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NEUSA DE ARAÚJO FERNANDES
INTERTEXTUALIDADE E ERUDIÇÃO
NO DISCURSO ARGUMENTATIVO DE EDITORIAIS DE
O JEQUITINHONHA, DE DIAMANTINA, NO SÉCULO XIX
(1868-1869)
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
BELO HORIZONTE
2001
9
NEUSA DE ARAÚJO FERNANDES
INTERTEXTUALIDADE E ERUDIÇÃO
NO DISCURSO ARGUMENTATIVO DE EDITORIAIS DE
O JEQUITINHONHA, DE DIAMANTINA, NO SÉCULO XIX
(1868-1869)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como parte dos
requisitos para a obtenção do grau de Mestre em
Língua Portuguesa, elaborada sob orientação do
Prof. Dr. Johnny José Mafra.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Belo Horizonte
2001
10
Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC
Minas e aprovada pela seguinte Comissão Examinadora
________________________________________
________________________________________
________________________________________
Belo Horizonte, de de 2001.
Profa. Dra. Ivete Lara Camargos Walty
Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras
PUC Minas
11
DEDICO
À memória: de papai e mamãe (Bileu e Conceição), que, bem cedo, mostraram-me a
importância do trabalho como forma de realização pessoal e, recentemente, partindo dessa vida, deram, com o aceno de benção, sua última lição de força e coragem para enfrentar adversidades, expressões eloqüentes do amor de pais educadores.
de Luiz, meu marido, que, se nesta terra estivesse, estaria, por certo, neste
momento, ao meu lado, como sempre o fez durante toda nossa convivência de amor, trabalho, alegrias e tristezas. Na saudade, eu o vejo presente e isso é para mim um lenitivo.
de Marilane, minha filha, que ao ter a sua vida interrompida aos 21 anos, deixou
uma grande saudade, imenso vazio, só, em parte, preenchido por um trabalho mais intenso e prolongado, sempre motivado pelo pensamento de que essa era a forma de compensar um pouquinho do que ela não pôde fazer. Assine este, Marilane, porque é seu.
Aos meus filhos, companheiros do dia-a-dia, Leônidas, Gleice, Jefferson, Ronaldo e Luiz Orlando, a quem este trabalho roubou um pouco da minha atenção, não raras vezes. Às noras e ao genro que, por certo, compensaram muito bem a minha falta.
Aos netos, Rafael, Túlio, Pietro, Luíza, Larissa e Lara, esperando que, mais tarde, leiam, com
benevolência, as “esquisitices” da vovó. À Diamantina e à FAFIDIA, onde o amadurecimento de vida tem acontecido permeado de alegrias
e angústias.
12
AGRADEÇO
A Deus que nunca me deixou faltar a vontade de estar sempre recomeçando. A meus familiares, cujo apoio irrestrito foi fundamental para realização do Curso de
Mestrado. A D. Ângela, Coordenadora e professora do programa de Pós-graduação em Letras da
PUC Minas, pela sua prestimosa atenção e pelas freqüentes lições de vida que sempre permeiam as suas aulas.
Ao prof. Johnny José Mafra, que à sua competente orientação de trabalho sempre
acrescenta uma palavra amiga de incentivo. Aos professores Milton, Hugo Mari, Vanda, Johnny, Malu Matencio e Beatriz Decat pela
valiosa contribuição para a construção do conhecimento que me possibilitou refletir sobre Lingüística durante o Curso.
À Fundação Educacional do Vale do Jequitinhonha e à Faculdade de Filosofia e Letras
de Diamantina, pelo apoio constante e pela ajuda financeira. Aos colegas de Curso, pelo companheirismo, cooperação e amizade. Às secretárias Vera e Marieta, pelo habitual sorriso de acolhimento aos pedidos e
reclamações.
13
SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................................08
CAPÍTULO I - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS....................11 1.1. A Lingüística Textual.................................................................................................................12 1.2. Análise de Discurso....................................................................................................................13 1.3. Retórica.......................................................................................................................................16 1.4. A História....................................................................................................................................18 1.5. A Mitologia.................................................................................................................................19 1.6. A Ideologia.................................................................................................................................20 1.7. A Literatura.................................................................................................................................20
CAPÍTULO II – OS EDITORIAIS: uma atividade lingüística.......................................................22 2.1. Os sujeitos da interlocução: locutor/alocutário...........................................................................23
2.1.1. Locutor(es) e enunciadores..............................................................................................26 2.1.2. Os sujeitos-alocutários (Interlocutores)...........................................................................30
2.1.2.1. Os Diamantinenses.............................................................................................31 2.1.2.2. Os Políticos Brasileiros......................................................................................33 2.1.2.3. A Corte, O Governo Imperial.............................................................................33
2.2. A referência: ‘EU – TU / ELE’...................................................................................................34 2.3. O contexto espácio-temporal......................................................................................................35
2.3.1. Brasil – Século XIX.........................................................................................................36 2.3.2. Diamantina: apogeu de sua prosperidade........................................................................37
CAPÍTULO III – OS EDITORIAIS: SUA ORGANIZAÇÃO TEXTUAL....................................39 3.1. A infra-estrutura geral dos editoriais..........................................................................................40
3.1.1. O plano geral: o conteúdo temático.................................................................................40 3.1.2. Tipologia do discurso: gênero discursivo e tipos textuais...............................................42
3.1.2.1. Gêneros discursivos............................................................................................43 3.1.2.2. O editorial: um gênero discursivo......................................................................45 3.1.2.3. O editorial: tipos textuais ou seqüências lingüísticas do texto...........................47
3.1.2.3.1. A intercambialidade de tipos nos editoriais........................................48 3.1.3. A seqüencialidade argumentativa dos editoriais.............................................................50
CAPÍTULO IV – A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DOS EDITORIAIS: REFERÊNCIA, INTERTEXTUALIDADE E ERUDIÇÃO........................................................................................54 4.1. O conhecimento lingüístico no processamento textual..............................................................55
4.1.1. Os mecanisnmos de coesão nominal...............................................................................56 4.1.2. A seleção lexical: norma lingüística e contexto sócio-cultural........................................62
4.2. Os conhecimentos enciclopédicos..............................................................................................68 4.2.1. Intertextualidade e erudição nos editoriais......................................................................69
4.2.1.1. Editorial de 04-10-1868 – Crítica ao Ministro da Fazenda................................73 4.2.1.2. Editorial de 15-1-1868 – Crítica à Imprensa Imperial........................................77 4.2.1.3. Editorial de 27-12-1868 – Crítica ao governo absolutista de D. Pedro II..........82 4.2.1.4. Editorial de 24-01-1869 – Crítica ao cesarismo do Governo Imperial de D. Pedro II............................................................................................................................85 4.2.1.5. Editorial de 07-03-1869 – Crítica ao Diário do Rio de Janeiro pela sua bajulação ao Governo Imperial........................................................................................89 4.2.1.6. Editorial de 06-05-1869 – Crítica ao Parlamento Brasileiro..............................94
4.3. Conclusão...................................................................................................................................95
14
CAPÍTULO V – A ARGUMENTAÇÃO NOS EDITORIAIS: SUA CONSTRUÇÃO..................97 5.2. Condições da argumentação.......................................................................................................98
5.2.1. Proposição de uma tese....................................................................................................98 5.2.2. O acordo prévio: a adesão inicial.....................................................................................99
5.2.2.1. Os fatos...............................................................................................................99 5.2.2.2. As verdades.......................................................................................................101 5.2.2.3. As presunções...................................................................................................102 5.2.2.4. Os valores.........................................................................................................103
5.3. A construção dos argumentos: técnicas....................................................................................106 5.3.1. Os esquemas argumentativos.........................................................................................106 5.3.2. As técnicas argumentativas: tipos de argumentos.........................................................107
5.3.2.1. Argumentos quase lógicos................................................................................107 5.3.2.1.1. Compatibilidade/incompatibilidade: o ridículo................................108 5.3.2.1.2. As definições....................................................................................110 5.3.2.1.3. A comparação...................................................................................112
5.3.2.2. Os argumentos fundados na estrutura do real...................................................113 5.3.2.2.1. As ligações de sucessão....................................................................113 5.3.2.2.2. As ligações de Coexistência.............................................................115 5.3.2.2.2. Os símbolos......................................................................................117
5.3.2.3. Argumentos que fundamentam a estrutura do real...........................................118 5.3.2.3.1. O exemplo.........................................................................................119 5.3.2.3.2. A ilustração.......................................................................................121 5.3.2.3.3. Modelo e antimodelo........................................................................122 5.3.2.3.4. As analogias e as metáforas..............................................................123
5.3.2.4. Argumentos por dissociação.............................................................................125 5.3.3. Persuasão e figuras de retórica.......................................................................................126
5.3.3.1. Conceito e tipos................................................................................................126 5.3.3.1.1. Os metassememas.............................................................................127
5.3.3.1.1.1. A antonomásia................................................................128 5.3.3.1.1.2. A metáfora......................................................................130
5.3.3.1.2. Os metalogismos: a ironia................................................................134 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................140 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................................145
15
RESUMO
Esta dissertação apresenta uma análise de editoriais de O Jequitinhonha sob a
perspectiva semântico-argumentativa, identificando as marcas lingüísticas da
intertextualidade erudita na construção de sentido dos textos, para produzir argumentos.
Mostra que a estratégia de referenciação, usando itens lexicais, concentra-se,
preferencialmente, na designação por nome próprio, o que lhe confere força persuasiva, em
virtude de uso de personalidades históricas do mundo erudito europeu como referidores.
O objetivo é mostrar que havia em Diamantina, no século XIX, uma elite
intelectual, dela tendo sido um representante, Joaquim Felício dos Santos, que interagia,
através da imprensa, com interlocutores locais e nacionais, com um discurso político
liberal erudito e, fortemente, argumentativo, para combater o Governo Imperial.
Palavras-chave: Discurso Argumentativo
Referência e Intertextualidade
Erudição
Contexto sócio-cultural
Neusa de Araújo Fernandes
8
INTRODUÇÃO
O motivo inicial para realização de uma pesquisa lingüística em textos de arquivo
foi, para mim, professora de Língua Portuguesa, de Filologia e de História da Língua,
investigar a produção escrita de Diamantina, desde o tempo colonial até os dias atuais, ou
seja, ter uma visão diacrônica do processo de produção de textos, analisando características
da norma culta, presumivelmente, existentes nos textos e em possível mudança ao longo do
tempo. Iniciadas, no entanto, as atividades de pesquisa e, refletindo sobre a proposta,
diante da amplitude do assunto, acabei por optar por um estudo mais restrito, menos
ambicioso. Assim, de uma visão diacrônica, passei a realizar uma análise do discurso
argumentativo de alguns editoriais de O Jequitinhonha, jornal publicado em Diamantina,
no século XIX.
A escolha de textos dessa época justifica-se pelo fato de esses editoriais terem
sido escritos em Diamantina, num período histórico, em que a cidade se afirmava, não só
como pólo comercial de uma região em franco desenvolvimento, mas também como
referência cultural mineira, pela atenção dispensada à educação, à arte e à cultura, quando
políticos e escritores ousavam levantar sua voz diante do governo em discursos
combativos, veiculados na imprensa local e, até mesmo, na imprensa da Corte.
A escolha do objeto desta pesquisa deveu-se a uma série de indagações suscitadas
pela leitura de jornais antigos e peças de defesas criminais arquivadas na Biblioteca
“Antônio Torres” do Patrimônio Histórico, de Diamantina, em que percebia o uso de
norma lingüística culta, com freqüentes marcas de erudição, o que, de certa forma, trouxe-
Neusa de Araújo Fernandes
9
me encantamento e admiração por essas produções escritas e despertou-me a vontade de
conhecê-las melhor.
Entre as indagações sobre o assunto, destacam-se: por que os jornalistas da época,
de uma cidade do interior, usavam uma linguagem erudita, estratégias discursivas que
exigiam grandes conhecimentos enciclopédicos? Haveria leitores para esses jornais na
Diamantina oitocentista? Quais os sujeitos envolvidos nessa interlocução?
O objetivo deste trabalho é mostrar a erudição no discurso argumentativo de
editoriais de O Jequitinhonha, através das marcas de intertextualidade nos processos de
referenciação utilizados pelo autor.
Para isso, dediquei-me à leitura de grande parte dos editoriais do referido
periódico, formei um corpus de, apenas, seis textos - anos 1868 e 1869 - para neles analisar
as marcas lingüísticas da intertextualidade erudita, na construção de um discurso
argumentativo. Nesse conjunto de editoriais nota-se uma certa unidade semântica, marcada
por uma cadeia de referenciação coerente e estruturada, que possibilita perceber a
recorrência à estratégia em foco.
O quadro teórico-metodológico adotado no desenvolvimento deste trabalho
resultou da associação da Lingüística Textual, da Análise de Discurso e da Retórica com
a História Universal e do Brasil, além de outras disciplinas afins, o que torna o meu
trabalho transdisciplinar.
Diante disso, a análise é feita considerando-se todo o processo interlocutivo: os
editoriais (textos) são vistos como resultantes (produtos) de uma atividade de linguagem
(processo) em que a interação é realizada entre sujeitos, ocupantes de lugares sociais com
suas representações de mundo. A intencionalidade e a necessidade de comunicação, num
Neusa de Araújo Fernandes
10
contexto sócio-histórico, determinam a escolha de mecanismos de construção de
argumentos dentre os disponíveis na língua.
É oportuno considerar que não assumo posições radicais quanto aos rigores
conceituais dos quadros teóricos adotados, buscando, tão somente, utilizar os pressupostos
que propiciem o delineamento de uma metodologia de análise para atendimento do
objetivo a que me propus.
Este trabalho está dividido em capítulos, assim distribuídos: no primeiro, são
feitas considerações teórico-metodológicas para explicação de alguns conceitos adotados
sobre aspectos teóricos necessários à execução da análise; no segundo, são descritos os
editoriais como práticas discursivas e não enunciados abstraídos de suas condições de
produção; no terceiro, caracteriza-se a infra-estrutura textual dos editoriais como um
gênero de discurso composto de tipos textuais articulados; no quarto, analisa-se a
intertextualidade, com suas marcas de erudição, nas estratégias de referenciação,
responsáveis pela progressão temática dos editoriais; no quinto, a construção dos
argumentos, o uso dos recursos retóricos são explicados. Por último, as considerações
finais, a título de conclusão, fazem o fechamento do trabalho.
Neusa de Araújo Fernandes
11
CAPÍTULO I
Algumas considerações teórico-metodológicas
A análise do discurso argumentativo de editoriais de O Jequitinhonha, como já
se disse, é feita a partir de um quadro teórico-metodológico de Lingüística Textual, da
Análise de Discurso e da Retórica, que têm um ponto convergente importante: o estudo do
texto como unidade semântica, formal e sociocomunicativa.
Como disciplinas auxiliares, a História, a Mitologia, a Ideologia, a Literatura
prestam a sua contribuição à análise da semântica argumentativa dos editoriais, oferecendo
subsídios indispensáveis à compreensão do texto.
Diante disso, são feitas, neste capítulo, breves considerações sobre esses
referenciais teóricos, apenas como molduras na delimitação de algumas perspectivas sob
as quais procurou-se enxergar o corpus, reservando o delineamento conceitual,
propriamente dito, para ser feito como suporte da própria análise ao longo do trabalho, em
cada capítulo.
1.1. A Lingüística Textual
A Lingüística Textual tem a sua origem na Retórica, que a partir da Grécia
Clássica, já se constituía em um corpo de reflexões sobre o discurso, sob a perspectiva
Neusa de Araújo Fernandes
12
pragmática: a interação entre sujeitos para produzir persuasão. Além da Retórica, a
Estilística foi também precursora da Lingüística Textual, uma vez que estuda as relações
textuais para verificar sua expressividade, os efeitos estilísticos, não se restringindo,
portanto, aos limites da frase.
É no século XX, no entanto, que, com os progressos dos estudos lingüísticos, o
texto, o discurso, como unidade de análise, começa a merecer a atenção dos lingüistas. O
interesse pelos fenômenos lingüísticos que ocorriam além das frases isoladas (estudadas
como unidades maiores pela Gramática) foi-se firmando através da análise transfrástica, da
organização da Gramática Textual, culminando com as Teorias de Texto e Lingüistica
Textual.
A Lingüística Textual estuda enunciados completos, busca esclarecer o que é e
como se produz um texto, sua natureza e os fatores envolvidos na sua produção e recepção
(Costa Val, 1994: 1). Como um novo ramo da Lingüística, seu desenvolvimento se
acelerou, a partir da década de 60, na Europa, e, hoje, concentra a atenção dos lingüistas.
Embora haja um objeto de estudo definido – o texto – não há uma unidade teórica
na Lingüística Textual. Europeus que tomam esse objeto de estudo para suas investigações
apresentam teorias diversificadas, mas que são, todas, sem dúvida, valiosas contribuições
para a sistematização desse novo ramo da Lingüística. Fávero e Koch (1998: 37-105) citam
alguns, dada a importância de suas posições para os pressupostos técnicos construídos:
Halliday propõe o estudo numa linha funcionalista; Weinrich postula a necessidade do
estudo da macrossintaxe do discurso; Ducrot e Carlos Vogt, estruturalistas, defendem um
estruturalismo do discurso, do estudo macrossintático ou semântico-argumentatico da
língua e consideram o ato de argumentar como o ato lingüístico fundamental, isto é,
defendem que argumentatividade se acha implícita na própria língua; Isemberg tem como
Neusa de Araújo Fernandes
13
objetivo principal construir, ainda que parcialmente, uma gramática de texto modelo de
competência lingüística do falante; Lang apresenta várias acepções de texto, para
identificar os fatos que não podem ser descritos pela gramática de frase; Dressler tem por
principal objetivo construir um mecanismo para a construção de textos; Van Dijk postula
que ao texto subjazem estruturas peculiares: a macroestrutura, a microestrutura e a
superestrutura, e Petöfi propõe uma teoria de texto que considera na constituição do texto
um componente gramatical e um semântico-extensional, o primeiro co-textual (dêixis,
anáfora, catáfora) e o segundo, contextual, que procura dar conta dos aspectos pragmáticos.
Importa, apesar das variações das vertentes teóricas dos estudiosos, a soma de todas essas
contribuições para o desenvolvimento desse ramo dos estudos lingüísticos, tão importante
nos dias de hoje e do qual não se pode prescindir para a realização de um estudo sobre o
texto.
No Brasil, Koch, Fávero e Marcuschi têm-se dedicado ao assunto e divulgado
orientações sobre a prática da análise lingüística de textos, sendo considerados autoridades
em Lingüística Textual, que tem sido importante área de concentração nos estudos
lingüísticos brasileiros.
1.2. Análise de Discurso
Um dos setores mais desenvolvidos da pesquisa lingüística, nos dias atuais, é o da
Análise de Discurso. Enquanto a Lingüística se preocupa com a língua como sistema de
signos e a Gramática com estabelecimento de normas do uso da língua ou com outros
aspectos, conforme a sua especificidade, a Análise de Discurso, de maneira particular,
estuda a linguagem como Discurso. Orlandi (1999: 15) diz que a “palavra discurso,
Neusa de Araújo Fernandes
14
etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento”.
Define, também, o objetivo da Análise de Discurso, que procura “compreender a língua
fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo
do homem e de sua história”. Vê-se, portanto, o texto enquanto unidade significativa e não
apenas como unidade formal: assim ao estudo da unidade significativa acrescenta-se a
pragmática, “aquela em cujo processo de significação também entram os elementos do
contexto situacional” (Orlandi, 1987: 116).
A Análise de Discurso procura descrever, explicar e avaliar, criticamente, os
processos de produção, circulação e consumo dos sentidos vinculados aos produtos
culturais empíricos criados por eventos comunicacionais, anúncios publicitários, textos
jornalísticos impressos, discursos políticos (Pinto, 1999). Por isso ela não trabalha a língua
fechada em si mesma, mas o discurso, que é um objeto sócio-histórico em que o lingüístico
intervém como pressuposto.
A Análise de Discurso, como a Lingüística textual, teve sua origem na Retórica.
No entanto, é da Filologia que recebe a maior contribuição, pois, como afirma
Maingueneau (1989: 10), ela “ocupou uma grande parte do território liberado pela
Filologia, porém com pressupostos teóricos e métodos totalmente distintos”. A Filologia
estudava os textos antigos como um legado cultural, buscando interpretá-los de forma mais
original possível. Era praticada através da Hermenêutica (disciplina especializada na
interpretação de textos) e da Exegese (técnica que orientava a classificação dos textos de
acordo com sua genealogia, suas versões, em busca dos textos originais ou de versões mais
confiáveis).
Maingueneau considera ainda que o analista de discurso vem, de maneira especial,
trazer sua contribuição às hermenêuticas contemporâneas. Como todo hermeneuta, o
Neusa de Araújo Fernandes
15
analista supõe um sentido oculto, que deve ser captado, o qual sem uma técnica apropriada
permanece inacessível. No entanto, Maingueneau (1989: 11) lembra a posição de Pêcheux:
a análise de discurso não pretende ser especialista da interpretação, dominando “o” sentido dos textos, mas busca construir procedimentos que exponham o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito. (...). O desafio crucial é o de construir interpretações, sem jamais neutralizá-las (...).
Como a Lingüística textual, a história moderna da Análise de Discurso teve início
com “os formalistas russos que abriram espaço nos estudos lingüísticos daquilo que mais
tarde foi denominado discurso”, conforme Brandão (s/d: 15). Eles construíram uma linha
de Análise de Discurso que superava a abordagem filológica ou impressionista que até
então dominava os estudos da língua, mas ainda ligada a uma abordagem imanente do
texto, não conteudística, mas com interesse, sobretudo, literário. Portanto, o deslocamento
do foco do conteúdo marcou o início da Análise do Discurso.
Na História da Análise do Discurso, são significativas as contribuições de Harris
(1952), de Jakobson, de Benveniste, que realça o papel da subjetividade, quando afirma
que “o locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor
por índices específicos”, de Pêcheux, que, partindo, criticamente, de colocações sobre
linguagem, feitas por Saussure e dos deslocamentos por elas provocados na lingüística,
conceitua o que vem a ser funcionamento discursivo, condição de produção, processos
discursivos, dando uma série de orientações conceituais para a abordagem do discurso por
ele denominada Análise Automática do Discurso.
Também, como na Lingüística Textual, a Análise de Discurso apresenta vertentes
diferentes, conforme diferentes perspectivas de se pensar a teoria do discurso.
Atualmente, duas vertentes se destacam pelos seus pressupostos teóricos não
coincidentes, a AD Francesa e a AD Anglo-saxã (como são denominadas). A AD Francesa
Neusa de Araújo Fernandes
16
dá relevo ao papel do sujeito falante no processo da enunciação, considera a relação entre o
locutor, seu enunciado e o mundo, sua posição sócio-histórica; parte da relação necessária
entre o dizer e as condições de produção desse dizer; considera o discurso o modelo teórico
que articula o lingüístico ao sócio-histórico; o sujeito é psicanalítico, social e histórico.
Constitui-se a vertente francesa na relação entre a Lingüística, o Marxismo e a Psicanálise.
A AD anglo-saxã considera a linguagem constitutiva do sujeito e de suas relações
sociais e considera o sujeito, ser social e cognitivo, que opera sobre o sistema lingüístico; a
prática lingüística é uma ação mútua entre os sujeitos: interação; um evento de interação
implica uma troca comunicativa; a atividade discursiva é uma forma estratégica de
atualização de recursos lingüísticos na produção de um texto.
Diante desses dois quadros da Análise de Discurso, pelos pressupostos teóricos
em que cada um se embasa, a análise de editoriais, proposta neste trabalho, será feita,
buscando subsídios em referenciais teóricos da linha anglo-saxã, e, assim, os editoriais são
vistos como resultantes de uma interação lingüística entre locutores/alocutários, num
contexto sócio-cultural.
1.3. Retórica
Para análise de um discurso argumentativo, é indispensável a consideração de
alguns ensinamentos da Retórica, como um sistema constituído de técnicas para se
produzir a persuasão pelo discurso.
A história da Retórica revela seus dias de glória, sua decadência, seu
ressurgimento sob novas perspectivas, o que oferece subsídios para o estudo dos editoriais,
como um discurso argumentativo, veiculado pela imprensa.
Neusa de Araújo Fernandes
17
Nascida na Grécia Clássica, a Retória, já no Século V a. C. fazia parte da cultura
ateniense, com caráter pragmático, em virtude de seu uso em situações reais de disputas de
propriedades, quando a vitória se associava ao desempenho dos retores nos embates
discursivos travados. Aristóteles repensa a Retórica, transformando-a num sistema de
normas, “uma arte de achar os meios de persuasão que cada caso comporta”. Assim,
Aristóteles dá à Retórica uma definição mais modesta, mas de utilidade na comunicação
verbal com função conativa, apelativa (cf. Reboul, 2000: 24).
Além dos gregos, os romanos aderiram e assimilaram a Retórica, sendo
significativos exemplos de seus cultores Cícero e Quintiliano, que em suas obras
teorizavam sobre suas práticas.
No Século XIX, declina o apreço pelos estudos da Retórica, diante do surgimento
do positivismo, e do romantismo. O primeiro a rejeita em nome da verdade científica,
substituindo-a pela Filologia e a História científica das literaturas, e o segundo em nome da
sinceridade. Por isso, passou a ser vista, apenas, como o uso de mecanismos capazes de
tornar o discurso mais pomposo, como, principalmente, o das figuras de linguagem, para
embelezamento do discurso literário, e a sua função no discurso argumentativo ficou
relegada a segundo plano.
Finalmente, a partir dos anos 60, na Europa, a Retórica, que na verdade nunca
morreu, ressurge com um campo mais amplo de aplicação: na literatura, nos discursos
jurídicos e políticos e na comunicação de massa, ou seja, apodera-se de todas as espécies
de produções verbais e não verbais, admitindo-se uma retórica do cartaz, do cinema, da
música e outras, reconhecendo-se, dessa forma, a sua utilidade na construção das diversas
linguagens, de que se vale o ser humano na sua interrelação comunicacional.
Neusa de Araújo Fernandes
18
Para Ducrot e Ascombre a argumentação se inscreve na própria língua, dada a
natureza argumentativa da linguagem. Mosca (1999: 17), partindo desse princípio de que
“a argumentatividade está em toda e qualquer atividade discursiva” e de que “argumentar
significa considerar o outro como capaz de reagir diante das propostas e teses que lhe são
apresentadas”, vem confirmar a ampliação do estudo e emprego da Retórica Moderna.
Assim, as teorias retóricas modernas passaram a ter como objeto de estudo o discurso em
geral, no que ele traz de persuasivo, de argumentativo, de interativo.
À atitude de descrença nos efeitos da Retórica, segue-se, portanto, a convicção de
que é no mundo da opinião, da doxa, que são tecidas as relações sociais, políticas e
econômicas, uma vez que é a esta que se tem acesso e não ao que chamaria mundo da
verdade, comenta Mosca (1999: 21).
Para trilhar os caminhos dessa Nova Retórica tem-se considerado a importante
obra francesa, publicada em 1958, de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca – O
tratado da Argumentação, a nova retórica – que retoma as concepções de Aristóteles,
Isócrates e Quintiliano, constituindo-se realmente em uma teoria do discurso persuasivo.
Nela foram buscados fundamentos para a análise dos argumentos construídos nos editoriais
de O Jequitinhonha, no capítulo V deste trabalho.
1.4. A História
A História configura o contexto sócio-cultural da realização da atividade
lingüística, oferece dados indispensáveis à interpretação e análise do discurso, representa
o “aqui-agora” do evento enunciativo, único, ou seja, possibilita ao analista uma volta ao
espaço e tempo da realização do ato dos interlocutores. A História de Civilização –
Neusa de Araújo Fernandes
19
Antigüidade e Idade Média, Moderna e Contemporânea – dá subsídios para uma visão
geral da caminhada do homem sobre a terra, com sua organização social, política e
religiosa, própria de cada período, de cada espaço, geográfica e politicamente, delimitado.
Assim, explicar a intertextualidade no processo de referenciação dos editoriais obrigou ao
analista um vôo rápido sobre fatos políticos, sociais do mundo antigo e moderno,
especialmente da Europa.
1.5. A Mitologia
As histórias dos deuses e heróis, presentes na vida dos povos politeístas da
antigüidade, constituem intertextos freqüentes, usados por escritores, poetas e oradores
modernos, através de alusões, na tentativa de tornar o discurso, além de mais significativo,
mais belo, mais erudito e, algumas vezes, mais convincente, conforme o uso que é feito das
referências mitológicas. Assim, divindades gregas, habitantes do Monte Olimpo e
divindades romanas povoam os discursos, e o conhecimento da Mitologia torna-se
necessário para uma perfeita interação entre os interlocutores dos editoriais que devem
compartilhar conhecimentos enciclopédicos básicos da construção do(s) sentido(s) neles
construído(s).
Neusa de Araújo Fernandes
20
1.6. A Ideologia
A ideologia é vista como um mecanismo estruturante do processo de significação,
se considerada, a partir da linguagem e não sociologicamente como visão de mundo. É o
que se pode deduzir das afirmações de Orlandi, quando diz (1999: 95-69):
É a Ideologia que torna possível a relação palavra/coisa. Para isso tem-se as condições de base, que é a língua, e o processo que é discurso, onde a ideologia torna possível a relação entre o pensamento a linguagem e o mundo. (...) a ideologia se materializa na linguagem. (...) a ideologia se liga inextrincavelmente à interpretação enquanto fato fundamental que atesta a relação da história com a língua, na medida que esta significa, A conjunção língua/história também só pode se dar pelo funcionamento da ideologia.
O discurso político dos editoriais é marcado pela ideologia do Partido Liberal de
quem o editorialista se torna porta-voz e militante convicto.
1.7. A Literatura
O gênero textual editorial tem características de produção literária, uma vez seu
autor empenha-se em torná-lo bem estruturado, estilo agradável, de leitura prazeirosa,
recorrendo para isso ao uso da linguagem de forma artística, extrapolando o nível da sua
função referencial para o da função poética. A conotação é, às vezes, mais presente que a
denotação na semantização do texto; a subjetividade sobrepõe-se à objetividade; a função
expressiva torna-se predominante. Textos literários produzidos na Europa constituíram
intertextos dos editoriais e o reconhecimento deles é fundamental na compreensão do
novo discurso, em que a atualização do “já dito”, como se pode comprovar pela leitura
Neusa de Araújo Fernandes
21
desses discursos, imprime um sentido ao dizer do editorialista, adequado à sua intenção
persuasiva.
Neusa de Araújo Fernandes
22
CAPÍTULO II
OS EDITORIAIS: UMA ATIVIDADE LINGÜÍSTICA
Diante dos editoriais, duas alternativas básicas de análise se apresentam: a
primeira consiste em vê-los, apenas, como um enunciado, que se estrutura em um código
ou um sistema, composto de regras fonológicas, léxicas, sintáticas, relativamente estáveis,
usando, para isso, um procedimento metodológico que faça abstração das condições da
produção de linguagem e, somente, descreva o funcionamento desse código, através das
características do texto, ou seja, uma análise numa linha imanentista; a segunda consiste
em perceber os editoriais como produções verbais em suas dimensões empíricas, concretas,
o que determina, em conseqüência, a análise do discurso, do “homem falando”, da “língua
em funcionamento concreto”, “a palavra em movimento” (Orlandi, 1999).
Adotada a segunda alternativa, volta-se a atenção para o processo discursivo, uma
interação entre sujeitos, realizada num contexto espácio-temporal, ou seja, um processo de
enunciação.
Para estabelecer uma metodologia de análise dessa interlocução, foi adotado um
roteiro, sugerido por Reboul (2000: 142-143), composto de algumas perguntas feitas ao
texto, o que torna bastante claras as diversas funções dos elementos que compõem a cena
enunciativa. As respostas às perguntas passam a constituir os dados da análise do discurso
que se propôs realizar.
Neusa de Araújo Fernandes
23
As perguntas-roteiro são as seguintes: Quem fala? A quem se fala? Por quê? Para
quê? De que se fala? Ou contra quê? Onde? Quando? Como?
2.1. Os sujeitos da interlocução: locutor/alocutário
Duas figuras na posição de parceiros são alternativamente protagonistas da
enunciação locutor/alocutário (Benveniste, 1989). Fazendo-se ao enunciado a primeira
pergunta, proposta no item anterior – Quem fala? – , identifica-se o primeiro protagonista:
o locutor; fazendo-se a segunda – A quem se fala? – , tem-se o alocutário, que interage
com o locutor, assumindo posição de protagonista da interação verbal.
As diversas correntes de estudos lingüísticos apresentam divergências quanto à
concepção de sujeito do discurso.
Numa abordagem lingüística imanente, por exemplo, o sujeito está, praticamente,
excluído do sistema lingüístico; a língua, sistema lingüístico já estruturado, é anterior à
própria constituição do falante. Estuda-se o sistema em si, independente, autônomo.
As diferenças de concepção, portanto, estão nas teorias lingüísticas modernas e
acentuam-se entre linhas de pensamento, assumindo o sujeito lugares distintos, desde o da
fonte do sentido até o do sujeito que se torna assujeitado no discurso.
Orlandi (1983) apud Brandão (s/d, 46) analisa o percurso da concepção de sujeito
em diversas teorias lingüísticas e distingue três etapas: na primeira, a interlocução, é
marcada pela interação, troca entre o eu e o tu; na segunda, passa-se à idéia de conflito, em
que a relação entre os sujeitos – eu e tu – é marcada pela tensão, caracterizada pela
determinação pela segunda pessoa daquilo que a primeira diz. É uma concepção
influenciada pela Retórica; a terceira, em que a Análise de Discurso reconhece o sujeito
como incompleto e buscando a sua complementação no Outro. O centro da relação está no
Neusa de Araújo Fernandes
24
espaço discursivo e não no EU nem no TU: o sujeito só se completa na interação com o
outro.
Nesse percurso, podem ser destacadas algumas concepções: 1) o sujeito é fonte e
origem do sentido, está no centro do sistema lingüístico – é o subjetivismo, o egocentrismo
da teoria de Benveniste. O Eu se propõe como locutor e implanta o Outro, o TU; há
transcendência da primeira pessoa Eu sobre a segunda Tu. 2) O sujeito é descentrado – o
sujeito é essencialmente histórico, marcado espacial e temporalmente. Sua fala é um
recorte das representações de um tempo histórico de um espaço social; na sua fala outras
vozes também falam. A concepção de linguagem muda nessa teoria, passando de uma
noção de homogeneidade para uma linguagem que não é mais evidência, transparência de
sentido, produzida por um ser uno, um ego, mas resultante do espaço discursivo entre o EU
e o TU. Nessa linha de pensamento, incluem-se a heterogeneidade discursiva de Authier-
Revuz (1982) que indica algumas formas de heterogeneidade que atestam a presença do
outro; do dialogismo de Bakhtin (1929) elabora a sua teoria da polifonia e considera que “a
verdadeira substância da língua é constituída pelo fenômeno social da interação verbal”; da
teoria polifônica de Ducrot, que retoma o conceito de Bakhtin, na perspectiva da
Semântica da Enunciação, e contesta a tese da unicidade do sujeito falante. Ele concebe o
sujeito como: a) produtor físico do enunciado (o autor, produtor empírico); b) aquele que
realiza atos ilocutórios (ameaça, pergunta, promessa, etc) e c) o ser designado como autor,
reconhecido pelas marcas da primeira pessoa (locutor). As três funções podem ser
desempenhadas às vezes, pela mesma pessoa. Os sujeitos podem ser: locutor, sujeito
falante e enunciador. Locutor: a quem cabe a responsabilidade do enunciado, a que se
refere o pronome Eu e as outras marcas da primeira pessoa; o sujeito falante: o ser
empírico, o autor, aquele que produziu o enunciado; enunciadores – são seres cujas vozes
Neusa de Araújo Fernandes
25
estão presentes na enunciação, sem que lhe possa, entretanto atribuir palavras precisas,
pois eles efetivamente não falam, mas o seu ponto de vista é expresso pela enunciação.
No nível do locutor, pode haver um desdobramento de sua figura, no caso do
discurso direto, assim, num mesmo enunciado produzido por um dos locutores (L 1)
aparece a fala de outro locutor (L 2) autor da citação feita.
3) Na análise de Discurso, a polaridade, ora centrada no EU, ora no TU, vai se
perdendo em função da construção do sujeito na interação entre ambos, no espaço
discursivo por eles criado. Assim, as idéias de sentido e de sujeito são construídas no
discurso.
Na visão francesa da Análise de Discurso o sujeito é social, histórico, constituído
pela ideologia.
As correntes interacionistas apresentam uma visão de sujeito: ele “é psicossocial,
uma vez que o sujeito e a ordem social não se separam”. Bronckart (1999: 32-34) falando
da relação indivíduo, sociedade e linguagem, afirma que “o agir comunicativo é
constitutivo do social e que as representações coletivas do meio se configuram como
mundos representados de que os indivíduos se apropriam para a re(a)apresentação do
mundo.” Há portanto, um descentramento do sujeito em relação à teoria da Enunciação,
conforme proposta de Benveniste.
Neste trabalho, é adotada a visão de um sujeito não propriamente individuado,
mas um ser social que não totalmente consciente põe em funcionamento a língua e,
atualizando imagens e representações armazenadas na memória, realiza a atividade
discursiva, num evento enunciativo. Não há unicidade do sujeito, outras “vozes” são
ouvidas: de outros locutores e de enunciadores; há o que se caracteriza como discurso
polifônico.
Neusa de Araújo Fernandes
26
2.1.1. Locutor(es) e enunciadores
Nos editoriais de O Jequitinhonha, a teoria polifônica de Ducrot é considerada na
identificação, não de um sujeito único, mas há uma diversidade de “vozes” que o sujeito
designado como autor busca harmonizar no discurso: 1) a voz do Partido Liberal1 de que
emanam as idéias marcadas pela ideologia dos seus princípios políticos; 2) a voz da
Instituição, o jornal O Jequitinhonha2, que como militante coletivo do partido faz
veicularem suas idéias e 3) a voz do editorialista, autor, que, não sendo apenas um
jornalista escritor, mas político militante, formador de opiniões, prega os princípios do
Partido Liberal, buscando uma verdadeira conversão dos sujeitos alocutários – seus
leitores.
1 O partido liberal – Século XIX
A defesa das idéias liberais no cenário político brasileiro, do século XIX, não constitui um fato isolado: é reflexo de movimentos da Europa para conquista das almejadas liberdades civis, políticas, em oposição à prepotência, ao despotismo, à tirania dos governos absolutistas. No Brasil, após a sua independência, três partidos debatem-se no Parlamento, na imprensa e não raro nos campos de batalha: “os liberais moderados ou puros (chimangos) que querem a monarquia – autoritária sem “excessos de liberdade”, mas não o despotismo à moda de D. Pedro I; os liberais restauradores (caramurus) que querem a volta de D. Pedro I; os liberais patriotas são considerados exaltados (jururubas) pregam o fim do poder moderador, do senado Vitalício e do Conselho de Estado, extensão de direito de voto, federalismo (ou autonomia provincial), liberdade de imprensa. A esse último grupo pertenciam os militantes liberais de O Jequitinhonha.
2 “O Jequitinhonha” José Teixeira Neves e Alexandre Eulálio em Memórias do Distrito Diamantino (Santos, 1978: 23-36) falam sobre a história do jornal “O Jequitinhonha”. Foi criado por Joaquim Felício dos Santos em parceria com seu cunhado Josefino Vieira Machado – Barão de Guaicuí – sendo responsável pela edição Geraldo Pacheco de Melo, que usou o prelo de madeira que servira a Teófilo Otoni para editar o “Sentinela do Serro”. O primeiro número de “O Jequitinhonha” circulou em Diamantina em 30 de dezembro de 1860. Este semanário proponha-se a servir não ao homem, mas ao ideal, sintetizado para Joaquim Felício dos Santos, no respeito à integridade da lei e na dignidade da pessoa humana. Era “jornal de combate”, que “literário, comercial e noticioso”, havia de ser fundamentalmente político. “O Jequitinhonha” representava todo um programa e tinha como objetivo principal o esclarecimento da opinião”, quem sabe, conversão política do povo de toda aquela zona. Em 1869, apresenta um cunho acentuadamente radical. Em 1871, inicia, abertamente, a pregação das idéias republicanas, no que antecipa a toda imprensa mineira. O Jequitinhonha manteve-se em circulação por mais de quatorze anos, não sem algumas interrupções.
Neusa de Araújo Fernandes
27
O locutor-autor, o falante, dá existência a enunciadores de quem organiza os
pontos de vista e atitudes e traz também para o seu discurso outras “vozes” de locutores,
através dos discursos relatados.
Nessa perspectiva, são enunciadores o Partido Liberal – a fonte do dizer, a
Instituição do jornal – O Jequitinhonha, que produz junto com o partido esse dizer,
também como fonte do dizer. Além disso, o sujeito-locutor traz outros locutores, através de
discursos relatados, de citações, que são freqüentes e que serão analisados no Capítulo IV
como formas de intertextualidade.
Assim, para melhor compreender o discurso político dos editoriais, faz-se
necessário admitir essa pluralidade de vozes: a do Partido Liberal, a do jornal O
Jequitinhonha e a voz do locutor-autor.
Couto (1954: 74-76) retrata bem a função da imprensa, do jornal como
veiculadores de idéias políticas em Diamantina.
Achando o homem do Tijuco que suas idéias não podiam ficar fechadas naquele círculo de pedras, resolve levá-las a todos os recantos da província por intermédio da imprensa, O espírito de rebeldia do tijucano, qualidade que se aprimora, no cadinho do sofrimento na época colonial, tinha necessidade de combater o governo de D. Pedro I que já se esboçava em 1828 despótico e tirano. Liberais ferrenhos e obstinados, achando ineficazes as pregações nas esquinas, nas boticas e nos barrancos do garimpo, porque palavras levava-as o vento, resolveram dar-lhes formas imprimi-las para que o jornal, indo ao recesso dos lares, lido nos serões, sob a luz mortiça dos candieiros, fizesse o tribunal familiar perder a serenidade, inflamando-se numa condenação formal ao desregrado governo, cujas rédeas estavam presas aos bordados das anáguas das marquesas.
Neusa de Araújo Fernandes
28
O Jequitinhonha define-se como “folha política, literária e noticiosa”. A posição
de “política” em primeiro lugar parece não ser aleatória, pois esse combativo periódico é,
principalmente, político e seus editoriais (considerado o período analisado 1868-1869) são
discursos políticos, na medida em que criticam a realidade político-administrativa do
Brasil, criticam os feitos da “Coroa” e propõem uma ação saneadora dos males que
grassam no cenário brasileiro do Segundo Império. Também é Couto (1954) que diz;
“muitos jornais orientavam a opinião pública pelas brilhantes penas de seus redatores”.
O nome O Jequitinhonha, dado ao jornal revela um enunciador coletivo: povo do
Vale do Jequitinhonha de quem o jornal pretende ser uma voz vibrante e legítima, assumir
uma posição política, abertamente, até mesmo em relação às contendas partidárias como se
pode ver no editorial de 29-11-1868 de O Jequitinhonha.
Queremos pois reformas (...) O nosso programa é pois em geral o que foi apresentado pela ilustrada redação da opinião e hoje geralmente aceito pela partido Liberal do Brasil (...) Lutar pela realisação dessas idéias é a nossa missão, mais sublime sem dúvida de que servir à ambições dos Braganças, dos Orleans e dos Saxes Coburgos. Aos especuladores políticos pertence explorar essas minas. Que lhes sejam de proveito: outro é o nosso fim.
Em 20-12-1868, reforça a sua posição:
As próprias folhas da Côrte, os orgãos do partido liberal, tem as mesmas ideias democraticas do “Jequitinhonha”. A differença é que nós nos expressamos sem circumloquios, em linguagem franca e ao alcance de todas as inteligencias. Quizeramos que os colegas usassem da mesma franqueza.
A presença da primeira pessoa do plural (nós), nesses editoriais, denuncia a
Neusa de Araújo Fernandes
29
existência de um locutor-autor que organiza, materializa de forma empírica o discurso, mas
assumindo-se como um sujeito coletivo, não individual.
Considerada a história do Partido Liberal, pode-se afirmar que esse locutor-
redator era uma voz legitimada pela posição que ocupava como fundador do jornal,
militante do Partido Liberal, cujos ideais pregava, vigorosamente; detentor de cargos
políticos no cenário nacional e, acima de tudo, cidadão diamentinense com o extremado
amor a sua terra, sendo, portanto, uma voz representativa das comunidades regional e local
de direito e de fato. Seu nome: Joaquim Felício dos Santos.3
Como indivíduo integrante do sujeito coletivo da enunciação – protagonista nesta
cena enunciativa – Joaquim Felício interage com seus alocutários, movido por razões,
motivos bem explicitados ao longo de seu discurso e por uma intenção bem determinada:
mudança do sistema político-administrativo do Brasil.
Conforme Reboul, uma leitura retórica sugere também as perguntas: Por quê? Que
motivos direcionaram os sujeitos. Que intenção ou intenções subjazem à prática dessa
atividade lingüística?
Searle (1995) diz que “a linguagem é derivada da intencionalidade”, a ação
lingüística nasce de uma intenção do sujeito.
3 Joaquim Felício dos Santos (1828-1895)
Conforme José Teixeira Neves e Alexandre Eulálio, os Editoriais de “O Jequitinhonha” são de autoria de Joaquim Felício dos Santos, também fundador do jornal e responsável pela orientação do periódico do primeiro ao último número. Joaquim Felício foi advogado, professor, jornalista, escritor, historiador, político, deputado, senador, considerado um dos homens mais ilustres da Demarcação Diamantina. Nasceu (1º-02-1828) na Vila Príncipe (Serro), transferindo-se com 10 anos para Diamantina. Publicou várias obras, entre elas “Memórias do Distrito Diamantino”, “Acayaca”, “Teatro”, várias novelas e contos. Como civilista, foi autor de um “Projeto do Código Civil Brasileiro”, de “Comentários ao Projeto do Código Civil Brasileiro”, e “Projeto de “Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil”. Faleceu em 1895, em Biribiri, onde foi sepultado. Em 1911 foram transladados seus restos mortais para a Igreja do Carmo de Diamantina.
Neusa de Araújo Fernandes
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Nos Editoriais, a intenção, origem do discurso argumentativo, está bastante
explícita, como se pode perceber nos editoriais de 20-11 e 20-12-1868.
O que queremos é nossa carta de alforria, e é essa convicção que não podemos havê-la com as instituições vigentes (...) Marchar pela linha reata [não política de linhas curvas e quebradas] é reformar a constituição e as leis ordinárias repugnantes à liberdade, inoculando n’ellas o espírito democrático (...) Lutar pela realisação dessas idéias é a nossa missão (...) Já estamos cançados, nós os provincianos, verdadeiramente cançados com a contínua e eterna luta de partidos com que nos tem entretido a política machiavélica do segundo reinado (...) O Partido liberal hoje o que aspira são as reformas radicais na constituição com a supressão da dinastia de Bragança. (grifo nosso)
Não se deixa, portanto, dúvida de que a intenção bem clara dava vigor à voz do
locutor-autor – levar o Brasil, os políticos, as autoridades a, crendo em seu discurso,
partirem para uma ação política, que ele qualifica de radical – uma mudança do sistema de
governo do Brasil. Enfim, com intenção nitidamente persuasiva, dá origem ao discurso
retórico-argumentativo.
Subordinados à intenção geral, os editoriais mostram intenções localizadas em
cada um, mas que não se afastam do motivo central – combate ao Regime Monárquico.
2.1.2. Os sujeitos-alocutários (Interlocutores)
O EU, ao se constituir como sujeito, institui seu alocutário, um sujeito
interlocutor, instalando-se uma alocução, confirmando o que Benveniste afirma (1989: 84):
“Toda enunciação é, explicita ou implicitamente uma alocução, ela postula um alocutário”.
Assim, todo discurso se dirige a um alocutário, em função do qual ele é pensado e
Neusa de Araújo Fernandes
31
estruturado – a linguagem é essencialmente dialógica. Os sujeitos alocutários
(interlocutores) de O Jequitinhonha podem ser divididos em três grupos: 1 –
diamantinenses (políticos e não políticios); 2- políticos da província e de outras regiões do
Brasil; 3- autoridades brasileiras, notadamente, o governo imperial de D. Pedro II,
representado pelo Imperador que acumula a função de “alocutário” e “referente”, uma vez
que é “dele” próprio que se fala, ou melhor, é contra ele que se fala nos diversos editoriais.
2.1.2.1. Os Diamantinenses
O primeiro alocutário do editorialista eram os diamentineneses. Reboul (2000:
142-143), a propósito e alocutário, propõe critérios de classificação do “auditório”,
sugerindo tamanho, caraterísticas psicológicas, competência determinada pelos
conhecimentos prévios a serem atualizados na prática discursiva, ideologia, seja ela
política, religiosa ou outra, que influenciará no uso dos argumentos, nas estratégias de
persuasão. Os diamantinenses interlocutores de Joaquim Felício, pela competência, podem
ser classificados como uma elite intelectual.
Diamantina, no século XIX, experimenta momentos de franco progresso,
passando de uma comunidade mineradora a um centro comercial de uma vasta rede de
abastecimento, torna-se uma referência cultural de todo o norte mineiro e sul da Bahia. Os
jovens, filhos das famílias ricas, faziam os seus cursos fora do Brasil, na Corte, ou em
cursos superiores já instalados no país, como o de Estudos Jurídicos. Estabelecimentos de
ensino como o Ateneu4, São Vicente de Paulo, o Seminário Diocesano5 e o Colégio N. Sra.
4 Ateneu S. Vicente de Paulo – Instituto de instrução secundária, fundado pelo Cônego João Antônio dos
Santos, em 1852. Eleito bispo, em 1859, D. João deixa a direção do Ateneu que é fechado em 1864. Funcionava na Casa do Contrato em que foi instalado o seminário Diocesano, hoje Palácio Arquidiocesano.
Neusa de Araújo Fernandes
32
Das Dores6, implantados por D. João Antônio dos Santos, mostraram a preocupação de
Diamantina pela educação, pela instrução. Havia, também, os autodidatas, que, com
orgulho, rivalizavam com os doutores, formados na Corte (Portugal) ou em cursos
brasileiros, como em São Paulo. Por isso, uma elite intelectual, sedenta de conhecimentos,
de informações, valia-se da imprensa para colocar-se em contato com o mundo das idéias,
dos fatos políticos e sociais, da modernidade já buscada com entusiasmo, nessa época.
Selecionados pela competência ou pela ideologia política dos liberais, os leitores
de O Jequitinhonha, não-políticos ou políticos, diamantinenses, (nascidos ou adotados)
sedimentaram a sua formação intelectual, fortaleceram seu espírito de luta, o que
possibilitou a muitos deles desempenharem eficientemente, importantes funções sociais,
em diversos campos de atuação, como religiosos, políticos, administradores, magistrados,
causídicos, professores, médicos e outros.
Enfim, a Diamantina culta era um interlocutor, um alocutário de O
Jequitinhonha, ao mesmo tempo que exercia também a função de enunciador, com suas
idéias e reivindicações políticas, expressas nos editoriais.
5 O Seminário foi fundado pelo bispo D. João Antônio dos Santos em 1865, sendo entregue aos lazaristas, em
12-02-1867. Passou a funcionar em seu prédio próprio, na Praça S. Coração de Jesus em 1868. Teve os seus cursos abertos à mocidade em geral, como Colégio Diocesano, voltando em 1925 a dedicar-se, apenas, à formação de novos padres. Tornou-se celeiro de vultos eminentes em diversos campos profissionais: Direito, Medicina, Política, Administração, Engenharia, Magistério, além de contribuir para a formação moral e religiosa da mocidade da região, dos homens que, como cidadãos, tiveram uma função social a ser desempenhada. O clero de Diamantina gozou de prestígio, fama por ser formado de padres cultos, bons oradores, bons ministros de Deus.
6 Colégio Nossa Senhora das Dores – também criação de D. João Antônio dos Santos em 1866, entregue às filhas de S. Vicente, Congregação Religiosa francesa, que assumiu a direção do Estabelecimento em 21-07-1867, na antiga Casa do Intendente Câmara, na Rua da Glória, D. João criou, ainda, como anexo, o Orfanato para Meninas, custeado pelas pensionistas e pelos trabalhos de artesanato feitos pelas próprias órfãs maiores. Muitas delas estudavam e se formavam professoras.
Neusa de Araújo Fernandes
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2.1.2.2. Os Políticos Brasileiros
Como instituições políticas ou políticos militantes independentes, interlocutores
de O Jequitinhonha buscavam em suas páginas, especialmente nos editoriais combustível
para alimentar a chama dos calorosos debates políticos, argumentos capazes de fazê-los
mais se aproximarem do locutor ou mais dele se distanciarem, ou seja, correligionários e
adversários liam os editoriais. Entre as instituições que se ocupavam com as lides
partidárias estavam os jornais da época que, com abertura, firmeza e audácia travavam
discussões à distância.
Couto (1954) confirma isso quando relata: “os editoriais do Jequitinhonha de pena
de Joaquim Felício eram sempre transcritos pela imprensa da corte e não raro recebiam a
réplica dos órgãos conservadores da capital do país”.
O editorial de 15-11-1868 refere-se a esse embate lingüístico que se travava entre
jornais de posições políticas contrárias:
A imprensa imperial agita-se convulsa contra nós: nada mais natural. Não se toca debalde nas mataduras supurantes; daí esses estremecimentos de cólera. Em artigo especial o ‘Diário do Rio’ investe furibundo contra o Jequitinhonha e o Constituinte apresentando-se como defensor do imperador (...) Para que esse arreganho de paladino antigo em defesa da dama de seus pensares?
2.1.2.3. A Corte, O Governo Imperial
Os textos jornalísticos têm a particularidade: dirigem-se aos leitores comuns, mas
passam “recados” a determinados grupos a quem pretendem atingir.
Neusa de Araújo Fernandes
34
No entanto, em 20-12-1868, o editorial dirige-se, diretamente, à Corte,
especialmente, às autoridades imperiais, pois a D. Pedro II e seus seguidores caberia o
desencadeamento das reformas pretendidas, sendo, portanto, para o periódico os
interlocutores preferenciais, como se pode notar:
Os ilustrados membros do ‘Centro Liberal’, senadores residentes no Rio de Janeiro não poderão devidamente apreciar as necessidades do partido nas províncias: não se julgue pela corte o que se passa nas outras localidades (...) Nós os provincianos devemos esquecer nossas dissenções particulares e unir-nos em um pensamento comum, para libertarmo-nos da tutella da metropole do segundo reinado, que suga-nos a vida enquanto definhamos na miséria. Estamos cansados de “rolar eternamente o infernal rochedo ao píncaro da montanha e sempre a cahir (...) Se o mesmo D. Pedro II viesse dar um passeio pelas províncias correria risco de se tornar republicano.
No Editorial 27-12-1868 o discurso é dirigido ao próprio D. Pedro II ...“Vossa
soberania de direito divino é uma mentira, como todas as invenções do absolutismo”.
Pode-se concluir que há nos editoriais um discurso político do Partido Liberal, de
O Jequitinhonha (seu corpo editorial), de Joaquim Felício dos Santos, que materializa as
idéias através do texto publicado com clara intenção de influenciar sobre o comportamento
de seus alocutários, quer sejam correligionários, quer adversários políticos. Caracteriza-se,
dessa forma, uma atividade de interação sócio-discursiva em que sujeitos-locutores e
sujeitos-alocutários efetivam uma interação lingüística, num evento enunciativo.
2.2. A referência: ‘EU – TU / ELE’
Retornando à abordagem enunciativa da interação verbal, através dos editoriais,
de novo, busca-se fundamento em Benveniste (1989) que, ao descrever o processo da
Neusa de Araújo Fernandes
35
enunciação, identifica duas oposições: uma pessoal, o ‘eu-tu’, e outra, não pessoal, o ‘eu-
tu/ele’, o que possibilita a operação de “referência”, ou seja, que o discurso fale sobre
alguma coisa, sobre aquilo que não é, propriamente, alocução (relação eu-tu).
Assim, na interação verbal entre sujeitos, há a referência como parte integrante da
enunciação. Estabelecem os interlocutores uma relação com o mundo, descrevendo,
conceituando, interpretando a natureza, as experiências, a sociedade, sob óticas diferentes,
conforme suas representações, a sua realidade construída, a partir do real perceptível,
existente empiricamente.
A busca da referência, nos editoriais significa responder à pergunta, já
inicialmente feita: sobre o que eles falam, ou melhor, contra quem ou o que?
A análise semântica dos editoriais vai mostrar a referência, no capítulo que
se segue, o conteúdo temático, construído em função da crítica à realidade político-
administrativa do Império, ao seu representante legal, D. Pedro II, e a todos os seus
seguidores e auxiliares de governo.
2.3. O contexto espácio-temporal
Completando o quadro do processo enunciativo, Benveniste diz que o falante se
insere no discurso enquanto participante da sociedade e por isso a enunciação se dá no
espaço e no tempo, o que chama de contexto do ‘aqui-agora’, referindo-se ao momento do
evento enunciativo.
Neusa de Araújo Fernandes
36
Buscar o ‘aqui-agora’ dos editoriais é responder às perguntas: Onde? Quando? O
que implica uma volta ao Século XIX, o espaço Brasil – Minas – Diamantina dessa época,
identificando, em linhas gerais, as condições de produção do discurso, dos editoriais.
2.3.1. Brasil – Século XIX
O Brasil, no século XIX, é marcado por decisivos fatos históricos que o colocam
numa nova posição entre os países: torna-se Reino com a vinda da Família Real com seus
15.000 acompanhantes portugueses para instalação da sede do governo lusitano; declara-se
independente de Portugal; avança no campo social pondo fim ao trabalho escravo e,
finalmente, proclama-se República. Vive, neste século, longo e polêmico governo
monárquico, em quase todo o seu período. Experimenta momentos difíceis, mas conquista
vitórias; uma delas a sua integração na nova ordem mundial capitalista com o
reconhecimento de suas potencialidades econômicas pelas nações com que mantém
relações comerciais intensas. Vê crescer, em ritmo acelerado, a indústria têxtil de algodão,
a mineração das minas subterrâneas auríferas e diamantíferas, torna-se líder mundial como
produtor de café, tem seu comércio invadido por produtos importados em todos os setores
da economia. Enfim, efetivam-se grandes e significativas mudanças sócio-econômicas,
naturalmente acompanhadas de outras no campo da cultura, das ciências. Adeptos do
positivismo de Comte pregam os seus ideais da redenção da sociedade pela ciência, tendo
o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim.
A revolução liberal da Europa lança suas influências no Brasil, que inicia a sua
luta por mudanças radicais político-sociais, culminadas pela proclamação da república. O
Neusa de Araújo Fernandes
37
romantismo, bandeira literária, prega o nacionalismo e o brasileiro busca paradigmas para
formação de sua identidade nacional, que não se identifique com a da metrópole
portuguesa, considerada nefasta aos interesses brasileiros; surgem cursos superiores entre
eles o de Estudos Jurídicos, formando uma elite de bacharéis, muitos dos quais políticos
liberais militantes, como o editorialista de O Jequitinhonha, Joaquim Felício dos Santos.
2.3.2. Diamantina: apogeu de sua prosperidade
Enfim, registra-se, no Século XIX uma mudança política, econômica e sócio-
cultural profunda, que alicerça a construção de padrões da sonhada modernidade. É neste
contexto de avanços, de progresso, de modernidade que Minas e Diamantina se inserem,
registrando-se como espaços em ativo progresso. É um tempo que possibilitou às cidades
um desenvolvimento equilibrado, condicionado a suas potencialidades e a suas
especificidades.
Joaquim Felício dos Santos fala, com entusiasmo, sobre essa realidade:
A Diamantina, no apogeu da prosperidade, é, no momento, o centro mais importante da província, graças ao desenvolvimento da produção e comércio do diamante, a florescente indústria de ourivesaria, e, no plano intelectual ao Ateneu de São Vicente de Paulo.
Nesse clima de euforia vivido por brasileiros do Século XIX, é oportuno ver
Diamantina sob a ótica de Couto (1954: 74-76) que descreve o Arraial pós-independência:
O grande arraial entrava numa fase de progresso. A riqueza particular crescia e respirava-se livremente. Erguem-se novas e belas vivendas e o comércio torna grande incremento, tornando-se o empório do norte. Das
Neusa de Araújo Fernandes
38
terras diamantinas não mais sairia o ouro e diamantes para o sustento de uma corte dissoluta e tirânica. Tudo seria agora utilizado para a grandeza e prosperidade de nossa terra.
Era, pois, uma Diamantina que se descobria como livre, com possibilidades de
vôos altos e, assim, pôs-se em ação; tornou-se pólo cultural, central de abastecimento,
centro comercial; solidificou sua tradição de cidade histórica, culta e hospitaleira, para os
freqüentes visitantes brasileiros e estrangeiros, que se encantavam com os hábitos da
sociedade diamantinense bem semelhantes aos de países da Europa, por influência da
longa permanência de portugueses, durante o monopólio da extração do diamante pela
Coroa.
Pode-se concluir este capítulo, afirmando, novamente, que, ao se analisarem os
editoriais, passa-se a sentir o movimento da linguagem, posta em funcionamento por
protagonistas – sujeitos – que, numa ação dialogal, interagem e, ao se colocarem em seus
discursos, trazem as marcas indeléveis de sua formação sócio-cultural, pelos papéis que
lhes são conferidos pela sociedade; o espaço, o mundo, o contexto, é referido em
consonância com relação real-simbólico, já referida.
Assim, de textos arquivados, os editoriais passam a ser vistos como
discursos – linguagem em movimento – em que políticos, jornalistas, autoridades,
instituições entram numa cena enunciativa, num embate lingüístico para colocarem suas
posições políticas, utilizando da melhor forma, os recursos lingüísticos de que dispõe o
sistema, naquele ‘aqui-agora’ do evento enunciativo.
Neusa de Araújo Fernandes
39
CAPÍTULO III
OS EDITORIAIS: SUA ORGANIZAÇÃO TEXTUAL
Neste capítulo, serão feitas algumas considerações sobre a organização textual
dos editoriais, como suporte do discurso argumentativo de Joaquim Felício dos Santos, a
partir da proposta teórico-metodológica de Bronckart (1999: 119) para análise de
textos/discursos, numa vertente do interacionismo sócio-discursivo da linguagem.
O autor concebe a arquitetura de um texto como um folhado constituído de três
camadas superpostas: a) sua infra-estrutura geral; b) mecanismos de textualização; c)
mecanismos enunciativos. A infra-estrutura é constituída pelo plano mais geral do texto,
pelos tipos de discurso, pelas modalidades de articulação entre os tipos de discurso e pelas
seqüências que nele eventualmente aparecem; os mecanismos de textualização
encarregam-se de garantir a coerência temática do texto, explicitam, tendo em vista o
destinatário, as grandes articulações hierárquicas, lógicas e/ou temporais do texto, pelos
mecanismos: conexão, coesão nominal e coesão verbal e os mecanismos enunciativos são
relacionados aos aspectos da interação que se estabelece entre o agente-produtor e seus
destinatários.
Neusa de Araújo Fernandes
40
3.1. A infra-estrutura geral dos editoriais
Esse nível de organização textual é constituído: 1) plano geral; 2) tipos de
discurso e suas articulações no texto; 3) a seqüencialidade como modos de planificação da
linguagem no interior do plano geral.
3.1.1. O plano geral: o conteúdo temático
De que se fala nos editoriais? Ou contra quê? Responder a essas questões,
implica, em princípio, a identificação do Conteúdo Temático dos textos, sua malha tópica,
a planificação, a identificação dos mecanismos lingüísticos de que o editorialista se valeu,
para realizar a semantização de seu discurso, construir o sentido da sua atividade
lingüística.
Para Bronckart (1999), as informações que compõem o conteúdo temático de um
texto são representações construídas pelo sujeito-locutor como conhecimentos, que variam
de acordo com as experiências desse sujeito e que estão armazenados e organizadas
previamente na memória. Entende-se, pois, que, no processo de interação lingüística com
seu interlocutor, esse locutor atualiza experiências, toma decisões, realiza escolhas, cria um
discurso adequado ao objetivo visado, aos valores do lugar social que ocupa e ao auditório
ou interlocutor a que se destina a sua produção textual.
Assim considerando, pode-se perceber que os editoriais em estudo constituem
unidades semânticas específicas, são representações construídas pelo editorialista, diante
de
Neusa de Araújo Fernandes
41
vários fatos políticos, os quais são interpretados, julgados de acordo com a sua intenção
comunicacional. Nota-se, também, que há entre as unidades semânticas, elementos
comuns, idéias recorrentes que formam uma unidade temática maior, soma coerente de
representações várias da realidade político-administrativa do Brasil Império, feitas pelo
editorialista de O Jequitinhonha, Joaquim Felício dos Santos.
É conveniente admitir-se, porém, que um trabalho interpretativo de uma produção
textual requer que se considerem as proposições nela construídas como unidade cognitivas,
não propriamente transparentes, portanto, sujeitas a várias interpretações, condicionadas a
fatores cognitivos, sociais, ideológicos do sujeito-alocutário. Assim posto, valoriza-se,
neste trabalho de análise de discurso, não a identificação propriamente de um determinado
conteúdo temático, mas uma análise de alguns recursos lingüísticos, de mecanismos
discursivos utilizados na semantização dos editoriais, como produção lingüística,
materializada na modalidade de língua escrita da norma culta da época.
O quadro seguinte, num enfoque enunciativo, mostra, na visão do analista,
conteúdos temáticos dos editoriais, sintetizados em títulos-tema, sem explicitação do plano
geral da organização das idéias de cada um dos seis textos analisados, uma vez que é
considerada a unidade semântica, numa estrutura mais ampla, do conjunto dos editoriais,
sem esquecimento das observações do parágrafo anterior.
Neusa de Araújo Fernandes
42
Contexto espácio-temporal: Brasil, século XIX (1868-1869). Objetivo do autor: combater o governo monárquico do Brasil.
Locutores
01. Crítica ao Ministro das Finanças
02. Crítica à Imprensa Imperial
03. Crítica ao Absolutismo (D. Pedro II)
Atividade Enunciação Enunciados 04. Crítica ao “Cesarismo” (D. Pedro II)
Lingüística (processo) (editoriais) 05. Crítica ao Governo Imperial
06. Crítica ao parlamento brasileiro Alocutários
3.1.2. Tipologia do discurso: gênero discursivo e tipos textuais
Todas as análises de discurso propõem o conhecimento de tipologia de discurso,
que é um princípio metodológico, organizador, que possibilita a generalização de certas
características e particularização de outras. No entanto, há grande variedade e
complexidade na classificação das tipologias, condicionada a fatores diversos como a
concepção de linguagem e de discurso que se adota, assim como o contexto que se
considera, os referenciais teóricos adotados com seus paradigmas conceituais.
A literatura registra várias tipologias de discurso e, entre as arroladas por Orlandi
(1987: 217-228), destacam-se:
Neusa de Araújo Fernandes
43
1- Maingueneau, que articula os modelos de discurso às condições de produção e
coloca o discurso teológico (independente das condições) e o discurso político
fica numa posição intermediária (equilíbrio entre condições e discurso).
2- Dubois – distingue o discurso didático do discurso polêmico. Também propõe
distinção de tipos de discurso, seguindo a tensão, a distância, a modalidade e a
transparência.
3- Há uma tipologia do discurso citado, tendo como critério o modo de
enunciação, distinguindo-se o discurso direto, o indireto e indireto livre.
4- Há, ainda, uma tipologia relacionada à existência de instituições que
produzem o discurso: o jurídico, o político, o religioso, o jornalístico, o
filosófico, o poético. Essa classificação parte de distinções apriorísticas, já
traçadas pelos campos de conhecimento que os determinam.
Além disso, as diferentes disciplinas que estudam os fenômenos textuais-
discursivos têm usado as expressões tipo textual e gênero discursivo como sinônimos. A
esse respeito, Bronckart (1999: 139) considera que, na maioria delas, a noção de gênero
está associada á de discurso e a noção de tipo, à de textos, dizendo-se, portanto, gênero de
discurso e tipos textuais, o que em conseqüência coloca a dimensão textual subordinada à
dimensão discursiva.
Neusa de Araújo Fernandes
44
3.1.2.1. Gêneros discursivos
Desde Aristóteles, na Antigüidade Grega, já havia preocupação pela divisão do
discurso em gêneros, correspondentes aos seus fins e aos interlocutores a que se
destinavam:
A retórica comporta três gêneros, o gênero deliberativo, o gênero demonstrativo ou epidídico e o gênero judiciário, de acordo com a categoria de ouvintes do discurso. São gêneros de discursos oratórios, em que o primeiro, o deliberativo, tem o fim de aconselhar ou desaconselhar. O segundo – demonstrativo ou epidídico comporta duas partes: o elogio e a censura e o terceiro – o judiciário – é uma ação judiciária composta de acusação e defesa. Cada um destes gêneros tem finalidade diferente: porque há três gêneros, há três fins distintos
(Arte Retórica e Arte Poética, 1964: 30-32)
Bakhtin (1992: 279) diz que “qualquer enunciado considerado isoladamente é,
claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso”.
Continua comentando sua riqueza e variedade de gêneros e sua infinitude, dada a
variedade das atividades humanas, comportando cada esfera um repertório de gêneros do
discurso e sobre a presença inevitável dos gêneros de discurso na comunicação verbal.
Afirma (op. cit. p. 301)
Para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros do discurso, em outras palavras, todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo. (grifo nosso)
Os estudos bakhtinianos, com essa visão mais pragmática e mais ampla,
distinguem os gêneros discursivos em primários e secundários. Os primários constituem-
se em situações discursivas em instâncias privadas (conversação espontânea produzida no
âmbito familiar, entre amigos, cartas, bilhetes, diários, anotações, convites informais,
Neusa de Araújo Fernandes
45
escritos ou orais) e os secundários figuram em situações discursivas construídas em
instâncias públicas, de caráter mais formal (conferências, palestras, entrevistas, assembléia,
reuniões, aula, culto religioso, sermões, cartas comerciais, atas, relatórios, formulários,
biografias, documentos e ritos jurídicos, documentos legislativos, receitas culinárias
(também privados), médicas, editorial, reportagem, notícia, propagandas de um modo
geral, romance, contos, crônicas, lendas, fábulas, poemas, teatro, novela, artigos de
vulgarização científica, tese, monografia, etc.). Não há um limite definitivo entre os dois
grupos, pois, às vezes, um pode ser absorvido pelo outro (Silva, 1999: 95).
Uso, forma, conteúdo temático são dimensões a serem contempladas na
classificação dos gêneros discursivos, mas, mesmo assim, toda classificação é incompleta e
precária, dada a diversidade de situações comunicacionais, como já se afirmou.
3.1.2.2. O editorial: um gênero discursivo
Para Reboul (2000: 143) “uma questão capital na leitura retórica é a de gênero
que comanda estritamente o conteúdo persuasivo do discurso”. O gênero determina certos
parâmetros: segundo a escolha do gênero que se faz para tratar de um assunto, já se define
uma maneira específica de dizer: o gênero circunscreve o pensamento.
O Editorial, diante das considerações do item anterior, é um gênero secundário,
construído em instâncias públicas, de caráter mais ou menos formal, veiculado em um
suporte específico: o jornal impresso. Como artigo-de-fundo, em geral, sem assinatura,
representa uma posição da instituição jornalística, diante de certos fatos ou determinados
temas, explicando-os, segundo a sua postura ideológica, com objetivos persuasivos, sendo,
portanto, um discurso argumentativo.
Neusa de Araújo Fernandes
46
O editorial ocupa, portanto, um lugar de destaque em um periódico, é peça
importante para o seu conceito, porque é a expressão da consciência, valores e crenças do
jornal.
Os editorialistas, tanto para produzir editoriais mais gerais, como os
especializados, em geral, possuem um suficiente conhecimento enciclopédico, um
domínino da língua e um estilo que foge da vulgaridade, sem deixar de ser vivo, agradável,
para incentivar ao leitor uma leitura freqüente e desejada.
Mais do que comentar, julgar fatos com seus próprios critérios, o editorialista
tem, no editorial, um instrumento eficaz para orientação dos leitores, desenvolvimento de
campanhas ideológicas e, até mesmo, manipulação da opinião pública. No século XIX,
época da publicação de O Jequitinhonha era no espaço do editorial que se encontrava a
maior possibilidade de influenciar o leitor. Atualmente, também, o editorial é leitura
obrigatória para os que buscam entender os problemas sócio-políticos, especialmente, para
tomar uma posição consciente diante deles.
Há editoriais informativos, interpretativos; há os humorísticos, satíricos,
divertidos; há editoriais provocantes, combativos, que tomando uma posição diante de um
fato, defendem-na com força e coragem. Nessa última categoria estão os editoriais de O
Jequitinhonha, em que se desenvolve uma campanha político-ideológica do Partido
Liberal contra a política do Governo Monárquico de D. Pedro II.
Moran Torres (1888), ao escrever sobre o gênero editorial, compara a sua
estrutura à das sentenças judiciais: “primeiro expõem-se os fatos que dão motivo ao
comentário editorial. Em seguida, no corpo do artigo desenvolvem-se as idéias e o
editorialista se lança, então, na análise dos antecedentes e das possíveis conseqüências. Ele
explica os dados, se polemiza, se argüe, discute, raciocina, se debate, analisa, se questiona
Neusa de Araújo Fernandes
47
e, finalmente, chega a uma conclusão em vista das considerações feitas e oferece uma
solução para o problema proposto. Este é o parecer final de uma sentença judicial”.
Exemplifica esse tipo de estrutura o editorial de 27-12-1868 de O Jequitinhonha.
Primeiro, através de uma citação, Joaquim Felício traz os fatos da queda da Rainha da
Espanha e de outros príncipes da Europa e a análise da causa desses acontecimentos
freqüentes: “é que quizerão obstinados antepor sua vontade e caprichos à razão de todo
mundo”. Em seguida, o editorialista compara os fatos à situação do Imperador do Brasil,
D. Pedro II; analisa os pontos de semelhança, julga as atitudes do Imperador, faz uma
acusação direta ao monarca, como um mentiroso produto das mentiras do “absolutismo” e,
finalmente, expõe a sua conclusão como decisão do partido, em nome do qual posiciona-
se:
Temos princípios, e não queremos continuar a servir de
instrumentos do imperador nos interesses da realeza. Não são nossas palavras nascidas do despeito; expressão elas
convicções sinceras. Queremos o engradecimento de nossa patria e a fraternidade
todos os brasileiros.
3.1.2.3. O editorial: tipos textuais ou seqüências lingüísticas do texto
Qualquer que seja o gênero a que pertençam, os textos são constituídos, segundo
modalidades variáveis, por segmentos de estatutos diferentes, que apresentam certas
regularidades de organização e estruturação lingüística, são os diferentes tipos, isto é,
formas específicas de semiotização do discurso.
Silva (1999: 100-101), considerando os estudos da lingüística textual, define tipo
textual como sendo “uma noção que remete ao funcionamento da constituição estrutural do
Neusa de Araújo Fernandes
48
texto pertencente a um dado gênero discursivo”; trata os “tipos textuais”, segundo
Charaudeau, como “modos enunciativos de organização do discurso no texto, efetivados
por operações textual-discursivas, construídas pelo locutor em função de sua atitude
discursiva em relação ao seu objeto do dizer e ao seu interlocutor”.
Bronckart, como parte de seu estudo sobre os tipos textuais expõe a teoria de
Adam (1991), que apresenta esses tipos como seqüências a que denomina de protótipos,
concretizados em cinco tipos básicos que são as seqüências: narrativa, descrtiva,
argumentativa, explicativa e dialogal.
Essas seqüências são também consideradas por Silva como operações (op. cit.
101) , que podem modalizar-se na forma de: narração, seqüência de fatos, acontecimentos;
descrição, seqüência de aspectos, caracterização de um objeto para que se torne conhecido;
dissertação/argumentação, seqüência de idéias e/ou argumentos para refletir, avaliar,
explicar, comentar, expor pontos de vista para dar a conhecer, fazer crer, associando-se a
análise à interpretação e a injunção, seqüência de ordens e conselhos para incitar o
interlocutor à realizar uma ação, a agir.
3.1.2.3.1. A intercambialidade de tipos nos editoriais
As diferentes seqüências, operações discursivas podem ser combinadas em uma
produção textual, gerando e a heterogeneidade composicional da maioria dos textos; assim
um texto, pertencente a um gênero discursivo, pode trazer, na sua configuração, vários
tipos textuais, que são limitados, identificando-se como mecanismos de textualização,
enquanto os gêneros de discurso são infinitos, como decorrentes da multiplicidade das
atividades lingüísticas humanas.
Neusa de Araújo Fernandes
49
Nos editoriais em estudo, há a combinação, conjugação de determinados tipos
textuais, ou seqüências lingüísticas, havendo predominância do tipo dissertativo-
argumentativo, uma vez que o gênero editorial é caracterizado como um texto de opinião,
que informa, seja narrando, descrevendo, ou expondo, para colocar pontos de vista e
construir seus argumentos, visando à persuasão, ao convencimento do sujeito-interlocutor.
Pode-se perceber, claramente, a intercambialidade dos tipos, no editorial de 04-
10-1868, quando Joaquim Felício conjuga narração-descrição-dissertação/argumentação,
na composição textual:
Não há muito tempo que voltava da Europa o Sr. De Itaborathy. O thezouro andava mal. Dizia-se que mais dias menos dias a bancarrota daria cabo do paiz. Na tribuna, na imprensa os planos financeiros rolavão como arêa do mar. No meio de tão grande anciedade procurava-se um salvador. Esperava-se de braços abertos o homem da situação. Chegou então o actual ministro das finanças. (...) O ministro ‘indicado’ tinha feito seu gyro por entre o povo das experiências. Tinha visto, tinha lido, tinha meditado.
Na textualização do fato (volta do ministro), a coesão temporal entre o pretérito
inconcluso – imperfeito – “voltava”, “andava”, “dizia-se”, “rolavam”, “procurava-se”,
“esperava-se” e o pretérito concluso – perfeito – “chegou” e o mais-que-perfieto – “tinha
feito”, “tinha meditado” marcam a presença de um discurso narrativo.
Ao lado das seqüências narrativas percebe-se uma relação descritiva da situação:
“o tesouro andava mal”, “os planos financeiros rolavam como as areias do mar”,
“esperava-se de braços abertos”, em que, obviamente, há um julgamento, um ponto-de-
vista do locutor-observador, sob a ótica de sua intenção enunciativa: a persuasão.
Neusa de Araújo Fernandes
50
Já predominantemente descritivo, o fragmento abaixo constitui a figura
hipotipose, que consiste em descrever um espetáculo ou um acontecimento de modo tão
vivo que o auditório acredite vê-lo diante dos olhos.
E pois, o homem passou envolto na sua capa. Na capa envolto era mais soberbo mais altaneiro do que o romano que na toga levava ou a paz ou a guerra. Ampla fieira de gente fez-lhe orquito... (...) Ia-lhe no couce a tribu famelica dos jogadores de cambio. Parou a pompa às portas do palácio. Cesar recebeu nos braços o ministro futuro.
A seguir avalia-se o fato, a viagem do Ministro à Europa, mostra-se ao
interlocutor, ironicamente, a significação do ato; busca-se convencer o leitor do absurdo
das medidas econômicas adotadas pelo ministro, num tipo de discurso
dissertativo/argumentativo, ou, como querem alguns estudiosos do assunto,
argumentativo/dissertativo, uma vez que a informação está em função da argumentação,
que se constrói ao longo do editorial.
Não é debalde que se dá um passeio à Europa, que se visita a França, que se vai assistir na Inglaterra ao debate de um povo livre em um parlamento soberano. O ministro ‘indicado’ tinha feito o giro por entre o povo das experiências. Tinha visto, tinha lido, tinha meditado. E o fizera em bem. (...) Novos ares, novas idéias. Na fronte de bemvindo estava sem dúvida occulto o pensamento salvador.
3.1.3. A seqüencialidade argumentativa dos editoriais
Os editoriais, como já se disse no item anterior, têm, na sua planificação textual, a
predominância de seqüência dissertativo/argumentativa, apresentam uma estruturação
composicional em que se conjugam, também, seqüências narrativas e explicativas.
Neusa de Araújo Fernandes
51
Dada a sua predominância, apenas a seqüencialidade da argumentação é aqui
descrita, uma vez que o objetivo argumentativo dos editoriais tem merecido maior atenção,
durante a construção da análise do discurso de Joaquim Felício dos Santos.
A semiotização do raciocínio argumentativo numa produção textual é feita através
de uma planificação, que Brockart (op. cit.: 226-227) denomina como o protótipo da
seqüência argumentativa, composta de uma sucessão de quatro fases.
- a fase de premissas (ou dados) em que se propõe uma constatação de partida;
- a fase de apresentação de argumentos, isto é, de elementos que orientam para
uma conclusão provável;
- a fase de apresentação de contra-argumentos, que operam uma restrição em
relação à orientação argumentativa e que podem ser apoiados ou refutados por
lugares comuns, exemplos, etc.
- a fase de conclusão (ou de tese), que integra os efeitos dos argumentos e
contra-argumentos.
O editorial de 24-01-1869 traz, bem clara, a seqüencialidade argumentativa, como
se pode perceber.
1) A premissa: o espírito dos povos, sua nobreza de sentimentos, a sublimidade
de suas aspirações são turvados pela audácia, perfídia e a hipocrisia dos
governos absolutistas.
2) Apresentação dos argumentos que confirmam a premissa, a tese inicial
– Exemplos de tiranias:
• César, ditador romano conspira apunhalando a liberdade romana.
Neusa de Araújo Fernandes
52
• Cromwel, ditador inglês, e Bonaparte, imperador francês, seqüestraram a
liberdade do povo.
• 1º e 2º reinados – uma emboscada na destruição dos princípios da moral.
• Espanha, França, Brasil – afogaram o movimento nacional da libertação.
3) Contra-argumentação: fatos contrários aos exemplos apresentados como
argumentos a favor da tese.
Exemplos:
• Na França: a queda de Carlos X – catástrofe de 1848 – a democracia podia ter surgido.
• No Brasil: 07 de abril de 1834 – semi revolução, poderia ter vingado a democracia.
4) Conclusão: Diante dos fatos, exemplos (argumentos) e dos contra-argumentos
(fatos com orientação argumentativa contrária) permanece a tese inicial e ela
se torna vencedora: “Quem observando a nossa marcha política deixará de
enxergar a conspiração constante do ‘imperialismo’ contra as instituições?”
Finalmente, uma tomada de posição: a onda da democracia está subindo como
enchente, conforme diz Reyer Collard, na França. “Hoje, precisa-se organizá-la, quebrando
os laços que a manietavam e habilitando-a a viver vida própria”.
Joaquim Felício reforça a sua tese: o imperialismo brasileiro deve acabar e faz
reverência à Europa, onde já nascia a onda da democracia, como “enchente impetuosa”.
Toda a sua argumentação converge para a sua tese maior, e a premissa, a tese inicial, foi o
ponto de partida, garantindo o acordo prévio com seus interlocutores, como início de um
processo de persuasão, convencimento, a que se propôs.
Assim, pode-se afirmar que os editoriais, como produto concreto de um discurso
argumentativo, são textos, que apresentam uma organização estrutural, caracterizada
Neusa de Araújo Fernandes
53
como gênero discursivo, que é composto de seqüências lingüísticas ou tipos textuais
combinados, o que lhe garante a unidade semântica, formal e sócio-comunicativa. O plano
geral dos editoriais se desenvolve em função da coesão e da coerência, possibilitando a
construção do conteúdo temático, da semantização do texto, em conformidade com a
intenção do locutor que é a de influenciar o seu interlocutor, fazendo-o comungar de suas
idéias sobre a política administrativa do Brasil.
Neusa de Araújo Fernandes
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CAPÍTULO IV
A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DOS EDITORIAIS:
REFERÊNCIA, INTERTEXTUALIDADE E ERUDIÇÃO
No capítulo anterior, para responder à pergunta de que falam os editoriais, fez-se
uma síntese de seus conteúdos temáticos, caracterizados como uma crítica à monarquia
brasileira, seguida de uma proposta de sua extinção, uma vez que considerada como
instituição “velha”, “caduca” e “anacrônica”. Joaquim Felício realiza a sua ação verbal,
concentrando a sua crítica em D. Pedro II, representante legal do sistema político de
governo, como Imperador do Brasil.
Neste capítulo, para responder à indagação como se construiu esse discurso
político, pretende-se explicitar os mecanismos lingüísticos de que se valeu o editorialista
para realizar a interlocução.
A atividade interinvidual de linguagem pressupõe um processamento textual, para
o qual contribuem três grandes sistemas de conhecimento, conforme Heinemann e
Vichweger, 1991, apud Koch (1998: 26). São os conhecimentos: lingüístico, enciclopédico
e interacional. O primeiro diz respeito ao conhecimento gramatical e lexical; o segundo
refere-se ao conhecimento de mundo utilizado, que se encontra disponível na memória de
cada indivíduo e o terceiro é o conhecimento sobre as formas de interagir com seu
interlocutor através da linguagem, é o conhecimento sócio-interacional. Apenas os dois
Neusa de Araújo Fernandes
55
primeiros serão objeto de considerações, uma vez que o terceiro já foi considerado no
Capítulo III.
4.1. O conhecimento lingüístico no processamento textual
O conhecimento lingüístico no processamento textual é responsável pela
organização do material na superfície textual, pelo uso dos meios coesivos que a língua põe
à disposição de seus usuários para efetuar a remissão ou a seqüenciação textual, pela
seleção lexical adequada ao tema e/ou aos modelos cognitivos ativados.
Bronckart (1999: 119) propõe três mecanismo de textualização: 1) a conexão –
articulação da progressão temática realizada por organizadores textuais; 2) a coesão
nominal, responsável pela introdução, preservação, continuidade e identificação dos
referentes textuais e pela progressão tópica que diz respeito ao(s) assunto(s) tratado(s) ao
longo do texto e 3) a coesão verbal, que trata da organização temporal e/ou hierárquica dos
processos (estados, acontecimentos ou ações) verbalizados no texto.
As considerações feitas, neste capítulo, referem-se ao segundo mecanismo de
textualização a coesão nominal, dada a sua importância na semantização dos editoriais.
Neusa de Araújo Fernandes
56
4.1.1. Os mecanismos de coesão nominal
Um aspecto central da textualização é a organização referencial que dá
continuidade e estabilidade ao texto, responsabilizando-se pela coesão e coerência do
discurso, garantindo a unidade formal e semântica do enunciado.
A coesão nominal resulta da organização referencial, como já se disse, é
responsável pela introdução, preservação, continuidade, identificação dos referentes
textuais e pela progressão tópica, que possibilita o desenvolvimento do assunto, ordenação
de seus tópicos, ao longo do texto, usando para isso vários recursos lingüísticos: pronomes
pessoais, relativos, demonstrativos, possessivos e sintagmas nominais. Assim, a relação
entre linguagem, mundo e pensamento estabelecida no discurso, é realizada através da
organização referencial no texto com o uso das estratégias de referenciação.
Segundo observam Sanfor e Garrod (1982: 100) apud Marcuschi (1998) o
processo de resolução da referência é essencial em qualquer estudo que busque dar conta
da compreensão textual.
Ducrot (1972: 232) enumera os recursos lingüísticos responsáveis pelo processo
de referenciação no texto:
Chamam-se freqüentemente referenciais as expressões que permitem ao locutor designar para o destinatário um ou mais objetos particulares do universo do discurso (quer este seja ‘real’ quer seja imaginário). Nessa categoria incluem-se, notadamente, 1º os nomes próprios como Napoleão, Pedro cujo emprego exige que se possam aplicar-se, no contexto da enunciação, a uma pessoa, acrescentando-se-lhes expressões de nomes próprios, como a Lua; O Rei-Sol; 2º os pronomes substantivos demonstrativos (este livro, estas crianças); 4º os pronomes pessoais (eu, tu bem como ele, quando a um ser exterior e não a um segmento do discurso); 5º os grupos nominais precedidos de artigo definido, ou seja, segundo a expressão de Russel, as ‘descrições definidas’ (o Rei da
Neusa de Araújo Fernandes
57
França, o zelador, as crianças de Tiago, o cavalo branco de Henrique); 6º os grupos nominais precedido de um possessivo (minha tese, minhas crianças) com possibilidade o 6º e o 5º se fun direm = se admitir que
minhas crianças = crianças de mim.
Duas funções de coesão nominal podem ser distinguidas: a de introdução do
referente que consiste em marcar no texto a inserção de uma unidade de significação nova,
denominada de unidade-fonte que é a origem da cadeia anafórica, e a de retomada, que
pode reformular essa unidade-fonte (ou antecedente) no decorrer do texto.
Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995: 228) fazem uma distinção entre referentes
mundanos e objetos-de-discurso. Os objetos-de-discurso não pré-existem ao discurso como
tal, mas são construídos no seu interior. São esses objetos que os itens lexicais vão
designar o não propriamente algo que esteja fora da mente, algo mundano.
A referenciação é, nessa visão, um processo discursivo não podendo ser definida
aprioristicamente, mas em relação direta com o discurso em que está inserida, a sua
significação será sempre contextualizada. A realidade empírica passa a ser uma construção
da relação da pessoa com a realidade. Assim, a retomada dos referentes no texto, na sua
progressão referencial, não implica necessariamente a repetição dos mesmos referenciais,
mesmos itens lexicais, mas pode haver, o que é bastante freqüente, modificação,
recategorizações. Os referentes mundanos são retomados como objetos-de-discurso e estes
são usados pelo locutor de acordo com suas intenções comunicacionais, dessa forma, certas
anáforas recategorizam seus objetos com uma visão argumentativa, a expressão verbal
direciona-se à formação de argumentos, em forma de metáforas ou palavras que revelam
uma avaliação, um juízo de valor (como se pode perceber nos exemplos dos editoriais a
seguir). É, portanto, um processo discursivo.
Neusa de Araújo Fernandes
58
Para realizar o processo de referenciação, o locutor tem à sua disposição uma série
de alternativas já elencadas por Ducrot, em citação feita anteriormente, podendo, realizar o
processo da recategorização com o uso dessas mesmas alternativas.
Apothélez e Reichler-Béguelin (1995: 247) consideram como principais
transformações que a anáfora pode operar no referente:
1) recategorização lexical explícita
2) recategorização lexical implícita
3) modificação da extensão do objeto
1) A recategorização lexical explícita produz uma predicação de atributos. Pode-
se retomar o mesmo item lexical e acrescentar-lhe modificadores ou tomar um item lexical
recategorizador, ou seja, nova expressão lexical. O que vai importar não é mais a
referência empírica, mas o objeto-de-discurso construído pelo locutor. A nova expressão
que retoma o objeto mundano, acresce-lhe novos conhecimentos e atributos, modificando o
sentido e a orientação da referenciação.
No editorial de O Jequitinhonha, de 04-10-1868, o referente empírico O Sr. de
Itaboraboy é introduzido no texto e passa a uma unidade-fonte, que dá origem à cadeia
anafórica para retomada desse referente. Percebe-se, a seguir, que a retomada é feita
através do processo de recategorização explícita. Ao objeto mundano são enxertadas
predicações, com claras intenções persuasivas, pelo editorialista, como se pode perceber:
Não há muito tempo voltava da Europa o Sr. De Itaborahy (...) Esperam-se de braços abertos o homem da situação. (...) Chegou então o atual Ministro das Finanças. (...) O Ministro ‘indicado’ tinha feito um giro por entre o povo das experiências. (...) Assim foi que, logo ao desembarque do novo Pill... (...) Cesar recebeu nos braços o ministro futuro. (...) Os olhos volveram-se para o ‘grande’ ministro (...) O ministro-programa começou por balbuciar uma desculpa... (...) Assim, o papel do Messias da Fazenda limitou-se a. (...) Hosanna ao Ministro!
Neusa de Araújo Fernandes
59
As expressões nominais que retomam o referente, algumas vezes, conservam o
item lexical ministro, acrescentando-lhe atributos e, outras vezes, constituem-se em novos
itens, como: o homem da situação, o novo Pill, o Messias da Fazenda.
Vê-se nessa recategorização explícita uma orientação argumentativa, que será
explicada no próximo capítulo, na identificação da construção dos argumentos.
2) A recategorização lexical implícita é feita através de um pronome anfórico que
remete a um referente e o retoma, mas modificando algum aspecto. As três funções que lhe
são atribuídas pelos autores citados (op. cit. p. 253-254) são de redução de ambigüidade
referencial, sugestão de uma correlação particular em que uma mudança de gênero do
pronome refere algo implicitamente conotado.
3) Modificação da extensão do objeto
A recategorização com a modificação da extensão do objeto ou de seu estatuto
lógico nem sempre implica uma recategorização lexical, mas de outro tipo: formal.
Ex.: Em Belo Horizonte há muitos restaurantes e bares.
Aqui eles vivem buscando esse tipo de lazer a semana toda.
O pronome eles não tem referente explícito, mas um domínio referencial extraído
do estatuto lógico: quem freqüenta bares e restaurantes são os habitantes da cidade, logo
justifica-se o emprego do pronome eles.
Há outros tipos dessa categoria que não serão analisados, por não serem
pertinentes ao trabalho.
Ainda no editorial de 04-10-1868, há um referente D. Pedro II, cujo nome próprio
Neusa de Araújo Fernandes
60
não aparece nem uma vez. Transformado em César7 pela designação feita pelo
editorialista, a progressão textual ocorre com as retomadas freqüentes da designação e o
sentido próprio do referente só é possível pela leitura de outros editoriais ou pela inferência
a partir de alguns enunciados:
Parou a pompa às portas do palácio, Cesar recebeu nos braços o
ministro futuro, O ministro-programa começou por balbuciar uma desculpa.
Desapontamento de Cesar, espanto geral! O ministro vai emitir mais quarenta mil contos de papel moeda! Cesar o quer, Cesar o mandou” Louvor a César! (grifo nosso)
Vê-se que os enunciados se referem à autoridade máxima do Brasil, seu
governante, portanto, a D. Pedro II. É um exemplo bem significativo de uma anáfora
recategorizada por um novo item lexical, metaforicamente construído – César – para
atender a objetivos comunicacionais do locutor. Como objeto-de-discurso-, à referência
característica, do referido, são lhe acrescidos os atributos necessários a uma nova visão do
referente empírico. Joaquim Felício não julgou necessário, nesse editorial, colocar a idéia-
fonte, o nome do referente empírico, D. Pedro II, porque o que lhe interessava era a figura
administrativa, que no discurso, era descrita como César, o Imperador Romano, o ditador,
o absolutista, o poderoso. Assim, o nome próprio usado (no próximo capítulo tratado como
uma figura retórica, antomásia) é uma estratégia de referenciação, com grande valor
argumentativo, que mantém a coesão nominal do texto.
7 César: ditador romano (101-44 a. C.). Caius Tulius Ceasar conquista várias regiões para Roma e se torna o
homem mais célebre do primeiro triunvirato. Tinha uma ambição ilimitada, tinha sede de poder, sonhava tornar-se senhor de Roma. Foi governador da Espanha; em Roma foi pretor, sumo pontífice, tribuno, cônsul (presidente). Recebeu honrarias como se fosse senhor do universo. Foi em 44 a. C. assassinado por Marcus Brutus, em pleno Senado. Segundo Chateaubriant, César é o homem mais completo da História porque reuniu tríplice qualidades: político, escritor e guerreiro. Diz a História que ao lado de sua coragem inexcedível, de um sangue frio extraordinário, o traço dominante de seu caráter foi a ambição desenfreada.
Neusa de Araújo Fernandes
61
Além da designação de “César”, para a pessoa do Imperador D. Pedro II, o
editorialista fez várias outras, buscando mostrar traços da personalidade do monarca
brasileiro, através de comparações com personalidades históricas, personagens de obras
literárias, em que a tônica foi sempre a mesma: denegrir a imagem do Imperador, diante de
seus interlocutores; foi mostrar aspectos negativos de seu comportamento, através dos
defeitos das personalidades aludidas, hipoteticamente, já conhecidas pelos interlocutores.
O “nosso César”, como foi chamado D. Pedro II, foi lembrado por Joaquim
Felício, explícita ou implicitamente, como Nero, Calígula, Luiz Felipe, Luiz XVI, Carlos
X, Isabel II, Cromwel, Napoleão Bonaparte, Tibério, Saturno e outros. São nomes
próprios, referidores, que reforçaram a intenção do editorialista: mostrá-lo como alguém
que perdeu o poder, depois de um domínio absoluto.
Ironicamente, Joaquim Felício comparou D. Pedro a Marco Aurélio, a Augusto, a
Carlos Magno, a D. Pedro, o Africano (de Portugal), deixando ver que desses o referido
não tinha as qualidades que buscava demonstrar, como pode ser apreendido através da
leitura dos editoriais.
Enfim, nomes próprios de pessoas, deuses, monarcas somaram-se mais de
sessenta marcas lingüísticas de referenciação, nos seis editoriais, não sendo nenhum
desses nomes relacionado à realidade brasileira, mas a maioria, à européia e raras vezes, à
americana.
A significação de cada designação implica o conhecimento da personalidade, de
sua história, de suas características ou feitos a serem colocados a serviço do plano
argumentativo do locutor, demonstrando o que se reafirmou, várias vezes, os editoriais são
atualizações históricas que os tornam textos eruditos.
Neusa de Araújo Fernandes
62
4.1.2. A seleção lexical: norma lingüística e contexto sócio-cultural
Os três mecanismos de textualização: conexão, coesão nominal, coesão verbal são
realizados a partir de uma seleção lexical adequada, condizente com gênero do texto, a
norma lingüística usada, o contexto sócio-cultural da veiculação dos discursos, do
conhecimento da língua do locutor, na verbalização de seu conhecimento de mundo e de
suas intenções comunicacionais.
Joaquim Felício dos Santos revela-se como um escritor erudito, quanto ao manejo
da língua culta, na modalidade escrita da época. Atualizar as experiências culturais
armazenadas em sua memória, fez-lhe utilizar um vocabulário com fortes raízes na cultura
clássica e construir os seus discursos políticos exigiu-lhe domínio amplo da leitura de
autores consagrados da literatura universal de várias especializações. Isso confirma o que
Bakhtin (1997: 147): “A língua não é o reflexo das hesitações subjetivo psicológicas, mas
das relações sociais estáveis dos falantes”.
Benveniste (1989) também fala sobre a relação língua sociedade, mostrando que a
língua enquanto prática humana interpreta a sociedade e, portanto, ela varia de acordo com
as comunidades humanas:
A língua nasce e desenvolve no seio da comunidade humana, ela se elabora pelo mesmo processo que a sociedade, pelo esforço de produzir os meios de subsistência de transformar a natureza e multiplicar os instrumentos. É nesse trabalho coletivo e por este trabalho coletivo que a língua se diferencia em suas atividades materiais e intelectuais.
Continua o autor explicando que, para isso, ela deve preencher duas condições: 1-
como interpretante, não pode, diferenciar nos moldes da sociedade que muda, evolui, ora
lenta, ora rapidamente, porque ela [a língua] estabelece uma semiologia geral, uma
estrutura mais estável, capaz de registrar, de designar e mesmo orientar as
Neusa de Araújo Fernandes
63
mudanças que sobrevêm no interpretado – a sociedade. 2- mas a língua muda, lentamente,
sobre a pressão das necessidades internas ao longo de muitas gerações.
Portanto, há uma relativa estabilidade – unidades significantes básicas ao lado de
diferenciações no interior da linguagem comum – que revelam o uso particular que dela
fazem os grupos ou classes sociais, numa rede complexa de relações espácio-temporais.
Sintetizando, a Sociolingüística admite que toda língua varia de acordo com a
classe social (variação diastrática), de acordo com o espaço em que a comunidade
lingüística vive (variação diatópica) e muda com o tempo (variação diacrônica).
Diante dessa realidade, analisar enunciados produzidos em uma sociedade do
Século XIX implica, naturalmente, buscar informações sobre a variedade lingüística
utilizada pelo autor na organização textual dos discursos – os editoriais.
Conhecer, pois, a situação lingüística do Brasil no Século XIX pode contribuir
para melhor explicar algumas características das organizações textuais, como a seleção
lexical, os processos de referenciação na construção semântica dos enunciados, recursos
retóricos utilizados na construção dos argumentos.
Numa rápida retrospectiva histórica, vê-se que Serafim da Silva Neto (1963: 73-
100) divide a História da Língua Portuguesa no Brasil em três fases: 1ª fase (1532 -1654),
do início da colonização até a expulsão definitiva dos holandeses do território; 2ª fase
(1654-1808), da expulsão dos holandeses com o conseqüente incremento da emigração do
reino para a colônia à chegada do Príncipe Regente e da Corte portuguesa ao Rio de
Janeiro; 3ª fase (1808 até o presente), da chegada de D. João VI (Príncipe regente) e da
corte portuguesa, que transformaram o Rio de Janeiro na Capital do mundo português, até
os dias atuais.
Neusa de Araújo Fernandes
64
Interessa a este estudo a terceira fase que foi marcada pelos treze anos de reinado
americano de D. João VI, o rápido fenômeno da urbanização brasileira, o crescente
movimento migratório e a difusão lenta mas progressiva do falar urbano que se constitui
em norma padrão lingüística das classes bem dotadas no Brasil.
Foi nesse cenário de “relusitanização” do Brasil, convivendo com a complexidade
do fenômeno da aculturação, resultante do contato direto e contínuo de culturas diversas, a
indígena, a africana, a européia que se formou o escritor brasileiro do Século XIX.
Solange Leda Galo (1996) faz a pergunta: “Qual é efetivamente a língua do Brasil
no Século XIX? Em seguida, tentando responder à sua indagação, mostra a situação
lingüística do Brasil, no século XVI, com centenas de línguas orais, não-grafadas, que
entraram em confronto com a língua do colonizador português, resultando o que Mattoso
Câmara define como ‘tupi jesuíta’, acrescido mais tarde por outras línguas faladas pelos
imigrantes que chegaram ao Brasil. Mas a língua escrita apresenta-se como normativa,
excluído o que não segue suas normas, sendo os textos orais considerados ilegítimos, não
nacionais em relação à unidade da língua portuguesa e, assim, a “língua brasileira” é
ignorada.
Conforme a autora “estabelece-se, então, a partir desses fatos, uma relação direta e
paradoxal entre a norma lingüística e a nacionalidade: “quanto mais de acordo com as
normas da língua disciplinar (a portuguesa), mais brasileira” era considerada a produção
textual.
Conclui a autora que ensinar a língua no Brasil é “ensinar a reproduzir a língua
escrita já reproduzida”. Isso significa uma aceitação passiva dos brasileiros, mas uma
opção clara pela norma do português europeu. Martins (1888: 8-55) afirma haver sim uma
bifurcação do português nas variantes de Portugal e do Brasil, que se vinha processando
Neusa de Araújo Fernandes
65
mais claramente no Século XVIII, acentua-se no Século XIX, suscitando numerosos
debates, polêmicas, estudos alguns mais apaixonados, outros mais objetivos, constituindo a
chamada “questão da língua brasileira”. Os escritores fundem, em proporções variáveis, a
língua apreendida no meio familiar e social com a aprendida na escola e pelas leituras
feitas.
Tecendo considerações sobre a educação dos escritores do Século XIX, afirma
que recebiam um ensino essencialmente humanístico, constituído da gramática, da retórica,
da literatura e as línguas estrangeiras tinham particular relevo; o português escolar estava
divorciado da língua falada do povo, cuja maioria era analfabeta.
No Século XIX, sobretudo na segunda metade, aumenta consideravelmente o
número de gramáticas da língua portuguesa empenhadas em manter a tradição clássica
lusitana. As gramáticas escritas no Século XIX refletiam mais a língua dos tempos
passados, colocando os modelos clássicos como o ideal absoluto. Não obstante os protestos
renovador do anticlassismo, do Romantismo e inegáveis inovações no manuscrito da
língua, a reverência aos clássicos continuava viva.
Machado de Assis era considerado um escritor que mantinha certo equilíbrio,
evitava atitudes extremas, reconhecia a evolução das línguas, mas refutava a opinião de
que se deviam aceitar todas as alterações da linguagem visto haver limites para a influência
popular.
Alusões à gramatiquice do Século XIX e críticas ao ensino da língua foram feitas
nas primeiras décadas do Século e críticas ao ensino da língua foram feitas nas primeiras
décadas do Século XX e até mesmo nos dias atuais, como se pode ver. Roberto Pompeu de
Toledo, sem seu Ensaio na revista Veja de 28-02-2001, ao comparar o Senado de 1860
com o atual, de 2001, escreve:
Neusa de Araújo Fernandes
66
Brincava-se de parlamentarismo à inglesa num país de escravos O Senado era como um Salão de Madame. Conta Machado de Assis que o Senador José de Araújo Ribeiro mantinha um dicionário sobre o tapete perto ao pé de sua cadeira. Sempre que ouvia, de um orador, um vocábulo que lhe parecia de incerta origem ou duvidosa aceitação, recolhia o volume do chão, para conferir. Vigiava-se o idioma numa nação de senzalas, capitães-do-mato e golpes de açoite.
A Retórica era ensinada nas escolas, nos seminários, era cultivada nas academias,
nas reuniões literárias, no púlpito e na tribuna e teve grande importância nas campanhas da
Independência, a Abolição e da República. Afirma Martins (1988: 12)
Ao lado da retórica benéfica, que serviu a causas progressistas, floresceu também uma retórica inútil, que alimentou muita eloqüência vazia, ‘tesa, engomada e chocha’, conforme a metafórica adjetivação de Brás Cubas. A retórica que atesta a importância da oralidade num pais em que o hábito de leitura era muito restrito impregnou, de forma ora mais, ora menos acentuada, não só a imprensa de caráter político, como também o teatro, a poesia e o romance do período.
As frases oratórias, períodos enfáticos, com intenção clara de convencer o
interlocutor aparecem na poesia de Gonçalves Dias, de Castro Alves, em Alencar,
Bernardo Guimarães ou Coelho Neto.
O Latim, no Século XIX, era a língua de prestígio, merecendo toda atenção o seu
ensino, como sendo essencial à formação da juventude. Os latinismos, empréstimos ou
citações, conferiam pompa, dignidade, nobreza ao estilo e às vezes um tom afetado.
Eduardo Guimarães, em artigo “Sinopse dos estudos do português no Brasil: a
‘gramaticalização brasileira’, centra a sua atenção no estudo da língua portuguesa no Brasil
a partir do final do Século XIX, quando já se discute a diferença entre o português do
Brasil e o de Portugal, quando ocorrem as célebres polêmicas entre José de Alencar e
Pinheiro Chagas e Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco, quando se fundam os estudos
brasileiros sobre o Português. Ao descrever esse período, o autor observa:
Neusa de Araújo Fernandes
67
(...) é interessante observar que neste período há uma grande onda purista no Brasil que procura dar como norma para a língua a gramática dos textos clássicos portugueses.
Foi neste contexto, rapidamente descrito, que se formou o editorialista de O
Jequitinhonha, Joaquim Felício dos Santos, que mostra em seus editoriais uma opção bem
nítida por uma língua culta em que a organização textual, a seleção lexical, as figuras de
retórica na construção dos argumentos, os processos de referenciação e progresso textual a
tornam uma modalidade culta, erudita, ou seja, uma relação caracterizada pelo
refinamento: uma tessitura lingüística trabalhada, burilada. Entre as marcas lingüísticas
dessa erudição destaca-se a intertextualidade que lembra as culturas clássicas,
especialmente da Grécia e Roma, através de citações latinas, referências mitológicas e
históricas, alusões a personalidades célebres do mundo político cultural, que se tornaram
universalmente conhecidas pelos seus feitos, suas idéias.
Essa universalidade de conhecimento leva a crer que os ensinamentos de Cícero e
Quintiliano estiveram presentes na formação do editorialista de O Jequitinhonha, uma vez
que pregaram que só a cultura geral, Humanistas, permitia exprimir-se de modo justo e
apropriado, elevar o debate da ‘causa’ à ‘thesis’, do caso particular à questão geral
subjacente. Para Quintiliano “a retórica é o sinônimo de cultura e a formação do orador é
um tratado completo de educação, a partir da primeira infância, nele incluindo a gramática,
como explicação de textos, a retórica como técnica de argumentação”.
O uso de uma norma culta, erudita, nos editoriais é, sem dúvida, uma
conseqüência da formação do editorialista, que, embora residindo no interior das Minas
Gerais, vivia os movimentos culturais da Corte, no Brasil, e revivia a cultura européia, o
que bem atesta o marcante fenômeno da intertextualidade erudita em seus editoriais.
Neusa de Araújo Fernandes
68
A evocação do passado, no Século XIX, era uma forma de valorização da língua,
da revitalização do classicismo; a dependência dos grandes centros europeus fazia os
escritores brasileiros verem nos modelos da Europa o ideal da literatura e, assim,
importavam o seu estilo.
Por toda a parte, no fim do século XIX, vive-se na dependência dos grandes centros industriais da Europa. O surto da Inglaterra e da França polariza de tal forma a atenção do mundo, que todos estão a plagiar-lhe a arte e o modo de viver.
(Barros Latif, apud Luciano Trigo, 2001: 25)
4.2. Os conhecimentos enciclopédicos
Retomando Koch (1198), que propõe a conjunção de três grandes sistemas de
conhecimento para o exercício da atividade interindividual de linguagem: o lingüístico, o
enciclopédico e o interacional, tem-se, neste item, o objetivo de explicitar como é visto o
segundo sistema: conhecimento enciclopédico, na leitura dos editoriais.
O conhecimento de mundo de Joaquim Felício, revelado através das referências à
cultura clássica, à História da Europa, deixa bem claro tratar-se de um leitor, de um
estudioso de autores eruditos da Literatura universal, da História da Civilização. Crítico
contumaz e corajoso da realidade político-administrativa do Brasil Império, ele constrói a
interlocução (EU-TU), como homem culto, através da referência (EU-TU/ELE), erudita,
numa relação com o mundo, conforme suas representações do real, marcadas pela
atualização de discursos “já ditos”, caracterizados no uso do mecanismo da
intertextualidade como se pode perceber nas considerações que serão feitas no item
seguinte.
Neusa de Araújo Fernandes
69
4.2.1. Intertextualidade e erudição nos editoriais
Nos estudos de Análise de Discurso, atualmente, é indispensável conhecer os
fenômenos do dialogismo, heterogeneidade, polifonia e intertextualidade; suas diferenças
e/ou equivalências, como também sua(s) utilização(ões) na semantização do discurso, no
processo de sua textualização e na atividade de compreensão textual. Vários estudiosos
posicionaram-se sobre esses fenômenos, sendo exemplos significativos:
Bakhtin (1929) introduziu nas Ciências da línguagem o conceito de polifonia,
mostrando o caráter dialógico da linguagem, em oposição ao monológico que, para ele, não
existe realmente.
Barthes (1974) procurou mostrar que todo texto é um intertexto e que os discursos
são construídos de fragmentos de outros discursos.
Ducrot (1984) propôs uma Teoria da polifonia concebendo vários sujeitos
responsáveis pela produção de um discurso na cena enunciativa: o locutor, o falante, o
enunciador, como já foi comentado no primeiro capítulo deste trabalho, quando foram
tecidas rápidas considerações sobre o sujeito do discurso.
Maingueneau (1989: 75) considera a heterogeneidade do discurso em dois planos:
a heterogeneidade ‘mostrada’ e a heterogeneidade ‘constitutiva’. A ‘mostrada’ é
constituída pelas manifestações explícitas, recuperáveis, a partir da diversidade de fontes
de enunciação, ou seja, marcada pelo desdobramento da figura do locutor, enquanto a
heterogeneidade constitutiva não é marcada na superfície do enunciado, mas através do
interdiscurso, do “já dito”, que é fundamental na construção de todo discurso.
Neusa de Araújo Fernandes
70
Também Pêcheux (1969) considera que um discurso se estabelece sempre sobre
um discurso prévio, com ele construindo uma relação de concordância, discordância,
aproveitamento de partes e destruição de outras.
Kock (1998: 46-57) com o objetivo de refletir sobre a relação intertextualidade e
polifonia, discute se esses dois termos designam um só fenômeno ou não, concluindo que
não há coincidência total entre os dois conceitos e explica:
Na intertextualidade, a alteridade é necessariamente atestada pela presença de um intertexto; ou a fonte é explicitamente mencionada no texto que o incorpora ou o seu produtor está presente em situações de comunicação oral; ou, ainda, trata-se de provérbios, frases feitas, expressões estereotipadas ou formuladas de autoria anônima, mas que fazem parte de um repertório partilhado por uma comunidade de fala. Em polifonia basta que a alteridade seja encenada, isto é, incorporam-se ao texto vozes de enunciadores reais ou virtuais, que representam perspectivas, pontos de vista diversos, ou põe em jogo ‘topoi’ diferentes, com os quais o locutor se identifica ou não. Desse modo, a meu ver, o conceito de polifonia recobre o de intertextualidade, isto é, todo caso de intertextualidade é um caso de polifonia, não sendo, porém verdadeira a recíproca: há casos de polifonia que não podem ser vistos como manifestações de intertextualidade.
A autora considera, ainda, a intertextualidade em dois sentidos: amplo, condição
de existência ao próprio discurso, que pode ser aproximada do que se denomina
interdiscursividade na Análise de Discurso da linha francesa, ou heterogeneidade
constitutiva conforme definição de Maingueneau e restrito, que é a relação de um texto,
com outros previamente existentes, isto é, produzidos.
A intertextualidade em sentido restrito será explícita, quando há citação da fonte
do intertexto como no discurso relatado (direto, indireto, indireto livre), nas referências,
resumos, resenhas e traduções e será implícita, quando não ocorre a citação expressa da
fonte, cabendo ao interlocutor recuperá-la na memória para construir o sentido do texto,
como nas alusões, na paródia, em certos tipos de paráfrase e de ironia.
Neusa de Araújo Fernandes
71
Koch estabelece, ainda, a diferença entre a intertextualidade das semelhanças,
quando “o texto incorpora o intertexto para seguir-lhe a orientação argumentativa e para
apoiar nele a argumentação” e a intertextualidade das diferenças, “o texto incorpora o
intertexto para ridicularizá-lo, mostrar sua improcedência ou, pelo menos, colocá-lo em
questão” ( paródia, ironia, estratégia argumentativa da concessão ou concordância parcial).
Neste trabalho, considera-se a intertextualidade em sentido amplo e em sentido
restrito e esta, tanto explícita quanto implícita, uma vez que se constitui de freqüentes
discursos citados e inúmeras referências à História Universal, à Mitologia, à produção
cultural, a que Joaquim Felício dos Santos recorreu como intertexto de sues editoriais.
A leitura dos editoriais mostra, de imediato, que a intertextualidade é crucial na
construção do seu sentido, na sua semantização, cabendo, ao sujeito alocutário, o leitor, a
imprescindível tarefa de atualizar os seus “conhecimentos enciclopédicos”, não só do
mundo atual, imediato, mas de um mundo referido através de textos clássicos bem
anteriores ao Século XIX.
Para analisar algumas marcas de intertextualidade, propõe-se tomar cada editorial,
pela data de publicação (a seguir) e comentá-las em fragmentos onde se encontram, o que
não dispensará a leitura integral de cada texto, para assegurar melhor entendimento do uso
dessa intertextualidade e da intenção do autor ao selecioná-la.
Neusa de Araújo Fernandes
72
O JEQUITINHONHA DIAMANTINA, 4 DE OUTUBRO
DE 1868.
Não há muito tempo que voltava da Europa o Sr. De Itaborahy.
O thezouro andava mal. Dizia-se que mais dias menos dias, a bancarrota daria cabo do paiz.
Na tribuna, na imprensa, os planos financeiros rolavão como as arêas do mar.
No meio de tão grande anciedade, procurava-se um salvador. Esperava-se de braços abertos o homem da situação.
Chegou então o actual ministro das finanças.
Não é debalde que se dá um passeio à Europa, que se visita a França, que se vai assistir na Inglaterra ao debate de um povo livre em um parlamento soberano.
O ministro “indicado” tinha feito seu gyro por entre o povo das experiencias.
Tinha visto, tinha lido, tinha meditado.
E o fizera em bem. Entre os povos antigos era esse o uso Nenhum legislador lia na praça publica seu programma de salvação sem que tivesse ido consultar o oraculo, ouvir a sybilla ou inspirar-se na sabedoria de alguma nympha Egeria
Era-lhe condição obrigada quer se chamasse Solon, Lycurgo ou mesmo rei Numa.
Novos ares, novas idéas. Na
fronte do bemvindo estava sem dúvida oculto o pensamento salvador.
Assim foi que, logo ao desembarque do novo Pill, o paiz enfiou curioso olhar pela sua bolsa de viagem, no intuito de surprehender uma folhasinha do projecto suspirado.
Debalde. No alto do Sinay não é só por
entre o fogo, por entre o fumo e por entre os raios que a lei apparece? Um salvador não é qualquer cousa que se toque assim com o dedo!
E pois, o homem passou envolto na sua capa.
Na capa envolto era mais soberbo, mais altaneiro do que o romano que na toga levava ou a paz ou a guerra.
Ampla fieira de gente fez-lhe sequito.
Representava a guarda de honra o agiota que entrara hontem de alforge e hoje sahira de milhão, graças ao fluctuar da alta e da baixa, em um momento de sorte.
Ia-lhe no couce a tribu famelica dos jogadores do cambio.
Parou a pompa às portas do palacio, Cesar recebeu nos braços o ministro futuro.
Parabens a Cesar! D’aquelle abraço ia datar a
salvação do thesouro, restabelecimento do credito, restauração das finanças, terminação da guerra.
Paz no ceu, paz na terra! Veio o dia 16 de julho. O partido
conservador galgou as escadas do poder.
Houve um longo silencio em todo o paiz.
Os olhos volverão para o
“grande” ministro: esperava-se o milagre.
O ministro-programa começou por balbuciar uma desculpa. Desapontamento de Cesar, espanto geral!
Mostrou que o paiz está gravemente enfermo, que já nada pode em tamanha extenuação... chorou, pesou as onças de sangue vertido e... terminou exigindo uma sangria, uma “sangria” ainda!
O ministerio vai emitir mais quarenta mil contos, de papel moeda!
Cesar o quer, Cesar o mandou! Assim, o papel de Messias da
Fazenda limitou-se à: Reproduzir o que o Sr. Zacarias
fizera contra a opposição de ambos os partidos.
A forçar de antemão o consenso da camara, impondo-lhe um “bill” de idemtidade.
Levou de vencida o voto do Sr. Paulino que declarára, quando deputado, que o papel moeda era “peste”.
Tomou de assalto o assentimento do sr. Paranhos que chamara um “roubo” a emissão transada!
Arrebatou, entre carinhos, a assignatura do Sr. Cotegipe que equiparara este systema ao de um “moedeiro falso!”
Gloria nas alturas, na terra, gloria!
Que sublimado programma! Pois não é de “notabilidade”
financeira dourar a pilula para que o paiz a engula sem careta?
Hosanna ao ministro! Louvor a Cesar!
Neusa de Araújo Fernandes
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4.2.1.1.1. Editorial de 04-10-1868 – Crítica ao Ministro da Fazenda
Neste editorial, a intertextualidade usada é em sentido restrito, implícita,
constituindo-se de alusões, que, retoricamente, são ilustrações que impressionam,
sensibilizam o interlocutor pela similitude apresentada, (conforme a versão do autor) com
fatos históricos relativos à cultura do mundo pagão e à do mundo cristão, respectivamente.
Entre os povos antigos era esse o uso. Nenhum legislador lia em praça pública seu programa de salvação sem que tivesse ido consultar o oráculo8, ouvir a sybilla9 ou inspirar-se na sabedoria de alguma nimpha Egeria10. Era-lhe condição obrigatória quer se chamasse Solon11 Licurgo12 ou mesmo Numa13.
O editorialista faz uma alusão aos costumes antigos, através da intertextualidade,
retomando um discurso, presumivelmente, conhecido dos leitores. É um exemplo que não
8 Oráculo – era o lugar onde se supunha que as divindades consultadas davam respostas a respeito do futuro;
designava também a própria resposta dada. O mais célebre oráculo era o de Apolo em Delfos; o mais antigo o de Júpiter em Dodona. Havia o de Trofônio, na Beócia, o de Ápis em Menfi, todos tinham a função de ajudar as pessoas a tomar decisões.
9 Sibila – Figura mitológica que dizia não ser deusa, mas ser mortal. Tinha poderes proféticos, escrevia em folhas de árvores os nomes e destinos dos indivíduos. Essas folhas eram “catalogadas” e colocadas nas cavernas, os oráculos, para as respostas às consultas deitas pelos homens. Sibila acompanhou Enéas até as regiões infernais para que ele se encontrasse com seu pai Anquises (Virgílio, em Eneida). Conta a mitologia que ela, tendo recusada o amor do deus Apolo, como castigo, não teve o favor da juventude eterna, vivendo mil anos por concessão de Apolo um pedido que Sibila lhe fez para viver o número de anos conforme o número de grão de areia que conseguisse fechar em uma das suas mãos.
10 Ninfa Egéria. Ninfas eram espíritos da natureza na mitologia grega: eram seres tutelares. A ninfa Egéria, ninfa dos montes protegia Numa, rei de Roma e, em encontros secretos com ele dava-lhe lições de sabedoria e direito, que foram aplicadas nas instituições da jovem nação. Depois da morte de Numa, a ninfa Egéria foi se definhando até morrer de pesar e transformou-se numa fonte.
11 Sólon – Um dos sete sábios da Grécia (639-559 a. C.) foi considerado o verdadeiro fundador da chamada democracia ateniense. Dividiu a sociedade em quatro classes e deu à Quarta (a dos cidadãos mais pobres o direito de voto).
12 Licurgo – Jurista e legislador espartano de existência semi-lendária. São lhe atribuídos um código, a criação do senado, a fixação do direito da plebe a distribuição do povo em tribos e as repartição das terras entre cidadãos livres, bem como a instituição das refeições públicas, da educação em comum e a organização do exército.
13 Numa Pompílio – Segundo rei de Roma (Século VII a. C.), legislador, organizou a economia pública, incrementou a agricultura, prescreveu leis civis. Dizia-se protegido pela Ninfa Egéria, para dar maior autoridade às suas leis. Monarca essencialmente pacífico, alargou as relações comerciais com os povos vizinhos.
Neusa de Araújo Fernandes
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é colocado para provar o fato político antes narrado – a ida do ministro á Europa – mas é,
apenas, uma ilustração, cuja função argumentativa está no fato de estabelecer uma relação
entre a busca da orientação do Sr. de Itaboray com as consultas ao “oráculo” pelos
legisladores e administradores na era pagã.
Vê-se que proteção, orientação, adivinhação, profecia, sugeridas pela alusão
constituem uma oposição às idéias liberais do Século XIX, em que, para solução de
problemas econômico-financeiros, só era esperado o uso da competência, do planejamento,
ou seja, um tratamento científico dos dados, além da discussão democrática das decisões
político-administrativas do governo com os representantes do povo no Parlamento. Essa
contraposição entre o esperado e o realizado está clara nos parágrafos 13, 14 e 15.
na fronte do bem-vindo estava sem dúvida oculto o pensamento salvador (...) o país enfiou curioso olhar pela sua bolsa de viagem, no intuito de surpreender uma folhazinha do projeto suspirado. (...) Debalde. (grifo nosso)
Estabelece-se, dessa forma, entre as duas expressões grifadas uma comparação
entre práticas antigas, obsoletas, de acordo com os costumes do paganismo e as desejadas
práticas da administração moderna, baseadas na capacidade humana, não no poder dos
deuses, dos espíritos.
O editorialista deu sentido ao fato narrado – a viagem – como um sinal de
incompetência do Ministro para o exercício do cargo, de falta de conhecimento de métodos
de administração das finanças brasileiras na modernidade.
Ao relatar a inexistência do “projeto” (Debalde), o autor utiliza, novamente, uma
alusão, não mais ligada à cultura do mundo pagão, mas à cultura cristã, para mostrar ao
interlocutor a busca das soluções “milagreiras” pelo Governo Imperial, diante da
incompetência do Ministro das Finanças ‘indicado’, o “Messias da Fazenda”.
Neusa de Araújo Fernandes
75
Os parágrafos 16, 17, 25, 28, 39, 42 e 43 comparam a cena do encontro entre D.
Pedro II e o Ministro com a cena da entrega a Moisés das Tábuas da Lei por Deus, no
Monte Sinai e registram as saudações usadas pelo cristianismo ao Cristo Redentor.
No alto do Sinai não é por entre o fogo, por entre o fumo e por entre os raios que a lei aparece? Um Salvador não é qualquer coisa que se toque assim com o dedo! E, pois, o homem passou envolto na sua capa (...) Paz no céu, paz na terra! (...) Os olhos volveram-se para o “grande” ministro: Esperava-se o milagre (...) Glória nas alturas, na terra, glória! (...) Hosana ao Ministro! Louvor a César!
A designação de César a D. Pedro II é um recurso de intertextualidade explícita,
através de uma referência a uma personalidade da História Romana. Como ficou
evidenciado no item 4.1.1., trata-se de uma anáfora recategorizada, através de uma figura
de linguagem, a antonomásia. César traz toda a evocação dos defeitos do Ditador romano e
essa evocação é o intertexto que se funde nos editoriais e, como já se tem percebido, é uma
intertextualidade que comprova a preferência do autor por fontes eruditas de suas alusões,
referências e comparações, que muito enriquecem o processo argumentativo dos editoriais.
A intertextualidade utilizada constrói a coerência do texto que tem como objetivo
ironizar a figura de D. Pedro II e o anacronismo de suas atitudes como Imperador do
Brasil. Joaquim Felício rememora, sinteticamente, toda a história da religiosidade do
homem, da era do paganismo, do politeísmo ao cristianismo, marcada com figuras
lendárias, deuses e heróis, buscando salientar o absurdo do tratamento dado à realidade
político-administrativa do Brasil, por D. Pedro II. O autor mostra nesse discurso, a sua
erudição, sua formação literária, a sua visão da História da Antigüidade Clássica, no uso
adequado das referências nos editoriais.
Neusa de Araújo Fernandes
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O JEQUITINHONHA
DIAMANTINA, 15 DE NOVEMBRO DE 1868.
A imprensa imperial agita-se
convulsa contra nós: nada mais natural.
Não se toca debalde nas mataduras suppurantes; d’ahi esses estremecimentos de colera.
Em artigo especial « Diario do Rio » investe furibundo especificadamente contra o Jequitinhonha e o Constituinte apresentando-se como defensor do imperador.
Não conhecemos infelizmente o Constituinte e cavalheiro distincto e « Sans peur et sans reproche: » pelo menos reflecte a consciencia do povo disendo sem rebuço o que sente, aliás não atrahiria os raios do Vaticano imperial.
O que singnifica essa indignação do « Diario » contra nós, obscuros jornalistas de provincia?
Para que esse arreganho de paladino antigo em defesa da dama de seus pensares?
Quando consideramos a admiração da imprensa imperial pelas virtudes políticas, civis e domesticas do chefe do Estado, pela sua alta intelligencia, criterio, imparcialidade, genio, etc.; e quando o confrontamos com a declaração do « Diari o» que do « imperador só conhece o nome e os direitos, » ficamos perplexos. Se não fôra essa declaração acreditariamos achar-nos de frente com um representante d’aquele elemento servil que se não cuida em emancipar.
Concedemos pois: não há ali mercenario requerendo estipendio.
O « Diario » extasia-se sinceramente
« por sua vez » perante a sagrada sabedoria que nos rege; é uma apreciação individual, cujos motivos não indagaremos, nem discutiremos, respeitamos. Isso nada significa.
Não faltarão coroas, premios e arcos triumphaes a Nero nem a Calligula, –- nem as musas do Lacio envergonhavão-se de cantar esses monstros como disse o poeta. Esses documentos porém servem à história? Náo, o Diario o sabe.
D’essas baixesas e adulações torpes nasce sempre a oppressão.
Tiberio foi uma consequencia logica da vilesa dos senadores; elle mesmo exclamou; vendo-os prostados a seus pés. Oh! Homens talhados para a escravidão!!!
Elogiar aos Reis é pois desservi-los. V. Hugo exproba a phrase adulatoria de Bossuet – Deus tem na mão o coração dos reis – disendo “dupla mentira, nem Deus tem mão, nem os reis coração”.
O exilado Jersey não foi muito exacto: os Reis tem um coração immenso, hypertrophiado quando attendem aos elogios dos seus panegyristas.
Os excessos destes fazem nascer no animo dos principes uma presumpção perigosa para o povo e para elles.
Os bons amigos « nem são indulgentes em excesso » nem defensores extemporaneos.
Se não é pois com o fim de preparar a historia, nem para agradar ao principe que o « Diario » nos acomete, busquemos outro motivo. Lembre-se a insistencia com que a imprensa imperial exproba os excessos dos jornaes opposionistas e pede - « um correctivo salutar contra essa licença, para que se firme a verdadeira liberdade » a phrase é de Mercantil.
A ameaça ha de ser levada a effeito; tudo esperamos do governo actual e da futura camara: alguma cousa tambem esperamos do povo...
Venha pois a rolha se não pode sem ella viver o systema monarchico-constitucional – representativo e hereditario.
Nós nos calaremos, não escreveremos, transcreveremos: temos o Independente, o Tynandro, A conferencia dos Divinos, as cartas de Erasmo e dezenas de artigos de jornaes conservadores, antes da metamorphose actual; quando os Gracchos erão Gracchos e não Tribouletz, quando os tribunos não erão titeres do paço.
Se formos arrastados às masmmorras, marcharemos de par com os illustres auctores desses eloquentes escriptos, e o mesmo e nos cingira o pescoço. Oh! Que honra subida...
Uma falha cometeu o « Diario » apresentando o
Jequitinhonha como orgão de uma propaganda a favor do Sr. Conde a d’Eu.
Disse um escriptor, que, com uma linha destacada do livro, mais orthodoxo se poderia queimar o auctor como herege.
O « Diario » só leu um numero do nosso jornal, se tivesse este a honra de ser lido mais vezes, seria comprehendido melhor o nosso pensamento. Ei-lo: Não temos os receios d’aquella velhinha de Syracusa. Uma mudança actualmente, não pode ser para peior, porém, nos poremos em guarda contra as mystificações.
Não teremos a simplicidade dos Lafayetes nem confiamos cegamente em Luiz Fellippe, suppondo-o a melhor das republicas possiveis.
Repele o « Diario » o Sr. Conde d’Eu por ser principe estrangeiro!!! Lá se avenha com o Sr. de S. Vicent.
« Res nostra non agitur »
Neusa de Araújo Fernandes
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4.2.1.2. Editorial de 15-11-1868 – Crítica à Imprensa Imperial
A intertextualidade é, também, neste editorial, a mola-mestra de sua
semantização. Os parágrafos 11, 13, 15, 16 e 25 são exemplos de intertextualidade
explícita; há reprodução de discursos atribuídos a autores nominados ou não.
Não faltarão corôas, premios e arcos triunphaes a Nero14 nem a Calligula15, - nem as musas do Lacio envergonharão-se de cantar esses monstros como disse o poeta
O locutor 1, o editorialista, traz para o seu enunciado o locutor 2, o poeta,
caracterizando o discurso relatado, direto, para com esse discurso confirmar a sua
assertiva: os maus também são laureados, homenageados. Essa era a atitude da Imprensa
Oficial que elogiava, adulava a D. Pedro II, ironicamente considerado como “a sagrada
sabedoria que nos rege”. O intertexto da fala do poeta compara o Imperador D. Pedro II a
duas personalidades históricas: Nero, considerado um tirano, um carrasco monstruoso que
mandou matar a própria esposa e a mãe, foi acusado de ter incendiado Roma e ter
perseguido cruelmente os cristãos e tinha obsessão por aplausos e condecorações; Calígula
fez-se adorar como deus, nomeou seu cavalo como cônsul, foi tirano, louco, cínico,
conforme a História. Portanto, se esses dois “monstros” tiveram coroas, prêmios e arcos
14 Nero- Imperador romano (37-68). Durante os primeiros cinco anos de seu governo foi moderado, devido
aos conselhos do filósofo Sêneca. Levado pelos seus terríveis instintos, tornou-se um tirano ridículo, vaidoso, um carrasco monstruoso. Manda matar sua esposa Otávia para se casar com Popéia; procura matar a mãe que é massacrada pelos pretorianos. Envenena seu irmão. Faz apresentações públicas e exige os aplausos. Quando regressa a Roma vindo da Grécia traz 1800 coroas, pagas principalmente às cidades helênicas. É acusado de incendiar bairros populosos de Roma. Persegue cruelmente os cristãos. Por ser perseguido, atira-se sobre a espada, suicidando-se.
15 Calígula (12-41) – Sucessor de Tibério, devido a uma doença que sofrera na infância tornou-se um verdadeiro louco, tocado pelo delírio das grandezas, um tirano cínico e feroz. Faz-se adorar como deus; nomeia o seu cavalo “Incítatus” como cônsul. Desejava, dizia, ele “que o povo romano tivesse uma única cabeça para a decepar de um só golpe. É assassinado por um guarda pretoriano. Seu nome era Caio César, o apelido Calígula foi dado por causa do calçado militar que usava na infância: Caligoe.
Neusa de Araújo Fernandes
78
em seu louvor e foram “cantados” pelas musas, também elogios a D. Pedro podem ser
feitos pela Imprensa.
Em seguida, afirma o autor que dessas baixezas nasce a opressão, e, para
comprovar o que diz, traz um argumento de autoridade: “Tiberio16 foi uma conseqüência
lógica da vilesa dos senadores: ele mesmo exclamou vendo-os prostrados a seus pés: Oh!
Homens talhados para a escravidão!!”
Novamente foi usado o discurso direto: o locutor 2 – Tibério – fala o que o locutor
1 – o editorialista precisa para reforçar a sua idéia: servidão e adulação estão juntas.
Continuando a sua argumentação contra a atitude dos jornalistas aduladores,
Joaquim Felício traz mais dois intertextos, através das citações:
Victor Hugo17 exproba a phrase adulatoria de Bossuet18 – Deus tem na mão o coração dos Reis – disendo “dupla mentira, nem Deus tem mão, nem os Reis coração... O exilado Jersey19 não foi muito exacto: os Reis tem um coração immenso, hypertrophiado quando attendem aos elogios dos seus panegyristas.
Nesses enunciados há dois outros locutores 2: Victor Hugo e Jersey com seus
discursos inseridos no discurso do locutor1: (Joaquim Felício). Novamente, o intertexto é
citado para confirmar o ponto de vista do autor: reis adulados são reis tiranos, “sem
16 Tibério – Imperador romano (Séc. I d. C.). A princípio bom administrador do Império, mudando depois
em cruel e sanguinário. O senado vive, durante cinco anos, aterrado e trêmulo de medo; os carrascos percorriam a Itália e levavam a morte aos mais ricos cidadãos; os denunciadores recebiam em recompensa um quarto dos bens de cada condenado. Foi assassinado por pessoas de sua intimidade.
17 Vitor Hugo – Poeta e romancista francês (1802-1885). Em política foi chefe da esquerda democrática, pai da França, deputado e senador. Em literatura iniciou-se como romântico e lírico, passando depois para o simbolismo. De estilo inimitável, com a melodia e a perfeição da forma, a originalidade e a grandiosidade de pensamento. Entre suas obras: Notre dame de Paris, Lucrécia Borgia, Maria Tudor, Chants du Crepuscule.
18 Bossuet. O maior dos oradores sacros da França (1627-1704). Homem de cultura sólida, de caráter austero, de um catolicismo plenamente ortodoxo. Não teve a preocupação da glória; somente um de seus sermões foi publicado em vida. Escreveu 200 sermões. Foi preceptor de Luiz XIV, para quem escreveu tratado do conhecimento de Deus e de si mesmo.
19 Jersey – Referência não encontrada.
Neusa de Araújo Fernandes
79
coração”. Victor Hugo e Bossuet, franceses de prestígio intelectual, ao falarem,
representam uma voz autorizada e isso vem dar maior credibilidade ao que o editorialista
diz.
Para acusar o jornal O Diário de ter feito uma leitura incompleta de editoriais de
O Jequitinhonha, é, novamente, utilizada a intertextualidade, através do discurso
relatado, nesse caso indireto:
Disse um escritor que com uma linha destacada do livro mais ortodoxo se poderia queimar o autor como herege.
Assim como um autor ortodoxo poderia ser queimado como herege, se a leitura de
seu livro fosse fragmentária, também, O Jequitinhonha só foi visto como órgão de
propaganda a favor do Sr. Conde d’Eu, porque O ‘Diário’ só leu um número desse
periódico e, portanto, não compreendeu o pensamento enunciado.
No mesmo editorial, Joaquim Felício anuncia que se o seu jornal fosse proibido de
circular, seriam transcritos os artigos em outros jornais conservadores, de “antes da
metamorphose actual; quando os Gracchos erão Gracchos20 e não Triboulets, quando os
tibunos não eram titeres do paço”, numa alusão aos dois irmãos tribunos de Roma que
pertenciam à classe dos patrícios e se celebrizaram pela sua ação democrática. O primeiro,
Tibério, tendo conseguido passar no Senado uma lei agrária foi assassinado por uma
sublevação de senadores; o segundo, Caio vingou a morte do irmão, restringiu o poder do
Senado e adotou medidas que favoreciam a plebe. Isso provocou revolta no Forum e Caio
Graco foi morto por seus partidários. Triboulets – é uma referência ao bufão,
20 Tibério Graco (133 a. C.) e Caio Graco (123 a. C.) tribunos que se notabilizaram pelos trabalhos de
reforma agrária para redistribuição de terras e restabelecimento da classe média rural. Ambos foram assassinados.
Neusa de Araújo Fernandes
80
bobo, ator com papéis de comicidade grosseira nas apresentações textuais na Corte
Francesa (1498-1536).
Joaquim Felício cita também os Lafayetes e Luiz Felippe: Não teremos a
simplicidade dos Lafayetes21 nem confiamos cegamente em Luiz Felippe22, suppondo-a a
melhor das repúblicas possíveis. Lafayetes, numa alusão ao político e general francês
(1557), e o que foi defensor da família real e do regime monárquico e foi preso ao tentar
fugir, depois da queda do regime e ao Rei da França, Luiz Felipe (1830-1848) que
proclamou a 2ª República francesa e foi conhecido como “rei cidadão”. Desapontando, no
entanto, os franceses pois se revelou mais tarde, não um democrata, mas um monarca
autoritário, cometendo vários crimes que levaram o povo à revolução de 1848, em que saiu
derrotado fugindo para a Inglaterra. “Não teremos a simplicidade dos Lafayetes, nem
confiamos cegamente em Luiz Fellipe, supondo-o o melhor das republicas possível.”
Vê-se, enfim, que o sentido deste editorial é construído pela sucessão de discursos
de outros autores, alusões e referências a fatos históricos e personalidades que fazem parte
da História Universal, constituindo esses intertextos atualizações que Joaquim Felício usou
para estabelecer um paralelo entre a realidade da monarquia brasileira e a história de suas
antecessoras no Velho Mundo, selecionando exemplos que prestassem serviço ao seu
objetivo: traçar um perfil do Imperador do Brasil como um monarca que não merecia os
elogios que recebia, que, como ditador, tirano absolutista, deveria perder o seu trono, em
favor da instalação do regime republicano.
21 Lafayete – político francês, comandou a guarda nacional na época da Revolução de 1830, recebeu Luiz
Felipe no Hotel de Ville de Paris, passando depois a militar na oposição monarquista. 22 Luiz Felipe – reinou na França de 1830 a 1848. Foi levado ao trono por uma revolução liberal, começou
como um democrata e foi conhecido como “rei-cidadão”. Lafayette diz-lhe –‘Senhor, vós sois a melhor das repúblicas! A partir de 1836, Luiz Felipe começa a mostrar suas intenções: ser autoritário e governar com liberdade. Houve descontentamento geral e em 1848 surge a revolução. Luiz Felipe é vencido. Proclamou-se a República.
Neusa de Araújo Fernandes
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O JEQUITINHONHA
Ao publico.
Estando marcada a ultima dominga de Janeiro proximo para a eleição de eleitores de deputados à Assembléia geral ficou suspenso o recrutamento desde o dia 1 do corrente em virtude da terminante disposição do art. 108 da lei de 19 de agosto de 1846.
Outrossim pelo mesmo artigo da referida lei ficão prohibidos os arrumamentos de tropas e ostentações de força militar no dia da eleição primaria á uma distancia menor de uma legua do lugar da eleição.
_________________________
DIAMANTINA, 27 DE DEZEMBRO DE 1868.
Apreciando os recentes
acontecimentos da Hespanha, diz o Sr. Ch. De Mazade:
« ... Não foi certamente por excessos de liberalismo que cahio a rainha da Hespanha. Porque forão desthronisados esses principes, que hoje protestão na Europa, e constituem uma verdadeira tribu de vagabundos, á espia de um throno onde se assentem? É que fecharão os olhos á todas as luzes e nunca souberão ceder quando era tempo; é que quizerão obstinados antepor sua vontade e caprichos à razão e todo o mundo. »
« E onde encontraremos um principe desthronisado por ter sido sincera e lealmente liberal, por ter seguido as inspirações da opinião , por ter sabido deixar-se levar pelo movimento social? A rainha Isabel vai augmentar o cortejo das realezas do exilio, ultimo e frisante imagem desses monarchas enganados, que se julgão garantidos pela resistencia, que confiados na força bruta para absolver-lhes os crimes cavão sua ruina. »
Não nos parece que o Sr. de Mazade escrevera estas palavras com applicação ao Brasil?
Isabel II fôra elevada ao throno pelas
baionetas de um exercito liberal; tambem o Sr. D. Pedro II foi elevado ao throno pelo partido liberal, que elle depois trahio por um desses actos de ingratidão proprios da casa bragantina.
O Sr. D. Pedro II, como a rainha da Hespanha, tem fechado os ouvidos às reclamações patrioticas dos brasileiros, não vê, senão pelos olhos dos cortesãos, que corromperão-lhe o espírito e o coração com o nocivo veneno da lisonja, não attende senão aos interesses da côrte.
Quando os brasileiros, estragados com lutas estereis pedem a paz, a harmonia, a confraternização, o Sr. D. Pedro II os divide em partidos rivaes em guerra sem treguas. Quando os brasileiros pedem auxilio à industria, vias de comunicação melhoramentos moraes e materias, seu capricho e obstinação empenha o paiz em uma guerra desastrada, que consome todas as duas forças.
Tem sido a politica do Sr. D. Pedro II enfraquecer o paiz, corromper os caracteres mais distinctos, desharmonisar todas as forças políiticas, concentrar todos os poderes em sua pessoa, convergir toda a actividade social em um centro único, matar o individualismo, aniquilar os elementos vitaes da localidade para consagrar o absolutismo.
Tudo isso realisou a sombra do systema das ficções que nos rege.
Ultimamente, depois de absorver em si todos os poderes por uma politica manhosa, lançou a mascara.
Hoje surdo às vozes da opinião, e confiado nas forças artificiaes de um partido, que julga seu fiel alliado no desmoronamento das liberdades publicas, segue impavido na senda do absolutismo de facto. Ministros desprestigiados no conceito do paiz são cegos instrumentos de suas vontades caprichosas. Trahido pelo imperador, que sempre obstou à realização de suas nobres aspirações, o partido liberal hoje também o olha sem confiança.
Já se forão os tempos em que o povo via nos monarchas entidades sagradas, na realeza uma garantia de estabillidade. Os vaivens do destino que os tem precipitado dos thronos desenganarão os mais obseccados. O
estado de atraso e miseria em que vivemos faz-nos invejar a sorte de nossas irmãs, as republicas visinhas, que vão sempre em caminho do progresso. Illude-se o Sr. D. Pedro II, quando com ideias anchronicas, dos seculos passados julga-se bastante forte para supplantar a soberania popular. Assim, pensarão na França, Luiz XVI, Carlos X, Luiz Felippe, assim pensou Isabel II da Hespanha, e seus thronos forão pulverisados pelo sopro popular.
Vossa soberania de direito divino é uma mentira, como todas as invenções do absolutismo.
Na mesma China que dizeis ser a terra classica do absolutismo, já disse um de seus sabios da antiguidade, Mengeu-Iset: « O povo é o que há de mais nobre ao mundo, o principe é o que há de menos importancia. Deus vê pelos olhos do povo; Deus ouve pelos ouvidos do povo. » Locke definia a revolução « o direito de appelar para Deus. »
Hoje o partido liberal do Brasil, indignado de tanto eynismo, tambem arrancou a mascara. Não queremos o poder, repetiremos sempre, não combatemos para suplantar nossos contrarios.
Se, por um d’esses factos extraordinarios inexplicaveis, que soem acontecer no Brasil, contra todos os princípios da previdencia humana, o Sr. D. Pedro II lembrar-se de retirar do poder o partido actualmente dominante, protestamos em nome dos liberaes não apoiaremos qualquer outra politica enquanto durar o presente estado de coisas.
Já estamos enfastiados com as contínuas mystificações dos 28 anos do segundo reinado. Os homens que desenteressadamente meditão sobre os negocios do Brasil se convencem de que com o Sr. D. Pedro II no throno nunca o partido liberal poderá realizar suas aspirações. Temos princípios, e não queremos continuar a servir de instrumentos do imperador nos interesses da realeza.
Não são nossas palavras nascidas do despeito; são expressão das convicções sinceras.
Queremos o engradecimento de nossa patria e a fraternidade de todos os brasileiros.
Neusa de Araújo Fernandes
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4.2.1.3. Editorial de 27-12-1868 – Crítica ao governo absolutista de D. Pedro II
Novamente, a intertextualidade toma a forma de um discurso direto, sendo a fonte
expressa do intertexto o Sr. Ch. De Mazade, que analisa as causas da queda de monarcas,
apontando a insensibilidade deles às aspirações do povo como a grande razão de terem
perdido seus tronos e estarem soltos no espaço “à espia de um trono onde se assentem”,
como afirma o comentarista. O exemplo citado é o da Rainha da Espanha, Isabel II, numa
nova referência intertextual:
Apreciando os recentes acontecimentos da Espanha, diz o Sr. Ch. De
Mazade: “(...) não foi certamente por excessos de liberalismo que cahio a rainha da Hespanha.21 Porque forão desthronisados esses prícipes, que hoje portestam na Europa, e constituem uma verdadeira tribu de vagabundos, à espia de um trono onde se assentem? É que fecharão os olhos à todas as luzes, e nunca souberão ceder quando ainda era tempo; é que quiserão obstinados antepor sua vontade e caprichos à razão de todo o mundo. E onde encontraremos um príncipe desthronisado por ter sido sincera e lealmente liberal, por ter seguido as inspirações da opinião, por Ter sabido deixar-se levar pelo movimento social? A rainha Isabel vai augmentar o cortejo das realezas do exílio, último e frisante imagem desses moanrcas enganados, que se julgão garantidos pela resistência, que confiados na força bruta para absolver-lhes os crimes cavão sua ruína.
Comentário e aplicação do fato, pelo editorialista Joaquim Felício dos Santos,
estabelecem entre Isabel II e D. Pedro II, quanto ao absolutismo, à indiferença às
reclamações do povo, tudo isso causado pelos elogios e adulações dos súditos:
Não nos parece que o Sr. De Mazade escrevera estas palavras com aplicação ao Brasil? Isabel II fôra elevada ao trono pelas baionetas de um exército liberal; também o Ser. D. Pedro II foi elevado ao trono pelo partido liberal, que elle depois trahio por um desses atos de ingratidão proprios da casa bragantina.
21 Isabel II – rainha da Espanha, filha de Fernando VII. Teve sua maioridade em 1843. A Espanha foi
dividida em dois partidos: os carlistas defendiam os direitos de D. Carlos para Rei e os cristinos – os direitos de Isabel II.
Neusa de Araújo Fernandes
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O Sr. D. Pedro II, como a rainha da Hespanha, tem fechado os ouvidos às reclamações patrióticas dos brasileiros, não vê senão pelos olhos dos cortesãos, que corromperão-lhe o espirito e o coração com o nocivo veneno da lisonja, não attende senão aos interesses da côrte.
No parágrafo 14, nova alusão a reis da Europa:
Ilude-se o Sr. D. Pedro II, quando com ideias anachronicas, dos seculos passados julga-se bastante forte para supplantar a soberania popular. Assim pensarão na França Luiz XVI, Carlos X e Luiz Felippe, assim pensou Isabel II da Hespanha,. e seus thronos forão pulverisados pelo sopro popular.
No parágrafo 15 e 16, Joaquim Felício se dirige a D. Pedro, acusando-o pelo
absolutismo e para reforçar a sua crítica, cita discursos de personalidade de reconhecido
mérito, filósofos, um chinês e um inglês, como argumentos de autoridade, mais uma vez,
construindo o sentido, a partir da intertextualidade:
Vossa soberania de direito é uma mentira como todas as invenções do absolutismo Na mesma China que dizeis ser a terra clássica do absolutismo, já disse um de seus sábios da antigüidade, Mengue Isen22. “O povo é o que há de mais nobre no mundo, o príncipe é o que há de menos importância. Deus vê pelos olhos do povo. Deus ouve pelos ouvidos do povo.
Locke23 definia a revolução “o direito de appelar para Deus.”
22 Mengue Isen – um dos principais propagadores do Confucionismo (372 a C.) preocupava-se com o
problema do bom governo, fundamentou a doutrina num conjunto de normas morais coletivas orientadas pela razão e pela retidão. Somente assim a sociedade permaneceria igualmente afastada da tirania e da anarquia, pensava ele.
23 Locke – filósofo inglês (1632-1704) político ativo, escritor cujas obras geraram controvérsias na Inglaterra e toda a Europa.
Neusa de Araújo Fernandes
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O JEQUITINHONHA
Ao publico.
Estando marcada a ultima dominga
do corrente mez para a eleição de eleitores de deputados à Assembléia geral ficou suspenso o recrutamento desde o dia 1 do de dezembro p.p. em virtude da terminantes disposição do art. 108da lei de 19 de agosto de 1846.
Outrossim pelo mesmo artigo da referida lei ficão prohibidos os arrumamentos de tropas e ostentações primaria á uma distancia menor de uma legua do lugar da eleição.
___________________________
DIAMANTINA, 24 DE JANEIRO DE 1869.
No longo e doloroso peregrinar da
civilisação um grande desvio se observa – a audacia, a perfidia e a hypocrisia hão conseguido, com sucesso mais ou menos duradouro, turvar no espirito dos povos a nobreza de seus sentimentos, sublimidade de suas aspirações.
Cesar alevantado nos favores do povo conspira; e triumpha do patriotismo de Catão, apunhalando a liberdade romana.
Cromwel, Bonaparte! Aventureiros audazes, e felizes, que, sequestrarão as liberdades da patria, uzurpando os direitos magestaticos da nação.
A soberanis dos povos está, perante a história em luta permanente com as paixões grosseiras, as ambições insensatas dos que se considerão – predestinados – ao mando absoluto. Por outra: fôra impossível estreitar-se o abysmo entre a tyrannia e a liberdade.
Na vida política do Brasil desenhão-se, à luz da evidencia, essas tendencias oppostas, à que alludimos, entre o paiz e « o supremo poder. »
O 1º e o 2º reinados resumem-se no embate franco, ou de emboscada de taes tendencias.
A nação confiante, magnanima em sua dedicação tem sido suffocada por um elemento estranho, que a amesqunha – o Cesarismo.
No 1º período os golpes que soffrera em suas liberdades forão desferidos por mão atrevida: no ultimo, o que atravessamos, as tramas machiavelicas, « as recordações » da politica de Luiz Phelippe, tentão a degradação dos caracteres, a materialisação do espirito nacional, para na perversão dos costumes, na indifferença da opinião, alçar-se bem alto um absolutismo tacanho e esteril.
Esclarecido pelo desfecho do drama no 1º reinado, o Cesarismo, no 2º troca as vestes de cavalheiro pela mascara de Tartufo.
Appellando para uma legalidade em que não crê, e que desdenha, seu pensamento invariavel, seu empenho indefesso há sido a mistificação dos partidos, agorentando, sophisnando, e inutilisando a constituição, na qual a nação, tão à largas, aquinhoou o poder irresponsável.
Entretanto houve um momento, em que a democracia podia triumphar. Mas como na Hespanha de nossos dias, como na França, de 1830 os Prins e Laffayetes afogarão, no Brasil o movimento nacional, supprimindo as naturaes consequencias que delle devião decorrer, e unicas que o justificavão.
O 7 de abril de 1831 é uma semi-revolução, que poderia tornar-se completa, se vingassem integralmente as aspirações reformistas.
Deixou-se escapar a occasião; e esse erro fatal legou-nos todos os males do presente.
A França que em todo o curso deste seculo tem-se achado em acto de revolução, ora palpitante, ora suffocada pela manopla do despotismo, é a prova em acção de que as emi-revoluções são sempre funestas e prejudiciais aos motivos que as determinarão. No dia em que Carlos X cahio, a democracia deveria Ter surgido do solo francês.. A abdicação da revolução na pessoa do rei – cidadão chamou de novo ao paiz calamidades, e tornou inevitavel a catastrophe de 1848, no meio da qual vimos – invalido – um rei ingrato que perdia o diadema, e errante fugia por montanhas e selvas, perseguido pelas maldições do povo, que trahira...
Os partidos, com os homens, educão-se com as lições da experiencia.
Hoje seria impossivel a illusão para o Brasil.
Quem observando a nossa marcha politica deixará de enxergar a conspiração constante do « imperialismo » contra as instituições?
Esse estado de cousas é assustador. E attento o falseamento do systema, o
servilismo que vai invadindo as moleculas do corpo social será para estranhar-se que em um momento de « spleen » se decapite no governo actrual o partido dominante, e por mero-deleite de variedade se levante nova politica?
É contra uma tal eventualidade cuja realisação na 1ª parte depende simplesmente da vontade irresponsavel, que em nomee das ideias, da historia, e da honra do partido liberal protestamos.
Seria o suicidio para elle se enexperiente ou ambicioso, chamado ao poder, por elicito de « uma escamotagem, » com tantas outras, se resignassse a acompnahar as tendencias do – Cesarismo » -
Não, não queremos o poder, salvo com a segurança do triunpho dos nossos principios. Toda a transacção será traição, e attentado por parte daquelles que a estipularem.
Venha o poder; mas cortejado pelas reformas que constituem, e garantem o imperio da democracia; se não, não.
Outra não pode ser a legenda do partido liberal. Crentes na sabedoria, e patriotismo dos nossos chefes temos confiança que elles a saberão respeitar.
Soldados e chefes, lembremo-nos todos daquellas palavras solemnes de Laboulaye.
« Há quarenta annos que, em sua linguagem de propheta, Reyer Collard annunciava à França; e ao mundo que a onda da democracia subia como enchente impetuosa. Desde então o rio não entrou mais no leito. Hoje toda a questão é organisar a democracia, não incerrando-a em formas esterieis, mas quebrando os laços que a manietavão, e habilitando-a viver vida própria. »
Neusa de Araújo Fernandes
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4.2.1.4. Editorial de 24-01-1869 – Crítica ao cesarismo do Governo Imperial de
D. Pedro II
Joaquim Felício recorre a figuras históricas na semantização de seu discurso
político, fazendo referência a César, Cromwel e Bonaparte como exemplos de monarcas
cuja audácia, perfídia e hipocrisia conseguiam sequestrar as liberdades do povo e cita,
também, Catão, mas como exemplo de patriotismo romano, em oposição a César.
Compara a vida política do Brasil à dos países governados pelos usurpadores da liberdade:
“Na vida política do Brasil desenhão-se à luz da evidência, essas tendências oppostas, à
que aludimos, entre o paiz e o supremo poder. Faz alusão, novamente, a Luiz Felipe, Rei
da França, aos Prins e Lafaietes franceses, a Tartufo, exigindo do seu leitor uma
recuperação do sentido da História para o entendimento do editorial.
César alevantado nos favores do povo conspira, e triunfa do patriotismo de Catão24, apunhalando a liberdade romana.
24 Catão: 234-149 – General e estadista romano. Foi questor, pretor, edil e cônsul. Eleito censor combateu a
inovação dos costumes e o luxo excessivo, criando pesados impostos sobre os vestidos ricos e o uso de carruagens. Foi governador de Sardenha e embaixador em Cartago, cuja destruição defendeu mais tarde. Era uma pessoa de costumes austeros. Deixou uma admirável obra histórica e sobre outros assuntos.
Neusa de Araújo Fernandes
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Cromwel25, Bonaparte26, aventureiros audazes, e felizes. Que sequestrarão as liberdades da pátria, usurpando os direitos magestáticos da nação. (...) A nação confiante, magnânima em sua dedicação tem sido sufocada por um elemento estranho, que a amesquinha – O Cesarismo (...) no ultimo [período do império], o que atravessamos, as tramas machiavelicas27, as “recordações” da política de Luiz Philiphe1 tentarão a degradação dos caracteres... (...) Esclarecido pelo desfecho do drama no primeiro reinado, o Cesarismo no 2º troca as vestes de cavalheiro pela máscara de Tartufo28. (...) Entretanto houve um momento, em que a democracia podia triumphar. Mas como na Hespanha de nossos dias, como na França de 1830 os Prins e Laffayetes afogarão no Brasil, o movimento nacional, supprimindo as naturaes conseqüências que delle devião decorrer, e únicas que o justificavão. (...) No dia em que Carlos X29 cahio, a democracia deveria ter surgido do solo francês... (...) Há quarenta annos que, em sua linguagem propheta, Reyer Collard30 annunciava à França; e ao mundo que a onda da democracia subia como enchente impetuosa...
E concluiu o autor:
Os partidos, com os homens, educão-se com as lições da experiência.
25 Cromwell – Estadista inglês, membro do Parlamento, 1590-1658 – opôs-se às medidas do Rei Carlos I, a
quem combateu e tornou prisioneiro. Carlos I foi julgado e executado. Morto Carlos I, o Parlamento aboliu a Realeza, bem como a Câmara dos Lordes e proclamou a República Cromwell. Seu governo foi impopular, criou inimigos que Cromwell combateu vigorosamente. Fez a dissolução do Parlamento, expulsou os parlamentares, insultou-os grosseiramente, chamando-os de ladrões, covardes, fechou a porta do Parlamento e pos a chave no bolso. Governou de forma tirânica, era vulgar, violento, religioso fanático. Mas era bom soldado, prático, organizado. Tornou-se ditador.
26 Bonaparte (Napoleão) – Imperador dos Franceses – 1769-1821. Em uma Revolução dirigiu o assédio a Toulon e foi promovido a general de brigada. Em 1804 foi aclamado imperador pelo Senado e pelo povo. A Europa monárquica-hereditária se rebelou. Apossou-se de Nápoles, expulsou os Bourbons, subjugou e reorganizou a Alemanha e criou a confederação do Reno. Venceu a Prússia, determinou o bloqueio continental, invadiu a Espanha e Portugal, prendeu o Papa, repudiou sua esposa, a Imperatriz Josefina, casando-se com Maria Luiza, arquiduquesa da Áustria. Em 1812 invadiu a Rússia. Em 1814, viu-se obrigado a abdicar e retirar-se para Elba, donde saiu para reorganizar os seus exércitos, sendo vencido por Blucher em Waterloo. Preso foi recolhido a Santa Helena, onde morreu.
27 Maquiavel – autor de O Príncipe onde expõe a doutrina política que coloca o estado como senhor absoluto do indivíduo, dizendo que o Estado é o bem soberano a que se devem sacrificar todas as causas e em cuja conservação se podem licitamente empregar todos os meios, inclusive pôr de lado a moral. Aos poucos o termo: maquiavelismo, tramas maquiavélicas passaram a significa preparações de planos diabólicos, vergonhosos.
28 Tartufo – Falso devoto, fingido, hipócrita, é personagem da comédia de Le Tartuffe de Moliere. 29 Carlos X – Com a morte de Luiz XVIII, Rei da França (1824), sobe ao trono seu irmão Carlos X.
Inteligente mas fraco, os ministros dirigem a política. Suspendeu a liberdade de imprensa, dissolveu a câmara, mudou o sistema eleitoral com decretos inconstitucionais e intempestivos. Foi exilado pela revolução de 1830, feita pelos realistas liberais, unidos aos republicanos e bonapartistas.
30 Royer Collard (Pierre Paul) político francês, advogado, partidário da monarquia constitucional, chefe dos deputados doutrinários, redigiu dos 221 (1830). Professor de História da Filosofia na Sorbonne 1811-1816.
Neusa de Araújo Fernandes
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Alusões a fatos históricos, personalidades, são formas da heterogeneidade
‘constitutiva’ (intertextualidade em sentido amplo), não há um enunciado como intertxto já
existente, mas o ‘já-dito’ está implícito e é fundamental na construção da semântica do
texto.
O discurso sobre a realidade político-administrativa brasileira se funda na
realidade da política da Europa, antiga e moderna, além das alusões significativas a
Maquiavel (tramas maquiavélicas) e à personagens da comédia de Moliére: Le Tartufee,
significando homem hipócrita, fingido, no texto, sempre em relação a D. Pedro II e seus
seguidores.
Cabe, mais uma vez, ao leitor-interlocutor entender o sentido do texto, através do
seu conhecimento das alusões feitas, dos fatos aludidos, das personalidades e obras trazidas
ao novo texto, à nova situação interacional pelo editorialista, o que caracteriza a
intertextualidade como fundamento do sentido, dos editoriais.
Neusa de Araújo Fernandes
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O JEQUITINHONHA _________________________ DIAMANTINA, 7 DE MARÇO
DE 1869.
O servilismo, quietum servilium de Tacito, é e foi em todos os tempos, o supremo almejo do despotismo. Reinar sobre um povo de escravos, imperar sobre cadaveres ambulantes, instituir o mutismo com a mola real da governação depois de estabelecer o indiferentismo, como a primeira virtude do cidadão, eis ao que tendem sempre os despotas.
Antes porém de conseguir-se esse resultado, antes do completo narcotismo do povo há um período afllictivo, espectaculo tristíssimo que confrange o coração patriotico... É o dilírio, dos fascinados, é a jactitação tripudiante dos lacaios, é a ridícula intolerância dos eunucos do paço.
Assumpto digno de observação! Qualquer que seja o genero de embriaguez este periodo manifesta-se sempre e invariavelmente. Lêde o Diario do Rio de Janeiro: vêde como o desgraçado possesso em furor arremessa-se contra a democracia que ouza contestar a Cesar a sua natureza de emanação da divindade, de providencia e que vela incessantemente sobre os destinos do paiz, equilibrando e harmonisando os poderes e os partidos; Vêde como em relação à guerra diz a imprensa imperialista:
« Desde que o imperador é o representante da nação, o que ele quer devemos querer. »
A sciencia descobrio modernamente uma singular affecção nervosa caraterizada por convulsões desordenadas e vesania transitória.
Chama-se a esse estado morbido – bypnoptismo.
Os nossos cortezãos, heliosistas decididos, cahirão em furor hypnoptico, em consequencia da sua adoração imprudente; lastimemos os coitados.
Panen et circenses – era o narcotico dos horriveis Cesares romanos. Festa, Farina, Furca, plagiavão os Bourbons de Napoles. O Jesuitismo era o systema dos Bourbons de França. Austerlitz, Marengo, Wagran era o de Napoleão. Tudo isso era dado ao povo em troca de liberdade e todas essas nações passarão pela adulação frenetica e apodrecerão na escravidão.
Para conseguir igual fim, o nosso Cesar não tem confiança, em um systema único: como os medicos discrentes atirou-se à polypharmacia. Cruzes, fitas, chaves, bugigangas, officios, amistosos, beneficios pingues, o usofructo de um poder nominal, a especulação com as paixões partidárias e com os odios pessoaes, a glorificação dos aduladores, como estimulo aos remissos mais do que como premio da lisonja, a perseguição dos recalcitrantes pelos seus servos, emquanto elle ostenta calculada magnimidade e estende a mão aos seus detractores convertidos eis em poucos traços delineado o mesquinho governo pessoal heterotropo, que nos acabrunha na livre America.
Tambem um dia Cesar sonhou com a gloria militar para coroar a obra. Soldado bisonho enfiou as botas napoleonicas, pigmeu sopesou a espada de Carlos Magno e cercado de Roldões caricados revistio-se do título de D. Pedro o Uruguayano, como um dos seus avós fôra Affonso o Africano.
Malfadada empreza! Aniquilou as finanaças de seu
paiz, dizimou a população viril,cobrio de luto as famílias e, precipitando-se em um cometimento impossível e odioso, perdeo as sympathias das nações civilisadas e começou a desacreditar-se no animo do seu povo.
Debalde os poetas mercenarios, o Instituto dos laureados, os vis instrumentos da dictadura, e os renegados epicuristas apregoão suas virtudes: os homens sensatos passão silenciosos e creem tanto
n’esses elogios como na dor das carpideiras stipendiadas, que outr’ora acompanhavão o feretro dos potentados. Debalde o glozador de sobremezas personificava em atrevida prosopopéa a cataracta de Paulo Affonso e mostrava o gigante do S. Francisco « enfiado » diante da magestade de D. Pedro e terminava.
E la das plagas do janeiro O monarcha brazileiro Quis... bastou... veio ver-te Em vão os sabios e artistas
officiaes, dedicão suas obras em prefacios pomposos « ao muito alto e poderoso » principe protector das artes e das sciencias. Em vão o instituto extasia-se lendo a quadrinha Imperial ao « fiel povo Ituano » e a compara com o mimoso canto derradeiro de Marco Aurelio ou com as strophes de Augusto.
Em vão o declarão mathematico, juris-consulto, medico, theologo, astronomo, chimico, physico, estadista, botanico, poeta, cirurgião, economista, literatro, crítico, archeologo, versado nas letras divinas e humanas, conhecedor « de omni re scibili e, quibusdam aliis »
... « Ora, sendo assim, que nos » « importa a liberdade... volvemos a idade de ouro » governando Saturno, » exclamão em côro os aduladores, as ingratas andorinhas de Tobias.
Outros menos descarados, dizem: « O que querem os democratas? O nosso systema de governo não é monarchico constitucional hereditário e representativo; querem mais algum adjectivo? Não temos poderes divididos e harmonisados, servindo a corôa apenas de equilibrista? O rei reina e o povo governa eis a theoria.
Mas o povo, ao menos o das provincias, já tem reconhecido que aquella é a theoria, mas que a pratica é outra: eil-a.
O rei governa. O ministro reina. E o povo... paga o imposto e
geme.
Neusa de Araújo Fernandes
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4.2.1.5. Editorial de 07-03-1869 – Crítica ao Diário do Rio de Janeiro pela sua
bajulação ao Governo Imperial
O autor, neste editorial, inicia o seu discurso com um entimema, que é uma
proposição, que procura confirmar através de exemplos. Mas, até mesmo para a sua
declaração inicial de opinião, ponto de vista, ele recorre à heterogeneidade ‘constitutiva’,
intertextualidade em sentido amplo e a ‘mostrada’ citando fragmentos de intertexto
(hipoteticamente, conhecidos pelo interlocutor), em língua latina, confirmando, mais uma
vez, o seu conhecimento da cultura erudita.
O servilismo, o ‘quietum servilium’ de Tácito31, é e foi em todos os tempos o supremo almejo do despotismo. Reinar sobre um povo de escravo, imperar sobre cadaveres ambulantes...
No final do 2º parágrafo, Joaquim Felício recorre à referência:
É o delírio dos fascinados, é a jactitação tripudiante dos lacaios, é a ridícula intolerância dos eunucos do paço.
Entender o sentido completo do fragmento exige que se compreenda a alusão aos
“eunucos” – homens anulados e subservientes, como os homens castrados que vigiavam os
haréns orientais – numa referência aos aduladores e defensores de D. Pedro II,
estabelecendo uma comparação entre essas duas classes.
No parágrafo 8, para explicar os métodos adotados por D. Pedro II para anular as
reações populares, hipnotizar mentalmente o povo, reduzir os brasileiros a “cadáveres
31 Tácito (Cornelius Tacitus) – Notável historiador e estilista latino (55-117). Foi político, escritor, deixando
grande obra. O seu estilo foi considerado o mais original e pessoal de toda a literatura latina. Foi um historiador sincero e imparcial.
Neusa de Araújo Fernandes
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ambulantes”, implantar o servilismo, ‘o quietum servilium’, o editorialista vale-se da
intertextualidade, mais uma vez, e refere-se aos métodos para submissão dos povos,
adotados pelos Césares Romanos, pelos nobres Bourbons de Nápoles e França, por
Napoleão nas vitórias contra ateus e austríacos em Austerlitz, Marengo e Wagram. Todas
as referências reforçam o sentido de aniquilamento da vontade popular, sua submissão ao
Rei, às autoridades, que Joaquim Felício denuncia na política do Brasil.
Como se pode observar:
Panem et circenses era o narcótico dos horríveis Césares romanos: “Festa Farina Furca plagiavão os Bourbons de Nápoles. O Jesuitismo era o sistema dos Bourbons de França: Austerlitz, Marengo, Wagram era o de Napoleão. Tudo isso era dado ao povo em troca da liberdade e todas essas nações passarão pela adulação frenetica e apodrecerão na escravidão.
No parágrafo 10, há alusões, que combinadas, tornam o enunciado denso e sua
compreensão implica, também, o resgate de fatos históricos, também europeus, como na
maioria das referências usadas por Joaquim Felício:
Tambem um dia Cesar sonhou com a glória militar para coroar a obra. Soldado bisonho enfiou as botas napoleonicas, pigmeu sopesou a espada de Carlos Magno32 e cercado de Roldões33 caricatos revestiu-se do titulo de D. Pedro o Uruguaiano, como um dos seus avós fôra Affonso o Africano34
32 Carlos Magno – Rei dos francos e Imperador do Ocidente (742-814). Em seu longo reinado (46 anos)
guerreou contra todos que ameaçavam o seu governo. Suas forças bem organizadas e o seu gênio de esclarecido político e militar garantiram-lhe a dominação da maior parte da Europa. Foi sagrado pelo papa Leão III, Imperador do Ocidente. Foi talvez a maior figura da Idade Média, inspirando escritores, especialmente poetas.
33 Roldão – Pertencente ao exército de Carlos Magno nas guerras com a Espanha sendo assassinado (778) pelos bascos. Era sobrinho de Carlos Magno. Sua atuação deu origem a canção de gesta francesa “Chanson de Roland”. É considerado modelo dos paladinos.
34 Afonso o Africano – Afonso V – O africano (1438-1481). D. Pedro, tio de Afonso V, governou Portugal em nome do sobrinho. Nesse tempo os portugueses conquistaram no norte da África três cidades, sendo D. Afonso cognominado O africano.
Neusa de Araújo Fernandes
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Com essas alusões, Joaquim Felício critica a participação, a atuação de D. Pedro
II nas guerras cisplatinas, a sua política com os países vizinhos, criando uma rede de
referências a fatos e personalidade históricas que resulta na construção de uma ironia ao
Imperador “guerreiro”.
No final do parágrafo 15 e 17, Joaquim Felício critica o Imperador D. Pedro II
como poeta elogiado por seus aduladores, os cortesãos:
Em vão o instituto extasia-se lendo a quadrinha imperial ao “fiel povo Ituano” e a compara com o mimoso canto derradeiro de Marco Aurélio35 ou com as estrofes de Augusto36.
Novamente, Joaquim Felício recorre à História de Roma e cita os nomes de dois
imperadores – Marco Aurélio e Augusto – a quem os aduladores de D. Pedro II o teriam
comparado, pelo fato de Ter escrito algumas “quadrinhas” ao povo de Itu. Essa referência
constitui uma ironia feita pelo editorialista, reforçando a idéia de que D. Pedro II era
bajulado pelos seus seguidores, a ponto de verem nele qualidades de que não era
possuidor.
Também diante da figura de D. Pedro, “versado em letras divinas e humanas”,
conforme seus aduladores, Joaquim Felício “reproduz” um discurso hipotético desses
próprios bajuladores do Rei e nele faz alusões ao deus Saturno e à figura bíblica de
Tobias.
Ora, sendo assim, que nos importa a liberdade... volvemos a idade de ouro, governando Saturno37, exclamão em côro os aduladores, as ingratas andorinhas de Tobias38.
35 Marco Aurélio (161-180) – Imperador Romano filósofo, dotado de grandes qualidades morais. 36 Augusto – Imperador Romano (31 a. C. – 14 d. C.). O título Augusto dava-lhe uma auréola sagrada. Foi
proclamado pai da Pátria, adorado como um deus. Seu Império foi considerado o mais brilhante. 37 Saturno – deus primitivo e, expulso do Olimpo, por seus filhos, organizou uma sociedade numa região de
extensos bosques habitados por faunas e ninfas e deu-lhes leis, constituindo o início de Roma. Seguiu-se tanta paz e fartura que deram a esse período o nome de “idade do ouro”, o do reinado de Saturno e Roma a cidade “Satúrnia”, na alusão feita por Virgílio.
38 Tobias – figura bíblica, do Antigo testamento que tratava de andorinhas, quando as fezes de uma caíram-lhe nos olhos, tornando-o cego. Foi curado por milagre de Deus.
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Assim, este editorial também é um desfiar de intertextos, alusões, referências,
todos marcados pela erudição do editorialista que, com facilidade, enxerta nos editoriais
uma grande quantidade de informações transplantadas da História, dado o vasto
conhecimento enciclopédico que aciona como escritor culto.
Neusa de Araújo Fernandes
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O JEQUITINHONHA
DIAMANTINA, 6 DE MAIO DE 1869.
Depois de muito aguçada a curiosidade publica, no dia 11 de Maio de 1869, anno da graça, abrirão-se de par em par as portas do parlamento.
Foi mais um dia de festa accrescido na folhinha de Laemert.
O povo, que vai cahindo de dia à dia na desillusão tremenda dos factos, vendo à luz da experiencia que as promessas do governo são completamente mentidas, e os programmas « imperiaes » são « programmas de cartazes, » que se soprão à canudos, resolveu tomar a coisa como ella é na realidade.
Vestio sua melhor roupa de ver a Deus, e foi acotovelar-se nas ruas, para ver passar o prestito carnavalesco dos « catopés » da monarchia.
S. M. com todo seu « trem » poz-se na rua, e ficou « azul » de ver o riso « amarelo » do bom povo « carioca »
O povo mostrava os dentes! Subindo os degraus do throno
com as pernas tropegas querendo encontrar firmesa no chão « movediço » o rubor a tingir-lhe as faces, os olhos baixos, desenrolou com mão tremula um pergaminho, que trazia apertado á seu « peito de tucano » com voz de « canna rachada » recitou os seguintes trechos:
« Augustos e dignissimos Srs, representantes da nação – A reunião da assembléia geral, sempre grata para mim, desperta em todos os brasileiros lisongeiras esperanças. Nunca precisou mais o governo do auxílio de vossas luzes e patriotismo. »
Representantes da nação! Palavra de escarneo atirada às bochechas do paiz, depois de comprimir-se todas as valvulas onde podia ter respiro a sua vontade!
Amordação a liberdade, algemão os pulsos do cidadão, armão a dictadura, dimitem o funccionario publico, corrompem os magistrados, recrutão os adversarios, fazem uma camara de « escravos » e
proclamão os « designados da policia « augustos e degnissimos Srs. Representantes da nação! »
«A reunião da assembléia geral desperta em todos os brasileiros lisongeiras esperanças” »
Não se illuda o thròno, como não se illude o povo.
A esperança, com este reinado, está morta no coração nacional, e as vinte provincias do Imperio já suspirão para que chegue a desejada hora de sua emancipação.
Um deputado que parte é mais um actor contractado para a grande comedia nacional, é um gladiador que vae para o torneio imperial, um membro do Jockey-club: nada mais.
Em vez de emitir bonds, papel-moeda, fazer contrato de dócas, o Sr. V. de Itaboraly (perdoe que um neophyto queira aconselhar o Messias financeiro) podia dar um córte n’uma insignificante « bagatella » de 730.000 de despesas com senadores, deputados, e respectivas ajudas de custo.
Não precisamnos d’isso. Disse S. Magestade. «Tenho a maior satisfação em
annunciar-vos que a tranquilidade publica permanece inalteravel, graças à boa indole de nossos concidadãos, seu amor às instituições e respeito às leis. »
Seria necessario ter os ouvidos surdos aos gemidos do paiz, estrangulado pelas garras sanguinarias dos « thugs » d’esta actualidade nefasta, para diser-se do alto do throno « – a tranquilidade publica permanece inalteravel! »
Mas não... S. M. vê e ouve perfeitamente, e se compraz com a representação d’estas scenas, ensaiadas no seu próprio gabinete. Se assim não fosse, estamos certos, elle já teria enxotado das cadeiras do poder esses carrascos sanguinarios de seus mesmos concidadãos.
Pois S. M., não lê os jornais publicos, onde de dia á dia se revelão occurrências espantosas, e que a mente humana possue-se de horror, por ver de quanto é
capaz a perversidade de seu semelhante?
S. Christovão é uma forja de raios, e os « Cyclopes » trabalhão continuadamente debaixo das ordens do « Vulcano » imperial.
Mui amargas provanças tem produzido no paiz a instituição já velha e caduca da monarchia e dos reis! Elles são « na ordem moral o que os monstros são na ordem physica. As Côrtes são a officina de todos os crimes. A historia dos reis é o martyrologio das nações. »
Povo! – dizia Guadet – eis ahi a eloquencia dos tyrannos: abafar os accentos: do homem livre, para com o silencio cobrir seus crimes!
Reina em verdade a paz no Imperio; porém é a paz de Varsovia. –
Continuou S. Magestade: « São amigaveis as
reclamações do Imperio com os governos das nações extrangeiras, excepto a do Paraguay, onde tem proseguido co’ honra e gloria para o Brasil e para a guerra a que nos provocou o presidente Lopez. »
S. M. mette á bulha o paiz. Antes mais verdade podia dizer: « nutrimos as relações de amizade com as velhas monarchias da Europa. »
Sem compenetrar-se dos grandes principios que devião dictar uma politica francamaente « americana, e Segundo aquel’a expressiva phrase de Polk: « A Europa é dos Europeus, a America é dos Americanos » o governo imperial vive em luta aberta com as antipathias, os ciumes, as queixas de todos os povos do novo continente »
Senão – vede a prova com o facto recente dos Estados Unidos.
O Sr. James Watson Webb, o « fidus Achates » do Sr. D. Pedro II, que ainda há pouco ergueo-o aos cornos da lua, o seu apaniguado e conselheiro, « rompe bruscamente as relações internacionaes com o Brasil, e pede e obtem seus passaportes! »
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4.2.1.6. Editorial de 06-05-1869 – Crítica ao Parlamento Brasileiro
A abertura do Parlamento é, inicialmente, colocada por Joaquim Felício já com
uma referência a Laemert, como editor e livreiro.
Depois de muito aguçada a curiosidade pública, no dia 11 de Maio de 1869, ano de graça, abriram-se de par em par as portas do parlamento. Foi mais um dia de festa acrescido na folhinha de Laemert39
Em seguida, são feitos comentários sobre o fato, sobre o pronunciamento de D.
Pedro II, sobre a desilusão do povo com o governo imperial e sobre o papel do parlamento
que o autor, assim resume:
Um deputado que parte é mais um actor contratado para a grande comédia nacional, é um gladiador que vai para o torneio imperial, um membro do Jockey Club.
A figura do gladiador romano é colocada, também, como mais um termo
comparativo, fazendo lembrar a semelhança entre o governo de D. Pedro II e o governo
dilatorial dos Césares, dos Imperadores romanos e ironiza o parlamento como “teatro”,
representação, entretenimento apenas.
No parágrafo 21, o uso da heterogeneidade ‘constitutiva’ volta a funcionar na
construção de argumento contra o governo monarquista, na alusão às figuras lendárias de
Ciclopes e Vulcano como forjadores de raios, gigantes maus, também numa referência a D.
Pedro II:
39 Laemert – Livreiro, editor alemão. No Brasil, organizou e começou a publicar o Almanaque Laemert com
a colaboração dos maiores nomes das Letras nacionais do Século XIX.
Neusa de Araújo Fernandes
95
S. Cristovão é uma forja de raios e os ‘Cyclopes’40 trabalhão continuamente debaixo do Vulcano41 Imperial.
Ainda usa o autor o discurso direto, como argumento de autoridade nos parágrafos
23 e 28:
Povo – dizia Guadet42 – eis a eloqüência dos tyranhos abafar os accentos do homem livre para com o silencio cobrir seus crimes! (...) Sem compenetrar-se dos grandes princípios que devião ditar uma política francamente ‘americana’, segundo aquela expressiva frase de Polk43: ‘A Europa é dos europeus, a América é dos Americano’ o governo imperial vive em luta aberta com as antipathias, os ciumes, as queixas de todos os povos do nosso continente.
4.3. Conclusão
Enfim, percebeu-se que a heterogeneidade, a intertextualidade, sob formas
diferentes, está na construção do sentido dos editoriais, na construção dos argumentos,
estabelecendo unidade semântica no conjunto dos editoriais analisados.
Como se pôde notar, há predominância de intertextos, de alusões da cultura
clássica européia que fundamentou toda a formação do escritor brasileiro no século XIX.
Além disso, a intertextualidade usada tem um valor argumentativo considerável,
na medida em que a monarquia brasileira que se estruturou e se manteve sob a égide dos
modelos monárquicos europeus é considerada obsoleta pelos liberais e republicanos que
querem o seu fim.
40 Ciclopes – Entre os gregos, gigantes com um só olho, filhos de Urano e Gea, isto é, do Céu e da Terra,
construtores de muralhas, fabricantes de armas, servidores de Júpiter, para o qual preparam os raios em castigo de terem tentado a escalada do Olimpo. Seu Chefe chamava-se Hefaístos na Grécia e Vulcano em Roma.
41 Vulcano – Chefe dos ciclopes em Roma, preparadores das armas, gigantes forjadores e ferreiros. 42 Guadet (Marguerite Elie) - Político francês (1758-1796). Deputado na Assembléia Legislativa e também na
Convenção. Condenado à morte em 1793, sendo executado. 43 Polk (James Knox) - Político norte americano, deputado, governador do Tennessee foi presidente da União
(1844). A guerra contra o México permitiu-lhe anexar aos EUA o Texas, o Novo México e a Califórnia.
Neusa de Araújo Fernandes
96
Assim considerando, a intertextualidade erudita, além de ser expressão de uma
cultura clássica dos escritores brasileiros, cumpre uma função discursiva bem definida:
convencer o interlocutor de que a experiência do velho mundo, da civilização de
notoriedade reconhecida e glorificada, no passado, não pode servir de paradigma político-
administrativo do ‘sistema monárquico constituicional-representativo e hereditário’ em
funcionamento no Brasil, razão suficiente para se propor uma mudança, como se vê nos
parágrafos 13 e 22.
A esperança, com este reinado, está morta no coração nacional e as vinte províncias do Império já suspirão para que chegue a desejada hora de sua emancipação. (...) Mui amargas provanças tem produzido no paiz a instituição já velha e caduca da monarchia e dos reis! Elles são ‘na ordem moral o que os monstros são na ordem physica. As Côrtes são a oficina de todos os crimes. A história dos reis é o martyrológico das nações’.
Como já ficou evidenciado, a intertextualidade é a base da construção semântica
dos editoriais, do processo de referenciação, da coerência da temática textual e ela se
constitui de intertextos, alusões e referências com marcas de erudição.
Neusa de Araújo Fernandes
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CAPÍTULO V
A ARGUMENTAÇÃO NOS EDITORIAIS: SUA CONSTRUÇÃO
5.1. Considerações preliminares
Neste capítulo, o que se propõe é explicitar a utilização do conteúdo temático, de
seus mecanismos de estruturação, nos editoriais de O Jequitinhonha, para a construção do
discurso argumentativo de Joaquim Felício dos Santos contra o Governo Imperial de D.
Pedro II.
Preliminarmente, duas considerações se fazem necessárias. A primeira diz
respeito ao sentido dos textos, construído não rigorosamente em uma relação lógica com o
mundo sócio-histórico evocado por Joaquim Felício, mas em função da diretividade que
ele imprime no seu dizer com a intenção de levar o seu leitor a acreditar em algo posto
como verdade. Dessa forma, a sua representação do real é feita de acordo com seu objetivo
de convencer e persuadir seu interlocutor.
A segunda refere-se à conseqüência dessa semantização que não é uma
demonstração, ou seja, uma apresentação de provas restritas à lógica formal, mas uma
argumentação pessoal, baseada em opiniões, pontos-de-vista, colocados numa discussão,
num embate verbal com seus leitores particulares, os políticos da época.
Neusa de Araújo Fernandes
98
5.2. Condições da argumentação
O editorialista, imbuído do “desejo de se comunicar com alguém” para buscar a sua
adesão, seu consentimento, “sua participação mental”, com o objetivo de formar uma
“efetiva comunidade de espíritos”, estrutura o seu discurso em uma “linguagem comum”
aos seus interlocutores, cumprindo, assim, as condições iniciais de um processo
argumentativo, conforme propõe Perelman e Tyteca em seu Tratado da Argumentação
(1996).
5.2.1. Proposição de uma tese
Joaquim Felício define a sua “tese”, que pode ser sintetizada na proposição de
uma mudança do sistema de governo do Brasil, ou seja, substituição do regime
monárquico pelo republicano, com a “supressão da dinastia de Bragança” (Editorial de 20-
12-1868). Acredita ele que a única solução para os problemas sociais, políticos, financeiros
do Brasil estava no ideário do Partido Liberal. Assim, critica duramente a monarquia,
como se pode notar no Editorial de 06-05-1869, parágrafo 22:
Mui amargas provanças tem produzido no paiz a instituição já velha e caduca da monarchia e dos reis! Eles são ‘na ordem moral o que os monstros são na ordem physica. As Côrtes são a officina de todos os crimes. A historia dos reis é o martyrologio das nações’.
Neusa de Araújo Fernandes
99
5.2.2. O acordo prévio: a adesão inicial
Definida a “tese”, o editorialista, para garantir a “adesão inicial” de seus
interlocutores, procura estabelecer a relação entre o que é conhecido por eles e a
proposição que defende, numa espécie de “acordo prévio”, a partir de fatos, verdades,
presunções e valores, presumivelmente, compartilhados pelos participantes do processo
interlocucional, “a efetiva comunidade de espíritos”.
5.2.2.1. Os fatos
O relato de fatos, acontecimentos, torna a tarefa de argumentar mais prática, mais
real. Há sempre nos editoriais um fato que provoca o desencadeamento de um discurso
argumentativo. Pode-se perceber essa ligação de fatos à “tese” principal defendida por
Joaquim Felício, observando os editoriais, identificados pela data de publicação.
No editorial de 04-10-1868, um fato real fundamenta todo o discurso do autor: a
viagem do Ministro das Finanças à Europa, antes de sua posse, em busca de “inspiração”
para o exercício de seu cargo. Joaquim Felício descreve a sua volta, sua recepção por D.
Pedro II, o Imperador, transformando o fato em premissa – tese inicial – que se articula
com a tese principal. Considera o Imperador, o “César”, responsável pela indicação de um
ministro incompetente, um “salvador” em potencial. O autor faz a aplicação do fato em
benefício de sua “Tese”, usando uma visão bem pessoal e tendenciosa, para mostrar ao
leitor a incompatibilidade dos atos do Imperador com os tempos modernos do século XIX.
Neusa de Araújo Fernandes
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Outro fato é evocado por Joaquim Felício, no editorial de 15-11-1868: a
publicação pelo “Diário do Rio” de uma crítica aos jornais O Jequitinhonha e O
Constituinte. Desse fato o autor parte para uma acusação ao que ele chama de “sistema
monárquico-constitucional-representativo e hereditário” que não pode viver sem a
repressão à liberdade de imprensa, metaforicamente, denominada “rolha”. Entre outros
comentários sobre a atitude de “O Diário”, diz:
O “Diário” extasia-se sinceramente ‘por esta vez’ perante a sagrada sabedoria que nos rege; é uma apreciação individual, cujos motivos não indagaremos, nem discutiremos, respeitamos. Isso nada significa.
No Editorial de 27-12-1868, o autor registra o fato de os brasileiros estarem
sentindo inveja das repúblicas vizinhas “que vão sempre em caminho do progresso”, dado
o estado de penúria e sofrimento do povo brasileiro, envolvido em lutas estéreis.
Quando os brasileiros, estragados com lutas esterieis pedem a paz, o Sr. D. Pedro II os divide em partidos rivaes em guerra sem tréguas...
Depois de uma avaliação da situação brasileira, o autor conclui: “Tudo isso
realizou a sombra do systema das ficções que nos rege.”
No editorial de 24-01-1869, também o discurso em defesa da democracia se
alicerça no comentário de um fato real ocorrido em 07-04-1834, classificado por Joaquim
Felício como uma “simi-revolução” que foi sufocada, apelando-se para a legalidade das
instituições políticas e governamentais. Considera então o editorialista que “deixou-se
escapar a ocasião; e esse erro fatal legou-nos todos os males do presente.”
Neusa de Araújo Fernandes
101
Novamente, no editorial de 07-03-1869, uma matéria divulgada pelo Diário do
Rio de Janeiro desencadeia a condenação do regime monárquico de Império de D. Pedro II
e o autor termina o seu discurso: “O rei governa. O ministro reina. E o povo... paga o
imposto e geme.”
Não é diferente o editorial de 06-05-1869, que é iniciado com o relato da abertura
do Parlamento. Uma crítica é feita pelo editorialista ao discurso de D. Pedro II, iniciado
com a invocação: “Augustos e digníssimos Srs. Representantes da nação”, o que ele
considera um escárneo chamar os deputados de “representantes da nação”, uma vez que os
considera “escravos” de um regime autoritário e diz “S. Cristovão é uma forja de raios e os
‘Cyclopes’ trabalham continuamente debaixo das ordens do ‘Vulcano’.
5.2.2.2. As verdades
As verdades, presumivelmente, aceitas pelos interlocutores, são base do “acordo
prévio”. Definidas por Perelman-Tyteca (1996: 77) como “crenças que nos prestam
serviço”, são construídas em ‘teorias científicas ou concepções filosóficas ou religiosas.
Assim, interlocutores de uma determinada comunidade, em uma determinada época,
sujeitos a uma situação sócio-histórica comum têm “verdades” compartilhadas, aceitas
integralmente ou não. A partir delas, Joaquim Felício estrutura a argumentação em defesa
de sua “tese”.
Neusa de Araújo Fernandes
102
Que “verdades” básicas são aceitas, inicialmente, nos editoriais? Não se
pretendendo explorá-las à exaustividade, pode-se perceber a presença de algumas nos
editoriais já citados e aqui identificados pela ordem da referência feita.
No primeiro: o exercício do mistério das finanças exige a busca de novas
esperiências significativas em países mais experientes; no segundo: os brasileiros querem
paz, desenvolvimento das vias de comunicação, da indústria; melhoramentos materiais e
morais; no terceiro: reis que não ouvem a voz do povo não podem governar; no quarto: o
povo, tratado com tirania pelo poder governamental, torna-se desiludido, sem esperanças,
apático; no quinto: o despotismo, para exercício pleno de seu poder, busca hipnotizar o
povo, anular-lhe as reações e no sexto: há um desejo do povo de se livrar do jugo, como se
pode notar no fragmento:
A esperança com este reinado, está morta no coração nacional, e as vinte províncias do Imperio já suspirão para que chegue a desejada hora de sua emancipação.
5.2.2.3. As presunções
Fatos e verdades levam a presunções, que são suposições fundamentadas dentro
daquilo que é normal, verossímil, esperado. Busca, também, o editorialista a adesão dos
interlocutores para as presunções construídas a partir de indícios observados. Essas
presunções são reforçadas por argumentos para que funcionem como prováveis e, portanto,
admissíveis.
Um exemplo bem expressivo de uma presunção, naturalmente aceita em um
“acordo prévio”, é a descrita no editorial de 04-10-1868, a partir da realização da viagem
do Sr. De Itaboray à Europa, antes de sua posse como ministro das Finanças.
Neusa de Araújo Fernandes
103
O fato (a viagem do ministro), a verdade aceita (o exercício de um cargo de
ministro deve exigir o contato com experiências de povos mais experientes) geram a
presunção de que tenha o Sr. Ministro trazido um “projeto”. Diante da realidade da não
existência do sonhado projeto – presumível – Joaquim Felício constrói um discurso em que
ironiza a figura do “Ministro – programa” e busca a “adesão inicial” de seus interlocutores,
mostrando o absurdo da situação.
Outra presunção que motiva a indignação do editorialista é a de que a publicação
de suas críticas pelo periódico O Jequitinhonha seriam proibidas com a sugestão de o
Mercantil do Rio de Janeiro de se aplicar um corretivo aos jornais O Constituinte e o
próprio O Jequitinhonha, que se insurgiam contra o Imperador. Joaquim Felício, então,
exclama: “que venha a rolha se não pode sem ela viver o sistema monárquico-institucional
– representativo e hereditário. Nó nos calaremos, não escreveremos...”
5.2.2.4. Os valores Ao lado dos fatos, das verdades e das presunções que têm um caráter mais geral,
podendo ser utilizados como base de um “acordo prévio” com interlocutores mais
diversificados quanto à cultura, existem os Valores, suas hierarquias e critérios de escolha
que se prestam mais a embasar uma argumentação diante de interlocutores pertencentes a
grupos particulares, uma vez que os valores são convenções que variam de acordo com
fatores culturais, sociais, morais e, até mesmo, religiosos. Há valores universais mas com
conteúdos variáveis. A justiça, por exemplo, é um valor universal, mas o que é justo para
uma sociedade pode não ser considerado justo por outra. Assim, Joaquim Felício, para
motivar o interlocutor a fazer certas escolhas, para direcionar-lhes o julgamento, embasa
Neusa de Araújo Fernandes
104
sua discussão em valores que reputa essenciais à manutenção da vida social, política e
administrativa de uma nação que se desponta para a modernidade.
Um desses valores aceitos e defendidos pela humanidade é a liberdade e o
editorialista, recorre, várias vezes a esse motivo de ação verbal para mudança de
comportamento da sociedade brasileira, como nos enunciados do Editorial de 27-12-1868:
Hoje surdo às vozes de opinião, e confiado nas forças artificiais de um partido, que julga seu fiel aliado no desmoronamento das liberdades públicas, segue impavido na senda do absolutismo de facto. (grifo nosso)
No editorial de 24-01-1869, Joaquim Felício reforça a defesa da liberdade, aliada
aos bons costumes, à democracia:
No primeiro período os golpes que soffrera em suas liberdades forão desferidos por mão atrevida: no último, o que atravessamos, as tramas machiavelicas, ‘as recordações’ da política de Luiz Phelippe, tentão a degradação dos caracteres, a materializaçõdo espirito nacional, para perversão dos costumes, na indifferença da opinião, alçar-se bem alto um absolutismo tacanho e esteril.
Na construção do processo argumentativo, as hierarquias de valores, os critérios
adotados para se fazer essa hierarquiezação auxiliam na defesa da tese principal,
funcionamento como elementos constitutivos do “acordo prévio”, da aceitação inicial por
parte dos interlocutores.
No Editorial de 27-09-1868, Joaquim Felício cita uma hierarquia de valores
proposta por um sábio da antigüidade chinesa, para mostrar o valor da participação popular
em contraposição ao absolutismo dos reis.
O povo é o que há de mais nobre no mundo, o príncipe é o que há de menos importância. Deus vê pelos olhos do povo; Deus ouve pelos ouvidos do povo.
A comparar “Deus” e “povo”, foi estabelecida uma hierarquia de valores, baseada
em escolhas, “lugares do preferível” em que se privilegiou a qualidade, a especialidade da
situação que é a relação povo/Deus.
Neusa de Araújo Fernandes
105
O juízo de valor feito evidencia a presença da ideologia religiosa. A citação foi
realizada para reforçar o argumento do editorialista contra a presunção dos nobres, ou a
“verdade” aceita por eles de que a soberania dos reis era de direito divino, como se vê no
Editorial de 27-12-1868:
Vossa soberania de direito divino é uma mentira, como todas as invenções do absolutismo.
Pode-se concluir que fatos, verdades, presunções, os valores e suas hierarquias são
premissas do processo de argumentação, são a preparação do terreno para se firmarem os
pilares dos argumentos na construção do discurso argumentativo; construção essa
resultante da utilização de esquemas argumentativos diversificados e adequados ao
processo interacional.
Neusa de Araújo Fernandes
106
5.3. A construção dos argumentos: técnicas
Uma análise mais detalhada do discurso argumentativo dos editoriais mostra a
diversidade de técnicas de que Joaquim Felício dos Santos se valeu, os vários mecanismos
propostos pela Retórica que usou, os tipos de argumentos que ele combinou e que se
prenderam na teia argumentativa tecida ao longo de seus editoriais, para prender os seus
interlocutores aos seus raciocínios, construídos em função da intencionalidade que orientou
toda a sua ação lingüística.
5.3.1. Os esquemas argumentativos Ao argumentar, o editorialista usa dois esquemas que se contrapõem: a ligação e a
dissociação. No esquema por associação ele aproxima elementos distintos, estabelecendo
entre eles uma solidariedade que visa valorizar um pela semelhança com o outro, ou seja,
buscar uma confirmação de uma proposição feita pela sua relação com outra semelhante,
como se vê no Editorial de 27-12-1868:
O Sr. D. Pedro II, como a rainha da Hespanha, tem fechado os ouvidos ás reclamações patrioticas dos brasileiros, não vê senão pelos olhos dos cortesãos, que corromperão-lhe o espirito e o coração com o nocivo veneno da lisonja, não attende senão aos interesses da côrte.
No esquema por dissociação, ao contrário, propõe a separação de um par de
noções como teoria/prática para reforçar a sua proposição, explora a dissociação entre a
aparência e a realidade, no editorial de 06-05-1869, quando relata o fato da abertura do
Parlamento e critica o cumprimento que D. Pedro II fez aos deputados “Augustos e
digníssimos Srs. Representantes da nação” e se contrapõe:
Neusa de Araújo Fernandes
107
Representantes da nação! Palavra de escarneo atirada às bochechas do paiz depois de comprimir-se todas as valvulas onde podia ter respiro a sua vontade.
Amordação a liberdade, algemão os pulsos do cidadão, armão a dictadura, demittem o funccionario publico, corrompem os magistrados, recrutão os adversarios, fazem uma camara de ‘escravos’ e proclamão os ‘designados’ da policia augustos e dignissimos Srs. Representantes da nação!
5.3.2. As técnicas argumentativas: tipos de argumentos
Perelman-Tyteca (1996) dividem os argumentos em quatro tipos conforme as
técnicas utilizadas na sua construção: 1) argumentos quase lógicos; 2) argumentos
fundados na estrutura do real; 3) argumentos que fundamentam a estrutura do real e 4)
argumentos por dissociação de noções.
Os três primeiros tipos são construídos pelo processo de associação definido no
item 5.3.1. São eles os mais utilizados nos editoriais como se passará a explicitar através de
fragmentos textuais analisados.
5.3.2.1 Argumentos quase lógicos
A denominação de “quase lógicos”, dada a um tipo de técnica argumentativa
exige uma explicação que se justifique o porquê de sua utilização. Os raciocínios lógicos
obedecem aos princípios da lógica formal, propõem a demonstração, através de provas
irrefutáveis, de uma verdade aceita como certa. Por exemplo: o homem é um ser
mortal, portanto ele morre. Seria uma contradição afirmar que o homem é um ser mortal,
mas não morre.
Neusa de Araújo Fernandes
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Diz-se, pois, que o argumento é quase lógico porque aproxima-se do lógico por ser
feito “a priori”, ou seja, sem apelo à experiência, por ser resultado de um raciocínio, mas
que não tem a precisão, a lógica formal própria da demonstração. Ele pode ser refutado
porque não depende de aspectos puramente formais e sim da natureza das coisas ou das
interpretações humanas, são baseados em opiniões.
5.3.2.1.1. Compatibilidade/incompatibilidade: o ridículo
Joaquim Felício, editorial de 04-10-1868, procura demonstrar que a “tese” da
adesão inicial, premissa aceita pelos interlocutores, é incompatível com a “tese” principal
implícita no próprio editorial, que se expressa no seguinte silogismo: um Ministro da
Fazenda precisa de planejar suas ações; para planejar, precisa de experiências; o novo
ministro foi observar as experiências de países desenvolvidos, logo deve trazer algum
projeto para propor à nação.
Diante da não existência do projeto, como se pode perceber: “o paiz enfiou
curioso olhar pela bolsa de viagem, no intuito de surpreender uma folhasinha do projecto
suspirado”. “Debalde”, o editorialista mostra a incompatibilidade dessa situação com o
raciocínio feito pela sociedade, dentro da lógica estabelecida a priori sobre as atribuições
de um Ministro da Fazenda, ou seja, há o não ajustamento às regras criadas por essa
comunidade, e a situação se torna atípica, incompatível com o esperado.
A partir dessa constatação, o autor explora o ridículo da situação, conforme
explica Reboul (2000: 169):
O ridículo está para a argumentação assim como o absurdo está para a demonstração: é preciso ressaltar uma incompatibilidade, e a ironia é a figura que condensa esse argumento pelo riso.
Neusa de Araújo Fernandes
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Daí para frente, o editorialista transforma o seu texto em uma expressão de ironia,
de sarcasmo, considerando o “Ministro-programa”, o “indicado” o “salvador”, “o Messias
da Fazenda”, uma figura sobrenatural, um deus. Também a D. Pedro, o “Cesar”, Joaquim
Felício glorifica, torna uma verdadeira apoteose o encontro dele com o Ministro e com
saudações de louvor, constrói mais uma expressão de mordaz ironia:
Paz no ceu, paz na terra! Cesar o quer, Cesar o mandou! Glória nas alturas, na terra glória! Hosana ao ministro! Louvor à Cesar!
Ao longo dos editoriais analisados, percebe-se a recorrência da figura da ironia,
sempre que o autor conclui pela existência de incompatibilidade entre as premissas, aquilo
que é aceito (ou se presume seja) pelos interlocutores e a tese principal defendida.
No editorial de 07-03-1869, Joaquim Felício criticando os aduladores, “os nossos
cortesãos, heliosistas decididos” pela adulação a D. Pedro II, que o consideram o sábio
‘muito alto e poderoso’ príncipe protetor das “artes das sciencias”, classifica como
absurdo, como uma incompatibilidade entre a “verdade” e “o que dizem” e constrói ironias
em seus enunciados seguintes:
Em vão o instituto [“cortesãos” “artistas officiaes”] extasia-se lendo a quadrinha imperial ao ‘fiel povo Ituano’ e a compara com o mimoso
Neusa de Araújo Fernandes
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canto derradeiro de Marco Aurélio ou com as strophes de Augusto. Em vão o declarão mathemático, jurisconsulto, medico, Theologo, astronomo, chimico, physico, estadista, botânico, poeta, cirurgião, economista, litterato,critico, archeologo, alchimista, astrologo, pedagogo, versado nas letras divinas e humanas, conhecedor ‘de omni re scibili et quibusdam aliis.
5.3.2.1.2. As definições Uma das técnicas essenciais da argumentação baseadas em raciocínio e não em
experiência é a definição, que consiste na identificação de traços idênticos ou semelhantes,
entre seres, entre acontecimentos ou entre conceitos para melhor se explicar a proposição
feita no discurso.
As definições são consideradas argumentação quase lógica, quando não fazem
parte do sistema formal, mas pretendem, no entanto, identificar o definido e o que se
define, sem que sejam propriamente fundamentadas nas relações nocionais, com clareza
evidente. Na realidade, toda definição é um argumento, pois impõe determinado sentido
em detrimento dos outros.
Reboul (2000: 172) interpreta o estudo sobre definição feito por Perelman-Tyteca
e considera quatro tipos de definição: 1) a normativa – indica o sentido que se quer dar a
uma palavra em um determinado discurso; 2) a descritiva ou real ou lógica –
identifica o definido com suas propriedades específicas, reais, tem compromisso com
a lógica; 3) condensada – definição descritiva que se restringe às características
essenciais e 4) oratória – definição imperfeita, pois o que define e o que é definido não
são realmente permutáveis, mas é usada para reforçar o sentido especial que se quer dar a
determinada proposição argumentativa.
Pode-se acrescentar a essas quatro a definição etimológica que é fundamentada na
origem da palavra que se quer usar.
Neusa de Araújo Fernandes
111
No editorial de 07-03-1869, Joaquim Felício usa uma definição descritiva de
hypnoptismo que se presta como premissa do “acordo prévio” com o interlocutor e, a partir
dela, avalia a atitude dos cortesãos, “os vis instrumentos da dictactura”, mostrando o seu
estado hipnótico e as estratégias usadas pelos déspotas para controle do povo sua aceitação
pacífica da tirania governamental.
A sciencia descobrio modernamente uma singular affecção nervosa carcterisada por convulsões desrodenadas e vesania transitoria.
Chama-se a esse estado morbido – hypnotismo. No editorial de 27-12-1886, o autor cita uma definição oratória, expressiva, que
procura identificar a revolução como um desrespeito às leis humanas e um apelo ao poder
de interferência de Deus na realidade existente: “Locke definia a revolução ‘o direito de
appelar para Deus.”
Há, diluídas no discurso do Joaquim Felício, definições que são determinados
sentidos dados às coisas em detrimento de outros usados em seu ataque verbal ao
Imperador D. Pedro II, que, personificando a Monarquia, torna-se a origem de todos os
problemas sócio-políticos do Brasil daquela época, conforme reiteradas declarações do
editorialista.
Neusa de Araújo Fernandes
112
5.3.2.1.3. A comparação A comparação consiste em cotejar vários objetos para avaliá-los em relação a
outro. Pode se dar por oposição, por ordenamento e por ordenação quantitativa.
Nos editoriais são feitas comparações de igualdade entre as mentiras e de
superioridade e inferioridade entre Deus e o príncipe, resultantes de avaliações do
editorialista em função de sua tese principal, como se pode notar no editorial de 27-12-
1868, parágrafo 15:
Vossa soberania de direito divino é uma mentira, como todas as invenções do absolutismo. Na mesma China que dizeis ser a terra classica do absolutismo, já disse um de seus sabios da antiguidade, Menga-Isen: ‘O povo é o que há de mais nobre no mundo, o príncipe é o que há de menos importânica.’
No editorial 07-03-1869, Joaquim Felício estabelece uma comparação entre dois
grupos de aduladores: os primeiros classifica implicitamente como “descarados”, quando
afirma:
Outros menos descarados, dizem: ‘O que querem os democratas? O nosso systema de governo não é monarchico constitucional hereditario representativo, querem mais algum adjetivo? Não temos poderes divididos e harmonisados, servindo a corôa apenas de equilibrista? O rei reina e o povo governa eis a theoria.
Para mostrar a incompatibilidade entre a teoria e a prática, Joaquim Felício
continua, fazendo, também, uma comparação entre as atribuições do rei, dos ministros e do
povo.
Mas o povo, ao menos o das provincias, já tem reconhecido que aquella é a theoria, mas que a pratica é outra: eil – a
Neusa de Araújo Fernandes
113
O rei governa. O ministro reina. E o povo... paga o imposto e geme.
Enfim, o raciocínio por comparação está na verdade incluído nos argumentos
fundamentados na estrutura do real e nos que fundamentam o real, razão por que Reboul
coloca a comparação como técnica incluída em argumentos do terceiro tipo “que fundam a
estrutura do real” (2000: 183).
5.3.2.2. Os argumentos fundados na estrutura do real
No item 5.2.2.1, já se mostrou como fatos fundamentam o discurso do autor em
todos os editoriais analisados. Esses fatos, acontecimentos reais, funcionam como
premissas que facilitam a Joaquim Felício a defesa de sua tese principal: a mudança do
sistema de governo brasileiro com a conseqüente queda de D. Pedro II, o “Cesar”
brasileiro, na visão do autor e a implantação do regime republicano.
Ao estabelecer as relações entre os acontecimentos e a sua proposição, o
editorialista invoca, especialmente as ligações de sucessão e as ligações de coexistência.
5.3.2.2.1. As ligações de sucessão
As ligações de sucessão consistem em se avaliarem os fatos, seus efeitos, suas
conseqüências, em função da tese que se defende, portanto, uma avaliação bem pessoal, às
vezes, não baseada na lógica.
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No editorial de 24-01-1869, o editorialista busca um vínculo causal, uma causa
comum que ele denomina ‘Cesarismo”, para os fatos que analisa:
A nação confiante, magnanima em sua dedicação tem sido suffocada por um elemento estranho, que a amesquinha – O Cesarismo. No primeiro período os golpes que soffrera em suas liberdades foram desferidos por mão atrevida; no último, o que atravessamos, as tramas machiavelicas, ‘as recordações’ da política de Luiz Phelippe, tentão a degradação dos carcteres, a materialisação do espirito nacional, para perversão dos costumes, na indiferença da opinião, alçar-se bem alto um absolutismo tacanho e esteril. Esclarecido pelo desfecho do drama, no 1º Reinado, o Cesarismo do 2º troca as vestes de cavalheiro pelas mascara de Tartugo. (Parágrafos 7, 8 e 9) Quem observando a nossa marcha política deixará de enxergar a conspiração constante do ‘imperialismo’ contra as instituições? (Parágrafo 18) Seria o suicidio para elle [partido liberal] se inexperiente ou ambicioso, chamado ao poder, por officio de ‘uma escamotagem’ como tantas outras, se resignasse a acompanhar as tendencias do – ‘Cesarismo’.
Cesarismo, imperialismo, absolutismo são denominações para a centralização do
poder – causa comum de uma série de fatos políticos e atitudes do Imperador.
Também se observa nessa análise uma avaliação, uma apreciação dos atos de D.
Pedro, as suas conseqüências desfavoráveis ao Brasil. Trata-se, portanto, de argumentos
denominados por Perelman-Tyteca (1976: 358) de “pragmáticos”.
Nos parágrafos 8, 11 e 12 do editorial de 27-12-1868, é feita uma avaliação dos
fins e das conseqüências nefastas da política de D. Pedro II, é feito um juízo de valor, com
base nos “lugares do preferível” (critérios de escolha) adotados pelo autor.
Tem sido a politica do Sr. D. Pedro II enfraquecer o paiz, corromper os caracteres mais distinctos, desharmonisar todas as forças politicas, concentrar todos os poderes em sua pessoa, convergir toda a actividade social em um centro único, matar o individualismo, aniquilar os elementos vitaes das localidades para consagrar o absolutismo. Hoje, surdo às vozes da opinião, é centrado nas forças artificiaes de um partido, que julga seu fiel alliado no desmoronamento das liberdades publicas, segue impavido na senda do absolutismo de facto. Ministros
Neusa de Araújo Fernandes
115
desprestigiados no conceito do povo são instrumentos de suas vontades caprichosas. Trahido pelo Imperador, que sempre obstou a realisação de suas nobres aspirações o partido liberal hoje também o olha sem confiança.
5.3.2.2.2. As ligações de Coexistência Ligações de coexistência entre atributo com sua essência, entre atos com suas
pessoas, entre pessoas são feitas nos editoriais.
No editorial de 27-12-1869, há um julgamento de um ato de D. Pedro II, como
sendo resultante de sua origem, mostrando uma relação de estabilidade entre pessoa e ato.
(...) O Sr. D. Pedro II foi elevado ao throno pelo partido liberal, que ele depois trahio por um desses atos de ingratidão proprios da casa bragantina.
Os argumentos de autoridade estão incluídos nos argumentos de pessoas e seu
valor depende do prestígio de que goza essa pessoa no meio específico, particular, em que
o argumento é empregado.
Quando o editorialista faz citação de pensamentos, de frases, posicionamentos de
personalidades reconhecidamente aceitas como “expert” no assunto, ele busca legitimação
para as suas proposições, e aceitação dos argumentos pelos interlocutores. Joaquim Felício
recorre a essa técnica freqüentemente, em especial, buscando nomes estrangeiros de
diversos campos do conhecimento, da vida política de países reconhecidos como destaque
em diferentes épocas. Essa argumentação por autoridade imprime também ao discurso de
Joaquim Felício forte marca de erudição pelas fontes buscadas, pela relação estabelecida
entre Brasil e outros países.
No editorial de 15-11-1869, há um significativo exemplo dessa prática:
Neusa de Araújo Fernandes
116
Vitor Hugo exproba a phrase adulatoria de Bossuet – Deus tem na mão o coração dos Reis – disendo ‘dupla mentira, nem Deus tem mão, nem os reis coração’ O exilado Jersey não foi muito exacto: os Reis tem um coração immenso, hypertrofiado quando attendem aos elogios de seus panegynistas.
O autor procura mostrar que Vitor Hugo e Jersey criticavam, como ele as
adulações, os elogios e conclui: “os bons amigos nem são indulgentes em excesso nem
defensores extemporaneos”.
O argumento ad hominem é o argumento de autoridade invertido: refuta-se a
proposição porque vem de uma personalidade que não merece crédito; procura-se ressaltar
as fraquezas de quem a enuncia ou, até mesmo, por ser uma pessoa odiosa, non grata na
comunidade, que está interagindo pela linguagem.
No editorial de 07-03-1869, Joaquim Felício critica o Diário do Rio de Janeiro e
seguidores do Imperador pelos elogios que fazem a D. Pedro II e procura mostrar que não
se deve levar em consideração esses discursos que partem de “os nossos cortesãos,
heliosistas decididos”... “poetas mercenários”, o “Instituto dos laureados”, “os vis
instrumentos da dictadura”, “os renegados epicuristas”, “os sábios artistas officiaes”. Em
contraposição, coloca a atitude dos homens sensatos.
(...) os homens sensatos passão silenciosos e creem tanto n’esses elogios como na dôr das carpideiras stipendiadas, que outr’ora acompanharão o feretro dos potentados.
Assim os exemplos são citados para sem refutados como falsos, não merecedores
de crédito.
5.3.2.2.2 Os símbolos
Neusa de Araújo Fernandes
117
No Editorial de 15-1-1868, o autor refuta as críticas de “O Diário”, acusando esse
periódico de se extasiar diante da “sagrada sabedoria que nos rege”, referindo-se a D.
Pedro II. Em seguida, mostra como são feitos elogios a pessoas que realmente não
merecem, usando os símbolos de consagração dos reis e imperadores, símbolos de vitória,
de nobreza: “corôas, arcos triunfais, prêmios:
Não faltarão corôas, prêmios e arcos triumphaes a Nero nem a Calligula... (grifo nosso)
Seres, objetos, pessoas ou atos podem se tornar símbolos do que representam de
acordo com o reconhecimento da tradição, das instituições. A ligação simbólica acarreta
transferência entre símbolo e simbolizado; o vínculo entre eles não é uma ligação objetiva,
mas uma ligação reconhecida, unicamente, pelos membros do grupo. O símbolo pode ser
usado como signo desde que se integre numa linguagem compreendida pelos membros de
uma comunidade lingüística.
‘Panem et circenses’ era o narcotico dos horriveis Cesares romanos (...) Para conseguir igual fim, o nosso Cesar não tem confiança em seu systema único: como os medicos discrentes atirou-se a polypharmacia Cruzes, fitas, chaves, bugigangas, officios amistosos, os benefícios pingues, o uso fructo de um poder nominal... (grifo nosso)
“Pão e circo” são palavras que denotam a comida e o entretenimento, realmente,
usados pelos imperadores romanos, mas que passaram a símbolos de instrumentos usados
pelos governantes despóticos para manter o controle do povo. O uso de cruzes, fitas,
chaves, bugigangas é simbólico, e esses vocábulos passam a signos, cujo significante é o
nome do objeto e o significado vai depender da comunidade lingüística que os usa. No
caso presente, pode-se interpretar os símbolos como: cruzes, símbolo da religião católica,
fitas, símbolo de distintivos de associações religiosas ou institucionais, títulos de nobreza,
Neusa de Araújo Fernandes
118
chaves, símbolo de posse de propriedades, riquezas e bugigangas como todo o conjunto
estereotipado de conderações, distintivos de cargos, marcas de honorabilidade com que os
Reis distinguiam determinadas pessoas com objetivos, às vezes, sérios, outras vezes
escusos.
5.3.2.2.Argumentos que fundamentam a estrutura do real
Também esses argumentos, como os do segundo tipo, relacionam-se com o
mundo empírico, mas não se apoiam na estrutura do real; vão, ao contrário criá-la ou
completá-la. É uma estratégia que vai reforçar o nexo entre as premissas do “acordo
prévio” apresentadas pelo autor e a “tese” que é defendida. Esses argumentos podem ser
apresentados em forma de exemplos, ilustração, modelo, analogia e metáfora. A realidade
passa a ser construída, explicada pela evocação de ações, atitudes, situações conhecidas.
Joaquim Felício dos Santos apresenta uma rica argumentação desse tipo,
evocando fatos, personalidades, situações da História Universal e é, pelo uso dessas
estratégias que ele revela a sua erudição, tornando a intertextualidade uma presença
dominante no processo da semantização de seu texto, como se buscou explicitar no quarto
capítulo.
Assim, o editorialista para convencer e persuadir o seu interlocutor traz exemplos,
constrói ilustrações, compara atitudes do Imperador a modelos ou anti-modelos; recorre a
analogias para melhor pintar a realidade brasileira, enfim lança mão de expressivos
recursos retóricos visando a alcançar o seu objetivo.
Neusa de Araújo Fernandes
119
5.3.2.3.1. O exemplo Nos parágrafos 5 e 14, do Editorial de 27-12-1868, os exemplos apresentados
fundamentam a regra: a falta de consideração à vontade popular leva o trono a sua
decadência, ao desaparecimento.
Isabel II fôra levada ao throno pelas baionetas de um exercito liberal; também o Sr. D. Pedro II foi elevado ao trono pelo partido liberal, que elle depois traiu por um desses actos de ingratidão próprios da casa bragantina (par. 5) Ilude-se o Sr. D. Pedro II, quando com suas idéias anachronicas dos séculos passados, julga-se bastante forte para suplantar a soberania popular. Assim pensarão na França Luiz XVI, Carlos X, Luiz Felippe, assim pensou Isabel II da Hespanha, e seus thronos forão pulverisados pelo sopro popular.
O autor evoca os fatos da destronização de reis da França e da Rainha da Espanha
como exemplos, fatos verídicos, cuja causa é comum: a não escuta da voz do povo, a
centralização do poder na própria pessoa que governa e cujo desfecho é o mesmo: a queda
dos Reis e da Rainha (Isabel II). Há uma comparação entre uma regra geral formulada: reis
sem apoio popular são destronados e uma regra particular do Brasil: D. Pedro, que também,
não considera a vontade popular, deve cair.
No Editorial de 15-1-1868, o editorialista quer provar que “elogiar aos Reis” é
desservi-los e que dessas “baixesas e adulações torpes nasce sempre a oppressão”, e cita o
exemplo:
Tiberio foi uma consequencia logica da vilesa dos senadores; elle mesmo exclamou, vendo-os prostrados a seus pés. Oh! hmens talhados para a escravidão!!
Esse exemplo foi usado para criticar o “Diário” pelos elogios e pela suibmissão a
D. Pedro II.
Neusa de Araújo Fernandes
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No editorial de 24-01-1869, novamente exemplos foram buscados para
fundamentar a regra defendida por Joaquim Felício: a soberania dos povos está em luta
com o governo absolutista dos reis, sua ambição, suas paixões grosseiras.
Cesar alevantado nos favores do povo conspira; e triumpha do patriotismo de Catão, apunhalando a liberdade romana.
Cromwel, Bonaparte aventureiros audazes, e felizes, que sequestrão as liberdades da patria, uzurpando os direitos magestaticos da nação...
No mesmo editorial, para reforçar sua tese, o autor cita exemplos de vários
monarcas da Espanha e da França que tiveram os seus governos despóticos acabados
através de revoluções, da ação popular. Joaquim Felício insinua a todo momento que é
preciso acabar com o governo de D. Pedro II e, buscando os exemplos, sugere que cabe ao
povo desencadear ações que permitam atingir esse objetivo, buscado com decisão e
pertinácia pelo partido Liberal.
Neusa de Araújo Fernandes
121
5.3.2.3.2. A ilustração A ilustração difere do exemplo, pois este é incumbido de fundamentar a regra,
enquanto a ilustração tem a função de reforçar a adesão a uma regra conhecida e aceita,
fornecendo casos particulares que esclarecem o enunciado geral, mostram a sua validade,
aumentando-lhe a presença na consciência; a ilustração impressiona, ativa a imaginação,
dá força à proposição feita, mas não constitui prova.
No editorial de 04-10-1868, a ilustração torna mais evidente a semelhança entre a
ida do Ministro da Fazenda à Europa em busca de novas experiências para o exercício de
cargo e as consultas ao “Oráculo”, feitas pelos administradores, legisladores da Europa
Antiga. Não é colocada essa ilustração para provar nenhuma regra, mas para mostrar ao
interlocutor o absurdo da “indicação” de um ministro incompetente, por D. Pedro II, uma
atitude condizente com um tempo remoto, da época do politeismo, quando os deuses
davam respostas às indagações dos governantes, em determinados lugares.
Joaquim Felício, para ironizar a figura de D. Pedro II, elogiada pelos seus
aduladores, os “heliosistas decididos”, no Editorial de 07-03-1868, constrói uma ilustração
densa de alusões a personalidades da História, ao falar da participação do Brasil nas
guerras com as nações vizinhas Uruguai e Paraguai:
Tambem um dia Cesar sonhou com a gloria militar para coroar a obra Soldado bisonho enfiou as botras napoleonicas, pigmeu sopesou a espada de Carlos Magno e cercado de Roldões caricatos revistio-se do título de D. Pedro o Uruguayano, como um dos seus avós fôra Affonso o Africano.
Assim, Joaquim Felicio, para mostrar a figura de D. Pedro II sob a ótica de seus
aduladores que o consideram conhecedor de omini re scibili et quibusdam aliis, traça-lhe,
também, o perfil do “grande” guerreiro usando comparações irônicas soldado bisonho X
Neusa de Araújo Fernandes
122
lutas napoleônicas; pigmeu X Carlos Magno e seus Roldões; D. Pedro Uruguaiano X
Afonso o Africano, em que o primeiro elemento é uma referência ao Imperador do Brasil e
o segundo a conquistadores europeus, que se notabilizaram como guerreiros.
5.3.2.3.3. Modelo e antimodelo A argumentação pelo modelo é uma variação da argumentação pelo exemplo; é
um exemplo dado como algo digno de imitação. O antimodelo, ao contrário, é o exemplo
que não se deve imitar, fundamenta o argumento no seu contrário.
Joaquim Felício, ao descrever o encontro do Ministro das Finanças e D. Pedro II
no editorial de 04-10-1868, quer mostrar como a cena imita o modelo da entrega das
Tábuas da Lei a Moisés pelo Senhor do Universo – Deus – no Monte Sinai. Uma situação é
criada para imitar a outra
No alto do Sinay não é por entre o fogo, por ente o fumo e por entre os raios que a lei apparece? Um salvador não é qualquer cousa que se toque assim com o dedo! E pois, o homem passou envolto na sua capa. Na capa envolto era mais soberbo, mais altaneiro do que o romano, que na toga leva ou a paz ou a guerra. Ampla fieira de gente fez-lhe sequito. Representava a guarda de honra e agiota que entrava hontem de alforge e hoje sahira de milhão, graças ao fluctuar da alta e da baixa, em um momento de sorte. Ia-lhe no couce a tribu famelica dos jogadores do cambio. Parou a pompa às portas do palacio. Cesar recebeu nos braços o ministro futuro.
Como antimodelos, Joaquim Felício coloca o próprio Cesar romano, que parece
encarnar todos os vícios do político, do administrador, do nobre e da pessoa humana. Entre
outras referências a Cesar, ele evoca a de traidor do povo romano:
Cesar alevantado nos favores do povo conspira; triunpha do patriotismo de Catão, apunhalando a liberdade romana.
Neusa de Araújo Fernandes
123
Nero e Caligula são claramente colocados como “monstros” da História, pelo
editorialista.
Não faltarão corôas, premios e arcos triumphais a Nero nem a Calligula, – nem as musas dos Lacios envergonhavão de cantar esses monstros como disse o poeta.
E são a essas personalidades que D. Pedro é comparado por Joaquim Felício, são
os símbolos de administradores, imperadores não aceitos pelos seus súditos e pela História
que procuram julgá-los e condená-los como aqueles que não devem ser seguidos:
antimodelos.
5.3.2.3.4. As analogias e as metáforas Quando se quer argumentar por analogia, utiliza-se como tese da adesão inicial
um fato que tenha uma relação analógica, e não lógica, com a tese principal. A metáfora é
uma analogia condensada. Analogia e metáfora são embasadas em uma similitude de
estruturas que devem pertencer a áreas diferentes, campos semânticos diversos. Entre os
argumentos desses tipos encontram-se, nos editoriais de O Jequitinhonha, vários de valor
bastante expressivo, mas apenas alguns são objeto de considerações no item 5.3.3.1.1.2.
Para ilustrar temos os exemplos:
No Editorial de 04-10-1868:
Mostrou [o ministro das Finanças] que o paiz está gravemente enfermo, que já não pode em tamanha extenuação... chorou, pesou as onças de sangue vertido e... terminou exingindo uma sangria, uma ‘sangria’ ainda! O ministério vai emitir mais quarenta mil contos de papel moeda.
Neusa de Araújo Fernandes
124
Pois não é de ‘notabilidade’ financeira dourar a pilula para que o paiz a engula, sem careta?
No Editorial de 15-11-1868:
Venha pois a rolha se não pode sem ella viver o systema monarquico – constitucional – representativo e hereditário.
No Editorial de 27-12-1868
Hoje o partido Liberal do Brasil, indignado de tanto cynismo, também arrancou a mascara.
No Editorial de 24-01-1869, o autor cita Reyer Collard que anunciava ‘a onda da
democracia subia como enchente impetuosa. Desde então o rio não entrou mais no leito’.
No Editorial de 07-03-1869:
Reinar sobre um povo de escravos, imperar sobre cadaveres ambulantes, instituir o mutismo como mola real da Governação depois de estabelecer o indifferentismo, como a primeira virtude do cidadão, eis ao que tendem sempre os despotas.
No Editorial de 06-09-1869, o uso de analogias é mais intenso, quando o autor
descreve a reabertura do Parlamento e a descrença do povo diante da nova fase do governo
imperial no Brasil.
Vestio [o povo] sua melhor roupa de ver a Deus e foi acotovelar-se nas ruas, para ver passar o prestito carnavalesco dos ‘catopès’ da monarchia. S. M. com todo seu ‘trem’ poz-se na rua, e ficou ‘azul’ de ver o riso ‘amarello’ do bom povo ‘carioca’. O povo mostrava os dentes! Subindo os degraus do throno com as pernas tropegas, querendo encontrar frimeza no chão ‘movediço’, e ‘o rubor’ à tingir-lhe as faces, os olhos baixos, desenrolou com mão tremula um pergaminho, que trazia apertado à seu ‘peito de tucano’ e com voz de canna rachada’ recitou os seguintes trechos...
Neusa de Araújo Fernandes
125
5.3.2.4. Argumentos por dissociação Esse tipo de argumento representa uma ruptura de ligação; é a dissociação de
unidades pressupostamente unidas em uma unidade primitiva.
São exemplos dessa ruptura os paradoxos e as antíteses, fortes recursos retóricos
que impressionam, ressaltando os contrastes.
No editorial de 06-05-1869, Joaquim Felício faz uma citação para mostrar que “a
história dos reis é o martyrologio das nações”.
Povo! – dizia Guadet – eis ahi a eloquencia dos tyranos: abafar os accentos do homem livre para com o silencio cobrir os seus crimes.
“Eloqüência dos “tiranos” se opõe a “silêncio” dos homens livres. Eloqüência
supõe fala expressiva, no entanto, vai-se aproximar de “silencio”, que significa ausência de
fala. É a evidência de uma incompatibilidade entre aspectos do real, unem-se palavras que
se opõem.
Outro argumento construído numa antítese está no Editorial de 07-03-1869
... imperar sobre cadaveres ambulantes, instituir o mutismo como mola real da governação...
Também a oposição entre à imobilidade inerente a cadáver e a mobilidade de
“ambulantes”, que caminham.
5.3.3. Persuasão e figuras de retórica As figuras de retórica são recursos lingüísticos utilizados, especialmente, a serviço
da persuasão, porque dá mais ênfase, vivacidade e colorido à comunicação, atuando sobre
a sensibilidade do interlocutor, tornando-o mais vulnerável à adesão à tese defendida pelo
Neusa de Araújo Fernandes
126
locutor. Devem-se distinguir esses recursos que têm caráter funcional no discurso
argumentativo das figuras estilísticas, cujo objetivo é causar emoção estética e são usados,
em geral, nos textos literários.
5.3.3.1. Conceito e tipos
Dubois e outros (1974: 57-66) conceituam figuras de linguagem como um desvio
da norma lingüística, que constitui o ‘grau zero’, ponto de partida da ortografia, da
gramática, do sentido das palavras. Assim, a linguagem figurada se manifesta pela
substituição de elementos próprios de um discurso fixado pelos cânones da língua por
elementos anormais, no sentido de diferentes do pré-estabelecido,
Esses autores constroem um quadro geral das categorias das figuras de linguagem,
denominadas metáboles, classificando-as em gramaticais, relativas ao código lingüístico e
lógicas, as que remetem ao referente. As figuras gramaticais são figuras de expressão
(forma) que compreendem os metaplasmos, operação que altera a continuidade fônica ou
gráfica da mensagem e metataxes que são figuras de sintaxe. As figuras lógicas são figuras
Neusa de Araújo Fernandes
127
de conteúdo e são denominadas metassememas (sentido) as que consistem em substituir
um semema (palavra) por outro, isto é, modificam os conjuntos de semas de ‘grau zero’, e,
metalogismos as que modificam o valor lógico da frase, sem ser submetidas a restrições
lingüísticas, ou seja, não há substituições, modificações na forma, apenas o valor assertivo
da frase é alterado.
Neste trabalho, que a análise dos editoriais é feita numa perspectiva semântico-
argumentativa, são objeto de algumas considerações as figuras dos dois últimos tipos: os
metamsememas e os metalogismos.
5.3.3.1.1. Os metassememas Constituem-se tipos de metassememas: a sinédoque e a antonomasia, a metáfora
e a metonímia. A sinédoque e a antonomásia baseiam-se no mesmo princípio: “designação
de uma coisa pela outra que tenha com ela uma relação de necessidade” (Reboul, 2000:
252). Já a metáfora não é propriamente uma substituição de sentido, mas uma modificação
do conteúdo semântico de um termo, pela analogia. A metonímia é uma figura que consiste
em designar um objeto pelo nome de outro que tenha com ele um vínculo habitual. Diz-se,
portanto, que na metáfora há uma relação de similitude, enquanto na metonímia, uma
relação de contigüidade.
Nos editoriais de O Jequitinhonha, têm um função persuasiva considerável a
antonomásia e a metáfora e alguns exemplos são destacados para breves considerações.
Neusa de Araújo Fernandes
128
5.3.3.1.1.1. A antonomásia
A antonomásia é uma sinédoque que designa uma espécie pelo nome de um
indivíduo ou um indivíduo pelo nome de uma espécie.
Nos editoriais, Joaquim Felício usa tanto a autonomásia generalizante como a
particularizante, ou seja, um nome próprio é a designação de uma classe inteira de que o
dono desse nome constitui um símbolo, um representante singular, como é o caso de César,
tomado como símbolo dos ditadores, tiranos e absolutistas de toda a História. Também usa
o nome de uma espécie, “o romano” para designar, apenas, a César, como se perceberá nos
exemplos a seguir.
O editorialista, através da comparação (argumentos quase lógicos, item 5.3.2.1.3
deste trabalho) designa, em vários editoriais o Imperador do Brasil, D. Pedro II, de César,
com intenção persuasiva. O processo comparativo desencadeado tem o objetivo de traçar o
perfil de D. Pedro II à imagem da figura-símbolo dos ditadores: o César romano, para que
assim o vejam os brasileiros e se convençam da veracidade das proposições políticas do
Partido Liberal, de quem João Felício é uma voz legítima. A D. Pedro são transferidos os
presumíveis “defeitos” do César romano, reforçando-se a tese: o governo monárquico
brasileiro é nefasto ao Brasil, tem como representante um Imperador ditador, absolutista,
tirano, devendo, portanto, ter o seu fim com a mudança do regime monárquico para
republicano. Assim, a antonomásia é utilizada reiteradas vezes, enfatizando a visão do
editorialista sobre O Imperador brasileiro como um clone do Imperador romano. São
exemplos contundentes dessa freqüente utilização:
Editorial de 04-10-1868, parágrafos 18, 22, 23, 29, 32 e 43.
Neusa de Araújo Fernandes
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Na capa envolto era mais soberbo, Mais altaneiro do que o romano que Na toga levava ou a paz ou a guerra.
Parou a pompa às portas do palácio, Cesar recebeu nos braços o ministro futuro.
Parabens a Cesar! O ministro-programma começou por balbuciar uma desculpa. Desapontamento de Cesar, espanto geral.
Cesar o quer, Cesar o mandou! Louvor a Cesar!
Lêde o Diario do Rio de Janeiro: Vêde como o desgraçado possesso Em furor arremessa-se contra a democracia que ouza contestar a Cesar a sua natureza .............. de divindade... ‘Panem et Circenses’ era o narcotico dos horriveis Cesares romanos (...) Para conseguir igual fim, o nosso Cesar não tem confiança num sistema único... Tembém um dia Cesar sonhou com A gloria militar...
No editorial de 24-01-1869, da antonomásia – César –, o editorialista passa a usar
a palavra derivada – Cesarismo –, significando o conjunto de ações e atitudes do
Imperador D. Pedro II, que o tornam o Cesar romano: tirano, absolutista, ditador, conforme
a concepção que enfatiza reiteradamente.
A nação confiante, magnanima Em sua dedicação tem sido suffocada por um elemento estranho, que a amesquinha – o Cesarismo. Esclarecido pelo desfecho do
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Drama no 1 reinado, o Cesarismo No 2 troca as vestes de cavalheiro Pela mascara de Tartufo.
Pode-se perceber, portanto, que o uso da antonomásia – César – tem a função
persuasiva nos editoriais, não é apenas um recurso estilístico.
5.3.3.1.1.2. A metáfora
Definida no item 5.3.2.3.4. deste trabalho como uma analogia condensada, a
metáfora se caracteriza pela designação de uma coisa pelo nome de outra que se lhe
assemelha, modificando o conteúdo semântico do termo usado.
A linguagem metafórica imprime um sentido novo, surpreendente, que
impressiona o interlocutor, reforçando-lhe a adesão à tese do locutor, daí o seu valor como
recurso persuasivo no discurso argumentativo, como é o caso dos editoriais em estudo.
O estudo da metáfora pode ser feito sob óticas diferentes. J. V. Jensen, apud
Abreu (2001: 112), propõe uma classificação das metáforas de acordo com os conteúdos
analógicos que o sujeito aciona na sua construção. O autor divide as metáforas em: 1)
metáforas de restauração; 2) metáforas de percurso; 3) metáforas de unificação, 4)
metáforas criativas e 5) metáforas naturais.
As metáforas de restauração partem do princípio de que algo sofreu algum tipo de
avaria e há necessidade de reparação. São elas: metáfora médica, de roubo, de conserto, e
de limpeza; as de percurso associam a resolução de problemas a uma jornada; metáforas de
unificação apelam para as relações de parentesco, reunião de pastoral, de agremiação
Neusa de Araújo Fernandes
131
esportiva; as criativas priorizam os aspectos de organização, da contribuição das partes na
construção de um todo significativo como o da construção, edificação de um prédio, a
tecelagem que vê a sociedade como um tecido em que os fios se unem e se cruzam, uma
composição musical em que os sons se harmonizam; um plantio em que lavradores se
empenham no preparo da terra, no trabalho freqüente até a colheita, seu objetivo e as
metáforas naturais resultantes de comparações com a natureza, seus fenomenos, incluindo
as metáforas relacionadas com a vida dos seres, a biologia.
No editorial, podem-se perceber exemplos de matáforas que se relacionam com
essas analogias, que são base desses tipos descritos. A primeira metáfora, classificada
como de restauração, é encontrada no editorial de 04-10-1868, numa perspectiva de reparar
os danos de uma organização, que são vistos como doença, falta de saúde, no presente
caso, “saúde” financeira.
Mostrou que o paiz está gravemente enferno, que já não pode em tamanha extenuação...
Chorou, pesou as onças de sangue vertido e... terminou exigindo uma sangria, uma ‘sangria’ ainda!
O ministro vai emitir mais quarenta mil contos de papel moeda!
Que sublimado programma! Pois não é de ‘notabilidade’ financeira dourar a pilula para que o paiz a engula sem careta?
A metáfora da restauração – médica – tem grande valor argumentativo pois
representa um apelo universal, conforme Abreu (op. cit. 113).
Compara-se, nos exemplos, o Brasil como um ser humano que doente precisa de
se tornar saudável. Assim, as palavras “enfermo”, “extenuação”, “sangue vertido”,
“sangria” “pílula” do campo do tratamento da saúde corporal estende-se ao da saúde
financeira. Ao
Neusa de Araújo Fernandes
132
Brasil fragilizado, doente, receita-se um tratamento radical usado pela
medicina primitiva – a “sangria” - significando a emissão de mais papel moeda. Como
remédio para a “doença financeira”, a “pílula” da aceitação dos brasileiros à medida
aplicada deve ser tomada “sem careta” porque “dourada” pela circunstâncias de sua
aplicação descritas, ironicamente, pelo editorialista, isto é, de visual mais agradável,
embora no seu interior esconda o amargo, o gosto repugnante de “remédio”, de substância
química repelida pela “gustação” do brasileiro, no caso.
No editorial de 15-11-1868, há, novamente, o emprego de metáfora
relacionada à saúde doença, em que alguém toca a “ferida” da sociedade.
A imprensa imperial agita-se convulsa contra nós: nada mais natural. Não se toca debalde nas mataduras supurantes, d’ahi esses
estremecimentos de colera! Uma metáfora que pode ser considerada do tipo “metáforas de percurso” aparece
no editorial de 15-11-1868, que vai mostrar a relação de prisão, cativeiro, em que deveria
ficar o jornal O Jequitinhonha, não podendo fazer circular, dar livre trânsito a suas idéias
sobre o governo imperial, alvo constante de suas críticas.
Venha pois a rolha se não pode sem ella viver o sistema monarchino -
constitucional - representativo e hereditário. O percurso livre das notícias deverá ser interceptado pela “rolha”, que na
linguagem denotativa, ‘grau zero’, tem a função de tampar, fechar, para que o líquido fique
preso, não se escoe, não se evapore, espalhando-se no ambiente.
É sem dúvida uma figura forte, de fácil compreensão, com poder de empatia entre
locutor-interlocutor, por representar um ato de violência contra a liberdade de expressão de
um periódico.
Neusa de Araújo Fernandes
133
Joaquim Felício constrói também uma metáfora de percurso, relacionada a
cativeiro, á falta de liberdade de ação, no editorial de 06-05-1869:
Amordação a liberdade, algemão os pulsos do cidadão, armão a
dictadura, demittem o funccionario publico, corrompem os magistrados, recrutão os fazem umacamara de escravos...
“Amordação”, “algemão”, “escravos” remetem a um atentado à liberdade do
cidadão, retratando a situação brasileira como em condições sub-humanas, portanto, com
necessidade de uma mudança.
Metáforas pertencentes ao grupo das chamadas “metáforas naturais, relacionadas
a fenômeno da natureza, também, encontram exemplos nos editoriais de O Jequitinhonha,
sendo expressivas as do Editorial de 27-12-1868:
Assim pensarão na França Luiz XVI, Carlos X, Luiz Felippe, assim
pensou Isabel II da Hespanha e seus thronos forão pulverisados pelo sopro popular.
Vê-se o “vento” soprando e tornando “poeira”, “pó”; os governos monárquicos
“que quizerão obstinados antepor sua vontade e caprichos à razão de todo o mundo”. O
povo é o agente da natureza a desencadear o fenômeno destruidor.
Essa metáfora insinua o fim que deve ter o governo de D. Pedro II, também
absolutista, como os governos dos monarcas citados, vindo dessa forma corroborar a tese
do editorialista da necessidade de uma mudança, acabando com a “monarquia” no Brasil,
fazendo-a “ir aos ares”.
5.3.3.1.2. Os metalogismos: a ironia
Neusa de Araújo Fernandes
134
Metalogismos são figuras de pensamento que modificam o valor lógico da frase,
sem alterar a sua forma lingüística.
Entre as várias categorias de metalogismos (litotes, reticências, hipérbole,
pleonasmo, antítese, eufemismo, alegoria, parábola, fábula, ironia, paradoxo, antífrase e
outras) na análise dos editoriais ocupa lugar de destaque a ironia de que foram
selecionados alguns exemplos para comentário. A ironia está difusa em todos os editoriais,
constituindo-se em poderosa arma verbal que Joaquim Felício impunha, com vigor, contra
o seu alvo: D. Pedro II e todo o seu governo.
Maingueneau (1989: 98-100), nos estudos de Análise do Discurso, explica a
ironia como uma heterogeneidade ‘mostrada’ no discurso, uma voz diferente da voz do
locutor, a de um enunciador expressa seu ponto de vista insustentável, e a ironia subverte a
fronteira entre o que é assumido e o que não é pelo locutor, opondo-se ao discurso indireto
livre. Assim, o locutor coloca em cena um enunciador, que adota uma posição absurda e
cuja alocução não pode assumir e esse distanciamento pode ser marcado por diferentes
índices: lingüísticos, gestuais, situacionais. Na impossibilidade de se recorrer à entonação,
à mímica, recorre-se ao contexto para nele recuperar-se a contradição existente.
Sob a perspectiva argumentativa, Reboul (2000: 132) fala sobre a ironia:
Na Ironia, zomba-se dizendo o contrário do que se quer dizer. Sua
matéria é a antífrase, seu objetivo o sarcasmo (...). Por certo há sempre uma dose de alegria sádica na ironia, o ‘prazer maligno de ver a bola murchar, de ver o esfrangalhamento das pretensões de poder, saber e
Neusa de Araújo Fernandes
135
virtude exatamente porque quem faz a ironia parece levá-las a sério. Figura do patos e do etos – põe do seu lado quem ri – a ironia também é figura do logos, por ressaltar um argumento de incompatibilidade pelo ridículo.
Joaquim Felício, nos editoriais, valeu-se intensamente da ironia como recurso
retórico, buscando mostrar ao seu leitor o absurdo, o ridículo das situações político-
administrativas criadas pelo governo do Imperador D. Pedro II, no Brasil, Constitui
significativo exemplo o editorial de 04-10-1868, em que o autor ironiza D. Pedro II pela
‘indicação’ do Sr. de Itaborahy para ministro das Finanças, pela viagem do Ministro á
Europa, seu encontro com o Imperador, sua incompetência não trazendo um projeto de
trabalho e, acima de tudo, a medida adotada como forma de “salvar” as finanças
brasileiras: emissão de mais papel moeda, mais dinheiro.
São estratégias na construção da ironia neste editorial:
1) a recategorização lexical das anáforas referentes ao Ministro, construindo uma
cadeia anafórica com as expressões: o Sr. de Itaborahy, Ministro das Finanças, o ministro
‘indicado’, o novo Pill, o ministro futuro, o ‘grande’ ministro, o ministro programma, o
Messias da Fazenda e, finalmente, o Ministro, na saudação final: Hosanna ao Ministro! A
figura do ministro, a partir de sua origem como cidadão comum – Sr. de Itaborahy – vai
tomando proporções de grandeza até ser considerado verdadeiro deus, merecedor do
cumprimento: Hosanna.
2) As aspas, colocadas em indicado, sangria, bill, peste, grande (ministro, roubo,
moedeiro falso, notabilidade, são recursos para mostrar o sentido especial de cada palavra,
denunciando as intenções irônicas do locutor no seu uso.
Neusa de Araújo Fernandes
136
3) Alusões a personalidades históricas, mitológicas têm a função argumentativa de
provar anacronismo das medidas administrativas na área econômica adotadas pelo Império.
4) Comparações, sendo o ministro comparado ao Messias, o salvador. As cenas
do encontro entre D. Pedro II (César) e o Ministro são comparadas a da entrega das Tábuas
da Lei a Moisés por Deus, às solenidades de aparição pública dos Imperadores romanos,
marcadas pela pompa, pelo ritual rigoroso.
5) As metáforas de “restauração” de um Brasil doente, centralizadas na ‘sangria’,
como última forma de salvar sua vida financeira.
6) As saudações finais são, essencialmente, irônicas, quando se presta
homenagem àqueles que são criticados por terem errado. O quadro da ironia é construído
em todo o editorial e o que se diz não é, propriamente, o que o locutor pode assumir,
havendo o ‘enunciador’, outra voz, a dizer o que está enunciado, A ironia ressalta o
argumento da incompatibilidade pelo ridículo.
Conforme Maingueneau (1989: 99) “é conveniente jamais perder de vista que a
ironia é um gesto dirigido a um destinatário, não uma atividade lúdica, desinteressada”.
Assim, pode-se afirmar que Joaquim Felício teve intenção clara de ridicularizar,
denegrir a imagem de D. Pedro II e a dos seus auxiliares no governo monárquico, usando
ironias.
No editorial de 07-03-1869, Joaquim Felício critica os “aduladores” de D. Pedro,
os seus seguidores, com um discurso extremamente irônico. Dele, apenas, serão destacados
três trechos bastante significativos. O primeiro mostra o D. Pedro II em luta com os países
vizinhos do Brasil, no caso o Uruguai.
Neusa de Araújo Fernandes
137
Também um dia Cesar sonhou com a glória militar para coroar a sua obra. Soldado bisonho enfiou as botas napoleônicas, pigmeu sopesou a espada de Carlos Magno e cercado de Roldões caricatos revistio-se do titulo de D. Pedro o Uruguayano, como um dos seus avós fôra Affonso o Africano.
O quadro comparativo construído tem a função argumentativa de mostrar ao leitor
o ridículo de D. Pedro II como guerreiro.
A contraposição soldado bisonho X botas napoleônicas, pigmeu X espada de
Carlos Magno; Roldões Caricatos X Roldão, D. Pedro Uruguayano X Affonso o Africano
mostra a pequenez do guerreiro brasileiro diante da magnitude dos conquistadores da
História da Europa.
O segundo fragmento do mesmo editorial, que se distingue pelo tom irônico que o
autor lhe imprime, descreve as atitudes dos aduladores de D. Pedro diante de seus dons
poéticos e de sua ampla sabedoria.
Em vão os sabios e artistas officiaes dedicão suas obras em prefacios pomposos ‘ao muito alto e poderoso’ príncipe protector das artes e das siencias. Em vão o instituto extasia-se lendo a quadrinha imperial ao ‘fiel povo Ituano’ e a compara com o mimoso canto derradeiro de Marco Aurelio ou com as strophes de Augusto.
Em vão o declarão mathematico, jurisconsulto, medico, theologo,
astronomo, chimico, physico, estadista, botanico, poeta, cirurgião, economista, litterato, critico, archeologo, alchimista, astrologo, pedagogo, versado nas letras ‘de omni re scibili et quibus dam aliis’.
A universalidade de conhecimento atribuída a D. Pedro, a enumeração de títulos
tão diversos e conflitantes para uma mesma pessoa humana confirma a incompatibilidade
existente entre o que se diz e a verdade, caracterizando assim uma situação ridícula,
expressa pela figura da ironia.
A comparação feita entre D. Pedro e Marco Aurelio e Augusto é também uma
forma de ironia. A poesia atinge o seu apogeu em Roma sob a proteção de Augusto (29 a.
Neusa de Araújo Fernandes
138
C – 14 d. C ) e seu amigo Mecenas e Marco Aurélio, também Imperador Romano (161-
180) é filosofo pertencente à escola dos estóicos.
O último fragmento ironiza os aduladores de D. Pedro II a quem o editorialista
atribui uma falta de reconhecimento das extraordinárias condições da sociedade brasileira,
governada pelo “gênio” D. Pedro II.
... ‘Ora, sendo assim, que nos importa a liberdade... volvemos a idade de ouro... governando Saturno’ exclamão em coro os aduladores, as ingratas andorinhas de Tobias.
Diante da visão do governo imperial, descrita por Joaquim Felício, a voz dos
aduladores constitui um contraste construído para mostrar a “cegueira” dos heliosistas, os
cortesãos, que comparam o governo de D. Pedro ao governo de Saturno, na idade do ouro,
uma alusão ao deus Saturno pai de Júpiter (Zeus). Dizem que o seu reino constitui a idade
de ouro, da inocência e da pureza. Saturno foi destronado por Júpiter, seu filho, que dividiu
os domínios paternos com seus irmãos Netuno e Plutão.
A designação dos aduladores com o aposto, “as ingratas andorinhas de Tobias” é
uma alusão ao Antigo Testamento, em que Tobias é representado como protetor das
andorinhas a quem alimenta diariamente. No entanto, uma das andorinhas lançou suas
fezes nos olhos de Tobias que ficou cego. Conta a história que mais tarde Tobias foi
curado por Deus.
Vê-se nessa referência uma ironia, uma crítica aos aduladores e sua relação com
D. Pedro II. Deixa Joaquim Felício a dúvida: são amigos os aduladores ou ingratos que
“atiram fezes” para cegar o Imperador? Mostra, dessa forma, o ridículo da situação.
Em síntese, pode-se afirmar que Joaquim Felício na construção de seu discurso
argumentativo tirou proveito do uso de várias figuras de retórica, destacando,
Neusa de Araújo Fernandes
139
principalmente a antomásia pelo seu efeito de evocação da figura do ditador, do tirano que
ele via em César, a metáfora, como forma de reforçar suas idéias, pelas imagens
conhecidas pelos interlocutores que tornaram essas idéias mais claras, dando-lhe
concretude e a ironia, que perpassa por todo o discurso dos editoriais, para pintar o
inusitado, o absurdo da situação político-administrativa do Brasil, em que D. Pedro II é
responsabilizado por tudo.
Neusa de Araújo Fernandes
140
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta deste trabalho foi realizar uma análise do discurso argumentativo de
seis editoriais do jornal O Jequitinhonha, para comprovar a afirmação inicial: praticava-
se, em Diamantina, no Século XIX uma norma lingüística com significativas marcas de
erudição e, diante disso, explicitar os mecanismos lingüísticos utilizados na semantização
dos editoriais e na construção de seus argumentos.
Pela análise do corpus escolhido, constatou-se, de imediato, que Joaquim Felício
dos Santos – o editorialista – movido pelo seu ideal político de militante do Partido
Liberal, criou o jornal O Jequtinhonha para defesa da democracia, da liberdade e, para
isso, fez de seus editoriais uma arma de combate a tudo que ele reputava como empecilho à
concretização dos princípios que defendia.
Por isso, os editoriais tiveram um alvo bem definido: o governo monárquico
brasileiro e, como seu representante legal, O Imperador D. Pedro II foi fortemente atacado
como o protótipo do monarca absolutista, tirânico, indiferente aos clamores do povo e, por
essa razão, foi cognominado de César, numa referência ao ditador romano, Júlio César, o
que é reiterado ao longo de todo o discurso.
Assim, com o objetivo bem definido de mostrar aos brasileiros – seus
interlocutores – as inconveniências do governo imperial para o progresso do Brasil e para o
exercício da liberdade de seu povo, Joaquim Felício construiu o seu discurso
argumentativo em defesa da extinção da monarquia e implantação do regime republicano
de governo, buscando a adesão de seus leitores a suas idéias, à tese que defendeu
vigorosamente.
Neusa de Araújo Fernandes
141
Na construção desse discurso, o editorialista usou recursos retóricos
diversificados, mostrando certa familiaridade com a Arte Grega, fazendo sobressaírem os
argumentos por exemplificação, quando realidades da política administrativa européia
fundamentaram a acusação às instituições políticas brasileiras, especialmente, o Império, o
Parlamento e o Ministério. Para isso, referências, alusões, comparações, citações
marcaram o uso freqüente e preferencial do mecanismo da intertextualidade, como recurso
de semantização dos editoriais em função da sua argumentatividade.
Mostrou-se, então, que Joaquim Felício, no uso da intertextualidade, valeu-se,
predominantemente, de intertextos da História da Roma clássica, o que teve a função de
provar o anacronismo das idéias e das práticas governamentais do Imperador D. Pedro II.
Para isso, o editorialista provou a semelhança existente entre o governo de D. Pedro II e o
de César, ambos seguindo os mesmos paradigmas político-administrativos, que não se
coadunavam com a crescente modernidade do Século XIX.
Ficou visto, também, que para reforçar a tese da extinção da monarquia brasileira,
Joaquim Felício fez alusões a vários Imperadores e ditadores da História da França,
Espanha e Inglaterra que, por motivo da vitória dos ideais democráticos sobre o
Imperialismo, perderam os seus tronos.
Outro mecanismo de argumentação evidenciado no discurso de Joaquim Felício,
foi o argumento de autoridade pelo uso da citação de discursos de sábios, filósofos,
políticos que foram defensores do povo, da liberdade e, frontalmente contra o
imperialismo. As citações conferiram mais credibilidade ao discurso dos editoriais, porque
são vozes de pessoas de reconhecido valor, de comprovada competência no assunto.
Foi também marcante na argumentação de Joaquim Felício a alusão a figuras
mitológicas: deuses, ninfas e heróis, também com o objetivo de reforçar o argumento de
Neusa de Araújo Fernandes
142
que as instituições governamentais do Brasil ainda usavam métodos arcaicos,
desconsiderando a realidade, os métodos modernos, científicos, para irem em busca de
soluções milagreiras e esotéricas.
Joaquim Felício marcou, a todo momento, o seu discurso argumentativo com o
uso da figura retórica, a ironia, como arma fina e pontiaguda, para ferir D. Pedro e seus
seguidores, deles zombando, visando a tornar claro aos leitores o ridículo dos papéis que as
autoridades governamentais brasileiras representavam no moderno e progressista Século
XIX, como actantes de peça já obsoleta: a monarquia..
Notou-se que no jogo de imagens, realizado para o estabelecimento de um acordo
prévio com o auditório – seus interlocutores – Joaquim Felício trabalhou com a presunção
de um leitor culto, competente, com amplo conhecimento enciclopédico, por isso a
presença da erudição na construção do seu discurso, o que era esperado da imprensa
daquela época. Os editoriais, ao lado de sua função informativa e persuasiva, tinham uma
função estética, como peças literárias que deviam deleitar os leitores.
Assim, a erudição desempenhou papel decisivo no processo de interação entre
sujeitos que compartilhavam o mesmo padrão lingüístico, que era o culto, o erudito.
Buscou-se, ainda, explicação para a prática de uma norma culta erudita nos
editoriais, além de sua condição básica para realização da interlocução entre elites
intelectuais da época, resultante de, alguns fatores importantes: 1º- a formação intelectual
do editorialista, advogado formado na famosa Escola de Estudos Jurídicos de São Paulo,
com experiências literárias desde estudante; 2º- a sua militância profissional e política em
Diamantina, cidade que, embora situada no interior da Província de Minas Gerais, viveu de
acordo com os modelos da sociedade européia, como herança dos tempos em que a Coroa
Portuguesa, na sua cobiça pela posse exclusiva dos diamantes produzidos no Distrito
Neusa de Araújo Fernandes
143
Diamantino, possibilitou ao Arraial do Tijuco uma vida de opulência e cultura à
semelhança das metrópoles do Velho Mundo e colocou-se em oposição aos ideais de
liberdade desse povo e a favor de interesses próprios, ignorando as necessidades básicas do
cidadão, como foi freqüentemente denunciado por Joaquim Felício; 3º- a preocupação dos
diamantinenses com a formação intelectual dos jovens, na Diamantina daquela época,
empenhados em colocá-los em permanente contato com a cultura dos grandes centros,
encaminhando-os a Cursos fora da Província e, até mesmo, fora do país; 4º- em
decorrência disso, a criação, já no Século XIX, de educandários como o Ateneu São
Vicente de Paulo, o Seminário Diocesano e o Colégio Nossa Senhora pelo bispo D. João
Antônio dos Santos, de quem Joaquim Felício dos Santos, o editorialista, era irmão; 5º-
presença de educadores europeus, vindos diretamente da França, para dirigir o Seminário e
o Colégio e formar a juventude.
Concluída a síntese das atividades realizadas neste trabalho, estas considerações
finais tomam, também, um caráter de nova proposta de estudo. Ao se concluir uma
pesquisa, há sempre a preocupação, acredita-se (até certo ponto lícita e sadia), de se
questionar a sua praticidade, por exemplo, a sua aplicabilidade na instituição em que ela
nasceu, na comunidade universitária em que buscou sua motivação e possibilidade de se
tornar realidade. É nessa perspectiva que se propõe considerar este trabalho, embora
simples, despretensioso, como parte de novas pesquisas sobre a prática da Língua
Portuguesa em Diamantina, buscando-se reconhecer a realidade de seu ensino nas
instituições escolares, a variação de normas praticadas, o que poderá embasar um projeto
de trabalho que busque resgatar a posição de Diamantina como referência cultural, que foi,
principalmente, pela reconhecida eficiência de seus educandários e pelo gosto de seus
estudantes pelo estudo da língua, pela prática da Literatura.
Neusa de Araújo Fernandes
144
Quanto à voz política do editorialista – Joquim Felício – que se escutou além dos
muros de pedra da vetusta e histórica cidade, que seja objeto de estudos e reflexões de
estudantes, de profissionais do Direito, para conhecimento da cultura jurídica, jornalística,
literária e política dessa personalidade, cuja vontade política lhe deu razões e coragem para
o enfrentamento a instituições poderosas em defesa de seus ideais, de seus princípios e das
aspirações da terra a que soube amar e servir como um verdadeiro filho.
Enfim, que os futuros estudos feitos pelos jovens diamantinenses ressuscitem a
obra de Joaquim Felício dos Santos, de cuja urna mortuária, este trabalho, apenas,
levantou a ponta do véu.
Neusa de Araújo Fernandes
145
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