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 1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE CURSO DE PSICOLOGIA INTERPRETAÇÃO SIMBÓLICA DO TRATADO ALQUÍMICO ‘SPLENDOR SOLIS’:  A relevância da Prima Materia no processo de individuaç ão MAYRA PORTELA MENDES SÃO PAULO 2014

Interpretação simbólica do Tratado alquímico Splendor Solis

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- psicologia analítica- processo de individuação- alquimia- hermetismo- espiritualidade

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    FACULDADE DE CINCIAS HUMANAS E DA SADE CURSO DE PSICOLOGIA

    INTERPRETAO SIMBLICA DO TRATADO

    ALQUMICO SPLENDOR SOLIS:

    A relevncia da Prima Materia no processo de individuao

    MAYRA PORTELA MENDES

    SO PAULO

    2014

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    FACULDADE DE CINCIAS HUMANAS E DA SADE CURSO DE PSICOLOGIA

    INTERPRETAO SIMBLICA DO TRATADO

    ALQUMICO SPLENDOR SOLIS:

    A relevncia da Prima Materia no processo de individuao

    Trabalho de concluso de curso como

    exigncia parcial para graduao no

    curso de Psicologia, sob orientao do

    Prof. Dr. Noely Moraes

    MAYRA PORTELA MENDES

    SO PAULO

    2014

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    Individual caminho de todas as almas

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    Agradecimentos

    Gratido a todos que acreditam nos meus sonhos!

    Agradeo a todas as foras csmicas, a todas as energias que auxiliaram meu

    caminhar, a cada sincronicidade, que tornou possvel cada insight, cada desejo de

    conhecer, revelao, e apaixonamento por esse saber.

    Agradeo a oportunidade de estudar e aprofundar-me cada vez mais nos mistrios

    da alma, no resgate das artes ocultas, nas tradies e sabedorias milenares. Pois, esse

    conhecimento tem se mostrado nutriente essencial, e linguagem ideal, para o entendimento

    de mim mesma, do mundo e dos outros.

    Aos meus pais, pela amizade, segurana e pacincia, por sempre acreditarem e

    incentivarem meus dons e talentos, aprendendo a cada dia a sonhar comigo meus sonhos.

    A toda minha famlia em especial as minhas falecidas avs...

    A toda minha famlia espiritual, Tradio da Cidade Sagrada, formada por irmos e

    amigos, presentes preciosos em minha vida. Por serem a concretizao desse sonhar, e o

    eterno lar aberto a me receber. A todos os meus amigos! Em especial a Elaine, Alexandre,

    Theozinho e Cssio por nossa profunda conexo no importando as circunstncias!

    As colegas da Psicologia que tornam meu dia a dia mais leve e feliz!

    A Cirandda da Lua, e a Soraya, por ter me reconhecido, por valorizar o meu trabalho,

    entendendo e respeitando quem eu sou, por ser essa terra frtil, recebendo gentil minhas

    sementes de ideias. Ao Cl das Yiayis, por tudo que aprendo com cada uma em palavras,

    gestos e silncios.

    Gostaria de agradecer tambm a prof. Sylvia Baptista, que tanto me ensinou sobre

    Psicologia Analtica, me auxiliando pacientemente na produo desse trabalho, e a prof.

    Noely Moraes, que tive a sorte de receber como orientadora, me organizando, estruturando,

    e incentivando minha busca pelo saber.

    A esta oportunidade...

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    Resumo

    PORTELA MENDES, Mayra. Interpretao simblica do tratado alqumico

    Splendor Solis: A relevncia da Prima Materia no processo de individuao. 2014. 80.

    Monografia (Graduao em Psicologia) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So

    Paulo, 2014.

    Atravs desse trabalho buscamos elucidar a importncia do estudo da Alquimia para

    a Psicologia analtica, tendo como objetivo entender qual a relevncia da prima materia na

    opus alqumica.

    O tratado Splendor Solis,1582 pareceu ideal para ilustrar o objetivo de nosso

    trabalho. Esse tratado possui vinte duas imagens, divididas em quatro partes, e sua

    simbologia descreve de forma velada o processo de obteno da pedra filosofal.

    Jung (2011b) revela que o estudo da opus alqumica a melhor maneira de

    exemplificar de forma generalizada o processo de individuao, pois todo o rico simbolismo

    alqumico nasceu das projees dos alquimistas de contedos internos em seus

    experimentos. Ao transformar aquela matria prima dentro do vaso alqumico, materializa-se

    de forma correlata a vivencia psquica.

    Assim como sua prima matria, a meta da opus alqumica era representada de

    diversas formas. A pedra filosofal apenas um dos nomes do fim do trabalho, e apesar

    dessa enorme variedade de smbolos, possvel perceber que estes so correlatos, ou seja,

    sempre smbolos do Si mesmo, e o mesmo ocorre com a prima matria. Seus nomes,

    porm, apesar de correlatos ao Si mesmo, o revelam em estado de desorganizao, onde

    seus elementos essenciais ainda esto em inimizade.

    Analisamos nesse trabalho apenas a primeira parte desse tratado, intitulada Material

    primal do trabalho, buscando revelar possveis significados psquicos correlatos a essas

    imagens.

    No desenvolvimento deste, mostrou-se intrnseca a relao entre o material primal do

    trabalho e o fim do trabalho, pois o Si mesmo em estado catico necessita de uma serie de

    transformaes para que possa realizar-se de forma mais integrada.

    Dessa forma a opus alqumica descreve um processo de lapidao da

    personalidade, que tambm um processo de retorno consciente ao inconsciente primevo,

    onde o objetivo da jornada sempre esteve conosco, pois a pedra filosofal dorme tranquila

    nos braos da prima materia.

    -Palavras chave: Alquimia, Individuao, Prima materia, opus alqumica

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    Sumrio

    1.Introduo .............................................................................................................. 7

    2. Objetivo ............................................................................................................... 12

    3. Mtodo ................................................................................................................ 13

    4. Conceitos gerais em Alquimia........................................................................... 15

    4.1 Macrocosmo e microcosmo, cu e terra, psique e matria ............................ 15

    4.2 A opus Magnum (Grande Obra) e o Processo de Individuao ..................... 20

    4.3 As cores e operaes do processo alqumico ................................................ 24

    4.4 Caminhos de regenerao da alma ............................................................... 28

    4.5 Sobre o tratado alqumico Splendor Solis ...................................................... 31

    5. Interpretao simblica das pranchas do tratado alqumico Splendor Solis 34

    5.1 O MATERIAL PRIMAL DO TRABALHO ........................................................ 34

    5.2 PRANCHA I - Arma rtis ............................................................................... 46

    5.2.1 Prima matria enquanto Defesas psquicas: ........................................... 51

    5.3 PRANCHA II O Ovo .................................................................................... 57

    5.3.1 Prima matria enquanto o Alquimista como heri sua jornada .............. 59

    5.3.2 Prima matria enquanto o Ovo, o Vaso Alqumico ................................ 61

    5.4 PRANCHA III O Cavaleiro da dupla fonte ................................................... 75

    5.4.1 Prima matria enquanto o Cavaleiro da dupla fonte: Senhor das sete

    estrelas, quatro cores e duas guas ........................................................................... 77

    5.4.2 Prima matria enquanto Fonte Mercurial, Fons Merculeares................. 81

    5.4.3 Prima matria enquanto Urina da Criana, Urina puerorum................... 84

    5.5 PRANCHA IV A Rainha Branca e o Rei Vermelho ................................... 88

    5.5.1 Prima matria enquanto arqutipo anima-animus "coniunctio solis et

    lunae" (conjuno do sol e da lua). .......................................................................... 90

    5.5.2 Prima matria enquanto relao Ego - Si mesmo. .................................. 95

    5.6 Material primal do trabalho X Fim do trabalho ............................................... 96

    6. Concluso ......................................................................................................... 108

    7. Bibliografia ....................................................................................................... 110

  • 7

    1. Introduo

    A ideia de fazer um trabalho sobre Alquimia surgiu de uma grande identificao com

    esse tema e com outros temas relacionados, como o hermetismo, gnosticismo, cincias

    ocultas, mitologia, smbolos e rituais religiosos. A questo da evoluo espiritual sempre se

    mostrou central em minha vida e, desta forma, presente em meu campo de interesse e

    estudo contnuo.

    Vi na Alquimia uma possibilidade de estudar de forma organizada e aprofundada

    todos esses temas. A Psicologia Analtica, atravs da interpretao simblica e do conceito

    de individuao, tambm se mostrou ideal para tratar desse tema.

    Ao longo da pesquisa de referencial bibliogrfico pude perceber que minha

    verdadeira vontade me levava a querer tratar da evoluo espiritual em relao ao processo

    de individuao.

    Por conta da minha intensa atrao pelo simbolismo alqumico, resolvi procurar

    tratados, j sabendo que esses em geral contemplam essa busca por evoluo espiritual

    atravs da imagem da Pedra Filosofal.

    O tratado alqumico que escolhi chamado Splendor Solis. Sua escolha foi

    bastante intuitiva, pois diversas imagens do tratado j haviam aparecido em meus sonhos

    anteriormente e, desde que dei maior ateno s suas pranchas, essas passaram a fazer

    parte de meus pensamentos constantemente, como se quisessem revelar-se a mim, como

    se os smbolos vivos de suas pranchas fizessem de minha vida o palco de sua atuao.

    Segundo Henderson e Sherwood (2003) so 22 imagens alegricas datadas de

    1.582, nas quais Trismosin relata suas viagens em busca da Pedra Filosofal. Esse processo

    tambm foi chamado de "O rei vermelho". Interessante observar que essas 22 imagens

    parecem ter um significado mstico bastante relacionado ao Tarot e aos Caminhos da rvore

    da Vida, outros temas importantes de estudo do prprio Salomon Trismosin.

    Acredito que buscar suas relaes com esses outros smbolos poder ser bastante

    til para elucidao do processo alqumico.

    Penso que esse talvez seja o verdadeiro charme da Alquimia: como se ela falasse

    diretamente com a alma por ser puramente simblica; como se estivesse viva.

    Sobre o incio do estudo da Alquimia em relao Psicologia Analtica os mesmos

    (2003), p.1 relatam o seguinte:

    Historicamente, a ligao entre a Psicologia Analtica e a Alquimia

    comeou em 1928, quando Richard Wilhelm enviou a C. G. Jung

    sua traduo do texto taosta chins, O Segredo da Flor de Ouro.

  • 8

    Jung relatou como suas investigaes sobre a natureza do

    inconsciente ao longo dos 15 anos anteriores o confrontaram

    com a extensa fenomenologia a qual as categorias e mtodos

    at agora conhecidos no podem mais ser aplicados. Em sua

    pesquisa por algum material comparativo com os quais ele

    poderia testar a abrangncia de seus achados, havia estudado

    textos gnsticos. No entanto, ele estava frustrado pela falta de

    fontes adequadas e informaes histricas. Por outro lado, o

    Segredo da Flor de Ouro continha simbolismo alqumico, e como

    Jung escreveu isso me colocou no caminho certo. (Livre

    traduo da autora)

    interessante comentar que alm dos estudos iniciados com O Segredo da flor de

    ouro Jung aprofunda suas pesquisas sobre a Alquimia na Psicologia e publica, em 1943,

    Psicologia e Alquimia, onde relata sonhos de um cientista natural (Wolfgang Pauli) que

    continham uma enorme quantidade de smbolos alqumicos. Percebeu como a Alquimia

    interessante simbolicamente ao homem moderno e como ela poderia abrir nossa

    compreenso sobre o psiquismo e retratar de maneira fiel processos psquicos, a partir de

    analogias e amplificaes.

    Ele mesmo, ao voltar-se Alquimia, notou grande ligao entre esta e a temtica dos

    sonhos de seus pacientes, e esse pensamento levou von Franz em seu livro Alquimia-

    Introduo ao simbolismo e psicologia ao questionamento:

    Por que o simbolismo alqumico estaria mais prximo do produto

    inconsciente de muitos modernos do que qualquer outro material?

    Por que no bastaria estudar mitologia comparada, os contos de

    fada e a histria das religies? Por que h de ser particularmente

    a alquimia? (1996 p.4)

    Nas mitologias comparadas, assim como na histria das religies, perceberemos que

    apesar desses smbolos terem tido sua origem no inconsciente, eles passam por constante

    elaborao atravs da tradio que, a partir de seus dogmas e cultura, os molda e direciona.

    Assim a tradio fornece ideias conscientes, uma direo consciente num caminho

    inconsciente de onde todas as imagens poderiam erguer-se. Ela escolhe atravs da

    conscincia algumas imagens para fixar-se. Essas, em geral correspondem a interesses

    culturais e histricos.

  • 9

    A arte alqumica enquanto prtica era, por um lado, composta de diversas

    experimentaes acerca dos processos de transmutao da matria e, por outro, filosfica e

    espiritual pois, atravs de uma postura ritualstica e do estudo simblico, eles buscavam a

    evoluo espiritual, repetindo em laboratrios a Obra de Deus.

    ...a qumica nasceu da alquimia; para ser mais exato, nasceu da

    decomposio da ideologia alqumica. Mas no panorama visual

    de uma histria do esprito, o processo se apresenta de distinto

    modo: a alquimia se erigia em cincia sagrada, enquanto que a

    qumica se constituiu depois de ter despojado s substncias de

    seu carter sacro. Existe, portanto, uma necessria soluo de

    continuidade entre o plano do sagrado e o da experincia

    profana. (Eliade, 1983, p.5)

    A Alquimia ao trabalhar em lapidar a matria lapida tambm o esprito. Dessa forma

    ela une de forma simblica o sagrado e o profano, transformando a partir do real o psquico,

    e a partir do psquico o real, atravs projeo que faz com que o alquimista derrame sua

    alma sobre o material a ser trabalhado.

    Na Alquimia a imaginao inconsciente ao deparar-se com materiais a princpio

    desconhecidos projeta imagens arquetpicas livremente. Dessa forma, a influncia da cultura

    no determinante na constituio dos smbolos alqumicos.

    A prpria tradio alqumica nasce de um processo diferenciado pela natureza de

    cada um de seus adeptos. Existe um caminho arquetpico de desenvolvimento espiritual,

    mas de que forma o seguiremos, ou qual a meta que nos mantm nesse caminho, algo

    absolutamente individual, e deve ser para se manter verdadeiro. Cada opus nica,

    particular, e dessa forma funciona analogamente ao processo de individuao descrito por

    Jung.

    Este considerou que justamente pelo processo de livre projeo, trazendo

    conscincia contedos coletivos primordiais sem a censura ou direcionamento da cultura ou

    tradio. Os materiais psquicos resultantes do processo alqumico possuem a mesma

    natureza que os sonhos e a imaginao ativa, diferenciando-se da mitologia comparada,

    histria das religies e contos de fadas.

    As relaes do mundo da intuio alqumica e dessas duas

    formas do processo de interpenetrao inconsciente-consciente

    so to prximas a ponto de ser justo supor-se que no

    procedimento alqumico se trata de processos semelhantes ou

  • 10

    iguais aos da imaginao ativa e dos sonhos, e enfim ao

    processo de individuao. (Jung, 2011b, p.354, PP.448)

    Os alquimistas, por mais que possussem suas metas, tinham como principal foco

    seu processo: estudar esses fenmenos desconhecidos da matria atravs de observaes

    e interpretaes, mas sem planos especficos ou norteadores. Isso fez da arte alqumica

    uma projeo inconsciente e bastante espontnea, como a prpria imaginao ativa.

    A tcnica da imaginao ativa foi formulada por Jung no mesmo perodo em que este

    se dedicava ao estudo da Alquimia. Consistia em deixar-se tomar, como numa espcie de

    sonho acordado, por imagens vindas do inconsciente, e atravs de recursos egicos,

    colocar-se em relao com este contedo. Ao trabalhar com a imaginao ativa, ele pde

    perceber a natureza comum de suas imagens quando comparadas Alquimia, e assim

    observou como a linguagem alqumica nos fala de camadas profundas do inconsciente

    coletivo, amplamente vinculadas s suas formas arquetpicas.

    A imaginao ativa tambm foi considerada pelo prprio Jung como uma psicose

    artificial. O material psquico, presente nas alucinaes de psicticos, tambm de

    natureza inconsciente e espontnea - analogamente Alquimia. Esta foi utilizada por Jung

    como linguagem e conhecimento capazes de compreender e organizar esses materiais

    psquicos.

    o mistrio que estavam tentando descobrir, o mistrio da

    estrutura do universo, estava neles mesmos, em seus prprios

    corpos, e naquela parte de sua personalidade que chamamos de

    o inconsciente, mas que eles diriam ser a vida de sua prpria

    existncia material. (von Franz, 1992, p.16).

    Existem diversas alegorias presentes nos processos alqumicos. Fundamentam-se

    no fato de que todos os smbolos empregados representam, alm de uma transmutao

    qumica, tambm seu efeito psquico correlato. Esse desenvolvimento psquico atravs de

    smbolos era propiciado pela facilidade de projees de material inconsciente em relao s

    substncias qumicas utilizadas na opus. Elas deveriam ser transmutadas at chegar a sua

    maior integridade. Essas etapas so anlogas ao processo de formao da personalidade e,

    consequentemente, ao de individuao.

    A Alquimia o resultado das projees dos alquimistas sobre uma matria at ento

    desconhecida, que atravs de diversos processos tornaria-se um material puro, preciso e

    ntegro.

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    ...as projees alqumicas mostram como meta de redeno para

    nossa vida ativa e cheia de desejos um smbolo do inorgnico- a

    pedra que no vive por si mesma, mas apenas existe ou vem a

    ser, e nela acontece um jogo incalculvel de oposies. (Jung,

    2011c, p.251, PP.286)

    C. G. Jung dedicou muito de seus ltimos anos de vida estudando Alquimia. Ele a

    considera como fundamental a concepo de estrutura de personalidade. Via na Alquimia,

    ao desvendar suas metforas, uma psicologia pr-cientfica.

    Importante ressaltar que o processo alqumico baseia-se na reconciliao, unio e

    criao a partir de substncias opostas ou conflituosas. Um funcionamento simblico

    dialtico onde o real objetivo encontra-se no processo.

    Henderson e Sherwood (2003) esclarecem que o estudo do simbolismo alqumico

    tem muito mais a revelar acerca da estrutura e funes da psique do que objetivamente

    acerca da transmutao dos metais.

    Os processos alqumicos representam assim processos psquicos necessrios

    integrao da personalidade e, logo, sua individuao, seu ouro metafrico.

    Segundo von Franz (1992), a Alquimia teria comeado no sec. I a.c. tendo dois pais,

    a filosofia racional grega e a tecnologia egpcia, e desenvolve-se originando uma tradio

    ocidental e uma oriental.

    No trabalho Undus Mundus de Hoffman (2006), encontra-se a informao de que a

    Alexandria teria sido o bero da Arte alqumica, por ser um centro intelectual e cultural que

    era frequentado por egpcios, gregos e judeus, isto revela-se na mescla de influencias

    histrico espirituais que apresenta-se o universo da Alquimia. (Hoffman, 2006, p.48)

    Alguns elementos so considerados estruturantes s origens da Alquimia,

    (especificamente a Alquimia alexandrina) como os conhecimentos gnsticos, hermticos e a

    cosmologia grega.

  • 12

    2. Objetivo

    O tratado que escolhi para interpretao dos processos alqumicos um tratado

    europeu. O primeiro manuscrito encontrado est em alemo. Nosso foco ser, ento, o

    trabalho com os smbolos da tradio alqumica ocidental.

    Atravs da interpretao simblica das quatro primeiras imagens contidas no tratado

    alqumico Splendor Solis, pretendemos esclarecer os processos psquicos envolvidos na

    opus alqumica, traando uma comparao entre esses e o processo de individuao.

    Observando qual a importncia e representao que os smbolos alqumicos tm para

    psique.

    Os conceitos da Psicologia Analtica sero utilizados a fim de interpretar a opus

    descrita nas pranchas alqumicas. Dessa forma, tentaremos mostrar a intrnseca relao da

    Alquimia com o processo de individuao, e em especifico qual a relevncia da prima

    materia para a opus alqumica.

  • 13

    3. Mtodo

    Neste trabalho pretendemos fazer uma interpretao simblica do Tratado Alqumico

    Splendor Solis, cuja autoria remetida a Salomon Trismosin, adepto e professor de

    Paracelso.

    Como estratgia de interpretao, proponho dividir este tratado em quatro partes: As

    quatro primeiras imagens foram intituladas de "O material primal do trabalho"; em sequncia,

    as prximas sete pranchas foram chamadas "As sete fases do processo em alegoria da

    morte e renascimento - primeira srie". J as sete prximas, "As sete fases do processo em

    alegoria da morte e renascimento -segunda srie". Esta ltima diretamente ligada aos sete

    planetas conhecidos at ento. O ltimo grupo de imagens que, como o primeiro, tambm

    possui quatro pranchas, foi intitulado "O fim do trabalho".

    Este tratado revela a opus magnum, o processo alqumico da busca pela Pedra

    Filosofal entendida na Psicologia Analtica como smbolo do Si mesmo, da totalidade,

    representando o momento de mxima ampliao de conscincia e evoluo espiritual.

    Os processos alqumicos e a busca da realizao de sua meta narram

    simbolicamente uma jornada rumo a Si mesmo, assim como o tar e a rvore da vida.

    Buscamos apresentar como a Alquimia, que contm um rico arcabouo simblico,

    capaz de oferecer grande material de interpretao e compreenso da psique e suas

    produes.

    Nosso objetivo com este estudo ser elucidar o processo da Grande Obra, obteno

    da Pedra filosofal, analisando as imagens do Tratado Splendor Solis. Para tanto focaremos

    na primeira diviso do tratado, intitulada material primal do trabalho, pois esta matria

    guarda o mistrio de todo processo, sendo tambm representante do Si mesmo.

    ANALISAREMOS NESTE TRABALHO APENAS AS QUATRO PRIMEIRAS

    PRANCHAS, DE FORMA SEQUENCIAL, LEVANTANDO OS SIMBOLOS CENTRAIS E

    RELEVANTES PARA O OBJETIVO DESSE TRABALHO: RELACIONAR O PROCESSO

    ALQUIMICO REPRESENTADO POR ESTAS COM O PROCESSO DE INDIVIDUAO

    DESCRITO POR C.G. JUNG.

    AS QUATRO PRIMEIRAS PRANCHAS DESTE TRATADO FAZEM PARTE DE UMA

    SUBDIVISO INTITULADA: MATERIAL PRIMAL DO TRABALHO.

    ESTA NOSSA TEMTICA CENTRAL NESSE TRABALHO: A RELEVANCIA DO

    SIMBOLISMO DA PRIMA MATERIA PARA O PROCESSO DE INDIVIDUAO.

  • 14

    O mtodo de anlise da pranchas a amplificao simblica. Objetivamos, atravs

    dos smbolos centrais de cada prancha, levantar sua temtica relevante buscando, dentro

    dos estudos alqumicos, onde e de que forma esses smbolos aparecem e o que

    representam. importante ressaltar que este trabalho visa a redescoberta dos smbolos

    alqumicos e sua correlao simblica com a Psicologia Analtica. Respeitaremos a diviso

    temtica existente dentro do tratado, utilizando essas sequencias temticas enquanto norte

    para nossa interpretao.

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    4. Conceitos gerais em Alquimia

    4.1 Macrocosmo e microcosmo, cu e terra, psique e matria

    Na verdade, na verdade, sem dvidas ou incertezas: o que est

    em baixo assemelha-se ao que est em cima, e o que est em

    cima ao que est em baixo, para realizar os prodgios do Uno.

    Tbpula Smaragdina, Hermes Trimegisto (ROOB,1997, p.9)

    Hermes Trismegisto, considerado pelos alquimistas como aquele que traz suas leis,

    seus "mandamentos", teria concedido suas verdades, contando a estes os princpios

    fundamentais que regeriam esse universo. Essas leis universais estariam presentes tanto na

    Tbua de Esmeralda quanto no Caibalion. Ambos os textos teriam sido entregues pelo

    prprio deus Hermes em sua face 'Trismegisto', que resultado de seu sincretismo com o

    deus egpcio Tot divindade ligada ao conhecimento e palavra e retratada como mestre

    da escritura e patrono dos magos. Esse sincretismo parece bastante natural incluso as

    semelhanas entre esses deuses, sendo Hermes um deus mensageiro, que rege os

    caminhos. patrono da Alquimia e imagem de excelncia em cultos gnsticos. Hermes

    Trismegisto, que quer dizer "Hermes trs vezes mximo", fundador lendrio do

    Hermetismo e da Alquimia.

    Os ditos "princpios hermticos" fundamentaram todo o trabalho da Alquimia. Dentre

    eles, um dos mais relevantes a Doutrina da Correspondentia (citada no incio deste texto).

    Dizer que o que est em cima igual ao que est em baixo, acreditar numa analogia

    correspondente entre microcosmo e macrocosmo.

    Do mesmo modo, os arqutipos que povoam o inconsciente coletivo so, a priori,

    formas.

    (...) No concernente aos contedos do inconsciente coletivo,

    estamos tratando de tipos arcaicos - ou melhor, primordiais, isto

    , de imagens universais que existiram desde os tempos mais

    remotos (...)(Jung, 2011a p.13,PP.5).

    Toda evoluo humana, criao da cultura, pode ser entendida como uma forma de

    conscientizar e elaborar esses contedos, embora esses nunca sejam totalmente

    conscientes. No podemos apreend-los em si mesmos, apenas em suas manifestaes.

  • 16

    Logo, o que conhecemos sobre os arqutipos so suas representaes arquetpicas, como

    por exemplo, as que se manifestam nos mitos, contos de fadas e na prpria Alquimia.

    Presentes no inconsciente coletivo, os arqutipos so "formas" bsicas; so

    fundamentais e estruturais em todas as culturas e tempos. So correlatos em funcionamento

    ao que os alquimistas chamavam macrocosmo, ou prpria imagem de ideias a priori

    presente no 'eidos' platnico. Essas imagens quando espelhadas, manifestando-se na

    criao humana, constituem o microcosmo.

    Uma imagem bastante utilizada pela Alquimia, a fim de exemplificar a relao

    anloga entre macrocosmo e microcosmo, a imagem da 'totalidade' em relao ao 'eu', do

    universo em relao ao indivduo. Podemos indicar que a relao entre Si mesmo e ego

    possui significado semelhante; o ego microcsmico regido pelas mesmas leis que o Si

    mesmo macrocsmico, faz parte desse e apenas um pequeno fragmento da totalidade.

    Assim na terra, como no cu, frase marcante presente na orao do Pai Nosso, uma

    das mais importantes da tradio crist, pode tambm ser entendida como correlata ao

    princpio alqumico da correspondncia. A vontade de Deus a mesma, ela rege os

    princpios etreos e fsicos pois, no final das contas, esses princpios compem um mesmo

    todo.

    O Princpio de Correspondncia o que mais tarde Jung (2012) chamaria de

    sincronicidade:

    (...) uma coincidncia significativa de dois ou mais

    acontecimentos, em que se trata de algo mais do que uma

    probabilidade de acasos. (Jung, 2012a, p.111, PP.959)

    Tentando explicar essa to intangvel 'causalidade mgica', von Franz (1992),

    considera que a base arcaica de todas as realizaes mgicas da humanidade essa

    capacidade simblica de ser expressa atravs de analogias:

    Por exemplo, na magia africana para atrair a chuva, a maneira

    mais frequente derramar gua de uma cabaa enquanto so

    efetuados certos encantamentos e oraes acompanhados de

    certas danas. Ento, comea a chover. (p. 131)

    Desta forma podemos observar que nossos rituais e mitologias so repeties em

    pequena escala do que ocorre no cosmos e na natureza. Assim tambm se d o

    funcionamento do processo alqumico e da psique.

  • 17

    A Alquimia possui uma linguagem que detm em si esses princpios de maneira

    bastante prtica. Ela um processo que se desenvolve no nvel fsico, psquico e espiritual,

    e isso acontece concomitantemente, tendo um mesmo objetivo.

    O processo alqumico tem como premissa, tambm derivada do Princpio da

    correspondncia, que o fsico e o espiritual juntos, e a partir de sua oposio, compem uma

    unidade plena. Assim tambm se d toda criao simblica de forma dialtica, onde dois

    conflitos (opostos) conseguem se completar gerando um terceiro, atingindo enfim uma

    unidade.

    Este o efeito teraputico da Alquimia: ela fora as metforas

    sobre ns. Somos carregados pela linguagem para dentro de um

    como se, para dentro tanto da materializao da psique, quanto

    da psiquizao da matria, ao pronunciarmos nossas palavras.

    (Hillman, 2001, p.28)

    Ainda, segundo Hillman, a produo do smbolo torna-se inerente na linguagem

    alqumica, que simblica em si mesma pois seus smbolos e suas palavras so a melhor

    expresso possvel de um processo no qual o jogo dialtico est intrnseco - as imagens

    alqumicas so fsicas e psquicas ao mesmo tempo: a Alquimia tem palavras-coisa,

    palavras-imagem, palavras-arte.

    A linguagem alqumica est amplamente relacionada ao processo de individuao.

    Todo fenmeno alqumico , portanto, tanto material quanto psicolgico. A Alquimia, assim

    como nossa psique, tambm metafrica e simblica.

    Dessa forma, atravs de sua linguagem, a Alquimia busca reproduzir toda uma

    cosmogonia dentro seu laboratrio, pois parte da premissa que tanto micro quanto

    macrocosmo so sujeitos s mesmas leis que regem o Todo.

    Essa totalidade s poderia ser vislumbrada a partir da relao dialtica entre

    consciente e inconsciente, micro e macrocosmo, ego e Si mesmo, o que justificado pela

    busca por integrao de ambos esses opostos num terceiro e novo elemento.

    A noo de undus mundus, emprestada da filosofia medieval, confere dinamismo ao

    todo e integra microcosmo e macrocosmo. (Pena, 2004, p.11)

    O conceito do alquimista Dorneus de undus mundus o pice da busca espiritual e

    religiosa dentro da opus, pois representa a integrao dinmica entre micro e macrocosmo,

    que simbolizam ego e Si mesmo (Hoffman 2006).

    Dessa forma a autora demonstra que, por conta dessa polarizao da psique, esta

    mostra-se capaz de representar os contedos arquetpicos, mas no de perceb-los em si

  • 18

    mesmo, pois consciente e inconsciente formam um casal de opostos complementares,

    fundamental para a funo simblica da psique.

    No Caibalion (Trs iniciados, 2008), um dos princpios fundamentais do Hermetismo

    e da Alquimia o Principio da Polaridade. Segundo este, tudo em nosso universo possui

    polos e estes polos so opostos e complementares. Devemos observar tambm que todos

    os opostos possuem a mesma essncia, de forma que eu e totalidade, frio e calor,

    consciente e inconsciente, psique e matria, so polos opostos de uma mesma essncia. O

    texto ainda revela que todos os paradoxos so conciliveis, pois os extremos se encontram.

    Como a psique e a matria esto encerradas em um s e mesmo

    mundo, e, alm disso, se acham permanentemente em contato

    entre si, e em ltima anlise, se assentam em fatores

    irrepresentveis, h, no s a possibilidade, mas at mesmo uma

    certa probabilidade de que a matria e a psique sejam dois

    aspectos diferentes de uma s e mesma coisa.(...) (Jung, 2011g,

    p.165, PP,418)

    A ambivalncia psquica pode ser observada em sua capacidade de representar

    matria e esprito atravs de conceitos e smbolos - como podemos observar na linguagem

    alqumica. Existe, porm, um elemento chamado por Jung de psicide, que transcende a

    matria e o espiritual, fazendo ao mesmo tempo parte desses e sendo metafsico.

    Nunca cheguei a uma concluso precipitada desse tipo, porque

    nunca acreditei que nossas percepes pudessem apreender

    todas as formas de existncia. Por isso estabeleci o postulado de

    que o fenmeno das configuraes arquetpicas

    acontecimentos psquicos por excelncia repousa sobre a

    existncia de uma base psicide, isto , condicionalmente

    psquica, mas ligado a outras formas de ser. (Jung,1963, p.135)

    Undus mundus, pode ser considerado esse uno formado pela dinmica de opostos

    fundamentais presentes na psique, e desta forma pertence amplamente ideia de arqutipo

    psicide.

    Sobre isto, na carta de maio de 1953, escrita por Jung destinada ao fsico Wolfgang

    Pauli, este relata o seguinte esquema quaternrio, tambm presente no trabalho de Hoffman

    (2006):

  • 19

    1

    Nesse sentido, ao reino transcedental psicide corresponde uma

    ponte conceitual entre distintos reinos (matria, psique, esprito).

    Habita uma esfera transcedental e portanto de unidade, trazendo

    tona o conceito metafsico do alquimista Dorneus Undus

    Mundus. (p. 36)

    Segundo o Si mesmo, em sua constante atualizao e elaborao na conscincia do

    ego, converge ao padro quaternrio e tem por meta o unitrio que aqui relacionamos com o

    conceito de undus mundus. ... marca o caminho do Si mesmo em direo meta do opus

    individuations ou iluminamento. (Byington 1984 p.102)

    O smbolo do quaternrio representa a totalidade, a transcendncia desses pares de

    opostos, que culminariam na ideia de undus mundus. De acordo com Jung (2011e), pode

    ser entendido enquanto mundo totalizado em unidade, o grau mais elevado da coniunctio

    alqumica, por significar a unio do homem total com o todo, o uno.

    1 Imagem: Hoffman, C. R. (2006) p.36

    Trancedenta

    l (Psicide)

    Psique

    Esprit

    o

    Matri

    a

  • 20

    4.2 A opus Magnum (Grande Obra) e o Processo de

    Individuao

    O objetivo principal da meta alqumica lanar a psique na opus, trazer os

    alquimistas para dentro de seu prprio processo individual de evoluo.

    A meta s importa apenas enquanto ideia; o essencial o opus (a

    obra) que conduz meta: ele d sentido vida enquanto esta

    dura. (Jung, 2012c, p.85, PP.400)

    O processo de individuao descrito por Jung (2011b), como o caminho para

    tornar-se aquilo que se . Esse processo no possui um fim especfico, mas depende da

    sua meta para direcionar esse caminhar, que acontece durante toda a vida. Essa

    justamente uma trajetria onde o inconsciente tem possibilidade de se realizar:

    Minha vida a histria de um inconsciente que se realizou. Tudo

    que nele repousa aspira tornar-se acontecimento, e a

    personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de condies

    inconscientes e experimentar-se como totalidade. (Jung, 1963,

    p.19)

    Isto , o potencial presente no inconsciente deseja ser conscientizado, ampliando os

    recursos do ego, tornando aquele indivduo mais pleno, mais prximo das expresses de

    seu Si mesmo, de sua totalidade enquanto ser.

    Entendemos aqui como Si mesmo a soma dos processos inconscientes e

    conscientes da personalidade, e desta forma a psique enquanto todo. Enquanto por ego

    entendemos o resultado at ento de diversas atualizaes do Si mesmo e o centro da

    conscincia.

    Importante observar que impossvel esgotar o inconsciente, embora o processo de

    individuao justamente busque a conscientizao do Si mesmo no mximo de suas

    possibilidades. O funcionamento psquico ocorre de forma compensatria entre a

    conscincia e o inconsciente e sua produo simblica corresponde sntese desse

    processo.

    Todo ser humano a partir de seu nascimento est em processo de individuao, no

    existindo possibilidade de viver fora dele.

  • 21

    Embora, segundo Byington (1984), Jung tenha descrito o processo de individuao

    na segunda metade da vida, deixando a primeira metade delegada funo de estruturao

    do ego na infncia, aquele considera que o desenvolvimento do ego tambm dele faa parte

    desde sempre.

    Todos ns temos uma busca comum a ser vivida, mas ao mesmo tempo cada busca

    individual; esse paradoxo do coletivo e individual fundamenta o conceito de individuao.

    Individuar entendido como (...) dar expresso individual ao vir-a-ser arquetpico. (Baptista,

    2008, p.15)

    Atravs da conscincia temos a capacidade de expressarmos aspectos do

    inconsciente coletivo sob uma forma absolutamente individual. desse modo que

    humanizamos o arqutipo, e existem tantos arqutipos quanto possibilidades de

    humanizaes desses.

    Segundo Baptista, a vida o vaso alqumico onde a opus, representao arquetpica

    do processo de individuao, acontecer. A opus necessita do vaso para realizar-se da

    mesma forma que o processo de individuao necessita da vida.

    Importante ressaltar que cada alquimista, de acordo com seu o processo de

    individuao, possui diferentes metas.

    Todos eles buscavam o ouro metafrico, smbolo perfeito do Si mesmo. Mas, a opus

    de cada um especfica, pois, o Si mesmo a ser realizado possui expresses singulares.

    A individuao o tornar-se um consigo mesmo, e ao, mesmo tempo, com a

    humanidade toda, em que tambm nos inclumos (Jung, 2011f, p. 127, PP.227)

    O paradoxo da meta alqumica esse: A meta a mesma para todos o Si mesmo,

    mas, diferente para cada um justamente pelo mesmo motivo.

    A busca pelo Si mesmo, ou pela realizao de sua opus, a busca de uma

    verdadeira vocao que deseja realizar-se ao longo de toda uma vida. Apresenta-se como

    uma imagem inata de si, estrutural do carter, que se utiliza do processo de individuao

    para tornar-se o mais plena possvel conscincia, realizando o mximo de seus recursos e

    talentos.

    (...)existe uma razo por que minha singular pessoa est aqui e

    que h coisas de que preciso cuidar alm da rotina diria, e isso

    deve dar uma razo de ser a essa rotina, sentimentos de que o

    mundo, de certa forma, deseja que eu esteja aqui, que responda

    a uma imagem inata que estou preenchendo em minha biografia.

    (Hillman,2001, p.14)

  • 22

    Existe em cada um, uma potncia especfica a ser realizada dentro de sua

    individuao, isto , existe no ser uma singularidade pedindo para ser vivida antes mesmo

    de comear a ser vivida, e essa singularidade se expressa atravs das mltiplas metas da

    opus alqumica.

    Segundo Hillman, (2001, p.366): As imagens da meta - a prola do alto preo, o

    corpo de jade, o diamante, o elixir, o ouro, e o Lpis philosophorum. Esta ltima , a Pedra

    filosofal, considerada a opus magnum dos alquimistas.

    Com essa pedra, o alquimista poderia realizar suas transmutaes, priorizando, na

    maior parte dos textos, a arte de transmutar metais em ouro. Mas por exemplo, Paracelso

    buscava uma pedra que curasse todos os males.

    A estrutura do processo alqumico revelada e realizada atravs de distintas

    fases. Descrevendo desta forma a jornada de desenvolvimento da psique em sua opus, as

    imagens alqumicas levam o adepto a uma transformao psicolgica que visa

    simbolicamente a obteno da pedra filosofal.

    A individuao, portanto, s pode significar um processo de

    desenvolvimento psicolgico que faculte a realizao das

    qualidades individuais dadas; em outras palavras, um processo

    mediante o qual um homem se torna o ser nico que de fato .

    Com isto, no se torna "egosta", no sentido usual da palavra,

    mas procura realizar a peculiaridade do seu ser e isto, como

    dissemos, totalmente diferente do egosmo ou do individualismo

    (Jung, 2008, p.50, PP.267)

    O processo de individuao caracteriza-se por um movimento cclico, pois nossa

    matria prima (Si mesmo), tambm nossa meta (Si mesmo). Da a imagem da matria

    prima enquanto a pedra bruta, e a meta como a pedra lapidada, embora ambos, de fato,

    sejam a mesma pedra.

    Isto , a matria prima seria equivalente a uma totalidade inconsciente enquanto a

    pedra filosofal corresponderia possibilidade de conscientizao desta. A busca da qual se

    trata o processo de individuao , em suma, o processo de integrao do Si mesmo

    conscincia, e a opus alqumica descreve a jornada de desenvolvimento da psique nessa

    busca.

    O processo alqumico, segundo Jung, capaz de descrever de forma metafrica, da

    melhor maneira possvel os aspectos centrais do processo de individuao, a opus

    alqumica vivenciada por todas as pessoas sendo profundamente anloga a este.

  • 23

    Todo procedimento alqumico (...) pode muito bem representar o

    processo de individuao num indivduo particular, embora com a

    diferena no desprovida de importncia de que nenhum

    indivduo particular abarca a riqueza e o alcance do simbolismo

    alqumico. Este tem a seu favor o fato de ter sido construdo ao

    longo dos sculos. (...) tarefa muito difcil e ingrata a tentativa

    de descrever o processo de individuao a partir de materiais de

    casos. (...) Na minha experincia, nenhum caso suficientemente

    amplo para revelar todos os aspectos com uma riqueza de

    detalhes que o leve a ser considerado paradigmtico. (...) A

    alquimia, por conseguinte, realizou para mim o grande e

    inestimvel servio de fornecer o material em que minha

    experincia pudesse encontrar espao suficiente, o que me

    possibilitou descrever o processo de individuao, ao menos em

    seus aspectos essenciais. (Jung, 2011e/2, pp.446, p.382)

    A opus considerada assim, o processo de individuao do alquimista, que projeta

    livremente os contedos de suas transformaes internas na matria, que como estes

    tambm passar por diversas transformaes at alcanar sua meta.

    Segundo Edinger (1990), a Alquimia poderia ser considerada uma espcie de

    fenomenologia do inconsciente coletivo por ser capaz de descrever atravs de sua

    linguagem simblica, fenmenos arquetpicos presentes de alguma forma no psiquismo de

    todas as pessoas.

    Ainda que em camadas muito profundas do inconsciente, esses smbolos revelam-se

    atravs de sonhos, imaginao ativa, fantasias etc, servindo como linguagem capaz de

    revelar o sentido do processo de individuao, porm no de forma individual, mas de forma

    genrica, arquetpica. A linguagem alqumica ideal para esse entendimento, pois carrega

    em si, os paradoxos presentes no prprio conceito de individuao, enquanto individual e

    coletiva.

  • 24

    4.3 As cores e operaes do processo alqumico

    Dentre diversas descries da opus, autores como Jung, Edinger e Hillman

    apresentam trs etapas como fundamentais nesse processo, embora outras tambm sejam

    citadas.

    Essas etapas so: nigredo, albedo e rubedo, respectivamente caracterizadas pelas

    cores, preto, branco e vermelho.

    A relao entre claro e escuro, luz e trevas foi nomeada de alguma forma em todas

    as lnguas. A primazia dessa dupla (branco e preto) demonstra a necessidade

    compensatria da psique em busca sempre de um equilbrio. Em diversas culturas,

    acrescentada a essas cores o vermelho, de forma que essa trade considerada sagrada

    como foras arquetpicas primordiais.

    Segundo Wilberg (2007) de acordo com a mitologia indiana, todo o desenvolvimento

    do universo est baseado nos poderes da natureza. Esses poderes dividem-se nos trs

    gunas: tamas (preto), rajas (vermelho) e sattva (branco); correspondem respectivamente

    trade da criao hindu, os trs devas (divindades) Shiva, Brahma e Vishnu.

    Tamas representa o poder da morte e das trevas; seu deva Shiva, chamado de o

    destruidor, ou o transformador. A tristeza e a inrcia so um chamado para a

    transformao. Esse guna corresponderia nigredo.

    Rajas o poder da vitalidade; rege o prazer e a violncia. Seu regente seria

    Brahma, o criador, representando toda potncia criativa do universo, smbolo bastante

    relacionado libido, smbolo da vida que tem no sangue sua melhor expresso. Esse

    princpio seria a prpria rubedo.

    J sattva o representante da luz, da alvorada, e da felicidade, regido pelo deva

    Vishnu, o preservador, responsvel pela conservao e manuteno do universo,

    correspondente albedo no processo alqumico.

    Segundo Jung, como citaremos abaixo, a nigredo marca o incio da obra. Os

    alquimistas rejubilavam-se ao ver sua matria tornar-se preta, pois sabiam que ento sua

    opus tinha comeado. Este preto ter de passar por inmeras lavagens e purificaes para

    chegar ao branco da albedo. Quem marca a entrada na albedo a cauda do pavo -cauda

    pavonis- que anuncia a aurora. Essa pureza absoluta da albedo dever ser sacrificada para

    renascer na rubedo, onde enfim terminaria a opus com a obteno da pedra filosofal em

    toda sua potncia criadora.

    Embora existam diversos tipos de processos alqumicos, esse padro bastante

    descrito. Por exemplo, Paracelso descreve a pedra filosofal, como um corpo slido de cor

  • 25

    rubi escura, transparente, flexvel, porm quebradia; outros a descrevem como um p ou

    tintura vermelha.

    Na linguagem dos alquimistas a matria sofre at que a

    nigredo desaparea; ento a cauda do pavo (cauda pavonis)

    anunciar a aurora e surgir um novo dia, a lekosis ou albedo.

    Mas neste estado de brancura no existe verdadeira vida, um

    estado abstrato, ideal. Para infundir-lhe vida preciso infundir-

    lhe "o sangue", a rubedo, o vermelho da vida. Somente a

    experincia de todos os estgios do ser pode transformar o

    estado ideal da albedo em uma forma de existncia

    plenamente humana. Somente o sangue pode vivificar o estado

    de conscincia mais alto, no qual dissolvido o ltimo trao de

    negrume, no qual o demnio no tem mais existncia

    autnoma mas integrado reconstituindo a profunda unidade

    da psique. Ento a opus magnum est completa: a alma

    humana est completamente integrada.( MCGUIRE, W. e Hull,

    R. ,1982, p.4)

    O processo alqumico, apesar de ter metas diferentes de acordo com cada

    alquimista, trabalha sempre com a ideia de transformar o que vil, em algo sagrado. Para

    que isso ocorra necessrio que uma prima matria seja sujeitada a diversas operaes,

    entre elas, segundo Edinger (1990): calcinatio, solutio, coagulatio e sublimatio.

    Os pr-socrticos consideravam a prima matria como uma matria original da onde

    tudo teria se criado, mas, no houve registros de uma concluso acerca de que matria

    seria esta. Esses filsofos estavam divididos entre, ar, fogo, gua ou terra.

    Os quatro elementos foram entendidos como funcionando em dois pares, grupos de

    contrrios, e assim a ideia de uma estrutura qudrupla universal utilizada como base de

    todo ocultismo ocidental.

    Podemos traar um correlato psicolgico dessa ideia ao pensarmos que a partir do

    inconsciente (o caos indiferenciado) a conscincia surge; o nascimento de um ego, que se

    d dentro do processo de desenvolvimento das quatro funes da tipologia junguiana. De

    acordo com Psicologia Analtica, a conscincia se desenvolveria do inconsciente atravs das

    seguintes funes: pensamento, intuio, sentimento e sensao, respectivamente: ar, fogo,

    gua e terra.

    Em seu livro Anatomia da psique (1990), Edinger tambm nos conta sobre a conexo

    entre essas operaes e os quatro elementos primordiais. Atravs delas, o adepto poderia

  • 26

    transformar os mais impuros metais na pedra filosofal, isto , elaborar, trazer conscincia

    recursos psquicos, a fim de transform-los numa matria sagrada- a prpria pedra filosofal.

    A operao alqumica da calcinatio, relaciona-se intimamente com o elemento fogo.

    Atravs dele, que representa em Si mesmo vitalidade, libido, vontade, podemos retirar a

    gua presente nos slidos, ficando apenas com um p seco. Essa capacidade de 'secar' as

    substncias demonstra a potncia da vontade e da criatividade em transformar sentimentos

    ou liber-los.

    J a solutio, a operao relacionada gua. Sua principal caracterstica

    dissolver, tornar gua, e assim, trazer algo novamente a seu estado indiferenciado, como

    uma tendncia regressiva ao tero da me, para que algo novo renasa. A gua est

    sempre relacionada aos sentimentos.

    A coagulatio tem como caracterstica tornar as coisas fixas, lhes dar uma forma. Ela

    transforma as coisas em terra; torna as coisas concretas, trazendo conscincia e

    ampliando. Assim, a coagulatio capaz de dar forma ao que antes no possua. Ela coloca

    o material numa posio onde a transformao poder recomear.

    A ltima das operaes vinculadas aos quatro elementos a sublimatio. Ela possui

    em si um enorme poder de purificao, capaz de separar substncias puras de impuras, e

    ao mesmo tempo elev-las de forma ascendente, transform-las em ar, para que subam ao

    cu novamente, tornando-se parte do todo, de modo que o que reste de palpvel seja

    apenas o puro.

    Mas a opus no termina aqui; existem ainda trs processos alqumicos para sua

    concluso. Essa trade funciona de maneira transcendente, dialtica. Apenas aps duas

    operaes opostas em caractersticas, poder surgir uma terceira operao que concilie e

    una as duas outras. A sim, obteremos a pedra filosofal.

    O primeiro processo dessa trade a mortificatio, processo que representa a morte, o

    apodrecimento da matria, sua decomposio e fragmentao. A esse processo pertence a

    nigredo. Suas imagens comuns so a da tortura e mutilao, pois coloca o adepto em

    contato com suas dores. Mas, ao mesmo tempo, ela o prenncio do incio da reconciliao

    com a vida, com o claro, com a albedo. Ela indica o caminho do retorno.

    O seguinte processo a separatio, operao responsvel pela conscientizao da

    dualidade, pela distino dos opostos, onde mostra-se presente a albedo. A separatio,

    introduz ordem no caos da mortificatio, traz a capacidade de conter e dar conta desses

    opostos, dissolvendo conflitos ambivalentes. Ela deve direcionar-se integrao, e no

    satisfao de opostos. Dessa forma, ela apresenta o esprito que indica o final do caminho

    da opus.

  • 27

    O resultado da separatio chamado de 'terra branca', e sob esta terra que os

    princpios opostos, representados pelo masculino e feminino se uniro, isto , o par de

    opostos s pode se integrar aps a purificao particular de cada um deles.

    Enfim, o pice da opus a coniunctio. Ela a unio perfeita de antes matrias

    inconciliveis. Desta forma, restaurando sua pureza e integridade, logo a ciso da psique

    desaparece numa unidade, onde h a reconstruo do eixo ego-Si mesmo. O adepto

    retorna ento a Si mesmo. A coniunctio a operao relativa rubedo de onde surge a

    pedra filosofal como smbolo dessa integrao, da imagem inata do alquimista.

    O principal smbolo alqumico da coniunctio o casamento do rei e da rainha, onde o

    amor agente ativo, pois sem ele no h verdadeira unio e reconciliao.

    Essa uma breve descrio de uma opus contra naturam que visa trazer de volta

    aquilo que est impuro e dissociado, sua verdadeira unidade. Omnia in unum: Tudo em

    Um.

    Segundo Jung, em Psicologia e Alquimia, o lapis trinus et imus (trs em um),

    fazendo referncia s trs substncias primordiais descritas por Paracelso.

    Interessante observar que este alquimista, em seu livro Botnica Oculta (1976), trata

    sobre a questo da Teoria das trs substncias. Estas eram consideradas bases

    necessrias a todos os corpos, e a fora vital de todo ser vivo consistiria na unio dos trs

    princpios: enxofre, mercrio e sal. Esses princpios no representavam as substncias em

    si, mas so termos sigilosos para nominar propriedades materiais que poderiam ser

    retiradas ou acrescentadas s substncias atravs do processo alqumico. Desta forma, eles

    representam respectivamente: volatilidade, fluidez e solidez.

    Podemos entender tambm o enxofre como uma fora masculina, corrosiva, de

    energia vibrante e capaz de danificar os metais, correspondendo tambm nigredo e

    mortificatio.

    Mercrio representa um princpio passivo, malevel, ligado ao feminino, considerado

    uma espcie de solvente universal na Alquimia, como se a tudo purificasse e alimentasse.

    Possui uma relao de dualidade e oposio ao enxofre, mas ao mesmo tempo o alimenta

    enquanto este, no incio da opus, considerado o embrio da prpria pedra filosofal. Dessa

    forma, podemos dizer que o mercrio anlogo albedo e separatio.

    O Sal pode ser considerado agente ativo na coniunctio, pois ele o meio de

    integrao do enxofre e mercrio, o esprito mediador na unio. Nesse sentido a

    representao da rubedo.

    Os metais seriam sujeitos, ento, a todos esses processos alqumicos

    descritos acima. Estes representariam os recursos psquicos do adepto, qual caracterstica

    exatamente estaria sendo transformada, e atravs de qual processo.

  • 28

    Os metais, as pedras e suas variedades trazem em Si mesmos a

    sua quintessncia, o mesmo que os corpos orgnicos e, embora

    sejam considerados sem vida, possuem essncias de corpos que

    viveram. (Paracelso,1976 p.20)

    4.4 Caminhos de regenerao da alma

    Hesodo (1996) em Os trabalhos e os dias, nos fala sobre As cinco raas, correlatas

    a distintas Idades, fases de desenvolvimento da humanidade, foram nomeadas pelo autor

    com o nome de diferentes metais.

    Primeiro, as raas de ouro e de prata no tem nenhum

    conhecimento da necessidade, tudo lhes dado

    espontaneamente, vivem sem preocupaes, achando-se assim

    ligadas infncia(...)J as raas de bronze e dos heris se

    vinculam ao vigor fsico prprio da idade adulta. A raa de ferro

    a nica que conhece a degradao da infncia para a velhice e a

    morte. (Hesodo, 1996, p.81)

    A primeira Idade foi a do Ouro, nesta os homens e deuses estavam lado a lado, os

    homens desta Era eram como os Deuses, e nenhum terror os acometia nem nada lhes

    faltava, viviam numa espcie de den, de Paraso.

    Mas o que paraso? Obviamente o Jardim do den com a rvore da vida e do

    conhecimento bifronte e seus quatro rios. Na verso crist tambm a cidade celeste do

    Apocalipse, o qual, como o Jardim do den, concebida como mandala. Mas a mandala

    um smbolo de individuao.

    (...) O par de opostos deserto-paraso significa portanto o outro

    par de opostos isolamento-individuao ou o tomar-se si-mesmo.

    (Jung, 2011a, p.44)

    Segundo Torrano (1991) Hesodo declara que gostaria de j estar morto antes da

    raa de ferro ou nascer depois dela, pois a raa de ferro representa a natureza mais

  • 29

    primitiva do ser humano, a perda da imortalidade, a humanidade e apresentada doena,

    fome, velhice.

    Tambm a respeito dessa teoria Sallis (2012) em Metamorfoses e a Teoria alqumica

    dos metais, relata que os homens da primeira raa eram imortais como os deuses, e tudo

    lhes era dado, essa fase correlata ao den cristo, e tambm a fase matriarcal do

    desenvolvimento da conscincia. De acordo com Bygton (1984) a fase matriarcal representa

    alem da simbiose do bebe com a me, a dimenso onde todos somos a mesma coisa, e o

    universo funciona como um todo integrado, porem ainda indiscriminado. A raa de ouro, tal

    qual essa dinmica, e uma raa que no conhece a necessidade, o trabalho e a morte.

    Porem a humanidade no sabendo a justa medida de seu poder comea um

    processo de degenerao da alma, tornando-se corruptvel, o que d inicio a Idade da Prata,

    onde essncia e aparncia diferem, dando espao a mentira, e falsidade. A partir desta

    ainda viro maiores degeneraes. Da prata degenera ao bronze, onde no se morre de

    velhice ou doena mas, a morte j e possvel atravs da violncia e do bronze ao ferro,

    idade onde estamos hoje.

    A Idade de ferro marcada pela finitude do corpo, pela necessidade de trabalhar

    para conseguir sobreviver, incio de angstias e sofrimentos que nunca antes a raa

    humana conhecera.

    Devemos ressaltar que o conceito que buscamos explicar nesse texto, e o de

    caminho de regenerao da alma.

    Viemos explicando a teoria de Hesodo justamente para demonstrar uma

    representao do processo de degenerao e corrupo da alma, o que refora a

    necessidade de pensarmos formas de lidar com as questes de nossa Idade.

    Apesar das condies desta fase, continuamos podendo atingir a Idade de ouro, ao

    menos psiquicamente falando, e esta fase e correlata ao ouro alqumico smbolo do Si

    mesmo.

    Devemos ento regenerar nossa alma de ferro a ouro, ou como diriam os

    alquimistas, de Saturno a Sol. Fica evidente ento que no estamos tratando aqui do

    termino de um processo de declnio, mas da existncia de uma continuidade cclica, e de

    uma possibilidade de retorno.

    Os processos de iniciaes espirituais, partem do mesmo principio, da ideia de

    desenvolvimento espiritual, ideia que se baseia na capacidade de integrao do todo do

    qual nossa singularidade teria emergido, como a prpria conscincia emerge do

    inconsciente.

    Outro exemplo desse sentido, pode ser observado no significado da palavra religio,

    do latim religare, reconexo. Novamente a ideia de evoluo espiritual, como o retorno

    consciente ao inconsciente primevo.

  • 30

    A Idade de ouro representa o ouro alqumico e dessa forma tambm e correlata ao

    Sol. Ela foi assim nomeada, pois o ouro representao da mxima espiritualidade, da alma

    incorruptvel.

    Segundo Sallis (2011), na antiguidade este metal no poderia ser comprado por

    qualquer um, pois nas tradies arcaicas era atribudo a este um valor espiritual. Por

    exemplo, na Grcia arcaica s poderia usar um adorno de ouro, quem fosse alado

    categoria de heri, isto o ouro era de quem o conquistava por merecimento, dado a quem

    completava o caminho de regenerao junto aos Deuses.

    Para resgatarmos o ouro de nossa alma, nossa imortalidade perdida, precisamos

    adentrar em uma busca profunda, uma busca de regenerao da alma, teremos de fazer o

    caminho de volta, opus contra naturam, at o ouro. nessa hora onde somos podemos ser

    verdadeiros heris, detentores da pedra filosofal.

    Podemos observar que a jornada alqumica, e o caminho do heri no fundo apontam

    para o mesmo processo, a qual C. G. Jung chamaria de processo de individuao, ambas

    os caminhos apontam para a realizao do ser enquanto totalidade.

  • 31

    4.5 Sobre o tratado alqumico Splendor Solis

    Em meu levantamento bibliogrfico, encontrei poucos textos que discorressem

    diretamente sobre esse tratado, embora muitos trabalhos sobre Alquimia usem de forma

    ilustrativa uma ou outra imagem deste. Entre os autores encontrados, destaco Sharpe,

    Henderson, Wisner e Sherwood.

    Os textos encontrados sobre o tratado Splendor Solis foram os seguintes:

    Sharpe, Elizabeth & J.K. (Editors). Splendor Solis: Alchemical Treaties of Solomon

    Trismosin. Written 1582. Copyright 1920. Reprinted by Kessinger Publishing U.S.A.,

    Henderson, J. L. e Sherwood, D. N. (2003) Transformation of the psyche. Nova York:

    Brunner-Routledge,Wisner, K. (2010) Splendor Solis- Its Possible Influence on the

    Ogdoadic System, Part 1,The Ogdoadic Journal - of the Western Mysteries- Vol. 1

    No. 4:Historical Threads of the Ogdoadic Tradition. Sun Lion Publications - ORDO

    ASTRUM SOPHI, Sherwood, D. N. (2010) Alchemical images, implicit communication, and

    transitional states. Sun Lion Publications.

    De acordo com Kerry Wisner, em seu artigo Splendor Solis its Possible Influence

    on the Ogdoadic System, Part 1, o tratado alqumico Splendor Solis foi encontrado

    na Europa no final do sc. XVI. Contava com fragmentos de texto e 22 pranchas

    com ricas e elaboradas imagens alqumicas.

    Esse artigo foi publicado na revista The Ogdoadic Journal - of the Western

    Mysteries- Vol. 1 No.4, onde o autor busca esclarecer a relao entre o simbolismo

    presente no tratado, em relao aos processos iniciticos da Ordo Astrum Sophiae,

    ordem espiritualista, de fundamento hermtico e cabalista.

    It is my suspicion that this forgotten text, along with the paintings,

    contains elements of esoteric wisdom that reach back to the earliest

    foundations of the Western Mystery Tradition. (Wisner, 2010, p.5)

    Entendo que este texto, esquecido junto com as pinturas,

    contm elementos de sabedoria esotrica que remontam os

    primeiros fundamentos da Tradio de Mistrios Ocidentais

    (Traduo livre da autora)

    A autoria do tratado de Salomon Trimosin, lendrio professor de Paracelso.

    Este afirma que boa parte do conhecimento presente no tratado, veio de suas

  • 32

    viagens na Itlia, onde trabalhou com diversos alquimistas, teve muitos professores

    com quem estudou ocultismo, cabala, a antiga religio egpcia, entre outros temas.

    Jung was also familiar with the Splendor Solis. In his

    works, he reproduced several images and quoted the text, but

    he did not consider its images in detail, either separately or as a

    series.

    The twenty-two illuminated paintings in the manuscript of

    the Splendor Solis belonging to the British Library (Harley 3469)

    are the most beautiful and accessible images of late medieval-

    early Renaissance European alchemy, and they provide us with

    a process in images that can touch us at a very deep level.

    (Henderson e Sherwood, 2003, p.3)

    Jung estava familiarizado com o tratado Splendor Solis.

    Em suas obras, ele reproduziu vrias imagens e citou o texto,

    mas ele no considerou suas imagens em detalhe,

    separadamente ou como uma srie.

    As 22 pranchas do manuscrito Splendor Solis,

    pertencentes British Library (Harley 3469), so as mais belas

    e acessveis imagens da alquimia europeia do final da Idade

    Mdia e incio do Renascimento, elas nos fornecem um

    processo em imagens que podem tocar-nos em um nvel muito

    profundo. (Traduo livre da autora)

    O tratado mostra as diversas transmutaes da matria, at que esta chegue

    a Lapis Philosoforum e por revelar smbolos que tratam do processo de individuao,

    suas imagens so profundamente impactantes.

    importante ressaltar que essas famosas sequncias de placas alqumicas, esto

    explicando, atravs de suas prprias imagens, o processo fsico e f ilosfico da obteno da

    pedra filosofal. So enigmas figurados, onde suas imagens abrem um enorme campo de

    amplificaes, captando toda a complexidade de seus processos.

    O grande nmero de ilustraes acrescidas ao texto justifica-se pelo fato de

    as imagens simblicas pertencerem, por assim dizer, constituio espiritual

    alqumica. (Jung, 2011b, p.11)

  • 33

    A importncia da imagem como primordial ao entendimento psquico e Alquimia

    tambm reforada por Lopes em sua monografia intitulada Saturno. Esta nos coloca o quo

    a imagem considerada na Psicologia Analtica, como a linguagem da psique, sendo

    utilizada nas diversas tcnicas expressivas como Sandplay, imaginao ativa, desenhos,

    entre outras.

    Hillman (2011), observa que a imagem o que ; revela-se a si mesma a partir da

    capacidade de nossa conscincia, se esta consegue suportar a angstia do desconhecido.

    Splendor Solis, fazendo jus Alquimia, um tratado que no demonstra apenas a

    obteno de um ouro ou material final fsico; atravs de suas imagens vai alm dos

    processos fsicos pois, sua linguagem simblica, apresentando as transmutaes

    necessrias evoluo espiritual do alquimista, em busca de seu ouro metafrico.

    Segundo Sharpe (1920) em seu trabalho Splendor Solis: Alchemical Treaties of

    Solomon Trismosin, a numerao das pranchas e sua sequncia no pode ser

    negligenciada, pois, o autor bebeu de conhecimentos muito profundos e antigos, que

    justificariam a sequncia das pranchas ter ntima relao com o taro, e com os caminhos da

    rvore da vida judaica.

    Whether we consider Alchemy as a Science of Occult

    Chemistry, or as a Kabbalistic Art of Spiritual Regeneration, the

    process Splendor Solis endeavours to communicate is equally

    remarkable and curious. (Sharpe, 1920, p.10)

    Se considerarmos Alquimia como uma cincia da Qumica

    Oculta, ou como uma Arte Cabalstica de Regenerao Espiritual,

    o processo que Splendor Solis se esfora para comunicar

    igualmente notvel e curioso. (Traduo livre da autora)

    Dessa forma, esse tratado alqumico, visa mostrar de modo alegrico o caminho de

    evoluo espiritual, como o ser humano pode tornar-se mais prximo de Deus, ou de Si

    mesmo. Atravs da busca por desvendar verdades divinas ocultas em seus smbolos,

    encontrar verdades pessoais antes encobertas tornar o homem comum um ser espiritual e

    ntegro, consciente de sua divindade.

  • 34

    5. Interpretao simblica das pranchas do tratado

    alqumico Splendor Solis

    5.1 O MATERIAL PRIMAL DO TRABALHO

    Essa matria est diante de todos; todas as pessoas a veem,

    tocam, amam, mas no a conhecem. Ela gloriosa e vil, preciosa

    e insignificante, e encontrada em toda a parte... Para resumir,

    nossa Matria tem tantos nomes quantas so as coisas do

    mundo; eis porque o tolo no a conhece (The HermeticMuseum,

    1:13)

    meu Deus, como acontece que, neste pobre velho mundo, Tu

    sejas to grande e, sem embargo disso, ningum Te encontre,

    que chames com voz to forte e ningum te oua, que estejas to

    prximo e ningum Te sinta, que Te ds a toda a gente e

    ningum saiba Teu nome? Os homens fogem de Ti e dizem que

    no podem encontra-Te, viram- Te as costas e dizem que no

    podem ver- Te; tapam os ouvidos e dizem que no podem ouvir-

    te. (Denk, H. In: Aldous Huxley, 1994)

    A materia prima, ou prima materia a substncia inicial do processo alqumico;

    somente atravs dela poderemos alcanar o lpis philosoforum.

    Existe grande divergncia entre os alquimistas, sobre qual seria a matria prima de

    sua opus. relevante que o incio da opus seja to enigmtico quanto sua meta, de forma

    que para esta, existem tantas definies como para a pedra filosofal. O que realmente

    ambos so e significam torna-se o verdadeiro mistrio da Alquimia.

    Observaremos aqui quais so seus possveis sentidos psicolgicos, quais smbolos e

    substncias costumam representar a prima materia:

    Da o grande nmero de sinnimos utilizados para

    designar a matria prima. Alguns alquimistas a identificam com o

    enxofre ou o mercrio, ou o chumbo; outros, com a gua, o sal o

    fogo etc. Ainda h outros que a identificam com a terra, o sangue,

    a gua de Juventude, o Cu, a me, a lua, o drago, ou com

  • 35

    Vnus, o caos e com a mesma Pedra Filosofal ou com Deus.

    (Eliade, 1983, p.131)

    A matria prima considerada algo raro e vulgar; ela no se encontra apenas

    em um matria ou elemento, mas est presente como centelha em todos os

    elementos. Assim, nomeada por muitos alquimistas como o elementum

    primordiale, o elemento primordial.

    Dessa forma, aquele que deseja iniciar o processo alqumico deve descobrir

    qual ser sua matria prima, pois dentro dessa que existe em potncia sua

    respectiva Pedra Filosofal.

    Esta "matria prima" o fundamento da Arte Alqumica. Na

    "matria prima" esto misturados os quatro elementos em estado

    desordenado, pois: "terra e gua, que so mais pesadas do que

    os outros elementos, elevavam-se at o crculo da lua, e o fogo e

    o ar, que so mais leves do que os outros, desciam at o centro

    da terra, razo por que esta "matria" chamada, acertadamente,

    desordenada. Desta matria desordenada, apenas uma parte

    permanece no mundo, e ela conhecida por todos e vendida

    publicamente". (Jung, 2011b, p.337)

    Desse modo, a matria prima se encontraria presente em todos os lugares e seres;

    dito que consegue fazer de qualquer um rei e ao mesmo tempo apresenta-se de forma

    desprezvel.

    Para descobrir a essncia da matria prima de sua opus, Basilio Valentino,

    alquimista do sculo XIV, construiu um acrstico que resumiria essa busca: VITRIOL. Este

    j um lema conhecido da Rosa Cruz e maonaria.

    Vitriol contm todas as respectivas iniciais da seguinte frase escrita originalmente em

    latim:Visita Interiora Terrae Retificando que Invinies Occultum Lapidem. Sua traduo

    seria:Visita o Interior da Terra e, Retificando, Encontrars a Pedra Oculta.

    Isto , a verdadeira matria prima ter de ser encontrada no interior da terra.

    Podemos pensar nas antigas cavernas iniciticas, nas prprias minas, ou buscando um

    sentido mais profundo, o interior de ns mesmos, de tudo aquilo que nos constitui. Esse

    material encontrado equivaleria a uma pedra bruta que necessita de todo um processo

    (opus alqumica) para que possa enfim tornar-se ntegro e completar sua meta.

  • 36

    Assim, a palavra Vitriol com suas sete letras, simboliza a busca de cada alquimista

    para integrar e trabalhar o seu Si mesmo. Conhecer a matria prima de seu trabalho o

    primeiro passo.

    Nos ritos de iniciaes de tradio hermtica, o nefito em um momento especifico

    do ritual, levado a uma cmara de reflexo, onde se deparar com essa expresso

    medieval alqumica. A ideia que nessa cmara, o nefito morra nessa vida para que possa

    renascer como iniciado.

    A cmara de reflexes pode ser entendida como um vaso alqumico. Acima de tudo,

    representa o tero no qual ser colocada a matria prima a fim de ser transmutada. Outra

    representao anloga seriam as cavernas onde muitas das antigas iniciaes eram feitas.

    Von Franz nos lembra que, nessas cerimnias, o nefito permanecia certo tempo na

    caverna (no tero da me) e saa desta por uma fenda ou orifcio, como se estivesse

    nascendo, simbolizando a morte de algum num plano mundano para seu ressurgimento

    como um ser espiritual.

    A matria prima morrer no vaso alqumico (mortificatio) para renascer atravs deste

    como o prprio lpis philosoforum.

    A primeira fase do processo alqumico a nigredo, onde a matria prima ainda se

    encontra num estado indiferenciado, um estado de massa confusa, representando o prprio

    Caos, inconsciente coletivo e tambm a prpria morte da prima materia.

    Os alquimistas equivalem a nigredo e seu caos gerador, ao prprio elemento terra.

    Por essa razo, a prima materia coincide s vezes com a noo

    do estado inicial do processo, a "nigredo" (negrume). a terra

    negra na qual semeado o ouro(...) a terra negra, mgica e

    frtil trazida do Paraso por Ado, e que tambm denominada

    antimnio e descrita como "o negro mais negro do que o negro"

    (nigrum nigrius nigro) (Jung, 2011b, p.335, PP. 433)

    La palabra alquimia deriva de la voz rabe al-kimiya, que, a su

    vez, proviene, al parecer, del egipcio keme y designa la tierra

    negra, que puede ser tanto la denominacin del propio pas de

    Egipto, como el smbolo de la materia prima de los alquimistas.

    (Burckhardt, 1979, p.6)

    A palavra alquimia vem do rabe al-Kimiya, que, por sua vez,

    aparentemente originria da palavra keme egpcia que designa

    a "terra preta", que pode ser tanto o nome do pas de origem do

  • 37

    Egito, como o smbolo da a matria-prima dos alquimistas.

    (traduo livre da autora)

    Existem diversas especulaes que dizem que a palavra Alquimia seria originada da

    palavra rabe kimia, derivao do termo egpcio que significa terra negra.

    No mera coincidncia que diversos alquimistas empreguem como matria prima a

    prpria terra, recolhida de local sagrado, pois a terra est impregnada com energia

    csmica.Os metais so os espritos planetrios da terra, pois em seu interior se daria toda a

    sua evoluo.

    A terra na alquimia considerada assim, a me dos metais. Assim como o cu

    guarda em si as estrelas, a terra carrega os metais em seu ventre.

    Ora, a base de fundao de todos os elementos, a

    terra, pois ela o objeto, sujeito e receptculo de todos os

    raios e influncias celestiais; nela esto contidas as sementes e

    as virtudes seminais de todas as coisas ; e por isso se diz que

    ela animal, vegetal e mineral. Frutificada pelos outros

    elementos e pelos cus, ela gera tudo de si; recebe a

    abundncia de todas as coisas e, sendo a primeira fonte,

    dela que brotam todas as coisas. Ela o centro, a fundao e a

    me de todas as coisas. (Agrippa, 2008, p. 89)

    A substncia de nossa matria demonstra ainda outras conexes com o smbolo

    terra; muitas vezes chamada terra admica, por ter sido a terra que Deus utilizara para a

    criao do ser humano.

    7. O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e

    inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou

    um ser vivente. (Bblia Sagrada, Gnesis, 2)

    Essa terra uma matria primordial de onde as coisas podem ser esculpidas.

    Atravs dela Deus poder criar sua esttua viva, a esttua de Ado.

    Como materia vilis carrega em si o caos da inimizade entre os elementos. Essa

    energia ainda muito primitiva, indiscriminada, indiferenciada dever nascer conscincia

    atravs da forma que tomar. O Si mesmo sempre esteve presente na opus, pois ele j

    existia de forma catica na prima matria; a opus apenas trabalhar em tornar essa

    substncia o mais organizada em sua essncia, o mais de Si mesmo em Si mesmo.

  • 38

    H de certo modo quatro etapas no processo alqumico

    (tetrameria), caracterizadas pelas quatro cores, por sobre as

    quais a catica substncia do arcano atinge a unidade final, que

    o Unum (o Um), isto , o lpis (pedra), o qual simultaneamente

    um homunculus (homnculo, homenzinho). Deste modo o filsofo

    alquimista repete expressis verbis (expressamente, na expresso

    da palavra) a obra criadora de Deus no Gnesis. Por isso no

    de admirar que ele designe sua prima matria como Ado. (Jung,

    2011, p.170)

    No processo alqumico, o alquimista torna-se criador e repete a obra de Deus.

    Podemos dizer que de forma anloga, Ado pedra filosofal de Deus, da o smbolo

    do homnculo como meta da opus. Esse homnculo tradicionalmente descrito como uma

    pequena cpia viva do alquimista. Logo, realmente, para cada alquimista existe um lpis,

    aqui descrito como smbolo de sua integrao. Esse lpis criado a partir da prima matria,

    feito imagem e semelhana do alquimista, tal qual Ado teria sido criado por Deus.

    Designa-se tambm a prima materia com o ttulo de Ado primitivo, o Ado que

    precisar passar por toda uma srie de transformaes para que possa tornar-se Ado

    Csmico, sua meta, esse correlato ao prprio Jesus cristo.

    O primeiro Ado e seus filhos foram criados de elementos

    efmeros; conseqentemente, aquilo que era composto devia ser

    decomposto; o segundo Ado designado como o homem

    filosfico foi criado de elementos puros que se tomaro eternos.

    (Jung, 2011g, p. 408 PP.473)

    Jung em Mysterium Coniunctiones II (2011e) nos explica que o alquimista

    paracelsiano Dorneus havia chamado seu lpis de Ado. Este, dentro de si, guardava sua

    Eva invisvel representante de sua anima. Ao integrar-se com ela tornaria-se o verdadeiro

    Ado hermafrodito.

    Na doutrina gnstica eles chamam este segundo homem de Adamas, o homem

    perfeito e verdadeiro. Ado , ento, o homo maximus que no apenas a matria prima da

    obra, mas, a anima universalis de todos os homens. Na Cabalah judaica, um exemplo deste

    homem universal o Ado Kadmon representante do homem arquetpico e primordial, a

    prpria sntese da rvore da vida.

  • 39

    O mdico e alquimista Paracelso escrevia em seus textos, tanto sobre Medicina

    quanto Alquimia. Ao discorrer acerca do macro e microcosmo, considera ainda uma terceira

    instncia.

    Da mesma forma que o macrocosmo corresponde a Deus e o microcosmo ao ser

    humano, ele relaciona o que chama de matriz mulher. Com essa distino, ele busca

    esclarecer a funo feminina no mundo, tomando por base sua funo biolgica de gerar a

    vida, e ressaltando que homem e mulher possuem uma natureza diferente. Essa dupla

    natureza do ser humano, tambm se reflete na prima materia da opus, que consiste na

    reproduo laboratorial da concepo. Dessa forma, a natureza masculina da prima matria

    se apresenta atravs do smen, ou como Paracelso prefere chamar ens seminis (esprito do

    smen). Este smen ser recebido pela matriz, representada pelo corpo da mulher; analogia

    perfeita com uma semente que ser gestada pela terra, at que esta possa sobreviver ao

    mundo exterior.

    Sobre a semente, ou ainda sobre o smen, esse alquimista escreve:

    Toda semente trplice, ou melhor, contm trs substncias

    misturadas, j que tudo que est na semente est junto e no

    dividido. Por isso, a semente representa a prpria juno da

    unidade. (Paracelso,1973, p. 208)

    Essa essncia trplice, muito descrita por Paracelso, est presente em todas as

    coisas. Esses elementos primordiais, nomeados pelo prprio, seriam mercrio, enxofre e sal.

    Os alimentos para que a semente humana possa se alimentar e desenvolver esto

    presentes unicamente na matriz. Esta matriz puramente feminina. A semente s poder

    viver diretamente conectada ao macrocosmo aps passar pela gestao na matriz; ela

    guarda e responsvel pelo esprito divino no interior do homem. Relevante que Paracelso

    tambm considera a prima matria de forma bastante paradoxal.

    Como podemos falar da natureza da matriz se ningum nunca viu

    a sua primeira matria? E quem poderia ver o que existiu antes

    de cada um? O certo que todos viemos da matriz e ningum a

    viu por que ela existiu antes do homem. (Paracelso, 1973, p.328)

    A ideia de matriz est fundamentada na ideia de regressus ad uterum (regresso ao

    tero), regresso ao feminino primordial. Esse retorno representa a morte de uma vida para o

    incio de outra.

  • 40

    No artigo Alquimia, Ocultismo, Maonaria: o ouro e o simbolismo hermtico dos

    cadinhos (sculos XVIII e XIX) (Silva, 2003), explicitado o simbolismo inicitico da Ordem

    Manica e outras doutrinas hermticas:

    Simbolicamente a Ordem discorre, atravs dele, sobre morte e

    ressurreio associadas transmutao, redeno que permite

    ressurgir para uma nova vida, no plano macrocsmico,

    microcsmico ou individual, e inicitico. (p.30)

    Dessa forma, o iniciado aquele que nasceu duas vezes na mesma vida. Esse

    segundo nascimento tem como premissa a ideia de morte em vida. A morte da vida

    mundana o nascimento para a vida espiritual, e apenas na matriz que essa

    transformao de nascimento morte renascimento possvel.

    Como j foi dito acima, a prima materia tem muitos nomes, e sua relao com o

    feminino bastante relevante.

    Os alquimistas a descrevem como uma matria intocada, virgem por nunca ter tido

    nenhum contato com um princpio masculino; ao mesmo tempo, como prostituta porque est

    aberta ao contato com todos os metais, e me, pois ela capaz de carreg-los em si e

    transform-los, trazendo algo novo vida, e purificando os metais em seu uterus.

    Jung, em seu livro MysteriumConiunctionis/ 1, cap. II (2011e), escreve acerca do

    chamado Enigma bolognese, nomeado desta forma por ter sido encontrado num epitfio em

    Bolonha. Este evidencia o carter paradoxal da prima matria, paradoxal tal qual a ideia de

    plenitude ou de todo potencial. Segue o primeiro trecho do epitfio:

    Aelia Laelia Crispis no nem homem, nem mulher, nem andrgena, nem menina,

    nem jovem, nem velha, nem casta, nem meretriz, nem pudica, mas tudo isso.(p.84)

    A prima materia possui outra caracterstica bastante relevante: ela criadora em si

    mesma, pois matria para que todas as coisas existam. Dessa forma, seu marido s pode

    ser seu filho, pois ela a Senhora da qual nascem todas as coisas; ela a me do lpis

    philosoforum. A temtica do incesto filho-me est presente em muitos tratados e textos

    alqumicos.

    Segundo Jung (2011), a deusa sis considerada muitas vezes como Mater Alquimia

    (me da Alquimia), aparecendo como uma mestra tida como discpula ou filha do prprio

    Hermes Trismegisto.

    No texto se alude com frequncia Isis como a Viva, da que

    do comeo mesmo da alquimia se chame pedra filosofal, ao

    mistrio, o mistrio da viva,a pedra da viva ou a pedra do rfo;

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    havia uma conexo entre a viva e o desamparado, mas tudo

    aponta Isis. (vonFranz, 1996, p. 44)

    Sua caracterstica paradoxal tal qual sua identificao com a prima materia; assim

    ela chamada Deusa dos mil nomes. Seu ventre o vaso alqumico do mundo, e sua

    matria, a potncia una da qual o filius macrocosmi ser criado. Ela a prpria Lua em

    todas as suas faces: na crescente ela donzela, na cheia ela me, na minguante ela

    anci, e na nova ela a prpria morte. Por isso, ela Uma, que tudo.

    Outro nome bastante comum nossa prima matria o menstruo da rameira,

    representando o smbolo da expulso do terus de sua matria morta, no fertilizada. Dessa

    forma, atravs da potncia da morte representada pela menstruao o alquimista pretendia

    buscar a potncia de vida presente nessa matria tida como morta. Interessante ressaltar

    que em sua condio de matriz a prima matria no possui esposo, de forma que no

    fertilizada e a menstruao tambm representa isso.

    Menstruo excematur Diadema Regale. [Em nossa matria inicial

    existem muitas coisas heterogneas suprfluas que nunca podem

    ser reduzidas (para a nossa Obra) ao estado de pureza; convm,

    pois, expurg-las completamente, o que de fato impossvel sem

    a teoria de nossos arcanos (segredos primordiais), atravs da

    qual ensinamos os meios de extrair o Diadema Rgio do

    menstruo da meretriz] (Nota de rodap: Jung, 2011b, p. 301)

    A ideia de prima materia corresponde a imagem original de um todo indiferenciado

    posterior diferenciao de todos os outro elementos. Assim, buscar a prima matria

    procurar a reduo das substncias ao seu estado pr- cosmolgico indiferenciado, onde

    tudo est em pura potncia criativa.

    As mitologias antigas reproduzem a prima materia como a massa catica de onde

    todas as coisas viriam a ser. Um exemplo bastante claro acerca disso dado por Hesodo

    em sua Teogonia:

    Do Caos rebo e Noite negra nasciam

    Da Noite alis ter e Dia nasceram ,

    gerou-os fecundada e unida a rebos em amor.

    (Hesodo, 1991, p.109, 125)

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    Tudo que existe no universo viria do Caos, um infinito de plena potncia

    indiferenciada e desorganizada, de onde surgiria rebo representante da potncia

    masculina do Caos, tal qual a semente, ou smen, e a deusa Nyx, representando o teros

    que conter e dar forma a toda essa matria. Tanto rebo quanto Nyx so as expresses

    criativas do Caos, e logo da prima matria.

    A Noite negra pode ser interpretada como regente da nigredo, senhora da morte e

    escurido, to relacionada ao material primal do trabalho. Interessante observar que ao se

    unir em amor a rebos, ela gera Dia e ter, representantes da albedo alqumica.

    Gostaramos de fazer uma breve correlao entre essa temtica e a arvore da vida,

    presente nos ensinamentos da Cabala judaica. A arvore da vida, um diagrama que

    representa todas as dimenses (cada uma delas e chamada sephirah, representando

    determinado campo), e como estas se organizam, sua relao cosmognica e tambm

    enquanto viso de caminho de evoluo espiritual.

    Sobre a arvore da vida, descreve a ocultista Dion Fortune (2006): O todo, o Si

    mesmo, representado pela sephirah Kether ao manifestar-se, entra num estado de pura

    potncia desorganizada, criativa, representada pela sephirah Chockmah. Este um campo

    de energias potenciais ainda sem forma. Esse estgio de indiferenciao do todo anlogo

    simbolicamente ao esperma ou semente; s atingir o reino das formas ao ser recebido pelo

    teros da sephirah Binah.

    Kether diferencia-se em Chokmah a Binah antes de alcanar a

    existncia fenomenal. Os cabalistas chamam essas duas

    Sephiroth de Abba, o Pai Supremo, a Ama, a Me Suprema.

    Binah recebe tambm o nome de Grande Mar, a Shabathai, a

    Esfera de Saturno (Fortune, 2006, p.33)

    Binah regida pelo planeta Saturno, pois a senhora da morte e da vida, e nela

    toda Fora (Chockmah) encerrada em Forma. assim a sephirah onde a manifestao do

    todo se torna enfim diferenciada, e as sementes tornam-se fetos, fertilizam o teros gerando

    vida.

    Exemplo anlogo a este se d no tratado alqumico Rosarium Philosoficum

    Philosoforum citado por Jung (2011b):

    Beya montou sobre o Gabricus e lhe encerrou em sua matriz, de

    forma que no ficou visvel nada dele. Abraou-lhe com tanto

    amor que lhe absorveu por inteiro em sua prpria natureza

    (...)(p.348).

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    No exemplo desse tratado pode-se observar que a semente do falus de Gabricus

    dissolvida ao entrar na matriz, no terus de Beya, onde esta, reduzida prima matria

    poder gerar uma nova vida. Esse processo representa plenamente o processo biolgico de

    cpula gravidez nascimento.

    Psicologicamente, retornar ao estado catico e original da matria equivalente a

    uma morte na psique. Esse processo est intimamente relacionado nigredo, mortificatio,

    solutio, em suas capacidades de dissoluo das formas psquicas fixas de um indivduo,

    levando-as a um regresso prima matria, onde a partir disso um novo processo poder

    surgir, bem como uma nova forma de organizao psquica. De acordo com os alquimistas,

    o regresso cosmolgico da matria equivaleria a uma segunda morte em vida, o incio de um

    processo inicitico.

    Esse retorno simblico s origens do mundo, re-institui ao indivduo seu papel como

    criador.

    Como toda criao e toda construo reproduziam o modelo

    cosmognico, o homem, ao fabricar algo, imitava a obra do

    Demiurgo. Mas ali onde os smbolos cosmognicos se

    apresentavam em um contexto embriolgico a fabricao de

    objetos equivalia a uma procriao; toda fabricao a partir da

    matria vivente ctnica (em nosso exemplo, os minerais) adquiria

    uma equivalncia obsttrica... (Eliade,1983, p.59)

    Assim, a matria prima representa, dentro do processo alqumico, seu incio, e em si

    mesma guarda o segredo de seu