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17 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS Arturo Gouveia Caro Aluno, A disciplina que você vai cursar comigo, a partir de agora, é Teoria da Literatura. Trata-se de um conjunto de princípios fundamentais para você conhecer a natureza, os meios e a nalidade da literatura. Convém esclarecer que a literatura é muito mais antiga do que a teoria e, obviamente, só depois da existência de um certo fenômeno é que o homem pode construir um conhecimento e começar a teorizar. Em geral, no senso comum, existe muito preconceito em relação à teoria, como se ela não tivesse nenhuma conexão com a prática real. A literatura, como um tipo de arte, de cção, também comummente é vista com preconceito, com certa reserva, na medida em que se cristaliza a idéia de que não serve para nada. Mas será mesmo que uma arte não serve para nada? Você aceita esse tipo de concepção? Será que a arte, por mais simbólica que seja, não serve sequer para a gente reetir um pouco sobre a condição humana, o dia- a-dia, a situação tão brutal vivida pelo ser humano em seu contexto histórico? É preciso, desde já, criar condições para evitar esse tipo de visão distorcida. A literatura é uma arte e, como arte, como um tipo especial de conhecimento, pode nos fazer reetir sobre as coisas mais banais do cotidiano, assim como sobre coisas que nós não percebemos numa vida mecanizada. Uma das principais nalidades da teoria da literatura, portanto, é mostrar o quanto a arte literária pode nos proporcionar um tipo diferente de percepção, seja em relação às coisas mais concretas, seja em relação ao que parece mais abstrato e de difícil compreensão. Esta disciplina em que você está se iniciando, portanto, tem esse objetivo primordial. Ela será exposta em três unidades, ao longo das quais se estabelecerá um diálogo produtivo sobre os seus conceitos, o que resultará na avaliação. Não pretendo, como professor, fazer uma avaliação tradicional, mas através da produção de pequenas redações, porém apropriadas, para que se perceba o nível de assimilação dos conteúdos disseminados ao longo do curso. As três unidades do curso serão: 1. Os fundamentos da literatura como construção artística; 2. A teoria dos gêneros literários como forma de classicação dos textos da tradição literária; 3. Um estudo sobre o gênero narrativo, especialmente o conto e suas categorias, ou seja, seus elementos estruturais (enredo, personagem, tempo, espaço, narrador etc.). Essas três unidades, assim distribuídas, vão proporcionar um conhecimento bastante interessante dos conceitos mais genéricos da teoria da literatura. Além disso, constituirão três etapas interligadas pela temática e por um procedimento que vai do geral ao especíco. Assim, a parte que diz respeito aos fundamentos da literatura criará condições para que o aluno sinta a importância da arte literária,

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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS

Arturo Gouveia

Caro Aluno,

A disciplina que você vai cursar comigo, a partir de agora, é Teoria da Literatura. Trata-se de um conjunto de princípios fundamentais para você conhecer a natureza, os meios e a Þ nalidade da literatura. Convém esclarecer que a literatura é muito mais antiga do que a teoria e, obviamente, só depois da existência de um certo fenômeno é que o homem pode construir um conhecimento e começar a teorizar. Em geral, no senso comum, existe muito preconceito em relação à teoria, como se ela não tivesse nenhuma conexão com a prática real. A literatura, como um tipo de arte, de Þ cção, também comummente é vista com preconceito, com certa reserva, na medida em que se cristaliza a idéia de que não serve para nada. Mas será mesmo que uma arte não serve para nada? Você aceita esse tipo de concepção? Será que a arte, por mais simbólica que seja, não serve sequer para a gente reß etir um pouco sobre a condição humana, o dia-a-dia, a situação tão brutal vivida pelo ser humano em seu contexto histórico?

É preciso, desde já, criar condições para evitar esse tipo de visão distorcida. A literatura é uma arte e, como arte, como um tipo especial de conhecimento, pode nos fazer reß etir sobre as coisas mais banais do cotidiano, assim como sobre coisas que nós não percebemos numa vida mecanizada. Uma das principais Þ nalidades da teoria da literatura, portanto, é mostrar o quanto a arte literária pode nos proporcionar um tipo diferente de percepção, seja em relação às coisas mais concretas, seja em relação ao que parece mais abstrato e de difícil compreensão.

Esta disciplina em que você está se iniciando, portanto, tem esse objetivo primordial. Ela será exposta em três unidades, ao longo das quais se estabelecerá um diálogo produtivo sobre os seus conceitos, o que resultará na avaliação. Não pretendo, como professor, fazer uma avaliação tradicional, mas através da produção de pequenas redações, porém apropriadas, para que se perceba o nível de assimilação dos conteúdos disseminados ao longo do curso.

As três unidades do curso serão:1. Os fundamentos da literatura como construção artística;2. A teoria dos gêneros literários como forma de classiÞ cação dos textos da

tradição literária;3. Um estudo sobre o gênero narrativo, especialmente o conto e suas

categorias, ou seja, seus elementos estruturais (enredo, personagem, tempo, espaço, narrador etc.).

Essas três unidades, assim distribuídas, vão proporcionar um conhecimento bastante interessante dos conceitos mais genéricos da teoria da literatura. Além disso, constituirão três etapas interligadas pela temática e por um procedimento que vai do geral ao especíÞ co. Assim, a parte que diz respeito aos fundamentos da literatura criará condições para que o aluno sinta a importância da arte literária,

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de sua distinção de outras formas de arte e de discurso; também ajudará o aluno a compreender que a teoria é uma prática humana fundamental à existência, pois não existe nada bem planejado que não seja fruto de alguma reß exão teórica, seja lá em que nível for. Nessa primeira unidade, o aluno será levado a ir se familiarizando, aos poucos, com os conceitos que servem para explicar, descrever e gerar um conhecimento especializado, enriquecendo o seu patrimônio cultural. O objetivo mais importante nessa primeira etapa é uma reß exão sobre a literatura, comparando-a com o que não é literatura e mostrando por que essa distinção é tão importante para o aluno quanto para o professor ou qualquer pessoa que queira compartilhar desse tipo de conhecimento. Assim, um soneto de Augusto dos Anjos, “Vandalismo”, entre outros exemplos citados, levará o aluno a ir diferenciando, do ponto de vista qualitativo, o que efetivamente é literatura daquilo que não é, não tem nenhuma importância em termos de arte, mas pode até se fazer passar por tal. Mostraremos esses exemplos no momento preciso.

Na segunda unidade, o estudo começa a ser mais especíÞ co. Vamos abordar a teoria dos gêneros literários, imprescindível à classiÞ cação dos tipos mais diferentes de texto que a tradição, ao longo dos milênios, oferece. Por exemplo, a história de Sansão e Dalila, relatada no Livro dos Juízes, da Bíblia, é contada em forma de narrativa. Mas ela poderia ser narrada em forma de poesia, com versos, com estrofes. Da mesma forma, poderia ser vivida por personagens em um texto voltado para a encenação teatral. Isso signiÞ ca que um determinado enredo pode assumir várias formas. Os fatos aterradores do 11 de Setembro, em Nova York, poderiam ser transformados em conto, romance, crônica, poema lírico, texto dramático (teatral). Poderíamos ter os mesmos personagens, os mesmos fatos, o mesmo tempo, o mesmo espaço, mas com formas diferenciadas que distinguem cada gênero. Nesse sentido, percebe-se a relevância dessa teoria para levar o aluno a não ver os textos literários pelo que eles têm apenas de semelhante, mas principalmente pelas diferenças. A teoria dos gêneros explica em que consistem tais diferenças e a necessidade de conhecer os devidos meios teóricos e conceituais para identiÞ cá-las.

Na terceira unidade, o aluno perceberá que o curso Þ cará ainda mais especíÞ co. Depois de expostos os conceitos sobre gênero lírico, gênero dramático e gênero narrativo (também chamado, tradicionalmente, de gênero épico), o estudo vai se deter mais sobre este último. Várias categorias serão conceituadas, o que constitui cada uma delas, sempre com exemplos bem representativos. Alguns exemplos serão mostrados para que o aluno tenha uma percepção adequada do gênero em questão. Depois, serão apresentados alguns contos de Machado de Assis, considerado pela crítica um dos maiores escritores brasileiros. Serão sugeridas leituras dos contos, mas, a título de didática, será feito um resumo de alguns contos, assim como um comentário crítico da situação representada no enredo e vivida pelos personagens. Acredito que esse trajeto aqui proposto, do geral ao especíÞ co, ajudará a facilitar a compreensão da natureza e dos objetivos da disciplina em curso.

ATENÇÃO: A teoria da literatura é um conjunto de princípios que exigem de você uma reß exão. Por exemplo: como distinguir a literatura e saber reconhecer se um texto é literário ou não?

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REFLITA: Sem a leitura dos textos literários, de jornais, de livros e outras fontes, não adianta Þ car na teoria pela teoria. A teoria é importante, mas depende do objeto de estudo, que são os próprios textos literários.

AGORA É SUA VEZ: Vá agora, imediatamente, ler o poema “Vandalismo”, de Augusto dos Anjos. Ele pode ser encontrado em alguma edição do Eu, mas pode também ser buscado pela Internet. Leia várias vezes esse soneto e procure entender o que existe de diferente no sentido dos versos, em comparação com a vida real.

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UNIDADE I

OS FUNDAMENTOS DA LITERATURA COMO CONSTRUÇÃO ARTÍSTICA

Em primeiro lugar, vamos fazer uma breve reß exão sobre a teoria. Como você já deve ter ouvido falar, a teoria é algo muito distinto da prática. Entretanto, a situação real não é bem assim. O que se entende por teoria no senso comum é algo muito preconceituoso. O senso comum é um tipo de comunicação muito importante no dia-a-dia, mas um conhecimento mais qualiÞ cado é aquele que passa a duvidar das generalizações do senso comum. E a teoria tem um papel muito relevante nessa direção. No cotidiano você já ouviu falar diversas vezes coisas assim: “O brasileiro é preguiçoso”; ou então: “A fome sempre existiu e não tem jeito”; ou então: “Os artistas não contribuem em nada para o desenvolvimento nacional”. Essas três frases são tipicamente do senso comum. Elas circulam em nossa sociedade com o objetivo de fazer com que você também se apegue às generalizações que ela propagada. O que signiÞ ca uma generalização desse tipo? Vamos analisar a primeira frase. Ora, preste ATENÇÃO: ela aÞ rma que todos os brasileiros são preguiçosos, pois o sentido singular dela está se referindo, na verdade, ao plural. Ora, você acredita que a preguiça é tão grande assim no Brasil? Se o brasileiro fosse preguiçoso mesmo, você acha que as maiores empresas multinacionais do mundo estariam funcionando aqui? Se você fosse dono de uma empresa como uma fábrica ou um banco, você a instalaria num lugar onde o povo é totalmente preguiçoso? Observe que, com essa brevíssima reß exão, a gente começa a discutir a frase e duvida do conteúdo dela. Se formos para a prática, veremos que milhões de pessoas nesse país trabalham em condições péssimas, mal pagas, mas trabalham intensamente, inclusive crianças e mulheres grávidas. Assim, quanto mais reß etirmos criticamente, menos aceitaremos as generalizações.

O que está exposto na segunda frase é algo muito semelhante: ela aÞ rma que a fome sempre existiu e, por isso, a gente não deve se indignar com ela. Nesse sentido, o senso comum é levado a acreditar que a fome é algo até natural, normal, o que não deve gerar preocupações. Mas será que os fatos são assim mesmo? Encontrei um dia na Internet uma matéria curiosa que dizia o seguinte: Bill Gates, o homem mais rico do mundo, ganha mil dólares por segundo, enquanto populações inteiras na África têm uma renda per capita de um dólar por mês. Você acha que isso é natural? Será que esse abismo imenso que separa pobreza de riqueza é algo que não tem jeito? Uma reß exão mais apropriada sobre o assunto mostrará que a pobreza é produzida pela riqueza e vice-versa. É o trabalho dos pobres, explorados, miserabilizados, que gera a riqueza dos poderosos. Portanto, não existe nada de natural nesse processo. Trata-se de uma questão social de estratiÞ cação e appartheid econômico. O mundo atual, com enormes tecnologias, poderia produzir alimentos para toda a humanidade, o que acabaria de vez com a fome. Portanto, o problema da fome não é de natureza técnica nem é uma maldição do destino; o problema é essencialmente sócio-econômico. Os políticos não têm interesse em acabar com a fome porque ela gera subordinação. A África

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tem enormes populações famintas, mas Nova York também tem, conforme última pesquisa feita pela ONU, trinta e cinco mil mendigos! Isso signiÞ ca que a fome coexiste, em Nova York, com o maior volume de dinheiro do planeta. E esse problema não provém de nenhuma destinação maldita, mas da falta de uma política capaz de integrar as pessoas a terem uma vida digna na sociedade.

As reß exões acima também servem para desmontar a terceira frase. Ela aÞ rma que os artistas são vadios, inúteis, imprestáveis, como se não servissem para nada na sociedade capitalista, tão caracterizada pelo imediatismo e pela ambição de ter as coisas materiais em abundância. Ora, será que apenas os bens materiais são importantes para a formação do ser humano? Será que o ser humano não precisa de um bom Þ lme, uma boa música, um bom livro, visitar exposições de arte, para se enriquecer intelectualmente? Reß ita bem sobre isso: o preconceito que se tem em relação à arte está baseado na idéia de que a arte não dá lucro, não tem importância para o seu crescimento, não leva a nada de proveitoso. Os textos que vamos expor em seguida demonstrarão o contrário do que está tão banalizado no senso comum.

AGORA É SUA VEZ: Leia de novo, com mais calma, o poema indicado de Augusto dos Anjos. Ele mostrará a você um tipo de linguagem que é impossível na lógica e no senso comum que utilizamos no dia-a-dia. Em seguida, passe a ler com mais apego os conceitos que serão apresentados sobre a natureza da literatura.

1.1 A Natureza da Literatura

Reß etir sobre a natureza da literatura é veriÞ car como a arte das palavras se constrói. Literatura não é documento, não é jornal, não é texto cientíÞ co. Literatura é Þ cção, criação imaginária, embora ligada à realidade concreta. Acontece que ela não é uma cópia nem uma mera retratação da realidade que vivemos. A literatura é uma transÞ guração artística das experiências humanas, mas nunca se reduz a estas. Para entendermos com mais vigor essa diferença, trabalharemos aqui, inicialmente, com três fundamentos básicos da literatura: a) A necessidade de ruptura com o senso comum; b) A ilogicidade conceitual; c) A combinação das palavras.

1.1.1 A Necessidade de Ruptura com o Senso Comum

Um dos fundamentos mais constantes na literatura, como na arte em geral, é a ruptura com o senso comum. Ora, se a literatura é um procedimento artístico, ela tem que ser elaborada com toda uma criatividade capaz de se distinguir do que já se conhece. Se o texto literário se limitar a reproduzir o que já existe e já se conhece, qual o tipo de contribuição que ele estará dando ao conhecimento? Além disso, como já evidenciamos no início, a arte tem que despertar as pessoas para uma nova percepção das coisas, que não seja meramente o que já se sabe na experiência vulgar. Veja você esse verso de Augusto dos Anjos:

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A podridão me serve de Evangelho.

Em que é que esse verso pode contribuir para que você tenha uma percepção diferente dos conteúdos que ele transmite? Em primeiro lugar, vivemos numa civilização ocidental, judaico-cristã, que historicamente teve muita inß uência do poder da Igreja católica. Por tal inß uência, aprendemos que o Evangelho é uma palavra que signiÞ ca “boa nova”, “boa notícia”, que é a notícia de salvação proporcionada por Cristo. A salvação foi pregada ao longo dos séculos como a maior esperança em que a humanidade deveria acreditar. Nossa formação religiosa, que implica outros valores éticos, até hoje dissemina tais idéias: a salvação é o que garante a vida eterna, o descanso perpétuo com Deus, longe de todos os tormentos da história. No verso de Augusto dos Anjos, entretanto, toda essa pregação religiosa sofre uma transformação radical. Ele inverte radicalmente o sentido original de Evangelho. Segundo o verso, o Evangelho não contém nada de puro e magnânimo, mas de podridão. O sentido de decomposição, inerente ao de podridão, é o extremo oposto de uma eternidade feliz e guardada por Deus. Independentemente dos valores religiosos do autor (pois essa questão biográÞ ca não interessa aqui), pode-se deduzir do verso que ele se afasta do sentido milenar da Bíblia e, portanto, do sendo comum que se formou no Ocidente desde a disseminação do cristianismo. Nesse sentido, a podridão é sinônimo de boa nova, como se, ironicamente, a salvação fosse a decomposição, que é rigorosamente sinônimo da morte. Esse verso, de fato, não quer transmitir nenhuma esperança, nenhuma sensação de otimismo em relação ao futuro. O futuro, para ele, já está preÞ gurado na podridão. Observe como o verso se apropria de outro sentido da Bíblia (a previsão, a projeção antecipada do futuro, no caso a certeza de um futuro Þ rme e garantido ao lado de Deus) para desmanchar, desÞ gurar, desconstruir. Esse procedimento de desconstrução é próprio da literatura para que ela deliberadamente se afaste do senso comum e gere novos signiÞ cados, novos sentidos, mesmo que seja em torno do que é mais conhecido e aceito convencionalmente. Assim, o destaque de Augusto dos Anjos à arte e à reß exão, nesse verso, é acrescentar à tradição de valores religiosos e éticos uma leitura que comumente não se faz dos chamados símbolos sagrados. Nessa medida, Augusto dos Anjos procede à dessacralização do convencional. Vejamos agora o verso em um contexto mais amplo:

A podridão me serve de Evangelho.

Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques,E o animal inferior que urra nos bosquesÉ com certeza meu irmão mais velho!

Na continuidade da leitura, vamos percebendo que o grau de ruptura com o senso comum aumenta. Por exemplo, a voz poética (eu-lírico) aÞ rma que ama o esterco. Ora, esterco é excremento, sentido que se estende às fezes e ao que é rejeitado pela cultura como algo nojento, desprezível, horroroso, que causa repugnância. Mas, ao contrário dessa sensação negativa, repugnante, o eu-lírico aÞ rma uma aproximação afetiva com os excrementos, “os resíduos ruins dos quiosques”. Nesse verso também se nota que a lógica do senso comum é abalada com muita veemência. Os dois últimos versos também reforçam isso. Eles já não

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revelam nenhuma crença em valores religiosos do cristianismo, como, por exemplo, a Criação divina do homem. Ao contrário: enfatiza-se que existe um parentesco muito próximo entre o ser humano e “o animal inferior que urra nos bosques”, colocados no poema como irmãos. Existe aí muito mais uma propensão a ver o homem como um animal tosco, bruto, de natureza selvagem, do que uma criatura de origem divina. É nesse sentido que o texto de Augusto dos Anjos merece o estatuto de literatura, por conter esse fundamento de negação do que é mais corrente na cultura e por utilizar determinados meios poéticos, como os versos decassílabos e as rimas, para atingir o objetivo de estabelecer novos sentidos.

Lembremos agora de uma música de Roberto Carlos que tem um valor religioso muito forte: “Jesus Cristo”. Essa canção, datada dos anos 70, abre-se com a seguinte aÞ rmação:

Olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando.Olho pra terra e vejo uma multidão que vai caminhando.Como essa nuvem branca, essa gente não sabe aonde vai.Quem poderá dizer o caminho certo é você, meu Pai.

Essa canção também apresenta rima e musicalidade. Mas ela é muito pobre do ponto de vista do signiÞ cado. Ela não é capaz de criar um sentido novo para nada. Limita-se ao que já se sabe ou se acredita. Ela não consegue ultrapassar o senso comum. Vejamos bem: olhar para o céu e ver nuvem branca, isso é o óbvio! A nuvem branca “vai passando”, está em movimento, o que também é o óbvio. As demais linhas também não acrescentam nada que mereça o reconhecimento de arte, pois não tem criatividade necessária para se distinguir do que já se convencionou há séculos. Por exemplo, se formos consultar o Evangelho de João, veremos que Jesus aÞ rma ser o caminho, a vida e a verdade, sendo o único meio para se chegar a Deus. Independentemente de quem acredite nisso ou não, o importante aqui é veriÞ car que Roberto Carlos apenas reproduz um sentido já muito utilizado em nossa cultura. Portanto, comparando Augusto dos Anjos com Roberto Carlos, observamos uma grande diferença entre os dois no que diz respeito à criatividade artística.

ATENÇÃO: A grandeza poética de Augusto dos Anjos não está no fato de ele romper com uma crença religiosa. Não é isso, pense bem! O que importa para a teoria da literatura é veriÞ car a existência de ruptura com o senso comum, o que pode ser observado em relação a quaisquer valores culturais, não apenas os religiosos.

REFLITA: Roberto Carlos é pobre não por estar apresentando uma crença religiosa na salvação, mas por fazer isso de uma forma muito simplória, que não atinge qualquer qualidade poética. É a linguagem dele que não satisfaz às exigências da arte. AGORA É SUA VEZ: Quando você escutar alguma música dessas bandas de “forró” que estão na moda, procure veriÞ car a qualidade da linguagem utilizada. Você vai observar se a combinação das palavras gera algum signiÞ cado novo ou se elas apenas reproduzem o senso comum.

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Um dos objetivos dessa comparação sugerida acima é levar você a observar, com maior consciência crítica, o que você ouve, lê e vê no dia-a-dia. Só assim você será capaz de distinguir mais as coisas e não achar que tudo tem o mesmo valor. A criatividade artística não está presente em tudo. A Þ nalidade desse curso é aprimorar a sua capacidade crítica diante dos fatos e das coisas mais correntes da existência.

1.1.2 A Ilogicidade Conceitual

Ilogicidade signiÞ ca falta de lógica. Se eu digo que dois mais dois são quatro, isso é perfeitamente conceitual. Mas, se eu digo que dois mais dois são cinco ou zero, já estou me afastando do que é considerado lógico. A lógica é fundamental para os conceitos, para a Þ losoÞ a, para a ciência, para a técnica, não para a arte. A arte tem que desenvolver uma lógica própria, um sentido que seja exclusivamente seu, sem se reduzir à forma de nenhum outro tipo de conhecimento. Veja, por exemplo, a seguinte frase:

O Brasil é o maior país da América Latina e seus recursos naturais são dos mais variados do planeta.

Essa frase é inteiramente lógica. Tudo o que ela diz pode ser comprovado na prática. De fato, o Brasil possui o maior território da América Latina, a qual se estende do México à Argentina. Os recursos naturais do Brasil também já foram muito estudados pela ciência e são, de fato, dos mais privilegiados de todo o mundo. Essa frase, portanto, tem um valor conceitual que merece crédito. Vejamos agora o seguinte verso, do poeta paraibano André Ricardo:

O vôo é o alicerce do pássaro.

Esse verso é uma realização literária exatamente por não conter nenhuma lógica e, com isso, se distanciar do senso comum. O vôo é um fenômeno que só pode ocorrer numa certa altura, em sentido ascendente, o que é totalmente incompatível com alicerce. Ainda mais, o pássaro é leve, consegue desaÞ ar a força da gravidade, o que não aconteceria se ele carregasse em sua base (em suas patas) um alicerce de verdade. O alicerce, tal como se conhece na cultura, é uma base de concreto, pedra, ferro, areia, de material bruto e pesado. Nada disso pode servir de alicerce para um pássaro voar. Além disso, o alicerce, por seu peso e por servir de base a construções, é algo próprio do solo, do subsolo, em sentido descendente, o que contraria o sentido do vôo do pássaro. Um leitor menos preparado vai dizer, reproduzindo o senso comum, que esse verso de André Ricardo não tem lógica e por isso não tem valor. Ora, o que a teoria literária diz é exatamente o contrário: a pertinência dele está na impertinência, na incoerência, na ausência de lógica. Se o eu-lírico aÞ rmasse “O pássaro voa no céu”, não teria nenhum valor literário exatamente por ser o óbvio. Observe como a falta de lógica é essencial à criação de novos signiÞ cados. É o que pode ser observado nesse quarteto de Augusto dos Anjos a respeito da vida e da inteligência:

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A vida vem do éter que se condensa.Mas o que mais no Cosmos me entusiasma

É a esfera microscópica do plasmaFazer a luz do cérebro que pensa!

É impossível comprovar na prática que a vida é um fenômeno formado do éter condensado. Isso é uma imagem poética que não condiz com a realidade palpável. Também é impossível explicar, por conceitos lógicos, o que é uma expressão como “esfera microscópica do plasma” e como ela gera o pensamento humano. Do ponto de vista cientíÞ co e conceitual, isso tudo aÞ rmado no quarteto acima carece de valor. Do ponto de vista da arte, o seu valor reside exatamente na impossibilidade de ser detectado na prática. Essa mesma impertinência pode ser veriÞ cada nos versos seguintes, do poema “Noturno”, da autoria de Sérgio de Castro Pinto:

Nas fronhas da infância ensaquei meus sonhos.Hoje, ensaco pesadelos.E a cada noite, mais que a cabeça,pesa-me o travesseiro.

Observe que a inversão de sentidos é tão grande, que o eu-lírico acaba concluindo que o travesseiro pesa mais do que a cabeça. Tal conclusão só tem coerência dentro do poema, que mostra a angústia de quem passa de uma infância feliz para uma vida adulta de experiências negativas. Fora do texto, entretanto, essa combinação de palavras não tem o menor sentido. Daí a tendência do senso comum de reprovar esse tipo de procedimento, na medida em que a arte não apenas se destaca por uma diferença proposital, como também exige esforço de raciocínio para a compreensão dessa diferença.

Convém falar um pouco da diferença entre literatura e realidade em relação ao valor das coisas e dos fatos. Na nossa realidade cotidiana, sabemos que existem determinadas coisas que são bem mais importantes do que outras. O mesmo se dá quando avaliamos os fatos do ponto de vista histórico. Por exemplo, aquele roubo fabuloso que ocorreu na agência do Banco Central, em Fortaleza, por debaixo do chão, é um fato muito mais importante para um historiador ou um jornalista do que umas cigarras que estejam cantando numa tarde. Qual o jornalista que iria se interessar por umas cigarras? O interesse pelo roubo é inÞ nitamente maior. Assim, há uma hierarquia muito rígida entre os fatos reais. Mas o aluno tem que entender que nas artes essa hierarquia se desfaz. Eu poderia criar um poema sobre o roubo ao Banco Central e o texto não ter qualidade literária. Da mesma forma, eu poderia criar um poema sobre o canto das cigarras e, a depender da combinação das palavras e das imagens, resultar em um texto apreciável. É o que se observa nesse poema de Sérgio de Castro Pinto:

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as cigarrassão guitarras trágicas.

plugam-se/se/se/senas árvoresem dós sustenidos.

kipling recitam a plenos pulmões.

gargarejam vidrosmoídos.

o cristal dos verões.

ATENÇÃO: É importante você relacionar qualquer texto literário com outros e também com fatos implicados em seu tema. É o que você deve fazer a partir de agora, pois não existe nenhum texto que seja isolado da realidade ou de outros textos.

PESQUISAR: No poema acima aparece o nome de um poeta britânico: Kipling. Leia atentamente a informação a seguir, tirada da Internet, e procure relacioná-la com o signiÞ cado do texto:

Rudyard Kipling, autor britânicoJoseph Rudyard Kipling (Bombaim, Índia, 30 de Dezembro

de 1865 - 18 de Janeiro de 1936) foi um autor e poeta britânico.Em 1907 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.Foi educado em Bideford, na Inglaterra. Em 1882 voltou à

Índia, onde trabalhou para jornais britânicos. Começou sua carreira literária em 1886 e tornou-se conhecido como escritor de contos.

Foi o poeta do Império Britânico e seus soldados, que retratou em vários contos, alguns deles reunidos no volume Plain Tales from the Hills’, de 1888.

Em 1894 lançou O livro da selva, que se tornou internacionalmente um clássico para crianças, também conhecido pelo seu personagem principal: o pequeno Mowgli.

Muito conhecido também é um de seus poemas: “If” (Se), no qual um pai dá conselhos a seu Þ lho sobre como ser um homem de bem.

h p://pt.wikipedia.org/wiki/Rudyard_Kipling

REFLITA: Você compreenderá melhor o poema de Sérgio de Castro Pinto, “as cigarras”, se ler o poema “Se”, de Kipling, que vem logo abaixo:

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SESe és capaz de manter tua calma, quando,todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.De crer em ti quando estão todos duvidando,e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,ou, enganado, não mentir ao mentiroso,Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,em armadilhas as verdades que dissesteE as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,a dar seja o que for que neles ainda existe.E a persistir assim quando, exausto, contudo,resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,e, entre Reis, não perder a naturalidade.E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,ao minuto fatal todo valor e brilho.Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu Þ lho!

Rudyard Kipling

Tradução de Guilherme de Almeida

OBJETIVO: Um dos principais objetivos da literatura é levar você a conhecer um mundo mais amplo. Assim, depois dos poemas de Sérgio de Castro Pinto e de Kipling, você chegará a outros textos de tema aproximado, como o de José Paulo Paes, que você verá a seguir.

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Kipling revisitado Se etc,se etc,se etc,Serás um teorema, meu Þ lho.

AGORA É SUA VEZ: Você deve fazer uma pesquisa de imediato: ir a algum livro de poesia e destacar um verso (ou uma estrofe) que lhe pareça muito estranha, fora de compreensão, deslocado do senso comum. Transcreva o verso (ou a estrofe) para as linhas abaixo e procure argumentar com as pessoas (amigos, alunos, familiares) o que é que o texto tem de diferente, que não se encaixa na lógica comum.

1.1.3. A Combinação das palavras

Como você já deve ter percebido, a ruptura com o senso comum e a ilogicidade conceitual só são alcançadas com uma combinação de palavras muito singular. Esse terceiro fundamento do texto literário, portanto, já pode ser detectado nos dois anteriores, na medida em que são inseparáveis. Mas é preciso chamar a atenção para esse aspecto: a forma como as palavras são dispostas e se relacionam no texto é o que determina a sua condição artística. Aristóteles, um pensador grego da Antiguidade, já havia notado isso nos seguintes termos:

a) O historiador tem um limite: os fatos históricos;b) O Þ lósofo tem um limite: os conceitos;c) O poeta não tem nenhum limite: é mais universal que o Þ lósofo e o

historiador.

O que signiÞ ca, propriamente, essa distinção feita por Aristóteles? Para ele, o historiador, em seu trabalho de registrar e interpretar a história, não pode fugir do que os fatos históricos impõem; o Þ lósofo também tem que seguir toda uma linha de raciocínio lógico que o pensamento sistemático da Þ losoÞ a impõe; já o poeta (nome generalizado, na época, para o que hoje chamamos de escritor) é muito mais universal e livre por não ter que se submeter a nada disso. Assim, cabe ao artista usufruir dessa liberdade imaginativa e criar as combinações de palavras mais estranhas, que levem as pessoas a pensar de uma forma diferente dos ensinamentos históricos e das premissas conceituais. Vejamos nesses versos de Zé Ramalho como essa teoria de Aristóteles até hoje se mantém:

Meu treponema não é pálido nem viscosoOs meus gametas se agrupam no meu som.

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No primeiro verso, Zé Ramalho cria uma voz que faz um jogo de palavras com o termo “treponema”. Treponema é o micróbio que transmite a síÞ lis, chamado cientiÞ camente de treponema pallidum. O verso aproveita o sentido cientíÞ co de “pálido” para lhe atribuir um outro sentido, ao lado do adjetivo “Viscoso”. Em seguida, o jogo de palavras, que gira em torno de relações sexuais e doenças sexualmente transmissíveis, estabelece um outro campo de reß exão, um outro universo de valores, na medida em que tudo passa a ser desÞ gurado por uma meditação em torno da própria música. Assim, os “gametas”, que são espermatozóides responsáveis pela reprodução humana, se agrupam não no óvulo, que é o seu receptáculo natural, mas no “meu som”. Você percebe, portanto, que a combinação de um campo semântico com outro cria um choque de sentidos que não é comum na linguagem cotidiana. Observe o efeito semântico desse verso de Augusto dos Anjos:

A Consciência Humana é este morcego!

Ora, qualquer dicionário (comum ou especíÞ co, como os de psicologia) deÞ ne a consciência como uma faculdade humana, uma parte especial do cérebro, uma capacidade humana apropriada para a reß exão e o entendimento. Jamais, porém, um dicionário ou um livro cientíÞ co vai dizer que a consciência é um morcego. O que você pode detectar nesse verso? Como o eu-lírico de Augusto dos Anjos chegou a essa distorção notável de sentido? Ora, estudando o verso com mais calma, você vai averiguar que a consciência pertence a um campo semântico e o morcego pertence a outro campo semântico. São dois campos semânticos totalmente diferentes, díspares, incompatíveis, mas que se encontram com toda pertinência na lógica interna do poema. Na verdade, o célebre soneto “O morcego” não trata propriamente de morcego, mas das turbulências da consciência humana, da culpa, do remorso, da sensação que se tem de estar sempre sendo vigiado por si mesmo. Nessa medida, a comparação Þ nal entre a perturbação do morcego, que interfere no seu quarto e tira sua privacidade, e a imagem da consciência revela-se estritamente lógica na arte poética, mas sem o menor sentido fora da expressão artística.

É preciso acrescentar, a essa altura, a seguinte informação: não existe nenhuma regra definida para a literatura ou para qualquer arte. O texto literário pode atingir a condição de arte pelos meios mais imprevisíveis. Por exemplo, há textos que exploram muito as repetições, os exageros, os excessos de detalhes, as aproximações fonéticas entre palavras de sentidos distantes, entre outros recursos. Tais recursos são reconhecidos como artísticos na medida em que não são utilizados na comunicação comum. Eles oferecem um destaque em termos de criatividade, refutando o uso comum e previsível da linguagem. Observe, por exemplo, os grifos dessa canção de Chico Buarque,:

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Basta um dia

Pra mimBasta um dia Não mais que um dia Um meio diaMe dáSó um dia E eu faço desatarA minha fantasiaSó umBelo diaPois se jura, se esconjuraSe ama e se torturaSe tritura, se atura e se curaA dorNa orgiaDa luz do diaÉ só O que eu pediaUm dia pra aplacarMinha agoniaToda a sangriaTodo o venenoDe um pequeno diaSó umSanto diaPois se beija, se maltrataSe come e se mataSe arremata, se acata e se trataA dor Na orgia Da luz do diaÉ só o que eu pedia, viuUm dia pra aplacarMinha agoniaToda a sangriaTodo o venenoDe um pequeno dia

É notória a presença da repetição nessa letra, o que constitui um elemento relevante na composição. Além disso, a seqüência de verbos procura enfatizar aquilo que se pode praticar em um único dia. Observe que maior parte da seqüência é formada por verbos que denunciam a violência que impera na sociedade. Em termos de condição poética, um dos destaques revelados pela seqüência é que os verbos não seguem rigorosamente uma linha reta e lógica. Ou seja: a seqüência poderia ser alterada, sem afetar a signiÞ cação do texto.

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Ao contrário do raciocínio lógico, que tem que ter uma seqüência rígida, a voz poética criada por Chico Buarque tem a liberdade de dispor os verbos à sua vontade. A posição das palavras poderia ser trocada, o que não acontece num enunciado lógico que apresenta causa e efeito.

Esse mesmo procedimento poético aparece na seguinte canção “O índio”, de Caetano Veloso. Veja esses trechos:

Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante De uma estrela que virá numa velocidade estonteante E pousará no coração do hemisfério sul, na América, Num claro instante Depois de exterminada a última nação indígena E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas Das tecnologias (...) Um índio preservado em pleno corpo físicoEm todo sólido, todo gás e todo líquidoEm átomos, palavras, alma, cor, em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magníÞ co (...)

A temática dessa letra é uma notável utopia: o retorno de um índio, plenamente restaurado, depois de séculos de extermínio que o avanço do capitalismo provocou. Detendo-se, por enquanto, nas partes grifadas, observe que ninguém fala dessa forma nos diálogos diários. A seqüência de substantivos também é incomum e sem ordem previa estabelecida, uma vez que suas posições poderiam ser alternadas. É essa liberdade artística que o texto poético apresenta como uma das rupturas necessárias com o que é convencional.

PESQUISAR: Essa letra de Caetano Veloso faz referência a quatro nomes importantes: Mohamed Ali, Peri, Bruce Lee e Gandhi. Faça uma pesquisa na Internet sobre eles, para você ampliar os seus conhecimentos em história e literatura.

Observe agora, com muita calma, essa letra aparentemente irracional de Zé Ramalho:

Oh eu não sei se eram os antigos que diziamEm seus papiros Papillon já me diziaQue nas torturas toda carne se traiE normalmente, comumente, fatalmente, felizmente, displicentementeO nervo se contrai Com precisão

Nos aviões que vomitavam pára-quedasNas casamatas, casas vivas, caso morras,E nos delírios meus grilos temerO casamento, rompimento, sacramento, documento, como um passatempo

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Quero mais te ver Com aß ição

Meu treponema não é pálido nem viscosoOs meus gametas se agrupam no meu somE as querubinas meninas reverO compromisso, submisso, reboliço, no cortiço, chama o Padre Ciço para benzerCom devoção

Todas as seqüências grifadas revelam excessos de palavras que poderiam ser evitadas, uma vez que é impossível manter uma comunicação desse tipo, no imediatismo do cotidiano. Mas é pela insistência no excesso que a letra atinge o objetivo de uma linguagem estética. Note um recurso parecido, aproximando palavras pela semelhança sonora, no seguinte soneto satírico de Gregório de Matos:

Neste mundo é mais rico o que mais rapa.Quem mais limpo se faz, tem mais carepa.Com sua língua ao nobre o vil decepa.O Velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa.Quem tem mãos de agarrar, ligeiro trepa.Quem menos falar pode, mais increpa.Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A ß or baixa se inculca por tulipa.Bengala hoje na mão, ontem garlopa.Mais isento se mostra o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazo a tripaE mais não digo porque a Musa topaEm apa, epa, ipa, opa, upa.

Esse poema satírico faz uma crítica a Þ guras do nosso período colonial, estendendo-se daquele que fala da vida alheia à autoridade do Papa. No Þ nal, observe que o eu-lírico procede a um esvaziamento de sentido, pois a última seqüência nem sequer é formada por palavras. Será que você iria se comunicar com as pessoas através de seqüências sonoras sem sentido?

PESQUISAR: Esse poema de Gregório de Matos tem um vocabulário muito complexo. Destaque todas as palavras que você não conhece e vá procurar o sentido delas no dicionário. Assim, mais uma vez, você estará investindo em seu patrimônio intelectual.

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Como último exemplo dessas combinações tão diferentes de palavras, gostaria de lhe apresentar um trecho do conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa. O conto retrata a vida de um homem que, por várias maldades cometidas, é vítima de uma vingança: uma surra violentíssima que ele sofre de vários homens. Depois de anos de recuperação física, Augusto Matraga se muda para um lugar onde ele não quer ser mais reconhecido, o vilarejo do Tombador. Um dia, o vilarejo é inesperadamente visitado por um jagunço muito temido: Joãozinho Bem-Bem. Veja agora como o narrador descreve o jagunço:

(...) o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: seu Joãozinho Bem-Bem.

Obviamente, você sabe que não é necessário descrever o perÞ l de uma pessoa com nove qualiÞ cações, ainda mais com palavras compostas, o que seria muito difícil de pronunciar e seqüenciar na linguagem comum. O mais interessante desse trecho de Guimarães Rosa é a possibilidade de atingir a qualidade artístico utilizando palavras comuns, pois todos esses epítetos são clichês da linguagem sertaneja, da gíria popular. A diferença está no excesso do uso dessas expressões.

AGORA É SUA VEZ: Você está convidado a ler um texto muito especial: “A hora e vez de Augusto Matraga”. Ele faz parte do livro Sagarana, de Guimarães Rosa, e é um dos contos mais perfeitos que eu já li em toda a minha formação. Quer tentar? Garanto que você não vai se arrepender.

Com esses exemplos riquíssimos das combinações poéticas, concluímos essa primeira unidade.Resumindo: os três fundamentos da literatura que aqui apresentamos são intrinsicamente ligados, não podendo ser separados. A ruptura com o senso comum gera expressões ilógicas; as expressões ilógicas, fora dos padrões da linguagem convencional, são reveladas por combinações de palavras que causam estranheza nas pessoas. Aquele que tem gosto por arte e literatura deve amadurecer no sentido de identiÞ car esses três fundamentos em determinado texto, com o intuito de averiguar se ele pertence à arte literária ou não.

REFLITA: Transcreva para si mesmo a letra de alguma canção desses grupos de “forró” que estão tanto na moda: Calcinha Preta, Mastruz com Leite, Aviões do Forró etc. Analise se pelo menos alguma frase tem um sentido diferente do senso comum. Comente isso com seus amigos mais próximos, alunos e familiares.

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ATENÇÃO: Leve essa tarefa a sério: procure ler qualquer livro de Paulo Coelho, que é considerado um grande escritor da atualidade, e transcreva abaixo alguma frase dele que tenha consistência artística. Ora... você acha que isso é possível?

PESQUISAR: Procure ler para alguns amigos um trecho de alguma obra de Paulo Coelho e um soneto de Augusto dos Anjos. Em seguida, pergunte a eles qual é o mais estranho e por quê.

AGORA É SUA VEZ: Vá direto ao Eu, de Augusto dos Anjos, e leia mais de uma vez o poema “O morcego”. Em seguida, vá a um dicionário e procure ver a deÞ nição de “semântica”, para você entender o que é campo semântico e combinação poética de palavras.

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UNIDADE II

A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

A teoria literária faz uma classiÞ cação da literatura em três grandes gêneros: a) o gênero épico (ou narrativo); b) o gênero lírico; c) e o gênero dramático. Cada gênero tem sua própria conÞ guração, suas características, suas particularidades. Mas um determinado texto literário pode revelar características de mais de um gênero, como veremos logo adiante. Vejamos, nesse momento, como se faz a classiÞ cação:

2.1 O Gênero Épico

O gênero épico (também chamado de narrativo) é caracterizado por um conjunto de categorias, tais como: um narrador, um enredo, personagens, tempo, espaço, entre outras. Segundo uma concepção tradicional, toda narrativa é centrada em um enredo, ou seja, em alguma história Þ ctícia que é relatada ao leitor. Aquele que conta a história é o narrador, responsável pela transmissão dos conteúdos e pela escolha do ponto de vista. Os personagens são aqueles que vivenciam a ação no tempo e no espaço. Observe o seguinte comentário sobre o conto “Missa do galo”, de Machado de Assis:

Nogueira, jovem de dezessete anos, mora provisoriamente na casa de Conceição, segunda mulher de Meneses. Este costuma dormir fora de casa uma vez por semana, dizendo que vai ao teatro. Conceição Þ ca sabendo que o marido tem outra mulher, mas se acostuma com a idéia. Ela, de trinta anos, tem um temperamento moderado, sendo uma pessoa simpática. Numa noite de Natal, o marido vai ao teatro e Nogueira Þ ca lendo em seu quarto Os três mosqueteiros, enquanto aguarda a missa do galo. Às onze horas, Nogueira encontra-se com Conceição na sala escura da casa. Conversam sobre sono e paciência, romances lidos, assuntos simples. Achando que está aborrecendo Conceição, Nogueira quer ir logo à missa, mas ela não deixa. Conceição levanta-se, anda pela sala e ele passa a ter uma impressão mais sensual dela. O que passa a atrair Nogueira são os gestos sutis dela, despertando nele curiosidades e desejos. Ela chama a atenção pelos detalhes do corpo, como as mãos, os olhos, os dentes. Senta-se ao lado dele e ambos cochicham. A partir daí, não sente nela apenas uma pessoa simpática, mas lindíssima. Ele quer se levantar, mas ela não permite. Ela reclama dos quadros que tem em casa, que exibem mulheres; preferiria ter quadros de santas. Ela fala a Nogueira de suas devoções de moça e casos vividos na juventude. Depois Þ cam calados por um tempo e, em seguida, Nogueira é chamado lá fora por um amigo para a missa do galo. Na missa, ele só pensa em Conceição. No outro dia a encontra natural, sem nada de especial que lhe lembrasse as vésperas. Depois, não torna mais a vê-la.

Ora, quando você for fazer a leitura do conto, vai perceber que o principal aspecto do texto é o clima de desejos mútuos que se cria entre os dois, sem que nenhum dos dois parta para alguma ação concreta e comprometedora. Esta é

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a grande tensão gerada pelo narrador e vivida pelos personagens. O fato de o marido de Conceição ter uma mulher fora poderia servir de pretexto para ela ter algum caso amoroso com o jovem estudante. E o que se espera durante toda a leitura do conto é alguma forma de traição, pelo menos por alguns minutos. A tensão aumenta na medida em que Conceição mais se aproxima de Nogueira e estreita as relações de intimidade com ele. Mas nada de extraordinário acontece. E a ida do jovem para a missa do galo é a conÞ rmação das convenções, a vitória da ordem moral e do comedimento, ao invés do proibido que se espera a todo instante.

Machado de Assis, nesse conto, cria um enredo que gera uma expectativa e a esvazia. A transgressão esperada não chega a ocorrer. Tudo acaba dentro das atitudes mais aceitas pela moral social. O personagem Nogueira, por isso, que é o narrador em primeira pessoa, transmite ao leitor uma certa sensação de frustração.

Como se percebe, “Missa do galo” pertence ao gênero narrativo por preencher as condições básicas dessa forma literária. Esse mesmo enredo, entretanto, poderia ser passado ao leitor não através de um narrador, mas em forma de teatro, onde os personagens iriam agir de forma autônoma, sem necessidade de ninguém para relatar a história. A presença do narrador, portanto, é uma diferença fundamental entre o gênero narrativo e os demais gêneros.

ATENÇÃO: Você precisa ler os principais contos de Machado de Assis que estão indicados na bibliograÞ a. Machado de Assis destaca-se como o maior escritor brasileiro do século dezenove e um dos maiores de todos os tempos. Portanto, a leitura dos textos dele é fundamental para a formação de professores e alunos de Letras.

O OBJETIVO da literatura é criar novos sentidos pela arte, mas não levar as pessoas a imitar aquilo que se lê.

REFLITA: O que você faria se estivesse na situação de Nogueira? Você acha que a mulher traída tem o mesmo direito de trair o marido? Será que a mensagem do conto é essa?

2.2 O Gênero Lírico

Um texto lírico é o que chamamos modernamente de poesia. Ele não precisa ter nenhum narrador. Pode até ter um narrador e um enredo, mas não necessariamente. Isso signiÞ ca que o gênero lírico apresenta outras características. Ele se distingue por uma voz poética que é chamada de “eu-lírico”. Este não deve ser confundido com o eu do autor, mas entendido como uma voz Þ ctícia que emite sentimentos. A interioridade é o ponto distintivo do gênero lírico. Enquanto

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o gênero épico (ou narrativo) tende a relatar acontecimentos, o gênero lírico tende a manifestar o interior do ser humano. Trata-se da representação de sentimentos como o amor, o medo, a morte, a paixão, a alegria, a tristeza, a dor, o prazer, entre muitos. Assim, o eu-lírico pode até partir de algum fato histórico objetivo, mas o que vai predominar na sua voz é o sentimento em torno desse fato. Por exemplo, o Þ nal da Segunda Guerra Mundial, em 1945, é marcado pelas explosões atômicas sobre o Japão. Isso é um fato histórico concreto. Mas o poema abaixo, de Vinícius de Moraes, não está bem interessado em relatar o fato histórico, tal como ocorreu no Þ nal do conß ito. O principal objetivo dele é retratar a sensação de perdas irremediáveis e os efeitos terríveis deixados pela irradiação nuclear. Leia com bem calma o poema:

ROSA DE HIROXIMA

Pensem nas criançasmudas telepáticaspensem nas meninascegas inexataspensem nas mulheresrotas alteradaspensem nas feridas como rosas cálidasmas oh não se esqueçamda rosa da rosada rosa de Hiroximaa rosa hereditáriaa rosa radioativaestúpida e inválidaa rosa com cirrosea anti-rosa atômicasem cor sem perfumesem rosa sem nada

Existem duas teorias básicas, com posições diferentes, a respeito da condição do eu-lírico. Para a primeira teoria, o poema lírico é centrado em uma voz individual que exprime toda uma visão de mundo muito particular. Para a outra teoria, a voz do poema lírico não é jamais individual, mas produzida socialmente. Portanto, conforme essa segunda teoria, o lirismo é a expressão de sentimentos sociais, históricos, objetivos, por mais que eles assumam a aparência de algo individual. Tomando como base esse texto de Vinícius de Moraes, observamos que a preocupação do eu-lírico não é propriamente expressar o que ele tem em si, de problema particular, mas um sofrimento humano que vai muito além de qualquer indivíduo. Veja agora alguns fragmentos de Augusto dos Anjos, para averiguar se essa teoria se conÞ rma:

Como uma cascavel que se enroscava, A cidade dos lázaros dormia...Somente, na metrópole vazia,Minha cabeça autônoma pensava.

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Mordia-me a obsessão má de que haviaSob os meus pés, na terra em que pisava,Um fígado doente que sangrava E uma garganta de órfã que gemia.

Como se pode perceber, as duas teorias podem ser aproveitadas no seguinte sentido: a visão individual de mundo existe, prepondera no texto lírico, mas os seus valores são objetivos, ou seja, não escapam às imposições da história e das questões sociais. Essa contradição ocorre com qualquer texto lírico, pois a expressão individual também tem toda uma conotação social que não pode ser desprezada.

PESQUISAR: Você tem duas tarefas urgentes: a) Ler sobre o contexto da Segunda Guerra Mundial, especialmente sobre Hiroxima, para entender melhor as conseqüências da explosão atômica reveladas no poema de Vinícuis de Moraes; b) IdentiÞ car no mesmo poema o signiÞ cado da expressão “anti-rosa atômica”.

REFLITA: Por que Vinícius de Moraes não coloca nenhuma data no seu poema? Em que aspecto isso corresponde à natureza do gênero lírico?

Leia (sempre com calma) esses quartetos de Mário Quintana:

DA REALIDADE

O sumo bem só no ideal perdura...Ah! Quanta vez a vida nos revelaQue ‘a saudade da amada criatura’É bem melhor do que a presença dela...

DA AMIZADE ENTRE MULHERES

Dizem-se amigas... Beijam-se... Ms qual!Haverá quem nisso creia?Salvo se uma das duas, por sinal,For muito velha, ou muito feia...

DO EXERCÍCIO DA FILOSOFIA

Como o burrico mourejando à nora,A mente humana sempre as mesmas voltas dá...Tolice alguma nos ocorreráQue não a tenha dito um sábio grego outrora...

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DAS UTOPIAS

Se as coisas são inatingíveis... ora!Não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos, se não foraA presença distante das estrelas!

Mário Quintana Þ cou conhecido como “Poeta das coisas simples”. Essa alcunha se deve à predominância de temas triviais e de uma linguagem poética sem rebuscamento. Tal acessibilidade, conhecida como transparência semântica, conÞ rma-se em quase todos os seus textos líricos. Como você deve já ter precebido, vários versos apresentam um tom de crítica e deboche à hipocrisia humana; outros criticam a pretensão de originalidade intelectual; e todos combinam elementos clássicos (rimas, decassílabos, ritmo) com a concisão da poesia modernista, que prima muito por textos curtos. Mas, independentemente de o poema ser longo ou conciso, o que o insere no gênero lírico é a representação simbólica de sentimentos, sejam eles de origem pessoal ou social.

AGORA É SUA VEZ: Esses quartetos se encontram no livro Os melhores poemas de Mário Quintana. É um livro com poemas curtos e vários deles são irônicos e cômicos. Você precisa conhecer esse poeta desde já, como na leitura atenta do soneto abaixo:

Menininho doenteNa minha rua há um menininho doente.Enquanto os outros partem para a escola,Junto à janela, sonhadoramente,Ele ouve o sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro em frenteQue uma canção napolitana engrola.E pouco a pouco, gradativamente,O sofrimento que ele tem se evola...

Mas nesta rua há um operário triste.Não canta nada na manhã sonoraE o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente...E está compondo este soneto agora,Pra alminha boa do menino doente...”

A leitura do poema autoriza a interpretação de que o tema subjetivo da solidão infantil é a reß exão central do eu-lírico. A solidão não afeta exclusivamente a criança, uma vez que os adultos trabalham e não dispõem de tempo para a meditação sobre suas condições subjetivas e existenciais. O texto pode provocar uma discussão a respeito de uma grande divisão de trabalho

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no mundo capitalista: a desproporção entre a produção material e a produção de bens simbólicos. O operário citado nos tercetos tem apenas uma conotação simbólica, uma vez que se trata do próprio eu-lírico ou da representação de um poeta, o que exclui o sentido denotativo do trabalhador inserido na produção em série. Com isso, você está abrindo um novo campo de reß exões sobre a sua própria vida, na condição de aluno ou de professor.

REFLITA: Um dos quartetos de Mário Quintana tem por título “Das utopias”. Você já pensou para reß etir o signiÞ cado de uma utopia? Se já, o que signiÞ caria, no mundo atual, o conceito de utopia? O que seria, para você, um pensamento utópico?

Os poemas de Mário Quintana revelam frases sarcásticas. momentos de nostalgia, sem padrão rígido e modelar. A trivialidade temática não exclui temas tão importantes no mundo moderno como a solidão pessoal e, sobretudo, a solidão social nas cidades grandes, onde milhões de pessoas são renegadas, têm uma vida muito expolorada e têm constantemente um sentimento de insigniÞ cância. Além disso, Mário Quintana tem um estilo heterogêneo que contempla versos em branco e, como vimos, também decassílabos clássicos. Sua poética, portanto, é fascinante por ser múltipla, abrangendo várias formas, como a produção de sonetos e poemas curtos com versos de feição modernista. Ele procura combinar o mais tradicional com o mais moderno, o que resulta em uma mistura muito singular de traços românticos, como a nostalgia e a solidão, com temas mais cruciais do século vinte, como a violência das metrópoles.

2.3 O Gênero Dramático

O gênero dramático é aquele feito para ser encenado no teatro. A palavra “dramático” provém de “drama”, que signiÞ ca “ação”. Assim, o sentido desse gênero é fundamentado na ação direta do personagem, que não requer nenhum narrador para o relato. Outro fundamento do texto dramático são os diálogos entre os personagens, como nessa passagem do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna:

João Grilo – (...) Eu me lembro de que uma vez, quando Padre João estava me ensinando catecismo, leu um pedaço do Evangelho. Lá se dizia que ninguém sabe o dia e a hora em que o dia do Juízo será, nem homem, nem os anjos que estão no céu, sem o Filho. Somente o Pai é que sabe. Está escrito lá assim mesmo?

Manuel – Está. É no Evangelho de São Marcos, capítulo treze, versículo trinta e dois.

João Grilo – Isso é que é conhecer a Bíblia! O Senhor é protestante?

Manuel – Sou não, João, sou católico.

João Grilo – Pois na minha terra, quando a gente vê uma pessoa boa e que entende de Bíblia, vai ver é protestante. Bom, se o senhor não faz objeção,

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minha pergunta é esta. Em que dia vai acontecer sua segunda ida ao mundo?

Manuel – João, isso é um grande mistério. É claro que eu sei, mas ninguém entenderia nada, se eu explicasse. Nem posso explicar nada agora, porque você vai voltar e isso faz parte de minha vida íntima com meu Pai.

Veja que o diálogo entre João Grilo e Jesus não precisa ser apresentado por um narrador. É como se os dois estivessem no palco e falassem diretamente um ao outro, sem ninguém para mediar as suas ações. Mas Ariano Suassuna cria, além dos personagens propriamente do enredo, a Þ gura do Palhaço, que desempenha várias funções artísticas, entre elas a de intervir nas cenas para as devidas mudanças de cenário e continuidade dos acontecimentos. Observe as passagens que destacamos abaixo, todas pertencentes à fala do Palhaço:

I – Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade.

II – A intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da misericórdia. Auto da Compadecida!

III – Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades.

Pode-se concluir que as duas primeiras passagens fazem anúncio antecipado do enredo e a terceira é uma reß exão sobre o mundanismo da Igreja. Elas oscilam entre a gravidade do pecado, a severidade da punição divina e a vitória Þ nal da misericórdia sobre o mal. Apenas a terceira diz respeito à autoria da peça, cuja temática, de inß uência erudita, é baseada no espírito da cultura popular.

Veja agora um comentário sobre a peça O pagador de promessas, de Dias Gomes, para você veriÞ car os traços do gênero dramático. O enredo que você vai conhecer agora poderia lhe chegar através de um texto narrativo, ou seja, de um texto que apresentasse uma voz contando a história. No entanto, todas as informações que você vai ler chegam, originalmente, através das ações diretas dos personagens. Preste atenção ao seguinte relato:

Zé do Burro, um homem simples de uma cidade pequena da grande Salvador, faz uma promessa e quer pagá-la com uma cruz a ser depositada na Igreja de Santa Bárbara, na capital da Bahia. Anda quarenta e dois quilômetros com a esposa, Rosa, para essa tarefa. Rosa não agüenta passar a madrugada na porta da Igreja e é atraída por Bonitão, um explorador de mulheres, para um “hotel”. Quando a Igreja se abre pela manhã, o Padre Olavo se opõe a Zé do Burro e não permite que ele entre carregando a cruz. A essa altura, Rosa já tem traído Zé do Burro com Bonitão. Zé do Burro, ao saber da traição, entra em conß ito com a esposa, prometendo-lhe um ajuste em casa, mas não se desfaz da promessa. Bonitão arranja motivos para chamar a polícia para o local. Várias pessoas,

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de grupos sociais diferentes, vão chegando para o local. Num conß ito que se desencadeia, Zé do Burro é assassinado pela polícia, amarrado na cruz por uns lutadores de capoeira e colocado no altar de Santa Bárbara, à semelhança de Cristo.

Ora, o conjunto de fatos aí citados constitui o enredo da peça. Mas este enredo é desenvolvido em ação concreta, sem narrador. Portanto, a diferença entre o texto dramático e o narrativo não é o enredo, mas a predominância quase absoluta dos diálogos. São os diálogos que encaminham a retratação da intransigência da Igreja, representada pelo Padre Olavo, que não defende o diálogo da Igreja com as tradições afroculturais. Zé do Burro representa a mentalidade arcaica de religiosos cristãos à margem da Igreja, o que Þ ca patente na ingenuidade dele. Há um conß ito entre o ecletismo religioso e a ortodoxia católica, o que não resulta em entendimento harmônico. Nesse sentido, os diálogos são importantíssimos para acentuar o desentendimento entre o Padre e Zé do Burro. Um jornalista também tenta se aproveitar da situação para fazer matéria sensacionalista. Assim, a presença da imprensa, que capitaliza o acontecimento como um “furo” jornalístico a serviço da informação transparente da verdade, é pura mentira. A presença de tipos populares da Bahia como prostitutas, poetas cordelistas, negras do acarajé, lutadores de capoeira, oferece um panorama da situação social de Salvador. Mas jamais teríamos esse quadro social, na peça, se não fossem os diálogos entre os personagens mais variados. A intenção política de Dias Gomes não é atacar apenas a Igreja católica, mas vários segmentos sociais que são ß agrados em torno da questão de Zé do Burro. Essa estratégia artística corresponde à ausência de maniqueísmo, superando a visão ingênua da relação entre o bem e o mal. Podemos interpretar a ação de Zé do Burro como um ato simbólico de sacrifício humano, uma vez que há perda de vida em função de ideais religiosos. O percurso sacriÞ cial dele é muito relevante na simbologia do texto, uma vez que seu deslocamento com a cruz nas costas lembra uma passagem fundamental dos ensinamentos evangélicos. Para o padre, entretanto, o que Zé do Burro faz é heresia, pois a visão oÞ cial da Igreja é a única que deve valer. Dias Gomes consegue congregar na peça tendências as mais diversas, como elementos trágicos misturados a elementos cômicos, elaboração erudita e cultura popular, linguagem coloquial e linguagem formal, facilidade de assimilação e simbologia complexa. Zé do Burro é vítima de falsas interpretações ao longo do enredo, o que convém às necessidades de cada acusador. Esse processo de criação de estereótipos Þ ca evidente na passagem em que o jornalista o chama de “revolucionário”, homem que luta contra o capitalismo, baseado nas idéias do socialismo. Dedé Cospe-Rima, o cordelista, vê em Zé do Burro um representante ideal da cultura popular, um herói adequado para o seu cordel, que se baseia em fontes recolhidas nas ruas. O Padre, ao saber que Zé do Burro benzera sua cruz em um terreiro, considera isso uma profanação inadmissível pela consciência católica centrada em Cristo e nos santos canonizados pela Igreja, daí sua rejeição a Iansã. Os lutadores de capoeira defendem Zé do Burro por causa de sua simpatia à fé popular mais ingênua e eclética, Þ cando a favor das práticas religiosas dos terreiros de Salvador. Rosa vê em seu marido um intransigente, sendo este o principal motivo de aceitar as ofertas de Bonitão, sem perceber que vai ser prostituída.

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Mas... é bom reß etir mais uma vez... Por que essa peça de Dias Gomes pertence ao gênero dramático e não narrativo? Isso se dá por causa da sua estrutura dialogal. Todo o conß ito entre o protagonista e o mundo externo chega ao leitor pelos atos dos personagens. A intolerância entre Zé do Burro e Padre Olavo é um recurso dramático que concorre para o efeito de aumento das tensões do enredo, o que cresce na medida em que Zé do Burro não desiste de sua promessa e o Padre Olavo também não abre mão de suas convicções religiosas. Antes do desfecho, vão ocorrendo uns fatos que aumentam a tensão da peça. Por exemplo, o “secreta”, um espião a serviço da polícia, intervém no conß ito em frente à Igreja para prejudicar Zé do Burro. Bonitão manipula o “secreta” para causar tumultos e justiÞ car a prisão do camponês. O jornalista caracteriza o pagador de promessas como a favor da reforma agrária. O Padre Olavo não procede a nenhuma reß exão crítica de seus procedimentos. E alguns tipos populares têm simpatia pela causa de Zé do Burro, Þ cando contra o Padre e contra a polícia. No Þ nal, o desfecho da peça pode ser compreendido como um martírio típico do cristianismo primitivo, mas não é reconhecido pelas autoridades clericais. Fica clara a utilização da tirania – abuso de poder – pela polícia, quando age contra as classes sociais mais simples. Há, no Þ nal de tudo, uma aliança sutil entre o Estado e a Igreja para aniquilarem inimigos comuns, considerados perturbadores da ordem estabelecida.

PESQUISAR: Você deve consultar no dicionário o signiÞ cado de todas as palavras grifadas acima, para aperfeiçoar seu vocabulário.

Veja agora essa cena muito especial do Auto da Compadecida, para entender melhor o gênero dramático. Após a procissão e a missa em latim para o enterro do cachorro, o Palhaço faz a seguinte intervenção:

Palhaço – Muito bem, muito bem, muito bem. Assim se conseguem as coisas neste mundo. E agora, enquanto Xaréu se enterra ‘em latim’, imaginemos o que se passa na cidade. Antônio Morais saiu furioso com o padre e acaba de ter uma longa conferência com o bispo a esse respeito. Este, que está inspecionando a sua diocese, tem que atender a inúmeras conveniências. Em primeiro lugar, não pode desprestigiar a Igreja, que o padre, aÞ nal de contas, representa na paróquia. Mas tem também que pensar em certas conjunturas e transigências, pois Antônio Morais é dono de todas as minas da região e é um homem poderoso, tendo enriquecido fortemente o patrimônio que herdou, o que já era grande, durante a guerra, em que o comércio de minérios esteve no auge. De modo que lá vem o bispo. Peço todo silêncio e respeito do auditório, porque a grande Þ gura que se aproxima é, além de bispo, um grande administrador e político. Sou o primeiro a me curvar diante deste grande príncipe da Igreja, prestando-lhe minhas mais carinhosas homenagens.

Esta longa fala pode ser interpretada de várias formas. Por exemplo, o Palhaço exerce o papel de um narrador camuß ado, uma vez que o texto dramático não tem propriamente narrador e é ele que preenche essa lacuna nos momentos de

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apresentação, mudança e encaminhamento das cenas. As informações veiculadas pelo Palhaço contribuem para um efeito fundamental da estrutura do gênero dramático: a economia de meios. O Palhaço emite juízo, ainda que breve, sobre as contradições da vida social do bispo, submetido a obrigações sacerdotais que visam à autoconservação da Igreja e ao mesmo tempo agindo dentro de conveniências diante do poder econômico da região. O Palhaço comporta-se de forma humilde diante da passagem do bispo, o que não deixa de ter ressonâncias irônicas. O Palhaço tem participação ativa no conteúdo do texto e na apreciação crítica da realidade.

Você deve se lembrar que no Auto da Compadecida ocorre um julgamento para saber se as pessoas vão para o inferno, para o purgatório ou diretamente para o céu. Na cena que precede o julgamento, ocorrem os assassinatos do Bispo, do Padre, do Sacristão, do Padeiro e a Mulher, de Severino de Aracaju, do Cangaceiro e de João Grilo. Sucede, então, nova intervenção do Palhaço:

Palhaço – Peço desculpas ao distinto público que teve de assistir a essa pequena carniÞ cina, mas ela era necessária ao desenrolar da história. Agora a cena vai mudar um pouco. João, levante-se a ajude a mudar o cenário. Chicó! Chame os outros.

Chicó – Os defuntos também?

Palhaço – Também.

Chicó – Senhor Bispo, Senhor Padre, Senhor Padeiro! (Aparecem todos.)

Palhaço – É preciso mudar o cenário, para a cena do julgamento de vocês. Tragam o trono de Nosso Senhor! Agora a igreja vai servir de entrada para o céu e para o purgatório. O distinto público não se espante ao ver, nas cenas seguintes, dois demônios vestidos de vaqueiro, pois isso decorre de uma cena comum no sertão do Nordeste. (É claro que essas falas serão cortadas ou adaptadas pelo encenador, de acordo com a montagem que se Þ zer.) Agora os mortos. Quem estava morto?

Bispo – Eu.

Palhaço – Deite-se ali.

Padre – Eu também.

Palhaço – Deite-se junto dele. Quem mais?

João Grilo – Eu, o padeiro, a mulher, o sacristão, Severino e o cabra.

Palhaço – Deitem-se todos e morram.

João Grilo – Um momento.

Palhaço – Homem, morra, que o espetáculo precisa continuar!

João Grilo – Espere, quer mandar no meu morredor?

Palhaço – O que é que você quer?

João Grilo – Já que tenho de Þ car aqui morto, quero pelo menos Þ car longe do sacristão.

Palhaço – Pois Þ que. Deite-se ali. E você, Chicó?

Chicó – Eu escapei. Estava na igreja, rezando pela alma de João Grilo.

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Essas intervenções do Palhaço servem para evidenciar que toda a peça é um artifício estético. O Þ ngimento artístico tem primazia sobre a realidade histórica, pois esta é apenas um referencial que o teatro não consegue reproduzir integralmente, mas apenas alguns aspectos recriados em forma Þ ccional. O Palhaço distribui os papéis e as funções e promove a continuidade da peça, funcionando como uma espécie de autor Þ ctício da obra. O enredo é constituído de um conjunto de cenas que têm um desenvolvimento descontínuo, ou seja, sofre interrupções do Palhaço, o que caracteriza uma reß exão sobre a própria montagem da peça. Vários planos da peça se cruzam e se confundem, como o fato de Chicó estar vivo entre os mortos que serão imediatamente julgados e aÞ rmar que estava rezando pela alma do amigo.

ATENÇÃO: No Auto da Compadecida, o Palhaço apenas faz papel de narrador, mas não é um narrador propriamente dito, como aparece no texto narrativo. A diferença é que o Palhaço fala diretamente ao público e vive ações diretas junto com os outros personagens.

AGORA É SUA VEZ: Leia o primeiro texto do livro de Anatol Rosenfeld, indicado na bibliograÞ a, para você entender a diferença de tempo nos gêneros literários.

REFLITA: Preste atenção às três proposições abaixo:

I. Num texto dramático como o Auto da Compadecida, não existe propriamente um narrador, mas rubricas (informações entre parênteses) que situam o leitor entre os fatos e a evolução das cenas

II. Nos textos poéticos de Mário Quintana, o eu-lírico é uma voz Þ ctícia que simboliza a expressão de sentimentos como saudade, nostalgia, tristeza, solidão, entre outros, mas essa voz não é o pronunciamento real do autor sobre sua realidade particular

III. Num texto narrativo como os contos de Machado de Assis, o narrador é de importância central, pois provêm dele as informações a que o leitor tem acesso

O principal OBJETIVO deste estudo é levar você a diferenciar os gêneros literários. Para demonstrar conhecimento já adquirido, tente identiÞ car o gênero do texto abaixo.

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Janelas abertas Nº2

(Caetano Veloso)

Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentroPercorrer correndo, corredores em silêncio Perder as paredes aparentes do edifícioPenetrar no labirinto O labirinto de labirintos dentro do apartamento

Sim, eu poderia procurar por dentro a casaCruzar uma por uma as sete portas, as sete moradasNa sala receber o beijo frio em minha boca Beijo de uma deusa morta Deus morto, fêmea, língua gelada, língua gelada como nada

Sim, eu poderia em cada quarto rever a mobília Em cada um matar um membro da família Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia O que aconteceria de qualquer jeito

Mas eu preÞ ro abrir as janelas Pra que entrem todos os insetos

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UNIDADE III

A ESPECIFIDADE DO GÊNERO NARRATIVO

Diferente do gênero lírico e do dramático, o texto narrativo necessariamente tem um narrador: aquela voz responsável pela enunciação e pelo encaminhamento dos fatos relatados. O narrador pode ser o próprio personagem central (primeira pessoa) ou alguma voz de fora que não se envolve com o enredo (terceira pessoa). A compreensão desse fenômeno é fundamental para situar as demais categorias da narrativa, como tempo, espaço, ação, personagem, enredo, pois todos estão subordinados à forma como o narrador os apresenta, descreve e relata. Para você ter uma visão mais clara desse fundamento teórico, nada melhor que ler um texto narrativo. Escolhemos para você o conto “A cartomante”, de Machado de Assis. Em seguida são feitos uns comentários como forma de facilitar a compreensão. Mas ATENÇÃO: você é que tem que desenvolver suas próprias habilidades para ler, interpretar e saber comentar criticamente um texto literário. Os comentários que vamos indicar são apenas pontos de partida para uma leitura mais original que você mesmo deve fazer.

AGORA É SUA VEZ: Leia com bastante calma o conto “A cartomante” e procure identiÞ car nele os principais elementos que constituem um texto narrativo.

A cartomante

Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa Þ losoÞ a. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou- as, e no Þ m declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...

- Errou! interrompeu Camilo, rindo.

- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e Þ xo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse

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algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois..

- Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

- Onde é a casa?

- Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

- Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e Þ cou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda aÞ rmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

- É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca Þ na e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida

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moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em

volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; - ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as coisas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele Þ cou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A conÞ ança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérÞ do, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconÞ ada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a conÞ ança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

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Nem por isso Camilo Þ cou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconÞ ado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a conÞ dência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era conÞ rmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacriÞ cando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, aÞ gurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas com a notícia da véspera.

- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, -repetia ele com os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vitela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria conÞ rmar o resto.

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, Þ xas; ou então, - o que era ainda pior, - eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

- Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no Þ m da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que

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caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No Þ m de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, Þ cava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para Þ tar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

-Anda! agora! empurra! vá! vá!

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: ‘’Vem,já,já...’’ E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários, e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe

dentro: “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a Þ losoÞ a...” Que perdia ele, se...?

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enÞ ou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:

- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...

Camilo, maravilhado, fez um gesto aÞ rmativo.

- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...

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-A mim e a ela, explicou vivamente ele.

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos Þ nos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

- As cartas dizem-me...

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.

- A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.

- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas Þ leiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

- Passas custam dinheiro, disse ele aÞ nal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?

- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. .

- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que Þ zera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga

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assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e aÞ rmativas, a exortação: - Vá, vá, ragazzo innamorato; e no Þ m, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço inÞ nito, e teve assim

uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou aporta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: - ao fundo, sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola,e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

REFLITA: Leia agora informações e comentários sobre Machado de Assis e sua obra.

3.2 Machado de Assis(1839-1908)

Machado de Assis continua sendo considerado o maior escritor da literatura brasileira. Apesar de pertencer, inicialmente, ao Romantismo, acabou optando pelo Realismo, com os seus romances da maturidade: Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Barba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Tem ainda uma larga produção que envolve teatro,crônicas, poesia e contos, deÞ nindo-se, assim, como um autor de vários gêneros.

Os contos de Machado de Assis são tão representativos quanto os seus romances da fase madura. Abrangem inúmeros temas, o que não é tão comum para a sua época. No século dezenove, a literatura brasileira não tinha uma tradição de contos signiÞ cativa. Machado é o primeiro grande contista brasileiro, abrindo um caminho que será seguido depois por outros. Após um breve comentário sobre “A cartomante”, apresentamos o resumo de outros contos e algumas dicas que devem elucidar a compreensão dos textos.

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Comentário

Machado de Assis, entre outros aspectos, enfoca a fragilidade da chamada “racionalidade humana”. Ele desfaz o mito do homem comedido, seguro pela razão, como se idealizava no século dezenove. Ora, Rita e Camilo, no momento de consulta à velha, estão tão agitados, tão confusos, tão sensíveis, que não percebem que a cartomante, suposta sábia e conhecedora das coisas, só lhes diz coisas óbvias. Não há nada de extraordinário e de realmente importante nas palavras da velha. Mas os dois amantes associam cada palavra dela a previsões excepcionais, o que é uma grande ironia. Observe que Camilo não. crê em nada de mistério, mas, sentindo-se ameaçado, é vítima de crendices da infância, lembradas a contragosto. Trata-se do medo, do horror à morte, que leva a essas camadas psicológicas profundas do ser humano, relativizando ao máximo a atuação da consciência racional. E nada do que a velha diz para tranqüilizá-los se conÞ rma. Eles são tranqüilizados pela superstição, o que é outra grande ironia. E com isso perdem até o medo, as suspeitas, o que poderia, instintivamente, levá-los a algum gesto de defesa. É como se eles recuperassem a racionalidade e o equilíbrio pela superstição, o que é inteiramente paradoxal e ridículo, em nada compatível com a realidade. Essa confusão entre razão e loucura, tensão mortal e falso alívio, tudo gerado por paixões proibidas. é um dos temas prediletos de Machado de Assis. É o que ocorre em Quincas Borba, Dom Casmurro e outros contos, como “O relógio de ouro”.

AGORA É SUA VEZ: Leia com atenção os resumos e comentários abaixo, mas só depois de ler os próprios contos de Machado de Assis.

ATENÇÃO: Nunca se limite a ler resumos das obras literárias. O ideal é ir ao texto diretamente! Os resumos e comentários servem apenas como explicações e pontos de partida para alguma análise.

SUGESTÕES DE LEITURA: Resumos e comentários de alguns contos de Machado de Assis

“A Igreja do Diabo”

O Diabo tem a idéia de fundar uma igreja. Cansado de desorganização e obscuridade,quer uma igreja com cânone, hinos, novena, rituais, todo o aparelho eclesiástico. E uma igreja que seja unida, sem divisões, para ser mais forte que todas as existentes. Tem certeza de que seduzirá as pessoas e em breve esvaziará o céu. Comunica suas intenções a Deus, que o chama de retórico e vulgar. Deus quer saber por que o Diabo só agora está pensando em se organizar. O Diabo fala de “negócios mais altos”, ou seja, promessas mais sedutoras que as de todas as religiões, como, por exemplo, a inversão das virtudes. Eis as promessas do Diabo:

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as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Ele confessa aos homens, em suas pregações, que é o Diabo, para que ninguém tenha mais medo ou faça imagem distorcida dele. Assim, multidões vão ao Diabo e seguem os seus princípios:

a) substituição das virtudes aceitas;b) reabilitação da soberba, da luxúria e da preguiça;é) valorização da avareza, mãe da economia;d) defesa da ira e da gula, virtudes superiores;e) substituição da vinha do Senhor pela vinha do Diabo, fruto das mais belas

cepas do mundo;f) prática da inveja, principal virtude, origem de inÞ nitas prosperidades;g) amor às coisas perversas;h) valorização da fraude, braço esquerdo do homem;i) legitimação da venalidade, direito superior a todos os direitos;j) combate ao perdão, à brandura e à cordialidade;I) prática da calúnia mediante retribuição;m) condenação de todas as formas de respeito;n) abolição de toda a solidariedade humana;o) amor às damas alheias: única forma permitida de amor ao próximo.

Essa nova doutrina se propaga e logo o Diabo triunfa. Mas um dia ele faz uma descoberta chocante: as pessoas, às escondidas, estavam praticando as antigas virtudes. O Diabo vê que ainda precisa conhecer bem o mal. Sem compreender de todo o fenômeno, recorre a Deus e lhe relata os fatos. E Deus lhe explica que o que está acontecendo faz parte da eterna contradição humana.

Comentário

“A igreja do Diabo” é um conto que não aceita o maniqueísmo cristão. Não existem pessoas exclusivamente boas ou exclusivamente más. Virtudes e pecados se cruzam, se confundem e fazem parte da ação das pessoas. que agem conforme interesses, circunstâncias etc. Machado de Assis não tem intenção de criar uma fábula moralista, até mesmo porque a conclusão do conto é contraditória. No entanto, ao dar relevância à “eterna contradição humana”, ele mais uma vez é cético e negativista, sem acreditar em mudanças qualitativas no homem. O conto tem conteúdo Þ losóÞ co, é pessimista, querendo mostrar que a história do homem não tem solução nenhuma. Ainda mais, o narrador tem intenção universalista: ao invés de examinar os fatos em sua particularidade histórica, ou seja, em seu contexto social, dando maior relevância à sociedade, ele só vê as contradições nas “pessoas”, individualizando os casos, como se tudo fosse uma questão apenas de opção pessoal Nesse sentido, ele reforça o velho livre arbítrio do cristianismo. Mas essa aparente incoerência do escritor tem um sentido: não é ele propriamente que está contando a saga do Diabo, mas um velho manuscrito beneditino, corno.é dito logo na primeira página do conto. Com isso, consegue livrar-se de críticas e atribuir a responsabilidade dos ensinamentos da fábula a elementos da própria Igreja.

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3.2.1 Características Gerais Dos Contos De Machado De Assis

I. Críticas Ao Romantismo

No conto ‘’Noite de almirante”, ocorre uma ridicularização do amor idealizado e a mulher que age por interesse e com personalidade maligna. Há a critica à inocência e à falta de senso crítico do protagonista. Há também a quebra da imagem da mulher perfeita e do amor como puro valor espiritual, acima de todas as questões materiais. É a paródia de um tema comum ao Romantismo: o pacto da. eterna Þ delidade, como acontece em A moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo, na aliança Þ rmada, desde a infãncia, entre Augusto e Carolina. Em “O espelho”, Jacobina diz: “A melhor deÞ nição de amor não vale um beijo de moça namorada”. Ou seja: importante é praticar o amor, não apenas sentir ou Þ car deÞ nindo e especulando em sonhos. Isso contraria os românticos, sobretudo os da fase byroniana, que acreditavam num amor platônico e fantasiado.

“A igreja do Diabo” é um conto de conteúdo anticristão. A defesa dos males é acompanhada de princípios lógicos, como se as pessoas pudessem agir de qualquer forma e com naturalidade. É a destruição dos personagens delicados, gentis e comedidos do Romantismo. Aliás, a escola romântica tem muita inß uência cristã, porque a fuga para o passado, imitando os europeus que queriam voltar à Idade Média, quer reaver asrajzes brasileiras, misturando indianismo com a formação católica do Brasil.

II. Passagem do Singular para O Universal

Isso se dá da seguinte forma: ocorre um certo caso particular, muito deÞ nido e num contexto bem especíÞ co. No entanto, o escritor procura extrair desse caso algumas características comuns ao ser humano em geral, como se aquele caso particular pudesse ocorrer em qualquer lugar, em qualquer tempo. Essa é uma das características centrais de Machado de Assis.

No conto “O enfermeiro”, Procópio, depois de matar o Coronel, cria coragem para ver o velho e ouve “a eterna palavra dos séculos”: “Cairo, que Þ zeste de teu irmão?”. Ao comparar fatos de épocas bem diferentes, o autor procura identiÞ car algo em comum entre os acontecimentos, mostrando que a perseguição do sentimento de culpa independe de épocas históricas.

Em “Um apóIogo”, todo o diálogo entre a agulha e a linha é para ilustrar a conclusão de que uns abrem caminho a vida inteira para outros passarem. É a desigualdade que está em jogo, o que pode ser lido como metáfora de todas as sociedades e relações exploradoras até hoje.

Em “O espelho”, Jacobina diz que os amigos estão curiosos para ouvirem seu relato e vê nisso uma tendência universal do homem:”Santa curiosidade! tu és não só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia”.

Em “A cartomante”, Camilo recebe de Rita um cartão sem muita importância. Camilo, entretanto, não tira os olhos dele. E o procedimento do narrador é no sentido de generalizar a questão: “Palavras vulgares;mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça,

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em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam”. Nos comentários sobre as cartas anônimas, aparecem frases que poderiam ser destacadas do texto e lidas em qualquer circunstância, como as famosas declarações das tragédias de Shakespeare. Aliás, o conto começa exatamente com um dos pensamentos mais conhecidos de Hamlet: “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa Þ losoÞ a”. É preciso Þ car atento ao fato de que os motivos centrais da tragédia, como dúvida, traição, mistério, ambigüidade, são retrabalhados no conto de Machado de Assis, mantendo sua validade universal.

III. Tensão Psicológica dos Personagens

A tensão psicológica pode ter várias origens: a) o que se passa entre as normas estabelecidas e a transgressão; b) o momento entre um objetivo e a realização dele; c) confusões que geram sentimento de culpa e trazem ameaça à situação normal dos personagens. Seja como for, a tensão é sempre o que ocorre entre a ruptura com aquilo que é jugado certo e a reação que pode vir dessa ruptura.

Maior parte da “Missa do galo” e de “A cartomante” é de tensões. No primeiro, há o conß ito entre a hora de ir à missa, o prazer gerado pela conversa com a mulher e a possibilidade de ter alguma relação íntima com a dona da casa. A mulher, casada, está dentro das normas sociais; a missa é uma convenção muito séria, ainda mais a do galo, que só ocorre uma vez por ano; mas a conversa com a mulher, que pode derivar para a intimidade sexual, poderia quebrar a norma do casamento e a Þ delidade ao ritual da Igreja.

Já Camilo tem um comportamento muito tenso: ora está seguro, ora está andando na sombra da morte. Isso cria um clima de permanente conß ito, sendo tudo reforçado por sentidos duplos e vagos, o que quebra todas as certezas dos personagens.

IV. Ironia

A ironia é, basicamente, uma inversão proposital de sentidos. AÞ rma-se algo querendo se dizer o oposto. Visando a alguma forma de crítica ou sarcasmo, a ironia machadiana, uma das maiores características de sua obra, aparece de várias formas:

a) por pistas e antecipações falsas

Ao contar à esposa de Fortunato que ele cuidou, sem interesse, do ferido, Garcia, em “A causa secreta”, dá a entender que Fortunato é muito Þ lantrópico e solidário. O leitor também Þ ca com essa impressão. Só depois, ao longo do conto, é que Þ camos sabendo do sadismo e da perversão de Fortunato: sua frieza cientiÞ cista no ato de dissecação dos ratos. Desse choque de contrastes é que se instaura a ironia.

Em “Pai contra mãe”, as amigas de Clara não negam a gentileza de Cândido Neves, “nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes”. Ora, Cândido

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não tem virtude alguma, não se adapta a nenhuma proÞ ssão e se revela, no Þ nal, um crudelíssimo perseguidor de escravos fugidios. Mas as opiniões das amigas de Clara vêm antes da revelação Þ nal de Cândido e o choque com o que ocorre depois é que produz o efeito irônico.

Em “O enfermeiro”, o primeiro encontro entre Procópio e o Coronel é resumido assim: “(...) a minha resposta deu uma melhor idéia do coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias”. Nada disso, a partir daí, se conÞ rma. O Coronel Felisberto é insuportável e Procópio o mata.

“Noite de almirante” e “Umas férias” já têm ironia no próprio título. A introdução dos contos é de um entusiasmo enorme para os personagens, caindo violentamente depois. Deolindo, no primeiro, é traído e humilhado por Genoveva; no segundo, as “férias” acabam sendo na escola: com horror do clima sombrio de casa, que se instaura com a morte do pai, as crianças, liberadas das aulas e felizes por isso, acabam tendo saudade da escola. As “férias”, portanto, são os estudos.

b) através do humor negro

O primeiro parágrafo de “Pai contra mãe” é a descrição dos instrumentos da escravidão. O narrador não se limitar a descrever, pontuar, constatar. Ele investe em opiniões radicais, tentando naturalizar a.violência da escravidão e, com isso, justiÞ car o que ele mesmo chama de “grotesco”. É como se a violência dos senhores fosse um mal necessário e inevitável para se atingir a “ordem”. Ordem que não precisa de deÞ nição ou esclarecimento. Ordem que é ordem e pronto. Isso não quer dizer que o narrador seja a favor da escravidão e das torturas. Ao contrário: ele procura representar a mentalidade dos escravistas: “Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada”. Na cena de casamento de Cândido Neves com Clara, o narrador comenta com humor negro o sofrimento e a pobreza da casa da Tia Mônica: “A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço”. Cândido é cristão e perseguidor de escravos ao mesmo tempo: “- Deus não me abandona. e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste. Muitos entregam-se logo”. A proÞ ssão violenta de Cândido nega todos os atributos de Deus: amor, paz, proteção, salvação etc. Na descrição que o narrador faz do trabalho de Cândido Neves: “(...) perdera já o ofício de entalhador(...) abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um novo encanto. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência e um pedaço de corda”, ele nivela propositalmente tudo, como se paciência e corda, por exemplo, fossem bens morais e tivessem a mesma qualidade. Ora, a paciência é um bem espiritual do homem, algo que se adquire com educação para tolerância e Þ ns elevados. Isso é incompatível com a corda, instrumento de captura de escravos. A ironia, portanto, está nessa contradição.

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c) através dos nomes

Em Machado de Assis, é freqüente o seguinte: nomes dos personagens não condizem com os atos deles; nomes de lugares são o oposto ou a negação do que ocorre lá. Pelo descompasso entre uma coisa e outra, produz-se a ironia. É uma ironia muito sutil, que exige às vezes atenção dobrada para ser identiÞ cada. Por exemplo, Cândido é sinônimo de brando, dócil, delicado; Neves e Clara remetem para o branco, a pureza, e no entanto vivem de caçar pessoas. Mesmo que Neves remeta para frieza, não combina com Cândido. Além disso, a escrava é capturada na Rua da Ajuda; ela está grávida e Cândido, à procura dela, passa pela Rua do Parto. Mas o resultado do arrastão é o aborto. .

Em “O enfermeiro”, o Coronel, extremamente depressivo, mal-humorado e rejeitado por todos na cidade, chama-se Felisberto. Em “Noite de almirante”, o nome Deolindo pode desdobrar-se, possivelmente, em dois: Deus e lindo. Nem por isso deixa de ser traído por Genoveva, que é o nome de uma santa que, segundo a tradição católica, casou-se com Deus e dedicou toda a sua vida a ele. O conto, no entanto, é sobre uma mulher que não espera o noivo, que é marinheiro, voltar e se casa com outro, apesar da promessa inicial de ser absolutamente Þ el a ele.

Em “A cartomante”, o principal lugar é a Rua da Velha Guarda, onde Þ ca a casa da cartomante. O nome da rua, sutilmente, remete para a velha Guarda Imperial, ao mesmo tempo em que se refere à “velha” enigmática que lê o destino alheio. Ora, guarda é sinônimo de proteção, defesa. É como se a cartomante fosse a guardiã de Rita e Camilo. No entanto, as previsões dela resultam no oposto. Tanto é que Camilo, um pouco antes de chegar à casa de Vilela e ser morto, passa pela praia da Glória, que é outra ironia, e tem a seguinte sensação: “(...) Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço inÞ nito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável”.

A ironia é uma forma de exercer o pensamento critico e revogar toda e qualquer inocência. Em Machado de Assis, ela está muito associada ao ceticismo e a uma visão de mundo negativista por excelência. As últimas palavras de Brás Cubas parecem conÞ rmar tudo o que vimos em seus contos:

Somadas umas causas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive Þ lhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

Proposta de atividades

1. Leia atentamente os parágrafos abaixo, que versam sobre a teoria da literatura, especialmente no que diz respeito à relação do texto literário com o momento histórico:

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Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identiÞ car, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado, no nível explicativo e não ilustrativo. Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, lingüísticos e outros. Neste nível de análise, em que a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, pois tudo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de que resultou a diversidade coesa do todo.

Está visto que, segundo esta ordem de idéias, o ângulo sociológico adquire uma validade maior do que tinha. Em compensação, não pode mais ser imposto como critério único, ou mesmo preferencial, pois a importância de cada fator depende do caso a ser analisado. Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou lingüística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente. Mas nada impede que cada crítico ressalte o elemento da sua preferência, desde que o utilize como componente da estruturação da obra. E nós veriÞ camos que o que a crítica moderna superou não foi a orientação sociológica, sempre possível e legítima, mas o sociologismo crítico, a tendência devoradora de tudo explicar por meio dos fatores sociais.

(Antonio Candido, Literatura e sociedade)

2. Procure identiÞ car no texto abaixo os traços essenciais do gênero narrativo e tente encontrar uma forma de relacioná-los a algum conto de Machado de Assis.

O gênero épico é mais objetivo que o lírico. O mundo objetivo (naturalmente imaginário), com suas paisagens, cidades e personagens (envolvidas em certas situações), emancipa-se em larga medida da subjetividade do narrador. Este geralmente não exprime os próprios estados de alma, mas narra os de outros seres. Participa, contudo, em maior ou menor grau, dos seus destinos e está sempre presente através do ato de narrar. Mesmo quando os próprios personagens começam a dialogar em voz direta é ainda o narrador que lhes dá a pa1avra, lhes descreve as reações e indica quem fala, através de observações como “disse João”, “exclamou Maria quase aos gritos”, etc.

No poema ou canto líricos um ser humano solitário - ou um grupo - parece exprimir-se. De modo algum é necessário imaginar a presença de ouvintes ou interlocutores a quem esse canto se dirige. Cantarolamos ou assobiamos assim melodias. O que é primordial é a expressão monológica, não a comunicação a outrem. Já no caso da narração é difícil imaginar que o narrador não esteja narrando a estória a alguém. O narrador, muito mais que se exprimir a si

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mesmo (o que naturalmente não é excluído) quer comunicar alguma coisa a outros que, provavelmente, estão sentados em tomo dele e lhe pedem que lhes conte um “caso”. Como não exprime o próprio estado de alma, mas narra estórias que aconteceram a outrem, falará com certa serenidade e descreverá objetivamente as circunstâncias objetivas. A estória foi assim. Ela já aconteceu - a voz é do pretérito - e aconteceu a outrem; o pronome é “ele” ( João, Maria) e em geral não” eu”. Isso cria certa distância entre o narrador e o mundo narrado. Mesmo quando o narrador usa o pronome “eu” para narrar uma estória que aparentemente aconteceu a ele mesmo, apresenta-se já afastado dos eventos contados, mercê do pretérito. Isso lhe permite tomar uma atitude distanciada e objetiva, contrária à do poeta lírico.

A função mais comunicativa que expressiva da linguagem épica dá ao narrador maior fôlego para desenvolver, com calma e lucidez, um mundo mais amplo. Aristóteles salientou este traço estilístico, ao dizer: “Entendo por épico um conteúdo de vasto assunto.” Disso decorrem, em geral, sintaxe e linguagem mais lógicas, atenuação do uso sonoro e dos recursos rítmicos.

É sobretudo fundamental na narração o desdobramento em sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado). O narrador, ademais, já conhece o futuro dos personagens (pois toda a estória já decorreu) e tem por isso um horizonte mais vasto que estes; há, geralmente, dois horizontes: o dos personagens, menor, e o do narrador, maior. Isso não ocorre no poema lírico em que existe só o horizonte do Eu lírico que se exprime. Mesmo na narração em que o narrador conta uma estória acontecida a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte maior do que o eu narrado e ainda envolvido nos eventos, visto já conhecer o desfecho do caso.

(Anatol Rosenfeld, O teatro épico)

ATENÇÃO: Terminamos por aqui esse material, mas isso é apenas o começo dos seus estudos sobre teoria da literatura. Vamos apresentar um pequeno glossário abaixo, para que você consulte e reforce seus conhecimentos.

OBJETIVOS: Um glossário tem a Þ nalidade básica de apresentar alguns conceitos fundamentais vistos ao longo do curso, para facilitar a compreensão dos mesmos.

REFLITA: Um glossário é apenas um meio rápido de consulta, mas você jamais deve se limitar a ele.

AGORA É SUA VEZ: Procure ter sempre disposição para consultar o glossário na medida em que for lendo os conceitos na parte teórica e aplicando-os à sua leitura dos textos literários.

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GLOSSÁRIO

ANÁLISE LITERÁRIA – É o estudo de textos literários de uma forma objetiva, com base em conceitos fornecidos pela teoria da literatura. O estudo de um texto para classiÞ car a sua forma, por exemplo, exige leituras sistemáticas da teoria dos gêneros literários.

CATEGORIA – É qualquer componente da estrutura da narrativa. Por exemplo, o narrador, o enredo, os personagens, o tempo e o espaço são categorias que, em seu conjunto, constituem uma narrativa.

CONCEITO – É o instrumento básico de toda formulação teórica. O conceito só se sustenta se for objetivo e demonstrar respaldo na realidade estudada, seja esta material ou simbólica. Caso o conceito não corresponda a essa exigência, sua formulação é falha e muitas vezes não passa de uma simples opinião sobre as coisas. O estudo sistemático da teoria da literatura exige que os conceitos tenham propriedade para serem aproveitados nas análises literárias.

ENREDO – Conjunto dos fatos que se sucedem em uma narrativa. Os fatos que acontecem geram outros fatos, que se relacionam com outros, criando uma determinada tensão na situação dos personagens. A tensão gera uma expectativa que pode ser conÞ rmada ou não no Þ nal da narrativa.

GÊNERO LITERÁRIO – São as formas literárias mais amplas, abrangendo várias subformas ou subgêneros. A teoria literária mais clássica apresenta a divisão da literatura em três gêneros essenciais: o épico (ou narrativo), o lírico (o que modernamente convencionou-se chamar “poesia”) e o dramático (texto voltado para a encenação teatral).

IRONIA – É um recurso muito utilizado na literatura, a exemplo da narrativa de Machado de Assis. A ironia é uma inversão de sentido das coisas. O discurso irônico é aquele que aÞ rma algo querendo dizer o oposto. A Þ nalidade da ironia é variada: pode ser o humor, o sarcasmo, a ridicularização de certas situações, mas pode ser também a intenção de provocar uma reß exão sobre o que parece natural e correto.

LITERATURA – É um tipo de arte que se caracteriza pelo uso e combinação das palavras de uma forma muito especíÞ ca, capaz de ultrapassar o senso comum. Assim como a pintura é uma combinação de cores e a música é uma combinação de sons, o que distingue a literatura é a sua capacidade de criar sentidos novos, ainda que utilizando as mesmas palavras fornecidas pela língua. A criatividade literária também pode instaurar palavras novas, conhecidas como “neologismos”, que tornam o texto literário mais imprevisível e mais distanciado da comunicação cotidiana. A literatura, com essa preocupação voltada para o estabelecimento de sentidos diferentes, singulares, desconhecidos, não se confunde com um mero documento histórico ou com um texto jornalístico e de uso comum. A literatura proporciona outro tipo de reß exão sobre as relações humanas, que não se confunde com a ciência, com o misticismo, com a informação ou outras formas de conhecimento.

NARRADOR – É uma das categorias centrais do texto narrativo. É o responsável pela visão e pelos valores transmitidos ao longo do enredo. O narrador pode ser em primeira pessoa (o próprio personagem principal) ou

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em terceira pessoa (um narrador externo, que não faz parte do enredo nem se envolve com os acontecimentos relatados). Existem outras formas de narrador, como o narrador-testemunha (conta a história, mas não é o personagem central), porém são formas mais raras.

PERSONAGEM – É todo aquele que desenvolve ou sofre a ação do enredo. O personagem pode ser principal (protagonista) ou secundário, mas é necessário buscar a importância de sua ação na estrutura do enredo.

SENSO COMUM – É aquilo que é comumente aceito em uma determinada sociedade ou uma cultura. É a comunicação no nível mais simples e necessário, pois sem ela não haveria compreensão básica entre as pessoas. A importância do senso comum para a literatura e para as artes é que ele serve de referencial negativo ou a ser negado. Sem essa ruptura com o senso comum, a literatura e as artes tendem a se realizar em um nível muito pobre.

TEORIA – Um conjunto de princípios lógicos que norteiam a compreensão de um determinado fenômeno, seja ele real ou imaginário. A teoria só tem valor se for averiguada por uma demonstração. Caso a demonstração falhe, a teoria tem que ser repensada e refeita. Na literatura, por exemplo, a teoria não pode ser aplicada mecanicamente ao texto. Cabe ao exame minucioso do texto veriÞ car se a teoria pode ser ou não aplicada. Isso depende de como o conceito corresponde (ou não) à construção especíÞ ca de um determinado texto literário.

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