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JOSÉ GUILHERME FERRAZ DA COSTA1
INTERNACIONALIZAÇÃO E UNIVERSALIZAÇÃO DA SEGURIDADE SOCIAL
NOVEMBRO/2010
1Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP, professor da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, Procurador da República, atuando como Procurador Regional dos Direitos do Cidadão Substituto.
1
RESUMO
Este artigo versa sobre a busca da universalização dos sistemas de seguridade
social a partir de normas supranacionais, focando-se primordialmente nas
orientações colhidas das pesquisas e documentos jurídicos produzidos pela
Organização Internacional do Trabalho - OIT, visando à difusão de um padrão
mínimo de proteção social em todo o mundo. Destaca então, como orientações
essenciais desse receituário, a necessidade de expansão formal dos sistemas
nacionais de seguridade social, notadamente por meio do estímulo à inserção
de trabalhadores informais nos sistemas públicos e à formalização de
microesquemas comunitários protetivos, bem como a implantação emergencial
de benefícios e serviços assistenciais em favor dos segmentos mais
vulneráveis da população, tais como crianças, idosos, portadores de
deficiência, desempregados e dependentes de falecidos. Enfatiza então a
necessidade de cooperação internacional de caráter financeiro para que seja
possível o resgate imediato de milhares de pessoas em situação de abjeta
pobreza, principalmente no continente africano.
2
SUMÁRIO
1. Introdução …................................................................................................04
2. Construção do conceito moderno de seguridade social................….....06
3. Processo de internacionalização da seguridade social.......................... 12
4. Desafios para universalização da seguridade social...............................16
4.1. Progressiva expansão formal da cobertura dos sistemas de seguridade
social................................... …...................................................................................22
4.2 Implantação emergencial de benefícios assistenciais para segmentos
hipervulneráveis....................................................................….........................24
4.3 Cooperação internacional para implementação de medidas emergenciais
de seguridade social....................................................................................................27
5. Conclusão …................................................................................................31
6. Referências ..................................................................................................34
3
I) INTRODUÇÃO
A comunidade internacional vive um inegável fenômeno de
“humanização” do Direito Internacional, em que se busca incessantemente a
construção de mecanismos jurídicos que garantam efetividade de direitos
humanos consagrados em normas supranacionais.
Nesse sentido, são inegáveis os avanços na praxe jurídica
internacional, notadamente representados pela profícua jurisprudência em
sedimentação a partir das decisões das Cortes Internacionais Regionais da
Europa e das Américas, as quais servem de modelo para Corte similar
recentemente instalada no continente africano.
Contudo, tais avanços se situam primordialmente no campo dos
direitos humanos ditos de “primeira dimensão”, ou seja, em linhas gerais, os
que configuram a esfera de liberdade e individualidade de cada ser humano.
Certamente, ainda há inúmeros desafios para difusão desses
direitos em todo o mundo, mas pensamos estar razoavelmente assentada no
pensamento jurídico mundial dominante a idéia de sua plena exigibilidade
perante cada Estado Nacional, inclusive com intervenção de instâncias
supranacionais.
Já no tocante aos direitos humanos ditos de “segunda dimensão”,
ou de caráter prestacional, quais sejam os que exigem prestações materiais a
serem proporcionadas ao indivíduo para sua concretização, ainda são
evidentemente incipientes e frágeis as iniciativas de caráter jurídico no plano
internacional para sua efetivação em favor de vastas parcelas da população
mundial.
4
Com efeito, o sistema supranacional de tutela de direitos
humanos fundamentais, notadamente no âmbito da atuação jurisdicional das
Cortes Internacionais, ainda não avançou no sentido de viabilizar a
exigibilidade individual daquela espécie de direito humano dito fundamental.
Outrossim, apenas em 2009 a Assembléia Geral das Nações
abriu para assinaturas o Protocolo Adicional ao Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC, permitindo a investigação de
queixas individuais relativas à inobservância daquele Pacto no âmbito interno
de cada país signatário (conforme previra a Resolução A/RES/63/117, de
10/12/2008).
Por outro lado, a doutrina nacional e internacional especializada
no tema não deixa de alertar para a indivisibilidade dos direitos humanos
fundamentais, no sentido de que apenas será possível garantir o pleno respeito
aos aludidos direitos de primeira dimensão em um ambiente em que sejam
atendidas as necessidades humanas básicas, de caráter material, do ser
humano.
Afinal, o completo desenvolvimento das potencialidades do ser
humano pressupõe não apenas um ambiente livre de opressão sobre o espaço
de sua individualidade, mas também que lhe propicie a libertação de suas
necessidades básicas, a partir do que terá ele condições de oferecer à própria
sociedade o produto de seus talentos.
No âmbito dessa “segunda dimensão” de direitos humanos,
parece-nos que a doutrina especializada tem se dedicado, mais recentemente,
ao debate do conceito denominado de “mínimo existencial”, no que se refere a
sua parcela prestacional, ou seja, o conjunto de direitos que garantam a própria
existência física do indivíduo mediante prestações materiais, o qual ensejaria,
conforme evolução de cada ordenamento jurídico nacional, a sua exigibilidade
5
por qualquer indivíduo perante o Estado.
Nessa linha de raciocínio, a comunidade internacional tem dado
cada vez mais destaque, na sua agenda das discussões, à necessidade de se
erradicar a pobreza extrema que assola diversos agrupamentos humanos em
todo o mundo, bem como de se fomentar o desenvolvimento humano
equilibrado numa economia globalizada (vide metas do milênio estabelecidas
pela Assembléia Geral das Nações Unidas).
E tem prevalecido, naquela comunidade, um consenso em torno
da relevância do conceito de seguridade social como instrumental jurídico para
solução do problema da acentuada desigualdade social e da miséria em todo o
mundo.
Portanto, as tendências mais modernas extraídas do pensamento
jurídico internacional apontam para a necessidade de universalização de
sistemas de seguridade social como meio de erradicar a probreza extrema em
escala mundial, o que exigirá, necessariamente, o aperfeiçoamento dos
modelos de cooperação internacional nesse particular.
A seguir, promovemos análise das tendências extraídas de
documentos jurídicos internacionais, notadamente produzidos pela
Organização Internacional do Trabalho – OIT, no sentido de difundir e
aperfeiçoar a implementação de sistemas de seguridade social em todo o
mundo, com intuito de assegurar alguma proteção a todo ser humano em face
da insegurança econômica.
II) A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO MODERNO DE SEGURIDADE SOCIAL
Os ordenamentos jurídicos internos já vêm construindo,
notadamente desde o Século XVII, soluções técnico-jurídicas para garantia da
6
segurança econômica de seus nacionais, quando incapazes de suprir suas
necessidades materiais básicas.
Considerando que a esmagadora maioria dos seres humanos
conta apenas com sua força de trabalho para lhe garantir a libertação de suas
necessidades vitais, resta evidente a imprescindibilidade de ampará-los diante
dos variados riscos de supressão, insuficiência ou inadequação dessa força
laboral.
Trata-se de uma tarefa com crescente grau de complexidade, que
passou a exigir, ao longo dos séculos, a criação e mobilização de estruturas
cada vez mais especializadas e sofisticadas, desde o nível da assistência
familiar ou comunitária, ou da simples caridade para com os desafortunados,
até a criação de organismos de auxílio-mútuo, admitindo-se ainda o recurso à
técnica securitária privatística.
O maior salto evolutivo ocorre quando o Estado deixa a postura
de mero ordenador de relações privadas e passa a assumir o papel de
fornecedor e gestor de prestações de caráter social, dentre as quais
sobressaem-se aquelas que visam garantir a sobrevivência do indivíduo em
situações de adversidade.
Assume portanto o Estado a assistência aos necessitados
(assistência pública ou social), ao lado das tradicionais iniciativas privadas de
caridade, e implanta seu próprio plano de seguro, este adaptado para uma
extrema coletivização e socialização dos riscos individuais tidos como
relevantes para a sociedade (seguro ou previdência social).
O “act for the relief of the poor”, de 1601, na Inglaterra, constitui
um marco jurídico da assistência social no mundo, enquanto as leis alemãs de
seguro doença, seguro de acidentes do trabalho e de seguro de invalidez e
7
velhice, respectivamente de 1883, 1884 e 1889 criam um modelo de seguro
social de base profissionalista com fundamento nas idéias sustentadas pelo
chanceler alemão Otto Von Bismarck .
Nesse contexto, o elemento solidariedade ganha maior
intensidade dentro da rede estatal de proteção, exigindo-se para tanto uma
maior participação de receitas públicas gerais ao lado das tradicionais
quotizações dos interessados, emuladas do modelo securitário privatístico.
Embora inspirado naquele modelo, o seguro social apresenta
diversas peculiaridades que lhe conferem uma feição própria, mitigando-se a
correlação tradicional entre risco, prêmio e benefício, para se admitir situações
em que, mesmo tendo pago pouco ou quase nada, pode o indivíduo obter a
proteção securitária.
Por sua vez, a assistência social busca resgatar indivíduos em
situações de necessidade premente, obviamente sem exigência de
engajamento prévio mediante contribuições, o que também não se coaduna
com as tradicionais categorias do seguro privado.
Tais medidas estatais de proteção revelam-se, no princípio,
limitadas a um segmento restrito de beneficiários, já que o seguro social
assume, de início, uma vinculação a determinadas espécies de relações de
trabalho, sendo que as políticas públicas de assistência social surgem pontuais
e assistemáticas.
Contudo, ao longo das primeiras décadas do século XX, as
técnicas de assistência e seguro sociais evoluíram e experimentaram uma
tendência de fusão em busca da ampliação da cobertura protetiva para
indivíduos de outros segmentos da sociedade, ampliando-se as categorias de
risco cobertos pelos sistemas protetivos, além de se incorporarem métodos
8
preventivos na conformação desses sistemas.
Nessa linha de raciocínio, a assistência social, estruturada como
política pública, passa a suprir as lacunas deixadas pela rede protetiva
previdenciária, justamente em favor daqueles que não dispõem de capacidade
contributiva para se integrar àquela rede securitária.
O social security act editado nos Estados Unidos em 1935 já
reflete um esboço da idéia de seguridade social, posteriormente desenvolvido
pelo Beveridge Report, editado na Inglaterra, em 1942, para inspirar diversas
mudanças legislativas naquele país. Em síntese, passa-se a buscar a
ampliação do âmbito da cobertura da proteção pública, de modo a se difundir
um padrão mínimo de bem-estar para toda a população.
Temos aí o surgimento do embrião do conceito jurídico atual de
seguridade social, sendo que, a despeito das variadas peculiaridades dos
sistemas ditos de “seguridade social” ao redor do mundo - até mesmo quanto
às denominações adotadas na legislação de cada pais - é possível se extrair
da evolução histórica das pertinentes medidas de proteção nos vários países e
nos documentos internacionais editados durante o século XX, subsídios para
identificação do conteúdo genérico daquele conceito.
Corresponderia ele a um conjunto de medidas juridicamente
estruturadas pelo Estado para garantir a segurança econômica do ser humano,
considerado como membro da sociedade organizada, diante dos mais variados
riscos existenciais que possam excluí-lo do saudável convívio social,
comprometendo a sua sobrevivência digna.
Os chamados “riscos sociais” abrangeriam situações de
necessidade (mesmo que não futuras e incertas) consideradas relevantes pela
sociedade para o seu próprio equilíbrio, podendo ser enquadrados nas
9
seguintes categorias básicas (sem prejuízo de ampliações e redefinições ao
longo do tempo): desemprego involuntário, doença, idade avançada, invalidez,
morte do provedor do lar, acidente do trabalho e doenças profissionais,
maternidade e elevação de encargos domésticos.
Esse conceito moderno de seguridade social tem como nota
característica a estruturação integrada de medidas de proteção, de modo a
permitir, ao mesmo tempo, o amparo ao indivíduo em situação de necessidade
e a preparação de seu retorno à vida produtiva, bem como o foco na prevenção
de situações de necessidade.
Nessa linha de raciocínio, a Associação Internacional de
Seguridade Social (organismo internacional que congrega instituições de
seguridade social de todo o mundo) vem propugnando pela adoção de um
modelo dinâmico de Seguridade Social, em que são privilegiadas abordagens
inovadoras e pro-ativas com vistas à redução de riscos e reinserção no
mercado de trabalho.
Como exemplo dessa abordagem, destaca-se a ênfase dada à
técnica de “case management” como política pública de reinserção no mercado
de trabalho, aplicável em conjunto com outras medidas de amparo
previdenciário ou assistencial aos desempregados. Essa concepção
recomenda a atuação estatal pro-ativa, no sentido de inserir o indivíduo
marginalizado ou recolocar o trabalhador desempregado no mercado local,
valendo-se para tanto de uma estrutura de atendimento individualizado com
interfaces em vários segmentos do mundo do trabalho.
Assim, fecha-se o ciclo da reintegração social, a partir do
momento em que o indivíduo, privado de seus meios de subsistência, percebe
benefício financeiro previdenciário ou assistencial apenas enquanto não seja
possível a sua reinserção na força produtiva, admitindo-se inclusive o
10
oferecimento direto de postos de trabalho pelo próprio Estado nos casos de
dificuldades crônicas de emprego.
Deve-se ressaltar que esse conceito abrange não só o
fornecimento de prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos, mas
também utilidades assistenciais em espécie, notadamente os serviços de
saúde pública, partindo-se do pressuposto de que tais serviços constituem a
primeira garantia da segurança material do indivíduo.
Parece-nos que essa evolução conceitual harmoniza-se com a
idéia básica desenvolvida pela “Teoria das Necessidades Humanas” e pela
concepção jurídica do mínimo existencial, antes mencionados, no sentido de
hierarquizar certas necessidades como mais essenciais para o bem estar do
ser humano.
Outrossim, constitui ponto central da estratégia de seguridade
social dinâmica apresentada pela referida Associação a ênfase em políticas
públicas de saúde preventiva, bem como no controle qualitativo sobre os
serviços de cuidados médicos oferecidos pelo Estado, por meio de
instrumentos de medição de desempenho e grau de acessibilidade dos
beneficiários.
Portanto, a evolução das construções jurídicas de proteção social
para os indivíduos em situação de vulnerabilidade assumem tal grau de
complexidade no século XX a ponto de ensejar a superação dos antigos
paradigmas do seguro social e da assistência pública pela nova concepção de
seguridade social.
Abandona-se então a idéia de um mero seguro público para os
trabalhadores, como fora concebido por Bismarck, bem como a idéia do Estado
provedor de medidas pontuais de caridade, para uma abordagem que
11
reconhece o ser humano como titular de um direito à proteção social contra
situações de vulnerabilidade econômica, nas palavras de Beveridge, “do berço
ao túmulo”.
Essa nova visão não implica apenas tratar da cobertura de riscos
de ocorrência de eventos futuros e incertos, mas sim efetivamente amparar o
ser humano em quaisquer situações de necessidade que o acometam,
adotando-se ainda uma diretriz eminentemente preventiva e reintegradora.
Em outras palavras, o indivíduo atingido por eventos que
comprometam sua capacidade de auto-sustento passa a ser sujeito de direitos
em uma rede de amparo que compreende variadas técnicas protetivas,
conforme sua capacidade econômica e sua necessidade, atentando-se para
uma garantia mínima de bem-estar.
Acrescente-se que, ao lado da tendência ao consenso em torno
da indispensabilidade da manutenção de um sistema eminentemente
publicístico de seguridade social, persistem acesas divergências entre
correntes que advogam a limitação extrema da cobertura pública com a
padronização máxima das prestações devidas aos indivíduos (na linha
universalista proposta por Beveridge) e correntes que propugnam a
manutenção daquela cobertura o mais próxima possível do padrão de vida
mantido pelo beneficiário, quando em plena atividade laboral (nos moldes
propostos por Bismarck).
III) O PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DA SEGURIDADE SOCIAL
O aludido conceito moderno de seguridade social não tardou a ser
absorvido pelo direito internacional, com a sua insersão nas declarações e
instrumentos normativos garantidores de direitos humanos, dentre aqueles
reconhecidos como de caráter social, econômico e cultural, a exigirem
12
prestações positivas da coletividade em favor dos indivíduos.
Esse processo de internacionalização da seguridade social, como
instrumental jurídico primordial para garantir a segurança econômica básica
dos indivíduos, passa a ser uma peça-chave na busca pela universalização da
cobertura contra riscos existenciais para toda a humanidade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) estabelece
que todos, como membros da sociedade, têm direito à seguridade social,
mencionando especificamente eventos de doença, deficiência física, viuvez,
idade avançada, desemprego, necessidade de assistência familiar (arts. 22 e
25). Também a Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (1966) reconhece o direito de todos à seguridade social, inclusive
seguro social, bem como a adequadas condições de vida (arts. 9º e 11).
Nesse contexto, o Comitê para monitoramento da implementação
do PIDESC tem exercido relevante papel no sentido de aferir o grau de
cumprimento das diretrizes internacionais acerca da garantia de medidas de
seguridade social, notadamente serviços de saúde pública básica, como se
pode extrair dos comentários gerais do Comitê sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (especialmente os de
nº 12/1999, 14/2000 e 19/2008.)
Contudo, pensamos que os maiores avanços ocorridos no século
XX, nessa seara, decorreram da atuação da OIT, a qual incorporou
efetivamente, desde a sua criação, a defesa do direito à seguridade social
como estratégia complementar e indissociável da luta pelo direito ao trabalho
decente.
Assim, desde a Declaração de Philadelphia em 1944, já fora
reconhecido o papel da OIT no fomento à extensão de medidas de seguridade
13
social para prover renda básica e cuidados médicos abrangentes para todos,
dever inscrito na própria norma constitucional da entidade.
Também no ano de 1944 a Recomendação nº 67 da OIT sobre
segurança de renda já previa que o seguro social deveria oferecer proteção em
situações de contingência para todos os empregados e autônomos juntamente
com seus dependentes. Por sua vez, ainda no mesmo ano, a Recomendação
nº 69 da OIT sobre cuidados médicos previra acesso a tais cuidados por todos
os membros da comunidade, estejam ou não engajados em ocupação
remunerada.
Nessa linha de raciocínio, o advento da Convenção nº 102 da OIT,
em 1952, torna-se um marco extraordinário daquela internacionalização, ao
apresentar-se como padrão mínimo de proteção em seguridade social a ser
observado por todos os ordenamentos jurídicos no mundo.
Referida Convenção, ratificada, até o momento, por 43(quarenta e
três) países, adota uma visão generalizada e igualitária da proteção social, não
mais compartimentando medidas de proteção em relação a categorias de
clientela, bem como propugna a inclusão de um percentual mínimo da
população na rede estatal protetiva.
Desde então, vem sendo adaptados os instrumentos normativos
da OIT à essa nova visão, a qual implica, por exemplo, a igualdade de
tratamento entre os setores urbano e rural.
A partir desses instrumentos jurídicos internacionais desenha-se a
obrigação dos Estados subscritores em promover medidas de seguridade
social, embora ainda num modesto patamar mínimo, estabelecido como forma
de não desestimular adesões pelos países com menores níveis de proteção
social. Também se extrai desses instrumentos o consenso em torno da
14
necessidade de gradativa ampliação de tais níveis de proteção, em busca de
um ainda não definido padrão ideal máximo de proteção.
Enfim, embora se reconheça a existência de um direito genérico à
seguridade social reconhecido no plano jurídico internacional por vários países,
o maior problema para sua efetivação reside justamente no grau de concretude
assumido por tal direito em cada ordenamento jurídico nacional, tema em
relação ao qual a OIT tem dado ênfase à necessidade de cooperação técnica
internacional para implantação de sistemas de seguridade nos países que se
encontram em estágio mais atrasado de desenvolvimento nesse particular.
No âmbito da União Européia, iniciativa mais bem sucedida de
integração entre países no mundo atual, o grau de concretude do direito à
seguridade social revela-se sensivelmente elevado, mesmo porque o Código
Europeu de Seguridade Social foi elaborado já sob a influência da Convenção
nº 102, sendo que também estão sendo idealizados atualmente outros
instrumentos regionais aplicáveis à realidade da África e América Latina2.
Logo, a atuação da OIT, por meio das suas Recomendações e
Convenções (a norma mínima principalmente), exerce um relevante papel de
fomento à criação e remodelação de sistemas nacionais de seguridade social
por parte de seus países membros, caminhando no sentido de se estabelecer
um padrão comum de proteção para todos os povos.
Contudo, constata-se ainda um modesto grau de concretude
alcançado por esse direito nos ordenamentos internos, a ponto de se apurar a
estatística de que 80% da população mundial vive em situação de insegurança
material, das quais 20% vivem em abjeta pobreza (ILO, 2006, p. 07).
2No caso do Brasil, a Convenção nº 102 da OIT foi ratificada apenas em 2009, embora a própria Constituição Federal, desde 1988, já tenha incorporado a mesma diretriz de proteção que animou a aludida Convenção, projetando um sistema de seguridade social apto até mesmo a superar aquele padrão mínimo em vários aspectos, tendo a legislação infraconstitucional avançado em muito na implementação efetiva de tal sistema.
15
IV) DESAFIOS DE UNIVERSALIZAÇÃO DA COBERTURA NOS SISTEMAS DE SEGURIDADE SOCIAL
Nas recentes décadas de 80 e 90, tornou-se comum o discurso
acerca de um suposto esgotamento do modelo de estado intervencionista no
tocante às prestações de seguridade social, pregando-se então a restrição dos
investimentos estatais nessa seara, com reflexos sobre condições de
elegibilidade para diversos benefícios. Para os defensores dessa idéia, a
concorrência na economia globalizada impunha necessariamente a redução de
gastos sociais do Estado.
Contudo, as pesquisas econômicas mais atuais encaminham-se
na direção exatamente oposta àquelas idéias, destacando-se agora o efeito
positivo dos investimentos em seguridade social sobre a produtividade e nível
geral de bem estar da população, revelando-se como uma ferramenta
indispensável para o desenvolvimento humano em uma economia globalizada.
Nesse sentido, apontam a Declaração da 28ª Assembléia Geral
da Associação Internacional de Seguridade Social, editada em Pequim3 (2004),
a partir dos resultados dos estudos deflagrados por aquela Associação na
Iniciativa de Estocolmo (1996), assim como, mais recentemente, as conclusões
do primeiro Fórum Mundial de Seguridade Social4,
3“La seguridad social desempeña un papel esencial al estimular el desarrolo econômico y social, respaldando el crecimiento econômico y fomentando la cohesión social. El desarrollo económico y el desarrollo social deben ir a la par, siendo la seguridad social un factor crucial que permite alcanzarlos. (...) Para reducir a pobreza y lograr la inclusión social, la cobertura debe extenderse a las categorias de la población que no gozan de ninguna protección formal de seguridad social. La seguridad social constituye el núcleo de toda estrategia de reducción de la pobreza, y deben buscarse nuevos enfoques para extender la cobertura. (Declaración de la 28ª Asamblea General de la Asociación Internacional de la Seguridad Social” in Balera, Wagner. Direito Internacional da Seguridade Social, disponível em www.ultimainstancia.uol.com.br, acesso em 21/12/2007).4“Social Security is now increasingly implicated in discussions on how to eliminate povety in the world, whether through the definition of a “global social floor”, as suggested by the International
16
Logo, partindo da premissa de que a seguridade social constitui o
instrumental jurídico mais adequado para a promoção do desenvolvimento
humano em escala mundial, tem trabalhado a OIT para delinear alternativas
metodológicas voltadas à expansão da cobertura dos sistemas ditos de
seguridade social ao redor do mundo, empenhando-se na sua atual “Global
Campaign on Social Security and Coverage for All”.
Esses esforços acabaram se integrando à agenda internacional
pautada pelos objetivos do milênio, os quais relacionam-se diretamente a
medidas de seguridade social, notadamente o que se refere ao combate à
doenças infecciosas e à erradicação da pobreza extrema em todo o mundo5.
A Organização reconhece os diferentes níveis de
desenvolvimento entre os países já industrializados (representados,
principalmente, pelos integrantes da Organização para Cooperação Econômica
e Desenvolvimento - OCDE) e aqueles em fase de desenvolvimento, dando
especial enfoque para aqueles tidos como de baixo nível de renda.
Assim, a expansão da cobertura não necessariamente deverá
seguir os mesmos passos em países com níveis diversos de desenvolvimento,
Labour Organization, or through implementation of the United Nations Millenium Development Goals. This confers a new legitimacy on the activities of social security institutions at the dawn of this 21th century. (...) Social Security is a prerequisite for more equitable and sustainable development. It is a vital element in enabling societies to rise to meet future challenges. In a context of globalization and demographic ageing, it is also an essential factor for the development of more equitable national economies as well as being a vital component of social cohesion and national and international stability.” (Sigg, Roland. Supporting Dynamic social Security. In ISSA. Developments and trends: Supporting Dynamic social Security. Geneva: ISSA, 2007, p. 01e 03).5 “These rights have not been widely invoked during a long period of intensifying concern aborut the persistence of large-scale extreme poverty in the world and the formulation of the Millenium Development Goals. (...) In their reports of the late 1990’s and early 2000s the international agencies have begun to recognise the strengths of comprehensive or universal public social services and benefits partly at the instigation of international organisations such as the ILO and UNICEF. Recognition of the strengths of social security for all including social insurance, may follow. The urgent re-formulation of development policies to reduce poverty may then be welcomed – and may bring tangible success.” (Towsend, Peter. The Right to Social Security and National Development: Lessons from OECD experience for low-income countries. Geneva: ILO, 2007, p. 01)
17
admitindo-se a combinação de mecanismos adequados à realidade de cada
país, embora se almejando uma paulatina uniformização de padrões de
proteção.
Busca-se, então, a universalização progressiva daquela
cobertura, de modo a garantir a segurança econômica básica do indivíduo por
alguma modalidade de proteção, sob variadas técnicas e modalidades,
mediante inciativas de cunho emergencial e permanente.
Deve-se esclarecer, do ponto de vista terminológico, que se
almeja, em princípio, a universalização dos sistemas de seguridade social
como um todo, o que não signfica a universalização imediata e indiscriminada
de todas as prestações neles devidas, já que se admite e se recomenda a
aplicação de medidas protetivas seletivas em favor de segmentos mais
vulneráveis da população.
Portanto, a concepção de sistemas de seguridade social
universalizados de que ora tratamos não implica a universalização de todas as
prestações por eles proprocionadas, pelo menos no atual estágio de
desenvolvimento histórico. A título de exemplo, de acordo com essa
concepção, podem restar aos segmentos mais abastados da população
modelos de proteção do mercado privado, embora monitorados e controlados
por agências governamentais.
Identificamos, entretanto, uma tendência ao reconhecimento das
vantagens coletivas da universalização de determinados tipos de prestações de
seguridade social, as quais seriam devidas em função de grau de necessidade
de cada indivíduo, independentemente de sua capacidade contributiva ou de
seu prévio engajamento num regime de inspiração securitária.
Isto ocorre, com maior relevância, em relação aos cuidados
18
médicos básicos que, em vários sistemas de seguridade, como o brasileiro,
estão disponíveis para acesso igualitário de todos, sem levar em conta
qualquer critério seletivo ligado à capacidade econômica.
Em favor da implementação de benefícios ou serviços universais
costuma-se arguir que essa universalidade tende a implicar custos mais baixos,
pela desnecessidade de manutenção de toda uma estrutura de controle
administrativo, bem como pelo fato de, normalmente, pressupor níveis básicos
e uniformes para todos.
Registre-se, por oportuno, a discussão atual acerca da
possibilidade e conveniência de outras políiticas públicas garantidoras de
prestações universais, como a renda basica de cidadania, cujo conceito restou
introduzido na legislação brasileira pela Lei 10.835/2004, embora de modo
ainda um tanto prospectivo.6
De qualquer forma, não vislumbramos, nas orientações emanadas
da OIT, nenhuma recomendação geral clara no sentido da universalização
desse tipo de benefício em todo o mundo, isto diante dos óbvios entraves
decorrentes da estrutura e conjuntura econômicas de cada Estado Nacional.
Parece-nos que a universalização de determinadas prestações
pressupõe a adoção de avançado padrão protetivo que, a despeito de possível
em diversas nações mais desenvolvidas do globo, ainda se revela muito
distante da realidade de largos contingentes da população mundial,
especialmente no continente africano.
6O 13ª Congresso da Rede Mundial de Renda Básica teve lugar em 2010 no Brasil, pela primeira vez num país da América Latina, muito em razão da posição de vanguarda assumida pelo Estado Brasileiro com a aprovação de lei consagrando o conceito de renda mínima de cidadania, considerado um montante em dinheiro pago a todos os indivíduos de uma comunidade política, de forma incondicional, sem controle de renda ou contrapartidas como a obrigação de trabalhar.
19
O que se pode extrair das orientações consignadas pela OIT nos
documentos que vem produzindo há alguns anos, como diretriz factível na
realidade de hoje, é a necessidade de se proporcionar uma espécie de
cobertura emergencial focalizada nos segmentos mais fragilizados da
população em países assolados pelo empobrecimento crônico.
Nesse sentido, o carro-chefe dessa política emergencial parece-
nos ser a difusão de serviços de saúde básica, como forma de garantir a
condição mais essencial para sobrevivência do ser humano, qual seja a sua
sanidade física para que possa conduzir-se com a mínima independência.
Almeja-se ainda, de acordo com as orientações extraídas dos
citados documentos produzidos pela OIT, num patamar evolutivo subsequente,
garantir um conjunto de prestações financeiras básicas em favor dos
segmentos mais vulneráveis da sociedade, como sejam crianças, idosos,
portadores de deficiência, desempregados involuntários e dependentes de
falecidos.
Tem sido comum, nesse aspecto, o discurso acerca de um quase
dogma de que nem todos os Estados Nacionais disporiam de recursos
financeiros suficientes para proporcionair tais prestações a todos os possíveis
beneficiários, devendo-se respeitar, no particular, as opções políticas de
alocação de recursos adotadas pelas maiorias legislativas.
A doutrina mais recente tem, entretanto, posto em cheque essa
justificativa, quando se trata de prestações ligadas ao mínimo existencial, sob o
argumento de que, em muitos casos, os recursos econômicos do país
permitem sim a manutenção de um padrão protetivo mínimo para os mais
desvalidos, cabendo ao Estado Nacional redistribuir as riquezas internamente
de modo a garantir o referido padrão mínimo.
20
Por outro lado, se, por razões históricas peculiares, o Estado
Nacional realmente não dispõe de meios para promover tal redistribuição, ou
sequer dispõe de uma aparato produtivo minimamente estruturado, caberia à
comunidade internacional fomentar e subsidiar emergencialmente o suprimento
de prestações de seguridade social.
Dessa forma, aplica-se efetivamente a concepção do direito à
seguridade social como direito humano fundamental, que não pode ser
sacrificado pela desigual distribuição da renda mundial, fenômeno que produz
paradoxos como a probreza extrema em certas regiões e exorbitantes fortunas
concentradas nas mãos de poucas famílias ou conglomerados empresariais
sediados normalmente nos países mais abastados.
A seguir, discorreremos sobre algumas tendências que podemos
inferir a partir dos mais recentes estudos e relatórios divulgados pela OIT, por
intermédio de seu Departamento de Seguridade Social, as quais, ao nosso ver,
revelam caminhos viáveis para a universalização da proteção social em tela,
inclusive com o imediato resgate da dignidade de milhões de seres humanos
nas regiões mais empobrecidas do globo.
Extraímos referidas tendências basicamente a partir da análise
conjugada de três documentos relativamente recentes emanados daquela
Organização, quais sejam as publicações “Social Security: A New Consensus”
(contendo relatório apresentado na 89º Assembléia Geral da OIT realizada em
2001); “Social Security for all: Investing in global social and economic
development – A consultation (2006); e “Social Health Protection: An ILO
strategy towards universal access to health care” (2007).
Enfim, o que se extrai do receituário indicado pela OIT é uma
proposta factível de expansão imediata da cobertura em todo o mundo para os
segmentos mais vulneráveis da população mundial, passo seguro e promissor
21
para efetiva universalização das políticas de seguridade social.
4.1) PROGRESSIVA EXPANSÃO FORMAL DA COBERTURA DOS SISTEMAS DE SEGURIDADE SOCIAL
Obviamente, para efetiva expansão da cobertura dos sistemas de
seguridade social, propugna-se pela extensão formal dos segmentos
abrangidos pela proteção estatal em face dos riscos existenciais de maior
relevância social, tendo como base a Norma Mínima consubstanciada na
Convenção nº 102 da OIT.
Tal medida revela-se adequada e factível, no momento, para os
países que já dispõem de sistemas de seguridade social razoavelmente
estruturados no plano jurídico interno, especialmente em países de médio nível
de renda.
Referida Convenção admite entretanto a cobertura parcial de
determinados riscos, justamente visando facilitar a adesão de mais países aos
seus termos. Portanto, requer-se que, no caso de doença e idade avançada, os
indivíduos cobertos compreendam determinadas classes de empregados
constituindo não menos de 50% (cinqüenta por cento) de todos os empregados
do país; determinadas classes da população economicamente ativa,
constituindo não menos do que 20%(vinte por cento) de todos os residentes ou
todos os residentes cujos meios em caso de contingência não excedam
determinados limites.
A mesma Convenção abarca os nove tipos principais de
prestações da seguridade social, a saber: assistência médica; prestações
monetárias de enfermidade; benefícios de desemprego; pensões de velhice;
indenizações em caso de acidente de trabalho e de enfermidade profissional;
benefícios familiares; de maternidade; de invalidez; e pensões de
22
sobreviventes.
Entretanto, para ratificá-la é suficiente aceitar as obrigações
relativas a três desses nove tipos de prestação, com a condição de que entre
esses três figure pelo menos algum dos relativos aos benefícios de
desemprego, de acidentes de trabalho e enfermidades profissionais, de velhice,
de invalidez ou de sobreviventes. Posteriormente à ratificação, qualquer Estado
pode aceitar as obrigações que emanam de outras partes da Convenção.
A Convenção autoriza ainda um certo número de exceções
provisórias em benefício dos Estados cuja economia e cujos recursos médicos
não estejam suficientemente desenvolvidos, tudo visando favorecer adesões e
adequações paulatinas ao esforço de difusão de sistemas de seguridade
social.
Como se pode constatar, a referida Convenção, apesar de
representar um dos mais avançados instrumentos garantidores de direitos
humanos de segunda dimensão, não pretende atingir uma utópica
universalização imediata de sistemas de seguridade social dos países
signatários, mas estabelece um resultado mínimo a ser alcançado no atual
momento histório, propugnando a sua paulatina ampliação.
Vale destacar, entretanto, que, mesmo nos países que já dispõem
de um avançado sistema de seguridade social, o crescimento de um
significativo mercado informal constitui um desafio para a expansão daquela
cobertura, uma vez que os indivíduos que compõem tal mercado normalmente
não usufruem de qualquer cobertura relativa a riscos sociais.
Isto se deve à dificuldade de arrecadação de suas contribuições,
bem como de sua incapacidade para suportar o pagamento de contribuições
para seguro social, além da natural imprevidência que acomete tais
23
trabalhadores, os quais frequentemente não consideram prioridade a garantia
de rendimentos para o futuro.
Nesse contexto, propugna-se pela adoção de mecanismos que
estimulem a inserção dos trabalhadores do mercado informal, por meio da
redução de quotizações de modo a tornar mais atrativa a adesão efetiva ao
seguro social, mesmo que isto implique a restrição de benefícios a serem
concedidos aos segurados. Sugere-se inclusive que tais esquemas adaptados
sejam subsidiados pelo Estado.
Para os países de mais modesto nível de renda, indica-se, como
alternativa mais viável, o estímulo a microesquemas comunitários de seguro,
que remetem aos primórdios das medidas de proteção individual e coletiva nos
países hoje desenvolvidos. Tais microesquemas consistem, normalmente, em
planos locais de pequena escala financeira, voltados a cobertura de grupos de
segurados, mesmo parcial, tendo como prioritária a cobertura de determinados
riscos, como por exemplo, custo de remédios e serviços médicos.
Cada Estado Nacional deveria então estimular e ordenar a
implantação de tais esquemas, por meio de apoio financeiro e regulamentação
legal, como forma de conferir uma mínima cobertura enquanto o sistema
público ainda não tenha suficiente abrangência, almejando-se a futura
integração desses microesquemas num regime nacional a ser gradativamente
estruturado.
4.2) IMPLANTAÇÃO EMERGENCIAL DE BENEFÍCIOS ASSISTENCIAIS PARA SEGMENTOS HIPERVULNERÁVEIS
Como dito, a formatação jurídica de sistemas de seguridade social
nos moldes da Convenção nº 102 da OIT, partindo-se inclusive de
microesquemas de base comunitária, mostra-se a alternativa mais lógica e
24
adequada para estruturação duradoura de medidas estatais de proteção social
para garantia da segurança econômica dos respectivos nacionais.
Todavia, a maturação desses sistemas implica um considerável
espaço de tempo, que será maior conforme o atual estágio de construção das
instituições públicas em cada nação. Sendo assim, enquanto tais sistemas não
se tornam operacionais a ponto de garantir o efetivo amparo aos seus
intergrantes, a sobrevivência de milhares de pessoas pode ser seriamente
comprometida.
Assim, estando em jogo valores ligados a própria dignidade do ser
humano, torna-se imperativa a aplicação de políticas emergenciais de proteção
e resgate da miséria em favor dos mais vulneráveis.
Registre-se que o fenômeno da pobreza extrema, a despeito de já
eliminado nos países considerados desenvolvidos, mantém-se gravíssimo em
inúmeros países do globo, notadamente no continente africano, manifestando-
se em variadas intensidades mesmo em países considerados emergentes,
como Brasil e Índia.
Assim, como medida emergencial para resgate de indivíduos em
condições de pobreza extrema, extraímos dos estudos mais recentes da OIT a
indicação da implantação de benefícios e serviços especificamente
direcionados aos segmentos mais desfavorecidos, conforme testes de
condições de recursos, mediante financiamento por receitas gerais do Estado.
Seria uma desvantagem de tal modalidade de benefícios o fato de
que sua existência pode servir de estímulo à omissão de contribuições para
regimes de seguro social ou mesmo a não realização de poupança individual,
se todos têm a certeza de que terão acesso a um benefício básico quando em
situação de necessidade. Por outro lado, freqüentemente confere-se
25
discricionariedade ao agente público concessor do benefício, permitindo-se que
floresçam fenômenos deletérios de clientelismo, favoritismo e discriminação.
A despeito de tais fatores, tem sido largamente reconhecida a
relevância de tal modalidade de benefícios para grupos mais vulneráveis
específicos como idosos e famílias com crianças em situação de risco. Tais
benefícios podem ainda ser associados a requisitos de freqüência escolar e de
acompanhamento de saúde preventiva, atuando de forma integrada com
políticas educacionais e sanitárias.
Portanto, a alternativa ora discutida funcionaria como amparo
emergencial para alívio das situações absolutamente desumanas de carência
em países com largos contingentes de pessoas em tal situação, alcançando-
se, com isso, um efeito relativamente rápido de resgate de níveis mínimos de
bem-estar ao conjunto da população.
Contudo, faz parte da abordagem integrada proposta pela OIT o
estabelecimento de ligações entre políticas de renda mínima e fomento ao
pleno emprego, por exemplo, por meio do estímulo ao desenvolvimento de
microempresas e de ações diretas para inserção de beneficiários no mercado
de trabalho. Ou seja, para aquele organismo internacional, a política
assistencial deve estar inserida no contexto mais amplo da busca pelo trabalho
decente, acessível a todos.
Nesse ponto, a Associação Internacional de Seguridade Social
tem aprofundado estudos sobre as técnicas de reinserção no mercado de
trabalho por meio de serviços de orientação e recolocação de trabalhadores
(“case manegement”). Cogita-se, por exemplo, acerca da vinculação de
benefícios para desempregados a exigências de busca ativa por recolocação
no mercado, sob pena de cessação de benefícios, ou mesmo pela redução dos
valores de tais benefícios ao longo do tempo, considerando-se até mesmo o
26
fornecimento direto de postos de trabalho pelo Estado, em situações de
retração econômica.
Vale destacar, nesse ponto, o reconhecimento em manifestações
da OIT, do sucesso das políticas de seguridade social adotadas pelo Brasil,
com fulcro em decisões do constituinte de 1988, no sentido de garantir
rendimentos básicos em favor de trabalhadores rurais (aposentadorias não
contributivas), idosos e portadores de deficiência (benefício assistencial de
prestação continuada), bem como, mais recentemente, complementação de
renda em larga escala para famílias em situação de pobreza crônica (bolsa-
família e seus programas precursores e correlatos).
4.3) COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PARA IMPLEMENTAÇÃO DE MEDIDAS EMERGENCIAIS DE SEGURIDADE SOCIAL
Como dito, embora as políticas de estruturação, remodelação e
adaptação de esquemas contributivos para cobertura de riscos existenciais
básicos do indivíduo representem o caminho mais viável para o
estabelecimento de sistemas auto-sustentáveis de seguridade social, mostram-
se essenciais, no atual momento histórico, políticas emergenciais de
atendimento aos segmentos mais fragilizados da população nas nações mais
empobrecidas do globo.
Ocorre que, embora em países de grau médio de renda, numa
escala comparativa internacional, seja possível, em tese, a implantação de
mecanismos redistributivos que possam garantir referido atendimento
emergencial aos seus nacionais, parece-nos evidente a existência de países do
globo que sequer dispõem de instituições suficientemente amadurecidas para
levar adiante essa tarefa, ou mesmo de sistemas produtivos suficientemente
estruturados para suportar tal ônus.
27
Assim, um dos pontos de reflexão mais intensa e atual dos
organismos internacionais voltados ao estudo da dimensão social da
globalização econômica (entre os quais o Banco Mundial) tem sido a
necessidade de transferências de auxílios financeiros, sob variadas formas,
para países em situação emergencial, visando o alívio imediato de
manifestações crônicas de pobreza extrema.
Aliás, esse tipo de transferência já tem sido tradicionalmente
realizada em casos de desastres naturais e mesmo subsídios a sistemas de
saúde locais em crise, sendo que, mais recentemente, têm-se propugnado por
reduções nos níveis da dívida externa de países pobres como forma de
cooperação internacional para o desenvolvimento (“debt relief”).
Contudo, tais medidas revelam-se ainda assistemáticas e de
pouco impacto, impondo-se agora a concatenação destas com políticas de
seguridade social planejadas e focadas na redução duradora da pobreza, a
serem implantadas sob a supervisão de organismos internacionais, cogitando-
se até mesmo acerca da criação de um Fundo Mundial de Solidariedade
(conforme encorajado pela Assembléia Geral das Nações Unidas no ano de
2000).
Nesse sentido, as estimativas da OIT revelam que apenas uma
pequena fração da riqueza total produzida no mundo seria suficiente para
retirar a maioria das pessoas atualmente nas mais severas situações de
indigência nos países mais pobres do mundo, o que representaria a dimensão
maior da idéia de solidariedade imanente ao conceito emergente de seguridade
social internacional.
Merece destaque ainda a menção, nos referidos estudos,
possibilidade de instituição de mecanismos de tributação internacional voltados
28
a empresas transnacionais que atualmente elevam seus lucros aproveitando-se
da redução de custos sociais em países em desenvolvimento, como forma de
repartir de modo mais equânime a responsabilidade pelo resgate do nível de
proteção social nesses países.
Parece-nos que, nessas possibilidades de financiamento
internacional, reside com maior clareza o embrião de uma possível e futura
estratégia global unificada de seguridade social sob a efetiva responsabilidade
da comunidade internacional, como patamar evolutivo subseqüente para o
conceito de seguridade social internacional acima mencionado7.
Com efeito, a imposição de um catálogo de direitos mínimos a
serem garantidos em prol da segurança econômica dos indivíduos, por meio da
Convenção nº 102 da OIT e de outros instrumentos normativos internacionais
correlatos serve, evidentemente, como relevantíssima forma de estimular a
auto-estruturação de sistemas nacionais aptos a garantir tais direitos, tudo
favorecendo a futura manutenção de um padrão protetivo global.
Com base nessa perspectiva, a evolução do conceito de
seguridade social assume uma nova dimensão, fundada na solidariedade entre
as nações, propugnando-se por formas de cooperação técnica para
uniformização e intercâmbio entre regimes e também por efetiva ajuda
financeira internacional para implantação de medidas emergenciais de
seguridade social em países de mais modesto nível de desenvolvimento sócio-
econômico. 7 “International taxation and not just national taxation to finance social security in developing countries is therefore at issue (...) the current influence of the TNCs and big powers over local economies and populations in the global market has to be matched by international tax-revenue and employer contributions raised for particular groups in those countries. Sources of international revenue will have to augment the meagre resources form national revenues available to teh governments of developing countries in today’s global market. International social security is coming to stay.” (Towsend, Peter. The Right to Social Security and National Development: Lessons from OECD experience for low-income countries. Geneva: ILO, 2007, p. IX)
29
Essa nova conformação parte da compreensão da
responsabilidade da comunidade internacional pela manutenção de um padrão
mundial de proteção social a ser implementado, fomentado e garantido por
organismos supranacionais. Dessa forma, implementa-se concretamente a
concepção do direito à seguridade social como direito humano fundamental,
que não pode ser sacrificado em razão da desigual distribuição de riqueza
entre as nações.
Tal perspectiva de garantia de efetividade para o direito a
seguridade social no plano internacional torna-se mais visível, a nosso ver, com
a recente implementação de inovadores instrumentos para o financiamento
internacional de medidas emergenciais de saúde pública em favor de
segmentos mais vulneráveis da população mundial.
Com efeito, são exemplos marcantes desse novo modelo de
estratégia global de seguridade social a “international financial facility for
imunization” ligada à Aliança Global para vacinação (GAVI), a UNATAID e o
Fundo Global de Combate à Malária, Aids e Tuberculose, instituídos em anos
recentes para financiar medidas específicas para controle dessas doenças.
Referidos mecanismos financeiros constituem uma nova
arquitetura jurídica internacional para dar suporte financeiro efetivo a medidas
de seguridade social, incialmente ligadas a políticas públicas de saúde. Tal
arquitetura contempla inclusive a emissão de títulos no mercado, contendo
obrigações duradouras dos países doadores, fato que indica a superação da
idéia tradicional de aportes esporádicos e assistemáticos, muito mais ligada a
uma concepção caritativa do que de garantia efetiva de direitos subjetivos.
Parece-nos plausível que, sendo possível a hierarquização de
necessidades humanas fundamentais, certamente dentre as mais essenciais e
30
urgentes esteja a própria higidez da saúde individual, pressuposto primordial da
sobrevivência, bem como elemento-chave de manutenção da força produtiva.
Basta que se tome como exemplo o fato de que doenças
infecciosas epidêmicas em larga escala, além de perturbarem a capacidade do
indivíduo para garantir seu auto-sustento, pode comprometer o desempenho de
determinado segmento econômico em razão da debilidade de sua mão-de-
obra, sendo que não podem, em regra, ser autonomamente combatidas por
cada vítima, uma vez que exige conhecimento técnico e produtos específicos
para sua prevenção e tratamento.
Seria esse então um primeiro patamar evolutivo para a
cooperação internacional de caráter financeiro para implementação de
sistemas de seguridade social, sem prejuízo de sua posterior ampliação para
abranger outras políticas públicas de expansão desses sistemas.
Ressalte-se que o Brasil tem sido um dos maiores defensores das
iniciativas de criação de mecanismos de financiamento para auxílio a países
em desenvolvimento, notadamente no tocante a medidas de saúde pública,
almejando inclusive posição de liderança internacional nessa seara.8
V) CONCLUSÃO
Impõe-se como grande desafio do direito internacional no
alvorecer deste Século XXI a construção de mecanismos jurídicos que
garantam a efetividade de direitos humanos fundamentais, inclusive de caráter
social, econômico e cultural, mostrando-se urgente a tarefa de difundir um
8“In November 2006, Brazil, Chile, France, Norway and the UK, formally launched UNITAID; a new financial mechanism to purchase medicines for developing countries, funded through a solidarity tax on airline tickets.245 The UNITAID constitution also foresees multi-year predictable budgetary contributions, without specifying how these would be calculated. Also in 2006, the original IFF proposal mentioned above led to the creation of the International Finance Facility for Immunisation (IFFIm), with support from Brazil, France, Italy, Norway, South Africa, Spain, Sweden and the UK” (Ooms, 2008, p. 230/231).
31
padrão mínimo de sobrevivência digna a todos os seres humanos do globo.
Da experiência internacional, notadamente dos países que
alcançaram níveis mais elevados de desenvolvimento, extrai-se que a idéia de
seguridade social como instrumental jurídico de garantia da segurança
econômica dos indivíduos é a mais eficaz forma de mitigação e erradicação da
pobreza extrema nas sociedades modernas.
Partindo-se dessa constatação, o processo de internacionalização
dessa concepção sofre notável impulso com a inserção em declarações e
normas internacionais do reconhecimento do direito humano à seguridade
social e do correlato dever de cada Estado Nacional de estruturar os
respectivos sistemas garantidores.
Nessa seara, a OIT assumiu a dianteira das pesquisas e medidas
de fomento à implantação e uniformização de sistemas de seguridade social
nacionais, visando à difusão de estratégias para expansão das respectivas
coberturas em busca da universalização da proteção social.
Persiste entretanto um alarmante quadro de insegurança
econômica para milhões de seres humanos nos países ainda considerados em
desenvolvimento, notadamente no continente africano, onde se manifestam, ao
nosso ver, os mais graves bolsões de pobreza e degradação humana do globo.
Extraímos então dos aludidos estudos patrocinados e difundidos
pela OIT tendências a serem seguidas para minimizar e reverter o aludido
quadro de miséria humana, por meio de medidas de caráter emergencial, a
serem implementadas em três graus de urgência.
A formalização e expansão paulatina de sistemas públicos que
contemplem a cobertura dos riscos existenciais básicos, nos moldes da
32
Convenção 102 da OIT pode ser favorecida a partir da criação de esquemas
adaptados para atrair os que laboram na informalidade, assim como do
reconhecimento e apoio estatal para microesquemas comunitários voltados à
cobertura de certos riscos existenciais, como sendo os cuidados médicos, a
invalidez e a morte do provedor do lar.
Tais esquemas serviriam de plataforma para futura estruturação
de sistemas públicos protetivos mais amplos, a cargo de cada Estado Nacional.
Por outro lado, revela-se imperiosa a garantia imediata do acesso
a serviços de cuidados médicos básicos e a políticas de transferência de renda
para resgate imediato de populações em situação de pobreza extrema,
notadamente para os segmentos mais vulneráveis, quais seja crianças, idosos,
portadores de deficiência física, desempregados involuntários e dependentes
de falecidos.
Outrossim, o fornecimento de tais prestações emergenciais,
sejam in natura ou pecuniárias, em escala global exigirá o estabelecimento de
uma rede de cooperação internacional visando ao seu financiamento, para o
que já se delineia uma perspectiva de criação e incremento de fundos globais
especificamente vocacionados a apoiar políticas de seguridade social.
Nesse ponto, o melhor exemplo extraído da experiência
internacional pode ser visto no Fundo de Combate à Malária, Aids e
Tuberculose, o qual deve ser encarado como protótipo de uma arquitetura
jurídica mais ampla para financiamento dessas medidas a longo prazo, a qual
poderia abranger não apenas a emissão de títulos específicos no mercado
financeiro internacional, mas também a implantação de efetivos mecanismos
de tributação internacional (a exemplo do que ocorre com a IFFI e a UNATAID).
Por esse enfoque internacionalizado, vislumbra-se um panorama
33
promissor em favor da universalização da idéia de seguridade social, como
instrumento implementador do princípio da solidariedade para garantia do
mínimo de seguraça econômica necessário à preservação da dignidade de
todos os seres humanos.
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