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14 INTRODUÇÃO Ensino de ciências e educação escolar indígena são concepções conhecidas no Brasil. Porém, o fazer científico-pedagógico [grifo nosso], numa perspectiva intercultural está, ainda, em construção. Esta, que acontece dos mais diferentes modos entre os povos tradicionais da Amazônia, representa uma oportunidade para a inserção de novos conhecimentos. É, também, uma maneira de dar novas respostas às questões da ciência ocidental, em que os métodos vigentes são ineficazes para resolução de problemas evidenciados no processo educativo das escolas indígenas. Para isto, a interação entre os aspectos biossocioambientais, interculturais, políticos e econômicos é condição primordial. Para estabelecermos relação entre ciência, cultura, território e sustentabilidade se faz necessário, compreendermos primeiramente o conceito de cada um deles, dada a sua relevância para o desenvolvimento da temática. O esclarecimento destes conceitos visa à inter-relação entre eles, apontando para a questão da sustentabilidade da educação escolar indígena. Diante disto, apropriamo-nos de nossa experiência de vinte e cinco anos de docência 1 e de gestão escolar, para investigarmos acerca das dificuldades que envolvem o processo ensino-aprendizagem e o cotidiano das práticas metodológicas de ensino aplicadas em sala de aula, na escola indígena. Por conseguinte, observamos experiências relevantes para a validação do processo educacional, no território indígena do Alto Rio Negro. Algumas escolas destacam-se neste contexto, porém, nos ateremos às experiências de ensino da Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali (EIBC-Pamáali) 2 . A razão da escolha é o fato de esta desenvolver uma metodologia de ensino das ciências com base na ciência do concreto, na perspectiva da didática intercultural. E, também, por que considera as práticas cotidianas e as tradições mitológicas Baniwa e Coripaco para a ressignificação dos conceitos estudados. Nessa perspectiva, construímos o enfoque do trabalho com base na perspectiva metodológica qualitativa, a partir do campo de pesquisa. Organizamos o trabalho em três capítulos, conforme descrito abaixo: 1 Estes 25 anos de experiência de ensino em todos os níveis, (Infantil ao Superior), tanto em instituições públicas quanto privadas, nos rendeu um arcabouço prático, que nos respalda nesta discussão. 2 No decorrer da dissertação, usaremos o termo EIBC, Pamáali ou EIBC-Pamáali, para nos referirmos à escola Baniwa e Coripaco.

INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

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Page 1: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

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INTRODUÇÃO

Ensino de ciências e educação escolar indígena são concepções conhecidas no

Brasil. Porém, o fazer científico-pedagógico [grifo nosso], numa perspectiva

intercultural está, ainda, em construção. Esta, que acontece dos mais diferentes modos

entre os povos tradicionais da Amazônia, representa uma oportunidade para a inserção

de novos conhecimentos. É, também, uma maneira de dar novas respostas às questões

da ciência ocidental, em que os métodos vigentes são ineficazes para resolução de

problemas evidenciados no processo educativo das escolas indígenas. Para isto, a

interação entre os aspectos biossocioambientais, interculturais, políticos e econômicos é

condição primordial.

Para estabelecermos relação entre ciência, cultura, território e sustentabilidade

se faz necessário, compreendermos primeiramente o conceito de cada um deles, dada a

sua relevância para o desenvolvimento da temática. O esclarecimento destes conceitos

visa à inter-relação entre eles, apontando para a questão da sustentabilidade da educação

escolar indígena. Diante disto, apropriamo-nos de nossa experiência de vinte e cinco

anos de docência1 e de gestão escolar, para investigarmos acerca das dificuldades que

envolvem o processo ensino-aprendizagem e o cotidiano das práticas metodológicas de

ensino aplicadas em sala de aula, na escola indígena.

Por conseguinte, observamos experiências relevantes para a validação do

processo educacional, no território indígena do Alto Rio Negro. Algumas escolas

destacam-se neste contexto, porém, nos ateremos às experiências de ensino da Escola

Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali (EIBC-Pamáali) 2. A razão da escolha é o fato de

esta desenvolver uma metodologia de ensino das ciências com base na ciência do

concreto, na perspectiva da didática intercultural. E, também, por que considera as

práticas cotidianas e as tradições mitológicas Baniwa e Coripaco para a ressignificação

dos conceitos estudados.

Nessa perspectiva, construímos o enfoque do trabalho com base na perspectiva

metodológica qualitativa, a partir do campo de pesquisa. Organizamos o trabalho em

três capítulos, conforme descrito abaixo:

1 Estes 25 anos de experiência de ensino em todos os níveis, (Infantil ao Superior), tanto em instituições públicas

quanto privadas, nos rendeu um arcabouço prático, que nos respalda nesta discussão. 2 No decorrer da dissertação, usaremos o termo EIBC, Pamáali ou EIBC-Pamáali, para nos referirmos à escola

Baniwa e Coripaco.

Page 2: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

15

No primeiro capítulo, na busca de relacionarmos teoria e prática

fundamentamos teoricamente o Ensino de ciências e educação intercultural, baseando-

nos nas concepções de ciências, interculturalidade, como um diálogo entre as diversas

culturas, a sustentabilidade, a territorialidade e a educação escolar indígena. Destacamos

as práticas pedagógicas na perspectiva da didática intercultural, a partir do cotidiano dos

Baniwa e Coripaco. Estes conceitos formaram uma tríade para a análise da ciência do

concreto relacionando com o etnoconhecimento.

Diante da temática, tomamos por referência os estudos de Vieira, Leff, Pinto,

Laplantine, Barreiros, Koch-Grünberg, Silva, RCNEI/ MEC, Tassinari, Freitas, Weigel,

Hennig, Ribeiro, Eliade e Lévi-Strauss, dentre outros.

Para possibilitar uma melhor compreensão do percurso, elaboramos o segundo

capítulo a Metodologia, com o tema Desafio para a construção de um caminho,

delineamos, a priori, a estrutura geral da pesquisa, estabelecendo a problemática, as

questões norteadoras, os objetivos, os sujeitos e o objeto da pesquisa. Neste sentido,

construímos o caminho da pesquisa, com uma abordagem qualitativa, no método

dedutivo, sendo um estudo de caso, com indícios da pesquisa etnográfica e etnológica,

detalhando o percurso da viagem pelo rio Içana, bem como a nossa estada na EIBC-

Pamáali. Por ser de natureza qualitativa, recorremos para fins de coleta de dados, a

técnica de observação participante intensiva, aos instrumentos de entrevista com

professores e alunos, para análise dos processos conceptuais do ensino de ciências na

Pamáali. Foi necessário, dada às circunstâncias e impossibilidade de retornarmos ao

local da pesquisa, lançarmos mão em um último momento da carta eletrônica (e-mail), a

fim de obtermos algumas informações relevantes para a conclusão das análises dos

registros da pesquisa. Em última análise relatamos nossa experiência de mudança de

concepção quanto à educação escolar indígena e os espaços não formais de ensino.

Utilizamos a narrativa como uma modalidade da pesquisa qualitativa, pois

contempla a experiência contada pelo narrador e ouvida pelo outro, o ouvinte. Pois para

Triviños (1992), o pesquisador é sujeito participante da pesquisa, diretamente implicado

na relação pesquisador-pesquisado. Fundamentamos este capítulo nos estudos de Pires,

Teixeira, Marques, Kincheloe, Kaufmann, Haguette e outros como suporte

metodológico.

O terceiro capítulo, denominado de Os saberes indígenas e a construção de

conceitos em Ciências Naturais destacamos uma proposta intercultural, bilíngue e

sustentável para o ensino de ciências naturais para a EIBC, como um diferencial na

Page 3: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

16

educação escolar indígena no Alto Rio Negro. Analisamos as concepções de estudantes

e professores Baniwa e Coripaco na construção de conceitos em ciências naturais e, por

fim, a proposta de um recurso pedagógico na perspectiva didática intercultural e

bilíngue, ressaltando as vantagens e os passos deste fazer pedagógico. A finalidade

desta produção é que, após aprovada por todos os interessados, seja publicada e

utilizada como material didático na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino

Fundamental das comunidades, que oferecem estes níveis, ao redor da Pamáali.

Abordamos sobre os saberes indígenas na construção dos conceitos em

Ciências Naturais e sobre os temas contemporâneos contemplados no Projeto Político

Pedagógico da EIBC e explorados nas produções monográfica dos estudantes.

Destacamos o mito como estratégia de ensino para a sustentabilidade cultural e

científica, bem como as metodologias de ensino com pesquisa, visando à inter-relação

entre os saberes tradicionais indígenas e os conhecimentos científicos da cultura não

índia. Assim, nos referenciamos no PPP EIBC-Pamáali, em Wright, Pinto, Tassinari,

Weigel, Vygotsky, Viveiros de Castro, Lévi-Strauss e outros. Respaldamo-nos, também,

na experiência do campo, possibilitando um diálogo entre o teórico e o prático.

Page 4: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

17

1 ENSINO DE CIÊNCIAS E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL

“Ciência é tudo o que praticamos: tomar banho cedo

para não envelhecer, não ficar com os cabelos

brancos, ficar forte e melhorar os anticorpos. É a

prática do dia a dia.”

Raul Brazão Baniwa

1.1. Ciência(s), Educação Intercultural e Sustentabilidade

A Ciência tem sua origem a partir das reflexões filosóficas, pois, a aquisição do

conhecimento científico se dá através da capacidade que temos de organizar e

reorganizar as informações em nossa mente.

Nesse sentido, Hennig (1998, p. 146) afirma que “Ciência é o processo de

simplificar e acumular conhecimentos [...], direcionando valores (pensamento, vivência

e cultura), proporcionando as condições para que o homem cumpra seu destino”. Isto

mostra que a Ciência e o conhecimento estão diretamente ligados formando uma base

para a Teoria do Conhecimento.

Com efeito, a objetividade é um elemento importante na Ciência para

possibilitar maior precisão na explicação dos fenômenos da natureza. Por esta razão, a

comunidade científica busca um método de conhecimento e compreensão que ofereça

maior confiança nos resultados da pesquisa. Com isto cada escrito histórico nas ciências

possui característica própria de seu período e que cada “historiador escreve com um

propósito em mente” (DEBUS, 2004, p. 15), que é o de tornar-se um propagador do seu

tempo histórico.

Os modelos filosóficos de aprendizagem predominantes que foram transferidos

para o ensino das ciências reforçam a memorização de conceitos. Contudo, estes

padrões sofreram reformas conceituais e conceptuais, isto é, teorias científicas foram

sendo ressignificadas, com vistas a atender às necessidades de aquisição do

conhecimento científico. Sobre essas mudanças Morin (2008, p. 16) corrobora

afirmando que “nossa ciência realizou gigantescos progressos de conhecimento, [...] que

desafia os nossos conceitos, nossa lógica, nossa inteligência”. Neste caso, o

conhecimento científico configura-se um desafio. Então, como desenvolvê-lo nos

trabalhos educativos de nossas escolas?

Page 5: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

18

No entanto, a educação escolar indígena vem buscando este progresso

científico de modo significativo, principalmente após o estabelecimento de legislação

própria para este ensino. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96

(LDBEN) – artigos 26, parágrafo 1º e 2º; artigo 78 e 79 – e o Referencial Curricular

Nacional para a Educação Indígena (RCNEI) 3, que defendem a especificidade da escola

indígena representam um reconhecimento da necessidade de uma educação

diferenciada, específica e de qualidade para os povos tradicionais do país. Porém, ainda

por conta dos conceitos de ciências arraigados na sociedade envolvente, as contradições

ainda são desafios para professores e estudantes indígenas.

Acrescente-se que a LDBEN 9394/96, no art. 79, garante que serão

desenvolvidos “programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação

escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas”, com vistas a fortalecer as

manifestações sócio culturais de cada comunidade.

Arrematando, Silva (2001, p. 31) reforça que um dos avanços para a educação

indígena está na Constituição Brasileira/ 1988, pois “garante aos Índios uma educação

respeitosa de suas línguas e culturas, de seus modos próprios de viver e pensar, de

valorização de seus conhecimentos e dos processos próprios de sua produção e

transmissão”.

Nestes termos, o que estabelece a legislação garante o direito, então, o desafio

está na distância entre o previsto na lei e a realidade das escolas indígenas. Assim, a

implantação de um currículo que atenda a necessidade de cada comunidade tem sido a

luta dos professores indígenas.

Acrescente-se a esse comentário que independentemente da ação das

instituições de ensino superior, as lideranças indígenas, politicamente organizadas,

buscam alternativas que atendam aos anseios de sua população no que diz respeito à

formação dos professores e à criação de escolas de Ensino Fundamental e Médio com

proposta para uma educação escolar indígena sustentável.

É o caso do Alto Rio Negro, onde em 2003 foram instituídas Escolas Estaduais

de Ensino Médio Indígena nos distritos de Pari-Cachoeira, Taracuá e Assunção do Içana

com a participação de lideranças indígenas, coordenadas pela FOIRN. Em 2006, estas

escolas passaram a ter gestores indígenas. Este processo de mudança só foi possível

3 Nas próximas citações usaremos RCNEI.

Page 6: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

19

com a realização da Oficina para elaboração de Projetos Políticos Pedagógicos para o

Ensino Médio Indígena, em dezembro do ano de 2005. (MONJELÓ, 2007).

Assinale-se que, os professores indígenas reivindicam a elaboração de novas

propostas curriculares aplicáveis às suas escolas para substituir o modelo geral do

sistema educacional vigente. A razão, conforme registra o RCNEI/MEC (2002, p.11), é

que “tais modelos nunca corresponderam aos seus interesses políticos e às pedagogias

de suas culturas”.

Com base nesse pensamento, podemos dizer que os indígenas e, neste caso os

Baniwa e Coripaco, trabalham para uma educação que visa à sustentabilidade, no

sentido de manter suas lideranças, seus costumes e valores tradicionais.

Para tanto, utilizar a transversalidade constitui-se numa estratégia facilitadora

do trabalho do professor, porque favorece a discussão de questões educacionais e

sociais da cultura local e global. Além do mais, é uma proposta viável no contexto atual

da sala de aula, pois professores e alunos tornam-se construtores de uma prática

educativa para uma escola inclusiva e intercultural. E, reforçando essa inferência o

RCNEI (2002, p. 93) destaca os temas transversais como:

Um recurso de trabalho para o desenvolvimento de currículos mais

significativos e flexíveis, fazendo dos conteúdos acadêmicos estudados na

escola um instrumento para pensar questões socialmente relevantes para

aquele conjunto de pessoas.

Esses temas discutidos pela escola e por todos os sujeitos do processo

educativo permitem um elo de discussão entre as diversas áreas de estudo e, de acordo

com interesse do grupo, adquirem caráter de projeto social em benefício da comunidade.

Importa destacar que, as concepções de ensino construídas pelos povos indígenas

existem antes mesmo da introdução da escola formal no meio deles. Eles possuem uma

maneira própria de produzir, reproduzir, transmitir, elaborar, reelaborar e perpetuar os

conhecimentos, o que resulta num conjunto de concepções e conceitos científicos e

filosóficos bem harmonizados com a natureza.

Para os povos tradicionais a aquisição de conhecimentos é uma questão

existencial, pois representam a sua sobrevivência enquanto etnia. Neste particular, Pinto

(2008, p. 241) salienta sobre os saberes indígenas, que em

Page 7: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

20

Um dado importante relativo a vários inventários do mundo natural e etno-

cultural que se realizaram [...], foi fundamental a contribuição e classificação

das espécies animais e vegetais, além de seus respectivos valores e sentidos

mágicos, medicinais, alimentares e econômicos.

Como vimos, o reconhecimento das contribuições dos povos tradicionais na

historiografia é premente para preencher lacunas que os métodos das ciências

convencionais não explicam. Assim, caminharemos para a utilização responsável e

consciente dos recursos naturais, para a relação de respeito com os elementos da

natureza e para o comprometimento em manter a cultura e a história mítica dos povos

tradicionais da Amazônia.

Portanto, diante desses pressupostos, a maneira como se utilizam os recursos

naturais determina os modelos de desenvolvimento e o modo de existência de diferentes

povos. Neste sentido, para o indígena, um elemento essencial na elaboração dos

conhecimentos é o direito ao seu território e aos recursos naturais existentes nele. Pois,

com a posse de seu território o Índio constrói sua história, sua identidade, suas

instituições políticas e sociais. Ele desenvolve concepções e alternativas de

sustentabilidade, que os configuram, como os verdadeiros trabalhadores (RCNEI 2002)

e, porque não dizer, “defensores da Amazônia”. (SILVA, 2003).

Nessa perspectiva, ainda segundo Silva (2001), para valorização da educação

escolar indígena e para implantação de políticas públicas neste seguimento educacional,

a participação dos etnólogos é fundamental para sistematização de concepções,

formulação de projetos e elaboração de legislações. São importantes também, para a

formação de professores indígenas, a implantação de escolas e a criação de associações.

Ademais, a etnologia possibilitou o reconhecimento de particularidades étnicas

até então vistas de maneira geral pela Antropologia. As crenças, os mitos, a cosmologia

e a relação do homem com a natureza, presente na visão dos povos ditos “primitivos”,

chamou a atenção do olhar científico. Por isso, a Ciência precisou de novas

metodologias de análises para compreender a complexidade das concepções indígenas,

quanto às relações entre pessoas, corpos, almas, espíritos e animais. (SILVA, 2001).

Consequentemente, a escola indígena ganha reconhecimento como um espaço

de reflexão e de pesquisa com vistas à implantação da escola diferenciada, baseada na

compreensão da realidade pesquisada. Para isso, o conhecimento acadêmico acumulado

Page 8: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

21

a respeito dos povos indígenas e pelos povos indígenas é um patrimônio útil4 [Grifo

nosso] para fins de pesquisa científica. Sobre esta questão, Tassinari (2001, p. 46) infere

que

A escola indígena começa a ser vista também como espaço/momento

privilegiado para o aprofundamento das próprias pesquisas sobre

etnoconhecimentos, e os professores e alunos Índios, por sua vez, revelam-se

como pesquisadores e pesquisados no contexto local.

Porém, embora a escola indígena seja de fato um espaço privilegiado para a

pesquisa científica, é necessário que os pesquisadores tenham consciência de que este

mesmo espaço é local de construção existencial e de preservação étnica sustentável.

Assim, o ensino com pesquisa contribui para o processo de aquisição do

conhecimento, fazendo a interação entre teoria e prática e articulando, conforme diz

Leff (2008, p. 201), com os “sistemas ecológicos, tecnológicos e culturais, para

satisfazer as necessidades básicas e melhorar a qualidade de vida da população”.

Portanto, a exploração científica é integradora dos sistemas que envolvem os sujeitos

participantes do processo.

1.1.1 Sustentabilidade, territorialidade e educação escolar indígena

O tema sustentabilidade está diretamente ligado à preservação da espécie

humana. E, para o indígena a territorialidade possui estreita relação com

sustentabilidade, pois que assentado em seu território, este pode prover o alimento,

instalar a moradia e, repassar a história aos descendentes, visando o desenvolvimento

sustentável.

Porém, à medida que compreendemos os conceitos de desenvolvimento e de

sustentabilidade parece-nos quase utópico manter esta combinação. Incluir nesta ideia a

educação escolar indígena é ainda mais complexo. Entretanto, segundo Freitas (2001,

p.27) tem-se consolidado

4 Conhecimento que pode ser utilizado para discussões e aprofundamento dentro da pesquisa científica na temática

indígena.

Page 9: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

22

As tendências de que as questionáveis metodologias utilizadas pelos grupos

econômicos e científicos, para agregar valor à natureza amazônica, [...]

(incluindo a flora e a fauna), terão que necessariamente incorporar o

componente societário, adquirindo feições políticas e nuançando parte das

contradições das relações da Região com o Estado e o Mundo.

Isso significa dizer que é necessário à formalização de parcerias e uma nova

mentalidade quanto às questões de sustentabilidade da nossa região. Com isto vamos

então compreender algumas definições de desenvolvimento e sustentabilidade. Em um

conceito simples diríamos que por um lado o termo desenvolvimento está diretamente

ligado ao crescimento econômico e progresso material, por outro o termo

sustentabilidade está relacionado aos aspectos econômicos, sociais, ambientais e

culturais de uma determinada comunidade ou sociedade humana. (LEFF, 2008) Neste

caso, Coimbra (2004, p. 554) conclui que “tratar cientifica e tecnicamente a questão

ambiental significa uma verdadeira mobilização na construção do saber e na práxis,

visando modificar o modelo de relações hoje existentes entre sociedade humana e

mundo natural”.

Ancorados nessa perspectiva é importante considerar a ação do homem sobre a

natureza e o impacto dessas ações na preservação das espécies. Neste sentido o homem

deve se sentir parte integrante, como elemento da natureza, tal como os povos

indígenas, pois para eles, afirma Gray (1995), citado por Freitas (2001, p. 43), “existe

uma indissociabilidade entre as pessoas e a natureza, com as suas configurações sociais

condicionando e sendo condicionada pelo meio ambiente”.

Tal premissa significa a relação de interdependência entre homem e natureza.

Por esta razão, questionamos os modelos de desenvolvimento convencionais, para dar

lugar a um modelo sustentável de utilização dos recursos e, consequentemente da

qualidade de vida da população humana. Sobre esta questão Coimbra (2004, p. 525)

infere que “por isso os conceitos correntes e vulgares, quase sempre imprecisos e

simplistas, devem ceder espaço a uma conceituação cientifica que envolva várias

ciências, como as biológicas, as exatas e as humanas”.

Nesses termos, a contribuição das várias ciências na construção de uma nova

proposta de desenvolvimento sustentável será o diferencial nesse processo de combate a

degradação socioambiental. Proposta esta que aponte para um modelo não só de

desenvolvimento como também de preservação. Por esta razão, em 1983 a Organização

das Nações Unidas (ONU) criou a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e

Page 10: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

23

Desenvolvimento, com o fim de orientar pessoas e organizações na compreensão desses

problemas, incentivando-os a uma ação inovadora de integração das questões

econômicas e ambientais. Com esta integração poder-se-ia definir desenvolvimento

sustentável como “aquele que atende às necessidades dos presentes sem comprometer a

possibilidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades”.

(ALMANAQUE BRASIL SOCIOAMBIENTAL, 2008, p. 440).

Entretanto, para que essa proposta se cumpra, requer de nós uma mudança de

postura frente à utilização dos recursos naturais, pois não se trata apenas de preservação

material, mas trata-se principalmente de preservação de povos e culturas milenares que

deles dependem.

Acerca desse assunto Ramos (1988, p. 21) declara que a exploração “intensiva

e ininterrupta de um determinado sítio leva à rápida exaustão do solo e de outros

recursos naturais”. Isto é, a exploração desenfreada gera desequilíbrio ecológico e, na

Amazônia, dada a sua sociobiodiversidade, vislumbramos uma pluralidade de soluções

para o desenvolvimento sustentável na região. A este respeito, Silva (2001, p. 4 e 5)

assevera que somos “uma região complexa, com processos econômicos em curso [...],

composta de áreas e populações urbanas, rurais e indígenas, de ocupação secular,

milenar e contemporânea, e de reservas de proteção ao meio ambiente de manejo

tradicional e recente”.

Nesse sentido, a pluralidade amazônica é o desafio na construção de modelos

econômicos, sociais e educacionais sustentáveis. A educação escolar indígena se

constrói nesse processo de perspectiva sustentável partindo, conforme consta no

RCNEI/ MEC (2002, p. 22), das próprias “concepções indígenas do mundo e do homem

e das formas de organização social, política, cultural econômica e religiosa desses

povos”. Então, o desenvolvimento sustentável para a preservação do meio

socioambiental, não tem outra base que não seja educação, ciência e tecnologia, pois é

por meio desta sustentação que a sociedade intervém em questões sociais, econômicas e

culturais.

Agarrada aos ditames do contexto, Silva (2001, p. 7) destaca os condicionantes

políticos que alicerçam essas questões, sendo ora por

Fatores geográficos, ecológicos e institucionais adversos, ora na grandeza

física e na riqueza potencial da Amazônia, para reclamar prioridades de

Page 11: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

24

intervenção na região sob a forma de infraestrutura social, cientifica e

tecnológica a fim de explorá-la.

Diante dessa realidade, o diferencial da educação escolar indígena está na

inserção da comunidade no processo pedagógico da escola, sendo esta participação

fundamental na definição dos objetivos, para uma educação específica e diferenciada e,

consequentemente sustentável.

Para o indígena os problemas relativos à territorialidade estão ligados à cultura.

Demarcação de terras, conforme afirma Gray (2004, p. 111) “significa reconhecimento

e respeito pelos direitos territoriais e culturais desses povos, permitindo que eles

assumam o controle do seu próprio destino”. Com esta autonomia, buscarão alternativas

econômica, social e política para o consumo sustentável dos recursos naturais em seu

território. Também para avaliação dos impactos da introdução de novas práticas

educativas e técnicas de ensino em seu ambiente escolar e cultural.

Agregue-se a esse comentário a experiência do campo, na narrativa do

professor Baniwa quanto à metodologia de ensino com pesquisa, para a construção de

conceitos. Ele esclarece que:

No inicio questionamos os livros, pois muitos alunos apresentavam

dificuldades, principalmente os de Educação Infantil. Os professores eram

de outra etnia, como Tukano e não eram Baniwa e isto dificultou a

aprendizagem. Os livros estavam fora da nossa realidade. Acreditamos que a

organização tem que ser de acordo com a realidade local e com os

problemas, pois desta maneira é mais viável ensinar porque não fecha o raio

de interesse do aluno e o professor é mais um orientador. Nossa ideia é que

toda a escola de Ensino Fundamental use essa metodologia, respeitando a

idade do aluno. Assim, a pesquisa iniciada no Fundamental precisava ser

aprofundada no Ensino Médio, destacando que a pesquisa intermediária com

os velhos na comunidade é muito importante. No futuro pretendemos

analisar as monografias e partir para intervenção. [Prof. Baniwa 1]

Nesse sentido, o ensino com pesquisa possibilita a construção de conceitos em

ciências naturais por meio das vivências do cotidiano, estando diretamente relacionado

com a valorização dos saberes dos povos indígenas Baniwa e Coripaco, com a

revitalização de sua cultura para sustentabilidade dos mitos às gerações futuras, com a

preservação do modo de vida dos Índios e, principalmente com garantia de

sustentabilidade dentro do próprio território.

Page 12: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

25

Ainda nesse raciocínio, Weigel (2000, p. 207) afirma que “o ritmo das

atividades escolares é peculiar a essas condições: na época de plantar, ou de colher a

mandioca, ou no período de fazer cacori5, a escola para por uma ou duas semanas”, a

fim de garantir a sustentabilidade do professor na escola.

Como vimos, na educação indígena Baniwa e Coripaco, tudo se relaciona com

a terra e à preservação das espécies, à conservação dos animais e da floresta e, ao uso

que se faz dela. Silva (2004, p. 371) infere que se trata da relação “entre o individuo e o

patrimônio cultural do grupo a que pertence”. Para o Índio a forma como se relacionam

com o meio ambiente favorece a visão, as ações e os projetos que levem em conta a

sustentabilidade, harmonizando o homem e a terra ocupada por ele. Para reforçar Leff

(2008, p. 92) referenda que:

O desenvolvimento sustentável surge com o propósito de conseguir um

ordenamento racional do ambiente, sem exigir que o ambiente funde uma

nova racionalidade, que a degradação ambiental não se resolva com os

instrumentos da racionalidade econômica. Neste sentido, a questão ambiental

está ampliando o marco dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e

culturais.

Entretanto, não nos é desconhecida a grande dificuldade que existe em

construir um conhecimento partindo de uma realidade pouco conhecida por muitos,

como é o caso das comunidades indígenas do noroeste do Brasil, mas especificamente

os Baniwa e Coripaco. Comunidades estas definidas, na maioria das vezes, de modo

generalizado, sem observar as particularidades existentes em cada uma delas.

Ancorado na perspectiva da valorização de cada cultura, Bourdieu (1996)

afirma que a cultura e o conhecimento se firmam no interior das relações sociais, nos

grupos de interesse. Com isto abre-se uma possibilidade para pensar o ensino de

ciências contextualizado na realidade da escola indígena Baniwa e Coripaco. E neste

sentido, Freitas (2003, p. 219) compreende que:

A complexidade dos ecossistemas amazônicos em qualquer escala, tanto

quanto a compreensão de propostas para preservá-los, conservá-los ou

desenvolvê-los com modelos sustentáveis, não estão limitadas pela natureza

amazônica, mas pela cultura, ou por fatores que dela dependem.

5 Armadilha construída com galhos secos que serve para pegar peixes.

Page 13: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

26

Portanto, nesse contexto, considerar a concepção cultural dos povos indígenas

Baniwa e Coripaco nesta construção é fundamental para a definição de uma política de

desenvolvimento sustentável. Além disso, Lévi-Strauss (1989) afirma que é preciso

compreender o que está subjacente na concepção dos indígenas sobre sua própria

educação. É preciso reconhecer as experiências de ensino das ciências por meio dos

saberes cotidianos para a construção concreta de conceitos e transformá-las em

conhecimento científico.

Sendo assim, fazer a interação entre as experiências do cotidiano Baniwa e

Coripaco com a construção do conhecimento científico, pode tornar-se um elemento de

constatação que o indígena faz ciência. É o que discutiremos a seguir.

1.2. Didática Intercultural: Práticas pedagógicas a partir das experiências

indígenas Baniwa e Coripaco

É preciso criar condições prévias para a construção do conhecimento científico,

considerando que as práticas em sala de aula reforçam e aumentam a consciência dos

estudantes sobre suas concepções de aprendizagem. Neste sentido, é necessário se

valorizar os saberes docentes, para então propor os recursos didáticos. Barreiros (2006,

p. 22) explica que quando se “reconhece os saberes docentes como plurais, estratégicos

e desvalorizados, abre-se um leque de alternativas para a compreensão do fazer

pedagógico ou docente”. Não se pode impor aos docentes novos saberes usando como

desculpa a visão do conhecimento dito científico.

Além do mais, na perspectiva de uma didática intercultural, o processo de

ensino e de aprendizagem é multidimensional e cheio de diversidade, sendo, portanto,

necessário considerar a dimensão cultural, que deve ser “um elemento construído no

interior da escola a partir deste mesmo cotidiano [escolar]”. (Idem). Mais ainda, “a

escola é também um mundo social, ou seja, um espaço que tem e desenvolve sua

própria cultura” (Ibidem, p. 23), com características próprias das culturas da cada

realidade.

Nessa acepção, Barreiras (2006, p. 23), traz a visão de Candau (1997) para

situar o cenário do cotidiano escolar e os processos constantes nele:

Globalização, multiculturalismo, questões de gênero e de raça, novas formas

de comunicação, manifestações culturais de adolescentes e jovens,

Page 14: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

27

expressões de diferentes classes sociais, movimentos culturais e religiosos,

diversas formas de violência e exclusão social configuram novos e

diferenciados cenários sociais, políticos e culturais.

Decorrendo desse fato, a autora defende que a escola deve sair de sua postura

monocultural, através da articulação entre igualdade e diferença, questionando

estereótipos sociais e, que promova de fato um movimento de inter aprendizagem entre

as culturas, favorecendo assim, uma educação verdadeiramente intercultural.

A perspectiva da educação intercultural está diretamente ligada à seleção dos

conteúdos escolares, às estratégias de ensino, à relação professor-aluno, aluno-aluno, ao

sistema de avaliação, ao papel do professor, á organização da sala de aula, às atividades

extraclasses, à relação escola-comunidade, numa tentativa de ressignificação das

práticas pedagógicas.

Em síntese, a didática intercultural possibilita “enxergar a diversidade, a

diferença, a pluralidade de culturas como um dos componentes fundamentais da relação

pedagógica do cotidiano escolar no processo ensino-aprendizagem” (BARREIRAS,

2006, p. 28), pois ao considerar esta multidimensionalidade, se dá o primeiro passo para

a perspectiva intercultural, considerando também, no mesmo nível de importância a

contextualização da prática pedagógica e a análise de sua concretude.

Por essa razão, considerou-se as atividades cotidianas dos Baniwa e Coripaco,

como uma alternativa de aprendizagem representante da didática intercultural.

Tomemos como exemplo a caça, que, conforme Kock Grünberg (2005), não tem tanta

importância para aquisição do alimento como a pesca. Porém, além de ser praticada

como um esporte, seu equipamento é elaborado cuidadosamente e manuseado com

muita destreza. Dentre essas armas está a carauatana6. Sobre este apetrecho

7 [Grifo

nosso] Kock Grünberg (2005, p. 121), nos dá uma aula de ensino de ciências e

matemática, numa descrição detalhada da construção deste objeto até sua utilização.

Vejamos:

O cano de 2,80m até 3m de comprimento é tomado de uma arrundinácea cuja

haste desde a raiz ergue-se reta como uma vela e sem nós, por uns quatro

metros ou mais, até que começa esgalhar-se. Secam-se cuidadosamente, ao

fogo e no sol, para que não se entorte. O cano cilíndrico, [...], levemente

6 “Arma principal dos indígenas do noroeste do Brasil para caçar aves e pequenos quadrúpedes, especialmente os

arborícolas” (KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 121). 7 Expressão usada por KOCH-GRÜNBERG, 2005.

Page 15: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

28

esfregado na parte externa com cera preta [...], para preservá-lo de estragos.

Enfiam [...] no tronco uma palmeira de paxiuba, [...] retirada a medula.

Ambas as partes devem adaptar-se exatamente uma à outra e ficam

calafetadas por meio do rolamento do líber.

Observamos nesse texto um conhecimento significativo acerca da utilidade de

cada elemento da natureza, sua finalidade específica, bem como sua propriedade de

eficácia. Apresenta-nos ainda conhecimentos matemáticos e geométricos necessários

para a confecção da arma. Esta descrição usada em sala de aula para a construção de

conceitos matemáticos facilitaria a apreensão destes conteúdos abstratos e de difícil

compreensão.

Na descrição da produção do veneno, chamado de curare, para ervar as

flechas8 [grifo nosso] a serem usadas na carauatana, revela-se a propriedade química

da planta e como ela age no organismo do animal atingido. Koch-Grünberg (2005, p.

125) descreve que o principal componente para produzir o curare é a casca de uma

trepadeira, denominada cientificamente de maukulipi. Para iniciar o processo, os

Baniwa

Secam a casca ao fogo, fervem na água, peneiram a decocção com uma

peneirinha finíssima, para separarem todos os componentes sólidos, e

cozinham o suco até que ele se torne de cor marrom-preto, mais grosso do

que xarope. Acrescentam ainda outros ingredientes, venenos e sucos

pegajosos de plantas, que devem fazer com que o veneno fique melhor

aderente à madeira. [...] A umidade faz o curare perder sua força. Por isso os

potinhos de veneno são conservados cuidadosamente fechados [...]. Assim, o

veneno conserva a sua eficácia durante anos. A eficácia do curare já foi

testada por muitas experiências. Se o curare penetra no sangue, paralisa logo

o movimento voluntário do músculo nesta localidade. Com o sangue que

circula, espalha-se o veneno e com ele a paralisação no corpo inteiro.

Percebemos que ao preparar tal veneno, o indígena Baniwa tem consciência do

que está fazendo e sabe que objetivos quer alcançar. Os saberes presentes nessa

descrição apontam para uma concepção alternativa acerca construção do conhecimento

cientifico, pois tenta superar, pela riqueza de detalhes observados nela, fontes também

alternativas, que gerem a informação inicial. No preparo do veneno estão presentes

informações da Química, como por exemplo, propriedades anestésicas, densidade

líquida, conservação das propriedades de uma substância; e da Biologia como

8 Expressão usada por Koch-Grünberg, para dizer que as flechas usadas na carauatana serão envenenadas com ervas.

Page 16: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

29

circulação sanguínea e funcionamento de órgãos vitais. Neste caso, se usado como

aplicação para conteúdo de ensino, a produção desse veneno se transformaria em uma

ferramenta facilitadora para abstração destas informações.

Na sequência dessa explanação, a descrição do uso carauatana, o seu tamanho,

a habilidade e a força necessária para usá-la e ainda, a posição do corpo que possibilita

maior segurança para seu uso, dando maior impulso e velocidade para arremessar a

flecha, compreende vários conceitos da Física. Vejamos a seguir o detalhamento feito

por Koch-Grünberg (2005, p. 126), quando narra que:

Um homem forte pode arremessar a flechinha com tamanha força que ela

atinja eficazmente o alvo na distância de 30 ou 40m. [...]. Na distância de uns

20 ou 30m, segurando a carauatana horizontalmente, raras vezes deixaram

de acertar uma banana, que certamente é um alvo de pequenas dimensões.

O que fica evidente é que nessa descrição temos uma aula sequenciada,

trabalhando conceitos da Física, como força, movimento e distância entre dois pontos.

Se aplicado em sala de aula, este exemplo constitui-se em um instrumento de prática

pedagógica para proporcionar aprendizagem significativa aos estudantes.

A percepção dos Baniwa para capturar sua presa na hora e no local adequado é

mais uma aula de Biologia. Ele demonstra o conhecimento acerca dos hábitos

alimentares dos animais, da rotina destes em seu habitat natural e do momento mais

apropriado para a captura. Koch-Grünberg (2005, p. 125), mais uma vez, descreve a

respeito da caça a partir dos conhecimentos Baniwa e relata que “o indígena conhece os

segredos da sua selva [...]. Com perseverança tenaz ele persegue o fugitivo pela

confusão da brenha, até que chegue a disparar o tiro e matar a presa”.

Nessa afirmativa, constatamos conhecimentos de Biologia para a construção de

concepções de ensino de ciências nas escolas indígenas Baniwa e Coripaco do Alto Rio

Negro. A experiência do Índio Baniwa em suas atividades cotidianas e a maneira como

ele se apropria dos conhecimentos, evidencia a necessidade de uma escolarização

diferenciada, intercultural e específica, reiterando a relação entre Homem, Natureza e

Cultura.

Conforme já foi destacado, a valorização do modo como os Baniwa se

apropriam do conhecimento, para produzir educação formal, dá a ele oportunidade de

sobreviver material e culturalmente. Principalmente, se os conteúdos forem ensinados

Page 17: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

30

na própria língua materna. Este pressuposto é reforçado pelo que Lévi-Strauss (1989)

advoga sobre a necessidade de compreender as diversas culturas, pois se constituem

num vasto patrimônio de diversidade para a humanidade. E Bazin (s/d, s/p) reitera esta

premissa, afirmando que,

Cada professor indígena e cada formador de professores indígenas precisa

convencer-se, pelo estudo e pela prática de uma pesquisa coletiva na

comunidade (...) [da existência de] uma riqueza própria em cada indivíduo e

em todo povo indígena, nos domínios chamados de “Matemática e Ciência”.

Cada povo, cada civilização, no mundo inteiro, criou sua própria maneira de

contar, de fazer medições de distâncias, áreas, volumes; de criar desenhos de

construções ou decorativos (de fazer "geometria"); de estabelecer regras e

"provas" para os mais variados jogos; de produzir superfícies e volumes a

partir de fibras entrelaçadas de maneiras muito bem definidas e classificáveis

(na cestaria).

É premente, portanto, compreendermos que o modo próprio de produção de

conhecimento de cada povo é um patrimônio cultural a preservar. Mesmo porque a

legitimação desse conhecimento produzido deve partir da crença dos próprios indígenas,

pois isto creditará maior respeito a cada povo, a cada cultura. Portanto, todo educador

indígena, que conhece sua cultura, usa os conhecimentos construídos por seus

ancestrais, como uma maneira própria de fazer matemática e ciência. Pois, percebe-se

estreita relação com a etnologia indígena, levando em consideração o plano cognitivo, o

simbolismo, a historicidade do sujeito e o conceito singular de Natureza. E isto

proporciona uma visão ampla sobre diversidade cultural de cada povo.

Ademais, Vidal & Silva (2004, p. 371) aferem que estas práticas de trabalho

pedagógico na educação escolar indígena – neste caso Baniwa e Coripaco - “indicam as

relações entre o individuo e o patrimônio cultural do grupo a que pertence”, apontando

assim, para projetos futuros. Isto representa uma tomada de consciência cada vez mais

crescente por parte de cada povo étnica e culturalmente representado na sociedade.

Por isso, a escola indígena Baniwa e Coripaco apresenta-se como um local de

aquisição do saber e de ensino para as crianças e para os jovens sobre o modo de vida na

comunidade. Os Baniwa e Coripaco, também ensinam sobre os conhecimentos

acumulados e repassados pelos mais velhos, sobre as propriedades medicinais das

plantas, sobre os mitos de sua origem e dos animais e, sobre as tradições culturais

necessárias para a preservação de sua etnia.

Page 18: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

31

No entanto, historicamente falando, a escola dos não Índios se equivoca no

repasse da informação sobre o mito. O conceito é de que os mitos seriam “lendas

indígenas”, numa visão completamente errônea deste conceito que é fundamental para a

existência da cultura Baniwa e Coripaco e de outras tradicionais. (SILVA, 2004)

Para Laraia (2009), isso acontece por que cada povo toma como parâmetro sua

própria cultura, como sendo verdades absolutas e despreza as demais culturas. Este

comportamento demonstra a ausência de um conhecimento intercultural. Bem como a

necessidade de valorização das diferenças culturais.

Nesse sentido, é importante a interpretação da simbologia dos seres e sua

relação com os mitos e os ritos indígenas, neste caso dos Baniwa e Coripaco, para além

de uma simples análise formal. E, sobre esta questão de interpretação de simbologias,

Lévi-Strauss (1989, p. 62) sintetiza que:

Cada dia mais se percebe que para interpretar corretamente os mitos e os ritos

e, mesmo para interpretá-los de um ponto de vista estrutural (que não se teria

razão para confundir com simples análise formal) é indispensável a

identificação precisa das plantas e animais de que se faz menção ou que são

diretamente utilizados.

Essa afirmação está diretamente ligada à compreensão e reconhecimento do

mito como uma das principais forças para a preservação dos povos tradicionais. E, para

os Baniwa e Coripaco, as tradições são uma porta de sustentabilidade da cultura, do

mito de origem, centrada na territorialidade. Os povos Baniwa e Coripaco surgiram no

rio Ayari, um afluente do rio Içana. O mito relata que naquele tempo havia apenas dois

seres viventes no centro do mundo, eram Napirikoli e Dzooli, que fumaram seu

cachimbo, sopraram e a partir deles surgiram todos os ancestrais.

Segundo Eliade (1994) é preciso conhecer o mito de origem de uma planta para

se usar corretamente sua propriedade curativa, pois só haverá cura se o ritual mítico for

realizado como na primeira aparição, seguindo passo a passo a sequência do ritual e

com a mesma organização. Ele afirma também, que se a enfermidade for, por exemplo,

uma picada de cobra, aquele que vai realizar a retirada do veneno deve conhecer o mito

de origem da cobra, a fim de realizar o rito adequadamente.

Lévi-Strauss (1989) reforça quanto ao pensamento “primitivo”, que tanto os

“civilizados” quanto os “selvagens”, possuem igual comportamento emocional e,

Page 19: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

32

mesmo nas sociedades onde predomina a cultura do saber científico, ele reforça, que a

racionalidade e o sentimento estão sobrepostos. Então, se por um lado o ritual mítico de

passagem do jovem indígena Baniwa e Coripaco para a vida adulta é significativo para

que se torne um guerreiro. Por outro, o rito de formatura (colação de grau) tem

significado mítico para o não indígena, significa um novo caminho. Portanto, os ritos e

os mitos representam a racionalidade e o sentimento tanto para os povos tradicionais,

quanto para os ocidentais.

Acrescente-se que, na visão de Silva (2004, p. 318), é de suma importância “a

comunicação e o convívio de povos, culturas, nações e grupos sociais diferentes entre si,

se dá em grau, extensão e intensidade nunca antes experimentados”, a fim de que haja

adaptação quanto às diferenças e, compreensão quanto à pluralidade cultural existente

em nosso país, caracterizando uma convivência para uma educação intercultural.

Agarrado aos ditames desse contexto, na educação escolar indígena Baniwa e

Coripaco, considera-se a realidade em volta da escola e valoriza-se os conhecimentos da

comunidade. Portanto, as atividades desenvolvidas e, inclusive o local onde a escola foi

construída favoreceu a proposta de currículo que valoriza o mito de origem e os

conhecimentos tradicionais dos povos Baniwa e Coripaco, pois, conforme afirmam

Vieira (2009, p. 5), como “tudo na cultura indígena, este local tem um significado de

caráter ancestral e mítico”, o que revela o respeito do povo Baniwa e Coripaco para com

suas raízes ancestrais.

Então, para que haja compreensão do significado mítico para os povos

indígenas é preciso: Partir da reflexão filosófica do mito; derrubar os tabus e mentiras a

respeito do mito; e tomar consciência da complexidade do mito, quanto às identidades,

concepções e práticas diversas constantes neles.

E, assim, segundo afirma Silva (2004, p. 320) “estaríamos, então, em melhores

condições para trabalhar os mitos em sua dupla dimensão, [...], como produtos da

reflexão humana sobre o mundo [...] e como criações originais, em suas especificidades,

de sociedades e culturas particulares” e, somente aí incluí-los como parte do currículo

das escolas não indígenas.

Cabe enfim recordar que o atual modelo de escola é uma criação ocidental e,

que os indígenas só passam a ter a necessidade [grifo nosso], após contato com os não

índios. Assim, em sua especificidade, a escola indígena torna-se objeto de pesquisa,

quanto às concepções, quanto ao funcionamento e quanto à repercussão no meio

educacional. A este respeito, Weigel (2000, p. 73) infere que:

Page 20: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

33

É preciso, então, dar conta da contradição e do conflito produzidos nas

relações que fazem a escola indígena, os quais criam movimentos e tensões

entre continuidade/descontinuidade, reprodução/ruptura no processo

educativo, colocando para a escola indígena tanto a dimensão da reprodução,

quanto da transformação sociocultural.

Com efeito, as contradições reveladas no interior da escola indígena denotam

os processos de dominação causados pelas missões religiosas, preocupadas em

implantar sua visão de mundo religioso ocidental, ignorando os saberes tradicionais

desses povos, como se eles mesmos não fossem capazes de pensar sua realidade, suas

necessidades e sua história.

Em face disso, o resultado se revela em nossos dias, na dificuldade dos

professores indígenas para sair do modelo de escola que foi implantado por essas

missões, em décadas de dominação. Em alguns casos até preferem a estrutura atual, pois

desta forma se destacam no mundo ocidental. Nem percebem que desta maneira,

desvalorizam sua própria construção cultural. (WEIGEL, 2000).

Assim sendo, Cunha (2004, p. 131) assevera que “entender esses processos não

é somente importante para a definição de identidade étnica. Na realidade toda a questão

indígena [...] está eivada de semelhante reificações”, com a finalidade de levar os

indígenas a um estado de indiferença e alienação de sua cultura. Ao contrário disto, a

escola indígena deve estimular “o fluxo de conhecimentos, [...], numa direção

radicalmente oposta” (TASSINARI, 2001, p.65), para possibilitar ao Índio perguntar,

aprender técnicas, ouvir histórias, interpretá-las e utilizá-las da melhor forma possível,

construindo seu próprio conhecimento. E isto a escola Baniwa e Coripaco minifesta em

suas metodologias com ênfase na pesquisa.

É importante, portanto, a valorização das diferenças constantes em cada povo,

em cada cultura, a fim de se compreender que cada etnia possui sua riqueza e contribui

na construção da sociedade em todo o mundo, favorecendo a interculturalidade. Nesta

perspectiva, Grupione (2004, p. 485) destaca:

A humanidade é composta por uma rica variedade de grupos humanos. Todos

esses grupos humanos têm uma capacidade especifica para atribuir

significados a suas experiências de vida, a fenômenos da natureza ou da

realidade social, às condutas dos animais e também das pessoas. Os

significados atribuídos podem variar muito de grupo para grupo. O conjunto

de significados explicativos da realidade compõe um código simbólico, que é

próprio de cada cultura.

Page 21: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

34

Então, em face do foi colocado, compreender a educação escolar numa

perspectiva intercultural ou ainda pluricultural é um exercício que deve ser praticado

tanto na escola indígena quanto na não indígena, para que se excluam os pré-conceitos

criados, principalmente em relação ao indígena.

Essa questão fica clara quando nos reportamos aos livros didáticos das escolas

de não índios. Estes apresentam os indígenas como coadjuvante de sua própria história,

sempre em função do colonizador europeu. Neste caso, é uma visão etnocêntrica que

gera a ideologia de que os Índios não são nossos contemporâneos. Reforçando a ideia de

que eles pertencem ao passado e que não existem mais. O módulo dos PCN’s dedicado

à Pluralidade Cultural dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s EM/MEC, 2000,

p. 121), afirmam que,

As culturas são produzidas pelos grupos sociais ao longo das suas histórias,

na construção de suas formas de subsistência, na organização da vida social e

política, nas suas relações com o meio e com outros grupos, na produção de

conhecimentos etc. A diferença entre culturas é fruto da singularidade desses

processos em cada grupo social.

Certamente, cada grupo social preocupa-se em manter a cultura construída por

seus pares, a fim de subsistir às mudanças e manter as características do grupo. Nessa

perspectiva de país plural, o Brasil é formado por essa diversidade de povos, dada a sua

formação histórica de povoamento.

Com base nessa premissa, destacamos a importância de convivermos com a

diversidade cultural, respeitando as diferenças raciais, linguísticas e religiosas, pois isto

deve fazer parte do nosso cotidiano, nas escolas, nas comunidades, nos grupos sociais e

onde quer que estejamos nos relacionando dentro da sociedade.

Por conseguinte, é possível afirmar que cada sujeito possui seu lugar dentro da

sociedade. Weigel (2000, p. 176/7) compreende que:

As posições ocupadas por cada um desses atores sociais não são arbitrárias,

mas definidas pela distribuição de apropriação, social e historicamente

operadas, [...] legitimados e valorados nessa realidade social. [...] A

acumulação relativa de capitais sociais é, então, convertida em qualidades e

possibilidades aos indivíduos, as quais servem para criar/negar nexos e

proximidades entre as diferentes posições do espaço social.

Page 22: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

35

Com base nesse pensamento, percebemos a riqueza presente na acumulação do

capital cultural, posto que cada cultura tem sua contribuição social, para o

desenvolvimento da humanidade. Tal contribuição se constitui num patrimônio

inestimável. Vieira (2009, p. 9) reforçam ao afirmar que

Uma educação indígena que se propõe diferenciada não tem problemas em

considerar as diferentes culturas como parceiras no processo de construção da

cidadania indígena. Através da interculturalidade, Brancos [não índios] e

Índios podem dialogar sem prejuízos assimilatórios, pois o contato com

diferentes etnias só tem reforçado a necessidade de reconhecimento das

diferenças. Mesmo dialogando com outras realidades culturais, o interesse do

Índio por sua história e cultura permanece aguçado, e é notável a revelação

dos saberes tradicionais em muitos aspectos de sua educação.

Essa afirmação nos mostra que os Baniwa e Coripaco estão abertos a novos

conhecimentos, porém não descartam os saberes conquistados por seus ancestrais com

muita luta e perseverança. Neste sentido visam à conquista da autonomia social, política

e educacional, para interação entre a tríade interculturalidade, ciência e sustentabilidade.

Agregue-se a este comentário que “há um esforço para conhecer a origem e a história de

tudo o que nos cerca: tanto a origem do sistema solar quanto a de uma instituição como

o matrimônio ou de um jogo infantil como a amarelinha”. (ELIADE, 1994, p. 73).

Nesse sentido, isso significa que tanto Índios quanto não índios têm

necessidade de conhecer suas origens culturais, num esforço para compreender fatos

ainda não compreendidos. Ao contrário, ignorando tais conhecimentos a Ciência

colabora para a extinção de boa parte da história da humanidade e, consequentemente, a

história da própria Ciência.

Sobre essa temática, D’Ambrósio (2004, p. 194) arremata o quanto “é essencial

entender o processo de aquisição do conhecimento”, pois neste processo a História da

Ciência com a história da humanidade interagem entre si, num movimento de

construção dos saberes, recuperando, segundo Alfonso-Goldfarb (1994) os

“conhecimentos sobre a natureza que pareciam errados pelos critérios científicos [e

ainda recuperando] outras formas de ciência que a Ciência Moderna apagara”

(ALFONSO-GOLDFARB, 1994, p.13). Esta postura representa uma superação da

Ciência em relação aos conceitos e as concepções sobre os saberes tradicionais

enquanto tema da pesquisa científica.

Page 23: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

36

Nessa acepção, a reforma da religião e da ciência, busca uma nova

compreensão do mundo e do homem, isto é, o microcosmo dentro do macrocosmo,

onde, segundo afirma Debus (2004), “o homem como um verdadeiro mago natural,

deveria aprender sobre seu criador por meio do estudo da natureza criada por Deus”

(DEBUS, 2004, p. 15). Tal estudo teria por base a Química, ou seja, domínio total da

Química e da Alquimia, visando principalmente o benefício da medicina e a preparação

de novos medicamentos quimicamente testados, porém mantendo seu fundamento na

medicação simples, tradicional. (DEBUS, 2004)

Enfim, a compreensão da realidade cultural, é fundamental para que a

humanidade reconheça e respeite as diferenças entre os povos, seu modo de

sobrevivência e suas estratégias de sustentabilidade. No entanto, é importante

percebemos como acontece a concepção de ensino entre os indígenas, especificamente

neste caso, os Baniwa e Coripaco.

O ensino de ciências na escola indígena Baniwa e Coripaco é uma construção a

partir da realidade e do conhecimento concreto, pois a valorização do ambiente que os

cerca é um recurso pedagógico utilizado caracterizando um fazer ciência a partir do

concreto. Esta é a nossa abordagem a seguir.

1.3. Etnoconhecimento e ciência do concreto

“A dificuldade da pesquisa é ir em busca do que se

quer e da linguagem científica; pesquisa é

interessante e nos ajuda a construir um texto ‘bem

grande’.”

Abílio Brazão - Aluno do 1º Ano do EMII

O etno está diretamente ligado ao conceito antropológico de população ou

grupo social biológica, linguística e culturalmente homogênea, que compartilham

história e origem. O concreto está ligado à construção de conceitos por meio “da

observação daquilo que é vivido, e da teoria construída para dar conta dessa observação,

[...] do campo e do método”. (LAPLANTINE, 2007, p. 192).

Essa construção está diretamente ligada com os dados observados na realidade

em questão. Porém, o trabalho etnocientífico não se volta apenas para o estudo das

etnias ou grupos étnicos, mas sim, de microssistemas de um determinado campo.

Portanto, possui como objeto de estudo as várias formas de conhecimento e/ou saberes

Page 24: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

37

humanos, pois, conforme confere Laplantine (2007) “trata-se de uma atividade

claramente teórica de construção de um objeto [...] que só pode ser empreendida a partir

de uma realidade concreta”. (Idem, p. 193/4).

Essa realidade concreta é o campo a ser pesquisado. Para tanto, um estudo

etnocientífico considera três fases distintas:

a) A primeira é a fase epistemológica - ligada diretamente ao modelo da

realidade em estudo;

b) A segunda é a fase ética - que se preocupa com a análise e discussão

ampliada e neutra da realidade e permite a comparação entre vários modelos culturais e,

por fim;

c) A terceira fase que se constitui na comparação entre as duas anteriores. Vale

ressaltar que o sistema ético de comparação entre culturas nem sempre existe, sendo

necessário muitas vezes construí-lo durante o processo de estudo.

Com base nessa definição, a dificuldade maior da etnociência, conforme afirma

Pinto (2008, p. 243) relaciona-se com o tipo de civilização implantada no Brasil que

sempre teve dificuldade

Em reconhecer a existência das culturas indígenas e muito mais em

reconhecer que todo o conhecimento que veio a ter do território, da zoologia,

da botânica, do uso medicinal das plantas, de boa parte da culinária, deve de

alguma maneira aos povos indígenas que possuíam, produziam e muitas

vezes ensinavam esses saberes.

Então, reconhecer as contribuições dos povos tradicionais é reconhecer a

etnociência como um campo do conhecimento em expansão. Pois possui abrangência

em áreas como: biologia, mitologia, teologia, epistemologia, cosmologia, antropologia,

meteorologia, agronomia, matemática, linguística entre outras, formando seu caráter

interdisciplinar e ético. Neste sentido, é possível que por força do crescimento de uma

nova visão de ciência, estejam nascendo subáreas de conhecimento.

Agregue-se a esse comentário que herdamos dos habitantes “primitivos” das

Américas, um saber a ser resgatado e, Ribeiro (2004, p. 199) acrescenta que

As principais plantas de que se alimenta, ou que utiliza industrialmente, a

humanidade foram descobertas e domesticadas pelos ameríndios. Tais são

Page 25: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

38

entre as alimentícias: i) batata – Solanum tuberosum; ii) mandioca – Manihot

esculenta; iii) milho – Zea mays.

Certamente que essa herança cultural se firma na escola. O que implica para o

professor, a sensibilidade de captar o potencial investigativo dos estudantes, levando-os

a descobrir, redescobrir e autodescobrir, dentro da própria comunidade a riqueza

material e intelectual presente em cada cultura. Entretanto, Lévi-Strauss (1997, p. 33)

ressalta a existência de um intermediário para a construção do conceito a partir do

concreto e infere que

Entre a imagem e o conceito: [o que existe] é o signo, [...], como [mediador]

entre uma imagem e um conceito, que, na união assim estabelecida,

desempenham respectivamente os papéis de significante e significado. Assim

como a imagem, o signo é um ser concreto, mas assemelha-se ao conceito

por seu poder referencial.

Confirmando tal inferência, isso significa dizer que não basta adquirir o

conhecimento, saber o “para quê” do conhecimento tem igual importância. E neste

sentido, Lévi-Strauss (1997) ratifica a necessidade de uma análise pormenorizada dos

fatos da realidade concreta, indo além das causas e efeitos, para o que está implícito

nelas. E Vygotsky (1998, p. 47) corrobora afirmando que “o uso de signos auxiliares

rompe com a fusão entre o campo sensorial e o sistema motor, tornando possível assim

novos tipos de comportamento”.

Nesse caso, percebemos que entre o saber e o fazer existe um mediador

concreto, o signo. Consequentemente, a tarefa de formar professores indígenas é

delicada. É, portanto, necessário encontrar juntamente com estes professores conteúdos

do seu interesse, para possibilitar a produção de conhecimentos significativos para a

sustentabilidade étnica, transmitidos na língua nativa e, conforme esclarece Silva &

Azevedo (2004, p. 156) garantindo “aos professores indígenas uma formação especifica,

atividades de atualização e capacitação periódica para seu aprimoramento profissional”.

De fato, para que isso ocorra os formadores precisam conhecer o contexto da

realidade em questão. Pois, tanto na formação dos professores, quanto na ministração do

conteúdo em sala de aula, quando não é contextualizado concretamente, estes se tornam

apenas conceitos formais sem nenhuma significação. E, serão de fato, se mais tarde os

sujeitos não o direcionarem para um fim específico.

Page 26: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

39

Com efeito, as etnociências chamam a atenção, para sensibilização, tanto os

cientistas quanto a comunidade em geral. Pois, o potencial dos povos tradicionais na

utilização sustentável dos recursos naturais, também favorece a preservação das

culturas.

Por ser um campo interdisciplinarizado, ao estudar as relações existentes entre

as comunidades tradicionais e o mundo natural, as etnociências estabelecem uma

interação entre a lógica subjacente aos saberes humanos em cada população tradicional

e sua cultura. Em última análise, Pinto (2008, p. 243) infere que “a tendência é que as

etnociências adquiram uma força maior à proporção que os estudos antropológicos se

ampliem nas universidades da região [do Alto Rio Negro e em outras], pois afinal esse

seria um de seus campos de atuação prioritários”.

Assim, as etnociências trazem em sua essência a finalidade de utilizar os

etnoconhecimentos para promover os saberes e as culturas tradicionais, com vistas a

uma compreensão intercultural entre os povos, para a construção de um caminho com

vistas a um novo paradigma de desenvolvimento sustentável.

Page 27: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

40

2 METODOLOGIA: O DESAFIO PARA CONSTRUÇÃO DE UM CAMINHO

2.1 Delineamento da pesquisa

“Ao andar se faz caminho e ao olhar para trás vê-se a

estrada que nunca voltar-se-á a pisar”.

Antonio Machado

O percurso metodológico é sempre um momento de muitas ponderações e

decisões por parte do pesquisador. Neste caso, o caminho percorrido trouxe como

resultado a visão e as concepções do professor e do aluno Baniwa e Coripaco a respeito

do ensino de ciências e dos conceitos básicos presentes nas práticas educativas. Trouxe,

ainda, a contribuição para a construção da aprendizagem científica dos estudantes do

Ensino Fundamental da EIBC Pamáali. Nesse processo de construção de conceitos em

Ciências Naturais, há uma interação entre os saberes Baniwa e Coripaco e os

conhecimentos ocidentais, possibilitando uma mudança de paradigma a respeito da

escola indígena.

A escolha do método, da abordagem, das técnicas e a contextualização do

trajeto da pesquisa dependem do objeto de pesquisa escolhido, pois de acordo com

Marques (2006, p. 22), é necessária “a aplicação de um conjunto de princípios que

tenham o status de científico”.

Com base no projeto idealizado para o desenvolvimento da pesquisa

delineamos a estrutura geral compreendendo a problemática, as questões norteadoras, os

objetivos geral e específicos, bem como os sujeitos e o contexto a ser pesquisado.

2.1.1 A Problemática

A delimitação do problema e o detalhamento da problemática é o primeiro

passo para se iniciar o trabalho de pesquisa. Dir-se-ia que este é o momento crucial para

o início dos trabalhos. “A formulação do problema aos chamados critérios de

delimitação, de modo que se inibam as tentativas de se ampliar demais o problema ou

restringi-lo além do ideal”. (MARQUES, 2006, p. 95).

Diante disso, consideramos importante a contextualização da problemática, a

fim de que possamos nos debruçar no percurso metodológico. No inicio tínhamos

apenas as leituras relacionadas à temática geral abordada e, somente quando fomos ao

campo é que definimos o objeto da problemática. A partir daí compreendemos que

Page 28: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

41

historicamente, os povos “civilizados” vinham imprimindo o caráter de sua cultura aos

povos “primitivos”. Tal imposição ocidental caracteriza mais uma vez a invasão de

território dos povos tradicionais da floresta, que se repete em vários momentos na

historiografia. Na pesquisa de campo, nosso interesse cresceu, ao considerarmos a ideia

dos povos tradicionais sobre ciências e, ao acreditarmos no potencial da escola indígena

enquanto espaço de pesquisa científica, então decidimos pela explanação desse campo.

Por fim, tomamos como foco principal do problema o trabalho científico desenvolvido

no meio do povo Baniwa e Coripaco do Alto Rio Negro, na escola Pamáali, o que

despertou nosso interesse de investigar qual a concepção desses povos acerca do que é

ciência e como se dá, neste processo, o ensino de ciências naturais, levando em

consideração as experiências de ensino, os saberes, a territorialidade e o modelo mítico

dos Baniwa e Coripaco.

2.1.1.1 As Questões Norteadoras

Diante da contextualização da problemática foram levantadas algumas questões

que nortearam todo o nosso percurso. Na primeira buscamos saber quais as concepções

de Ciência presentes nas ações desenvolvidas pelos professores da Pamáali no Alto Rio

Negro? A resposta obtida nesta questão nos proporcionou uma visão clara das

concepções do fazer científico dos Baniwa e Coripaco. No segundo questionamento

investigamos quais as concepções de Ciência fundamentam as práticas de ensino?

Descobrir uma nova concepção de ciência fundamentando as práticas pedagógicas dos

Baniwa e Coripaco foi uma constatação surpreendente, do ponto de vista de que as

escolas de não índios estão aquém de alcançar tal concepção em suas salas de aula. A

terceira questão foi como acontece o Ensino de Ciência na prática de sala de aula?

Estar em contato com uma prática diferenciada nos acrescentou significativa satisfação,

visto que se tratou de uma primeira experiência e, ainda nos possibilitou a construção de

uma proposta de recurso pedagógico bilíngue para o ensino de ciências naturais. E por

fim, questionamos qual a relação entre a interculturalidade, a territorialidade e a

sustentabilidade para os processos de ensino e de aprendizagem? A percepção de uma

estreita relação entre estes conceitos na prática pedagógica Baniwa nos fez refletir que

para eles todo conhecimento adquirido é uma questão existencial.

Page 29: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

42

2.1.1.2 Os Objetivos

Diante desse contexto nossos objetivos foram traçados para responder aos

questionamentos levantados dentro da proposta da pesquisa. Assim sendo,

estabelecemos:

2.1.1.2.1 Geral:

Investigar as Concepções de Ensino de Ciências Naturais, numa perspectiva de

educação intercultural e sustentável, nas práticas de ensino Baniwa e Coripaco

da EIBC-Pamáali no Alto Rio Negro.

2.1.1.2.2 Específicos

Identificar as concepções sobre ciências, educação intercultural, sustentabilidade

e territorialidade na prática política e pedagógica dos professores Baniwa e

Coripaco da EIBC-Pamáali;

Analisar a formação dos saberes Baniwa e Coripaco e a construção de conceitos

nas ciências naturais;

Elaborar uma proposta de recurso pedagógico, como alternativa metodológica a

ser utilizada nos anos iniciais do Ensino Fundamental da educação escolar

Baniwa e Coripaco da EIBC-Pamáali.

2.1.2 Os sujeitos da pesquisa

Os sujeitos da pesquisa foram trinta e oito estudantes do Ensino Fundamental,

dezoito estudantes do Ensino Médio Integral e três professores, incluindo o

Coordenador da Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali, fazendo um total de

sessenta e dois sujeitos diretamente envolvidos no processo da pesquisa.

A escola localizada no Médio Içana, rio afluente do Rio Negro foi escolhida

para que se pudesse dar continuidade a um processo de pesquisa já iniciado, que

analisou em linhas gerais, a metodologia com pesquisa desenvolvida ali. Nosso objeto

de pesquisa foi um olhar voltado especificamente para as concepções presentes nas

práticas do ensino de ciências naturais.

Os professores investigados são formados no Magistério indígena e dois deles

estavam cursando a Pedagogia Intercultural da Universidade do Amazonas. O professor

Page 30: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

43

atuante no ensino de ciências naturais do Ensino Fundamental foi aluno da escola e

estava naquele momento como professor regente da turma. Para preservar a identidade

dos estudantes, os identificamos pelas siglas Fund/n° para Ensino Fundamental e

EMI/nº para Ensino Médio Integral. Também o nome dos estudantes autores das

monografias analisadas foi preservado, sendo estes identificados, no capítulo da análise,

na primeira tabela pela letra A+nº e nas tabelas seguintes AB+nº. E quando aparece a

fala dos professores são identificados como Prof. Fund. ou coordenador.

2.1.3 O objeto de estudo

Construir o objeto é uma expressão que se tornou corriqueira em sociologia.

Portanto, o emprego do termo é para dar sentido e clareza ao que se quer definir. O

objeto é separado do conhecimento comum e da percepção subjetiva do sujeito. Sobre

esta temática Kaufmann (1996) afirma que construímos como um artesão intelectual,

isto é, aquele que domina e personaliza os instrumentos tanto o método quanto a teoria

para um projeto concreto de pesquisa. Este artesão é tudo ao mesmo tempo: homem do

campo, da metodologia e da teorização e não se deixa dominar nem pelo campo, nem

pelo método nem pela teoria, pois deixar-se dominar assim é deixar de descobrir uma

nova roupagem na máquina do mundo.

Por isto não foi tarefa fácil delimitar o tema diante de uma imensidão de

opções que se apresentaram, mas como precisávamos superar a dicotomia entre a

contemplação e a ação [grifos nosso], partimos para o desenho que, para nossa surpresa

não se distanciou da nossa proposta inicial, isto é, espaço não formal [Idem].

Com base nessa premissa, identificamos as atividades da escola relacionadas

com o ensino de ciências e o trabalho desenvolvido pelo professor do Ensino

Fundamental. Então, para o ensino de ciências naturais são usados os conhecimentos

tradicionais do povo Baniwa e Coripaco e sua contextualização com os conhecimentos

da escola ocidental. [Foi o momento do insight!] A construção de conceitos em ciências

naturais por meio dos saberes tradicionais foi confirmada na sala de aula, na trilha das

ciências, na casa das ciências e nas narrações dos sujeitos.

Nesse sentido, a principal motivação para o ensino, reside na exploração dos

mitos do povo Baniwa e Coripaco. Esse fato é comprovado por meio das monografias

escritas pelos alunos do Ensino Fundamental/2004, que exploram os conhecimentos

Page 31: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

44

míticos Baniwa e Coripaco, destacando a ideia de sustentabilidade cultural a partir da

exploração e do registro dos conhecimentos tradicionais de um povo.

2.1.4 A natureza da Pesquisa

“Nada é real, tudo é construção. Não há objetividade,

não há fatos, só interpretações”.

Nietzsche

Estabelecer um percurso metodológico de uma pesquisa desta natureza é uma

construção intelectual desafiadora. Pois, trata-se de uma experiência de aquisição de um

novo conhecimento, do relato da viagem pelo Rio Içana, no Alto Rio Negro e da

descoberta de um trabalho pedagógico significativo. É, também, um exemplo de

educação escolar sustentável que objetiva preservar a cultura do povo Baniwa e

Coripaco, interagindo com a ciência do índio e a ciência do não índio.

Com base nessa perspectiva, Pires (2009, p.57) afirma que não há observador

externo. Visto que, ao entrar em uma comunidade ou aldeia o pesquisador, com sua

presença, altera as condições do local da pesquisa, pois ele é participante da pesquisa e

se envolve como sujeito e como objeto da pesquisa. O autor reforça a afirmativa,

destacando que “o sociólogo, o antropólogo e o pesquisador em educação encontram-se

numa situação especial [...], [porque] têm a grande vantagem de dispor de um

laboratório natural, que não é outro senão a realidade que os cerca”, passando da

observação, para a explicação e para a análise da situação em questão. E é, portanto, na

passagem da descrição para a explicação dos fatos, que o pesquisador faz a transição da

etnografia para a etnologia. Deste modo, etnografia, etnologia e antropologia são etapas

necessárias na pesquisa sobre culturas.

Certamente que diante de um objeto complexo e com características

específicas, a adoção de uma metodologia de macrossistemas não favorece o caminho

da pesquisa. E para referendar essa premissa, Pires (2009) afirma que a pesquisa

etnográfica dentro das ciências sociais, especialmente nas ciências da educação, tem

aumentado significativamente. E arrematando, Lima, Dupas e Oliveira, (1996, p. 24)

apud Spradley (1979), afirmam que “etnografia é a descrição de um sistema de

significados culturais de um determinado grupo”, onde o objetivo é conhecer uma

realidade, mas, do ponto de vista de quem informa.

Page 32: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

45

Nesse sentido, a descrição, a explicação e a interpretação são etapas

indispensáveis no momento da análise dos fatos da realidade e, fundamentais para o

aprofundamento da pesquisa.

Portanto, a escolha do método depende do tipo de abordagem, da representação

social e do tipo de conduta adotada pelo pesquisador. Por essa razão, adotamos o

método observacional, para estudo de caso, enquanto base técnica da pesquisa, pois se

fundamentou em procedimentos sensoriais como ver e ouvir, concentrada na ação dos

sujeitos dentro das condições concretas de sua realidade. O estudo de caso “consiste no

estudo de determinados indivíduos [...], grupos ou comunidades, com a finalidade de

obter generalizações.” (MARQUES, 2006, p. 55).

Nesse caso, o caminho traçado visou alcançar os objetivos, com base nos

pressupostos da pesquisa qualitativa, sem, no entanto, desconsiderarmos as informações

quantitativas, pois são complementares entre si. Contudo, Teixeira (2008) explica que a

linguagem dos sujeitos e suas práticas são a matéria-prima da abordagem qualitativa.

Para corroborar, Pires (2009) assinala que a importância da etnometodologia

para a etnologia está na compreensão dos significados de uma realidade específica para

a coletividade, ou seja, os significados vão além do interesse individual e prevalece o

interesse do grupo social. Portanto, a etnometodologia se justifica por analisar as

microestruturas, pois a sociedade se constitui por microprocessos, que segundo

Haguette (2001, p. 20) “em seu conjunto, configuram as estruturas maciças,

aparentemente invariantes, atuando e conformando inexoravelmente a ação social

individual”.

Lévi-Strauss (1997) destaca o papel do pesquisador na construção da

metodologia, com temas cujo objeto foi escolhido a partir da visita ao campo, como um

“bricoleur, [que] está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas [e] se

define por sua instrumentalidade, [onde] os elementos são recolhidos ou conservados

[representando] um conjunto de relações ao mesmo tempo concretas e virtuais” (p.

32/33).

Sobre essa questão Kincheloe (2004) infere que a bricolagem destaca a relação

entre o pesquisador e a maneira de ver um local social que pode ou não fazer parte de

sua história pessoal. Neste sentido, a bricolagem pode ser entendida como um processo

de emprego de estratégias metodológicas necessárias ao contexto para evolução da

investigação.

Page 33: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

46

Portanto, com base nessa definição elaboramos nosso próprio caminho, a fim

de investigar a realidade do campo. E o valor de nossa caminhada está no significado de

cada momento vivido, cada fato explorado, cada narrativa escutada, como mérito do

pesquisador que vai ao campo, experimenta sensações e conhece uma realidade, “numa

relação ‘sui generis’” (Teixeira, 2008, p. 81), identificando-se com o objeto, para

finalmente iniciar o percurso metodológico.

Consequentemente, elegemos as técnicas e os instrumentos para a coleta de

dados que tem “a finalidade de gerar uma documentação ou acervo de dados”.

(MARQUES, 2006, p. 57). Então, optamos pela observação direta intensiva

participante, pelo uso da narrativa, pela entrevista não diretiva, pelo uso da carta

(eletrônica), registro fotográfico, fílmico, sonoro e, ainda a análise documental de fonte

primária (monografia dos estudantes que concluíram o Ensino Fundamental/ 2004), a

fim de coletarmos informações espontâneas, que interligasse ensino de ciências e

educação indígena.

2.1.5 As técnicas e instrumentos

“Esperando a chegada da nossa embarcação, pude

aproveitar muito bem o tempo estudando os

indígenas”.

Theodor Grünberg

2.1.5.1 Observação e narração

A aplicação de cada técnica da coleta de dados ocorreu em etapas e serão

detalhadas, no texto a seguir.

Estivemos na sala de aula para observar a atividade em desenvolvimento.

Ressalte-se que “a observação em pesquisa não é só olhar, significa um olhar específico

sobre o fenômeno que se quer conhecer” (PINHEIRO; KAKEHASHI; e ÂNGELO,

2005, p. 718). O professor do Ensino Fundamental ministrava a disciplina de “Ciências

Naturais”, com os conteúdos conservação das plantas, cadeia alimentar, mamíferos e

nome dos seres vivos. Observamos que o professor se reportava aos estudantes na

língua Baniwa.

Page 34: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

47

Figuras 01, 02, 03 e 04: Sala de aula Ensino Médio e sala de aula Ensino Fundamental

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: Grupo de Pesquisa Ensino de Ciência, cultura e sustentabilidade na Amazônia –

GPECCSA 9

Na sequência, como já estavam finalizando uma etapa de estudos, ele recolheu

as atividades concluídas e solicitou que os alunos escolhessem um tema, a partir dos

conteúdos propostos, para ser pesquisado na entre etapa (recesso escolar) em suas

comunidades. Em seguida o professor deu a explicação necessária para a pesquisa

chamada intermediária.

Após o encerramento da aula o professor relatou sua experiência. E ao me

mostrar o livro-texto que usa em sala de aula, cogitou a possibilidade de um livro nas

línguas Baniwa, Coripaco e Português, mas o livro estava apenas em Português. O

professor, em sua narrativa, revelou que foi estudante da escola e recebeu um convite

para assumir como professor do Ensino Fundamental. Ressaltou sua satisfação em

retornar à escola como professor e afirmou: “como estudante eu tinha mais trabalho,

pois ainda não conhecia a escola; como professor é mais fácil, já conheço a metodologia

da escola”. Em sua fala ele destacou um fato marcante em sua volta, que “a escola está

avançando, isto facilita o trabalho de professores e estudantes”. Quanto ao ensino de

Ciências, revelou: “praticamos ao voltar para as comunidades e ao aplicarmos o que

aprendemos para a sustentabilidade” e acrescentou que “o ensino sem pesquisa é difícil,

mas com pesquisa é diferente, pois mostra a habilidade do estudante e facilita o

desempenho tanto do professor quanto do estudante” e encerrou a narrativa.

2.1.5.1.1 Narrativa: o ensino com pesquisa

Nesta etapa ouvimos por amostragem, representantes dos dois principais

seguimentos da escola, isto é, estudante e professor, utilizando como instrumento de

coleta a narrativa, pois,

9 Nas próximas fotos usaremos apenas a sigla GPECCSA.

Page 35: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

48

É, pela sua característica oral, aquela que mantém as tradições e as conserva

[...]. O narrador não “informa” sobre a sua experiência, mas conta sobre ela,

dando oportunidade para que o outro a escute e a transforme de acordo com a

sua interpretação (DUTRA, 2002, p. 373/4).

A narrativa a seguir é de um estudante do Ensino Médio Integrado da EIBC

Pamáali. Este estudante pertence à escola desde o 6° ano em 2006 e a narrativa foi

transcrita tal como ele expressou.

“Em 2006, vim para Pamáali e pertenço à comunidade de Tucumã. Essa

escola tem o objetivo de formar verdadeiros cidadãos Baniwa. Fiz as séries

iniciais na minha própria comunidade e temos, aqui, bons professores. Meu

interesse pela pesquisa é aprofundar conhecimentos. Nas aulas de Ciências,

nós estudamos primeiro a teoria e depois fazemos a prática para conhecer de

perto o funcionamento da natureza. Nós temos aulas práticas de Agronomia,

de Piscicultura. Nesta última, estudamos sobre alimentos alternativos para

os peixes. Podemos citar uma espécie de cupim e de fruta que se chama

dzeca, em Baniwa. É uma fruta verde que fica escura quando amadurece.

Ela sai da casca e cai direto na água, alimentando os peixes do viveiro.

Existe, também, outra fruta de cor negra chamada wiri-wiri. No viveiro tem

peixe aracu, pintado, jandiá, acará. Nós não criamos tucunaré porque ele é

predador das outras espécies. Esses peixes são consumidos na escola e nas

comunidades. No inverno e durante a piracema chega a uma quantidade de

mais ou menos cinco mil peixes por viveiro. Temos três viveiros. Às vezes

doamos para outras escolas e comunidades. A avicultura atualmente está

parada.

Figuras 05 e 06: Oficina de piscicultura

Fonte: Arquivo Pamáali

Nas oficinas nós aprendemos a cuidar dos peixes. Por exemplo: desenhamos,

descrevemos o peixe, aprendemos o nome cientifico, em Baniwa e em

Português. Tudo isto aprendemos com o engenheiro de pesca. Aqui nós já

catalogamos mais de duzentas espécies de pimenta da região e temos

produção de pimenta jiquitaia. O objetivo é também vendermos para

revertermos em recursos para a escola. Na escola também vendemos anéis,

colares para subsistência. Confeccionamos cestos de urutu10

. Produzimos

10 Cesto confeccionado com fibra de arumã.

Page 36: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

49

em parceria com empresas. Na casa das Ciências estudamos biologia e,

buscamos compreender a origem das plantas e dos animais. Na pesquisa

para a monografia a escolha é do próprio aluno, para ele descobrir a

própria formação. O professor deixa o aluno livre, pois não deve escolher o

tema do aluno. Eu escolhi “Doenças dos não índios no meio Baniwa e

Coripaco”. Fizemos uma oficina de Arquitetura aí construímos a casa das

pimentas, o lugar onde produzimos a pimenta, desde a plantação, colheita,

pilagem e tudo o mais. Aprendemos a fazer casa tradicional, de palha, não

de caranã, cercado de madeira da região, com cobertura por baixo da palha

para evitar mosquito, etc. A casa será construída pelos estudantes do Ensino

Médio e já temos material, só falta construir. O material foi comprado com

dinheiro do projeto da pimenta. Tivemos também oficina de Jornalismo, para

implantar jornal da escola, chamado “Pitsiro Pamáali”. Temos duas roças,

sendo que uma já está no fim. São 2,5km daqui até a roça e temos abacaxi,

pupunha, pimenta (8 a 10 tipos), caju, banana, cana, marí, macaxeira e

mandioca, cará. Não plantamos tomate, cebolinha e coentro, porque não se

adaptam a terra por isso não há interesse. [aluno1 fund.]

Então, desta maneira, evidenciamos a participação do estudante no processo de

construção do conhecimento e no processo político de formação cidadã. Tal é a riqueza

de informações contidas nesta narrativa, pois mostra que existe uma preocupação de

fato com a aprendizagem significativa para a sustentabilidade. A criticidade do

estudante é surpreendente e sua sensibilidade em relação às questões de sua realidade é

a prova material de que a pesquisa na escola indígena Pamáali é um fato e, porque não

dizer inquestionável, diante de tanta evidência.

2.1.5.1.2 Temas transversais na Ciência do Índio: “é a prática do dia a dia”

A narrativa do coordenador da escola, que em uma coletiva passou algumas

informações sobre temas transversais, sobre o que é ciência, sobre a estrutura da escola,

dentre outros assuntos, foi um momento de interação da pesquisa, onde as partes se

sentiram à vontade para falar sobre suas experiências.

Assim, professores e pesquisadores mantiveram um nível de interatividade que

favoreceu a aplicação do instrumento da pesquisa, isto é, a narrativa. Em seguida

transcrevemos sem alterações a narrativa do coordenador, relacionada aos diversos

temas abordados. À medida que sugeríamos o assunto, o coordenador (também

professor) discorria naturalmente respaldado pelos saberes de seus ancestrais.

Quanto aos temas transversais, são escolhidos de acordo com o objetivo da

pesquisa e direcionados conforme a necessidade, podendo ser voltado para

ética, sustentabilidade, etc. Discutimos para acompanhar o que está mais

Page 37: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

50

atual e pode ser sobre questões econômicas, arquitetura, conhecimentos

tradicionais Baniwa, conhecimento sobre novas tecnologias. São vários

conceitos de ciências utilizados para criar uma concepção de ciência da

escola. O PPP da escola ainda é o mesmo. Possuímos 04 escolas de séries

iniciais e Educação Infantil.

As dificuldades enfrentadas são certamente as mesmas de qualquer escola

brasileira, porém, conforme a narrativa os Baniwa e Coripaco buscam soluções

coletivas, de interesse coletivo, com vistas a solucionar satisfatoriamente os problemas

que se apresentam. Em determinado momento naturalmente perguntamos ao professor:

O índio faz Ciência? Ao que ele respondeu:

Todos nós fazemos ciência. [E isto] para nós é atividade diária como ir à

roça, fazer a farinha, acordar cedo, tomar banho, ficar perto do fogo. Agora

sei o que é ciência através da pesquisa [porque] antes ciência estava somente

na água, na chuva. E agora entendo porque os mais velhos tentavam nos

mostrar e manter as artes e a cultura do Índio e não apenas permanecer nu e

fazer festas; Quanto aos Recursos Didáticos, ainda não temos material

produzido pela própria escola, mas há interesse em publicar, é uma ideia: o

Ensino Médio publica para o Ensino Fundamental e o Ensino Fundamental

nos anos finais publica para os anos iniciais e Educação Infantil. Nós já

temos quatro livros publicados em parceria; Quanto à Formação, a maioria

dos professores tem só Magistério Indígena. E sobre a licenciatura

intercultural da UEA não estou aprovando, gosto somente da parte da

linguística, produção de texto. Mesmo assim, o orientador não conhece a

realidade indígena. Há dificuldade na formação de formadores. Aqui na

escola temos seis professores com Magistério Indígena, um fazendo

Pedagogia Intercultural e um faz Licenciatura relacionada à

sustentabilidade.

Essa narrativa nos leva a perceber a dificuldade para implantação de uma

escola diversificada e plural. Porém, percebemos também a força do índio Baniwa e

Coripaco na busca de uma autonomia educacional. Para eles, vale a pena o esforço na

tentativa de conquistar seus ideais de uma educação escolar que reflita a vontade

coletiva de todo o povo. Assim, a narrativa é um instrumento que facilita a aquisição de

informações espontâneas e favorece o diálogo entre os sujeitos pesquisador-pesquisado.

2.1.5.2 Entrevistas com os estudantes

Nessa etapa sugerimos duas perguntas de respostas abertas, para os estudantes

do Ensino Fundamental e do Médio. Primeiramente realizamos uma dinâmica para

Page 38: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

51

descontraí-los e obtermos melhor interação com eles naquele contato. Em seguida cada

estudante recebeu uma folha para registrar as perguntas, para responder e entregar até o

final daquele dia. Não houve direcionamento e cada um deu suas respostas de acordo

com suas experiências e conhecimentos. Os resultados das respostas das entrevistas

foram tabulados, analisados e expostos detalhadamente no capítulo 3 deste trabalho.

Neles constam as concepções de ciência, concepções científicas que permeiam as

práticas pedagógicas, bem como a relação entre interculturalidade, territorialidade e

sustentabilidade no processo de ensino e de aprendizagem para os Baniwa e Coripaco.

2.1.5.3 Registro e análise das atividades da sala de aula

Esse foi o momento de verificarmos os registros documentais, ou seja, as

atividades feitas em sala de aula e as monografias dos alunos concluintes do Ensino

Fundamental/ 2004. A importância desse instrumento de coleta de dados está no fato de

que tal

investigação confere um valor histórico ao documento a medida que o

pesquisador é capaz de superar os limites inerentes ao próprio material com

que trabalha e, ao mesmo tempo, reconhece serem sua postura e experiência

de vida composta por uma bagagem que é histórica (PIMENTEL, 2001, p.

193).

Isso confere ao pesquisador a característica de historiador transmitindo a

realidade do passado. Então, com a ajuda do professor, selecionamos as atividades

realizadas pelos estudantes do Ensino Fundamental, a fim de estudarmos a possibilidade

da proposta de publicação. Registramos as atividades dos estudantes através de

fotografia, enquanto o professor da turma e da disciplina, narrava a construção de cada

atividade. Durante a observação, registrávamos os momentos por meio de fotografias e

filmagens, ressaltando que, “a utilização [...] de vídeo [...] em Pesquisa Qualitativa

constitui [uma] escolha metodológica no sentido de apreender o fenômeno complexo

em que [...] as imagens são suas partes inerentes” (PINHEIRO; KAKEHASHI; e

ÂNGELO, 2005, p. 720). O detalhamento das atividades está em texto específico no

capítulo 3 deste trabalho.

Page 39: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

52

2.1.5.4 A carta (eletrônica): uma possibilidade na coleta de dados

Em um último momento, como alternativa para ampliação da compreensão de

alguns dados coletados, elegemos a carta como uma possibilidade para complementar

algumas informações, necessárias para a continuação da análise. Portanto, conforme

afirma Moraes (2006) a carta, que pode ainda ser chamada de missiva ou epístola, nos

permite uma comunicação com pessoas em grupo ou individualmente, que estejam

ausente ou distante do outro.

Embora não se trate da carta convencional, a carta por meio eletrônico é

também um recurso que o pesquisador pode lançar mão, com vista a alcançar seus

objetivos. Portanto, encontramos respaldo para esta afirmação no argumento de Demo

(1985) assegurando que a metodologia

É somente Instrumento para chegarmos lá. Discutimos os caminhos

possíveis, os já vigentes, os que já se superaram, e assim por diante. Não vale

a pena entreter-se de tal modo com questões metodológicas que não

cheguemos a fazer pesquisa (DEMO, 1985, p. 22).

Nesse sentido, ainda que a carta, seja ela a convencional ou por meio

eletrônico, ainda tenha sido pouco utilizada na pesquisa, é um instrumento bastante

eficaz que o pesquisador pode fazer uso.

2.6 EIBC-Pamáali e espaço não formal de ensino: experiência para uma nova

concepção

“Acredito que nos livros a gente aprende sim, mas

não 100%. Aprende mais vivendo no lugar”.

Juvêncio Cardoso - Baniwa

No nosso entendimento, não haveria possibilidade de explorar a temática

espaço não formal de ensino em uma escola indígena, porém, conhecer a realidade, em

particular da EIBC-Pamáali, trouxe para nossa experiência uma nova concepção.

Ao chegar a Pamáali a recepção que tivemos dos estudantes foi calorosa. Em

sua simplicidade nos receberam com música, cumprimentos cordiais e excelentes boas

vindas, nos dando ótima impressão do lugar. Após o primeiro momento da chegada, nos

instalamos em uma das casas e depois fomos conhecer um pouco o local.

Page 40: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

53

Figuras 07, 08 e 09: EIBC-Pamáali

Fonte: Arquivo da EIBC – Foto 07: ISA; Fonte: pesquisa de campo/2009 – Fotos 08 e 09: GPECCSA

A Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali situada no Médio Rio Içana, um

dos principais afluentes do Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira –

Amazonas desenvolve uma metodologia de Ensino de Ciências com base na Ciência do

Concreto e valoriza as experiências vividas do dia a dia e as tradições mitológicas de

seu povo. Foi construída numa área de 03 (três) km², em terras indígenas demarcadas e

homologadas desde abril de 1998. O percurso de São Gabriel da Cachoeira até a sede da

escola é de aproximadamente 390 km. Em sua narrativa o coordenador explica sobre

esta questão da localização da Pamáali, destacando que a área da escola é de mais ou

menos 3 km². Ele faz referência também, à construção do PPP para reconhecimento do

Ensino Médio na escola e afirma:

O PPP do Ensino Médio ainda não está aprovado, por isso não podemos

fazer exigências. O que sabemos é que não queremos o modelo de Ensino

Médio da SEDUC. Com a construção do novo PPP, teremos mais

autonomia, ele está em processo de aprovação. O documento foi construído

coletivamente e logo após foi apresentado em Assembleia para avaliação dos

pais. Estamos com dificuldade de tempo para concluir, mas somente com a

conclusão do PPP poderemos reconhecer a Escola. A nossa Escola é

pensada pelo povo Baniwa e Coripaco, não por ninguém de fora. [Professor-

Coordenador]

O professor revela em sua narrativa a construção de uma escola indígena

democrática, com a participação de todos. Os obstáculos, não se constituem em motivo

de paralisação, pelo contrário, eles avançam em direção à escola dos Baniwa e

Coripaco. Pamáali conserva a estrutura de ocas com casas construídas com barro, traves

de madeira, piso de barro batido e cobertura de palha, o que dá um ar rústico ao local.

Page 41: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

54

Figuras 10 e 11: Estrutura arquitetônica da Pamáali

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Em sua estrutura geral a escola possui: 03 salas de aula, casa dos professores,

casa dos pesquisadores, sala da coordenação com internet, biblioteca, (que por sinal

precisa ser revitalizada em seu acervo) casa das ciências, cozinha, campo de futebol e

área externa para reunião. Além disso, a escola possui a trilha das ciências, um

laboratório vivo para observação de várias espécies de plantas nativas, para fins

ornamentais e medicinais.

Figura 12: Biblioteca Figura 13: Sala de aula Figura 14: Cozinha

Figura 15: Trilha das ciências Figura 16: Casa das ciências

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Em determinado momento do dia, reunimos com a coordenação que nos

apresentou a equipe: vice-coordenador, administrador, articulador e assessor

pedagógico. Uma equipe composta exclusivamente por homens.

Assim, depois de apresentadas as nossas intenções saímos para que eles (os

indígenas) discutissem entre si sobre o que tratamos e para que tomassem algumas

decisões. Enquanto esperávamos fomos à sala de aula, a fim de conhecermos o

Page 42: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

55

ambiente e, conversamos com os estudantes do 1º ano do Ensino Médio. A turma possui

onze estudantes do sexo masculino. Vale ressaltar que, a participação das mulheres na

escola ainda é mínima e o domínio continua sendo dos homens, traço forte da cultura

indígena.

Os estudantes nos informaram que atualmente funcionam três salas de aula,

sendo uma de 1º ano, uma de 2º ano, ambas de Ensino Médio e uma de Ensino

Fundamental. Após alguns momentos, retornamos a conversa com os coordenadores,

que estabeleceram algumas condições para a equipe. Então, finalizada a reunião,

partimos para as próximas atividades. Ajustamos o tempo que ainda nos restava ali e,

realizamos entrevista com um estudante, na mesma noite; atividade de intervenção na

manhã seguinte; visita à trilha das ciências à tarde; e entrevista com coordenador e

professores, na outra noite.

Na manhã seguinte, conforme programado, fomos para a sala de aula realizar a

atividade proposta, que se deu em quatro etapas: 1) Dinâmica de descontração e

interação, 2) Observação e registro da atividade desenvolvida; 3) Registros fotográficos

das atividades nos cadernos; 4) Resposta a duas questões abertas para os estudantes do

Ensino Fundamental e Médio; 5) conversa informal com o professor do Ensino

Fundamental, durante a aula de ensino de Ciências Naturais. Observamos que na turma

do Ensino Fundamental havia meninas, tímidas que se destacam nas tarefas práticas de

limpeza, no preparo das refeições e outras desta natureza.

Ao visitar a Trilha das Ciências e, tivemos uma experiência incrível ao

verificarmos o laboratório vivo, a riqueza daquele local. A fauna e a flora dali

representam um verdadeiro Museu vivo da Amazônia. Realizamos entrevistas com os

coordenadores e professores da escola e, conhecemos suas concepções, sua vivência em

relação ao “fazer ciência” e ao ensino das ciências. Isto nos acrescentou um pouco mais

de subsídios importantes para a construção das nossas ideias e a delimitação do objeto

da pesquisa. A busca dessa relação entre ciência (s) e educação intercultural para a

sustentabilidade do processo de ensino e de aprendizagem Baniwa e Coripaco, visa, por

meio das práticas pedagógicas, a conservação do espaço territorial e a revitalização da

vertente mítica, como recurso de ensino. Na sequência desta explanação faremos a

análise dos dados coletados que será a comprovação prática dos nossos estudos.

Page 43: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

56

3 OS SABERES INDÍGENAS E A CONSTRUÇÃO DE CONCEITOS EM

CIÊNCIAS NATURAIS: UMA PROPOSTA INTERCULTURAL, BILÍNGUE E

SUSTENTÁVEL PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS NATURAIS

“A Escola é pensada pelo povo Baniwa, não por

ninguém de fora; a arte e a cultua do índio não é

apenas permanecer nu e fazer festas.”

Raul Brasão - Baniwa

3.1. EIBC-Pamáali: um diferencial da educação escolar indígena

A experiência na EIBC-Pamáali trouxe informações relevantes, em qualquer

seguimento que atuarmos dentro da Educação. A análise a seguir é um diferencial não

só para a Educação Escolar Indígena, como também para a Educação Escolar não

Indígena, pois se trata de um nível significativo de consciência acerca da importância da

Escola, que poderá se tornar referencial para aqueles que têm o compromisso com uma

Educação Escolar influenciadora na vida de crianças, adolescentes e jovens.

Figuras 17, 18, 19 e 20: Pesquisa na sala de aula e na trilha das ciências

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

De acordo com o relatório da Coordenação da Pamáali, a respeito da

construção monográfica da turma do Ensino Médio Integral de 2004, a ideia de produzir

trabalhos escritos para sistematizar os conhecimentos aprendidos durante os quatro anos

do curso, partiu dos próprios alunos. Para eles seria uma forma de validar as

informações recebidas e reconhecer o trabalho dos professores. O relatório monográfico

da Coordenação reforça que

A ideia surgiu com a participação ativa destes alunos na vida dos professores

Baniwa e Coripaco durante a formação no Magistério Indígena em 2001, que

realizaram pesquisa e desenvolveram uma monografia, com temas variados,

para conclusão do curso de magistério. (Relatório da Coordenação da EIBC

Page 44: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

57

Pamáali, sobre as produções monográficas dos alunos do Ensino Médio

Integral 2004).

Diante disso, constatamos que Pamáali é uma escola que forma cidadãos

Baniwa, conforme declarou o aluno em sua narrativa no capítulo anterior.

Com base nessa premissa, destacamos que na primeira turma que concluiu o

Ensino Médio formaram 17 alunos e todos produziram sua monografia voltada para os

conhecimentos Baniwa e Coripaco. O mais interessante, conforme consta no relatório, é

que cada decisão tomada pela escola, pelos professores ou alunos são decisões com

propósito. Um exemplo disso é o fato de que apenas duas monografias foram escritas

em Baniwa, mas justifica-se pela busca da sustentabilidade cultural presente em cada

ação da Escola. O relatório das monografias esclarece que

As duas monografias escritas na língua Baniwa foram referentes ao tema

Meliponicultura, com a proposta clara dos alunos de produzir um material

bibliográfico que possibilitasse a compreensão de todos os Baniwa e

Coripaco sobre esta nova técnica iniciada dentro do rio Içana na Escola

Pamáali, já que existe uma considerável produção escrita sobre este tema em

Português (Idem).

Agregue-se a esse comentário que todas as ações desenvolvidas pela EIBC

estão sempre envolvidas num compromisso de dar significado e sentido aquela

atividade, para a formação de novos conceitos. Acerca deste comentário Vygotsky

(1998, p. 67) observa que “a formação de conceitos é um processo criativo, e não um

processo mecânico e passivo; [...] um conceito surge e se configura no curso de uma

operação complexa, voltada para a solução de algum problema”.

Figura 21 e 22: Oficina de meliponicultura

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Page 45: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

58

Portanto, vemos nesse processo de construção das monografias um exemplo de

autonomia de aprendizagem por parte dos estudantes na construção do próprio

conhecimento. Para entendermos melhor esta questão, com as informações constantes

no relatório de 2004, construímos tabelas reforçando esta afirmação, onde identificamos

os estudantes por letras e números.

Na Tabela 1 (abaixo), verificamos que, dez dos dezessete alunos que

terminaram o Ensino Fundamental escreveram sobre o conhecimento Baniwa. Tornar a

cultura conhecida é um objetivo presente nas produções acadêmicas da Escola. Nestes

termos, poderíamos considerar que a escola segue as tradições antigas para ensinar o

aluno a “ser Índio” 11

[grifo nosso], ou melhor, um Baniwa.

Tabela 1: Monografias que exploram o conhecimento Baniwa e Coripaco.

11 “Índio é todo aquele que se reconhece como pertencente a uma dessas comunidades e, é por ela reconhecido como

um de seus membros”. (Secretaria de Educação à Distância – MEC/ TV Escola, 2001, p. 31).

ALUNO TEMA ÁREA DE INTERESSE SIGNIFICADO (MITO)

A1

Organização da

Tribo Dzawinai

Chegada de seus familiares

a Juivitera.

História do surgimento do povo

Dzawinai.

A2

Grafismo do

Artesanato de

Arumã Baniwa -

Alguns

Significados.

Armindo é artesão;

Escolheu o tema de acordo

com os grafismos que sabe

fazer.

Origem do grafismo na mitologia

Baniwa.

A3

Plantas

Tradicionais

Baniwa

Participação do pai, agente

indígena de saúde, do

projeto de Medicina

Tradicional Baniwa.

Origem das Plantas Medicinais na

mitologia Baniwa.

A4

A Educação

Indígena

Tradicional Baniwa

A educação tradicional

Baniwa é totalmente

diferente da educação

escolar.

A valorização do saber dos

Baniwa mais velhos.

A5

Parto Tradicional

Baniwa

Uma preocupação pessoal. Origem do parto Baniwa, segundo

a mitologia.

A6

Doenças

Tradicionais

Baniwa

Levantamento cuidadoso de

20 doenças tradicionais

Baniwa.

Conta uma das histórias da

mitologia Baniwa de como as

Doenças Tradicionais aparecem

no mundo.

A7

Instrumentos

Musicais do Povo

Baniwa

Envolveu vários alunos,

muitos colegas apoiaram o

autor pela curiosidade de

todos sobre os instrumentos

musicais.

“As flautas que as mulheres não

podem ver foi a grande dúvida do

aluno se podia ou não desenhar,

em reunião com os velhos

descobriu que não podia”.

Page 46: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

59

Fonte: Relatório da Coordenação da EIBC-Pamáali/2004.

A Tabela 1 (acima) mostra que os interesses pelos temas escolhidos estão

relacionados a uma questão existencial, que é a sustentabilidade científica e territorial,

por meio da sustentabilidade cultural. O coordenador em narrativa no capítulo II, afirma

que “pra morar aqui precisa de conhecimento de plantas medicinais, pesca e caça para

viver” (Narrativa do Coordenador da EIBC/2009). Portanto, além do interesse pessoal

ao desenvolver a temática, percebemos que em cada pesquisa está presente o relato de

um mito Baniwa e/ou Coripaco, explicando a origem das coisas e do mundo. Destaque-

se ainda o interesse específico voltado para as tradições do homem e da mulher, como é

o caso da aluna A5 que pesquisou em sua monografia sobre “O Parto Tradicional

Baniwa” e revela seu interesse pessoal pela questão ao declarar em seu trabalho que

“atualmente, existe um desrespeito de muitos jovens Baniwa, tanto faz mulher ou

homem, em cumprir as regras tradicionais de cuidado com o corpo para a garantia do

nascimento de crianças sem problemas”. Para ela, o registro dos conhecimentos Baniwa

vai ajudar os jovens valorizar e praticar as tradições.

Para reforçar, destacamos também o trabalho da aluna A3, que abordou em sua

monografia sobre as “Plantas Tradicionais Baniwa” e enfatiza a questão mitológica

presente na cultura do uso dessas plantas. Ela afirma que “as plantas medicinais foram

deixadas para o povo Baniwa pelos seres-espíritos no período em que não tinha humano

no mundo. Na saída de Hiipana cada povo recebeu junto com seus instrumentos de

trabalho, o território e as plantas medicinais”. Neste trecho fica muito clara a relação

entre a territorialidade e a sustentabilidade.

A8

A arte que se faz

com o arumã

Descrição cuidadosa do

processo da arte do

trançado de arumã, da

colheita ao acabamento dos

cestos, peneiras e balaios.

Arte produzida com arumã;

Origem Baniwa do arumã.

A9

Maapa Ikeñoaka Trabalho escrito na língua

Baniwa, para dar acesso às

crianças que ainda não lêem

português.

Origem das abelhas conforme a

mitologia Baniwa.

A10

Origens dos Povos

Baniwa e Coripaco

Registrar e disponibilizar

para pesquisa o

conhecimento cultural dos

povos Baniwa e Coripaco.

Origem e a evolução dos povos

Baniwa e Coripaco, o território de

ocupação, a diferença lingüística e

quem são os Baniwa e Coripaco

hoje.

Page 47: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

60

Figura 23, 24 e 25: Plantas da trilha das ciências

Fonte: Pesquisa de campo /2009 – Fotos: GPECCSA

Outro ponto importante é a constatação de que as monografias que foram

escritas em Português foi resultado de uma conversa com os pais dos alunos mostrando

que a EIBC deveria também preparar os alunos para o bom domínio da Língua

Portuguesa [grifo nosso]. Isto mostra a relação entre interculturalidade e

sustentabilidade, ou seja, o domínio das duas línguas favorece a comunicação nas duas

realidades.

Na monografia do aluno AB1, (abaixo na Tabela 2) percebemos o nível de

consciência da Escola com as questões ambientais planetárias. O estudante declara a

respeito desta questão, que

Pareceu muitos materiais que chegaram na escola junto com a merenda, que

tudo era transformado em lixo depois de usar o alimento e também pilha,

vidros, papel e plástico utilizado pelos alunos e professores. Então, foi

decidido que o lixo deveria ser cuidado. Primeiramente foi separado o lixo

orgânico e inorgânico. Com o lixo orgânico os alunos fazem adubo, juntam

as cascas de frutas, maniwa e tudo mais que aparece e misturam com terra,

serragem, casa de cupim e folhas secas para servir de adubo nas plantas.

Com o lixo inorgânico, são escalados alunos que fazem a coleta do lixo em

cada casa e o que está no terreno da escola e levam até uma lata velha que

está toda furada para essa finalidade. Nesta lata é queimado o lixo e depois

cava um buraco e o lixo é enterrado (Monografia do aluno AB1 – etnia

Baniwa – clã Liedawiene, 2004, p. 13).

Os trabalhos pesquisados nesta linha mostram que, embora o foco maior seja a

cultura Baniwa e Coripaco, não se isentam do compromisso com as questões ambientais

emergentes que se manifestam em seu território. Eles têm consciência de que a sua

interação com a cultura ocidental causa alguns transtornos que precisam ser

administrados, como no caso do acumulo de lixo no Rio Içana.

Nesse sentido, poderíamos destacar nessas pesquisas uma nova concepção de

ciência, preocupada com a sustentabilidade ambiental. Visto que,

Page 48: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

61

O surgimento do conceito de sustentabilidade, que vislumbra, sobretudo, a

harmonização das relações entre desenvolvimento e meio ambiente, insere-se

portanto, num contexto de profundas transformações históricas, indicadoras

da existência de um processo de transição paradigmática na esfera do

conhecimento.(SILVA, s/a, p. 04)

Assim, na Tabela 2 (abaixo), verificaremos que as três monografias

demonstram uma visão de Educação numa perspectiva harmônica da construção

científica intercultural.

Tabela 2: Conhecimento da Cultura Baniwa e da Cultura Ocidental

ALUNO

TEMA ÁREA DE INTERESSE SIGNIFICADO

AB1

O Lixo na região do

rio Içana

Preocupação atual, o autor

trouxe como tema de pesquisa

o lixo, problema que hoje é

enfrentado pelas comunidades

do rio Içana.

Tomada de decisão

coletiva na Escola

Pamáali como

tentativa de

solucionar o

problema do lixo.

AB2

Origem da Chuva Duas concepções de

surgimento da chuva.

Importância da

origem da chuva na

tradição Baniwa.

AB3 A Piracema Hoje:

Uma nova

compreensão deste

fenômeno

A escolha do tema Piracema

deve-se ao interesse de saber da

situação dos peixes da região

do Içana e a preocupação com

o futuro das comunidades.

História da Piracema

segundo a tradição

Baniwa.

Fonte: Relatório da Coordenação da EIBC-Pamáali/ 2004

A Tabela 2 (acima) mostra a preocupação em explorar as duas culturas

valorizando a contribuição de cada uma para a construção de uma concepção científica,

que faça a interação entre os dois conhecimentos, viajando entre as duas realidades,

indígena (Baniwa) e não indígena.

Abaixo a Tabela 3 apresenta outro grupo de trabalho com duas monografias na

linha de pesquisa Proposta de Formação na Escola Pamáali. Estes trabalhos discutem as

técnicas das atividades sustentáveis desenvolvidas no período dos quatro anos de

estudos. É interessante destacar que tanto a Piscicultura quanto a Meliponicultura fazem

parte do dia a dia da Escola e, que ao realizar estes estudos, os alunos trazem a

comprovação e validação da concepção de trabalho científico que os professores da

EIBC vêm desenvolvendo. Além disso, os conhecimentos construídos pelos alunos são

socializados, como é o caso do estudante abaixo citado no relatório monográfico da

coordenação afirmando que ao perceber

Page 49: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

62

A dificuldade de muitos colegas em dominar os cálculos matemáticos

exigidos na técnica de piscicultura, realizou um trabalho detalhista sobre cada

cálculo utilizado no laboratório e nos viveiros de piscicultura, com o objetivo

de que este material sirva de apoio ao estudo deste tema na Escola Pamáali

(Relatório da Coordenação da EIBC Pamáali, sobre as produções

monográficas dos alunos do Ensino Médio Integral 2004).

Acrescente-se que, embora nosso foco não seja a matemática, queremos

destacar nesse exemplo (Tabela 3) a preocupação do estudante Baniwa e Coripaco em

publicar o conhecimento pesquisado com os seus pares, como alternativa de superação

das limitações conceituais numa postura interdisciplinar, pois

Independente da definição que cada autor assuma, a interdisciplinaridade está

sempre situada no campo onde se pensa a possibilidade de superar a

fragmentação das ciências e dos conhecimentos por elas produzido e onde,

simultaneamente, se exprime a resistência sobre um saber parcelado.

(Thiesen, 2007, p. 91).

Ademais, a concepção de ensino das ciências presente na atitude do estudante

Baniwa, em compartilhar o conhecimento, representa a concepção disseminada pela

Pamáali, baseada nas temáticas das monografias.

Tabela 3: Proposta de Formação na Escola Pamáali

AUTOR

TEMA ÁREA DE INTERESSE SIGNIFICADO

AB4

Prática de Matemática na

Piscicultura

Aprofundou seu estudo nesta

temática, participando de estágios

nas três estações de piscicultura existente no Alto Rio Negro,

O objetivo é que este

material sirva de apoio

ao estudo deste tema na Escola Pmáali.

AB5

Tawiñakaa nhaaha

maapanai – Makawaliko

Para apresentar esta técnica baniwa

e Coripaco interessados na

proposta de criar abelhas sem ferrão (abelha nativa).

Conteúdos aprendidos

em duas oficinas

realizada na Escola em 2003.

Fonte: Relatório da Coordenação EIBC-Pamáali/ 2004

Com efeito, a postura cima representa a convicção Baniwa de que todo

conhecimento adquirido é para sobrevivência. Chegam de fato a alcançar uma

consciência crítica, de modo que o desejo deles é transmitir o conhecimento adquirido,

para as próximas gerações, como no caso da monografia do aluno AB5 (Tabela 3), que

“decidiu escrever o seu trabalho na língua Baniwa, para que fosse acessível às crianças

que ainda não lêem português aprenderem a história do surgimento das abelhas de

Page 50: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

63

acordo com a mitologia do povo Baniwa” (Monografia “Tawiñakaa nhaaha maapanai”

do aluno AB5/ 2004).

Portanto, a análise destas primeiras monografias mostra o trabalho científico

desenvolvido na Pamáali e revela que os estudantes têm consciência de quem são,

enquanto cidadãos Baniwa. É tanto que os estudantes do Ensino Fundamental da

Pamáali mostram maturidade intelectual ao produzir um trabalho deste nível, dentro das

normas técnicas, seguindo o padrão acadêmico exigido na escola de ensino superior

(graduação).

Por fim, a análise dos temas escolhidos pela turma de 2004, serviu de

referência para comprovarmos o compromisso da EIBC Pamáali com a Ciência do

Concreto por meio da construção de conceitos, com base na própria realidade Baniwa e

Coripaco. Esta afirmativa se constata na filosofia presente no Projeto Político da Escola

que é:

[a] formação de cidadãos conscientes e que valorizassem suas culturas, e, ao

mesmo tempo uma escola que ensinasse os conhecimentos da sociedade

ocidental que desse possibilidade de continuidade escolar para aqueles que

desejam seguir os estudos em nível de Ensino Médio e Terceiro grau. (PPP

EIBC-PAMÁALI/ 2005).

Essa filosofia é a validação de uma proposta intercultural e bilíngue, visto que

o PPP da Pamáali contempla não só teoricamente, mas também na produção

monográfica dos alunos e professores ao final do Ensino Fundamental, pois a

aprendizagem das duas culturas favorece essa formação cidadã proposta no PPP da

escola. Para reforçar esta premissa, apresentaremos a seguir a experiência de um

trabalho comprometido com a realidade local e com uma Educação diferenciada e

intercultural.

3.2 Concepções na construção de conceitos em ciências naturais

“Na pesquisa intermediária com os velhos

aprendemos a origem, o mito e depois socializamos

com os outros; a pesquisa tem objetivo de

sustentabilidade”.

Abilio Brasão – Baniwa

3.2.1 Concepções de ciência: teoria e na prática

Page 51: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

64

As concepções presentes na filosofia da Pamáali quanto à construção de

conceitos de Ciências Naturais são observadas tanto nas atividades realizadas em sala de

aula, quanto nas respostas dos alunos. A finalidade é a percepção do que eles pensam

acerca do assunto e qual importância do ensino de ciências para eles.

A análise a seguir tem como pressuposto inicial três questões aplicadas aos

alunos do Ensino Fundamental e Médio da EIBC-Pamáali, sendo: a) O que é fazer

Ciência? b) Como o professor trabalha o Ensino de Ciências? c) O que o Ensino de

Ciências representou para você neste primeiro ano na Escola Pamáali?

Em face disso, tomamos por base as respostas atribuídas pelos alunos e os

registros das atividades de sala de aula. Assim, construímos nossa impressão acerca da

temática neste tópico. Então, para alcançar o objetivo do capítulo, aplicamos três

questões para 32 alunos do Ensino Fundamental e para 09 alunos do Ensino Médio.

Ademais, para contextualizar o perfil das turmas, vejamos algumas

informações importantes: Do total dos estudantes entrevistados no Fundamental, 69% é

do sexo masculino, isto representa 22 homens e apenas, 31% é do sexo feminino, ou

seja, 10 são mulheres. A faixa etária da turma varia entre 11 e 23 anos, sendo que a

maioria, cerca de 69%, é adolescente. É uma turma que equilibra adolescentes e jovens

na busca da identidade, enquanto cidadão Baniwa. A turma de Ensino Médio é 100%

masculina, não observamos a presença de mulheres nesta turma e a faixa etária não foi

identificada. Com base nesta premissa passemos a análise das respostas, de acordo com

cada pergunta feita.

3.2.1.2 Ciência é um conjunto de conhecimentos

Na busca de identificar a concepção de Ciência, fizemos algumas perguntas

para os estudantes do Ensino Fundamental e Médio da EIBC. Aleatoriamente,

escolhemos algumas respostas dadas pelos alunos em ambos os níveis de ensino. Os

estudantes foram identificados pelas siglas Fund/ n° quando for Ensino Fundamental e

EMI/ nº quando for Ensino Médio Integral e, organizados em pequenos grupos para

melhor visualização das análises. A primeira pergunta foi: O que é fazer Ciência?

EMI/ 01- É estudar ou pesquisar um certo objeto e tentar explicar como é a

transformação; tudo o que aparece no dia a dia é uma ciência.

EMI/ 02- fazer ciência é mostrar tudo que existe na natureza de forma bem

detalhada, para que possamos saber o que existe em nossos arredores de

Page 52: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

65

modo geral: animais, vegetais, solos, etc. Nela já entram outras matérias

como a Química, a Física e a Biologia.

EMI 03- É fazer estudo ou pesquisa sobre um objeto; a ciência é um

conjunto de conhecimentos sistematizados relativos a um determinado objeto

de estudo; estudo sistemático da natureza, por exemplo, estudar sobre o que

é habitat, no conhecimento ocidental e no conhecimento tradicional.

Ao iniciarmos a análise, a primeira verificação que fazemos é que todas as

respostas dos alunos estão ligadas às questões da natureza. A resposta de todos eles se

volta para a floresta e os seres vivos contidos nela. Verificamos também que 100% das

respostas afirmam que fazer ciência relaciona-se com estudo ou com pesquisa e, em

algumas respostas notamos expressões como explicar, detalhado e sistematizado. Estas

palavras aparecem respectivamente nas respostas dos alunos EMI/ 01, 02 e 03 o que

demonstra a seriedade com que os alunos concebem o fazer ciência. E neste caso, os

termos destacados revelam a questão da objetividade com o conhecimento científico,

pois para Morin (2010, p. 40) “a objetividade parece ser uma condição sine qua non,

evidente e absoluta, de todo o conhecimento científico”.

O autor afirma ainda que a Ciência embora deva ser considerada

Como uma atividade de investigação e de pesquisa, [...] não é só isso; [...] a

despeito de todos os interesses, a ciência continua sendo uma atividade

cognitiva. E, mesmo quando procuramos na atividade científica, fórmulas

para manipular, para o poder e para agir, a dimensão cognitiva ainda persiste.

(Idem, p. 57)

Além do mais, destacamos também a resposta do aluno EMI/04, que se reporta

que são necessários métodos para se fazer ciência.

EMI/ 04- Fazer ciência é realizar estudo sobre algo com métodos de

conhecimentos adquiridos por meio de observação e experimentos.

A respeito dessa questão Carvalho e outros (2004, p. 149), afirmam que

A importância do método, como ponto de abertura, significa percorrer o

corredor do conhecimento (Epistemologia), chegando na sua saída

Page 53: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

66

transformado pelo conhecimento que recria o nosso ser (Ontologia). [...].

Nesse sentido, a pesquisa possibilita conhecimento e autoconhecimento.

O método nos garante o planejamento da investigação científica e se processa

através de técnicas, normas e regras que caracterizam e validam o fazer científico, pois

os alunos da escola Pamáali, compreendem o fazer científico de forma clara e crítica

para a construção dos conceitos.

Figura 26 e 27: Plantas da trilha das ciências e produção de texto no caderno

Fonte: Pesquisa de campo /2009 – Fotos: GPECCSA

Outra evidência de que os alunos da EIBC desenvolvem com clareza o

conceito de ciência é o fato de que em suas respostas demonstram a consciência da

importância de integrar teoria e prática em suas pesquisas, isto é, a “busca na

transformação e de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano da realidade

histórica” (FRIGOTTO, 2002, p. 73).

Com isso, destacamos ainda a ideia do aluno Fund/01, que define fazer

ciência como um conjunto de conhecimentos [grifo nosso] trazendo o entendimento

que esse conjunto demonstra as noções da iniciação científica, as características próprias

e as propriedades essenciais para constituir o objeto do conhecimento.

Fund/01- É o conjunto de conhecimentos sobre um determinado assunto ou

objeto.

Na resposta acima, observamos como o aluno do Ensino fundamental ao

encerrar o curso, já possui a compreensão do processo criativo da formação de conceitos

científicos. Vygotsky (1998, p. 67) reforça que, “a formação de conceitos é um processo

criativo, e não um processo mecânico e passivo; [e] que um conceito surge e se

configura no curso de uma operação complexa, voltada para a solução de algum

problema”.

Page 54: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

67

Nesse caso, consciência de ser Índio, de ser cidadão Baniwa, de ser um

pesquisador e propagandista da história de seu povo, perpetuando o conhecimento para

acessibilidade das gerações futuras. Ademais, a resposta do aluno EMI/ 05 comprova a

presença do mito nas pesquisas, quando ele se refere a pesquisar o personagem das

plantas [grifo nosso]. “Fazer ciência é prática, é pesquisar o personagem das plantas.”

(EMI/ 05).

Quanto a isto Castro (1996, s/p) afirma que tal perspectiva conceptual rompe

com a dicotomia paradigmática

Que tradicionalmente se opõe sob os rótulos de ‘Natureza’ e ‘Cultura’:

universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e

instituído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e

espírito, animalidade e humanidade, e outros tantos.

Enfim, a concepção de Ciência construída pela EIBC-Pamáali, comprova o

nível de consciência e o compromisso de professores e estudantes com o conhecimento.

Diante disto passemos à segunda questão aplicada aos alunos Baniwa.

3.2.1.3 O mito como estratégia de ensino e ciência sustentável

Ainda com o objetivo de identificar as concepções de ciências presentes nas

atividades de sala de aula e com o propósito conhecer as estratégias de ensino usadas

pelo professor, a segunda pergunta foi direcionada para os estudantes das duas

modalidades, que foram identificados através da sigla Fund/ nº, para o Ensino

Fundamental e EMI/ n°, para o Ensino Médio sendo a questão: b) Como o professor

trabalha o Ensino de Ciências?

Diante das respostas, observamos que 100% dos alunos referem-se ao ensino

com pesquisa e afirmam que os professores trabalham com temas de acordo com o

interesse de cada um deles. Porém, destacamos a resposta do estudante EMI/06, que

mostra o teor científico no modo de ensinar do professor, considerando a observação e o

experimento.

EMI/ 06- O professor trabalha o ensino de ciências por meio de pesquisas

levando em consideração observação e experiências.

Page 55: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

68

A esse respeito Hennig (1998, p. 105) confirma que em tal concepção de

ciência “trata-se, basicamente, da incidência da autorreflexão sobre a natureza; sobre o

mundo ambiente físico-químico, animal, vegetal e sobre o próprio homem; sobre um

mundo misterioso, repleto de distorções e fatos difíceis de serem compreendidos”.

Tais fatos se processam a partir da escolha do tema pelos estudantes Baniwa e

Coripaco para a produção da monografia que começa nos primeiros anos do Ensino

Fundamental, quando os professores começam a trabalhar as áreas de interesses dos

alunos, a fim de que eles comecem a se identificar com os temas.

EMI/ 07- O professor trabalha o ensino de ciência na escola indígena

Baniwa e Coripaco Pamáali, através de assunto importante para os alunos.

Através de assunto abordado com professores que podemos desenvolver um

trabalho sobre que assunto se trata. Nós Baniwa sempre desenvolvemos

pesquisa na comunidade para aprender nome científico de objeto com os

velhos conhecedores de diversos objetos na língua indígena. É isso que

estudamos em ciência com o professor na sala de aula.

Sobre essa temática, Decroly (REVISTA COLEÇÃO EDUCATIVA, 2008, p.

22) propõe como pressuposto básico “que a necessidade gera o interesse que é o

verdadeiro móvel em direção ao conhecimento”. E quando esse conhecimento desperta

ele se torna a base para suscitar no estudante a observação, a associação de informações

e, finalmente a expressão de materializar de forma concreta ou abstrata.

Diante desse pressuposto, percebemos, que o aluno Fund/ 02, afirma em sua

resposta que os conhecimentos produzidos pelos alunos servem de apoio e de fonte de

consulta para as gerações mais novas.

Fund/ 02- O professor trabalha com o ensino de ciências: pesquisa através

da observação, pesquisa no livro, na internet e depois com esse resultado da

pesquisa deixa como subsídio para a escola.

Nessa resposta está presente a ideia de revitalizar, através do registro, fatos

históricos que marcam a trajetória do povo Baniwa e Coripaco. Wright (2005, p. 34.)

destaca que “os nomes de lugares e de grupos étnicos são de grande interesse para a

Page 56: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

69

história indígena” e, isto acontece quando os alunos catalogam plantas e detalham

espécies animais, seja na floresta, na trilha ou na comunidade.

As respostas dos alunos Fund/ 03 e 04 descrevem como se dá o processo de

investigação, durante as aulas de ciências naturais.

Fund/ 03- É assim: primeiro o professor deu um tema, o que se pode querer

aprender, ou que pode ser escolhido por si mesmo. Depois explica como

fazer seguindo o guia de pesquisa. Ex: sobre uma planta: Como a planta

aparece no mundo? Como se originou? Por que ela apareceu? A planta tem

vida? Como ela se alimenta? Como ela vive? Qual a terra que a planta gosta

de viver? Será que a planta oferece alimentação? Será que a planta oferece

remédio? Como se pode plantar? Quais são as morfologias? Mais ou menos

assim.

Fund/ 04- Na metodologia de trabalho com o ensino de ciências nesta escola

é dependendo com o orientador. Mas no que já vínhamos aprendendo é que

em primeiro lugar estudamos na teoria, após isso partimos pra prática, com

o objetivo de conhecer tal ser, como: cobra, vegetal e solos, assim em

sequência. E em cima disto comparamos as diferenças entre os livros e o

tradicional, conforme a nossa realidade. Cada animal ou árvore

interessante, a gente descreve todas as suas características, o seu habitat, se

é remédio, etc. Isto é para que o nosso conhecimento seja registrado em

nossos documentos, para não serem esquecidos por nós. Isso também é

facilitação de localização geográfica.

No entanto, o que nos chama à atenção na resposta do aluno Fund/ 03, é o

questionamento sobre o aparecimento da planta no mundo, sua origem, o porquê da sua

aparição, a consideração pela vida e pelo “gosto” da planta quanto à terra onde será

plantada. A vertente mitológica dos seres vivos (presente na resposta do estudante

Fund/ 03) está atrelada à construção dos conceitos, pelo fato de que isto representa

sustentabilidade das origens, relacionadas diretamente com as plantas e animais.

Nesta acepção Lévi-Strauss (1978, p. 15) infere que “as histórias de caráter

mitológico, são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado, absurdas, mas apesar de

tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte”. Então, como vimos a

concepção Baniwa da utilização dos mitos como recurso de ensino fundamenta-se no

fato de que o mito está presente em todos os elementos da natureza.

Page 57: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

70

Figuras 28 e 29: Natureza e mito

Fonte: Pesquisa de campo/ 2009 – Fotos: GPECCSA

Na sequência dessa explanação, destacamos dois episódios da mitologia

Baniwa, constantes na obra de Wright (2005, p. 169/170), que retratam nitidamente essa

relação do Homem com a Natureza, na sua origem, pois

São vários os mitos sobre o pariká, mas o mais importante é um conjunto de

episódios em que Nhiãperikuli e seus irmãos encontram os poderes e

instrumentos dos pajés – poderes de ver e transformar, de fazer o trovão, um

colar de dentes de onça, e o pariká. O primeiro episódio dessa história

descreve como o irmão menor de Nhiãperikuli, querendo aprender a fazer

trovão, procura encontrar o gavião real, chamado Kamathawa. Este lhe dá

uma de suas penas e o manda cheirar; de repente, a visão dele “se abre” e ele

começa a “ver” como os pajés vêem hoje. Em seguida, o gavião lhe dá outra

pena de seu corpo e o manda cheirar e, com isso, ele ouve o som do trovão. A

ação do segundo episódio dirá em torno da derrubada de uma enorme árvore

chamada Kaali ka thadapa, que conectou dois níveis do primeiro universo e

que era a fonte primordial de todas as plantas no mundo. O pariká é uma

“fruta” que se encontrava dentro de um buraco no topo da árvore. A Grande

Árvore de Kaali é um dos símbolos centrais da unidade primordial, ou o

Todo-em-Um, da religião Baniwa. A derrubada da árvore quebrou a

unicidade deste símbolo primordial, para que a humanidade ficasse com as

numerosas plantas e frutas cultivadas que se multiplicaram e cobriram a terra.

Dizem que depois de sua derrubada, os povos do mundo inteiro vieram e

retiraram plantas (mandioca etc.) para colocar nas suas roças.

Com efeito, está presente, nas figuras da águia e da grande árvore, a estreita

relação entre a natureza e a existência do homem. Enfim, os Baniwa e Coripaco

associam a pesquisa científica à origem mitológica e à sustentabilidade, seja ela de

ordem econômica, social ou cultural.

Nessa abordagem de construção de conceitos em ciências naturais, a ideia de

sustentabilidade científica está diretamente atrelada à produção do conhecimento. A

educação escolar indígena Baniwa e Coripaco caracteriza-se pela produção de uma

ciência sustentável, com base na preservação dos mitos e na revitalização dos saberes

tradicionais. Em face disto, analisaremos a seguir as atividades desenvolvidas no sexto

Page 58: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

71

ano do Ensino Fundamental da EIBC-Pamáali, considerando a perspectiva da relação

entre interculturalidade, territorialidade e sustentabilidade, que foi a terceira questão

levantada na proposta da pesquisa.

Para tanto, nos apoiamos na narrativa do professor da turma do Ensino

Fundamental, descrita no capítulo da metodologia deste trabalho e, nas respostas dos

alunos descritas neste mesmo capítulo, comprovaremos então essa relação através da

análise das atividades trabalhadas nas aulas de ciências naturais.

As atividades abaixo envolvem os seguintes conteúdos: nome dos seres vivos,

cadeia alimentar, conservação das plantas e mamíferos. Nesta aula o professor explicou

as atividades na língua Baniwa e em seguida na língua Portuguesa, o que caracterizou

um ensino intercultural bilíngue. Após a explicação do professor, os estudantes

seguiram para o trabalho de campo, onde investigaram na natureza o conteúdo

explicado teoricamente. Em seguida, retornaram à sala de aula e produziram textos tanto

em Baniwa e Coripaco, quanto em Português, conforme observaremos nas atividades

abaixo:

Figuras 30, 31 e 32: Pesquisa na teoria e na prática

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Importa destacar que o professor Baniwa e Coripaco utiliza naturalmente os

espaços não formais no ensino de ciências naturais, sendo esta uma prática cotidiana,

pois na ótica indígena, este é para ele o espaço formal para o ensino. E os estudantes por

sua vez encaram a utilização destes recursos, como um processo natural para a produção

das atividades escolares diárias, numa inter-relação harmoniosa e equilibrada.

Além do mais, observamos nos textos produzidos pelos alunos, que ao se

reportarem aos elementos da natureza (plantas e animais), há uma preocupação com a

sobrevivência e com o período de reprodução dos mesmos. Isto demonstra o respeito do

indígena pelos seres vivos, pois considera a possibilidade de haver uma alma ancestral

“morando” em uma árvore ou em um animal.

Page 59: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

72

A esse respeito Viveiros de Castro (1996, p. 03), afirma que a visão desses

povos é profundamente diferente do modo de ver do homem ocidental e sua reflexão

pauta-se nas

Numerosas referências, na etnografia amazônica, a uma teoria indígena

segundo a qual o modo como os humanos vêem os animais e outras

subjetividades que povoam o universo — deuses, espíritos, mortos,

habitantes de outros níveis cósmicos, fenômenos meteorológicos, vegetais, às

vezes mesmo objetos e artefatos.

Essa teoria é o perspectivismo, que mostra o ponto de vista de indígenas e não

indígenas, em relação à condição espiritual dos seres presentes na natureza. O modo

como cada etnia enxerga natureza e cultura, é a principal reflexão dessa teoria. O ver

como [grifo nosso] representa a percepção de cada sujeito dentro de sua realidade étnica

e no pensamento ameríndio são os xamãs12

, os responsáveis por administrar e

comunicar estas perspectivas, num cruzamento entre conceitos e intuições.

Tal concepção está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta

de cada espécie é um mero envelope (uma "roupa") a esconder uma forma

interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou

de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o

espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade formalmente

idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um

esquema corporal humano oculto sob a máscara animal. (VIVEIROS DE

CASTRO, 1996, p. 04).

Nesse sentido, captamos algumas imagens ao longo da trajetória da pesquisa de

campo, que representam com clareza essa teoria, mostrando o quanto a natureza é viva

para o povo Baniwa e Coripaco. As imagens captadas foram analisadas numa

perspectiva etnográfica e etnológica, a fim comprovar o valor do território para os

Baniwa e Coripaco por meio do respeito aos elementos da natureza.

12 Em sentido antropológico e etnológico, os xamãs são, entre certos povos, espécie de sacerdote que recorre à forças

ou entidades sobrenaturais para realizar curas, adivinhação, exorcismo, encantamentos, etc.(MONTEIRO, 2001)

Page 60: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

73

Figura 33: Mito

Fonte: Pesquisa de campo/ 2009- Fotos: GPECCSA

Na figura 33 (acima) visualizamos uma imagem com o formato de um ser de

joelhos, mãos postas, como se fizesse uma oração. No entanto, para Lévi-Strauss (1978,

p. 28) “os mitos de uma determinada população só podem ser interpretados e entendidos

no quadro da cultura dessa mesma população”, portanto, dependendo do mito, este só

terá significado real para um povo específico.

Figura 34: Totemismo

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Na figura 34, as pedras são simetricamente duplicadas na água dando a

impressão de um totem. Segundo o dicionário Luft (1995, p. 605) totem ou tóteme

representa animal, vegetal, objeto ou fenômeno natural que certas sociedades primitivas

consideram como seus ancestrais e protetores, como uma representação material desse

animal, vegetal, objeto ou fenômeno totêmico, totemismo.

Segundo um dos professores Baniwa da Pamáali, isso significa

Que em todos os lugares (seja nas curvas de rio, em algum lugar na floresta,

ou outro tipo de ambiente, não importa sua localização ....) para os Baniwa

tudo tem nome, conceito, história e significado. Somente assim fica completa

a sua explicação em um contexto mais holístico. Por que em todos esses

espaços há seres vivos (material e espiritualmente) que se consideram como

Page 61: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

74

“pessoas” convivendo nestes espaços e, esta determinação e classificação

depende da auto-percepção de cada um13

.

Como observado no comentário acima há vida em cada canto da floresta ou em

cada curva do rio e, isto tem valor existencial para os Baniwa e Coripaco em cada

comunidade, de acordo com cada visão repassada ao longo da história de cada povo.

Portanto, para os ameríndios

A noção de espíritos "senhores" dos animais ("mães da caça", "mestres dos

queixadas" etc.) é, como se sabe, de enorme difusão no continente. Esses

espíritos-mestres, claramente dotados de uma intencionalidade análoga à

humana, funcionam como hipóstases das espécies animais a que estão

associados, criando um campo intersubjetivo humano-animal mesmo ali onde

os animais empíricos não são espiritualizados. (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 05).

O texto refere-se à relação humano animal, enquanto seres que possuem uma

alma. Contudo, nem sempre se atribui almas aos indivíduos animais, há cosmologias

contrárias a que os animais pós-míticos tenham capacidade de consciência ou qualquer

espiritualidade. Porém, há um pensamento universal entre os ameríndios de que os

mitos possuem características intrínsecas de humanos e de animais, pois, “o tema maior

da mitologia ameríndia, não é um processo de diferenciação do humano a partir do

animal, como em nossa cosmologia evolucionista. A condição original comum aos

humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade.” (Idem).

Nesse sentido, na visão Baniwa, conforme depoimento do coordenador da

EIBC Pamáali, todas as coisas têm suas explicações. As figuras, por exemplo,

significam (em uma linguagem na forma de escrita dos primitivos) que aquele lugar é

habitado por agentes que podem causar (de acordo como for relacionamento com eles)

consequências positiva ou negativamente para vida.

A esse respeito, Viveiros de Castro faz a objetivação da natureza em três

momentos distintos, assim

O autor distingue três modos de objetivação da natureza: o totemismo, onde

as diferenças entre as espécies naturais são utilizadas para organizar

13 Comentário do coordenador da EIBC-Pamáali, em resposta a um e-mail enviado no dia 14/07/2010.

Page 62: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

75

logicamente a ordem interna à sociedade, isto é, onde a relação entre natureza

e cultura é de tipo metafórico e marcada pela descontinuidade (intra e

interséries); o animismo, onde as "categorias elementares da vida social"

organizam as relações entre os humanos e as espécies naturais, definindo

assim uma continuidade de tipo sociomórfico entre natureza e cultura,

fundada na atribuição de "disposições humanas e características sociais aos

seres naturais"; e o naturalismo, típico das cosmologias ocidentais, que supõe

uma dualidade ontológica entre natureza, domínio da necessidade, e cultura,

domínio da espontaneidade, regiões separadas por uma descontinuidade

metonímica. (DESCOLA, 1992, apud VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p.

06).

Seguindo a mesma linha de análise, destacamos ainda a árvore conhecida como

“breu branco”, marcada pelo seguinte paradoxo: enquanto para os indígenas é um ser

sagrado, para os ocidentais é fonte de lucro e riqueza.

Figuras 35: Árvore do breu branco

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

O breu branco, é uma resina aromática da Amazônia, é conhecido dos povos

tradicionais e recebe o nome científico de “protium pallidum”. Ao ser golpeada, a

árvore libera um líquido branco e brilhante como defesa. Após um tempo este líquido

endurece e se transforma numa pedra com um agradável aroma e com propriedade

inflamável.

Nas comunidades da Amazônia, esse breu é utilizado para conserto de

embarcações, para remédio e para fazer defumação em outras plantas. Segundo o tuxaua

tucano Gabriel dos Santos Gentil14

, os rituais utilizando perfumes possuem vários

significados, dentre eles podemos destacar: ficar mais bonito, ser sábio, se defender,

encantar mulheres, caçar e alegrar os deuses, ou seja, depende do objetivo. Ele afirma

ainda que,

Não podemos tirar nada enquanto ela dorme, porque quando a gente tira um

pedaço de árvore, do galho ou do fruto, ao acordar ela se tornará minha

14 Indígena Tukano entrevistado pelo Projeto Biodiversidade Brasil.

Page 63: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

76

inimiga. Temos que tirar as coisas da mata da mesma forma que chegamos a

uma aldeia e pedimos a permissão para casar com uma mulher 15

.

Nesse caso a floresta possui o mesmo valor que a família, pois o respeito pela

natureza é presente no cotidiano indígena. Assim, a ciência sustentável, construída pelo

povo Baniwa e Coripaco tem como base a seguinte premissa: a força da sustentabilidade

cultural por meio do mito somada à valorização dos saberes tradicionais que gera uma

ciência sustentável, com base na realidade concreta, servindo

De diagnóstico para o aprofundamento de estudos sobre o ambiente local

(potenciais hídricos, ecológicos, biológicos, arquelógicos, geológicos,

etnocientíficos, dentre outros problemas), possibilitando a realização de

projetos de pesquisa que possam efetivar alternativas sustentáveis para os

povos da região (VIEIRA, 2010, p. 145/146).

Ademais, as iniciativas sustentáveis possibilitam a continuidade das tradições

Baniwa e Coripaco, trazendo novo significado para o ensino de ciências.

3.2.1.4. Significado do ensino de ciências

Seguindo no mesmo objetivo de identificar as concepções presentes no ensino

de ciências da Pamáali, formulamos somente para os alunos do Ensino Fundamental, a

terceira pergunta. Identificamos os alunos com a sigla Fund/nº e categorizamos as

resposta com temas afins, com vistas a uma melhor compreensão da análise, sendo: c) O

que representou para você, o ensino de ciências, neste primeiro ano de Ensino

Fundamental?

Grupo 01 - Ensino de ciências como pesquisa e prática:

Fund/05- Durante três etapas estudamos sobre ciência, fazemos prática

sobre inseto, por exemplo, mosca, barata, cupim, lacraia, calango e outras

matérias como Português, Geografia, História, Espanhol, Agronomia, etc.

Fund/06- Em minha opinião, na aula de ciências aprendi muito mais do que

nunca na minha vida; na etapa passada nós tivemos prática de ciências lá na

comunidade de Tucumã sobre os insetos.

Fund/ 07- Com a matéria de ciência que o professor ensinou pra mim sair

pra campo, peguei prática lá sobre plantas, que espécie de planta, para que

15 Declaração do Índio Tukano Gabriel em entrevista ao artigo do Projeto Biodiversidade Brasil.

Page 64: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

77

serve; se serve para remédio ou serve para construção e registramos nome

em Baniwa e coletei também anfíbios, insetos, répteis e ensinou mais sobre a

sobrevivência da planta. Depois eu fiz texto narrativo sobre eles contando

mais história neles em Baniwa e em Português.

Fund/ 08- Primeiro nós fizemos estudo por grupo e depois nós fomos para a

prática e pesquisar as características de bichinhos no campo, no rio, na

trilha e nós achamos borboleta, aranha, lacraia, peixes, etc.

Fund/ 09- Representou pesquisa; nós fizemos sobre práticas dos seres vivos

e também do ser humano. No ensino de ciências nós fizemos práticas.

O primeiro grupo formado pelos estudantes Fund/ 05 a 09, identificaram o

ensino de ciências na Pamáali como pesquisa e prática, destacando a própria experiência

da descoberta e construção do conhecimento. Nestes termos percebemos nas respostas

dos estudantes que o professor utiliza um método de investigação que possibilita o

domínio prático da natureza favorecendo aos homens e mulheres Baniwa e Coripaco o

desenvolvimento de pensamentos, habilidades e atitudes para aquisição de um

conhecimento verdadeiro. (HENNIG, 1998).

Grupo 02 – Ensino de ciências como dificuldade:

Fund/ 10- Nós alunos da escola Pamáali nós entendemos as muitas

dificuldades aqui na escola; trabalhamos dia de atividade e dia de aula; os

meus professores ensinam muito bem, eu entendo o que não conheço.

Fund/ 11- Representou muita dificuldade, mas mesmo assim consegui

entender algumas partes difícil da disciplina de ciências, é isso aprendi o

que não aprendi antes.

No segundo grupo observamos as dificuldades na busca do conhecimento. Os

estudantes sentem as mesmas dificuldades para construir os novos conceitos. São as

dificuldades de compreensão que todo estudioso enfrenta para a descoberta cientifica,

para explicar os fenômenos que se apresentam diante dele. Afinal, o cientista “é um

cidadão que lida com problemas; é pessoa [...] que observa e interpreta coisas e

fenômenos do ambiente, [...] através de estudo minucioso”. (Idem, p. 107).

Grupo 03 – Elementos da Natureza:

Fund/ 12 – Representa estudo dos seres vivos e dos seres humanos.

Fund/ 13- Durante nós ficarmos aqui na escola, nós aprendemos alguns

assuntos chamados bactéria e fungos, ar e água e suas características, etc; e

nós saímos para campo coletar insetos para fazer texto sobre eles.

Page 65: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

78

Fund/ 14- Representou muitas coisas nas ciências, porque a ciência é muito

importante para nós, por exemplo, como são os artrópodes, quem já segurou

o camarão deve ter percebido logo que esse animal tem uma espécie de

“casca” rígida, essa casca é o esqueleto dos artrópodes, ao contrário do

nosso esqueleto que é interno.

Fund/ 15- Na primeira etapa estudamos sobre a fotossíntese e trabalhando

nas atividades de campo e também na segunda etapa pesquisa sobre as

plantas que produzem óleo, assim que estudamos em Pamáali.

No terceiro grupo, os estudantes definem o ensino de ciências na Pamáali como

uma experiência diretamente ligada aos elementos da natureza e seus processos. Vale

ressaltar que o Homem está incluído entre estes elementos, ou seja, ele não está

dissociado da Natureza. Quanto aos elementos destacados Alcântara (2010, p. 15) infere

que “Daí a ideia de se buscar no ambiente da floresta possibilidades pedagógicas a partir

da utilização dos elementos nela presente”, porém conservando-a para a

sustentabilidade.

Assim, ao observarmos as respostas acima, percebemos a importância da

Escola na vida de cada aluno e o quanto conhecer a natureza está ligada à questão

existencial individual e coletiva. Neste caso, de fato, a Escola possui a finalidade de

possibilitar uma formação integral para o aluno.

De acordo com Zabala (1998), é na escola, a partir das relações estabelecidas,

das experiências vividas, que se constroem as condições e os vínculos necessários para

se definir concepções a respeito de si mesmo e dos outros. É partindo de uma ação

reflexiva acerca da finalidade ideológica da Educação escolar que se pode conceber o

aluno como um cidadão, no contexto social em que está inserido. Por esta razão, “os

direitos dos Índios não são apenas para sua defesa, mas também para que tenham acesso

à cidadania plena” (MEC/ TV ESCOLA, 2001, p. 330), inclusive na escola.

Acompanhando a mesma lógica de argumentação, notamos que as respostas

dos estudantes são baseadas nos conteúdos estudados nas três etapas. Neste sentido, os

conteúdos sofrem uma ampliação em seu significado, pois não basta apenas ensinar é

preciso buscar o sentido do por que ensinar. E, por esse motivo devem ser definidos

coletivamente dentro do próprio ambiente da sala de aula.

Page 66: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

79

Figuras 36, 37: Atividades de produção acadêmica no Fundamental

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Para os alunos da EIBC, coletar insetos, aprender o tempo de produção da

floresta e o tempo de reprodução dos animais, conforme a resposta do aluno Fund/ 13

se constitui num momento de aprendizado para a sobrevivência. Desse aprendizado

resulta sua condição existencial através do cultivo de plantas, da criação e da caça de

animais e da pesca de peixes para sua alimentação. Nestes termos, o conteúdo assume a

posição de envolver o indivíduo em todas as suas dimensões de aprendizagem, isto é, a

dimensão conceitual, procedimental e atitudinal, partindo das premissas o que, para que

e como aprender.

Figura 38, 39 e 40: Conteúdo significativo

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Ainda neste mesmo raciocínio, o aluno Fund/ 06 explica que eles pesquisaram

insetos em outra comunidade fora da escola, isto mostra que os professores sabem da

necessidade de diversificar o ambiente para se obter um ensino mais eficaz; que, para

ensinarmos é preciso termos referenciais do modo como o sujeito aprende, bem como

de suas limitações, de sua individualidade e de sua diversidade.

Uma boa metodologia precisa ter uma sequência ordenada e articulada de suas

atividades. Esta sequência se revela na resposta do aluno Fund/ 08, quando ele afirma

que primeiro há o estudo em grupo e depois saem para a prática. Para Zabala (1998), tal

sequência deve considerar as intenções educacionais no momento da definição dos

conteúdos de aprendizagem e qual o papel das atividades propostas pela escola. Pois

Page 67: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

80

dessa forma se explicitam as intenções educativas para a formação de conceitos,

procedimentos e atitudes.

A Pamáali com esta metodologia de ensino com pesquisa estabelece

previamente os conhecimentos a serem aprendidos, tornando os conteúdos

significativos e funcionais para a superação de dificuldades. Podemos demonstrar tal

questão nas respostas dos alunos Fund/ 10 e Fund/ 11, que dizem ter tido dificuldades

que, no entanto, foram superadas durante o processo. Portanto, mesmo que haja

momentos de conflitos para aquisição de novos conhecimentos, eles sentem-se

motivados a aprender os conteúdos.

A metodologia utilizada proporciona novas habilidades e possibilita aos

estudantes o aprender a aprender, tornando-os autônomos em seus processos de

aprendizagem. Tal autonomia está presente nas respostas dos alunos Fund/ 14 e Fund/

15, quando explicam detalhadamente a aula sobre o esqueleto dos artrópodes e sobre as

espécies de plantas, respectivamente.

Para tanto, as relações estabelecidas em sala de aula representam um grande

valor no processo ensino-aprendizagem. Sintonia e interação entre professor, aluno e

conteúdos são fundamentais para o sucesso da metodologia aplicada. Professores e

alunos são partícipes deste processo, diferenciando-o do ensino tradicional. Neste

sentido, se estabelece a concepção construtivista do conhecimento, o que necessita da

diversificação de estratégias, com novos desafios, sempre atento ao ritmo de

aprendizagem dos alunos, numa interação direta com eles.

Figuras 41 e 42: Interação professor-aluno

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Confirmando tal inferência Decroly, afirma que “a criança [ou jovem] é o

ponto de partida do método” (REV. COLEÇÃO EDUCATIVA, 2008, p. 23), diríamos

que o interesse do aluno é o ponto de partida para utilização do método [grifo

nosso].

Page 68: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

81

Em última análise, os recursos metodológicos relacionam-se com a visão de

determinada sociedade, história ou cultura e, por esta razão estão carregados de

mensagens ideológicas. Portanto, o exercício da prática reflexiva pelo docente é

fundamental para o sucesso desse processo de produção do conhecimento, com o fim de

potencializar a autonomia do aluno, nesse construto científico.

3.3 Construção da proposta intercultural, bilíngue e sustentável para o ensino de

ciências naturais

“As dificuldades que vivemos para construir esta

escola diferenciada, é que não temos livros

diferentes.”.

Profª. Maria José -Xukuru

3.3.1 Recurso pedagógico: material didático Baniwa e Coripaco

Produzir material didático para estudantes e professores indígenas não é uma

tarefa simples, visto que tal produção deve ser algo funcional e aplicável. Não basta

produzir, é necessário uma utilização prática do que foi produzido, de modo que essa

utilidade esteja relacionada com a questão existencial dos povos tradicionais e com a

revitalização dos conhecimentos para a sobrevivência sustentável dos mesmos.

Embora a escola Pamáali já possua livros produzidos e publicados em parceria

com o MEC, nossa proposta em produzir um material didático surgiu no momento do

relato do professor de ciências naturais, acerca da escassez de material bilíngue para

ensinar as crianças indígenas nas séries iniciais.

Assim, a proposição de trabalhar materiais didáticos na perspectiva de uma

educação bilíngue sustenta a ideia de interculturalidade, pois

O tema da educação bilíngue e intercultural, no que concerne à educação

indígena, tem enriquecido durante as últimas décadas os debates

pedagógicos, antropológicos e políticos nos países americanos e europeus,

caracterizados por uma diversidade de contextos onde as demandas

educativas dos grupos linguística e culturalmente distintivos são diversas.

(GASCHÉ, 2008, p. 09).

Page 69: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

82

Em tal perspectiva, propusemos o material didático bilíngue a ser produzido

pelos alunos do segundo seguimento do Ensino Fundamental, para ser utilizado pelas

crianças indígenas da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

A Comissão Nacional de Apoio a Produção de Material Didático Indígenas

(CAPEMA/ MEC), conforme a Portaria n° 13 de 21/07/2005, através da Coordenação

Geral de Educação Escolar Indígena, elaborou vários livros didáticos e paradidáticos de

diversas etnias. Os Baniwa e Coripaco também tiveram uma participação com a

produção de livros na língua nativa, com o título Ikadzekatakadapha16

.

Figura 43: Produções da Pamáali em parceria com o ISA

Fonte:Arquivo da Pamáali

Nesse sentido, uma maneira de construir uma educação diferenciada e

intercultural é através do uso de livros didáticos bilíngue. Em seu relato o professor de

ciências naturais no Ensino Fundamental (capítulo metodológico deste trabalho),

declarou que gostaria de dar aulas com um livro na língua Baniwa e na língua

Portuguesa. Decorrendo desse fato, optamos pela proposta de elaboração de um material

didático bilíngue, a partir das pesquisas realizadas pelos estudantes das séries finais do

Ensino Fundamental. Portanto, a condição básica para que isto aconteça está em

possibilitar efetivamente a inter-aprendizagem entre a sociedade indígena a não

indígena.

3.3.2 Vantagens do recurso pedagógico na perspectiva didática intercultural e

bilíngue

“O projeto de pesquisa é registrar e disponibilizar

para pesquisa o conhecimento cultural dos povos

Baniwa e Coripaco”.

Tiago Pacheco - Baniwa

16 Este livro, produzido em língua Baniwa e destinado à aquisição da lecto-escritura, foi elaborado pelas comunidades

Baniwa do médio rio Içana, Paitsipe (Juivitera), Poperianaa (Castelo Branco) e Escola Municipal Indígena Pamáali -

Baniwa e Coripaco, resultado do Projeto Educação Indígena no Alto Rio Negro, realizado pela parceria entre o

Instituto Socioambiental/ISA e Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro-FOIRN.

Page 70: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

83

Ao introduzirmos em nosso trabalho a ideia de uma educação intercultural e

bilíngue partimos do princípio de que interculturalidade é o relacionamento entre duas

ou mais culturas e, neste caso, incluindo-se a questão linguística. Ao incluirmos o

vocábulo bilíngue fica claro que estamos falando da relação entre duas culturas de

línguas maternas diferentes, precisamente do tronco linguístico Aruak (Baniwa e

Coripaco) e Português.

Acompanhando essa lógica de argumentação, defendemos ainda que o

reconhecimento do papel histórico e social da escola indígena contribui

fundamentalmente para diminuir o conflito entre o que os modelos educativos

diferenciados deveriam ser partindo da aplicação das políticas educativas oficiais, que

regem as relações interculturais nos diferentes países do mundo, bem como o que

podem vir a ser, através do exercício do direito que têm estes povos de participar

ativamente no planejamento, na operação e na avaliação da educação que estes

reivindicam. Por esta razão é preciso que as manifestações interculturais e bilíngues

apresentem-se como políticas que vão além de uma classificação com critérios

antropológicos puramente ocidentais.

O respeito e a alteridade devem ser princípios presentes nas manifestações de

educação intercultural e bilíngue, pois considera diferenças, diversidade e valores

próprios de cada povo tradicional, bem como “a dificuldade e limitação conceitual de

seu espírito interpretativo, teórico, que lhes impedem de dar conta de suas propriedades

positivas em contraste com a sociedade nacional”. (GASCHÉ, 2010, p. 114).

Essa compreensão a respeito da educação indígena intercultural e bilíngue

possibilita melhor produção e melhor aplicação de recursos didático-pedagógicos, para

a escola indígena.

Sem dúvida alguma, quanto mais conhecida uma realidade maior a

possibilidade de se colocar no lugar do outro. Esta afirmação está intimamente ligada

com o fato de optarmos pela elaboração de um material didático que atenda aos

interesses do povo Baniwa e Coripaco, pois conforme afirma Zabala (1998, p. 29) os

recursos didáticos

São os instrumentos que proporcionam referências e critérios para tomar

decisões: no planejamento, na intervenção direta no processo de

ensino/aprendizagem e em sua avaliação. São meios que ajudam os

professores a responder aos problemas concretos que as diferentes fases dos

processos de planejamento, execução e avaliação lhes apresentam.

Page 71: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

84

Neste sentido, fica evidente que os recursos didáticos utilizados pelo professor

são fundamentais para o alcance dos objetivos propostos durante a fase de

planejamento. E, que os estudantes são partícipes na elaboração do material a ser

utilizado, para despertar o interesse para a aprendizagem. Por isso “revitalizar os

conhecimentos indígenas equivale, segundo essa visão, falar deles, divulgá-los na sala

de aula, expressá-los por escrito ou em desenhos”, (GASCHE, 2010, p. 116) de modo a

divulgar este saber.

Enfim, a maior vantagem da Educação intercultural e bilíngue esta no fato de

esta despertar o interesse dos alunos, visando provocar aos mesmos

Maior precisão nas descrições e inventários referentes aos conteúdos

explorados, maior aprofundamento na compreensão das relações entre os

objetos materiais, técnicos e naturais, vivos e inertes e maior liberdade na

imaginação e na interpretação do significado do mundo. (GASCHE, 2010, p.

125).

Em última análise, ao exercermos uma postura intercultural possibilitaremos a

valorização e a compreensão do outro em relação ao eu, pois ao adquirirmos essa

atitude de inter-aprendizagem como um dos conceitos centrais do planejamento,

assumiremos então a Pedagogia da Interculturalidade.

Tal pedagogia nos dá condições de acolher elementos, de recentes discussões

entre os pesquisadores, que consideram a aprendizagem como um conceito oposto ao

que comumente se tem entendido, onde a habilidade, competência e conhecimento de

ambos os partícipes (professor e aluno) se ampliam, se diversificam, se interagem e se

enriquecem.

Sem dúvida, essa prática educativa de inter-aprendizagem diverge do que é

propagado no meio escolar por ser uma ideia nova ainda em desenvolvimento e, que

ainda confronta com as ideias educativas vigentes na sociedade envolvente.

Page 72: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

85

3.3.3 –Áanhee, –déenhi nheétte –dzeekáta:17

o passo a passo da construção didática

intercultural

O recurso didático idealizado é um construto vislumbrado a partir das

produções dos alunos do 6° ano da Escola Pamáali. O conhecimento produzido na

comunidade baseia-se em fontes originais do próprio povo Baniwa e Coripaco. Dentre

essas fontes podemos citar os velhos (Komu)18

, os mitos de origem e os registros de

pesquisas feitas pelos estudantes da EIBC.

Conforme a narrativa do professor Baniwa19

, a disciplina a que se destina este

recurso é inicialmente as ciências naturais. Porém, no decorrer da metodologia se

trabalhará outras disciplinas de modo interdisciplinar. Vale ressaltar que a EIBC possui

livros didáticos publicados, no entanto a construção não seguiu esta dinâmica.

Cabe lembrar que algumas informações contidas neste trabalho são parte da

prática diária na sala de aula da Pamáali e aqui foram apenas reforçadas, enquanto

passos de uma metodologia de construção de conceitos. Os passos para a elaboração do

material são:

a) Pesquisa in lócus para observação da fauna e da flora conforme o

conteúdo explorado. Ex.: Seres Vivos terrestres – neste conteúdo o professor

orientará os estudantes a coletar um animal para observá-lo e registrar as

características, os hábitos alimentares e qual o habitat natural. Todas as

informações serão lançadas no caderno de pesquisa para serem discutidas em

sala de aula;

Figura 44 e 45: Pesquisa na trilha das ciências

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

b) Na sala de aula, o professor orientará os estudantes para que registrem

por meio de desenhos, o animal pesquisado, retratando o máximo de informações

17 Fazer, produzir e construir – Ramirez (2001). 18 É o sábio da comunidade. É uma espécie arquivo das tradições indígenas. É também chamado de Pajé. 19 Narrativa constante no capítulo metodológico deste trabalho.

Page 73: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

86

possíveis sobre o seu objeto de estudo. O estudante pesquisador desenhará a estrutura

física do animal, o lugar onde vive, os hábitos alimentares e até o modo de reprodução.

Neste momento da atividade, o trabalho artístico é fundamental para desenhar, colorir e

detalhar o visual do objeto explorado na pesquisa;

Figura 46, 47 e 48: Observação e registro de pesquisa

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

c) As anotações feitas durante a pesquisa in lócus e registradas no caderno

se transformarão em um texto dissertativo, descritivo e/ou narrativo que traduzirá toda a

impressão do estudante a respeito do animal observado e se constituirá em fonte de

conhecimento a ser trabalhada com as crianças dos anos iniciais;

Figura 49 e 50: Caderno para registro da pesquisa

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

d) O professor da disciplina disponibilizará para os estudantes

pesquisadores, referências bibliográficas, tais como livros, artigos de revistas e de sites

da internet para possibilitar conhecimentos complementares àqueles observados

diretamente na realidade do animal. O estudante incluirá informações como o nome

científico do animal, a classificação biológica a que ele faz parte, a posição na cadeia

alimentar e o modo de reprodução;

Figura 51 e 52: Produção do texto da pesquisa

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Page 74: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

87

e) Na entre etapa os estudantes pesquisadores entrevistarão o Komu de suas

comunidades para saber o mito de origem, a representação indígena e o lado sagrado de

cada animal pesquisado. Essas informações coletadas também comporão o texto

produzido pelos estudantes pesquisadores;

Figura 53: Texto descritivo montado em quadrinhos

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

f) O mesmo texto dissertativo, descritivo ou narrativo produzido

inicialmente em Baniwa e Coripaco será traduzido ipsis literis para o Português,

oportunizando aos estudantes pesquisadores a familiarização com o texto nas três

línguas, com vistas a perceber a complexidade de construção gramatical de ambas, bem

como a produção do texto científico;

Figura 54 e 55: Transcrição do texto de Baniwa para Português

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Os alunos organizarão as produções, relacionando texto e desenho, com vistas

a facilitar a compreensão das crianças indígenas da Educação Infantil e dos anos iniciais

do Ensino Fundamental;

Figura 56 e 57: Ligação entre textos e figuras

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Page 75: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

88

g) Os textos serão organizados em forma de paisagem com o texto

descritivo logo abaixo do desenho ou ainda em forma de quadrinhos, dando ideia de

texto recreativo, onde se lê passo a passo as informações ilustradas;

Figura 58 e 59: Texto final para publicação de material didático

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

h) O professor da disciplina inicial (Ciências Naturais) comporá um conselho com

os professores Português, Artes, História, Geografia e outros, com o fim de

revisar os textos construídos pelos estudantes pesquisadores, visando à

produção gráfica do material;

Figura 60: Conselho de professores para revisão do texto produzido

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

i) O texto final produzido pelos estudantes pesquisadores será utilizado em

forma de livros didáticos pelas crianças indígenas das comunidades Baniwa e Coripaco,

matriculadas na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Figura 61 e 62: Finalização da proposta a ser utilizada

Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA

Por fim, as estratégias, as metodologias e os recursos didáticos usados para a

educação escolar do Indígena possuem as mesmas intencionalidades educativas de

Page 76: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

89

qualquer civilização. O Indígena tal como outro cidadão, busca suas conquistas étnicas,

políticas, econômicas e ideológicas, contudo mantém o respeito pela natureza, que é a

origem de toda a vida, mantendo o foco na sustentabilidade, na territorialidade e na

preservação do mito. E isto é e será, sempre, para os povos indígenas uma questão

existencial.

Page 77: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

90

CONSIDERAÇÕES: É PRECISO PONDERAR

As ponderações a seguir resultam de reflexões ao longo da pesquisa e contribuíram

significativamente para o nosso amadurecimento intelectual. O caminho trilhado para

realização deste trabalho, além de possibilitar crescimento intelectual, ampliou também

a nossa visão social, política e ideológica a respeito dos povos Baniwa e Coripaco,

representada analogicamente pelo diagrama abaixo:

Figura 63: Ciclo científico sustentável Baniwa e Coripaco

Fonte: Pesquisa de campo/2009

A figura acima foi denominada de ciclo científico sustentável [grifo nosso],

pois a relação dos Baniwa e Coripaco com o conhecimento está pautada na

sustentabilidade existencial. Desta inferência decorrem nossas considerações:

Os saberes tradicionais atravessam os séculos, gerando a sustentabilidade

histórica;

A força da narrativa do mito traz o tempo de origem da primeira aparição

do mesmo, para a sustentabilidade religiosa;

A ciência sustentável desenvolvida pelo Índio respeita o tempo do rio

(seca ou cheia), o tempo da chuva, o tempo do solo e o tempo da floresta, para

sustentabilidade territorial;

O conhecimento construído pelo indígena se renova de tempo em tempo

e se adapta a cada geração, fomentando a sustentabilidade existencial;

Os saberes indígenas se cruzam com os conhecimentos ocidentais, sem

perder a sua essência de origem, dando lugar a um modo alternativo de pensar à

construção de conceitos científicos, favorecendo, enfim, a relação entre a tríade

interculturalidade, territorialidade e sustentabilidade.

Page 78: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

91

Feitas essas considerações, ousamos ainda inferir que trabalhar as concepções

de ensino de ciências na educação escolar indígena numa perspectiva de

interculturalidade foi uma oportunidade de conhecer uma realidade ainda em

construção. Contudo, a inserção de novos conhecimentos e a possibilidade de aplicação

de novas concepções, como forma de responder aos problemas educacionais da

sociedade contemporânea, representa uma contribuição significativa para o processo da

educação escolar, tanto para o indígena quanto para o não indígena.

As experiências de ensino e de aprendizagem desenvolvidas pela EIBC-

Pamáali, no Alto Rio Negro, configuram a construção da escola indígena diversificada e

plural. Elas reforçam, ainda, o princípio da autonomia necessária para que os saberes

produzidos nas comunidades tradicionais sejam legitimados enquanto conhecimento

científico.

As concepções de ciências e de ensino de ciências representadas nessa escola

indígena mostram as convicções e a força do Índio na produção de conhecimentos. O

indígena não abstrai um conhecimento apenas para cumprir uma exigência, mas ele sabe

da importância de cada informação para sua sobrevivência. Ele é antes de tudo um

protagonista do conhecimento, pois o constrói e sabe para que o construiu.

As práticas pedagógicas desenvolvidas na escola indígena é uma revitalização

dos saberes repassados de uma geração para outra. Ao considerar as experiências

produzidas e vivenciadas pelos alunos nas comunidades, como ferramenta para

elaboração de conceitos em sala de aula, o professor indígena mostra sua habilidade na

construção do conhecimento.

A força do mito, aliada à valorização dos saberes tradicionais, formam a

ciência do Índio. A síntese do conhecimento produzido pelos Baniwa e Coripaco, está

na concepção de uma ciência sustentável, que explora os recursos naturais oferecidos

pela floresta, harmonizando o Homem e a Natureza, saberes tradicionais e ocidentais,

num processo de inter aprendizagem e interculturalidade.

Por fim, a construção do conhecimento científico para os Baniwa e Coripaco

da Pamáali, ainda é somente um ensaio, embora a escola já exista há dez anos. Todavia,

já demonstra um potencial promissor, visto que esses saberes milenares que foram

tradicionalmente acumulados servem de base para o projeto de aprendizagem da escola,

ao mesmo tempo em que referenda a legitimidade do mito enquanto recurso de ensino.

Esta organização na e para a educação escolar indígena, favorece a implementação de

uma escola diferenciada, diversificada e plural.

Page 79: INTRODUÇÃO fazer científico-pedagógico

92

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