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AS HISTÓRIAS DAS MALOCAS:
Urbanização e Comunicação na “Cidade que mais cresce no mundo”
MATAN ANKAVA1
Introdução - Pré-história das Histórias: O surgimento das Malocas, da cidade ao rádio
Entre fins do século XIX e meados do XX, a cidade de São Paulo vivenciou um
crescimento demográfico de magnitude exponencial: de uma pequena vila, com 30.000
habitantes e pouca importância econômica e cultural, tornou-se a metrópole mais populosa do
país, seu centro econômico e um palco de expressões culturais de importância nacional. O
crescimento populacional e espacial foi tamanho que Nicolau Sevcenko (1992, p.31) o
caracterizou como “colossal cogumelo depois da chuva”.
Investigando a cidade dos anos ‘20, é evidente que o historiador buscou dotar as
transformações da época de uma magnitude inédita. Não obstante, esta intenção se esbarra
em diferentes dinâmicas históricas que sucediam o período analisado: na esfera demográfica,
a taxa de crescimento entre as décadas ‘40 a ‘60 foi maior que a de 1900-19402; no campo
econômico, a grande novidade se deu com o processo de industrialização, que desenvolveu
significativamente a partir dos anos ‘30; no urbanismo, a intensidade das reformas –
verticalização, canalização – levou ao surgimento de uma nova cidade, soterrando a urbe do
primeiro quartel (TOLEDO, 2004). Também no campo da comunicação, a consolidação e
massificação do rádio ocorreu, sobretudo, a partir de 19323.
Para seus dirigentes, a intensidade das transformações que avassalaram a cidade em
meados do século XX fazia jus a rotulação de São Paulo, na ocasião das comemorações do
seu IV Centenário, como “a cidade que mais cresce no mundo”. Evidentemente, este título
1 Mestrando no PPG-História, UNIFESP 2 De acordo com os censos do IBGE, o crescimento anual de 1900 a 1920 era de 4,5%, e entre 1920-1940, de
4,2%; já entre 1940-50, a população cresceu, em média, 5,2%, e 5,6%, ao longo da década seguinte.
http://smul.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/tabelas/pop_brasil.php. Acesso em 01/05/2020. 3 A data de 1932 toma como marco a promulgação do decreto n⁰. 21.111, que autorizava a vinculação de
propaganda nas irradiações radiofônicas. Como aponta McCann (2000), a lei apenas regularizava uma prática já
recorrente; não obstante, a oficialização da publicidade resultou num salto, quantitativo e qualitativo, no setor
radiofônico. No caso de São Paulo, 1932 marca também o ano da chamada Revolução Constitucionalista, onde
as emissoras paulistas, notadamente a Rádio Record, tiveram uma participação significativa, que também
alavancou sua importância. As primeiras etapas da difusão radiofônicas se encontram melhor aprofundadas em
obras como CALABRE (2013) ou FERRARETO (2014); o caso paulista tem sido explorado em pesquisas como
TOTA (1990), MORAES (2001), VICENTE (2006) e LIMA (2018)
estava carregado de ufanismo; no entanto, calcado em fatos históricos, ele é indicativo do
contínuo crescimento, promovido pela elite sob os signos da “modernização” e “progresso”.
A realidade, todavia, era mais complexa e menos idílica. Ao lado de grandes
empreitadas de engenharia e novos arranha céus, a junção entre crescimento acelerado,
desigualdades sociais e interesses econômicos gerou também formas de habitação precárias e
desordenadas. Estas moradias, que no Rio de Janeiro ganharam o nome de “favelas”,
receberam ocasionalmente, em São Paulo, o nome de “malocas”, e nelas concentravam-se
grande contingentes da “plebe” paulistana. É nestes bairros que buscava ambientar-se o
programa radiofônico Histórias das Malocas - produção de Osvaldo Moles para a Rádio
Record, que se tornou uma das audições mais importantes na história do rádio paulista.
Relegado, atualmente, à posição secundária no campo midiático, o rádio era, entre as
décadas de ‘30 e ’50, o principal meio de comunicação, mundialmente e no país; é indicativo
que o terceiro volume de História da Vida Privada no Brasil recebeu o título “República: da
Belle Époque à Era do Rádio”. O rádio, muito mais que um “passa tempo”, teve um papel
cultural, social, econômico e até político fundamental.
“esse veículo [o rádio] – e, até o surgimentos do vídeo e do videocassete,
sua sucessora, a televisão – embora essencialmente centrado no indivíduo e
na família, criou sua própria esfera pública. Pela primeira vez na história
pessoas desconhecidas que se encontravam provavelmente sabiam o que
cada uma tinha ouvido (ou, mais tarde, visto) na noite anterior...”
[hobsbawm, 1995, p.195]
O rádio paulista, ainda amador nos anos ‘20, tornou-se uma peça chave nas décadas
seguintes: dele participavam personagens de diferentes classes sociais e grupos culturais,
transformando o éter numa espécie de mediação social, e palco de múltiplas narrativas -
autênticas ou forjadas. No processo de formação da indústria radiofônica paulista, destacou-
se a Rádio Record; considerada a primeira emissora a assumir a orientação comercial, tornou-
se a principal estação paulista, e referência para o setor. A ascensão da Record originou-se
também de sua atuação como “porta-voz” paulista, durante a chamada “Revolução
Constitucionalista”, em 1932.
Um dos expoentes da PRB-9 Rádio Record foi o Osvaldo Moles. Nascido em 1913,
iniciou sua carreira nos jornais da capital paulista, inserindo-se também na radiodifusão. Em
1941 ingressou na PRB-9; o ritmo de produção e o sucesso de seus programas lhe renderam
grande reputação, além de apelidos como “a bomba atômica da Record”4. Aqui conheceu
também um radioator chamado Adoniran Barbosa, que se tornaria um dos seus principais
parceiros. A dupla costumava vagar pelos bairros populares da cidade - de onde retirava
impressões, situações e personagens para sua produção, radiofônica e musical. Este tipo de
produção atingiu seu ápice em 1956, com a estreia do programa Histórias das Malocas
(originalmente, Bangalôs e Malocas), que teve como inspiração o samba Saudosa Maloca,
composto por Adoniran em ‘54. Escrito e produzido por Moles, teve como personagem
principal Charutinho, realizado por Adoniran.
Era um programa de grande sucesso: foi irradiado por nada menos de dez anos,
durante os quais recebeu excelentes críticas no jornal5 e obteve altos índices de audiência
(Adami, 2012,p.7). Seu reconhecimento era tamanho que foi mantido no ar mesmo sem
patrocínio - caso de exceção, considerando que as produções radiofônicas dependiam do
apoio financeiro provindo de publicidade. O sucesso de Histórias das Malocas levou a sua
expansão para além da radiodifusão, ganhando adaptação para a TV, em 1958. Tristemente,
deste imenso material sobraram pouquíssimos registros, quase todos em forma de roteiros
datilografados do programa radiofônico.
O que restou de Histórias das Malocas, e que também evidencia o seu sucesso, é a
fonte que fundamenta a nossa pesquisa: “transcendendo do campo do rádio e da televisão,
chega até o mundo do disco a saborosa criação de Osvaldo Moles Histórias das Malocas”6.
Lançado pela gravadora Chantecler, em 1961, o álbum continha personagens, diálogos e
canções irradiadas ao longo dos episódios radiofônicos. Por estas características, e perante a
escassez de material, representa uma síntese – talvez a melhor – deste programa de sucesso.
ANÁLISE DAS CANÇÕES
4 Correio Paulistano, 1946\Edição 27611. 5 A audição recebeu críticas positivas desde sua estreia: “um dos melhores programas de Osvaldo Moles”
(Diário da Noite, Ano 1956\Edição 09677); “Bangalôs e Malocas é um programa que tem todo o timbre de
Osvaldo Moles. Só ele (assim nos parece) sabe escrever esse estilo de gafieira” (Correio Paulistano,
1956\Edição 30843); “a melhor coisa que já produziu nesta nova estada nas Unidas e seguramente entre as
coisas mais sérias aparecidas no rádio paulistano no corrente ano” (Radiolândia, 1956\Edição 0141) - todos
foram comentários feitos em 1956, ainda no primeiro ano de irradiação. A popularidade, e qualidade, do
programa se estendeu também nos próximos, “um dos mais significativos programas humorísticos do rádio
paulista” (Folha de São Paulo, 12.fev.1960). 6 Correio Paulistano, Ano 1962\Edição 32494
O álbum Histórias das Malocas é composto por dez faixas7. Com exceção da primeira
faixa, que abre com um monólogo de Charutinho, as demais iniciam-se com um breve
diálogo entre este personagem e Terezoca, aos quais sucedem as canções, executadas por
Esterzinha de Souza. Nos diálogos, a linguagem é marcada pelo coloquialismo: a
informalidade entre Charutinho e Terezoca é evidenciada pelo uso de apelidos, como “véia” e
“nego”; ademais, as conversas são repletas de erros linguísticos, em palavras como “ferrugi”,
e termos como “dar uma ispiculação”, onde não apenas a pronûncia difere-se da língua culta,
mas também o uso do termo.
O emprego de “dialeto popular” era um recurso comum, utilizado na produção
literária e audiovisual. Não representava, necessariamente, uma depreciação ou rebaixamento
das classes subalternas, seus falantes; ao invés, era uma forma de caracterizar os personagens,
dotando-os, de uma forma não explícita, de outros atributos: origem étnica ou regional,
condição social, entre outros8. Ademais, em vista da disseminação do rádio9, origem de
Histórias das Malocas, é crível presumir que a imitação da oralidade tinha também uma
função comercial: próxima da fala das classes populares, representava um instrumento de
aproximar o ouvinte da narrativa, fortalecer sua identificação com eles, e, consequentemente,
aumentar e cativar a audiência. Assim, o que gerava o uso da variação linguística era a
possibilidade de associar entre “dialeto” e experiência social, tanto no caso dos personagens,
quanto dos ouvintes.
Desta forma, a linguagem é a primeira estratégia utilizada para caracterizar as malocas
e seus moradores. Aqui, o que marca as falas é a falta de domínio da norma culta:
“(Terezoca): Que fim que levou aquele mindingo, que morava no morro do
rabo do percebejo? / (Charutinho): Eles escondia o braço pra pedir mola, né.
Um dia a associedade filadelica... / (Terezoca): Num é filadelis que se diz,
Charuto, aprenda o protuguês. É filantrópias” (f.0810).
7 Lista das faixas: 1. Benedita de Oliveira; 2. Chico Linguiça; 3. Mormaço; 4. Pé de Chinelo; 5. Letra de Samba;
6. Nastacinho; 7. Filhinho de Preto; 8. Uma Esmolinha; 9. Céu; 10. Anjo João. 8 Um exemplo famoso do uso da linguagem como traço distintivo – e também um instrumento humorístico – é o
maccaronismo italo-brasileiro (SALIBA, 2000). Tanto Moles quanto Adoniran utilizam frequentemente este
recurso. Perante seu significado sociocultural, reproduzimos aqui as falas conforme o original. 9 Em 1950, 95% da população das grande cidades possuia um aparelho radiofônico (McCann, 2004, p.23). 10 A fim de tornar a leitura mais fluida, as citações diretas do álbum receberam como indicação apenas o número
da faixa.
O diálogo demonstra a predominância da oralidade, indicativa da baixa escolaridade
que caracteriza a população das malocas.
Atrelado ao baixo grau de instrução, Histórias das Malocas também aponta também à
pobreza, como fator constituinte desta forma de habitação:
(Charutinho): Esta é a minha maloca, manja? Mais esburacada que
tamborim de escola de samba na quarta feira de cinza... Onde a gente enfia a
mão num armário embutido e encontra o céu. E o chuveiro é um buraco de
goteira no telhado de zinco. Das vez, a gente toma banho em bacia e se
enxuga com a toalha do vento. E quando não tem água a gente se enxuga
mêmo é antes de tomá banho. Maloca tão pequena que a gente drome lá
dentro e tem que vim puxar o ronco aqui fora... Num cabe os dois. Maloca
onde na guerra contra os musquitu, os musquito é que ganharam a guerra.
Maloca onde a riqueza é um jacá de vazieza, uma cesta de fome, e um
pacote de gemido. Maloca onde as crioula usa gilete no cabelo pra fazer
barba na barriga dos intrometido. Maloca... maloca onde eu cresci de
teimoso que eu sou... (f.01)
Este trecho, declamado pelo Charutinho na faixa número um, é o primeiro momento
do disco. Assim, introduz o ouvinte ao universo das malocas, traçando de formas variadas a
pobreza material característica. É mister perceber que Charutinho não descreve apenas a sua
residência; o uso da primeira pessoa no plural e a referência às “crioulas” permitem
identificar que a casa do personagem é uma representação metonímica das condições de
habitação nos bairros pobres da Pauliceia.
A descrição de Charutinho reconstroi alguns aspectos físicos das malocas: paredes
esburacadas - logo, provavelmente, não de alvenaria; telhado, também furado, de zinco - tipo
de material extremamente sensível ao clima, e de baixa proteção; e dimensões extremamente
pequenas. Outras condições também contribuem para traçar a precariedade da casa, como a
escassez de água corrente e a infestação de
mosquitos. Assim, a imagem construída é de um
simples “barracão”, miúdo e precário - que
corresponde à imagem presente na capa do disco.
Vê-se que, à falta de acesso à educação, vista
anteriormente, junta-se agora a insuficiência de
condições, supostamente, básicas, como água
corrente. É interessante comparar esta narrativa a
outros relatos contemporâneos dele: por um lado, encontram-se as continuidades que guarda
com, por exemplo, a narrativa de Carolina Maria de Jesus (1960), sobre a favela do Canindé;
em contrapartida, nota-se as diferenças, praticamente oposição, que tem com relação aos
discursos e imagem da capital paulista propagados ao longo das comemorações do IV
Centenário, em 1954 (Lofego, 2004). Trata-se da única passagem do álbum que têm como
objeto a dimensão física das malocas ; As histórias narradas no disco centram-se na
população do bairro e suas realidades.
Assim, Histórias das Malocas apresenta figuras como Benedita de Oliveira, tema da
primeira canção: “Benedita de Oliveira lavadeira / vai pro tanque, pra bacia / Lesco, lesco,
lesco, lesco / Noite e dia / Lavando sem descansar / Benedita de Oliveira lavadeira / escrava
negra das águas / Vê se lava tuas mágoas no choro que vai rolar” (f.01). A vida desta
lavadeira é marcado pelo trabalho “noite e dia”, num ofício manual e repetitivo (demonstrado
pela repetição do “lesco”11).
Cabe percebermos que a descrição de Benedita é bastante genérica, o que contribui
para torná-la uma figura representativa, e não apenas um indivíduo específico. Neste
movimento atua diretamente sua profissão de lavadeira – ocupação típica das escravas de
ganho em São Paulo (DIAS, 1984). Empregando ainda o termo “escrava negra das águas”, a
construção imagética de Benedita consolida os vínculos entre a realidade desses
trabalhadores e o passado escravista, colocando a situação marginalizada das malocas em um
continuum histórico. Por conseguinte, uma pergunta feita na canção torná-se claramente
retórica, tornando-se uma afirmação: “Benedita de Oliveira lavadeira / Escrava negra das
águas / Em que foi que adiantou a princesa Isabel te libertar” (f.01).
Junto às “crioulas que usam gilete na cabeça” (ibidem), a identificação racial de
Benedita ressalta, já na primeira faixa do disco, a negritude como característica da população
das malocas, igual à pobreza. A exposição das ligações entre exclusão social e racismo é uma
das forças de Histórias das Malocas, presente ao longo da obra. Essa relação toma sua forma
mais explícita em Filinho de preto (f.07):
11 É interessante especularmos sobre possível intertextualidade entre Benedita de Oliveira e o samba Inimigo do
Batente, de Wilson Batista (1939). Neste, a mulher de um poeta-malandro reclama de sua vida: “Eu já não posso
mais! / A minha vida não é brincadeira / Estou me esmilinguindo igual a sabão na mão da lavadeira / Se ele
ficasse em casa ouvia a vizinhança toda falando / Só por me ver lá no tanque / Lesco-lesco, lesco-lesco / Me
acabando”
Charutinho: fiinho de preto nasce miúdo... despois com tempo vai
diminuindo, vai diminuindo inté que some
Terezoca: das duas uma, ou some, ou desaparece...
Charutinho: fiinho de preto some logo abraçado pela mãe terra que é preta
como nois também
(cantado)
Filhinho de preto, nasce na pobreza, sem berço, sem toca, e sem proteção /
Encardidinho, desamparado, filhinho de preto não tem nada não / Com
vocação, para ser anjo, pois vai morrer, de desnutrição / Aí Jesus, Jesus,
Jesus criança / Aí Jesus, Jesus, Jesus menino / Tão pobrezinho,
humildezinho, dê esperança ao fiio do preto também / Mas o que destino,
vai ter um menino, abandonado, desde que viu luz
Assim, em Filhinho de preto a crítica está posta: pobreza, fome, miséria, morte
prematura; a desigualdade é denunciada – literalmente – com todas as letras. O relato feito
nesta canção ajuda a explicar uma constatação anterior de Charutinho: “maloca onde eu
cresci, de teimoso que eu sou” (f.01) - para os negros das malocas, a própria sobrevivência é
um desafio constante.
Desmascarado, o racismo estrutural aparece também na última canção do disco, Anjo
João (f.10):
Terezoca: Cê manja o Joãozinho?
Charutinho: Grandes novidades, tudo que é crioulo chama João
Terezoca: Mas esse João que chamava Joãozinho era um João
pequeno... Queria ser anjo
Charutinho: Mas preto nunca tem vez na hora de ser anjo, véia. Só
se for um anjo batedor no céu e o serviço pesado
Terezoca: Isquita a história do joãozinho, ele queria ser anjo na
marra e foi mesmo
(canto)
Joãozinho, que quer ser anjinho / Mas anjo negro não existe, não /
Joãozinho, só menino branco pode ter “anjo” na procissão
Enquanto em Filhinho de Preto a morte anunciada aproxima o “fiinho” da posição de
anjo, Anjo João expõe a presença da desigualdade racial até mesmo nos atos e instituições da
fé - no ritos, só podem representar as figuras de anjos crianças brancas. Apesar da
personagem Terezoca mencionar que Joãozinho “queria ser anjo na marra e foi mesmo”, não
temos detalhes maiores de como este desejo se concretizou.
Contra o sonho do João, Charutinho aponta como o destino dos negros o “serviço
pesado” do trabalho manual12. O caso de Nastacinho (f.06) revela que este tipo de serviço,
que, mais uma vez, remete à escravidão, não se limitava aos adultos:
Terezoca: Aí, aí... Coitadinho do Nastacinho
Charutinho: Pois é... eu via ele sempre apregoando o bom bucado que a mãe
dele fazia pra ele vendê
(...cantado)
Vai vendendo doce Nastacinho, bombocado bem casadinho / Vai vendendo
doce pelas ruas da cidade / Vai levando nessa cesta sua carga / Vai
vendendo doce e achando a vida amarga / Passa gente, passa bonde, passa o
vento veio o sul e veio a chuva e vem garoa / Nastacinho lá no Largo de São
Bento com sua voz de oitava apregoa / “Olha queijadinha tá fresquinha...
Olha os bom bocado, olha os bem casado”
Enquanto a mãe de Nastacinho, assim como a Benedita, era relegadas ao ambiente
doméstico, as crianças contribuíam para a economia familiar trabalhando como vendedores
ambulantes. As necessidades impunham que Nastacinho trabalhe mesmo em tempo de clima
hostil, circulando pelas ruas da capital. A constatação de Charutinho, da mesma faixa do
álbum, “eu já fui menino vendedor” indica que tratava-se de uma ocupação recorrente entre
as crianças das classes subalternas.
O trecho traz ainda dois indícios mais sutis, mas não menos instigantes:
primeiramente, a caracterização da voz de Nastacinho como “de oitava”, sugerindo,
consideramos, que a voz do menino ainda é aguda, logo, uma criança jovem, que ainda não
atingiu a puberdade; em segundo lugar, a menção ao Largo de São Bento indica que crianças
trabalhadoras era um fenômeno presente até mesmo em regiões centrais da cidade.
Entrecruzados, os dois elementos sugerem os limites do controle do aparelho estatal, incapaz
de garantir a proibição legal do trabalho infantil, ou conivente com este fenômeno.13
Junto à realidade do trabalhador pobre, História das Malocas revela também a
existência de um outro grupo de moradores:
Terezoca: Ó Charutinho, cê podia dar um ispiculação pra mim?
Charutinho: Fala véia, que teu bafo tem ferrugi
Terezoca: Quem é esse cara chamado Chico Linguiça?
12 Neste contexto, consideramos que “batedor” deve remeter a uma das funções na área de construção. Não
obstante, é possível que seja uma abreviação de “batedor de carteira”, punguista. 13 No art. 403 da CLT, outorgada em 1943, proibe-se o emprego de menores de 14 anos.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 01/05/2020.
Charutinho: É o rei da preguiça... Nunca trabalhou.
(...cantado)
Chico Linguiça / É o rei da preguiça / Não trabalha, não move uma palha /
Faz gestos lentos / Bem sonolentos / Ou seja, cansado, e dorme acordado /
Chico Linguiça / Muita vez se cansa de não fazer nada / Nesta vida mansa /
Nesta vida mansa / Então, com alma cansada, de não fazer nada / Chico
descansa (f.02)
Aqui, conhecemos Chico Linguiça, avesso ao trabalho. Fazendo jus ao apelido, Chico
é apresentando como um simples preguiçoso. O caso de Mormaço, no entanto, é mais
complexo:
Mormaço que sente cansaço, na perna e no braço, não tem pra onde ir
Mormaço que implora um dinheiro, sonhando com acorda pra poder dormir
Mormaço vai vagolinando de olhos cansados sem poder dormir
Vai mulato, sonolento, vai entrando a relento sem ter pra onde ir
Em noite de julho cessado barulho da cidade tenta pular
Mormaço mulato sem bolso encontra repouso pra não mais despertar
Mormaço achou um regaço em cama de estrelas e foi descansar
Mormaço agora já dorme, seu último sonho não pode acordar
Mormaço vai vagolinando de olhos cansados sem poder dormir
Vai mulato, sonolento, vai entrando a relento sem ter pra onde ir
Mormaço está lá em cima, está lá em cima no infinito
Deitado no colchão de estrelas, do hotel de São Binidito (f.03)
Assim como Chico Linguiça, Mormaço também é caracterizado pelo cansaço. Porém,
o segundo relato apresenta algumas das condições nas quais se encontra o personagem:
desprovido de residência, sujeito às intempéries do clima e sem qualquer assistência, familiar
ou institucional. No nosso entender a inclusão de um “sem teto”, que não reside,
propriamente dito, nas malocas, serve para ampliar o escopo humano tratado em Histórias
das Malocas, denunciados os diferentes tipos de exclusão. Nesta chave, cabe apontar que
Mormaço é mulato, o que o insere no grupo racial característico das malocas.
Sobre a situação de Mormaço, consideramos que a colocação “em noite de julho,
cessado barulho, da cidade tenta pular” (ibidem) alude justamente à marginalização deste
sujeito, que não se enquadra nas dinâmicas da cidade, sequer na condição de mão de obra
explorada. A passagem “Mormaço vai vagolinando, de olhos cansados, sem poder dormir”
indica que, neste caso, sua condição de “vagolino”14 não é completamente voluntária, e está
14 Vagolino significa “vadio”. Expressão popular associada à ociosidade, prática que poderia configurar crime,
no caso artigo 59 da Lei das Contravenções Penais, de 1941, que proibia a “Entregar-se alguem habitualmente à
ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou
associada, de fato, a uma certa falta de alternativa. Alude, desta forma, à incapacidade da
cidade – e da sociedade – de abrigar os sujeitos que não se adequam a seus modelos – e ritmo
– de vida.
Ao lado da exposição da miséria e exploração sofrida pelas classes subalternas,
Histórias das Malocas apresenta também suas formas de resistência:
Terezoca: Deus fez o mundo, os anjos fizeram os passarinho, os mulheres
que fizeram as arapuca
C: Os engenheiro fizeram as casa e as ponte
T: Despois veio os trabalhador e fizeram as rua
C: Vieram o chevé e fizeram lotação
T: Despois vieram os sabido e fizeram os barcão
C: Despois vieram os vagabundo... e eles falaram assim “sabe o que nois
faz? Nois num faz nada”.
T: A terra aqui de baixo apretence aos que trabáia
C: mas os vagabundo sem teto é os proprietário do céu... Hm... Véia, manja
a lua no céu, dá só a manjada... A lua parece um arremendo branco nas carça
azur do céu... (f.09)
No diálogo, percebe-se que, por vezes, a marginalização é uma escolha. Aqui, a
vadiagem não decorre da incapacidade do sujeito de adaptar-se à nova ordem, como no caso
de Mormaço; representa, ao contrário, a rejeição proposital do trabalho. Nessa canção, contra
o engajamento generalizado, de “Deus” aos “trabalhadores”, na atividade produtiva, surge a
recusa desta lógica, por parte dos “vagabundos”. A inversão de valores, que inicia com a
associação entre o “barcão” (o balcão do botequim) e os “sabidos”, cristaliza-se na afirmação
“nois num faiz nada!”, que esvazia o verbo “fazer”, recorrente no diálogo, do seu sentido
original.
Desta forma, a postura dos “vagabundos” adquire uma carga verdadeiramente
política: tendo como marca principal a improdutividade, este grupo passa a representar,
então, a oposição à lógica do trabalho e da produtividade, característicos do capitalismo e da
modernidade. A submissão das classes subaltenras vista até então é substituída, agora, por
uma posição de igualdade - tanto que cada grupo se torna proprietário de uma parte do
mundo, céu ou terra. Nas últimos estrofes, a canção constata:
Quando o criador fez seu domínio / Deu até as ambições para satisfazê-las /
Mas deixou o céu em condomínio / Pra quem que pedir colecionar estrelas /
prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”. A lei ganhou a alcunha da “Lei da Vadiagem”.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm, acesso em 04/05/2020
Homens encardidos de cobiça, podem tomar conta do mundo / Mas abram o
céu, deixem o céu, guardem o céu, reservem o céu / para o vagabundo
Vê-se que o trabalho não é apresentado como mérito, mas como um traço negativo,
ligado à cobiça. Este movimento esvazia de razão muitas críticas feitas aos vagabundos,
“cutucando” e sucitando questionamentos no ouvinte –em muitos casos, um trabalhador
pobre…
Histórias das Malocas identifica ainda mais uma forma de resistência praticada pelos
moradores das malocas, o crime. Insinuada, conforme comentamos anteiormente, em
algumas canções (Anjo João, Benedita de Oliveira), é evidente no caso de Pé de Chinelo
(f.04):
Charutinho: Ô véia Terezoca, ocê manja o Pé de Chinelo?
Terezoca: Eu manjo, é aquele nego asso que só enxergava de de noite. Um
dia foi roubar galinha de de dia e em lugar de penosa pegou um aribo
Charutinho: Pois é véia ele queria ser um gatuno muito conceituado, né...
assim na alta sociedade, né... e ele trabalhou muito por nome dele sair no
jornal
Terezoca: Eu sube... eu vi a cara dele no jornâ... aquela cara encardida de
reboque de igreja véia
Charutinho: Me diga uma coisa véia, ele saiu ansim como afanador famoso?
Terezoca: Neca... Saiu como campeão de salto de muro sem vara
Pé de Chinelo ladrão descuidista / Quer ser ventanista, quer ser mesmo tal /
Pé de Chinelo quer fazer carreira, quer bater carteira, cometer assalto
sensacional / Para sair na manchete do jornal / Pé de Chinelo, ladrão audaz,
vai trabalhar para fazer cartaz / Pé de Chinelo, ladrão audaz, vai trabalhar
para fazer cartaz
Esta canção expõe a presença do crime na vida dos grupos subalternos. Para Pé de
Chinelo, o roubo não é apenas seu meio de sobrevivência, mas uma forma de alcançar
prestígio e reconhecimento. É mister perceber que a canção não critica o plano deste sujeito;
ao invés disso, aborda o crime como uma profissão, inclusive pelo uso de termos que
pertencem ao campo semântico do emprego, como “fazer carreira” e “vai trabalhar”. Desta
forma, a canção desloca os holofotes da crítica do alvo costumeiro, o contraventor, para
apontá-los à estrutura: a sociedade onde o crime é a única maneira dos marginalizados de
escapar à falta de reconhecimento.
Por fim, buscamos refletir sobre a faixa intitulada Letra de Samba (f.05). Trata-se da
única canção que tem um ritmo rápido e alegre, distante da lentidão e melancolia que
caracteriza as demais canções, fruto do retrato da difícil realidade das malocas. É, ainda, a
única que centra-se numa temática cultural, buscando responder à pergunta “qual que é a
receita pra fazer uma letra de samba”?
Feito pela Terezoca, o questionamento ganha sua primeira resposta de Charutinho:
“pra ter uma boa letra de samba, sentida, humana, a gente tem que ser, em primeiro lugar,
nalfabeto. Só se for nalfabeto escreve bem...” (ibidem). Através da ironia, a resposta opõe o
samba à cultura erudita, indicando o caráter “democrático” desse, acessível também aos
moradores iletrados das malocas. A concepção de Charutinho é reforçada ao longo da canção:
Quem vai pra escola de samba se matricular / Não precisa saber ler, escrever
ou multiplicar / Letra de samba não tem caligrafia / Letra de samba não tem
datilografia / (...) / Quem vai pra escola de samba pra ser bacharel / Não
precisa de lápis, não precisa nem de papel / Letra de samba não quer papel
nenhum / Nem quer caneta, marquise 51...
Outro pré-requisito que a canção coloca para a composição deste gênero musical é “o
que o samba tem que ter, vou lhe dizer pra você / É cabrocha gingando, sacolejando,
derretendo gelo / Provocando muita dor de cotovelo”. Este trecho coloca, ao lado do popular,
também o “componente” racial15: um bom samba exige a presença de negros - mais
especificamente, negras. Esta passagem, que evidentemente perpetua a imagem sexualizada
da mulher negra, era, na sociedade dos anos ‘60, uma forma de elevar a imagem deste grupo.
Assim sendo, a exposição do samba – expressão cultural que constitui um “símbolo
nacional”16 – permite distanciar-se da imagem das malocas como universo exclusivamente de
carência e malogro. Além disso, e sem deixar de traçar as relações entre raça e a falta de
direitos (alfabetização, no caso), Letra de Samba recupera este estilo musical, um autêntico
símbolo nacional, como propriedade das camadas subalternas; a marginalização, ocorrida na
economia, não reverbera da mesma forma para a esfera cultural.
15 “Cabrocha” é um termo popular que designa uma mulata de pele escura. 16 As relações entre o samba e identidade nacional brasileira é um assunto com vasta bibliografia. Ver, entre
outros TINHORÃO (1981); VIANNA (1995).
Considerações finais
A análise aqui feita revela que, não obstante seu humorismo, Histórias das Malocas
constitui um retrato altamente crítico da realidade paulistana de meados do século XX.
Tratando das experiências das classes subalternas, o disco entrelaça componentes sociais,
culturais e raciais, para expor uma narrativa que evidencia as desigualdades e exclusão da
população pobre e negra da capital paulista. Considerando seu momento histórico, o disco
rompe com a exaltação de discursos e processos como a modernização e o progresso,
evidenciando suas falácias e abismos.
Considerando a convergência entre rádio e indústria fonográfica, nota-se que essa
denúncia é propagada por meios da grande mídia, inserindo temáticas explosivas nos
principais palcos públicos. Neste sentido, é interessante considerar a colocação de Barbero
(2015, p.174), de que a cultura de massa, “em vez de ser o lugar onde as diferenças sociais
são definidas, passa a ser o lugar onde tais diferenças são encobertas e negadas”. Histórias
das Malocas, consideramos, sugere as possibilidade de rejeitar este paradigma, e denotar a
arte de uma carga política, mesmo dentro do establishment.
Em contrapartida, o fato dos personagens, negros, terem por trás atores e atrizes
brancos indica os limites dessa crítica; a grande mídia aceitava narrativas sobre as classes
subalternas, mas afastava-se de narrativas feitas pelos contingentes marginalizados17.
Inclusive, os limites da inclusão foram evidentes no caso da versão televisiva de Histórias
das Malocas, onde os atores brancos foram pintados de preto, a fim de aumentar a sua
credibilidade – téncica que já foi usada na origem do cinema, por exemplo. Assim, mais que
indicar a inclusão dos negros pobres como cidadãos de direitos, sua inserção nos meios de
comunicação hegemônicos sugere sua captação como consumidores. Desta maneira, serve de
exemplo para as estratégias comerciais dos meios de comunicação na construção de uma
cultura de massa.
Todavia, mesmo com seus limites, Histórias das Malocas mantém sua importância
como registro histórico: enfatiza a multiplicidade de vozes e atitudes das classes populares,
evidenciando sua heterogeneidade, e oferece uma narrativa sobre as dinâmicas socio-
17 Inclusive Os limites da inclusão apareceram com a adaptação do programa radiofônico à televisão, quando
Adoniran e outros participantes tiveram seus rostos pintados em preto.
espaciais da capital paulista do século XX. Por fim, contribui para a nossa reflexão sobre a
profundidade e complexidade das desigualdades sociais e do racismo – elemetnos que
seguem marcando a história de São Paulo e do país.
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