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137 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 137-149, jan./jun. 2002 O mundo de Ronald McDonald: sobre a marca publicitária e a socialidade midiática Isleide Arruda Fontenelle Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Resumo O palhaço Ronald McDonald – uma das imagens de marca da Corporação McDonald’s – é tomado como paradigma para pen- sarmos as relações entre mercado, mídia e entretenimento, as quais tem uma ligação direta com o que estamos conceituando como “socialidade midiática”. Enquanto uma metáfora ideal de uma propaganda que parece não querer mais fazer sentido, a história do palhaço nos permite desvendar os sentidos contidos em duas das principais práticas do marketing moderno, a pro- paganda e a publicidade, revelando-nos como, entre o nonsense da propaganda contemporânea e uma publicidade que fundiu realidade e ilusão, há uma relação visceral entre mídia e publicidade, que estabelece uma nova forma de comu- nicação, na qual o sujeito torna-se apenas um meio para fins que ele sabe quais são, mas, paradoxalmente, age como se não soubesse. Tal paradoxo é revelador de uma forma de subjetivi- dade profundamente marcada pela mídia enquanto agente socializador, na medida em que a atuação da mídia como me- diador da socialidade contemporânea acabou por alterar o nos- so universo perceptivo, saturando o nosso imaginário de uma forma radicalmente nova. Some-se a isso o fato de que a “socialidade midiática” implica uma nova forma de representa- ção do sujeito no registro do “espetáculo”, no sentido de que “estar na imagem é existir”. Desnecessário dizer o quanto essas questões precisam ser contempladas pelos estudos contemporâ- neos sobre os processos de socialização e o quanto são desafi- adoras para aqueles que atuam no universo da educação. Palavras-chave Propaganda – Publicidade – Socialidade midiática. Correspondência: Isleide Arruda Fontenelle Rua Des. Alfredo Russel, 50 ap. 203 22431-030 – Rio de Janeiro – RJ e-mail: [email protected]

Isleide Fontenelle - O Mundo de Ronald McDonald - Sobre Marca Public It Aria e Sociedade Midiatica

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1 3 7Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 137-149, jan./jun. 2002

O mundo de Ronald McDonald: s o b r e a m a r c a p u b l i c i t á r i a e asocialidade midiática

Isleide Arruda FontenellePontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo

O palhaço Ronald McDonald – uma das imagens de marca daCorporação McDonald’s – é tomado como paradigma para pen-sarmos as relações entre mercado, mídia e entretenimento, asquais tem uma ligação direta com o que estamos conceituandocomo “socialidade midiática”. Enquanto uma metáfora ideal deuma propaganda que parece não querer mais fazer sentido, ahistória do palhaço nos permite desvendar os sentidos contidosem duas das principais práticas do marketing moderno, a pro-paganda e a publicidade, revelando-nos como, entre ononsense da propaganda contemporânea e uma publicidadeque fundiu realidade e ilusão, há uma relação visceral entremídia e publicidade, que estabelece uma nova forma de comu-nicação, na qual o sujeito torna-se apenas um meio para finsque ele sabe quais são, mas, paradoxalmente, age como se nãosoubesse. Tal paradoxo é revelador de uma forma de subjetivi-dade profundamente marcada pela mídia enquanto agentesocializador, na medida em que a atuação da mídia como me-diador da socialidade contemporânea acabou por alterar o nos-so universo perceptivo, saturando o nosso imaginário de umaforma radicalmente nova. Some-se a isso o fato de que a“socialidade midiática” implica uma nova forma de representa-ção do sujeito no registro do “espetáculo”, no sentido de que“estar na imagem é existir”. Desnecessário dizer o quanto essasquestões precisam ser contempladas pelos estudos contemporâ-neos sobre os processos de socialização e o quanto são desafi-adoras para aqueles que atuam no universo da educação.

Palavras-chave

Propaganda – Publicidade – Socialidade midiática.

Correspondência:Isleide Arruda FontenelleRua Des. Alfredo Russel, 50 ap. 20322431-030 – Rio de Janeiro – RJe-mail: [email protected]

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E d u c a ç ã o e P e s q u i s a , S ã o P a u l o , v . 2 8 , n . 1 , p. 137-149, j a n . /1 3 8

The world of Ronald McDonald: o n t h e t r a d e m a r k a n d t h emediatic sociality

Isleide Arruda FontenellePontifícia Universidade Católica de São Paulo

Abstract

The clown Ronald McDonald – one of the trademarks of theMcDonald’s Corporation – is taken as a paradigm to reflectupon the relations between market, media, and entertainment,which have a direct link with what we define as “mediaticsociality”.As an ideal metaphor of an advertising that no longer seems toattempt to make sense, the story of the clown allows us tounveil the meanings contained in two of the main practices ofmodern marketing, the advertisement and the publicity,revealing how, between the nonsense of contemporaryadvertising and a publicity that has fused illusion and reality,there is a vital relationship between media and publicity, thatestablishes a new form of communication in which the subjectbecomes only a means to ends that he/she knows about, butparadoxically acts as if he/she ignored them. Such paradox isrevealing of a form of subjectivity profoundly marked by themedia as a socializing agent, in the sense that the role of themedia as a mediator of contemporary sociality had the effectof altering our perceptive universe, saturating our imaginary ina radically new way.In addition to that, the “mediatic sociality” implies a new formof representat ion of the subject in the record of the“spectacle”, in the sense that “to be in the image is to exist”.Needless to stress how much these issues must be included incontemporary studies about the processes of socialization, andhow challenging they are to those that work within theuniverse of education.

Keywords

Advertising – Publicity – Mediatic sociality.Correspondence:Isleide Arruda FontenelleRua Des. Alfredo Russel, 50 ap. 20322431-030 – Rio de Janeiro – RJe-mail: [email protected]

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O que se está querendo dizer é que, depoisde décadas de artimanhas por parte dos re-lações públicas e de exageros promocionaisda mídia, e depois de mais outras tantasdécadas de constante martelação por parteda s i númera s fo r ça s soc i a i s que nosalertaram, a cada um de nós, pessoalmente,para o poder da performance, a vida virouarte, de tal forma que as duas são agora in-distintas uma da outra.

Neal Gabler

Entre tantas imagens de marca doMcDonald’s , a escolha do c lown RonaldMcDonald, para tratar de questões ligadas àsociedade do entretenimento e à mídia, não foià toa. A história do palhaço remete-nos aosprimórdios da televisão e a uma nova forma deanúncio comercial eletrônico – dois fenômenosque estão profundamente imbricados com aidéia de “entretenimento”.

Ronald surge na década em que a so-ciedade americana já era definida como “soci-edade do entretenimento” (Gabler, 1999), “dolazer” (Morin, 1990), “do espetáculo” (Debord,1997), daí o palhaço poder ser tomado comouma figura emblemática de uma era marcadapela busca incessante de diversão. Cada umdos autores enumerados acima trata de tecerum panorama sobre esse novo modelo social,privilegiando um recorte histórico e analítico,seja enfocando a concepção material contidaem termos como o “espetáculo”; seja abordan-do a noção de um novo “tempo livre” a serpreenchido pelo lazer; ou, finalmente, revelan-do a maneira como o entretenimento tornou-se uma forma de escape, pelo qual investe-setoda uma vida.

Por trás de conceitos e enfoques comoestes, há um único que os aglutina: o de “so-ciedade/cultura de consumo”. Esse é o denomi-nador comum – explícito ou não – em cadauma das análises que procura historicizar e ca-racterizar a sociedade contemporânea, quetambém ganhou a conotação mais atual de“sociedade das imagens”. Torna-se fundamen-

tal a explicitação desse ponto porque a socie-dade de consumo constitui-se na gênese apartir da qual esses conceitos emergem, a pon-to de tornarem-se, aparentemente, sinônimos,embora o que eles ofereçam sejam diferentesperspectivas de leitura de uma realidade soci-al que tornou-se extremamente complexa.

Na impossibilidade de esgotarmos to-das essas análises em um único artigo,1 de-tenhamo-nos nos aspectos para os quais a his-tória de Ronald nos conduz, pois eles estãomais diretamente relacionados com as questõesque envolvem mercado, mídia e entretenimen-to, das quais emerge o que eu chamei de“socialidade midiática”. Como eu vinha dizen-do, Ronald é cria da televisão, e uma análiseinterna à construção dessa imagem de marca,pelos idos dos anos 1960, nos revelou por quee como esse período ficou conhecido comoaquele que forjou a “sociedade das imagens”.

Essa é a década em que o consumo deaparelhos de televisão se massifica. Com isso,não estou apelando para o aspecto “midiático”do espetáculo, no sentido de uma “referênciaexclusiva à tirania da televisão ou de meiosanálogos”. Pelo contrário. Assumo a visão deespetáculo contida em Guy Debord (Jappe,1999, p.19) de acordo com a qual é o “funcio-namento dos meios de comunicação... [que]expressa perfeitamente a estrutura de toda asociedade de que fazem parte”. Apesar de su-til, a diferença é profunda. E, para entender adinâmica interna ao meio TV, nada melhor doque uma boa “espiada” naquilo que a susten-ta, qual seja, o anúncio comercial eletrônico.

E não é por acaso que nos anos dapopularização da TV também se vê surgir umanova forma de propaganda. Pela história dacria-ção de Ronald McDonald, podemos enten-der como começavam-se a se estreitar as rela-ções entre sociedade, televisão e propaganda.A história de Ronald começa na década de

1. Para uma leitura mais aprofundada sobre o assunto, sugiro o livro(Fontenelle, 2002) que resultou da minha pesquisa de doutorado, noqual essas questões são analisadas mais detidamente.

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1960, quando um certo franqueado da redeMcDonald’s decidiu patrocinar um programatelevisivo da época chamado O Circo do Bozo.Por esse tempo, Ronald nem sequer existia. Erao popular palhaço Bozo quem anunciava osprodutos McDonald’s junto às crianças –telespectadores do programa. Foi a partir doBozo que surgiu a idéia do McDonald’s criar oseu próprio palhaço e, já em 1965, Ronald tor-na-se o “personagem de marca” para ascampanhas nacionais e, poste-riormente, inter-nacionais, do McDonald’s (Love, 1996).

Embora pela época do surgimento dopalhaço a marca McDonald’s já dispusesse deum símbolo forte como os seus “arcos doura-dos”, os estrategistas de marketing alegaramque a televisão exigiria um novo formato deimagem – um símbolo que pudesse transmitiro discurso da marca de uma forma mais dinâ-mica e, consequentemente, mais divertida. Vei-cular um anúncio como um divertimento eraum desafio de todas as grandes marcas daépoca, e isso só pode ser compreendido se en-tendermos que isso se deu em razão do lugarque a televisão passou a ocupar na sociedadeamericana.

Por um lado, as mudanças na forma dese veicular o anúncio tiveram a ver com trans-formações internas ao próprio meio publicitá-rio, quais sejam, a necessidade urgente dediferen-ciação em relação à concorrência, emfunção de uma superprodução de mercadori-as cada vez mais parecidas entre si no que serefere a aspectos como qualidade e utilidade.Certamente, a televisão passou a oferecer mui-to mais opções para que se desse essa diferen-ciação por imagens, por causa das caracterís-ticas próprias desse meio eletrônico, que per-mite contar histórias condensadas em segun-dos.

Mas as transformações provocadas –ou intensificadas – pela TV eram mais profun-das. A televisão é produto do que eu chameide “tempo do fast-food”, um tempo que ori-ginou uma sociedade mais dinâmica, maismóvel e, também, mais voltada para os praze-

res imediatos. E se a televisão é produto des-sa sociedade, ao mesmo tempo esse meio co-meça a interferir profundamente na maneiracomo essa mesma sociedade passa a percebera r e a l i dade. Para entendermos melhor isto,basta nos determos um pouco nas análises queWalter Benjamin (1996) fez sobre o cinema,que têm muito a nos esclarecer sobre a rela-ção do homem com as imagens televisivas.Benjamin preocupou-se em entender como sedava a recepção das imagens eletrônicas, ima-gens que estavam em constante mudança eque impediam o telespectador de se fixar emqualquer uma delas. A exposição constante atal forma de imagens poderia, segundo o au-tor, gerar transformações radicais nas estrutu-ras perceptivas, resultando em processos comoo distancia-mento diante dessas imagens quese dão a ver.

Como tão bem apontou Kaplan (2000,p. 140), “podemos dizer com segurança que, noscontextos capitalistas, as tecnologias acompa-nham de perto (ou têm uma relação c i r c u l a rcom) as mudanças sociais”. Pois foi diante dasmudanças tecnológicas e sociais elencadasacima que os “criadores de imagens” se viramem face de novas oportunidades e desafios emtermos do ritmo e forma a se imprimir aoanúncio comercial eletrônico. Esse é o momen-to no qual a propaganda que apela para ascaracterísticas e benefícios de um produto cedeespaço para a sua imagem. Chegara a épocaem que as campanhas publicitárias teriam quevender, “não o bife mas o chiado... não as la-tas de sopa, mas a fe l ic idade fami- l iar”(Hobsbawm, 1995, p. 496). Daí porque, em vezde anunciar hambúrgueres fumegantes, oMcDonald’s decidiu investir na figura do pa-lhaço, buscando associar sua imagem de mar-ca a um ideal de entretenimento que deveriacomeçar na própria propaganda e se confirmarno interior da lanchonete, onde a “experiênciaMcDonald’s” deveria ser, de fato, uma experi-ência de diversão.

Fiquemos um pouco, ainda, no interi-or da propaganda que, em decorrência das mu-

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danças provocadas na e pela TV, passa a ape-lar para uma forma “divertida” de anúncio.Interessaria, antes de mais nada, a história quee la i r i a contar, como se isso fosse um filmeindependente, como se, por trás, não houves-se um produto a ser vendido. Bastava, apenas,a retratação de situações nas quais a marcapoderia ser associada positivamente a um certomodo de vida. Essa nova forma de anúnciocomercial passou a predominar a partir dosanos 1960 e radicalizou-se de tal forma, aponto de, a partir dos anos 1980, dar-se iní-cio ao que alguns autores consideraram ser a“perda de sentido” da propaganda.

No campo dos autores externos ao ter-ritório do marketing, temos no francês GillesLipovetsky (1989) uma das análises mais fe-cundas sobre o assunto. Baseando-se nas pro-pagandas vigentes, esse autor constatou que,de fato, a propaganda não queria mais fazersentido. Certamente, tudo começou quando apropaganda passou a desvincular o produto desua imagem, até chegar ao ponto em que issoganhou uma dimensão do absurdo, de propa-gandas que parecem falar mal de si mesmas, degozar do produto ou, muitas vezes, de nemsequer anunciar o próprio produto que a marcaveicula. O importante, apenas, é que a marcaestivesse presente em meio a essas “cenas doabsurdo”. É como se a marca ganhasse vidaprópria, a ponto de ela poder aparecer emqualquer situação, por mais sem lógica queessa pudesse parecer e, mesmo assim, estives-se acima de qualquer uma dessas situações.Finalmente, é como se a marca nos dissesseque é ela que importa. E que ela sabe que nóssabemos disso.

Por si só, isso já seria suficiente parapôr por terra uma das leituras críticas aos mei-os de comunicação de massa – especialmentea TV –, qual seja, a de que eles têm o poderde iludir o seu telespectador. Ao abolir o regis-tro da ilusão, a propaganda estaria nos expon-do claramente as regras desse “jogo do faz-de-conta”, do qual parece que participamos debom grado e com bom conhecimento de cau-

sa. Mesmo assim, aquilo que Benjamin um diachamou de “aura” parece persistir na marca.Embora exposta em suas entranhas, por algummotivo ela seduz, ela encanta. Resta entenderpor que e como se dá esse paradoxo.

Publicidade e socialidademidiática

Insistindo em entender esse paradoxoa partir da história da marca McDonald’s, cons-tatei que o encantamento da marca só podeser compreendido se captarmos o verdadeiropapel que a publicidade exerce na atualidade.Antes de mais nada, convém esclarecermos adiferença crucial entre propaganda e publicida-de que, muitas vezes, são tidas como palavrassinônimas. Baseada na literatura do marketing,o que chamo de “propaganda” é o anúncio co-mercial pago, enquanto a “publicidade” seria aveiculação do nome de uma marca em notíci-as “reais”, aquelas que são transmitidas pela“mídia-realidade”, qual seja, a mídia de notí-cias, de informação. Claro que isso exige umtrabalho bem pago de relações-públicas, mas aidéia é fazer com que o acontecimento seja omais “natural” possível.

E a marca McDonald’s é uma provaviva dessa prática. De caso pensado ou não, aforça da publicidade já era evidente na épocaem que o McDonald’s era apenas um drive-in.A história dos drive-ins nos mostra como elesfloresceram especialmente na Califórnia e tive-ram uma forte relação com o cinema, na cida-de de Los Angeles. Dessa maneira, os drive-inssouberam colar-se nas imagens das grandesestrelas que paravam em seus estabelecimen-tos para comerem um hambúrguer. É bom lem-brar, também, que o McDonald’s surge pelasmãos de dois irmãos que buscaram a sorte nocinema e, diante da impossibilidade de êxitonessa área, passaram a investir no ramo de ali-mentação. Dessa maneira, essas formas pecu-liares de entretenimento e alimentação come-çaram de mãos dadas e caminham juntas atéhoje, a ponto de tornarem-se dois dos três

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maiores e mais rentáveis negócios americanosda atualidade, especialmente para exportação,sendo o terceiro, o do segmento de armas(Jameson, 2001).2

A partir dos anos 1950 – já na gestãode Ray Kroc, o grande disseminador da marcaMcDonald’s –, a relação entre marca e publi-cidade profissionaliza-se de fato. Kroc contra-tou uma agência de relações públicas para cui-dar da “imagem” do McDonald’s. Não por aca-so, os proprie-tários dessa agência tambémcuidavam da carreira de grandes estrelashollywoodianas. Com o seu f e e l i ng para omarketing, Kroc percebera que estava na eradas imagens, daí ele declarar que não estava nonegóc io de hambúrgueres , mas no showbusiness! Com essa frase, Kroc nos revela ospilares que sustentam a concepção de espetá-culo: vender matéria – no sentido preciso dotermo – revestida de imagem: o importantenão é vender hambúrgueres, mas atitudes liga-das ao hambúrguer. O importante é vendercultura: a cultura do fast food. O importanteera – e é – vender, seja algo concreto ou puraimagem – e é nisso que consiste o que eu cha-mo, aqui, de cultura material.

Embora não pretenda negar ou escon-der essa lógica, a publicidade a torna muitosutil; melhor dito, glamouriza relações tão“chãs”, especialmente porque essas imagens secolam a outras imagens que estão, essas sim,impregnadas de significados, gerando o quê,para parafrasear Arnaldo Jabor (1999), eu cha-mo de “fetichização do fetiche”. Só para darum exemplo: quando se candidatou à presi-dência dos Estados Unidos, Bill Clinton, emplena campanha eleitoral, parou para lancharno McDonald’s, obviamente, devidamenteacompanhado pela mídia. Na época, os analis-tas de marketing definiram que “recado”Clinton pretendia passar com aquele gesto:mostrar-se um presidente popular, retratando“a diversidade racial e cultural da nova Amé-rica” (Randazzo, 1996, p. 244). O fato de umcandidato ao cargo de presidente da naçãomais importante do mundo se colar a uma

marca popular para passar tal mensagem é umexemplo singular do poder de transmutação deuma marca, que se dá a partir da relação en-tre publicidade e mídia. Explico: num momen-to, as marcas fazem uso de pessoas e eventospara poder constituírem suas imagens; numoutro, são essas pessoas e eventos que se co-lam às marcas para falarem de si mesmas;melhor dito, de como gostariam de ser vistas.

Por isso mesmo, a melhor maneira parauma marca se constituir e se manter é se co-lando a imagens de “celebridades”, enquanto,inversamente, essas celebridades se alimentamdas imagens de tais marcas. E se alimentamnão só no sentido simbólico, como tambémmaterial, já que não é mais segredo para nin-guém o quanto “gente famosa” se veste, sealimenta, se exercita, vai ao médico, ao den-tista, enfim, vive “concretamente” a partir de“doações” de marcas famosas, pelo simplesfatos de essas marcas poderem ter seus nomese imagens associados a tais “celebridades”.

E, como nos mostra muito bem Gabler(1999, p. 15),

ainda que o estrelato, seja qual for sua for-ma, confira celebridade automática, é muitoprovável que hoje em dia ela seja concedidaigualmente a gurus de dietas milagrosas, aestilistas e a suas chamadas top models, aadvogados, políticos, cabeleireiros, intelectu-ais, empresários, jornalistas, criminosos –qualquer um que calhe de ser captado, ain-da que efemeramente, pelos radares damídia tradicional e que, por isso, sobressaida massa anônima. O único pré-requisito épublicidade.

Trata-se do “elemento de identifica-ção” que deve envolver a platéia para que

2. Apenas para que f ique claro como a lógica das imagens se sus-tenta numa certa materialidade, não custa nada lembrar como o ladoda produção também se beneficiava dessa relação entre cinema edr i ve- in. Esse último costumava recrutar, para seu exército de traba-lhadores, jovens aspirantes a estrelas, que acreditavam estar numavitrine na qual poderiam ser “descobertos” pelos frequentadores fa-mosos do cinema, especialmente, os produtores/diretores dos filmes.

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aquilo que ele veicula possa ser consumido. Eé o fato de estarmos numa sociedade onde háessa possibilidade de qualquer um, por umarazão qualquer, tornar-se um “elemento deidentificação” – mesmo que num tempo mui-to efêmero – que gerou aquilo que Gabler cha-mou de “pseudo-vida”.

O conceito de “pseudo-vida” de NealGabler é uma referênc ia imediata ao depseudo-evento, de Daniel Boorstin. E é exata-mente nos anos 1960 que Boorstin se dá contadesse fenômeno: trata-se de eventos forjados,não espontâneos, algo criado, planejado comuma função bem específica: atrair os olharesda mídia. Nesse sentido, sua ocorrência é ar-ranjada em função do meio de divulgação oude reprodução da notícia e seu sucesso é me-dido pela amplitude com que é noticiado. Parailustrar como isso se daria no campo comerci-al, Boorstin nos dá o exemplo de um proprie-tário de hotel que consulta um profissional derelações-públicas e pergunta-lhe como pode-ria melhorar o prestígio do seu estabelecimentoe expandir seus negócios. Boorstin vai dizerque, “em tempos menos sofisticados”, a res-posta deveria ter sido uma proposta de se con-tratar um novo chefe, melhorar o encanamen-to, pintar os quartos ou instalar um candela-bro de cristal no lobby. Mas a técnica de rela-ções-públicas é mais sutil. O profissional de RPpropôs que se celebrasse o aniversário de trintaanos do hotel, chamando a atenção para o ser-viço que aquele hotel havia prestado à comu-nidade. Essa celebração deveria ser fotografa-da e a ocasião amplamente noticiada nos jor-nais. Assim, Boorstin vai dizer que essa ocasiãoconstitui-se num pseudo-evento, embora elanão tenha sido totalmente falsa (Boorstin,1992, p. 9-10).

À fusão de mídia e publicidade corres-ponde, por sua vez, um sujeito performático.Interessa, antes de tudo, a representação davida. Daí a razão de Gabler ter ido mais alémna concepção de pseudo-evento de Boorstinpara conceituar a pseudo-vida. Ele consideraque a grande maioria das pessoas já “percebeu

que o objetivo de praticamente todo mundoque ocupa dessa ou daquela forma a vida pú-blica é atrair a mídia e que todo mundo, deatores famosos a pais de sete gêmeos, precisade um agente para sua promoção”. Nesse sen-tido, quase “tudo na vida se apropriou das téc-nicas de relações-públicas para poder ter aces-so à míd ia , de modo que não eram mais ospseudo-eventos que estavam sendo discutidos,quando se falava na habilidade dos relações-públicas; era a pseudo-vida”. Por fim, “à me-dida que a vida estava sendo vivida cada vezmais para a mídia, esta estava cada vez maiscobrindo a si mesma e a seu impacto sobre avida” (Gabler, 1999, p.96-97).

A idéia subjacente é a de que a vidateria se tornado, ela própria, um meio de co-municação. Por isso mesmo, toda a análise queesse autor faz sobre a sociedade do entreteni-mento é acompanhada de uma análise do es-petáculo como encenação (não na concepçãoque Debord deu a esse termo embora, se tives-se boa vontade com essa corrente teórica, cer-tamente Gabler faria bom uso de suas contri-buições), no sentido de que entretenimento epublicização da vida estão intrinsecamente li-gados. O entretenimento analisado por Gablertem relação com consumir imagens como, tam-bém, com uma busca individual e coletiva porse fazer mostrar. Nesse caso, ser, ao mesmotempo, espectador e platéia de um grande es-petáculo: o espetáculo da vida.

É a partir desta constatação que eudesenvo lvo a idé ia de uma “soc ia l idademidiática” – um jeito de ser e de se estar emsociedade profundamente marcado por essanecessidade da performance, da preocupaçãocom a maneira como outro irá nos captar en-quanto uma “representação” do que somos.Mas, nessa busca pela encenação permanentede papéis que nos garanta um lugar nessemundo imagético, acabamos nos transforman-do em “meio”, no sentido estrito do que seja“mídia”, qual seja, um “meio”.

Como nos filmes O show de Truman e ,mais ainda, Matrix (já que este traz a questão

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de uma vida “falsa” para todos os seus habi-tantes e não apenas para um único sujeito), avida torna-se um meio. Mas, diferentementedessas ficções, os sujeitos da Vida - o filme(título do livro de Gabler) representam porquecompreenderam há tempo que estar na ima-gem é existir – o que fica perfeitamente com-provado com os “reality shows” contemporâne-os, tais como No Limite e, mais recentemente,Casa dos artistas e Big Brother Brasil, e seus si-milares (ou “originais” estrangeiros, Survivor eBig Brother) .

Esses são exemplos que condensam, deuma forma mais evidente, a maneira como ob-jetivamente os sujeitos transformam-se emmeios, cada um sabendo que pode virar “mo-eda de troca” e, agindo assim, perpetuam naação, no fazer, o jogo ultramoderno da “soci-edade das imagens”. Mas, na vida cotidiana,também joga-se o mesmo jogo: cada um con-some imagem na esperança de transformar-se,ele mesmo, numa imagem. Quando como “umMcDonald’s” ou quando visto “um Armani”,estou procurando criar uma imagem de mimmesmo e, ao mesmo tempo, alimentando acadeia que sustenta essas imagens.

Fica evidenciado, assim, o pacto entremercado, mídia e sociedade do entretenimen-to, selado por uma das principais ferramentasdo marketing moderno: a publicidade. Sendoassim, como fica a comunicação numa socie-dade onde a mídia assume o lugar de “supos-to saber” e, mais ainda, quando a publicidadeacaba influenciando decisivamente no que amídia registra?

Mídia e publicidade: sobre umanova forma de comunicação

Pensado originalmente como uma pa-lestra para o Io Seminário Comunicação e Edu-cação, espec ia lmente para uma de suastemáticas de trabalho - as formas contempo-râneas de socialidade - este artigo tenta apre-sentar um pouco a idéia de “social idademidiática”, desenvolvida no meu livro, já cita-

do, fruto de uma tese de doutorado em queprocurei entender o que consistiria a assimchamada “sociedade das imagens”. Não sou,portanto, uma especialista da comunicação,especialmente em sua relação com a educação.Nos resultados obtidos pela minha pesquisa, aquestão da comunicação acabou se configu-rando tangencialmente, apenas a partir daanálise que empreendi sobre a publicidade e namaneira como esta se imbrica com o que eutambém cunhei de “mídia-realidade”. A partirdaqui, os desdobramentos buscados foramoutros, quais sejam, as formas de subjetivida-de decorrentes de uma maneira de estar nomundo, marcada pela pressão contínua da“performance”.

É interessante, portanto, voltarmosagora a essa mesma relação entre publicidadee mídia para pensarmos um pouco como essarelação desenha uma “nova forma de comuni-cação”, apenas no sentido de apontar algunselementos que elucidem como se dá essa rela-ção. Gosto muito da maneira como GillesDeleuze discorre sobre os efeitos da comuni-cação como “a transmissão e a propagação deuma informação”. Segundo ele,

uma informação é um conjunto de palavrasde ordem. Quando nos informam, nos dizemo que julgam que devemos crer... Ou nemmesmo crer, mas fazer como se acreditásse-mos. Não nos pedem para crer, mas para noscomportar como se crêssemos. Isso é infor-mação, isso é comunicação. O que equivalea dizer que a informação é exatamente osistema do controle. (1999, p. 4)

Certamente o fi lósofo já tinha emmente o “tipo de comunicação” a que me re-feria antes: aquela em que mídia e publicida-de se fundem. Essa forma já está tão imbricadana sociedade contemporânea que nos referi-mos a ela como a única forma possível de co-municação. Aliás, a relação entre mídia e mer-cado parece ter sido estabelecida desde osprimórdios dos meios de comunicação de mas-

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sa. A julgar, por exemplo, pelas informaçõescontidas num livro que narra a história daCoca-Cola, em fins do século XIX a propagandade mercadorias já era amplamente veiculadanos jornais impressos (Pendergrast, 1993). Mas,como já sabemos, até aí tratava-se, “apenas”,de propaganda. Hoje, como pudemos consta-tar, o que há é uma fusão entre informação epublicidade que torna os dois indistin-guíveis.Não por acaso, um estudioso do marketing vaiapontar a atual importância que ganhou os“publieditoriais” – os arranjos, parte editoriais,parte publicitários – que tornam-se “importan-tes fontes de endosso a produtos” (Buitoni,2000, p. 119).

Por isso mesmo, o analista de tendên-cias sociais Jeremy Rifkin constata que “o po-der, na próxima era, pertence aos porteiros”.Porteiros, no caso, seriam as

instituições e indivíduos que determinam asregras e condições de admissão e controlamquem tem acesso e quem é barrado de umasociedade baseada em rede (...) Os porteirosservem como mediadores e árbitros de nos-sas vidas e épocas. Eles controlam o queentra e o que é barrado do processo social.

Quando fala sobre os porteiros, obvi-amente Rifkin está se referindo à relação des-tes com os meios de comunicação, revelando-nos como, atualmente, os estudantes e acadê-micos de jornalismo passaram a estudar

a função de controle de entrada para enten-der melhor como as informações fluem paradentro e para fora da sala de notícias ecomo as decisões de editorial são tomadasquanto às reportagens que devem ser cober-tas e aos artigos que devem ser ignorados ecolocados de lado. (Rifkin, 2001 p. 144-147)

O processo de filtragem realizado pe-los porteiros deixa clara a forte imbricaçãoentre mídia e publicidade: se são necessáriosporteiros para se conseguir acesso aos “meios”,

não é menos necessário que, já inserido neles,novos por te i ros se jam necessá r ios pararevalidar o “produto”. Assim, no exemplo dadopor Rifkin, depois de vencidas todas as etapaspara a produção de um livro, este ainda não seconcretizará até que passe pelo crivo dosresenhistas. Até aí, tudo bem, não fosse o fatode que alguns

estudos têm mostrado... que críticas favorá-veis e desfavoráveis no New York TimesBook Review podem influenciar se as livrari-as, bibliotecas e o público comprarão os li-vros. Alguns dos mesmos estudos tambémmostram que os livros publicados por em-presas que anunciam freqüentemente noNew York Times Book Review têm mais pro-babilidade de receber mais espaço para rese-nhas no jornal . Assim, o Times tem umaposição estratégica no ponto de admissão epode assumir um papel importante na deter-minação do nível de acesso que um autortem. (Rifkin, 2001, p. 148)

O que ocorre, então, é um círculo vi-cioso no qual, na medida em que a mídia con-temporânea acaba veiculando o que “vende”,ou seja, “a cultura de mercado orientada parao consumo”, aqueles que buscam o acesso aosportais acabam perpetuando uma forma deleitura da realidade cultural, tendo em vistapassarem pelos “novos vigias dos portões” parapoderem ter vez e lugar junto ao público con-sumidor. E, na medida em que vivemos numaera em que quase tudo que consumimos pre-cisa ser legitimado por uma marca ou um “es-pecialista em estilo de vida” – que acabam, porsua vez, sempre se referindo a marcas –, os taisporteiros acabam se tornando os intérpretes e,ao mesmo tempo, os criadores de significadosculturais, fazendo a própria realidade se trans-formar numa mercadoria manufaturada e em-balada para consumo.

Tem-se desenhado, assim, um novomodelo comunicacional que é produto naturalde uma sociedade na qual, como tão bem

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d emonstraram Jameson (2001) e Eagleton(1993), houve uma fusão entre o cultural e oeconômico, fazendo com que “cultura” se tornas-se igual a “mercado”. Isso significa que o apara-to produtivo contemporâneo está profundamenteentrelaçado ao universo simbólico, fazendo comque a “indústria cultural” se torne o paradigma,por excelência, da produção capitalista contem-porânea. Enquanto parte fundamental dessa in-dústria cultural, a mídia não foge às regras desua dinâmica. Daí a razão pela qual, segundo ofotógrafo Oliviero Toscani, a publicidade deveriaocupar uma função de “comunicador”. Toscaniassume isso baseando-se em dados que apontamque os gastos com propaganda no mundo de-senvolvido seriam quase o dobro do que se in-veste em educação pública (Calligaris, 1996, p.74). Teria sido isso que levou o fotógrafo, segun-do ele mesmo, a desenvolver as campanhas daBenetton desvinculando o produto da marca dasimagens por ela veiculadas, para falar de ques-tões sociais, para tratar da “realidade”.

Pode até ser que Toscani tenha tido boasintenções, mas o fato é que, de caso pensado ounão, ele cumpriu f ielmente a cart i lha domarketing moderno: desvinculou-se da propa-ganda tradicional que equiparava a imagem aoproduto, levando o “nonsense” da propaganda aolimite e, com isso, gerou uma estupenda publi-cidade, sendo notícia no mundo inteiro, dandopalestras, publicando livros, virando tema de te-ses acadêmicas, etc. Como ele mesmo admitiu,

em alguns anos, com uma comunicação origi-nal, a United Colors of Benetton se fez conhe-cer internacionalmente como nenhuma outramarca de prêt-à-porter. Fizeram-se estudos em1994 sobre a popularidade do título no mun-do inteiro: o nome United Colors of Benettonbate desde então a Chanel na memorizaçãodas marcas e entrou no pelotão das cincomarcas mundiais mais conhecidas. (Toscani,1996, p. 56)

Visto assim, até parece que vivemos umprocesso de manipulação pura e simples por par-

te de uma “entidade” absoluta que tudo pode.Mas o fundamental a ser compreendido – no quevoltamos ao objetivo principal deste artigo – écomo e por que os sujeitos precisam dessas ima-gens. Passado mais de um século de interaçãoentre mídia e propaganda e, mais ainda, consi-derando a forte imbricação entre publicidade emídia a partir de meados do século XX – cujoápice vivenciamos hoje – já não se pode fugir aofato de que esse fenômeno tornou-se um pode-roso agente socializador e, mais ainda, passou ainfluenciar decididamente na nossa formaçãosubjetiva, especialmente para as novas gerações,herdeiras diretas do modelo mais acabado.

Nas acertadas palavras de Don DeLillo,

é o poder da mídia... mas também acho que éalgo nas pessoas que talvez tenha mudado. Aspessoas parecem precisar de notícias, notíciasde qualquer tipo – más, sensacionalistas,avassaladoras. Parece que é a notícia a narrati-va de nossa época. Ela quase assumiu o lugardo romance, quase substituiu o discurso entreas pessoas. Tomou o lugar da família. Tomouo lugar de uma maneira mais lenta, mais cui-dadosamente montada de se comunicar, deuma comunicação mais pessoal... E isso nostorna consumidores de determinado tipo... Écomo comprar produtos que, na verdade, sãoimagens... Mas também é real, é a vida real. Écomo se isso fosse nossa derradeira vivência danatureza... De uma maneira estranha é tudoque nos resta da natureza. Mas está aconte-cendo na nossa TV. 3

Não é à toa que os publicitários contem-porâneos admitem que a propaganda mudou,especialmente, pelo desafio de dar conta de uma“geração de cínicos”. Por isso mesmo, RonaldMcDonald – enquanto um personagem de mar-ca e, nesse sentido, reflexo do seu consumidor –pode continuar sendo uma metáfora ideal deuma sociedade que fundiu realidade e ilusão

3. Don DeLillo em entrevista a Remnick, David. A América paranó icanas l e t r a s de DeL i l l o , Fo lha de S. Paulo, São Paulo, 05.12.1997.(Ilustrada). p.8.

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para, a pretexto de entretenimento, jogar oduro jogo de existir continuamente como a re-presentação de um produto, de uma coisa quepode ser embalada para consumo.

Isso apresenta dois grandes desafiospara aqueles que lidam com a tarefa – enor-me – de pensar os novos rumos da educação:de um lado, é preciso assumir o quanto amídia, atuando como mediador da socialidadecontemporânea, alterou profunda e irreversi-velmente o nosso universo perceptivo. É, denovo, o historiador Eric Hobsbawm (1995, p.501-502) – citando Walter Benjamin – quemnos lembra o quanto a “reprodutibilidade téc-nica” mudou a maneira como nós passamos aperceber a realidade e a usufruir dessas novascriações. E, especialmente para os herdeiros dasociedade de consumo de massa – cujo triun-fo teria se dado em meados do século XX –, ouniverso perceptivo tornara-se

diferente, multiforme e variegado. As im-pressões dos sentidos, e mesmo as idéias,podiam alcançá-los simultaneamente de to-dos os lados – através da combinação demanchetes e fotos, texto e publicidade napágina de jornal, o som no fone de ouvidoenquanto o olho vasculhava a página, atra-vés da justaposição de imagem, voz, impres-são e som – tudo, com quase toda a certe-za, absorvido perifericamente, a menos que,por um momento, alguma coisa concentras-se a atenção. Era assim que as pessoas dacidade há muito sentiam a rua, era assimque funcionava o lazer no parque de diver-sões e no circo, uma maneira conhecida deartistas e críticos desde os dias dos românti-cos . A novidade era que a tecnologiaencharcara de arte a vida diária privada epública. Jamais fora tão difícil evitar a expe-riência estética... .

Como se já não fosse pequena a tare-fa de atender a esse novo universo perceptivo,o outro desafio, a que me referi, parece aindamaior. Trata-se de um desafio ético: como en-

frentar uma socialidade midiática marcada pelatarefa de “estar na imagem”, ou seja, de exis-tir, fundamentalmente, enquanto representa-ção? Tal desafio pode ser evidenciado, concre-tamente, num fato narrado pelo psicanalistaMarcus do Rio Teixeira (Teixeira, 1997) a res-peito de como uma escola de classe média-altade Brasília estava às voltas com uma dúvidaangustiante: como educar as crianças em fun-ção das novas transformações sociais, que fa-zem com que os corruptos ou os espertos se-jam mais propensos ao sucesso que aquelesque se pautam de acordo com o princípio dahonestidade? Certamente não nos interessadiscutir, aqui, as regras morais que determinamo que é ser honesto ou desonesto, mas apre-sentar dados que revelam o desafio da “arte deeducar para o sucesso”, tão presente na manei-ra como isso é direta ou indiretamente referi-do pelos meios de comunicação de massa e decomo isso interfere no processo socializadorcontemporâneo, especialmente na instituiçãoescolar.4

Meu texto não tem a pretensão de darconta de tais desafios mas, tão-somente, ofe-recer alguns dados e reflexões. Do ponto devista aqui apresentado – o da “socialidademidiática” – meu propósito foi o de apenasinformar e questionar sobre o poder da mídiaenquanto um poderoso agente socializador,especialmente na medida em que ela se encon-tra atada à publicidade e ao entretenimento,cujo ponto de chegada deverá ser sempre oconsumo. Espero que essas análises possam sermelhor aproveitadas por aqueles que atuammais diretamente na fronteira da educaçãocom a comunicação.

44444. O fato a que Teixeira refere-se – da escola de Bras í l ia – foi veicu-lado por um “diário de grande circulação”. Como ainda informa o au-tor, o jornal não explicita qual a via pedagógica adotada pela escola.Entretanto, como Teixeira nos lembra tão bem, a not ícia em si já ésuficiente para apresentar alguns dilemas “ético-pedagógicos” quesão reveladores de profundas mudanças sociais que repercutem nasnossas instituições socializadoras, dentre elas, claro, a escola.

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Recebido em 25.02.2002

Aprovado em 03.05.2002

I sI sI sI sI sleide Arruda Fontenelleleide Arruda Fontenelleleide Arruda Fontenelleleide Arruda Fontenelleleide Arruda Fontenelle é bacharel em Psicologia, com doutorado em Sociologia pela USP e pós-doutorado em PsicologiaSocial pela PUC-SP. É pesquisadora do Núcleo “Psicanálise e Sociedade” da PUC-SP e do Laboratório de Políticas Públicas daUERJ. Autora do l i v r o O nome da marca: McDonald’s, fetichismo e cultura descartável, 2002.