o monólogo se

prolongou por quase meia hora acerca de “seus problemas” e de alguns “problemas”

com os colegas de trabalho. Enquanto isso, os alunos continuavam a realizar as

Duquesa: Meu aluno aprende com facilidade, a família dele se envolve. Ele tem

atendimento com o fonoaudiólogo e tem um assistente em sala de aula...

Duquesa: Já tentei ensiná-la por várias vezes, mas ela não responde aos meus

estímulos!” [lamentou]

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atividades propostas no quadro e Sofia, ao nosso lado, continuou a fazer aquilo que

mais lhe parece agradar: desenhar e pintar!

Após corrigir, no quadro, os exercícios, a professora escreveu mais um

“probleminha” de subtração. Nesse momento, uma aluna foi chamada na porta da

sala pela coordenadora para receber um recado da mãe que estava lá fora e queria

falar com ela.

Ao sair da sala [a aluna], a professora começou a falar sobre os problemas que teve

com ela e, solicitou aos alunos que confirmassem. “Não foi, gente?, Não foi desse

jeito?” Quando a aluna voltou, a professora perguntou do que se tratava. Bateu o

sinal e fomos para o recreio.

Quarta-feira, 22 de outubro 2014

Qual a coisa mais importante da vida? Se fazemos esta pergunta a

uma pessoa que está num país assolado pela fome, a resposta será: a

comida. Se fazemos a mesma pergunta a quem está morrendo de frio,

a resposta será: o calor. E quando perguntamos a alguém que se sente

sozinho e isolado, então certamente a resposta será: a companhia de

outras pessoas (GAARDER, 1995, p.24).

Algumas quartas-feiras, Bia entra na sala de aula com o objetivo de trabalhar a

“inclusão” e a socialização de Sofia e, também verificar o “nível cognitivo dos alunos

com deficiências e orientar o professor com práticas inclusivas” – palavras de Bia.

Nesta quarta, Bia entrou para tratar de um assunto especial com os pequenos:

pretende desenvolver na escola uma apresentação com os alunos com a

participação de todos.

Bia comentou com a Duquesa que precisaria de um tempo para conversar com os

alunos e de alguns dias para ensaiá-los. Bia repetiu para mim as palavras ditas pela

Duquesa.

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Foram as ordens da Duquesa, que mais parecia imitar as ordens da Rainha de

Copas, mesmo após Bia explicar o propósito. Parecia que os processos de

negociações entre os alunos, e entre os alunos e os professores não eram tão

importantes quanto os cálculos e gramáticas a serem ensinados e quantificados.

Pobre pedagogia (GALLO, 2012).

Contudo, Bia não compreendeu imediatamente se eram “ansiosos” ou “ociosos”.

Depois, com calma e complementando o diálogo que teve com ela, ficou claro que

se tratava de ociosos. Bia lamentou essa “ideia-quase-certeza” das pessoas sobre

essas atividades diferenciadas extraclasse como “perda de tempo”, ou o famoso

“fulano quer se aparecer”.

As certezas são, desse ponto de vista, inimigas da aprendizagem. Para aprendermos e apreendermos a multiplicidade de elementos constitutivos dos múltiplos espaços/tempos cotidianos, é preciso que neles cheguemos de modo aberto e, tanto quanto possível, despidos de preconceitos, sabendo o quanto isso é difícil (ALVES; OLIVEIRA, 2005, p.90).

Alves e Oliveira (1990) descrevem o ponto crucial dessa questão: as certezas. E são

tantas as que circulam em torno do descrédito a inclusão que se amofinássemos, se

não acreditássemos, se não tivéssemos as nossas certezas que essa convivência

com as diferenças é saudável e positiva, se não nos colocássemos no lugar do

outro... teríamos a sensação de que fosse inviável.

Então, Bia envereda-se pelos caminhos da inclusão, no mundo das suas “certezas”

convidando os alunos a compartilhá-lo.

“Não use muito do tempo da minha aula, não gosto de deixá-los ociosos”.

Bia: Você já ouviram falar de inclusão?

Alunos: Nãaaaaaaaaao![em coro]

Bia: Inclusão quer dizer incluir! É a inclusão do negro, do índio...

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Para caracterizá-la pelos infinitivos (ou pelos imperativos) que pontuam com gestos uma receita, essa operação teorizante se resume em dois momentos: em primeiro lugar, destacar e, depois, pôr do avesso. Em primeiro lugar, um isolamento “etnológico”; depois, uma inversão lógica (CERTEAU, 1994, p. 132-133).

E assim se explicou, destacou com suas palavras, com seus dizeres, com suas

convicções o que para ela seria incluir em seguida, se pôs, impôs, propôs e por

alguns sentidos se ex-pôs (LARROSA, 2002).

“O primeiro gesto destaca certas práticas num tecido indefinido, de maneira a tratá-

las como uma população à parte, formando um todo coerente, mas estranho no

lugar de onde se produz a teoria” (CERTEAU, 1994, p. 133, grifos do autor). Bia

citou vários exemplos até chegar a Sofia, que também estava presente na sala, mas

parecendo não demonstrar algum interesse em suas palavras, como uma estranha,

indiferente, como se ela sozinha formasse uma multidão à parte. Parecendo que os

fios utilizados para tecer aquela teia de conversações não passavam de fios sem

significados.

Eu não quero que justamente você passe a pertencer ao clube dos apáticos e indiferentes.

Quero que você viva uma vida instigante (GAARDER, 1995, p. 30).

Bia: Vocês sabem que Sofia é uma aluna especial. Ela tem uma forma de

aprender diferente de vocês. Vocês já observaram?

Crianças: Sim!

Bia: Sofia precisa bastante da ajuda de vocês. Então, por ela precisar da ajuda de

vocês, vocês acham que ela não deveria estar estudando aqui?

Crianças: Ahan!

Bia: Deveria!

Crianças: Deveria!

Bia: Não é? Por que tem inclusão! Se eu não deixo ela vir, eu estou tirando dela o

direito de conhecer vocês, de ter amigos. Uma pessoa que não tem os braços o

lugar dela a gente pode falar assim: ah, ela não tem os braços ela não vai estudar,

é certo?

Crianças: Não!

Bia: Não! Porque ela tem o cérebro. Ela tem as pernas, o que ela não pode fazer

com a mão, ela pode usar o pé!

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Esse diálogo suscitou risos nas crianças, e ocasionou alguns exemplos de pessoas

que usam a boca. Porém, o destaque, dessa vez, foi Sofia, “o segundo gesto inverte

ou põe do avesso a unidade assim obtida por isolamento (CERTEAU, 1994, p. 133,

grifos do autor). Essa inversão, contudo, não alterou a postura de Sofia, visto que

demonstra indiferença: permanece alheia aos movimentos que acontecem ao seu

redor. As imagensnarrativas agora são provocadas por Bia ao expô-la dessa

maneira.

Imersos nessas complexas redes de valores, preferências, crenças e ressignificações, dos temposespaços vividos, estudantes e educadores inventam metáforas para as questões vividas dentro e fora das salas de aula. Nesses processos de invenção, inúmeros são os caminhos percorridos, os quais, por desafiarem ou mesmo negarem aqueles previstos, são considerados inválidos e não dignos de atenção (FERRAÇO, 2008, p. 31).

Alguns alunos voltam a dar outros exemplos de pessoas que conhecem com

deficiências e que mesmo assim fazem serviços comuns.

Bia: Então, a inclusão é isso! A gente não pode discriminar o outro. “Ah, ela não

tem um braço, não vou sentar perto dela”. A inclusão é a gente incluir, dar

oportunidade para todos e sem ficar falando que o outro é negro, o outro é feio, o

outro é narigudo, que o outro tem a orelha grande, não pode, é certo?

Crianças: Não!

Bia: Isso é o que? Bullying!

Crianças: Discriminação!

Bia: Bullying e discriminação! Porque, às vezes, a pessoa tem uma orelha maior

que a outra e se a gente ficar rindo, ela vai se sentir como? Envergonhada, não é?

Triste! Então, que é eu vou fazer? Eu queria saber se vocês concordam! Eu vou

fazer um dia de inclusão aqui na nossa escola, ai, a turma da Vilma, professora do

4º ano, vai apresentar um teatro, vocês uma música, pra vocês mostrar para a

escola que a gente precisa de fazer in?...

Bia: Eu conheço uma menina que lava vasilhas, não tem os braços, linda! Nasceu

sem os braços, ela lava com os pés! E tem um menino que não tem os braços e toca

violino perfeito com os pés!

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Apesar da espera para que as crianças completassem a palavra, algumas delas,

mesmo prestando atenção não responderam, enquanto outras nem sequer olharam.

Ocorre que o desejo de fazer “um dia de inclusão na escola” pode não ter sido a

melhor expressão, uma vez que a inclusão deve acontecer em todos os momentos.

Todos devem ser respeitados também pelas suas idiossincrasias, no entanto, “o

sistema é arbitrário em seu ponto de partida, pois que negligencia, de maneira

regulada, toda diferença e toda identidade que não recai sobre a estrutura

privilegiada” (FOUCAULT, 1999, p. 193). Sofia e Alice estão em desvantagem e,

perceptivelmente, vão de encontro à norma.

Após a entrega da cópia da letra da música para todas as crianças, Bia faz a leitura

com todos.

Ela começa a fazer a interpretação da música. E pergunta aos alunos o significado

de sua letra.

A música começa a tocar e todos cantam junto.

Bia: Inclusão! Então, eu vou passar a música pra vocês, tá bom? E a gente vai

cantar pra depois eu falar como a gente vai apresentar essa música.

Bia: Quem sabe me responder os bichos que aparecem na música?

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É Tão Lindo

A Turma do Balão Mágico

Se tem bigodes de foca

Nariz de tamanduá

-Parece meio estranho, hein!

-Rum!

Também um bico de pato

E um jeitão de sabiá...

Mas se é amigo

Não precisa mudar

É tão lindo

Deixa assim como está

E eu adoro, adoro

Difícil é a gente explicar

Que é tão lindo...

Se tem bigodes de foca

Nariz de tamanduá

-E orelhas de camelo, né tio?

-É!

Mas se é amigo de fato

A gente deixa como ele está...

É tão lindo!

Não precisa mudar

É tão lindo!

É tão bom se gostar

E eu adoro!

É claro!

Bia: O que ele quis dizer com essa música alguém entendeu?

Crianças: Nãaaaao!

Bia: O que essa música quer passar pra gente? Quando ele fala “Se tem bigodes de

foca, nariz de tamanduá...” O que ele quer dizer, fala, Júnior!

Júnior: Não pode discriminar!

Bia: Não pode discriminar o colega, mesmo que ela tenha “bigodes de foca ou nariz

de tamanduá” né, e “orelhas de camelo, deixa assim como está!” Por que a gente

tem que ser o quê?

Crianças: Amigo!

Bia: Então, vocês vão passar isso pra escola todinha que a gente não deve

discriminar as pessoas e sim ser amigo...

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Bom mesmo é a gente encontrar

Um bom amigo...

São os sonhos verdadeiros

Quando existe amor

Somos grandes companheiros

Os três mosqueteiros

Como eu vi no filme...

É tão lindo!

Não precisa mudar

É tão lindo!

Deixa assim como está

E eu adoro e agora

Eu quero poder lhe falar

Dessa amizade que nasceu

Você e eu!

Nós e você!

Vocês e eu!

E é tão lindo!...

-Tio!

-Hein!

-É legal ter um amigo, né?

-É maravilhoso

Mesmo que ele tenha

Bigodes de foca

E até um nariz de tamanduá

-E orelhas de camelo tio, lembra?

-Orelhas de camelo?

-É tio!

-É mesmo, orelhas de camelo!

Mas é um amigo, não é?

-É!

-Então não se deve mudar!

Ao terminar a música, a Duquesa começa a falar sobre amizade, de sua amizade

com os bichos, com as pessoas e de como é importante ter amizades.

Foto 36 - Ensaio da música

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Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Ao explicar a apresentação, Bia diz que os meninos farão a voz do Roberto,

enquanto as meninas farão a voz da Simony. Antes de recomeçar a falar sobre a

música faz algumas perguntas, tentando direcionar todos os sentidos para Sofia.

Nesse momento, as crianças falam baixinho pra ela: “com a bola” para que

repetisse. Porém, Sofia não responde.

Bia: E aqui, quem já conhece a foca? Quem já viu esse animal foca?

Crianças: Eu já vi!

Bia: Você já viu a foca, Sofia?

Sofia: É!

Bia: Como que a foca é, Sofia? Ela é como? Ela se parece com o quê?

Sofia: Um peixe! – responde Sofia depois que os alunos também responderam.

Bia: Um peixe, muito bem! E a foca ela brinca com que brinquedo?

Crianças: Bola!

Bia: Eu quero ver, peraí! Ninguém responde, hein?! Sofia, a foca brinca com que

brinquedo?

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Bia começa a fazer várias perguntas sobre o texto, sempre direcionando a

participação de Sofia, que ora responde ora silencia. Continuaram o ensaio até o

horário do recreio. Bia comentou alegre sobre o envolvimento da professora, que

participou do ensaio, incentivando-os, mesmo tendo pedido para que Bia não

demorasse com a turma.

Bia descreveu alguns momentos junto com a turma para o ensaio e o desenrolar dos

mesmos. Em uma das vezes, decidiram ilustrar a música com os bichos que

aparecem nela, uma garota para representar a Simony, um garoto para representar

o Roberto, Sofia iria representar o tamanduá... Logo o tamanduá: pensei! Será que

mais uma vez seria uma outra forma velada de ser invisibilizada?

A resposta e a risada indicaram que o comentário não foi aceito, além de dizer sobre

o meu modesto conhecimento sobre incluir! “Imagina, se todos de uma novela

fossem protagonistas?” Eis a resposta! Nessa perspectiva, a conversa permaneceu

superficial, sem possibilidade de aprofundamento, pois qualquer tentativa de

justificar a opinião dada, vinha seguida pela ideia, já registrada por ela, sobre a

pouca experiência com inclusão. E, embora o assunto continuasse por várias

semanas, o pensamento da Bia sempre se sobressaiu...

“Ser ou não ser” não seria, portanto, a questão central. O

importante seria perguntar, também, o que somos. Será que somos

pessoas de verdade, feitas de carne e osso? Será que o nosso mundo

Bia: Vamos falar com Sofia, a foca brinca com a...

Crianças: Bola!

Jan: Bia, não acha que seria interessante colocar a Sofia como a Simony, para

mostrar para todos que ela também é capaz? Ou, então, fazer vários casais de

Simonys e Robertos para mostrar que todos podem fazer?

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consiste em coisas reais, ou será que tudo o que nos cerca não passa

de consciência? (GAARDER, 1995, p. 327).

Apesar disso, e devido à importância do tema para esta pesquisa, estive na escola

no dia das apresentações. Era, com certeza, uma excelente oportunidade para

analisar como seria a receptividade no ambiente escolar do trabalho realizado pela

Bia. Porém, apesar do esforço, a decepção se fez presente: a professora da turma

não compareceu e junto com ela, boa parte dos alunos também não, inclusive Sofia.

Em suma, a plateia se resumiu apenas aos alunos “pequenos”, alguns pais e os

professores, cujas turmas estavam se apresentando, dois servidores da secretaria

de educação, sem, contudo, contar com uma efetiva participação de todos os

professores e demais alunos da escola.

Assim sendo, é preciso registrar que Bia demonstrou-se decepcionada com os

resultados, com a ausência e a falta de comprometimento da comunidade escolar.

Este momento é tão importante quanto aquele de estar “enclausurado” em sala de

aula, uma vez que se tratava de um momento também de formação profissional e

formação cidadã, socialização e conscientização sobre as diversas deficiências.

Segunda feira, 15 de Dezembro de 2014.

- Psiu!

- O quê?

- Tem alguma coisa acontecendo também nas entrelinhas. E é

justamente aí que estou jogando com toda a minha astúcia para

conseguir me infiltrar

(GAARDER, 1995, p. 415).

Este dia marcou o final das atividades com Sofia no AEE. Solicitei a Bia permissão

para conduzir uma atividade cujo objetivo era tentar ensinar a Sofia a respeito do

número um e, possivelmente, do número dois. O planejamento consistia no uso do

vídeo “Mariana Conta Um” como atividade motivadora no ensino da contagem.

Nesse dia, porém, não foi possível o uso do computador porque outros professores

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estavam utilizando e, muito embora tenha sido solicitado com antecedência, não

houve cedência alguma. Por isso, optou-se por dialogar com a aluna.

-Você não está passando mal, está, Sofia? Tente conversar comigo por frases inteiras

(GAARDER, 1995, p. 262).

Ficou incompreensível o que Sofia quis dizer com as respostas ‘escuringa’ e ‘direti’,

provavelmente, são palavras que ela ouviu e entendeu de forma errada, e agora

estava repetindo em razão da ecolalia.

Conforme dialogávamos, a aluna se envolvia com minha sacola com alguns jogos

matemáticos. Em certo momento, disse que se fizesse a atividade direito, ganharia

presentes.

O reforço positivo tem por objetivo incentivar o bom comportamento por meio de recompensas. Pode-se usar estrelinhas, passeios ou qualquer coisa que a criança considere compensadora. Explica-se à criança, com clareza, o comportamento desejado para que ela saiba exatamente o que precisa ser fazer para ganhar a recompensa (WILLIAMS; WRIGHT, 2008, p. 95).

Assim, coloquei 1 anel em sua mão e perguntei:

Jan: Você conhece o número 1? Esse aqui é o número 1, olha!

Sofia :Sim, mas você conhece o ovo?

Jan: Conheço, mas você conhece o número 1?

Sofia: É

Jan: Que número é esse aqui? [apontando para o número confeccionado em

EVA].

Sofia: Número 1.

Jan: Oh, o que tem de 1 em mim, minha boca! E em você o que tem de 1?

Sofia: M de “escuringa”!

Jan: M não! 1. Número 1! O que você tem de 1?

Sofia: “direti!”

Jan: Quantos narizes você tem?

Sofia: 1... 2!

Jan: Você só tem 1 nariz! Vou colocar 1 anelzinho em seu dedo, tá?

Sofia: Não vai colocar, não! Não, Senhor!

Jan: Por que não?

Sofia: Porque você é feio!

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Sofia ficou em silêncio observando o anel que eu havia posto em seu dedo. A ideia

de trazer anéis foi inspirada em um material didático desenvolvido pelo matemático

Yokoyama, cujo objetivo era numeralizar crianças com Síndrome de Down. Em sua

palestra ele afirmou que “as crianças precisam sentir as quantidades”.

Sofia continuava sentada, séria, os olhos fixos na mesa. Em algum ponto escondido dentro de

si, porém, não conseguiu deixar de achar graça (GAARDER, 1995, p. 114).

Nesse momento, ela começa a sorri:

De súbito, soltei um ‘crendospai’. Afirmei que não poderia dizer esse nome. As

‘viagens’ feitas com Sofia resultam em refletir que “[...] estamos sempre em

processos de mudança, imersos em redes de saberes e fazeres que não podem ser

explicadas por relações lineares de causalidade, sendo, portanto, imprevisíveis”[...]

(ALVES; OLIVEIRA, 2005, p.87). Sofia é uma caixa de surpresas, um universo

inteiro dentro de uma mente fascinante!

Jan:- Quantos anéis você tem no dedo? Responde!

Sofia: Tenho 5!

Jan: 5 não! Quantos anéis você tem no dedo? Empresta aqui, deixe-me colocar no

seu dedinho.

Sofia: Não! Cabe nesse![...]

Jan: Você achou bonito?

Sofia: Achei!

Jan: Quantos anéis você tem ai?

Sofia: O maior tem 4, 5 e 1!

Jan: Não! Aí só tem 1 anel! Quantos anéis?

Sofia: Você tá achando graça, né?

Jan: Eu não tô achando graça! Hein, quantos anéis têm ai?

Sofia: O pai da minha mãe de um colega falou que não pode xingar esse nome.

Jan: Que nome?

Sofia: Do Satanás!

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A aluna começa a procurar entre as peças o número 1 e, em sua mão, está o

número 2.

Nesse momento, ela pega a peça que representa o número 1.

Jan: Responde! Quantos anéis você tem ai? Responde se não, não ganha outro!

Sofia: É 4, 5.

Jan: Não! Você tem 1 anel. Este aqui é o número 1 [mostrando o número

em EVA].

Sofia:1!

Jan: Isso! Quantos anéis você tem na mão?

Sofia: Dooooois!

Jan: Não! Você tem, olha aqui pra mim. Que número é esse?

Sofia: 5.

Jan: Não! Não é 5! É esse número aqui [mostrando o número 1 em EVA]. Que

número é esse?

Sofia: 1!

Jan: 1! Muito bem! Vamos procurar o número 1 aqui também? [Mostrando um jogo

de quebra-cabeças]. Cadê o número 1 aqui?

Jan: Esse é o número 1?

Sofia: Não, senhor!

Jan: Muito bem! Parabéns! Qual é o número 1?

Jan: Esse é o número 1?

Sofia: É!

Jan: Muito bem! Parabéns! Vamos procurar as peças para encaixar?

[A aluna aponta outro número entre as peças].

Sofia: Esse é o número 9!

Jan: Esse é o número 4! Parece o 9, mas é o número 4!

Sofia: Esse é o número 5!

Jan: Esse é o número 6!

Sofia: Não!!!

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Insisto em perguntar a Sofia sobre os números e ela começa a sorrir. Ela transforma

qualquer ‘seriedade’ de trabalho em misteriosas aventuras. Faz-nos refletir sobre

esses currículos hegemônicos que buscam perpetuar a linearidade das coisas. Ela

nos faz reconhecer e assumir “cada pessoa como tendo diferentes possibilidades de

invenção e partilha de significados, relacionadas a diferentes histórias de vida”

(FERRAÇO, 2008, p. 20).

Eis então que um falar se depreende ou se mantém, mas como aquilo que “escapa” à dominação de uma economia sócio-cultural, à organização de uma razão, à escolarização obrigatória, ao poder de uma elite e, enfim, ao controle da consciência esclarecida (CERTEAU, 1994, p. 252).

A todo instante desejava-se dominar os pensamentos e a vida de Sofia. Normalizá-

la! Ensiná-la a contar como os outros e como já dito certa vez, ‘se conseguirmos que

ela conte pelo menos até dez, já ficaríamos satisfeitos’. Que pensamento pobre e

raso! Que egoísmo reduzir a magnitude de uma estrela ao brilho de uma

lampadazinha incandescente de 10w. Foi preciso compreender o que se passa nos

pensamentos de Sofia para assim compreender que abandonar as práticas

tradicionalistas era necessário. “Não se trata, é claro, de recusá-las definitivamente,

mas sacudir a quietude com a qual as aceitamos; mostrar que elas não se justificam

por si mesmas” (FOUCAULT, 2005, p. 28).

- De fato, vocês são mesmo novidade por aqui. Mas precisamos o quanto antes cortar o

cordão umbilical que os une à sua origem carnal. Aqui não precisamos mais de carne e osso.

Todos nós fazemos parte do “povo invisível” (GAARDER, 1995, p. 529).

Agora era verdade, nós também integrávamos esse “povo invisível”, defensor da

valorização das práticas cotidianas, dos saberesfazeres aos quais estamos

impregnados e nem sempre perceptíveis, e que pretende cortar o cordão umbilical

que nos prende ao engessamento do ensino tradicional e “[...] recuperar a

importância daquilo que não integra as estatísticas para redefinir o próprio

cotidiano”(ALVES; OLIVEIRA, 2005, p.85).

Essa abordagem na diversidade de possibilidades implica tirar o foco dos

sujeitos cotidianos pensados como indivíduos isolados e colocá-lo nas

relações que se estabelecem entre eles. Isto é, a questão do conhecimento

e, em particular do currículo, não pode ser simplificada nem a textos

prescritivos nem a singularidades subjetivas (FERRAÇO, 2008, p. 18).

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Bia intervém e começa a conversar conosco dando exemplos de quantidades. Sofia

não se “prende” aos números e não responde de acordo a nossa lógica.

Nesse momento, Sofia realmente estava com 2 anéis na mão. Bia sorri e elogia:

“Muito bem!”. No entanto, ainda não há garantia de sua aprendizagem. Apenas a

certeza de que ela nos ensinou muito mais do que poderia imaginar.

Em meio a tantas perguntas e promessas, Sofia nos convida ao seu mundo.

Não sabia dizer se era ou se não era, ou se deveria ser. Não sabia exatamente o

que ela ouvia em casa e o porquê dessa pergunta. Penso que, por conviver com

Sofia, durante todo esse tempo, pareceu-me que sua família é religiosa. Então, pela

figura que Satanás geralmente representa, respondi:

Jan: Tia Bia, o que você tem de dois no seu corpo?

Bia: A orelha! Eu tenho 2 orelhas!

Jan: E você, Sofia? O que você tem de 2 no seu corpo?

Sofia: Orelha!

Jan: E o que mais?

Sofia: Orelha também!

Jan: E o que mais você tem de 2?

Sofia: Tem 2 anel!

Jan: Quantos olhos você têm?

Sofia: Dooois!

Jan: E quantos pés você tem?

Sofia: Satanás é palavrão?

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Assim, encerrou-se o diálogo em torno de Satanás. Sofia parecia convencida de que

era palavrão, depois que respondi nas palavras que ela queria ouvir: "é palavrão! "

Voltando à tentativa de numeralizá-la, fizemos algumas perguntas sobre a

quantidade 2. E a conversa foi rodeada de erros, acertos e risadas...

Sofia começa a gargalhar da brincadeira, provocando sorrisos em mim e Bia. De

novo pergunto: “Quer ganhar outro anel?” Ela responde: “É!”. Mas, começa a rir e

não se interessa pela atividade. “Só vai ganhar outro anel se responder à minha

pergunta!” – eu disse.

Jan: É

Sofia: É palavrão?

Jan: É

Sofia: Não é que é palavrão?

Jan: É.

Sofia: É palavrão?

Jan: Sim

Sofia: Fala de que “é palavrão”!

Jan: É palavrão!

Jan: Mostra aqui para o tio o número 2!

Sofia: Eu vou mostrar pro Senhor!

Jan: Então, mostra pro Senhor! Qual é o número 2? Esse aí na sua mão é o número

6! Qual é o número 2?

Sofia: Você tem piolho!

Jan: Não tenho pilho! Você tem?

Sofia [sorrindo]: Tia Bia come piolho!

Jan: Tia Bia não come piolho, tia Bia?

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Em alguns momentos, Sofia e eu parecíamos nos entender. Sofia respondia às

perguntas que eu fazia, ora acertava, ora errava! Ora vivia em seu mundo particular,

no seu Mundo de Sofia. E, por muitas vezes, não aceitei que Sofia pudesse viver

nesse mundo tão singular. Queria arrancá-la de lá e trazê-la à nossa realidade, à

minha racionalidade.

Somos um planeta vivo, Sofia! Somos um grande barco navegando ao

redor de um sol incandescente no universo. Mas cada um de nós é um

barco em si mesmo, um barco carregado de genes navegando pela vida.

Se conseguirmos levar esta carga ao porto mais próximo, nossa vida

não terá sido em vão (GAARDER, 1995, p. 456, grifos nossos).

Sofia tinha seu barco carregado de genes também diferenciados como qualquer

pessoa. Sofia é humana e assim sendo não precisava ser comparada: “Meu aluno é

o oposto dela!” Essa frase ecoava em meus ouvidos..., bem como o desânimo batia

nas costas. Senti-me cansado, vencido. Seria preciso dar razão à Duquesa pelas

frias palavras ditas?! Melhor seria ter descoberto o caminho para chegar até o

mundo de Sofia, como fez o professor de Temple Grandin. Ele havia descoberto o

caminho para chegar até ela...

Sofia: Eu não tô rindo de graça!

Jan: Nem eu tô rindo de graça, também!

Sofia: Seu feio!

Jan: Sua bonita!

Sofia: Seu feio!

Jan: Você é linda!

Sofia: cagão!

Jan: Eu não...

Sofia: Você é o goleiro.

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Desse convívio, pode-se inferir que a tentativa para que ela respondesse sempre às

nossas perguntas, ‘às nossas verdades’, aos nossos anseios, muitas vezes passam

por cima das perguntas que Sofia gostaria de fazer, das ‘verdades’ que ela quer

mostrar e das respostas que anseia ouvir. Na busca de trazê-la à nossa realidade,

ela nos fornece pistas das suas múltiplas realidades, numa tempestade de

perguntas, num furacão de frases nem sempre entendíveis. Enquanto brinca com o

quebra-cabeça, Sofia começa a fazer perguntas e comentários.

Sofia recebeu uma atividade para pintar somente onde houvesse o número 1.

Porém, ela pintou aquilo que teve vontade de pintar, não seguindo as minhas

orientações. Logo perguntei:

Jan: Quantos lápis eu tenho aqui?

Sofia: Rosa!

Jan: Quantos?

Sofia: Não, rosa!

Jan: É rosa, mas são quantos? Um ou dois?

Sofia: Dois!

Sofia: Quantos morangos eu tenho aqui?

[...]

Sofia: Você come pipoca?

[...]

Sofia: Não, Senhora, nada!

[...]

Sofia: Eu não sou feia!!!

[...]

Sofia: Eu não tô brincando...

[...]

Jan: Você quer pintar?

Sofia: É!

Jan: Então tá, pinte este desenho aqui!

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Sofia não deu importância para o que eu falei e continuar a pintar do seu jeito.

Questionei:

Assim, por não ter feito a pergunta corretamente, obtive a resposta: “12 horas”.

Foto 37 - Materiais pedagógicos utilizados nessa tarefa

Fonte: Arquivo do pesquisador, 2014

Mesmo que seja difícil responder a uma pergunta, isto não significa que ela tem uma – e só

uma- resposta certa (GAARDER, 1995, p. 25).

Jan: Você não vai pintar onde eu falei?

Sofia: Tô fazendo a tarefa!

Jan: Mas não foi aqui que eu falei pra pintar?

Sofia: É!

Jan: Você não vai pintar o “Cebolinha” e o número 1 não?

Jan: Que horas você vai pintar o que eu falei?”

Sofia: 12 horas!

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Na sequência, Sofia recebeu atividades que mais gosta de fazer: pintar! E em meio a

tantos desenhos e pinturas dialogávamos: eu, com o objetivo de ensinar algo, e ela,

com sua ingenuidade, nem se preocupava comigo ou com algo ao seu redor,

ensinando, dessa forma, que há coisas bem maiores do que saber contar... Em meio

às atividades, Bia expõe sua opinião:

Bia surpreendeu ao fazer a comparação entre seus alunos, o que de certa forma,

provocou-me reflexões. Aquelas mesmas que eu fazia quando a Duquesa os

comparava. Não havia necessidade disso. Sofia é única, singular, ímpar!

Ao prestar atenção ao que Bia dizia, concordando e avaliando a nossa tentativa de

numeralizá-la. Sofia pintando, de repente, se manifesta:

Talvez você não ache muito confortável a ideia de “perder-se a si

mesma”, Sofia. E eu entendo você. Mas o ponto é o seguinte: o que

se perde é infinitamente menor do que aquilo que se ganha. Você se

perde nesta forma que você tem agora, mas ao mesmo tempo

compreende que você é algo infinitamente maior. Você é o universo

inteiro (GAARDER, 1995, p. 154).

Bia: Sabe o que eu achei? Você trouxe muita informação. Você quis ensinar o número

1, o número 2 e trouxe 4 anéis. Muita atividade. Eu tenho outro aluno autista e pra ele

eu já ensinei até 10. E ele aprendeu. Ela, devido à deficiência intelectual, tem que ser

mais devagar. Cada autista tem seu jeito.

Sofia: Ela é a cara da riqueza!

Bia: Quem?

Sofia: Você!

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5 E AGORA VOCÊ PRECISA SE DECIDIR, QUERIDA SOFIA: VOCÊ É UMA CRIANÇA QUE AINDA NÃO SE “ACOSTUMOU” COM O MUNDO?34

-Ela é Sofia Amundsen, disto ela tem certeza. Mas ela também vive

segundo as leis da natureza. O problema é que ela mesma não percebe

isso, pois por trás de tudo o que faz existe um número muito grande

de motivos extremamente complicados (p. 273).

Não quisemos que este capítulo tivesse o título de conclusão! (in)conclusão ou à

guisa de qualquer coisa que lembre fim, nem que lembre (im)pertinência,

(in)completude, (in)quietações. Todavia, agora, meu íntimo se (in)conforma com a

ideia de que chegou o término de algo que tive tanto como o gosto em escrever, o

prazer de vivenciar, a felicidade de transformar-me ou de me transformar mesmo...

- Como? Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em

escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não preparasse

– com as mãos um pouco febris – o labirinto onde me aventurar, deslocar

meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo,

encontrar-lhe desvios que resumem e deformam seu percurso, onde me

perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que eu não teria mais que

encontrar? Vários, como eu sem dúvida, escreveram para não ter mais um

rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o

mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos

deixe livres quando se trata de escrever (FOUCAULT, 2005, p.20).

Assim me senti: livre para escrever! Livre para pensar, errar, caminhar, desarrumar

as lógicas, desorientar. Aprendi muito com Alice e mais ainda com Sofia. Não estou

certo de que ela teria essa resposta: “será que ela já se acostumou com o mundo?”

Em contraponto, eu perguntaria: e o mundo será que se move para se acostumar

com ela?

Minhas mãos estão trêmulas nesse momento. Começo a suar e os calafrios

escavam o meu estômago. No início da pesquisa, era alguém que não tinha rumos,

não sabia que caminhos escolher, não imaginava quem era. Fui aluno, orientando,

tornei-me pesquisador! Fui professor, conselheiro, julgador! Companheiro, amigo e

carrasco! Fui Alice, o Chapeleiro Maluco, a Lebre de Março, a louca da Rainha de

Copas, mas também fui o generoso Rei. Tive momentos de Duquesa, do professor

34 GAARDER, 1995, p. 30

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de filosofia de Sofia, o Alberto. Fui tanta gente: Bia, Emy, Walk, eu mesmo, e

também fui Sofia!

- Quer dizer que é falsa a sensação de que nossa personalidade possui um núcleo constante.

Nossa noção de eu compõe-se, na verdade, de uma longa cadeia de impressões isoladas, que

nunca conseguimos vivenciar simultaneamente (GAARDER, 1995, p. 293).

Isso mesmo, Sofia; Todavia, nesse momento que me torno você, posso responder à

pergunta do título: não! Eu não preciso decidir nada! Não acostumei com o mundo e

nem ele acostumará comigo. E tenho a absoluta necessidade de que seja desse

modo. Acostumar não nos permite crescer. Acostumar não permite que o outro nos

veja em nossa essência! Acostumar é um verbo que deveria se ressignificar! Mas,

enquanto isso não acontece, há outra pergunta que preciso responder, aquela

norteadora desta pesquisa!

Queria afirmar, simplesmente, que o processo ocorre e ponto final! Porém, não

seria justo nem comigo, nem com Alice, nem com Sofia, com a Duquesa ou com Bia.

O processo caminha a passos lentos e, na maioria das vezes, suplicantes, penosos,

dolorosos e em contrapartida: fascinante, dependendo do ponto de vista de cada

um, dependendo também da vontade de cada um, das possibilidades de se colocar

no lugar do outro, de tocar, de experimentar se sentir como o outro sentiria se

estivesse em seu lugar . É difícil aceitar o diferente? Nem tanto. É fácil colocar-se no

lugar do outro? Nem sempre! Mas é um exercício necessário.

No contexto desta pesquisa, observou-se nos encontros que nem sempre eram

relacionadas atividades que contemplassem as necessidades de Sofia: ou a

atividade era comum à dos outros alunos, ou era um exercício planejado de outra

escola para outro aluno autista. Assim como Alice, Sofia parecia ser

constantemente invisibilizada, mecanizada, recebendo atividades somente enquanto

o pesquisador estivesse presente. Pois, no atraso de algumas vezes, Sofia estava

“ociosa”, enquanto os outros alunos estudavam. No entanto, percebo que este [a

escola regular] é também o lugar de Alices e Sofias. Entretanto é preciso ter mais

que olhos para poder vê-las. Nesta história, quem sou eu já não importa, não é a

questão. E quem é Sofia: heroína obscura ou obscurecida?

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Para que alguma coisa delas chegue até nós, foi preciso, no entanto, que um feixe de luz, ao menos por um instante, viesse iluminá-las. Luz que vem de outro lugar. O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer é o encontro com o poder: sem esse choque, nenhuma palavra, sem dúvida estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto (FOUCAULT, 2003, s.p.).

Nesse sentido, percebi a luminosidade de Alice e Sofia e mais, a luz refletida,

refratada, difundida pela energia contagiante de Bia. Ela também foi importante para

o desenvolvimento desta pesquisa, principalmente pela sua força de vontade em

ajudá-las.

Alice reconhecia as vogais e os números. Era só perguntar que apontava com os

dedos titubeantes as respostas. Sofia, além de não ser alfabetizada, também ainda

não é numeralizada: conta, criando a sua própria sequência de números de acordo

com a sua razão. Ela não aprendeu a contar, ou se aprendeu não demonstrou esse

aprendizado.

“Não é alfabetizada!”, “Não sabe contar!”, “O que eu posso fazer com ela?” eram

falas da Duquesa. E assim, mudam-se os personagens, mas os discursos continuam

os mesmos. Surgem novas Rainhas de Copas dispostas a cortar novas cabeças. As

palavras usadas para Alice são transferidas agora para Sofia em uma naturalização

do discurso quase convincente. E os clichês que a envolvem são ditos em voz alta,

como um jogral, ensaiado, enraizado, bem trançado:

“- Sofia é autista. Se você conseguir que ela olhe para você já ganhou seu dia!”

Me senti sufocado com essas e outras palavras ouvidas durante a pesquisa, e não

me conformo com a falta de ar que elas carregam. Reduz-se Sofia ao discurso do

olhar: “O autista não te olha nos olhos!”, ou “o autista tem seu mundo próprio!” e

ainda, “Não dá para entender o autista!”, e formam-se as imagensnarrativas da

pessoa com deficiência, sem ao menos procurar entendê-la, procurar ajudá-la a

trilhar novos caminhos. Fazemos a imagem do outro pois é mais fácil apontá-los e

nos esquecemos que todos temos o nosso grau de autismo: nem sempre é olho no

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olho; temos o nosso próprio mundo e não é a qualquer um que se permite a entrada.

Também, muitas vezes, não somos ou não nos fazemos compreensíveis.

Nessa perspectiva, percebe-se que conhecer, aproximar, conquistar a confiança do

aluno autista é de suma importância para o seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e

social. À medida que o professor se aproxima desse aluno, contribui para o

conhecimento de seus particulares interesses, suas potencialidades e limites.

Somos todos autistas, a gradação está nos rótulos

Scheilla Abbud Vieira

Quando me recuso a ter um autista em minha classe, em minha escola, alegando não estar

preparado para isso, estou sendo resistente à mudança de rotina.

Quando digo a meu aluno que responda a minha pergunta como quero e no tempo que determino,

estou sendo agressivo.

Quando espero que outra pessoa de minha equipe de trabalho faça uma tarefa que pode ser feita por

mim, estou a usando como ferramenta.

Quando, numa conversa, me desligo, "viajo", estou olhando em foco desviante, estou tendo audição

seletiva.

Quando preciso desenvolver qualquer atividade da qual não sei exatamente o que esperam ou como

fazer, posso me mostrar inquieto, ansioso e até hiperativo.

Quando fico sacudindo meu pé, enrolando meu cabelo com o dedo, mordendo a caneta ou coisa

parecida, estou tendo movimentos estereotipados.

Quando me recuso a participar de eventos, a dividir minhas experiências, a compartilhar

conhecimentos, estou tendo atitudes isoladas e distantes.

Quando nos momentos de raiva e frustração, soco o travesseiro, jogo objetos na parede ou quebro

meus bibelôs, estou sendo agressivo e destrutivo.

Quando atravesso a rua fora da faixa de pedestres, me excedo em comidas e bebidas, corro atrás de

ladrões, estou demonstrando não ter medo de perigos reais.

Quando evito abraçar conhecidos, apertar a mão de desconhecidos, acariciar pessoas queridas,

estou tendo comportamento indiferente.

Quando dirijo com os vidros fechados e canto alto, exibo meus tiques nervosos, rio ao ver alguém

cair, estou tendo risos e movimentos não apropriados.

Somos todos autistas. Uns mais, outros menos. O que difere é que em uns (os não rotulados),

sobram malícia, jogo de cintura, hipocrisias e em outros (os rotulados) sobram autenticidade,

ingenuidade e vontade de permanecer assim.

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Porém, é preciso ir além do pensamento poético de Sheila e afirmar que apesar de

se sentir/pensar perfeito #somostodosdeficientes.

De todo o exposto, vale, agora, finalizar (?), ou por um lado, refletir sobre,

a necessidade de cruzamento de fontes, a partir da observação do que diariamente se passa na escola, e, por outro, a impossibilidade de generalizações das conclusões nesses estudos, iniciando, com essas duas propostas, a compreensão da multiplicidade e da complexidade dos processos de constituição do/no cotidiano escolar (ALVES; OLIVEIRA, 2005, p.81 - 82).

Sofia, Alice, Emy, Walk..., suas pessoas permitem refletir e dizer o quanto foi

importante a decisão de ingressar neste mestrado em busca de respostas

minimizadoras das minhas angústias em relação aos meus alunos mais do que

especiais. Ao iniciar os estudos, com certeza, havia a completa ciência e consciência

de que eu seria o narrador da história de duas garotas especiais vagando como

corpos sem vidas na escola.

E eu que já sabia tudo Das rotas da astrologia Dancei e a cabeça tonta

O meu reinado não previa Olhei pro meu espelho e há! Meu grito não me convencia

E, de repente, Sofia

Entrou sem me pedir licença, querendo me servir de guia Sempre não é todo dia – Oswaldo Montenegro

Todavia, houve um engano; esta não é uma história delas, é uma história de minha

vida, de minhas memórias, as quais elas foram fundamentais para a formação do

meu eu, caçador de mim! E, nesse aspecto, nesse conflito, nessa transformação

cotidiana da vida, percebi que, na verdade, quem precisa ser incluído sou eu, são os

colegas professores, é a escola, é toda a comunidade. São todos aqueles que se

julgam despreparados, porque, nesse caso, compete a cada um decidir se preparar,

qualificar, capacitar, se aparelhar de forma ser incluído nesse meio diverso,

singular, distinto. É preciso aprender a não se acostumar...

Enquanto isso:

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- Olá! – disse Sofia. – Quem é você?

- Meu nome é Alice – respondeu a menina enquanto fazia um gesto de cortesia muito

envergonhada

- Foi o que pensei – disse Alberto – É Alice no País das Maravilhas.

- Mas como ela chegou até aqui?

A própria Alice explicou:

- O País das Maravilhas é um lugar sem fronteiras, o que significa que ele está em toda parte.

Mais ou menos como a ONU. Por isso o País das Maravilhas deveria se tornar membro

honorário da ONU. Precisamos um representante em cada comitê.

[...]

- E o que você faz aqui? – perguntou Sofia.

- Eu trouxe estes dois frascos da filosofia para você.

Entregou a Sofia os dois frascos; num deles havia um líquido vermelho e no outro um líquido

azul. No frasco vermelho estava escrito BEBA-ME! E no azul BEBA-ME TAMBÉM!

No instante seguinte, um coelho branco passou correndo pela cabana. Ele corria sobre duas

patas e usava um colete e um paletó. Quando passou na frente da cabana, tirou do bolso do

colete um relógio e disse:

- É tarde! É tarde!

E continuou a correr. Alice fez menção de sair correndo atrás dele; antes, porém, voltou-se

para Sofia e Alberto, fez uma reverência e disse:

- Vai começar tudo de novo!

(GAARDER, 1995, p. 399-400).

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Mensagem a quem não se acostumou

Eu sei, mas não devia

Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as

janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque

não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as

cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o

sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café

correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da

viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite.

A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os

mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas

negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra,

dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir

para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser

visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para

ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar.

E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais

trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar

a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado,

conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz

artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água

potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir

passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no

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pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não

perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema

está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está

contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a

gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que

fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para

evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A

gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto

acostumar, se perde de si mesma.

(1972)

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro,

1996, pág. 09.

Disponível em: <http://www.releituras.com/mcolasanti_eusei.asp>.

Acesso em 09 de Set. de 2015.

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Homenagem à Sofia

Tem gente que tem cheiro de rosa, e de avelã

Tem o perfume doce de toda manhã

Você tem tudo

Você tem muito

[...]

Tem a pureza de um anjo querubim.

Luan Santana – O que você quiser.

Homenagem à Alice

“Entenda os seus medos,

mas jamais deixe que eles sufoquem os seus sonhos.”

Lewis Carrol - Alice no País das Maravilhas

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