J. W. Rochester - Os Magos, O Elixir Da Longa Vida 1

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Conde J. W. RochesterO LL1XIK DA LONGA VID/ Psicografia da Mdium Mecnica Wera Krijanowskaya (Krijanowski) FICHA TCNICATtulo original em russo: Elikcir Jizni - (1923) 270pg. Ttulo da verso francesa: L 'lixir de Longue Vie - Les Immortels Sur la Terre (1929) Traduzido da verso francesa para o portugus por: Edith Nbrega Canto IbsenO ELIXIR DA LONGA VIDA Copyright - 1990 - 1a Edio LIVRARIA ESPRITA BOA NOVA LIDA. Rua Aurora, 706 01209 - So Paulo - SPReviso e Prefcio: Thais Montenegro Chinellato Composio: Ricardo Baddouh Arte da Capa: Braslio MatsumotoPesquisa para o original da rosa "Prncipe Negro" citada na obra "Romance de uma Rainha" (edio FEB) por: Ivanilda Rita de Oliveira MatsumotoPrefcio John Wilmot, Conde de Rochester, foi um poeta satrico ingls, de vida dissoluta e vasta cultura, morto aos 33 anos. Em esprito, Rochester teria ditado mdium Vera Krijanowsky, entre 1882 e 1920, 51 romances, quinze dos quais, traduzidos para o portugus. Sua temtica comea pelo Egito faranico, passando pela Antigidade greco-romana, a Idade Mdia, vindo at o sculo XIX.Os ttulos editados em portugus so:O Chanceler de Ferro do Antigo Egito;O Fara Mernephtah;Romance de Uma Rainha; (2 volumes)Episdio da Vida de Tibrio;Herculanum;O Sinal da Vitria;A Abadia dos Beneditinos;Naema, a Bruxa;A Lenda do Castelo de Montinhoso;A Vingana do Judeu;A Feira dos Casamentos;Na Fronteira;O Elixir da Longa Vida;A noite de So Bartolomeu; (no prelo)Narrativas Ocultas; (no prelo) Nos romances de Rochester, a realidade navega num caudal fantstico em que o imaginrio ultrapassa os limites da verossimilhana, tornando naturais fenmenos que a tradio oral cuidou de perpetuar como sobrenaturais. Ele revela o inaudito, o elidido, os pontos abissais da Histria, da lenda e do "pathos" humano. Rochester um analista que sincretiza a Histria com as paixes humanas, assentando-as numa narrativa bem articulada, onde o inslito uma das invariantes que assinala seu estilo, sem contudo, compor uma receita de entretenimento ligeiro, subordinada s frmulas de mercado que orientam os romances populares. Aceitando ou no a obra de Rochester como psicografia, veremos que sua proposta de veridico afina-se com o iderio realista: a preocupao com a verdade, no apenas verossmil, mas autntica, atravs da observao e da anlise. A referencialidade de Rochester plena de contedo sobre costumes, leis, antigos mistrios e fatos insondveis da Histria, sob um revestimento romanesco, onde os aspectos sociais e psicolgicos passam pelo filtro sensvel de sua hiperblica imaginao. Em sua recriao da realidade, nenhum detalhe desprovido de interesse; atentando para o seu virtuosismo descritivo, observa-se que certas passagens constroem-se sobre um derramamento estilstico de inclinao romntica. Os parnteses descritivos de Rochester ora precipitam, ora retm o curso narrativo, verticalizando e esquadrinhando microscopicamente os espaos fsico e psicolgico. Ao lado da explorao dos dados emocionais, o autor ajusta as causas que determinam o comportamento humano e por isso, nenhuma atividade dos personagens gratuita. Quanto ao moral a que se propunham os realistas, Rochester oferece indcios quando induz o leitor reflexo, repelindo simplificaes moralizantes e antiticas sobre o bem e o mal. Apesar de suas peculiaridades metafsicas, estticas e sociais, o valor romanesco de Rochester apenas, aparentemente, tangencia os atrativos dos textos folhetinescos, como o carter informativo, que transparece em digresses metalingsticas, apontando desvos histricos ou traduzindo fenmenos singulares, apoiado em bases cientficas. Enquanto os mitos persistem no produto folhetinesco, Rochester invalida-os em suas obras, redefinindo, por exemplo, figuras legendrias como Jos e Moiss, ultrapassando as crnicas que os sacrilizaram, numa escritura que combina a epopia e o drama. Rochester, na linha da imaginao romanesca do sculo XIX, aproxima-se do "romance total", que enfeixa o drama, o di-logo, o retrato, a paisagem, o maravilhoso, apenas desviando a temtica da fora mtica do heri para um passado mais longnquo que a Idade Mdia (o espao eleito para a fuga dos romnticos), transformando seu texto numa espcie cujo contedo fa-bulativo tem permanncia e atemporidade ao abrir-se inexorvel e precria condio mortal do homem. A classificao de gnero em Rochester dificultada por sua expanso entre vrias categorias: terror gtico com romance sentimental, sagas de famlia, aventuras e incurses pelo fantstico. Sob uma natureza criadora e fundadora, o autor revela os arcanos desconhecidos e apropria-se da que parece reiterativo, reinaugurando textos segundo leis prprias, onde as relaes internas (tempo, espao, personagens, estilstica) compreendem o contedo esttico; e o inventrio histrico, a recuperao do real, as questes metafsicas e filosficas constituem o contedo ideolgico. Sem remanejar frmulas, Rochester vai revendo a espaci-alidade e a temporalidade, empreendendo uma viagem ao enig-mtico, numa pluralidade de fatos revisitados na memria. A complexidade da transmigrao de um determinado grupo de espritos que se reencontra em sucessivas reencarnaes, no plano literrio converte-se numa migrao de personagens de uma abra a outra. Pode-se dizer que sua literalidade atualiza ou reinterpreta questes universais, como os conflitos de poder e a formao de valores, fazenda uma fuso do real e do imaginrio, numa atmosfera trgica, cabendo ao leitor o esforo de preencher os vazios significativos (sobretudo quanto s leis de causa e efeito), um dos atributos que um texto artstico apresenta em sua contextualizao do real. Assim, do ponto de vista lingstico e esttico, Rochester produz um discurso literrio e, do ponto de vista referencial e historiogrfico, reproduz uma realidade. Percorrendo a narrativa de Rochester, observamos que ela alterna captulos de maior ou menor tenso, sem que essas po-laridades se dem de forma a entender o romance. Organizada fora da seqncia temporal linear, a fragmentao narrativa mantm a expectativa do leitor. Sobre os personagens de Rochester, pode-se dizer que eles no existem a servio do enredo, para sustentar uma tese de ordem moralizante e criadora de identidades: eles pertencem a uma narrativa que sonda episdios histricos com instrumental literrio, de modo a no perder seus referenciais sob arranjos ficcionais (o que redundaria em personagens moldados consoante o pblico que se pretende atingir; um dos paradigmas do folhetinesco). Nas narrativas folhetinescas, o heri corajoso, sedutor, romntico, apresenta carter nobre, gestos solidrios, redentores e justiceiros. At os traos fsicos correspondem luminosidade do personagem: olhos claros, beleza difana, viril. Tipicamente ele se associa a animais como a guia e o leo, para combater bichos noturnos - a serpente, a aranha, o drago. Jos, o heri de "O Chanceler de Ferro", apresenta-se fisi-camente como um heri solar: olhos verdes, alto e belo; porm caviloso, dissimulado, cruel, desptico, narcisista e covarde. O bicho com que ele se identifica a serpente, pois atravs de um bizarro ritual com esse rptil que Jos se torna um iniciado na prestigiada arte de leitura de sonhos, alm de poder produzir sortilgios e defrontar-se com a enigmtica esfinge. Rochester pe o leitor em contato com a forma inaugural do mito, no que diz respeito ao enigma da Esfinge (surgida de um quase delrio) e suas associaes reveladoras, fazendo emergir sentidos que ultrapassam o valor expressivo e denotativo do fenmeno, irrompendo no leitor o fascnio de seus segredos. A gnese do lendrio e do maravilhoso deita razes nas narrativas populares, que passaram da primitiva oralidade literatura moderna atravs de um manancial de textos, de origem annima ou coletiva, proveniente do oriente e dos celtas. No fim do sculo XIX, manuscritos egpcios de 3.200 anos (mais antigos que os textos indianos) foram encontrados em escavaes na Itlia, pela egiptloga Mrs. D'Orbeney. Nesses manuscritos est o texto-fonte do episdio bblico "Jos e a mulher de Putifar", cuja trama, Cmara Cascudo sintetizou. Rochester, em "O Chanceler de Ferro", enriquece com de-talhes esse episdio, sem recorrer a solues de modernidade. Revelando as matrizes da depreciao da imagem feminina, que as narrativas populares encarregam-se de difundir, ele adentra os meandros que conduziram a mulher de Putifar a ser acusada de traio. Quando se refere aos judeus, em trs de suas obras, Ro-chester levanta os preconceitos que consolidaram muitos dos esteretipos que lhes so atribudos, numa pesquisa da tradio judaica e das marcas que acompanham seu povo h muitos sculos, tendo sido ele prprio um judeu. Algumas observaes valorativas do autor seriam apenas juzos preconceituosos se no fossem fundamentadas em fatos que estigmatizaram o povo hebreu. Quanto ao foco narrativo, a obra de Rochester, ora atravs do narrador onisciente, ora atravs de narradores nomeados, apresenta diferentes verses de um fato, segundo as perspectivas e licenas individuais de quem as protagonizou. Dessa forma, em romances como "O Fara Mernephtah", "Episdio da Vida de Tibrio" ou "A Abadia dos Beneditinos", uma determinada ao vivida por vrios personagens captada sob diversos ngulos pelo leitor: o enfoque de cada narrador oferece uma observao material e subjetiva, traduzindo suas distncias interiores, sua vida psquica; cada qual se define, bem como s cenas que protagonizaram, conforme as experimentaram. Assim, por exemplo, vemos em "Episdio da Vida de Tib-rio" o depoimento de quatro personagens. A narrativa se constri sob diferentes repertrios, num movimento dialtico de fragmentao (por parte da narrativa) e sntese (por parte do leitor). Essa tenso dialtica abre-se co-participao do leitor, que filtra a leitura atravs de seu repertrio prprio, de suas projees e idiossincrasias, produzindo um meta-enredo que se renova a cada leitura e modifica-se de um leitor a outro. Os pontos de vista em Rochester so construdos a partir de viso por trs e da viso com, segundo a definio de Jean Pouillon. O saber do narrador ostensivo: ele tudo sabe sobre a intimidade dos personagens, apropriando-se de seus pensamentos e atitudes. Essa cobertura totalizante atendia a uma preferncia dos leitores do sculo XIX, vidos pela densidade dos fatos. Como narrador onisciente, ele projeta sobre os elementos fsicos e psicolgicos sua linguagem perita, verticalizando e a-densando os traos exteriores e interiores, compondo imagens dinmicas e estticas, atravs de metforas, antteses, hiprboles, polarizando no texto a fluidez e o congelamento de cenas com o mesmo impacto. Os personagens e o narrador sofrem uma simbiose de seus estados mentais, vivendo um pela palavra do outro. Seu efeito de realidade no se expressa em sua autoridade de narrador e sim em sua capacidade literria de reconstruo, de investigao, possibilitando novas interpretaes, permitindo que a fico e a realidade se confundam na relatividade das vozes de seus personagens, tocando a viso positivista do sculo XIX, em que a histria conta-se a si mesma, espelhando o mundo real pela linguagem. Sua exaltao sensorial apreende o mundo com os olhos do realista, acrescentando, s vezes, pulsaes romnticas, no apenas sentindo, mas vendo, apalpando, experimentando, levando o leitor a perceber que a sensao elemento fundamental no conhecimento do mundo. Entre poeirentas plancies, templos msticos, arenas san-grentas e furnas hostis, Rochester atualiza, com os matizes de uma pintura, os ignorados espaos da Histria. Seu empenho pictrico ope o descritivismo funcional do Realismo ao descriti-vismo decorativo do Romantismo, num compromisso do senso real com a imaginao. Nos textos de proposta realista, o testemunho subjetivo-individual romntico cede lugar ao depoimento objetivo e crtico, julgando os fatos a partir dos valores condicionados socialmente, impulsionados pelo pensamento cientfico e econmico. Rochester surge justamente num perodo de crise da re-presentao simblica da arte e da fragmentao do indivduo que, como sujeito textual, no confere mais com o ideal pleno do heri, pondo em dvida os valores absolutos. Por ser depositria de preceitos espritas e levantar questes metafsicas com competncia, a fruio na obra de Rochester transcende a cotao da sensibilidade e o julgamento do gosto: o leitor divide-se entre o prazer da expanso subjetiva do autor e o ceticismo diante da objetividade dos laivos filosficos, cientficos e histricos que, se no surpreendem pelo real, surpreendem pelo imaginrio. Seu universo imaginrio um excedente do real, atestando fenmenos produzidos pelo homem, desnudando mitos e decifrando enigmas. A combinatria desses elementos pelo jaez de sua escritura que permite o trnsito de Rochester alm da literatura esprita, possibilitando que seus romances encerrem uma sobreposio de textos que lhe do um estatuto ora documental, ora ficcional, ora fantstico.Thais Montenegro Chinellato Nos arredores da cidade de Londres se erguia antiga edificao, ainda slida e com um grande jardim. A casa remontava poca de Cromwell e guardava o aspecto severo e puritano daquele sculo. No terceiro piso vivia o Dr. Ralph Morgan, como indicava pequena placa de cobre sobre uma porta escura de carvalho envelhecido. O apartamento do doutor era formado por um vestbulo, sala de jantar, escritrio e dormitrio. Cada um desses aposentos, simples mas confortavelmente mobiliado, possua uma vantagem muito preciosa para o morador - as janelas davam para o jardim. O doutor amava a calma e o ar livre, preferindo uma longa caminhada a p, mesmo com mau tempo, vida agitada e ruidosa no centro da cidade, com seus telhados e chamins de aspecto triste e sombrio. A noite de agosto estava bela e calma, e a janela da casa permanecia aberta. Sob a luz de um abajur verde, sentado a uma escrivaninha, o doutor lia um grosso volume de capa desgastada pelos anos. O Dr. Morgan, com seus trinta e poucos anos, poderia passar por um belo homem, no fosse a espanto-sa magreza e palidez que prejudicavam sua imagem. Era de alta estatura, cabelos espessos e castanhos com reflexos avermelhados, e usava barba curta e ligeiramente mais escura que emolduravam um rosto de traos regulares. Seus grandes olhos, severos e pensativos, exibiam colorao peculiar: cinza-azulados nas horas calmas e mais escuros nos momentos de agitao. Aquele olhar de extraordinria mobilidade refletia de imediato o menor sentimento interior. Tudo anunciava em seu escritrio que Ralph era um homem de estudos, sbio e laborioso: a vasta biblioteca, com as estantes repletas de livros, revistas e brochuras que tratavam no somente de medicina, mas de todos outros assuntos tocantes aos diversos ramos do saber humano. O doutor se atirava livremente s suas leituras e trabalhos pessoais, pois quase no recebia clientes, retirando seu sustento de um emprego bem remunerado num sanatrio para doentes mentais. Esta situao modesta o satisfazia, visto que sua sade delicada o obrigava a um gnero de vida tranqilo e regular; mas o mdico aproveitava seu tempo livre para aprimorar sua j brilhante inteligncia. No era em vo que se debruava dia aps dia sobre um insolvel problema - a loucura. O contato incessante com o mal incompreensvel, escapando s pesquisas cientficas, impelia o doutor a rasgar o vu do mistrio; mas era em vo que percorria as obras de cincia prtica e as obras msticas e alquimistas; nem o trabalho de sbios psiquiatras, nem as frmulas obscuras de Paracelso lhe deram a chave do segredo. Por vezes, aps inteis esforos para solucionar o enigma - soluo que fugia sem cessar de sua mente - a clera o invadia. E, muitas vezes, aps infrutferas tentativas para descobrir meios de curar as molstias do esprito, o doutor se deixava penetrar pela revolta contra as leis cruis, envoltas em mistrios que ocultavam a chave da cura. Deixando de lado o volume que lia sobre hipnotismo, o doutor olhou friamente sua mo segurando um marcador de livros feito de marfim e estremeceu ao imaginar aquela mesma mo repousando sobre seu peito inerte. - ... Sonhas, meu jovem amigo, lhe dissera um velho professor, seu antigo mestre, aps o ter examinado algumas semanas antes. Seu corao est doente e os pulmes lesados. Voc tem necessidade de um completo repouso fsico e intelectual, seno... Ralph suspirou profundamente; ele compreendia o significado dessa ltima palavra. Como mdico sabia o que representavam as dores no peito, os batimentos desordenados do corao, a respirao difcil, a fraqueza e a tosse sca que lhe fazia chegar sangue boca. Fechando as plpebras, ele deixou que o medo da morte lhe invadisse lentamente o esprito. A angstia e o temor desse "no ser" se aproximando lhe oprimia o corao. No existiria algum meio de prolongar a vida e interromper a desagregao do corpo? Inesperadamente se recordou de uma leitura em um livro sobre ocultismo: "O elixir da vida existe, mas seu segredo est perdido"; os alquimistas o buscaram em vo nos rgos e no sangue das virgens, crianas e animais, nas plantas e na atmosfera. No entanto os livros de magia falavam desse elixir como uma realidade irrefutvel. Ah! se fosse possvel encontrar esse fluido vital, fora poderosa e imperceptvel, que anima os seres vivos e organizados, desde os mais elementares at os mais complexos... Um toque breve e forte da campainha rompeu o curso de seus pensamentos agitados. Ele se endireitou, aguardando, mas o velho Patrick, seu nico criado, devia sem dvida, dormir profundamente, visto que rudo algum se ouviu na sala de entrada. A campainha soou uma segunda vez. Ralph se levantou; talvez algum vizinho doente mandava cham-lo. Isso raramente acontecia, mas a possibilidade ainda assim existia. Como Patrick no dava sinal de vida, ele abriu a porta. Um homem de boa estatura se postava porta, vestindo um abrigo escuro e chapu de feltro de abas largas, trazendo consigo uma pequena caixa de prata cinzelada. -To Dr. Morgan com quem tenho a honra de falar? perguntou o desconhecido com voz grave e sonora.- Ele mesmo... estou s suas ordens. - Nesse caso me permita entrar, pois devo tratar de assunto muito importante e que particularmente muito lhe interessa.Sentaram-se e um longo silncio se fez. Ralph examinava seu visitante com curiosidade. Ele parecia ter uns trinta e cinco, quarenta anos; e ainda que bem saudvel e forte, se mostrava nesse momento visivelmente plido e fatigado. Todavia, nenhuma ruga lhe sulcava a fronte, nenhum fio de cabelo branco se distinguia em sua cabeleira espessa e negra como a asa de corvo. Seu rosto de feies helnicas poderia servir de modelo a uma obra de Fdias. Pensativo, o estranho homem fitou os livros empilhados sobre a mesa de trabalho e em seguida ergueu sobre Ralph seus grandes olhos negros, de forma suave.- Procura o elixir da vida e gostaria de possu-lo... - Quem voc que conhece meus pensamentos? balbuciou Morgan, saltando da poltrona.O misterioso visitante sorriu e falou: - Sente-se e nada tema; no sou o diabo como sups. Sou um homem como voc e entre ns uma nica diferena existe -voc deseja viver, enquanto eu desejo morrer. Voc viveu muito pouco e eu j vivi muito; desejo adentrar o espao infinito... e vim lhe propor a permuta. Voc dispe da morte e eu da vida. Me entregue uma s gota de seu sangue e em troca eu farei de voc o senhor do Elixir da Longa Vida. Est de acordo? O doutor olhava o desconhecido com inquietao. Sem dvida alguma estava em presena dum louco, mas no teve tempo de refletir o que fazer ento. Seu hspede deu uma gargalhada, to grande e alta que Ralph se sentiu desconcertado. - Voc est pensando que eu estou louco e est pensando em como se desembaraar de uma visita desagradvel, disse o estranho com benevolncia. Tranqilize-se, meu jovem amigo, tenho l minhas razes. Mesmo que minhas palavras sejam inverossmeis, elas representam a imutvel verdade. Eu possuo -de verdade - o elixir da longa vida. E agora falemos seriamente. Desde longo tempo procuro o homem a quem poderia transmitir meu conhecimento e o mistrio de minha existncia; mas todas minhas procuras eram sempre vs. Estudei sua vida, seu carter, suas aspiraes, conheo suas dvidas e a sde de conhecimento que o atormenta. Conclu voc ser o mais capaz de recolher minha herana. Diga-me, francamente ento: gostaria de viver eternamente?O jovem mdico enrubesceu e se endireitou: - Certamente que eu quero! Mas duvido que possa me dar o que promete... Quo grande glria seria a sua se fosse verdadeiramente dono do meio de conservar a humanidade terrestre!... - Por que voc pensa que, possuindo o segredo da vida longa eu desejo aproveitar para atulhar este planeta de milhes de seres sem necessidade nenhuma? Os benfeitores da humanidade so raros e duvido eles aceitarem utilizar meus meios. Agora eis minhas condies: eu quero de voc um pouco de seu sangue... nele j existe o sopro da morte. Voc mdico e sabe disso; o estado de seu corao e de seus pulmes no tm cura pelos mtodos conhecidos. Em troca desse sangue que me ajudar a morrer eu lhe darei o elixir da longa vida. Uma gota dele posta num frasco pequeno o suficiente para cur-lo e tornar sua vida quase eterna. Nunca toque no restante do elixir. Tome cuidado em no revelar a ningum seu segredo; no se deixe arrastar pelo desejo de povoar a terra de seres imortais. E ainda uma palavra - lhe dando o elixir da longa vida eu lhe lego tambm meu conhecimento, minha fortuna e meu nome. Agora decida: quer ser meu herdeiro? Vou lhe dar dez minutos para refletir.Ralph estava estupefato. Os pensamentos turbilhonavam em seu crebro provocando em sua cabea uma dor aguda e a emoo fortssima lhe cortava a respirao. Subitamente, encontrando o olhar inteligente e enrgico do desconhecido, a calma e a deciso lhe voltaram. - Aceito; disponha de mim, disse ele se levantando e estendendo a mo ao estranho visitante que, apertando a mo estendida se levantou tambm.- Nesse caso dever partir imediatamente comigo.- Por muito tempo? - Isso depender das circunstncias. De acordo com as probabilidades, por algumas semanas. Nesse caso lhe peo me conceder um quarto de hora a fim de fazer os preparativos e dizer a meu criado que parto a negcios de herana.- Muito bem! aguardarei na escada. Em instantes Ralph colocou algumas roupas numa valise, alm de dois ternos. Em seguida despertou Patrick, deu-lhe ordens necessrias e lhe entregou dinheiro para as despesas.A seguir sejuntou ao desconhecido. Desceram silenciosamente a escada e tomaram assento num automvel que os esperava e seguiram para a estao ferroviria onde embarcaram no trem para Dover. O estranho ocupava uma cabine reservada; assim que o trem partiu convidou Ralph para jantar. Mas o jovem ainda estava excessivamente dominado pela agitao interior e no sentia apetite algum. Seu companheiro lhe dirigiu gracejos to divertidos, abrindo um cesto cheio de iguarias, que o doutor se acalmou pouco a pouco, comeu e bebeu do melhor vinho, se decidindo afinal a perguntar a qual estranho lugar o conduzia. - O Continente... e depois ver por si mesmo, respondeu o desconhecido com leve sorriso. A viagem durou vrios dias e os viajantes no se detiveram em parte alguma,'j que isso no lhes convinha. Mas o percurso transcorreu em condies de conforto tais, que Ralph, malgrado sua molstia, no experimentou nenhuma fadiga. A certa altura percebeu ser o fim da viagem - o Canto Valais, na Sua. Se detiveram numa aldeia isolada ao p do Monte Rosado. E o misterioso companheiro de viagem anunciou ao doutor que na manh seguinte eles empreenderiam a ascenso da montanha. Ralph ficou muito surpreso, mas no formulou nenhuma observao, pois estava decidido a se arriscar inteiramente naquela aventura. Como no viv-la at o fim? Na manh seguinte, aps se vestirem com trajes de alpinismo, os viajantes se puseram a caminho. Assim que atingiram os primeiros cimos e que o ar se tornou mais frio, o desconhecido perguntou sorrindo: - Seremos obrigados a passar a noite no gelo; no tem medo de congelar, meu amigo?Ralph encolheu os ombros e respondeu: - Espero suportar o frio como qualquer outro homem, e visto que meu corpo j definha lentamente, no me importa morrer um pouco mais cedo ou mais tarde. Alm disso, se voc no louco, e minha vida lhe necessria, no me deixar morrer. - Sua coragem chega ao estoicismo e isso me agrada. Tem razo - sua vida me preciosa e para o livrar de toda fadiga intil, tome estas pastilhas e no sentir nem frio e nem cansao. Vendo que Ralph hesitava, acrescentou com ligeira dose de ironia:- Chupe as pastilhas. Elas no contm ainda o elixir da vida e no passam de narctico que lhe dar foras. Prosseguiram no caminho. Embora se tornasse mais difcil caminhar, eles j atingiam os limites das neves eternas. O desconhecido no aparentava nenhum cansao; Ralph se admirava por sua prpria resistncia e sentia uma energia fortificante correr em suas veias. Passaram a noite numa cabana vazia - e se puseram novamente em marcha aos primeiros raios da alvorada. O doutor j havia esquecido o tempo decorrido desde o incio da escalada da montanha Haviam atravessado a geleira, ladeado precipcios e escalado alturas verticalmente; era evidente que se haviam desviado do caminho habitual dos turistas e penetravam numa parte pouco explorada daquela solido nevada. O estranho avanava com uma segurana que demonstrava perfeito conhecimento do caminho. Aps ter contornado uma elevao, atingiram repentinamente um local rochoso e deserto. O carninho continuava de um lado por pequenos degraus regulares que pareciam ter sido escavados por mo humana e terminavam numa profunda caverna. Concluindo a perigosa descida, os viajantes depararam com outra geleira e aps um quarto de hora de andada, chegaram entrada de larga gruta iluminada por luz azulada. Foi com sentimento de curiosidade e angstia que Ralph ali penetrou com seu companheiro. Sua surpresa aumentou quando percebeu uma parede de pedra lapidada que deslizou sem rudo sobre eixos invisveis, assim que o companheiro apertou um boto luminoso, oculto numa das aberturas da parede. Um corredor estreito, cavado num rochedo, se lhes abriu. O desconhecido girou um comutador incrustado numa parede.e imediatamente a luz eltrica aclarou toda a passagem. - Vocs tm eletricidade aqui? balbuciou Ralph, cujos olhos no podiam acreditar no que viam. - Meu Deus! por que no utilizar as invenes da indstria moderna a fim de aumentar o conforto desta moradia do "Elixir da Longa Vida"? Estamos na terra que pertence a Ele e Seus agentes, respondeu o misterioso guia de Ralph com um alegre sorriso. Na extremidade do corredor, o doutor percebeu uma escada em espiral, dando numa plataforma onde se abriam muitas portas. O desconhecido empurrou uma delas e ambos se acharam numa projeo de rocha em forma de terrao. Uma vista magnfica se estendia ali e Ralph, no se contendo, soltou um grito de entusiasmo, Daquela altitude formidvel, se descortinava uma paisagem mgica. Os rochedos, as plancies nevadas e as crateras profundas pareciam se perder na bruma purprea dos raios do sol poente. Ao longe, os campos e prados verdejantes se estendiam gigantescos, verdes como esmeraldas. E naquele instante pareceu a Ralph que jamais se sentira to forte, a terra nunca lhe parecera to bela e a vida to desejvel. O desconhecido cruzou os braos sobre o peito e contemplou aquela vista esplndida com um olhar triste e pensativo. Um instante depois passou a mo sobre a fronte como se quisesse expulsar os pensamentos inoportunos, e se voltando a Ralph disse: - Vamos, tempo de recobrar foras... ns conversaremos em seguida sobre nossos negcios.Retornaram. Aps ter mostrado ao doutor os segredos da sada, abriu a porta oposta e conduziu Ralph a uma sala circular de tamanho mdio. Um fogo resplandecente ardia na lareira e uma agradvel aragem reinava no ambiente. Ralph examinou curiosamente ao derredor. As paredes estavam inteiramente forradas com tapearias orientais de colorao escura. Espesso tapete recobria todo o assoalho. Contra uma parede se postava um mvel de portas cinzeladas e noutra ainda havia grande mesa de trabalho cheia de livros e pergaminhos. Ainda na sala se encontravam algumas cadeiras em estilo antigo, incrustadas de ouro e marfim, ao centro uma mesa posta para dois talheres. Perto dela se achava um grande candelabro. O desconhecido anfitrio colocou pequeno cofre, sobre a mesa e acendeu velas. A seguir retirou de um mvel vrias garrafas de vinho, um grande bolo, frutas, e convidou seu hspede a se sentar mesa. A extraordinria caminhada havia despertado o apetite de Ralph. Logo que os dois saciaram a fome, o anfitrio arrastou sua cadeira at a lareira e convidou o doutor a fazer o mesmo. - chegado o momento de estudar com seriedade, e em detalhes, o assunto que nos trouxe at aqui. H muitos sculos eu tambm me encontrava sentado nessa cadeira que ora voc ocupa e ouvia com angstia e emoo a histria da vida de meu predecessor. Agora a sua vez de ouvir a narrativa de minha vida passada. Meu nome oficial Naraiana Supramati, e sou um prncipe hindu. Recebi de quem me legou o "Elixir da Longa Vida" o nome bem como todos os documentos legais e privilgios que os ttulos conferem. Meu verdadeiro nome Arquezilai; nasci em Alexandria, no reinado de Ptolomeu Lages, que governou o Egito aps a morte de Alexandre, o Grande. Meu pai, Clonius, servia nas foras comandadas por Lgide, e ligou seu destino ao de seu chefe. "Ptolomeu, aps se tornar soberano do Egito, recompensou largamente meu pai e o elevou a um posto de muita altura na corte. Chafurdei-me no luxo e me perdi numa vida indolente, voltada unicamente aos prazeres que meus pais me proporcionaram na qualidade de filho nico. "Perdi meu pai aos vinte e cinco anos. Aproveitei-me disso para levar uma existncia desregrada, dissipei toda minha herana em cinco anos. Certa manh acordei pobre e doente. "Os amigos que sempre compareciam s minhas festas, as mulheres que disputavam entre si meus galanteios e os parasitas que se aproveitavam de minha generosidade, todos me abandonaram... "Fiquei s e sem dinheiro e certamente teria morrido de fome, no fosse por um antigo soldado que serviu a meu pai; ele me acolheu e me cuidou. Chamava-se Merion. Assim que me encontrei em condies de caminhar, deixamos Alexandria e partimos para uma pequena propriedade herdada por Merion, meu benfeitor. . "Uma nova decepo ali nos aguardava. O pedao de terra se situava nos limites do deserto e mal nos poderia alimentar. A casa era um casebre semidestrudo. Apesar disso Merion.no queria, de forma alguma, retomar Alexandria; era um homem silencioso e misantropo. "Nada protestei quando ele escolheu viver em uma gruta e o ajudei no trabalho que nos permitia viver muito modestamente. "O ar puro e o trabalho me devolveram a sade e essa vida nova me absorvia completamente. "Passados quatro anos, Merion faleceu e fiquei.s; a solido me veio amarga e afinal se me tornou intolervel. Eu me lembrava de minha vida antiga, cheia de luxo e conforto, a sociedade. elegante e culta - e me senti irresistivelmente atrado quele mundo de onde havia sido expulso para sempre. Uma angstia cruel se apoderou de mim. Dia aps dia a vida se tor-nava mais detestvel e o desejo de retornar ao mundo se fazia mais intenso. Entretanto, tal desejo era irrealizvel, pois nada mais possua que aquela gruta. "Uma noite, deitado entrada de minha miservel habitao e entregue a sombrios pensamentos, ouvi passos que se aproximavam; uma voz desconhecida me chamou pelo nome. Levantei-me surpreso. Diante de mim se encontrava um homem de grande estatura, vestindo um manto escuro e cujo rosto era expressivo e enrgico. "- Queres morrer, Arquezilai, para te veres livre da vida miservel e infeliz que levas neste deserto? disse ele em voz sonora, fitando-me com olhar ardente. Embora tenhas merecido tua sorte e sejas. o nico responsvel por teu infortnio, tenho piedade de ti: Se desejas, levar-te-ei a um lugar aonde sers para sempre liberto da misria e onde vivers o tempo que quiseres. Mais tarde sabers quem sou. No te preocupes com o resto." A seguir tirou uma bolsa de sua manta, entregou-a a mim e colocou um cesto no cho. "- Encontrars nesse embrulho as roupas e lminas para cortar teus cabelos e tua barba. Vai, lava-te na fonte e retorna depressa. "No o obriguei a repetir a ordem; apanhei o embrulho e me dirigi fonte para me lavar. A seguir, vesti uma roupa violeta e botas de couro. A uma certa distncia da gruta, dois magnficos cavalos nos aguardavam, contidos por um criado corcunda de pequena estatura, semelhante quele que nos acompanhou at aqui. "Chegamos a Alexandria. Embora me achasse com uma bolsa cheia de dinheiro, meu protetor no me permitiu ver os amigos. Naquela mesma tarde embarcamos para a Europa. "Meu acompanhante me conduziu exatamente a este palcio. Da.esplanada dos rochedos pude desfrutar da mesma vista que ora o encanta. Depois entramos nesta mesma sala onde agora estamos. Quase nenhuma alterao ocorreu aqui desde aquela poca; so as mesmas tapearias que recobrem a parede e as mesmas cadeiras. "Ser desnecessrio dizer das transformaes e aperfeioamentos que realizei. "Sentado como voc hoje, escutava a narrativa do meu acompanhante, do mesmo modo que o faz voc hoje. Em seguida ele me mostrou o que voc vai ver em seguida. Naraiana se levantou e se aproximou de um armrio que ele deslocou do lugar. Atrs do armrio havia uma alavanca de ferro trabalhada com pedras preciosas, desenhando uma figura cabalstica. Aps explicar ao mdico o funcionamento do mecanismo, Naraiana abriu um recinto cheio de bas e cofres de todos os tamanhos. Podia se ver ao centro um objeto semelhante a uma almofada metlica, sobre a qual havia um cofre escuro; uma chama parecia se desprender de sua tampa. Naraiana pegou o cofre, levou-o at a mesa e o abriu. O interior era forrado por um tecido azul desconhecido para Ralph. Sobre o fundo maravilhosamente macio, se achavam dois frascos fechados com tampos de ouro, uma pequena colher tambm de ouro, do tamanho de uma casca de noz, e uma pequena gaveta arredondada, revestida de marfim. O jovem mdico olhava com um sentimento de curiosidade mesclada de assombro supersticioso - o contedo do cofre e os frascos guarda-vam um dos maiores mistrios terrestres. - Eis aqui o "Elixir da Longa Vida", disse Naraiana. Quem o descobriu? Quem arrebatou do caos csmico essa formidvel substncia? Eu ignoro. Aquele que me iniciou declarou que o recebeu da mesma maneira que o transmito a voc neste momento. "Entretanto lhe digo o que se disse a seu respeito, sem comprovar a verdade dessas palavras, pois tudo aqui mistrio e as qualidades do elixir da longa vida no foram ainda totalmente estudadas e se teme manipular essa perigosa substncia. Diz-se que um gs com a propriedade de manter o equilbrio entre os diferentes elementos do corpo humano. Uma outra tradio afirma que, sob a proteo de quatro guardies, essa substncia jorra de uma fonte de fogo, no centro da terra; um dia, um profano alcanou tais profundezas de nosso globo e se apossou de certa quantidade desse lquido misterioso."Como o conseguiu? "Conheceu o processo qumico para criar o fogo lquido que enche esses frascos e o p desse cofre? Tudo permanece um mistrio e eu posso apenas mostrar o modo de usar essas substncias. Naraiana abriu a tampa do frasco contendo um p branco, e mostrando a colher de ouro, disse: - Se retirar do frasco uma colher desse fogo lquido e uma quantidade de p do tamanho de uma cabea de alfinete, e em seguida mistur-los, as duas substncias se transformaro num lquido incolor e transparente como gua. E ter o suficiente para propiciar a imortalidade a muitas centenas de ho-mens. Ser desnecessrio que voc mesmo o prepare, pois o elixir preparado por um de meus predecessores lhe bastar, assim como a muitos de seus sucessores. Eu o entregarei no momento exato. Mas, me diga se quer receber o elixir da vida que tanto desejou possuir e aceitar todos os deveres concernentes a esse dom misterioso?Ralph cobriu o rosto com as mos. - Tudo o que me contou permanece at agora to estranho que meu crebro .no consegue se orientar... balbuciou ele. - Acalme-se! compreendo sua emoo, pois j a senti outrora. Alm disso, preciso acrescentar alguns detalhes necessrios para que possa conhecer os bons e os maus aspectos dessa vida que conta os sculos como voc calcula os anos. Voc no estar nunca mais doente e a fadiga, o frio e o calor no o afetaro mais. Dormir como de costume, mas poder prescindir de qualquer repouso. Ficar sujeito sensao de fome e ainda sentir um apetite agradvel, mas conseguir viver por muito tempo sem qualquer alimento. "O elixir misterioso repleta no somente o corpo mas tambm a alma de foras desconhecidas. Voc se tornar clarividente, ver e compreender as coisas imperceptveis aos mortais e poder curar, com um gesto, as. mais diferentes doenas. O veneno, os projteis, o incndio, as conseqncias de todos os excessos deixaro de ser perigosos e em breve seu corpo se tornar indestrutvel!... Naraiana pegou a caixa que havia levado consigo e dela tirou um mao de papis. - Eis os documentos que comprovam a legitimidade do nome e das riquezas do prncipe Naraiana Supramati. Este o meu testamento homologado por notrio ingls de Calcut e pelo qual eu lego a meu irmo caula, cujo nome o mesmo, Naraiana Supramati, todas as minhas propriedades, cuja relao est redigida, bem como a soma de cem milhes em depsitos nos diversos bancos do Antigo e do Novo Mundo. Alm disso, o possuidor do elixir da vida possui muito mais do que essa frao de uma fortuna ilimitada. Veja esse porta-jias. Naraiana se aproximou novamente do armrio e abriu vrios porta-jias. - Esto todos cheios de diamantes, prolas, rubis, esmeraldas e diversas pedras preciosas; cada uma delas representa toda uma fortuna. Apertou um boto e um alapo se abriu instantaneamente, dando acesso a um grande poo. - Aqui se encontram os lingotes de ouro puro. Ignoro totalmente a profundidade dessa mina aurfera e talvez ela desa at o p da montanha. De qualquer modo o tesouro permanece inesgotvel e permite viver como um rei!... E agora examinemos o reverso da medalha. Aps estar saciado de todas as alegrias que a "riqueza sem limites pode oferecer, e aps haver satisfeito sua vaidade, contemplando as baixezas e as aes vingativas dos homens que se arrastam diante do ouro, havendo enfim desfrutado de todos os aspectos do amor e do vcio, o homem se encontra acometido por uma doena terrvel, inseparvel de sua imortalidade - a saciedade. O desejo irresistvel de se evadir do mundo se apodera dele, de fugir de uma vez por todas dos prazeres, de todo o vazio, da lisonja e da avidez dos homens. Percebeu tudo, provou tudo, a alma lasseia neste corpo infatigvel; ento ela comea a sentir o desejo da solido, da calma; tem uma sede doentia de liberdade. Para compreender isso necessrio ter vivido. Quando essas horas de desespero se abatem sobre mim, refugio-me sempre em um de meus castelos solitrios ou num retiro isolado do Himalaia. "L, completamente s, com alguns servidores indispensveis, procuro o esquecimento e a consolao no trabalho e no sono, Mas, o dormir, esse consolador dos pobres e dos deserdados, no pode me apaziguar. Vivo horas negras, batendo nas portas do inferno, invocando os espritos que o habitam. A sede da vida e das folganas os atraem e eles vm me suplicar para lhes dar ao menos uma gota minscula do elixir da vida a fim de poderem se revestir do envelope que o corpo terrestre. - E voc lhes d, a essas criaturas impuras? balbuciou Ralph. - Como pde pensar isso? Sou inflexvel, pois sempre receei enfrentar imprudentemente as leis terrveis e desconhecidas. Um silncio longo reinou. Plido, com olhar de febre, mudo, Ralph contemplou os tesouros acumulados e o lquido terrvel. - Tente se acalmar e pensar livremente. No exijo resposta imediata. Voc tem o direito de querer que o tempo exista para pensar nos "prs" e nos "contras" da proposio. Ele se levantou, arrumou as caixas e os cofres, fechou o armrio. Depois se virou para Ralph e disse: - Venha! Para distra-lo, lhe mostrarei a sala dos ancestrais, o lugar onde repousam meus predecessores. Levantou uma cortina e abriu uma porta. De novo se encontravam no corredor estreito e cavado na rocha. Depois de terem dado vinte passos, viraram direita e o doutor viu com espanto que a galeria continuava, talhada no gelo. Nesse corredor se notava aqui e ali, trips de gelo, onde era queimada uma substncia que projetava uma luz deslumbrante, mas sem nenhum calor. Um frio glacial assolava as paredes azuladas e duma transparncia de cristal. Ralph seguiu seu estranho guia, sentindo arrepios desagradveis. Alguns minutos de marcha e eles entraram em larga gruta, iluminada como a galeria, e duma altura fantstica. A ateno de Ralph foi imediatamente atrada por uma fila de sarcfagos cinzelados na neve, cujo pequeno nmero era ocupado por corpos. De corao aos pulos, Ralph examinou os restos destes homens que haviam vivido fora das leis conhecidas da natureza, e raa dos quais ele poderia pertencer, se assim o desejasse. Todos eles eram bonitos; na flor da idade, pareciam dormir em paz nos seus tmulos de gelo; todos estavam igualmente vestidos de longas e largas tnicas brancas; suas cabeas estavam coroadas de flores brancas, fosforescentes, frescas como se acabassem de ser colhidas. Naraiana se aproximou de um destes imortais que repousava num sono pleno de paz e fixou sobre ele seu olhar pensativo e sombrio. Depois, se virando ao doutor, mostrou um sarcfago vazio e pronunciou com um acento. impossvel de definir: - Meu lugar ser perto daquele que me iniciou; depois... mais longe, ser o seu, o dia quando queira pr fim sua longa peregrinao na terra.Ralph olhou para ele interrogativamente. - Somando tudo, voc no imortal e seu.corpo destrutvel - voc pode morrer!Naraiana sorriu. - Sim, eu posso morrer, mas escolhendo o momento propcio dissociao de meu corpo. Compreenda bem: se escolho o momento e tomo uma segunda vez o elixir da longa vida mesclado com o sangue estranho, j corrompido, da eu queimo os liames que me retm e serei livre. - Eu tambm poderia, em. caso de necessidade, empregar esse meio para minha libertao? -Certamente; se voc fixar o instante propcio, mas no antes de alguns sculos. Finalmente, no creia seja fcil morrer depois de ter vivido assim tanto tempo. Ah! o que adviria ao homem se ele no possusse esta esperana de alforria?! Conserve ento cuidadosamente o lquido misterioso; se voc o perder ou se o roubarem, voc perde a possibilidade de morrer... E agora vamos voltar. Atravessando a galeria de gelo, Ralph sentiu de novo tremer seu corpo. O frio lhe penetrou at os ossos e uma terrvel fraqueza paralisou suas pernas. Na sala redonda tomou um copo de vinho e suas foras pareceram voltar. Depois pediu a Naraiana permisso para se deitar; estava sentindo tal lassido que lhe seria impossvel refletir ou tomar qualquer deciso. Naraiana conduziu assim seu hspede a um pequeno quarto cavado na rocha e luxuosamente mobiliado. Um fogo vivo queimava na lareira, expandindo uma quentura agradvel, mas Ralph continuava a tremer todinho. Sem mesmo se despir, se jogou num div, se cobriu com um cobertor bem espesso de l, dormindo logo num sono pesado e febril Quando acordou se sentiu mal. Queimava de febre. Um arrepio gelado o percorria, os braos e as pernas pesavam e lminas de fogo verrumavam o peito. Mdico, compreendeu logo que havia tomado friagem na geleira e que sofria agora o incio de uma congesto pulmonar. Quis se levantar mas no teve foras e recaiu desesperado sobre o div. Morreria s nessa gruta, to perto do elixir misterioso? Logo Naraiana entrou. Depois de ter examinado o doente, abanou a cabea e disse com interesse: - Acho que abusei de suas foras. Voc tomou friagem e este novo mal vai precipitar o inelutvel Meu amigo, faa-me um favor, antes de morrer - d-me um pouco de seu sangue, a fim de que ou possa empreg-lo em minha libertao...Ralph estendeu a mo e sorriu fracamente.- Pegue... murmurou ele. Naraiana lhe levantou a manga da camisa e tirou um frasco de seu bolso; depois, com um bisturi, fez uma inciso na pele. O sangue surgiu e Naraiana encheu o frasco; com a destreza de um cirurgio experimentado, fez um curativo na ferida. - Agradeo. E agora, adeus! disse Naraiana apertando a mo febril de Ralph; dirigiu-se porta; Ralph o chamou com voz estrangulada: - Me d um pouco de seu elixir... caso a morte me amedronte muito, gaguejou cheio de desejo e vergonha. Um sorriso estranho correu o rosto bonito e grave de Na-raiana. .-Bem... eu lhe trago, respondeu ele. Um minuto depois ele voltou com um cofre que abriu. Duas garrafinhas ali estavam - uma maior que a outra. Naraia-na tomou um copo de cristal e derramou um pouco do lquido que. enchia o frasco maior. Depois, levando a taa luz, mostrou ao doutor a substncia igual ao fogo lquido que se movia no fundo. - Veja! declarou ele, pousando a taa sobre a mesa e re-cobrindo-a com cuidado com uma fina laminazinha de vidro. Se voc a beber ser o senhor daqui, de toda a minha herana. Este frasco contm o elixir pronto para ser usado. Adeus! . E, depois de ter posto no cofre o pequeno frasco, ele se inclinou e saiu. O doutor ficou s. Fixou o copo que continha a imortalidade, ficou imvel, incapaz de se decidir a tomar as tais gotas necessrias. Por enquanto seu estado piorava a cada instante. Seu corpo devia estar com febre bem alta; dores agudas dilaceravam seu peito, a respirao se tornava difcil e parecia, por momentos, que iria sufocar. Apesar da bebida vivificante que ele tinha mo, a sede se fazia cada vez mais torturante. Uma nuvem escura descia sobre seus olhos e o doutor perdia s vezes a conscincia. O terrvel desconhecido que foia a vida humana estava prximo... Bruscamente uma lembrana amarga apertou o corao de Ralph - ele nem havia vivido! sua juventude laboriosa se havia escoado na pobreza e na luta pelo po nosso de cada dia e quando enfim tinha conquistado modesta facilidade, a molstia chegou... Agora ele devia morrer perto de um copo cheio de vida, do elixir da vida, e desaparecer, vtima de sua prpria indeciso. Certamente o mistrio desta obra era temvel, inconcebvel, mas no seria isto prefervel morte pesada que o penetrava lentamente? De repente a respirao lhe faltou; uma massa pegajosa encheu seu peito, subiu garganta e o estrangulou. Crculos de fogo rodopiaram diante de seus olhos e Ralph perdeu a conscincia do que o rodeava. rr Assim que Ralph voltou a si, a febre havia dado lugar a uma sensao de frio glacial e de fraqueza mortal; seus membros pareciam de chumbo e se recusavam a mover... Ele viu com assombro, ou imaginou ver, um vapor negro emanar de suas mos e de seu peito. Angstia lancinante, terror demente se apoderaram dele ao pensar na sua extino to prxima. Quis pegar o copo mas no conseguia levantar o brao. Havia esperado demais... Mas no!... ele no morreria quando a salvao estava l to perto; toda sua vontade despertou e num esforo sobre humano ele se ergueu; seus dedos enregelados tocaram o copo e atiraram a tampa de vidro ao cho. Perfume fortssimo, sufocante, lhe bateu no rosto e sua ao foi to violenta que ele pareceu aspirar a vida ela mesma. Sua razo se aclarou e a respirao se tornou fcil. Sem hesitar por mais tempo, levou o copo aos lbios e de um s trago o esvaziou. Primeiramente Ralph pensou ter sorvido fogo lquido, depois experimentou um estouro interior. Seu corpo se dissociava em milhes de tomos que turbilhonavam num mar de luz resplandecente. O pensamento de que tinha sido enganado e envenenado atravessou sua cabea; depois caiu fulminado no div. Ele no saberia dizer quanto tempo esteve assim no estado de inconscincia. Mesmo quando reabriu os olhos, no pde recordar com mais clareza os ltimos acontecimentos e acreditou estar em Londres, em seu pequeno apartamento. Em seu espanto mudo, seu olhar se extraviava pelo quarto onde estava, nos tecidos orientais to espessos, nos mveis antigos e mons truosos objetos que enchiam a sala em seus lugares - tudo to desconhecido a ele! Mas, o copo vazio que se achava sobre a coberta obrigou Ralph a lembrar sua extraordinria aventura. Angstia aguda e terror, diante desta ao inconsiderada, irrevogvel o oprimiam. Reviu sua chegada ao cume da geleira, evocou o discurso do desconhecido, sua prpria agonia e o pavor da morte que o levou a tomar essa misteriosa essncia cujo efeito interrompia a decomposio de seu corpo. Sentia-se forte e muito bem de sade, como nunca antes havia se sentido. Um calor agradvel corria em suas veias. Seus pulmes respiravam facilmente; seu corao batia calmo e regular. O irresistvel desejo de rever Naraiana tomou conta dele. Saltou do div, se arrumou apressadamente e se aproximou dum espelho que no havia notado antes. Acendeu velas de dois candelabros e se preparava para pentear seus cabelos espessos e escuros, quando olhou descuidadamente no espelho; tremeu de emoo, dando um passo para trs; aquele belo homem, cheio de fora e energia, olhos brilhantes de luz intensa, lbios vermelhos - aquele homem jovem era ele?!... Nenhum trao de palidez terrosa do rosto, dos crculos de olheiras, da fraqueza que tinha curvado, antes da idade, seu talhe alto e elegante. Aquilo era um milagre! ele era uma outra pessoa! ele sentia que uma fora inexaurvel de vida havia reentrado em suas artrias. Lentamente voltou sobre seus passos, sentou numa poltrona, o rosto escondido entre as mos, e se abismou em meditao. Angstia e terror de antes haviam desaparecido, deixando lugar a uma serenidade estranha, um profundo bem estar, mesclado a um sentimento de ufania orgulhosa. Um minuto se escoou... Ralph se levantou, estirou gostosamente as pernas e os braos cheios de fora, e saiu do quarto; queria ver Naraiana e interrogar a respeito de numerosos problemas que lhe pareciam ainda obscuros, mas o procurou em vo. Sob o imprio de dolorosos pressentimentos, dirigiu-se quase correndo aos tmulos dos ancestrais. Desta vez atravessou a galeria fria sem sentir frio algum; corrente quase perene parecia emanar do gelo, mas isso .quase lhe passou despercebido. Corao opresso, entrou na sala onde se achavam os sarcfagos gelados destes homens misteriosos que haviam se saciado de vida. Com simples olhar pde se certificar da verdade que lhe havia feito sentir Naraiana; em um dos caixes antes vazio, agora Naraiana repousava. Ralph correu a ele abafando um grito e, inclinado sobre a tumba, contemplou o belo rosto imvel sobre o qual parecia se haver extinto a expresso clara do triunfo - ele havia penetrado o mistrio, depois de ter voluntariamente cortado o lao que o atava indesejvel matria. Chegaria um dia em que Ralph seguiria o mesmo caminho e viria repousar perto daquele que o havia iniciado. Uma fraqueza sbita o invadiu; inclinou-se sobre seu futuro caixo e fechou os olhos. Um terror imenso se apoderou dele, diante da imensidade de tempo que se escoaria diante de seu esprito, como se fosse um caminho sem fim... - Oh! Naraiana! Por que me tentou? Por que me abandonou, sem me dizer o que era essa essncia que tomei? O que devo fazer para preencher este vrtice de tempo, sem perder a razo?! murmurou ele com tristeza e desespero. - Estude os mistrios que o cercam, procure a verdade sob todas as formas, e a eternidade mesmo no lhe parecer to longa, respondeu logo uma voz profunda e sem vibrao. Ralph estremeceu e se endireitou em seguida, com um gesto rpido, olhando com espanto e susto um velho muito.alto que estava cabeceira do sarcfago de Naraiana. Os traos severos do rosto do desconhecido respiravam calma; grande barba branca caa sobre a tnica, duma brancura de neve e de sua testa jorravam chispas, formando nele estranha coroa de fogo. Seus grandes olhos sombrios perscrutavam Morgan. - Eu sou aquele que descobriu o mistrio e retirou do caos csmico esta essncia primitiva, criadora, que voc tomou e que tornou seu corpo indestrutvel, porque ela formar constantemente em si os novos elementos vitais. Eu protejo todos queles que se servem de minha descoberta. O velho recuou um passo, se encostou na muralha de neve e se desvaneceu como se fosse um vapor azulado... Ralph ficou sozinho e uma transformao singular se operava em seu estado de esprito. A inquietude, a angstia nervosa e o terror do futuro se tinham milagrosamente dissipado e cediam diante da serenidade e energia resoluta. Saiu da sala dos ancestrais e se dirigiu pea onde se guardavam os tesouros. Naraiana deveria ter estado ali ainda uma vez, pois sobre a mesa se encontravam a caixinha aberta que o defunto tinha levado com ele, um grande guardanapo de couro vermelho e um livro grosso de cantos metlicos. Ralph examinou esses objetos com curiosidade e folheou as pginas de pergaminho amarelado, coberto de signos bizarros e desconhecidos para ele. Depois abriu o guardanapo; ali estava toda uma srie de documentos, e tambm um embrulho com fotografias representando as vistas interiores e exteriores de dois castelos antigos, um borda do Reno, e o outro na Esccia. Este ltimo interessou particularmente ao novo proprietrio. Como um ninho de guia se levanta o gigante com os muros dentados, suas seteiras e suas torres sobre uma alta rocha pontiaguda. Uma tristeza indefinvel emanava desta paisagem deserta, desta srie de gargantas e rochedos, ao p dos quais se espumavam as vagas confundidas: o castelo to alto, terminando to baixo, nas guas. Sem dvida Naraiana tinha, amado es-tes lugares solitrios, longe dos homens e dos rumores profanos. Ele deveria ter muitas vezes contemplado de um desses terraos o abismo que se estendia diante dele, o oceano sem limites, desdobrando seus enormes horizontes, meditando sobre seu destino to estranho. O sentimento brusco e obscuro de que a solido constitui uma necessidade inelutvel para o homem imortal, se insinuou na alma de Ralph e assombrou, como uma nuvem cinzenta, a confiana feliz que enchia toda sua alma. Ele rejeitou as fotografias e tomou uma carteira que tinha visto nas mos de seu predecessor. Ali encontrou um mao de garantias bancrias, de endereos, de certificados de todos os gneros. O doutor no sentia nesse momento nenhum desejo de examinar estes papis; ele arrumou a carteira em um de seus bolsos; depois tomou do nicho secreto onde estavam escondidos os tesouros, dois pequenos sacos cheios de pedras preciosas e os ps, com o livro.e o guardanapo, em uma caixinha. Ele tinha pressa de sair, mas o medo de no mais encontrar o caminho difcil que tinha seguido seu guia tomou conta dele. Logo um fenmeno estranho teve lugar - todo caminho se desenhou como uma tela imensa, como ele deveria descer. Cada subida, a menor depresso do terreno, cada volta, tudo se marcou com uma preciso tal que a dvida e o receio desapareceram. Calmo e cheio de uma energia nova, Ralph fez os ltimos preparativos para sua viagem. Depois desejou pela ltima vez contemplar a vista esplndida que o tinha to fortemente emocionado sua chegada. Os primeiros raios do sol levante inundavam de ouro e prpura as geleiras, os rochedos e vales longnquos. A natureza magnfica parecia em fogo. O ar era to puro e vivificante que Ralph o solveu com prazer. que desde longo tempo ele se achava privado de respirar assim, facilmente, a plenos pulmes. Uma intensa alegria de viver acordou em sua alma. Oh! Como se rejubilava em ter bebido aquela essncia que regenerava o ser! Este sol levante parecia o smbolo de seu futuro radioso. Voltaria aos homens com corpo.e esprito renovados, rico, e forte e ainda com uma bela situao social. Nesse momento a vista sem fim lhe pareceu o supra-sumo de todas as felicidades possveis e, levantando os braos gritou: - Oh! Naraiana! Como pde abandonar o tesouro, o mais precioso, e partir voluntariamente para o mundo desconhecido? possvel se locupletar enfastiado da vida?! Oh! Nunca!...- Ah! Ah! Ah! Um riso perturbador, sinistro, se fez ouvir e se repetiu em ecos que foram se perdendo, no espao;Ralph estremeceu e calou a boca... Que era isso? O Esprito das Geleiras se ria dele? Ou algum campons perdido numa caverna profunda cantava para se distrair? Isso foi o que ele pensou, mas seu impulso de felicidade se extinguiu bruscamente. Reentrou no corredor tomado por ligeira irritao - queria pegar seus agasalhos, a caixinha e deixar o mais depressa possvel estes lugares estranhos. Viu, com grande assombro, porta do quarto, um homem encostado parede; sua aproximao o estranho veio em sua direo, parou e, cruzando os braos, a cabea inclinada, ficou assim, numa atitude de grande deferncia. Ralph reconheceu o servidor que acompanhava Naraiana em Londres e que desapareceu no momento da subida geleira. O estranho domstico tinha trocado sua libr simples mas elegante por uma vestimenta cinzento-marrom, calas estreitas, sapatos de pontas agudas, blusa amarrada na cintura por cinto de couro e capuz alto sobre a cabea.Esta bizarra criatura parecia, assim vestido, um gnomo vivo, sado de um conto de fadas... - Eu o sado, meu novo senhor! disse o gnomo se inclinando at o cho. Seja tambm benvolo com respeito a Agni o quanto o foi Naraiana. - Tentarei satisfaz-lo, Agni! Mas me diga como chegou at aqui, respondeu Ralph com bondade, pousando sua mo na espdua de Agni. O ano soltou um suspiro profundo. - Nunca me pergunte quem eu sou ou de onde eu venho. Sou o guardio destes lugares e eu no os deixo seno para seguir um novo senhor. Como?.. Ento, voc tambm!... exclamou Ralph recuando sem. querer.Agni interrompeu com um gesto suplicante: - Eu guardo aqui o mistrio maldito e os corpos de meus senhores, balbuciou ele, com ar carrancudo.Depois, passando a mo na testa, ele ajuntou: - Eu o servirei fielmente, o atenderei sempre e quando vier, encontrar sempre todas as coisas prontas. E ela? Vai deix-la aqui, senhor? Leve-a; ela sempre segue com os senhores. Sua presena apenas complica a calma deste lugar, pois atrai os Espritos do Gelo. - No sei de quem voc est falando. Existe uma mulher aqui? perguntou Ralph surpreso. - Ah! Naraiana no lhe falou dela... Nesse caso, Senhor, me permita conduzi-lo at esta senhora. Ela ignora ainda que Naraianaj faleceu. Ralph enxugou sua testa mida. Que acontecia com ele? Dormia ou tinha ficado louco? De resto ele no poderia mais recusar e deveria conhecer todas as pesadas cargas que a herana lhe trouxera. Tratava-se certamente duma mulher que Naraiana havia tirado de sua famlia e depois abandonado... - Conduza-me at ela, ordenou ele com voz firme a seu servidor. Agni abriu no corredor uma porta que Ralph ainda no tinha visto e subiu uma estreita escada em espiral. Chegaram ao segundo piso desta estranha habitao e se encontravam diante de um reposteiro pesado que Agni levantou. Estupefato, parou na soleira de um salo todo forrado de estofados de seda pintalgada, bordada a ouro e mobiliada ao gosto oriental. Em frente, entrada, havia uma larga janela cavada na rocha e uma vista to maravilhosa quanto aquela da esplanada que se abria imensidade. Mas nesse momento o jovem homem ficou indiferente s belezas da natureza. Toda sua ateno se fixou sobre uma mulher quase deitada, sobre almofadas de prpura de um div, perto da janela. Era uma mulher ou uma criana de catorze anos? Ralph seria incapaz de dizer, porque ela parecia pequena, terna, area. A tez plida e mate de seu rosto era estranhamente transparente, a tal ponto que o sangue no parecia circular sob sua pele acetinada. Mas os lbios vermelhos, toda sua figura era muito saudvel. Apesar do frio que reinava naquelas alturas; a desconhecida estava vestida com leve penhoar de musselina hindu, com bordados de ouro; preso na cintura por um .cordo. As mangas largas.deixavam ver os braos de beleza divinamente clssica. Ralph contemplava, enlevado, esta mulher misteriosa, cujo olhar parecia perdido no espao;. ela estava profundamente abismada em seus pensamentos, esquecendo o mundo exte-rior.Ela era a Fada das Geleiras, enfeitiada naqueles lugares? No mundo fantstico onde o destino o tinha jogado, tudo comeava a parecer possvel ao doutor. O passo ligeiro de Agni atraiu a ateno da desconhecida; ela se voltou num gesto rpido e olhou silenciosamente os que chegavam. Ralph guardou silncio, ela tambm. Ele nunca tinha visto ainda um rosto de beleza to surpreendente, anglico, apesar de sua juventude. Grandes olhos negros, aveludados, com longos clios, cuja flama muito viva tornava intolervel sustentar o olha dela o fixando. Agni se aproximou e pronunciou palavras em uma lngua que Ralph no conhecia. A jovem mulher - ou donzela - estremeceu e se levantou rapidamente. Seu olhar queimante, com expresso enigmtica, examinou-o dos ps cabea, a silhueta fina e elegante de Ralph. - Aproxime-se, Senhor, falou ela em ingls, estendendo a mo ao doutor. Ralph avanou maquinalmente, tomou os dedos finos da jovenzinha e os levou aos lbios. Ele no viu um sorriso maldoso que perpassou pelo rosto de Agni. - Agora tenho certeza de que ela no ficar aqui, murmurou o gnomo, desaparecendo sem rudo por trs de uma porta. Um silncio pesado reinou por um instante. O corao de Ralph batia violentamente e um sentimento jamais vivido invadiu-o pouco a pouco, o tomando todo. - Posso perguntar, senhora, quem e como se acha aqui? interrogou enfim o doutor hesitante. Uma expresso impenetrvel percorreu os traos mveis da estranha. - Me chamo Nara e voc vai ler que estou no testamento do homem do qual voc o legtimo herdeiro, respondeu ela com voz clara, sem tirar seu olhar abrazador de seu interlocutor. O doutor segurou com gesto nervoso a pasta que ele tinha posto no bolso, tomou o testamento e o percorreu rapidamente. Subitamente empalideceu e exclamou muito emocionado: - A senhora a viva de Naraiana? Ele escreveu que devo despos-la... . . - E voc assim no o deseja? perguntou Nara em tom trocista. - Sim, eu quero! exclamou Morgan com fora. Eu no tinha ainda em minha vida encontrado mulher to fascinante quanto a senhora! Se consentir em ser minha, a herana de Naraiana me ser duplamente preciosa e sagrada. Assim que sua dor to legtima diminua, desde que o tempo de seu luto toque ao fim, eu serei feliz em unir minha vida sua.Nara sorriu. - Neste caso, deixemos este lugar. Se no se ope, vamos para Veneza. Temos ali um palcio maravilhoso. Ns dois precisamos repousar das emoes sofridas; tomaremos outras resolues e escolheremos a data de nosso casamento. Nada de pressa. Deus seja louvado! Temos tempo! Seu sorriso, sua resposta, produziram em Ralph uma impresso desagradvel. Questes, pressentimentos, dvidas, assaltaram em multido o esprito do doutor. Esta mulher misteriosa era imortal tambm. Mas por mais que ela parecesse jovem, com sua pele branca e acetinada, sua graa virginal, o seu olhar traa o segredo de sua vida; faltava-lhe certo frescor, certo descuido alegre, prprio da juventude. O olhar de Nara dissimulava os mistrios que Ralph j havia lido nos olhos de Naraiana. Ela tinha sido sua esposa. Ento por que Naraiana a tinha abandonado.?, Certamente ele devia am-la, pois havia lhe dado a essncia preciosa para t-la, perto dele. .E, no entanto, no olhar frio e calmo de Nara, no se viam nem tristeza, nem saudade.do ser que, durante sculos, fora o companheiro de uma longa jornada terrestre, o marido cuja morte ela tinha acabado de ter conhecimento. Malgrado o sentimento maravilhoso provocado nele pela jovem, um arrepio glacial percorreu as veias de Morgan e um profundo suspiro veio de seu peito. Nara o observava com seu olhar ardente. Seus olhos aveludados se ensombraram e depois lanaram chispas. Parecia que ela lia seus pensamentos e lhe respondia. Bruscamente ela se atirou ao jovem homem e sua mozinha roou a testa de Ralph. - intil refletir e se torturar por vs questes, meu pobre amigo, disse ela num tom onde a..amargura se confundia com a ironia; o Tempo, nosso grande mestre e senhor, o ensinar a julgar diferentemente cada coisa. Voc se acha agora sob o imprio do sentimento, de lembranas e de convices prprias vida ordinria, breve e ilusria - como a existncia de um simples mortal. Talvez um dia lhe falarei de Naraiana, mas no hoje... A hora de.nossa partida chegou. V e me espere na sala dos tesouros. Mudo de roupa e me junto a voc em seguida. Ralph se inclinou silenciosamente e foi ao quarto que j conhecia bem. Sentou-se perto da mesa onde ele tinha pousado seu manto e a caixinha. Com o rosto coberto por suas mos, ele se abismou em meditao, se esforando para pr em ordem os prodigiosos acontecimentos dos ltimos dias, nos quais ele se sentia preso como numa teia de aranha. Um barulhinho o tirou de suas reflexes. Ele se voltou e viu Nara que entrava, abotoando as luvas. Ela estava vestida numa roupa simples de pano preto, jaqueta e chapu de feltro. Trazia pequenina mala de viagem em couro e uma bengala de alpinista. Nara poderia ser confundida com uma turista aristocrtica viajando pelas montanhas. Sua roupa fazia sobressair ainda mais vantajosamente a beleza de seu rosto, de uma brancura deslumbrante e de seus cabelos cinza com reflexos dourados. - Ralph Morgan -voc no esqueceu o caminho? Alis, eu o conheo muito bem e posso mesmo lhe indicar um outro bem mais curto, fez a jovem mulher, e um sorriso escorregou sobre seus traos, quando seus olhos reencontraram os olhos entusiasmados do doutor. - Eu me lembro do caminho. Mas como sabe meu nome? Eu no creio hav-lo pronunciado nem uma vez diante de si, acrescentou Ralph espantado.Nara riu com malcia. - Ento no devo saber o nome de quem vou desposar? De resto desde este dia voc o prncipe Naraiana Supramati. No conserve seu nome, Morgan, caso o incgnito lhe seja necessrio. E agora vamos embora! Sem nada dizer, Ralph a seguiu. Ele comeava a experimentar uma inquietude supersticiosa diante desta criatura adorvel, que parecia compreender seus pensamentos, lendo seus desejos. A descida foi bem mais rpida que a subida e tarde Ralph e sua companheira chegaram ao hotel, onde ele tinha passado uma noite com Naraiana. O mdico veio a saber que Nara ali j ocupava um quarto onde a sua bagagem se encontrava. No dia seguinte pela manh Nara apareceu vestida de luto e tomou com Ralph um trem para Veneza. Esta viagem passou a Ralph como um sonho. Ele no via nem ouvia seno sua companheira feiticeira; toda sua sensibilidade havia atingido o paroxismo da superexcitao, e, sentado no compartimento diante da jovem mulher, ele se embriagava de sua beleza, esquecendo todas as demais coisas. Ralph voltou de seu encantamento no momento em que Nara, tocando sua mo, lhe disse sorridente:- Olhe! Estamos em Veneza. Ele sempre teve interesse por essa cidade e desejou conhec-la, mas certamente ele nunca pensou, mesmo em sonho, em visit-la na qualidade de um prncipe hindu e imortal. Sua paixo por Veneza acordou e ele a olhou com curiosidade da janela do vago. O trem j atravessara a ponte gigante que liga Veneza terra firme e parava na gare. Assim que foram abertas as portas dos vages, Nara desceu lentamente para o cais. Percebendo dois lacaios de libr que procuravam seus patres na multido, ela se voltou para Morgan e disse: - Eis nossos servidores! No mesmo momento um dos lacaios se aproximou rapidamente e lhe disse com profunda reverncia:- A gndola espera por Vossas Altezas. - Bem, Batista! Traga nossas bagagens; venha, meu irmo!Ela tomou o brao dele, Morgan, e se dirigiu ao cais. Sentaram-se numa grande gndola manobrada por dois remadores. Atravessaram silenciosamente o grande canal; depois, aps terem seguido por uma laguna lateral, pararam diante das portas de antigo e grande palcio. A noite chegava. Na sombra crepuscular, as velhas casas que bordejavam o canal tomavam um aspecto sombrio e fantstico. Ralph saltou primeiro sobre os degraus da escada e ajudou a jovem mulher a sair da gndola. Entraram em um grande vestbulo iluminado "a giorno" por lmpadas eltricas. Muitos domsticos se precipitaram a encontr-los para os.ajudar a tirar os mantos. Desde que Nara e Ralph entraram no palcio, um velho libr, todo de preto, apareceu no alto da escada de mrmore, ornada de flores e esttuas; ele desceu rapidamente e saudou respeitosamente Nara, que lhe estendeu a mo para que ele a beijasse e disse numa voz entrecortada de soluos: - Trago hoje uma dolorosa notcia, meu bom Giuseppe; meu bem amado marido est morto! "Nara decididamente uma comediante completa!" pensou Morgan, vendo-a levar o leno aos olhos, enxugando lgrimas imaginrias. O velho empalideceu e grossas lgrimas correram em seu rosto sulcado: - Nosso bom senhor est morto? balbuciou ele. Que desgraa imprevista! Ele parecia to bem de sade. - Pois ! A vida humana to frgil... Contarei mais tarde os detalhes de sua morte. Hoje estou to cansada e sentida que tenho pressa em ficar sozinha... Mas quero lhe apresentar meu cunhado, o novo senhor - prncipe Naraiana Supramati, irmo caula de meu falecido esposo e seu nico herdeiro lega!... Eis seu fiel intendente, Giuseppe Rosatti. Eu o recomendo sua generosidade, Supramati...Vou me retirar a meus aposentos; agradeo-lhes todo o apoio que me prestam neste momento de grande dor. Ralph beijou a mo de Nara e lhe desejou boa noite. Tendo subido alguns degraus da escada de mrmore, Nara se voltou de novo! - Giuseppe, acompanhe o prncipe at as cmaras de seu finado irmo. Espero que tudo ali esteja em ordem, sim? - Oh, Alteza! A ordem reina por tudo. No poderamos supor que nosso patro no mais voltasse... - Muito bem. Verifique se o prncipe esteja a contento com o servio, e que, amanh, toda a casa fique em luto. Ela teve um gesto gracioso, subiu a escada correndo e desapareceu por uma porta lateral. - Queira me seguir, Alteza! falou o velho interrompendo os pensamentos de Morgan, que ainda no tinha chegado a se orientar nessa nova situao. Gracioso, Beppo; vejam imediatamente se tudo est em ordem para receber Sua Alteza. Os valetes se evaporaram como sombras. Ralph seguiu silenciosamente o intendente que subiu a escada e atravessou uma longa galeria aclarada por altas janelas gticas apenas por um lado. - Eis os apartamentos de Sua Alteza, disse Giuseppe, indicando uma porta ao fundo da galeria. Atravessaram uma fileira de peas mobiliadas com luxo realengo e to ricamente ornadas de obras de arte, muito preciosas, que cada quarto constitua um pequeno museu. - O gabinete de trabalho do finado prncipe... esta porta direita abre para a biblioteca; esta esquerda d para o quarto de dormir. Estas palavras foram ditas pelo intendente,.enquanto o valete Gracioso pegava com respeito o manto e o chapu de Ralph. Este olhou curioso ao derredor de si; estava numa grande cmara construda em carvalho escuro e mobiliada com severa simplicidade; as guarnies dos mveis e as cortinas das portas eram em couro marrom. Sobre uma grande mesa de carvalho cinzelado, viu um tinteiro de ouro e lpis-lazli e uma lmpada num abajur azul que aclarava fracamente a pea. Atrs da porta aberta da biblioteca se viam prateleiras esculpidas que cobriam as paredes at o teto - mas isso no atraiu a ateno de Ralph. O jovem homem se dirigiu diretamente ao quarto de dormir. Era uma pea de dimenses menores, forrada de seda vermelha escura, com mveis baixos e leves e uma cama bem grande com dossel. - Vossa Alteza quer lhe prepare um banho para seu relaxamento aps a viagem e depois jantar? perguntou Giuseppe.- Seria agradvel, seno demorar muito. - Est tudo pronto! E eu darei as ordens para que o repasto seja servido assim que Vossa Alteza saia do banho. Os valetes conduziram, Ralph a um gabinete provido de todos atributos necessrios toalete dum grande senhor como havia sido Naraiana; depois, na sala de banho que, com suas paredes de mrmore, o cho de ladrilhos formando desenhos, a grande banheira em prfiro e suas esttuas maravilhosas ornamentando nichos, cegou positivamente o modesto mdico que acreditava estar vivendo um magnfico sonho encantado. Aps o banho os valetes vestiram, Ralph de um linho extremamente fino e Beppo lhe estendeu um belo robe em plo felpudo no interior e exterior, de selim branco. - O prncipe finado jamais usou este robe; o encomendou pouco antes de sair, observaram os valetes que explicaram isso, notando a repulsa de Ralph em pr uma roupa j usada por seu finado irmo.- Pois no! disse Ralph. E a pea de.roupa lhe caiu no corpo como sendo feita sob medida. Em seguida passou para a pea vizinha, onde um copioso repasto se achava sua espera. Morgan tinha fome; ento fez honra quele jantar admiravelmente composto e que mostrava o gosto delicado de Naraia-na. - Tragam-me as revistas publicadas nos ltimos dias... depois esto dispensados, Beppo e Gracioso. No terei mais necessidade de vocs hoje, disse Morgan; empurrando sua cadeira da mesa. Os dois valetes tiraram a mesa como se fossem sombras; trouxeram as revistas e saram. Assim que fecharam a porta e que o pesado reposteiro caiu, Ralph ficou s. Um suspiro de alvio saiu de seu peito, pois a presena dos servidores lhe era penosa. - Deus seja louvado! Estou enfim em minha casa! murmurou ele. Estes valetes no me impediro mais de visitar meu novo domnio. Espero me acostumar bem depressa a dar ordens e me tornarei o verdadeiro nababo que tenho que representar. Ralph percorreu todas as peas, examinando cada objeto que ali se encontrava - tudo lhe parecia maravilhoso. Depois voltou ao gabinete de trabalho. Havia posto sobre a poltrona, perto da escrivaninha a caixinha azul da qual no tinha se separado durante toda a viagem. Aproximou uma cadeira, sentou, abriu o cofre e examinou mais atentamente, agora, o contedo total. Antes de acabar esse exame, quis arrumar todos os, documentos na escrivaninha, mas se apercebeu que esta estava fechada. Viu um grande armrio esculpido, quis abri-lo, mas no conseguiu. Desapontado voltou para 'a escrivaninha, quando de repente se lembrou de uma chavinha de ouro que se encontrava em uma das divises da pasta vermelha. Foi peg-la. No entrava na fechadura da escrivaninha, mas com grande alegria dele, abriu o armrio de estilo bem antigo, cuja madeira havia sido finamente trabalhada e que continha uma quantidade inumervel de gavetas e de compartimentos de todos tamanhos. Na prateleira bem do centro Ralph pegou dois cofrinhos e um molho de chaves. Uma das caixinhas era cheia de ouro e de cdulas bancrias, outra de objetos preciosos, alfinetes de gravata, abotoadeiras; berloques e jias de todos gneros. Morgan em seguida examinou os demais compartimentos e caixas. Ali encontrou relgios de todas as pocas e de todos estilos; l uma coleo inteira de tabaqueiras nas quais, estavam engastados diamantes maravilhosos. Num compartimento construdo em forma de pequeno mvel separado se viam todas espcies de frascos, de ampolas e, no fundo da abertura, uma s palavra estava gravada: "medicina". Enfim uma metade toda, do armrio era preenchida de enfeites femininos: jias, fitas, flores secas e sries de miniaturas, de retratos de mulheres maravilhosas. Ali estava a presena de tudo o que seguiu a vida de Na-raiana, longa e cheia de aventuras; Ralph o percebeu. Fechou o armrio, depois veio at a escrivaninha; abriu-a graas s chaves que acabava de encontrar. Na gaveta do meio o doutor encontrou um caderno grosso encadernado, colocado assim ali com a inteno de evidncia. Sobre uma folha de papel em branco, bem visvel, estavam escritas em caracteres firmes e grandes - "Que meu herdeiro leia". Morgan estremeceu... esse homem tinha pensado nele, sem o conhecer! Profundamente emocionado, Ralph folhou o caderno; havia muitos captulos cujos ttulos, escritos com tinta vermelha, eram: "O Crculo Mgico", "Frmula de Evocao", "O Crculo dos Espritos", "Os Habitantes do Reino do Silncio", e outros. Morgan parou. Pareceu-lhe que um vento frio agitou seus cabelos e que um hlito glacial roou suas faces; fechou o caderno com rudo e o jogou numa gaveta. Ele o leria mais tarde, luz do dia, e examinaria atentamente as cartas e os documentos escondidos na escrivaninha e nos diferentes mveis, logicamente. Impossvel se orientar nesta herana imensa qual ele gozava to brusca.e inopinadamente. Ele se deixou recostar na poltrona e se abandonou a meditaes. Ainda no podia se habituar sua, nova existncia. Sua vida modesta de trabalho intenso, sua doena, j eram coisas do passado; Sem nenhum esforo, sem mrito de sua parte, com a simples chegada de um estrangeiro - mgico de lenda -de mdico humilde de um asilo de loucos ele se tornou um prncipe milionrio, pessoa cheia ele sade e de fora, e, coisa mais incrvel entre todas, um ser quase imortal. O fim de toda a vida - a morte - esta companheira fiel e terrvel, esta libertadora, tambm se achava descartada de seu caminho, seno para sempre (Naraiana no havia morrido?) ao menos por durao indeterminada. Assim a morte no o espreitava mais, a velhice no o tornaria fraco, debilitado pela idade, as doenas no atrapalhariam as alegrias de sua vida... Ele se levantou rpido e foi olhar num espelho e se ps a estudar como se ele fosse outra pessoa. A imagem refletida o contentava muito; custava-lhe crer que Morgan fosse assim to bem feito! Sorriu sua imagem com satisfao ingnua de uma criana e acariciou seus cabelos espessos e ondulados. Depois se sentou de novo na poltrona. Agora seu pensamento se voltou quela mulher misteriosas - herana sua! - como todas as outras coisas. Seu olhar fixou o notvel retrato de Nara que se achava posto sobre a escrivaninha; ela tinha sido pintada vestida com roupa de cerimnia; sua beleza muito peculiar, o olhar um pouco demonaco de seus olhos negros tinham sido pintados com preciso de vida extra-ordinria. E essa criatura estranha e fascinante lhe pertencia... desde que se acabasse o ano de.seu luto, Nara se tornaria a esposa legtima diante dos homens. O corao de Ralph bateu mais violentamente a este pensamento e uma chama lquida pareceu correr em suas veias o abrazando. O relgio bateu quatro horas. O rudo do pndulo tirou Ralph de seus pensamentos. Fatigado de esprito; no do corpo, ele se dirigiu ao quarto de dormir e logo dormiu um sono profundo. J era tarde quando acordou. Com um sentimento; de prazer ele se estirou na cama macia, examinando todos os mveis que o rodeavam, ricos e confortveis. Sbito, lembrou os ltimos meses de sua vida em Londres, suas noites de insnia, sua tosse lancinante, as dores agudas no corao, a inquietude com a qual saltava do leito, aflito por ter perdido hora de servio na clnica; pensou na fadiga que o perseguia em sua volta para casa, quando vinha a p ou de bonde8. Tinha certeza de que j se havia acabado esse passado para sempre e um suspiro de alvio saiu de seu peito. Arrumando-se nas almofadas, apertou o boto chamando os domsticos; dois servos atenderam prontamente e o ajudaram a se vestir. Enquanto se vestia, Morgan se indagava se Naraiana havia conservado suas vestes romanas, as dos sculos da cavalaria, de todos os tempos em que havia vivido. Nesse caso, essa coleo deveria ser muito interessante. Giuseppe chegou quando ele acabava de se vestir. Perguntou-lhe como Sua Alteza havia passado a noite. O intendente lhe fez ver que a senhora o convidava a jantar nos apartamentos dela, pois desejava .apresentar Sua Alteza a seus amigos; estes viriam para saber como havia falecido seu esposo e viriam exprimir suas condolncias.(l) Carro americano, no original "tramway" N.T. Ralph se dirigiu logo aos apartamentos de sua nova e misteriosa cunhada e a encontrou cercada por duas senhoras e trs senhores, todos parecendo muito tristes. Nara tambm tinha uma expresso cansada e dolorida. Ela estendeu a mo a Morgan e depois o apresentou s pessoas presentes, que pertenciam nobreza veneziana. - Vou lhes apresentar, caros amigos, :meu cunhado, irmo caula de meu pobre marido, ele tambm traz o nome de Naraiana Supramati; mas para distingui-lo de seu falecido irmo ns o chamamos apenas por seu ltimo nome. O acolhimento reservado ao herdeiro do Prncipe Naraiana foi de suprema amabilidade. Todos lhe asseguraram amizade, a mais alta estima e formularam o ardente desejo de lhe manifestar seus bons sentimentos. Estas afirmaes polidas respiravam uma complacncia, uma obsequiosidade to interesseira que Morgan experimentou desgosto, respondendo com fria moderao a todos os avanos de seus novos amigos. Em.seguida passaram todos para a sala de jantar; pea suntuosamente mobiliada em estilo veneziano, e todos fizeram honra ao magnfico jantar. Morgan no precisou de se ocupar em agradar seus hospedes; eles j haviam se gastado o suficiente com o doutor. Nara estava vizinha a Ralph, e este admirava interiormente a arte com a qual Nara improvisava sua biografia, e descrevia seus casos de infncia com seu pretenso irmo. A jovem mulher contou que Supramati, nascido de um segundo casamento, era bem mais moo que Naraiana; uma a- feio muito terna tinha sempre unido os dois irmos, se bem que tivessem ficado um longe do outro durante os anos em que o jovem prncipe viajava por prazer, por todos os pases do mundo. ' O espanto de Ralph chegou ao auge, quando Nara pediu a todos os hspedes que se convencessem, eles mesmos, da extraordinria parecena de Supramati com seu irmo. Quando todos aquiesceram e as senhoras reparam em seus olhos e em seu sorriso, uma estupefaciente confirmao deste ar de famlia, Morgan deu muitas gargalhadas. Mas no fundo isto foi ainda um desgosto com que ele se magoou. Era lgico que sua personalidade se desvaneceu na aurola do representante duma riqueza enorme, e a baixeza humana, surda e cega, rastejava diante destas montanhas de ouro... Ralph lanou um olhar involuntrio a Nara, se esforando em penetrar seus pensamentos profundos. Sentiu-se feliz quando se assegurou de que, apesar de seus choros e suspiros, os olhos brilhantes da jovem o fixavam com uma expresso que dizia quanto Morgan a agradava. Quando todos voltaram do salo e que os hspedes se despediram dos donos da casa, Nara lhe declarou que ela partiria na manh seguinte de manh, por muitas semanas, afim de pr em ordem seus afazeres. Os dois jovens enfim ficaram sozinhos. Morgan seguiu sua cunhada ao grande balco aberto que dava vista sobre o canal. Ela se estendeu preguiosamente sobre um div bem baixo e olhou Ralph que, silencioso, estava apoiado sobre os cotovelos na balaustrada. - Meu querido Supramati! Voc est entrando mal em seu papel e tem um ar um pouco selvagem neste meio novo a voc... Por outro lado, espero que a gente tenha explicado seu silncio pela dor experimentada depois da perda de um parente assim prximo, ajuntou Nara, com uma ironia apenas perceptvel. - verdade. Vivo como num sonho, respondeu Morgan, passando a mo na testa. Alm disso, prosseguiu sorrindo, se a morte de meu irmo me torna silencioso, eu noto que sua dor de viva no mais profunda. Vamos dar uma trgua s brincadeiras! Voc no chorou Naraiana e pareceu no achar falta dele nem um pouco. Estiveram casados muito tempo? Nara teve um riso calmo e penetrante, que ressoou desa-gradavelmente aos ouvidos de Ralph. - Tempo suficiente para nos sentirmos pesando um ao outro. Na vida ordinria, um marido leviano pode repudiar sua mulher, mas a morte pode resolver o problema para os dois. Imagine a posio de uma mulher unida a um marido eternamente jovem, cheio de fora, vaidoso, infinitamente exigente, egosta e que engana! Tal aliana pode apagar at um vulco de paixo e esgotar a pacincia de um camelo..E se um esposo comum mente a sua mulher mil vezes em vinte e cinco ou trinta anos de sua existncia comum, quero que voc mesmo conte o nmero de infelicidades conjugais que pode cometer um "imortal" ... Enquanto ela assim se exprimia, uma expresso de tristeza, de desprezo e de indizvel fadiga ensombraram seu rosto. O corao de Morgan estremeceu de piedade profunda e sincera pela companheira de seu estranho destino, esta herana misteriosa de seu benfeitor. Inclinando-se a Nara, Ralph segurou sua mo e murmurou apaixonadamente: - Esquea o passado, Nara! Nesta longa vida que nos espera eu a venerarei, voc ser a nica que amarei e farei de tudo para faz-la feliz. O rosto muito expressivo da jovem mulher traiu sua angstia profunda. - No jure! disse ela abanando a cabea. Voc no se ateria promessa, a uma sequer. No esquea que a fonte de suas foras vitais diferente em voc daquela de todos os mortais. E da voc se torna escravo das fraquezas humanas que voc tem sido at aqui; sim, para todos os prazeres voc est armado de uma inquebrantvel sade. Nenhum excesso, nenhuma paixo o pode enfraquecer, e alm disso, uma inesgotvel riqueza lhe permite satisfazer qualquer capricho. Voc ainda no experimentou o perigo de tais condies da vida. - Compreendo que duvide ele mim, pois me conhece pouco. Seria ento esta desconfiana a meu respeito que a obriga a deixar Veneza? - No. As convenincias mundanas exigem que nos separemos. Quero viver na solido os meses consagrados a meu luto e aproveitar para pr em ordem meus negcios. Voc ter tempo para se acostumar a sua nova existncia. A herana de Naraia-na lhe reserva ainda surpresas de muitas formas; ter de trabalhar tambm na cincia que ensina a utilizao das foras secretas de que voc dispe. No se entristea, meu caro noivo! ajuntou ela alegremente. Voc receber notcias minhas. Quando o ano de meu luto tenha terminado, e que eu volte aqui, festejaremos o instante breve de esquecimento e de embriaguez, nos enganando sobre a continuidade de nossa felicidade e a considerando to eterna como nossa vida. Mas no importa. No deserto da existncia necessrio valorizar a menor alegria, mesmo que ela dure apenas um minuto. E, sem dar a Morgan tempo de responder, Nara fez um gesto de adeus e saiu do balco. rrr A manh e a noite do dia seguinte se escoaram sem trazer acontecimento extraordinrio. As horas passaram em conselhos com o alfaiate, no exame mais detalhado das riquezas do palcio e em conversaes aborrecidas com Giuseppe Rosatti, que mostrou a Ralph os registros, as contas e abordou com ele diversos problemas concernentes administrao da propriedade. No dia seguinte Ralph acompanhou Nara estao, mas ela no lhe disse para onde ia. Triste e quase mesmo desesperado, ele voltou ao palcio que lhe pareceu vazio sem ela. Depois do jantar Morgan subiu a seus cmodos, arrumou o que era necessrio e examinou diferentes objetos contidos nas gavetas da escrivaninha. Encontrou um caderno de capa dura cujas pginas foram escritas por Naraiana. Morgan percorreu algumas folhas do dirio do finado: brinquedos de sua imaginao, fatos reais, notas diversas, impresses vividas. As ltimas pginas do caderno estavam em branco. Ralph procurou o que o finado teria escrito em ltimo lugar: "Existe doena mais terrvel que a saciedade? A saciedade representa a angstia sombria que nos empurra de lugar a lugar, torna todas as coisas intolerveis e esgota a pacincia. J o presente terrvel, mas eu posso me isolar no passado e me levar mentalmente at o futuro. Mesmo no presente eu me choco em toda parte com os homens, esses vermes da terra; suas mordidas envenenadas atormentam a alma, j que no podem destruir o corpo. "Multido repugnante, baixa, venal, ingrata, aduladora; ela se inclina diante da riqueza e esmaga o pobre, incapaz de lhe pagar, pois sua amizade enganadora e traidora. "Oh! quanto estou cansado e enojado! Quanto gostarei de me livrar destas cadeias que me deprimem no corpo. Morte libertadora! Amiga incompreendida! Tenho sede de repouso em seu abrao; quero ser livre... " Muito emocionado Morgan leu estas linhas escritas certamente em pocas diferentes, sob a impresso do momento. Abismado em seus pensamentos, no notou atrs de si a porta se abrir e um homem muito alto entrar, vestindo uma capa preta, com uma mscara em seu rosto. Quando o desconhecido pousou a mo na espdua de Morgan, este deu um pulo e olhou com espanto seu estranho visitante. - No se arreceie, herdeiro de Naraiana Supramati, pronunciou o desconhecido com voz profunda. Voc deve me seguir; sua ausncia apenas durar alguns dias, mas ela necessria. - Estou pronto para partir com voc! Eu sei que me encontro em um crculo mgico que me cerca e que me impe obrigaes s quais no posso me subtrair, respondeu Ralph com calma. Alm disso, no tenho medo d