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INTERFACES DA EDUCAÇÃO 101 Interfaces da Educ., Paranaíba, v.6, n.18, p.101-123, 2015. ISSN2177-7691 PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E A RELAÇÃO ENTRE INSTRUMENTO E SIGNO NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL: UMA DISCUSSÃO METODOLÓGICA CULTURAL-HISTORICAL PSYCHOLOGY AND THE RELATIONSHIP BETWEEN INSTRUMENT AND SIGN IN CHILD DEVELOPMENT: A METHODOLOGICAL DISCUSSION Eduardo Moura Costa 1 Silvana Calvo Tuleski 2 Resumo O presente ensaio tem como objetivo retomar um conceito central para a psicologia desenvolvimentista iniciada por Vigotski e seus colaboradores, que é unidade entre instrumento e signo no desenvolvimento infantil. Pretende-se demonstrar o caráter revolucionário de tal abordagem metodológica do estudo das funções psicológicas superiores, ao cotejá-la com as visões empiristas (mecanicistas) e descritivas em psicologia. Para tanto, evidencia-se que a abordagem teórico-metodológica da Psicologia Histórico-Cultural pressupõe haver tanto a mediação dos outros como da própria realidade para que se desenvolva uma relação complexa entre os signos auxiliares e os estímulos/objetos que eles representam. Nesse sentido, é por meio da internalização da cultura que se desenvolve o pensamento e a personalidade da criança. Conclui-se, por fim, demonstrando o papel central que a educação escolar tem no máximo desenvolvimento psíquico dos indivíduos. Palavras-chave: Psicologia Histórico-Cultural. Instrumento. Signo. Desenvolvimento. Abstract This essay has as objective to retake a central concept for developmental psychology initiated by Vygotsky and his collaborators, which is the unity between instrument and sign in child development. It is intended to demonstrate the revolutionary character of this methodological approach to the study of the superior psychological functions, when compared it with the empiricist (mechanics) and descriptive views in psychology. So, it is evident that the theoretical and methodological approach of Historical-Cultural Psychology assumes that there are both mediations: of others as their own reality, in order to develop a complex relationship between the signs and auxiliary stimuli / objects they represent. In this sense is through the internalization of the culture that is developed the thinking and the child's personality. Therefore it is demonstrated the central role that the education has in the highest psychical development of individuals. Keywords: Cultural-Historical Psychology. Instrument. Sign. Development. 1 Psicólogo (Unesp/Assis), Mestre em Psicologia (UEM) e Doutorando em Psicologia (Unesp/Assis).Assis/SP. E- mail: [email protected]. 2 Doutora em Educação; Professora Associada da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: [email protected]

INTERFACES DA EDUCAÇÃO 101

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INTERFACES DA EDUCAÇÃO 101

Interfaces da Educ., Paranaíba, v.6, n.18, p.101-123, 2015.

ISSN2177-7691

PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E A RELAÇÃO ENTRE INSTRUMENTO

E SIGNO NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL: UMA DISCUSSÃO

METODOLÓGICA

CULTURAL-HISTORICAL PSYCHOLOGY AND THE RELATIONSHIP BETWEEN

INSTRUMENT AND SIGN IN CHILD DEVELOPMENT: A METHODOLOGICAL

DISCUSSION

Eduardo Moura Costa1

Silvana Calvo Tuleski2

Resumo O presente ensaio tem como objetivo retomar um conceito central para a psicologia

desenvolvimentista iniciada por Vigotski e seus colaboradores, que é unidade entre instrumento

e signo no desenvolvimento infantil. Pretende-se demonstrar o caráter revolucionário de tal

abordagem metodológica do estudo das funções psicológicas superiores, ao cotejá-la com as

visões empiristas (mecanicistas) e descritivas em psicologia. Para tanto, evidencia-se que a

abordagem teórico-metodológica da Psicologia Histórico-Cultural pressupõe haver tanto a

mediação dos outros como da própria realidade para que se desenvolva uma relação complexa

entre os signos auxiliares e os estímulos/objetos que eles representam. Nesse sentido, é por

meio da internalização da cultura que se desenvolve o pensamento e a personalidade da criança.

Conclui-se, por fim, demonstrando o papel central que a educação escolar tem no máximo

desenvolvimento psíquico dos indivíduos.

Palavras-chave: Psicologia Histórico-Cultural. Instrumento. Signo. Desenvolvimento.

Abstract

This essay has as objective to retake a central concept for developmental psychology initiated

by Vygotsky and his collaborators, which is the unity between instrument and sign in child

development. It is intended to demonstrate the revolutionary character of this methodological

approach to the study of the superior psychological functions, when compared it with the

empiricist (mechanics) and descriptive views in psychology. So, it is evident that the theoretical

and methodological approach of Historical-Cultural Psychology assumes that there are both

mediations: of others as their own reality, in order to develop a complex relationship between

the signs and auxiliary stimuli / objects they represent. In this sense is through the

internalization of the culture that is developed the thinking and the child's personality. Therefore

it is demonstrated the central role that the education has in the highest psychical development

of individuals.

Keywords: Cultural-Historical Psychology. Instrument. Sign. Development.

1 Psicólogo (Unesp/Assis), Mestre em Psicologia (UEM) e Doutorando em Psicologia (Unesp/Assis).Assis/SP. E-

mail: [email protected]. 2 Doutora em Educação; Professora Associada da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail:

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1. INTRODUÇÃO

Pode-se dizer que foi a unidade entre os instrumentos concretos e os instrumentos

abstratos (signos) que levou ao surgimento do gênero humano. Em contraposição as concepções

biologizantes, Leontiev (1978, p.261) afirma que “o homem é um ser de natureza social, que

tudo o que tem de humano nele provém da sua vida em sociedade, no seio da cultura criada

pela humanidade”. Nesse sentido, para o autor, foi com o advento da fabricação dos

instrumentos e das formas embrionárias de trabalho que o desenvolvimento biológico passou a

depender do desenvolvimento da vida material e cultural. A partir do aparecimento do Homo

sapiens apenas as leis sócio-históricas passaram a interferir no desenvolvimento do homem.

Este princípio norteou a psicologia que se desenvolveu após a Revolução de Outubro de

1917 na URSS3. Esta “nova psicologia” se desenvolveu intensamente durante a década de 1920

e início de 1930. O objetivo era criar uma psicologia amparada no socialismo científico

desenvolvido por Marx e Engels, que superasse a cisão entre matéria e espírito, isto é, corpo e

mente e realizar a síntese (TULESKI, 2008). Contudo, como aponta um dos principais

articuladores dessa teoria psicológica, Lev Semenovitch Vigotski (1896-1934), a construção da

psicologia marxista seria uma tarefa histórica. O autor formulou a questão da seguinte maneira:

“Nossa ciência se tornará marxista na medida em que se tornará verdadeira, científica; e é

precisamente à sua transformação em verdadeira, e não a coordená-la com a teoria de Marx,

que nos dedicaremos”. (VIGOTSKI, 2004, p.415).

Conforme Veresov (2010), as criações metodológicas de Vigotski ou permanecem

desconhecidas na psicologia hegemônica contemporânea ou foram mal compreendidas. Sua

metodologia criada para analisar o desenvolvimento histórico-cultural do psiquismo humano

procurou superar a tradição empirista que se baseava na análise quantitativa, descritiva e

naturalizante dos fenômenos. Como exemplo das principais concepções teórico-metodológicas

que foram mal compreendidas, simplificadas ou fragmentadas (descontextualizadas do sistema

conceitual), tem-se a lei genética geral do desenvolvimento cultural e o conceito de zona de

desenvolvimento proximal.

Para Veresov (2010), existiriam duas razões para estudarmos o legado de Vigotski: uma

histórica, e a segunda, metodológica.

3 A União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS) foi a maior experiência socialista da história, ela teve

início com a Revolução de Outubro de 1917 e terminou em 1991.

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Do ponto de vista do legado histórico, seria importante estudar uma alternativa a crise

da psicologia que, segundo Dafermos (2014), continua ainda hoje. Para o autor, a crise estaria

relacionada com um exame epistemológico do estatuto de cientificidade da psicologia, bem

como em relação aos aspectos das várias formas de psicologia aplicada. Vigotski (2004), no

final da década de 1920 apontou que o centro da crise seria a não existência de uma psicologia

geral. Este problema, segundo o autor, estava sendo colocado sobretudo pela psicologia

aplicada e não pelos psicólogos teóricos. As principais tendências de estudo dos fenômenos

psicológicos eram a psicologia do homem normal adulto (psicologia teórica), psicologia

psicopatológica e a psicologia animal. Vigotski (2004) diz que cada um desses campos

desempenha o papel de psicologia geral, justamente por falta de uma psicologia genuinamente

geral. O núcleo dessa discordância entre as várias teorias ocorreria porque cada área possuía

um objeto distinto.

De acordo com Dafermos (2014), a situação de crise da psicologia era notada por vários

autores, tais como William James (1842-1910)4, Hans Driesch (1867-1941)5, Nikolai Lange

(1858-1921)6, dentre outros. Portanto, esta constatação não era nova, nem Vigotski foi o

primeiro a diagnosticá-la. Entretanto, a originalidade de Vigotski foi a criação de uma proposta

histórico-cultural como alternativa metodológica para a crise. O autor buscou elaborar,

juntamente com seus colaboradores, uma abordagem dos fenômenos psicológicos que captasse

as formas mais desenvolvidas das funções psicológicas humanas, pautado principalmente no

método materialista dialético, e não no método quantitativo e descritivo.

Já em relação ao legado metodológico, desenvolvido para contrapor a crise instalada na

Psicologia, tem-se: 1) crítica ao empirismo e ao método descritivo; e, 2) desenvolvimento de

métodos de pesquisa analíticos e qualitativos baseados no materialismo histórico.

Em relação ao primeiro legado, Vigotski (2004) criticou o empirismo por este levar a

uma situação em que se perdia a sustentação teórica e também a um ecletismo que assimilava

elementos distintos. Como aponta Veresov (2010), para Vigotski, a descrição de modelos e

princípios explicativos, baseados em métodos empíricos de investigação, deveriam ser

interpretados por sistemas conceituais gerais.

4 William James nasceu nos Estados Unidos e foi um dos fundadores da psicologia moderna e um importante

filósofo ligado ao pragmatismo. 5 Hans Driesch foi um biólogo e filósofo alemão, com trabalhos em embriologia. Em 1925 ele publicou um livro

dedicado a crise na psicologia. 6 Nikolai Lange trabalhou no laboratório de Wundt, que é considerado o pai da psicologia científica moderna, e

posteriormente organizou um laboratório de psicologia experimental em Odessa, na Rússia.

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Já em relação ao segundo legado, Veresov (2010) aponta que para Vigotski a teoria

psicológica deveria procurar formas de explicar o desenvolvimento (incluindo suas fontes, leis,

condições, forças moventes, contradições e mecanismos subjacentes) mais do que meramente

descrever seus estágios. O desenvolvimento é sempre um processo complexo e contraditório,

mas, antes de tudo, é um processo de mudança qualitativa. Essa metodologia superaria aquela

puramente quantitativa, que parte da ideia de que são os fatos empíricos que falam por si

mesmos, não necessitando de uma teoria geral para explicá-los. Nesse sentido, o estudo da

metodologia de Vigotski é importante porque traz uma leitura metodológica baseada na

hermenêutica (métodos que enfatizam o entendimento da subjetividade humana), a qual é

negligenciada pelas teorias quantitativas.

Conforme Teo (2009), a psicologia hegemônica negligencia os problemas básicos do

campo, que são as discussões filosóficas sobre a ontologia, epistemologia e seus impactos na

metodologia. O autor deixa claro que a psicologia baseada no método quantitativo experimental

somente consegue capturar uma fração do fenômeno. A vivência subjetiva e as realidades

humanas e sociais cotidianas não poderiam ser capturadas por um experimento. Vigotski (2004)

observa esse mesmo problema na seguinte passagem: “Se em psicologia o fenômeno e a

existência fossem o mesmo, cada homem seria psicólogo-cientista e a ciência seria impossível,

só seria possível o registro. Mas, evidentemente, uma coisa é viver, sentir, e outra estudar, como

diz Pávlov”. (VIGOTSKI, 2004, p. 383-384).

Por outro lado, Teo (2009) aponta que a completa negação do método quantitativo e a

utilização de um método supostamente “qualitativo” pode levar a uma visão igualmente

limitada dos fenômenos. O problema para o autor não é o uso dos métodos qualitativos, mas

sim dar prioridade para métodos científico-naturais sem olhar para o “objeto”. Portanto, tanto

o método quantitativo quanto o qualitativo podem deixar de lado a importância emancipatória,

que, segundo Teo (2009), seria o núcleo de muitas psicologias críticas. Em suas palavras:

“Relevância emancipatória significa que o estudo deve contribuir para mudar uma situação

social opressiva” (TEO, 2009, p. 45)7. Destarte, discutir a metodologia da Psicologia Histórico-

Cultural implica uma atitude ética, pois a sua utilização descontextualizada e fragmentada pode

levar a uma práxis conservadora e não emancipatória.

Complementando essa questão, Martins (2015) aponta que a epistemologia materialista

histórico-dialética seria a mais adequada para a atividade científica. A metodologia qualitativa

7 Todas as traduções são de nossa responsabilidade.

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parte da lógica formal, excludente, diferentemente da lógica dialética, que não exclui, mas

incorpora por superação, chegando a “identidade dos contrários”. Além disso, tal metodologia

qualitativa fetichiza a realidade empírica imediata, perdendo de vista os fundamentos essenciais

da realidade humana. Para o materialismo histórico-dialético, a essência da realidade não está

explicitada imediatamente, mas necessita ser compreendida pelo pensamento teórico, abstrato,

pela apreensão do fenômeno em suas múltiplas mediações histórico-concretas. Em suma, a

metodologia qualitativa, por tratar o conhecimento como algo imediatamente visível, pode

correr o risco de manter a ordem social alienante, já a ontologia marxiana possui como

perspectiva ético-política conhecer a realidade para poder transformá-la.

Partindo da necessidade de estudos que incidam sobre as elaborações metodológicas, o

presente ensaio tem como objetivo lançar luz sobre uma das invenções metodológicas centrais

da Psicologia Histórico-Cultural, que é a relação entre instrumento e signo no desenvolvimento

infantil. Antes, porém, iremos discutir algumas premissas teórico-metodológicas gerais

necessárias ao entendimento da relação entre instrumento e signo no desenvolvimento infantil.

2. O MÉTODO GENÉTICO EXPERIMENTAL

A discussão do método deve ter início pela concepção ontológica que subjaz

determinada teoria do conhecimento. Mesmo que não esteja de forma explícita, toda teoria

possui uma concepção de realidade, de indivíduo e de subjetividade. Nesse caminho, alguns

autores têm sistematizado os fundamentos ontológicos de Vigotski (CARMO; JIMENEZ, 2013;

MARTINS, 1994; MARTINS, 2008; TULESKI, 2008). Todos esses autores concordam que

Vigotski sustentou sua teoria sobre as bases do materialismo histórico e dialético.

Vigotski (2004, p. 392) lança a tese de que "nenhum sistema filosófico pode dominar

diretamente a psicologia como ciência sem a ajuda da metodologia, ou seja, sem criar uma

ciência geral". A contribuição do marxismo para a psicologia seria a criação de uma psicologia

geral dependente da dialética geral. O autor salienta que aplicar o marxismo em outras ciências

seria impossível. Portanto, seria necessária a criação de uma teoria intermediária, "do

materialismo histórico, que esclareça o valor concreto das leis abstratas do materialismo

dialético para o grupo de fenômenos de que se ocupa" (VIGOTSKI, 2004, p. 392). Essa teoria

intermediária deveria ser capaz de “desvendar a essência de um grupo de fenômenos, suas

características quantitativas e qualitativas, sua causalidade, criar categorias e conceitos que lhes

são próprios, criar o seu O capital” (VIGOTSKI, 2004, p. 393). Ainda, deveria seguir o método

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materialista histórico para elucidar os fenômenos psicológicos e não usar o marxismo como

solução para a questão. O problema principal para a criação de uma psicologia geral, seria antes

de tudo, uma questão de método. Isto porque os fenômenos analisados por Marx não são os

mesmos de Vigotski, embora relacionados.

Vigotski superou tanto o subjetivismo quanto o sociologismo pela operacionalização do

método de Marx e não na sua aplicação direta. Pasqualini e Martins (2015) destacam que

Vigotski procurou captar a essencialidade dos fenômenos psicológicos como unidade dinâmica

entre indivíduo e sociedade em sua processualidade. De acordo com as autoras, um dos

princípios imprescindíveis para compreender a epistemologia materialista histórico-dialética

utilizada pelo psicólogo soviético é a dialética entre singular-particular-universal. Tal categoria

remete ao filósofo marxista húngaro Georgy Lukács. Essa categoria serve para pensar os

fenômenos em sua processualidade, para além da aparência imediata em direção à

essencialidade concreta. Na palavra das autoras:

Para que se possa apreender o indivíduo em sua concretude, como base para a atuação

profissional do psicólogo, é preciso enxergar para além da singularidade imediata,

captando as determinações particulares e universais que condicionam a condição

particular do indivíduo, analisando como sua singularidade se constrói na relação com

sua genericidade. Isso é condição para uma atuação profissional crítica que tenha

como horizonte a humanização do homem. (PASQUALINI; MARTINS, 2015, p.

369).

Nagel (2015) destaca que o método marxista não pode ser pensado como uma sequência

lógica de regras e leis da dialética ou da história. Diferentemente da perspectiva pós-moderna,

que diz que o conhecimento é um produto individual e que não haveria formas de se conhecer

a realidade para transformá-la, a autora destaca que o método materialista histórico está

intimamente conectado às práticas sociais, ao seu fundamento, o trabalho. Portanto, antes de

aplicar certas regras epistemológicas, devemos primeiro nos perguntar o que a realidade é para

essa epistemologia. Para Marx, não existiria uma essência humana a-histórica, isto é, sua

essência seria totalmente relacionada com as relações sociais. A transformação da natureza pelo

homem ocorreu de forma livre e, nesse sentido, fez gerar novas necessidades, faculdades e

capacidades. Ao sanar as necessidades básicas de sobrevivência o homem pode gerar

necessidades abstratas, que são aquelas advindas da linguagem e das relações sociais entre os

seres humanos, que geraram a cultura. Nesse sentido, segundo a autora, o conhecimento para

Marx não desloca da sua reprodução social, e todo pensamento está conectado às práticas

humanas, que são essencialmente contraditórias e nunca individuais.

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Nesse sentido, Vigotski parte de uma ontologia materialista ao atestar a centralidade do

trabalho como o complexo que deu origem ao homem como ser social (CARMO; JIMENEZ,

2013). De acordo com Carmo e Jimenez (2013); Vigotski enfatiza que o fundamental da

orientação histórico-cultural do desenvolvimento é a origem social da mente. Portanto,

reiterando a relação dialética entre a evolução biológica e histórica do homem, demarcada pela

necessidade de transformação da natureza para a reprodução de sua existência, o autor supera

tanto as concepções idealistas quanto as materialistas mecanicistas.

Carmo e Jimenez (2013) mencionam que este autor estabelece uma dependência

ontológica do comportamento em relação a modificação da natureza (trabalho), da mesma

forma que, ao longo de sua obra, o fez com as categorias linguagem e pensamento, em relação

à categoria consciência. As autoras afirmam que Vigotski confere ao trabalho um papel central

no desenvolvimento tanto da espécie quanto do indivíduo. Ressalvam que, apesar de isso não

estar explícito em sua obra, Vigotski deixa registrada sua compreensão do trabalho como

fundante do homem enquanto ser social. Porém, embora esta categoria seja central para explicar

o processo de humanização na filogênese, interessava a ele compreender como a criança se

desenvolve. Nesse aspecto, tal categoria fica como pano de fundo e outra categoria se faz

presente para demonstrar os nexos entre elas e as diversas formas de atividade infantil, uma vez

que o bebê e as crianças pequenas em diversas sociedades não “trabalham” no significado lato

do termo. A categoria em questão é a atividade pois esta seria intermediária, própria da

Psicologia, para a explicação da constituição do psiquismo desde o nascimento8.

Delari Júnior (2015) destaca que é possível extrair quatro categorias metodológicas

(meta-teóricas) gerais em Vigotski. Elas são as seguintes: 1) O objeto da Psicologia Histórico-

Cultural seria a consciência, as funções psicológicas superiores, a personalidade, e o homem

integral, como pessoa. 2) O princípio explicativo para analisar o objeto de análise é o das

“relações sociais”. As relações sociais não seriam algo externo ao homem, nem são um simples

pano de fundo, mas são a fonte do seu desenvolvimento. 3) A unidade de análise que articula o

objeto e o princípio explicativo é o “significado” como “unidade pensamento-fala” e a

“vivência” como “unidade personalidade-meio”. 4) Por último, o modelo de proceder à análise

desses elementos dentro de um método científico coerente é a gênese histórica do seu objeto de

análise. Sendo mais específico, é a “história das lutas da humanidade”.

8 Para um aprofundamento dessa questão, ver Leontiev (2004).

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Ao discutir sobre o significado da crise da psicologia, Vigotski (2004) deixa evidente

muitas das suas posições epistemológicas. Um dos problemas da psicologia enquanto ciência

seria que seu objeto de estudo, a consciência, não poderia ser acessada de forma imediata. A

psicologia deveria ir além da experiência mental direta: “A necessidade de sair de uma vez por

todas dos limites da experiência direta é um assunto de vida ou morte para ela”. (VIGOTSKI,

2004, p. 283).

Vigotski (2004) afirma que os dados empíricos devem ser interpretados à luz de

concepções teóricas gerais. Sobre essa questão, o autor afirma que ao utilizar os métodos das

ciências naturais, a psicologia caiu na armadilha de investigar apenas o que podia ser

experenciado de forma direta, empírica. Como exemplo, o autor citou o erro de Schelovánov

ao proferir sobre impossibilidade de se estudar a infância. Vigotski refuta essa ideia ao propor,

apoiado em Ivanóvski, que a experiência direta dos fenômenos desempenha um papel menor

nas ciências naturais. Para confirmar essa proposição, ele cita o caso da física, a qual se utiliza

de ferramentas para ir além da percepção humana para estudar os fenômenos mecânicos. Da

mesma forma, para se estudar a infância, seria preciso criar meios de interpretar os vestígios

deixados por ela. Em suma, a psicologia deveria se libertar das percepções sensoriais para

estudar os fenômenos psíquicos mediante seu desenvolvimento histórico.

Vigotski e seus colaboradores passaram a desenvolver uma teoria geral do

desenvolvimento cultural do psiquismo que estivesse de acordo com o diagnóstico da crise da

psicologia (DAFERMOS, 2014). Os autores aplicaram o método histórico e a análise

sistemática do fenômeno social para a investigação dos fenômenos psicológicos. Para tanto, um

dos pontos centrais da teoria desenvolvida foi investigar como as ferramentas psicológicas

medeiam as relações humanas. As ferramentas psicológicas seriam a linguagem, as diferentes

formas de aritmética, símbolos algébricos, arte, escrita, diagramas, mapas, e todos os tipos de

signos convencionais. (VIGOTSKI, 2004).

Vigotski, Luria, Leontiev e outros autores desenvolveram pesquisas que tiveram como

foco analisar como as crianças solucionavam determinadas tarefas utilizando-se de signos

auxiliares. Os autores perceberam que as crianças superavam a reação direta entre estímulo e

resposta e utilizavam o signo como forma de atividade mediada. Quando o obstáculo surge, o

estimulo natural adquire a função de signo e, nessa hora, a estrutura da operação muda para um

aspecto essencialmente diferente. (VYGOTSKI; LURIA, 2007).

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A partir dos experimentos, uma das premissas meta-teóricas criadas foi a lei genética

geral do desenvolvimento cultural do homem, que diz que o signo opera inicialmente, na

conduta infantil, como um meio de relação social, interpsíquica. Posteriormente, mediante o

uso do signo, a criança passa a controlar autonomamente sua conduta. Dessa forma, o signo

transfere para sua personalidade uma atividade que foi social em sua origem. (VYGOTSKI;

LURIA, 2007). Os autores ainda afirmam:

A mais importante e fundamental lei genética conduzida pelo estudo das funções

psicológicas superires estipula que cada uma das atividades simbólicas da criança se

constituíram anteriormente como formas sociais de cooperação e que preservam ao

longo de todo o desenvolvimento até seus níveis mais altos, o método social de

funcionamento. Revela-se aqui a história das funções psíquicas superiores como a

história da transformação dos meios de comportamento social em meios de

organização psíquica individual. (VYGOTSKI; LURIA, 2007, p. 51).

É a partir do processo de internalização das operações psicológicas superiores que se

desenvolvem novas estruturas psicológicas, novas composições dos processos psicológicos.

Vygotski e Luria (2007) estipularam três leis do desenvolvimento das funções psicológicas

superiores: 1) Não é uma continuação das leis elementares. Não há uma mudança paulatina nos

processos, mas uma mudança na estrutura das operações, isto é, há uma mudança qualitativa.

Como exemplo tem-se a contagem que gera a independência do campo visual direto. Por meio

de experimentos Vigotski concluiu que não há um aperfeiçoamento paulatino das operações

aritméticas, mas uma mudança nos processos psíquicos envolvidos nas operações; 2) As

funções superiores não se sobrepõem sobre as elementares, mas são nossos sistemas psíquicos

que incluem as funções elementares. Estas, ao serem incorporadas ao novo sistema, começam

então a atuar obedecendo a novas leis; e 3) A desintegração9 das funções psíquicas superiores

vem a ser qualitativamente um processo inverso ao de sua construção.

O método funcional de dupla estimulação seria o mais adequado para a tarefa de

investigar as funções psíquicas superiores. A apresentação de um estímulo simples leva o

sujeito a responder de forma direta. O objetivo é fazer com que o estímulo organize a própria

conduta do indivíduo. Espera-se que ele resolva uma determinada tarefa com a ajuda de certos

meios auxiliares. Os experimentos realizados puderam demonstrar que trazer à superfície os

meios auxiliares de conduta “permite traçar a rota da gênese das formas mais complexas dos

processos psíquicos superiores” (VYGOTSKI; LURIA, 2007, p. 73).

9 De acordo com Vigotski (1987), a desintegração seria quando as relações sistêmicas e semânticas mais elevadas

são destruídas por um processo prolongado. Na esquizofrenia, que é o objeto do autor, a personalidade reage de

forma complexa ao processo destrutivo e reorganiza-se. Portanto, o quadro de desintegração da personalidade

expressaria não somente a destruição da personalidade, mas também a reação a essa modificação.

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O método clássico estudava as formas de comportamento estáveis, isto é, aquelas formas

diretas entre estímulo-resposta. O método genético-experimental combina o método clássico

com o método de dupla estimulação desenvolvido pelos autores, isto é, aqueles experimentos

que utilizavam meios auxiliares que poderiam ajudar a resolução da tarefa proposta. O método

de Vygotski e Luria (2007, p. 73) era objetivante, pois se “centra direta e fundamentalmente

sua atenção nos procedimentos e estruturas psíquicas internas ocultas a observação direta”. Em

suma, a metodologia desenvolvida teve como objetivo penetrar na estrutura interna dos

processos psíquicos e isso permitiu que eles reconhecessem a unidade e não a identidade entre

as funções psíquicas elementares e superiores. Dito isso, apresentaremos a seguir, de forma

resumida, algumas premissas teórico-metodológicas da relação entre instrumento e signo no

desenvolvimento infantil.

3. A UNIDADE ENTRE INSTRUMENTO E SIGNO NO DESENVOLVIMENTO

INFANTIL

De acordo com Vygotski e Luria (2007), durante muito tempo o pensamento científico

acreditou que não existia relação entre o uso de instrumentos e as operações simbólicas.

Acreditava-se que o uso de instrumentos era uma operação natural. No entanto, segundo os

autores, foi o uso de instrumentos que propiciaram a aparição de novas formas de

comportamento no homem. A utilização de instrumentos para a modificação da natureza teria

sido a chave da transição animal para a existência social. O instrumento liberou o homem das

suas limitações biológicas. Assim, o caráter social do trabalho veio da necessidade de

comunicação, que propiciou com que o homem criasse os instrumentos simbólicos. Na palavra

dos autores:

[...] a história filogenética da inteligência prática do homem está estreitamente ligada

não somente ao domínio da natureza, mas também ao domínio de si mesmo.

Dificilmente a história do trabalho e a história da fala podem compreender-se uma

sem a outra. O homem não somente criou instrumentos de trabalho mediante os quais

submeteu a seu poder as forças da natureza, mas que inventou também os estímulos

que ativavam e liberavam seu próprio comportamento, que submetiam suas próprias

forças a sua vontade. Incluindo nas fases iniciais do desenvolvimento do homem pode

ressaltar esse fato. (VYGOSTKI; LURIA, 2007, p. 80).

De acordo com Vigotski (2004), os instrumentos psicológicos modificam de forma

global a evolução e a estrutura das funções psíquicas. Assim como no trabalho, os instrumentos

psicológicos surgiram como meios auxiliares para ajudar o homem a solucionar problemas

psicológicos (lembrar, comparar, escolher, etc.).

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Portanto, o emprego de signos está intimamente relacionado com os instrumentos

práticos utilizados no trabalho. Segundo Vigotski (1998), a fabricação dos instrumentos foi o

meio pelo qual o homem terminou sua evolução zoológica e começou o curso histórico de sua

vida. O instrumento simbólico revoluciona a atividade do homem porque exige uma maneira

de imaginar uma situação futura. Assim, nas palavras do autor:

Exige uma certa independência do papel desempenhado pelo instrumento [simbólico]

na situação atual ou, o que é o mesmo, da estrutura percebida no momento presente:

exige uma generalização. Esse instrumento é tal instrumento somente quando se

aplica a uma série de situações distintas visualmente. Exige, finalmente, que o homem

subordine suas operações a um plano previsto de antemão (VIGOTSKI, 1934/1998,

p. 269).

Portanto, de seu ponto de vista, a relação entre instrumento e signo é a chave para compreender

o desenvolvimento infantil, pois é a partir da fala e do uso dos signos que a criança se

desenvolve para formas puramente humanas de operação instrumental (VYGOTSKI; LURIA,

2007). No nível da ontogênese, isto é, do desenvolvimento individual, este é determinado, em

grande medida, pela relação entre a incapacidade da criança para usar suas próprias funções

naturais e o domínio dos instrumentos psicológicos. Tais conclusões foram resultantes de

inúmeros experimentos realizados por Vigotski e seus colaboradores. No nível de

desenvolvimento ontogenético, o signo possui o seguinte formação:

Podemos observar na criança, passo a passo, o relevo de três formas básicas de

desenvolvimento das funções da linguagem. A palavra deve possuir, antes de tudo,

um sentido, isto é, deve relacionar-se com o objeto; deve existir um nexo objetivo

entre a palavra e aquilo que ela significa. Se não existe este nexo, a palavra não pode

seguir se desenvolvendo. O nexo objetivo entre a palavra e o objeto deve ser utilizado

funcionalmente pelo adulto como meio de comunicação com a criança. Somente

depois a palavra terá sentido para a própria criança. Portanto, o significado da palavra

existe antes objetivamente para os outros e somente depois começa a existir para a

própria criança. Todas as formas fundamentais de comunicação verbal do adulto com

a criança se convertem mais tarde em funções psíquicas. (VIGOTSKI, 1931/2000, p.

150).

A citação acima evidencia a compreensão de Vigotski (2000) em relação à ligação entre

a palavra e o objeto que ela representa no interior da prática social, a práxis. A criança não cria

a relação entre a linguagem e mundo exterior, mas se apropria dos significados já estabelecidos

pelos adultos (e emprega no interior de sua atividade). Veremos adiante que essa dependência

completa do adulto ocorre somente na fase pré-escolar do desenvolvimento. À medida que a

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criança se escolariza e se apropria dos verdadeiros conceitos10, ela desenvolve uma concepção

de mundo própria, uma personalidade, o que a habilita a compreender por si mesma os

complexos nexos fora dela. Não há simplesmente uma construção social, mas uma relação

dialética entre construção social e individual, a qual tem como ponto de partida a realidade

material. A criança é instruída pelos adultos, mas, depois, ao internalizar as relações sociais,

através dos signos, liberta-se dessa dependência imediata.

Vygotski e Luria (2007) comprovaram com experimentos que a ontogênese infantil não

está dada desde o início. Do ponto de vista do desenvolvimento humano, o crescimento do

organismo é uma parte do processo. Já em sua época estava superado o entendimento de que o

desenvolvimento era sinônimo de crescimento. Porém, com o intuito de se tornar científica, a

Psicologia passou a adotar a ideia do desenvolvimento infantil como sendo uma evolução das

formas originais de comportamento do reino animal (VYGOTSKI; LURIA, 2007). Como os

autores sugerem, saiu-se do cativeiro da botânica para cair no da zoologia. Segundo eles, a

comparação com os animais serviria apenas para elucidar o desenvolvimento das funções

psíquicas elementares, mas não das superiores, e foi no estudo da inteligência prática com o

emprego de instrumentos que se refletiu esse paradoxo.

Segundo os autores, é errôneo ver a relação entre a ação e a fala como processos

independentes que nunca se encontram. Na verdade, eles mantêm um vínculo que se desenvolve

em um processo de interconexão funcional. Também é errôneo entender que a fala teria apenas

função expressiva, isto é, a de comunicar estados internos. Se existisse uma relação paralela e

independente entre a ação e a fala ao longo do processo de desenvolvimento, a fala seria

impotente para mudar qualquer forma de comportamento.

Um dos principais achados dos autores no estudo da inteligência prática foi justamente

constatar que não há uma separação entre o pensamento verbal e o pensamento prático.

Diferentemente de outros autores da época, os quais não viam nenhuma relação entre a fala e o

desenvolvimento da inteligência prática, Vygotski e Luria (2007) descobriram a unidade entre

essas duas funções. A fala eleva a ação a um nível superior, segundo eles. Tanto o

desenvolvimento quanto a desintegração comprovariam essa assertiva.

10 A partir do método genético-experimental Vigotski (2009) observou que os conceitos seguem um

desenvolvimento que vai do pensamento sincrético, passa pelo pensamento por complexo e se finaliza no

pensamento conceitual propriamente dito. Os verdadeiros conceitos seriam o último estágio desse

desenvolvimento. Para o autor, seria com a palavra, síntese do verdadeiro conceito, que a criança orienta

arbitrariamente sua atenção para determinados atributos dos objetos da realidade. E seus estudos demonstraram

que as crianças chegam a esse desenvolvimento completo dos conceitos na educação escolar.

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Como já mencionamos, o problema naquela época é que se investigava o

comportamento infantil da perspectiva da herança biológica. Segundo os autores, não se

contemplava o fato de o trabalho ser a forma determinante da relação do homem com a natureza,

nem o fato de ele conectar instrumento e fala no processo de desenvolvimento das funções

psíquicas superiores. Além disso, estudavam-se as formas estáveis de comportamento infantil.

O que Vygotski e Luria (2007) fizeram, com base no método genético-experimental, foi

combinar as estruturas psíquicas visíveis e as que estavam ocultas à observação direta.

Para compreender como se desenvolve a inteligência prática, os autores tiveram como

premissa que tal aspecto é apenas uma parte da construção das funções psíquicas superiores em

seu conjunto. Prova disto é o achado de que a fala provoca uma mudança radical na inteligência

prática da criança. Eles concluíram que as funções psíquicas superiores surgem como

neoformações específicas em cada etapa da vida, mediatizadas pela linguagem, as quais, como

uma nova unidade estrutural, distinguem-se pelas novas relações interfuncionais estabelecidas

em seu interior. Tais funções não estão apartadas das atividades, na verdade se desenvolve no

interior das mesmas, pois estas derivam das exigências sociais postas às crianças em cada etapa

do desenvolvimento.

Com base em situações experimentais, Vygotski e Luria (2007) concluíram que, para

resolver um problema, as crianças não utilizam apenas os olhos e as mãos, mas também a fala.

O coeficiente de fala egocêntrica é de grande importância para ao estudo experimental. Quanto

maior a dificuldade da tarefa, maior é o coeficiente de fala egocêntrica, o que demonstra que a

fala egocêntrica começa desde muito cedo a desempenhar uma função de pensamento primitivo,

que seria o pensamento em voz alta.

A função da fala é propiciar que a criança se liberte da situação prática ou visual

diretamente apresentada. Empregando uma ampla quantidade de métodos instrumentais

auxiliares, ela pode se libertar da situação imediata e concentrar sua atenção em uma série de

ações preliminares. Para Vygotski e Luria (2007), essa característica da fala no

desenvolvimento leva a duas situações. Primeiro, as operações práticas tornam-se menos

impulsivas. Segundo, a fala modifica o próprio comportamento da criança. A fala não se refere

somente aos objetos pertencentes ao mundo externo, mas ao próprio comportamento, ações e

intenções da criança. “É por meio da fala que a criança demonstra pela primeira vez ser capaz

de dominar seu próprio comportamento e relacionar-se consigo mesmo desde fora, isto é,

considerando a si mesma como um objeto”. (VYGOTSKI; LURIA, 2007, p. 24).

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A unidade entre instrumento e signo não é o resultado do adestramento, como poderiam

supor os psicólogos comportamentalistas, ou o resultado da súbita descoberta por parte da

criança, como os racionalistas poderiam pensar. “A formação da complexa unidade humana da

fala e das operações práticas é o produto de um processo de desenvolvimento arraigado em

distantes profundidades, no qual a história individual do sujeito vai estreitamente unida à sua

história social”. (VYGOTSKI; LURIA, 2007, p. 26).

Conforme os autores, o signo teria surgido na história social para estimular o outro e

depois adquiriu uma função intrapsíquica. Para eles, a ontogênese repetiria o desenvolvimento

histórico e não a filogênese, isto, é o desenvolvimento do homem enquanto espécie. Prova disso

é que, no desenvolvimento infantil, o signo é primeiramente utilizado para estimular outra

pessoa e somente depois é internalizado e utilizado para estimular o próprio indivíduo. A

complexificação da utilização dos signos fez com que o homem abandonasse o campo da

história natural da psique para entrar no domínio da formação de estruturas sociais do

comportamento (VYGOTSKI; LURIA, 2007). Portanto, a fonte do desenvolvimento deve ser

buscada no entorno das crianças, pois estas não se relacionam diretamente com a situação, mas

o fazem por meio de outras pessoas, instrumentos ou objetos.

Para Vygotski e Luria (2007), no processo de desenvolvimento infantil, as mediações

sociais são realizadas por pessoas que rodeiam a criança. No processo de resolução de

problemas, o comportamento das crianças pequenas apresenta uma fusão muito particular de

duas formas de adaptação: aos objetos e às pessoas, isto é, ao entorno e à situação social.

Segundo os referidos autores, é somente no adulto que essas duas instâncias aparecem

diferenciadas. Assim, no adulto, há uma diferenciação entre os objetos da realidade e as outras

pessoas. A percepção passa do sincrético ao sintético, isto é, no início do desenvolvimento, a

percepção da criança é totalmente fundida com as de outras pessoas e com a realidade. Porém,

com o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, principalmente com o

desenvolvimento dos verdadeiros conceitos, no período próximo à adolescência, ela passa a

diferenciar a realidade.

A criança começa a internalizar as relações sociais por meio da fala socializada e da fala

egocêntrica. Com os experimentos realizados pelos autores citados, foi possível constatar que

a criança tanto apela ao experimentador quanto realiza um conjunto de fala egocêntrica. As

situações experimentais que exigiam o emprego de instrumentos, cujo aspecto central é a

impossibilidade de resolução direta, proporcionavam as melhores condições para que surgisse

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a fala egocêntrica. Dois fatores estão relacionados com essa dificuldade: 1) resposta emocional;

2) desautomatização da ação que exige a inclusão do intelecto no processo. Esses fatores

determinam tanto a natureza da fala egocêntrica quanto a situação de resolução do problema. A

fala egocêntrica está vinculada à fala social da criança, desenvolvendo-se em diversas etapas

de transição. Vygotski e Luria (2007) apontam o caráter complexo dessa questão, já que seria

errado pensar que a fala social limita-se ao pedido de ajuda. Nos experimentos, obstruir a fala

social corresponderia a um incremento da egocêntrica.

Em outra publicação, Vigotski (1934/2009) deixa claro que sua concepção de fala

egocêntrica é contrária à de Piaget. Para Piaget, a fala egocêntrica é uma expressão direta do

egocentrismo do pensamento. Nas palavras de Vigotski:

Piaget argumenta que a linguagem egocêntrica da criança é uma expressão direta do

egocentrismo do seu pensamento, o qual, por sua vez, é um compromisso entre o

autismo primitivo do pensamento infantil e sua socialização gradual, compromisso

específico de cada fase etária, por assim dizer, um compromisso dinâmico, no qual, à

medida que a criança cresce, o autismo desaparece e a socialização evolui, levando

gradualmente a zero o egocentrismo no seu pensamento. (VIGOTSKI, 1934/2009, p.

428).

Em termos estruturais, ao interpretar a linguagem egocêntrica de Piaget, Vigotski (2009)

entende que esta não deve ser adaptada ao pensamento adulto, o que resultaria em um

pensamento egocêntrico levado ao máximo e na incompreensão da linguagem egocêntrica por

parte do interlocutor. Para Piaget, segundo Vigotski (2009), a função da linguagem egocêntrica

seria simplesmente acompanhar a atividade infantil, sem modificá-la em nada. Para Piaget, o

destino da fala egocêntrica seria sua diminuição até a extinção completa. O desenvolvimento

dessa forma de linguagem seguiria uma curva descendente, cujo ponto culminante seria o início

do desenvolvimento e chegaria a zero no período da educação escolar.

Já, para Vigotski (2009), “a linguagem egocêntrica da criança é uma das manifestações

da transição das funções interpsicológicas para as intrapsicológicas, isto é, das formas de

atividade social coletiva da criança para as funções individuais” (VIGOTSKI, 2009, p. 429).

Portanto, diferentemente de Piaget, Vigotski (2009) compreende que não há uma extinção da

linguagem egocêntrica, mas sua transformação em linguagem interior.

Em síntese, a maior mudança ocorre quando a fala socializada (dirigida ao outro) volta-

se para a própria criança que fala. “Nesse segundo caso, a fala que intervém na solução passa

da categoria de função inter-psiquíca para a de função intra-psíquica. [...] A criança aplica a

si mesma o método de conduta que antes aplicava a outro, organizando assim sua conduta

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individual segundo a forma social de conduta” (VYGOTSKI; LURIA, 2007, p. 31). Os autores

ainda afirmam categoricamente que a atitude intelectual e o controle do comportamento na

resolução de problemas práticos complexos não são consequência de algum tipo de “ação lógica

pura”, mas a aplicação de uma atitude social a si mesmo, “a transferência de uma forma social

de conduta para a organização de sua própria psique”. (VYGOTSKI; LURIA, 2007, p. 32).

Quando a criança internaliza as relações sociais, o papel da fala muda radicalmente: em

lugar de acompanhar a atividade, passa progressivamente a aparecer no início do processo. Mais

do que a separação entre fala e ação, isso significa a mudança do centro do sistema funcional.

Na primeira etapa, a fala seguia a ação e a refletia; na segunda, a fala transita para o início da

ação e começa a dominá-la, isto é, a dirigi-la, determinando tanto seu objeto quanto seu

desenvolvimento. Dessa perspectiva:

A segunda etapa assinala, portanto, o nascimento da função planejadora da fala, de

modo que esta passa a determinar a direção das ações futuras [...]. Ao mesmo tempo

em que a fala se converte em função intra-psíquica, começa a preparar uma solução

verbal preliminar para o problema, a qual, ao longo de ensaios posteriores, aperfeiçoa-

se e, apoiando-se em um modelo verbal que recapitula a experiência passada,

converte-se em uma planificação verbal preliminar da ação futura (VYGOTSKI;

LURIA, 2007, p. 32-33).

Em complemento, destacamos que o processo de planejamento da ação possui sempre

uma relação com a atividade prática da criança. Vigotski (2004), no texto Sobre os sistemas

psicológicos, afirma que o processo de internalização segue as seguintes etapas:

Primeiro, a interpsicológica: eu ordeno, você executa; depois, a extrapsicológica:

começo a dizer a mim mesmo; e, em seguida, a intrapsicológica: dois pontos do

cérebro, que são estimulados de fora, têm tendência a atuar dentro de um sistema único

e se transformam em um ponto intracortical. (VIGOTSKI, 2004, p. 133).

Em estágios posteriores de desenvolvimento, mudam tanto o uso dos signos quanto a

própria estrutura da operação. A mudança essencial é o fato de uma mediação que operava

externamente passar a ser realizada internamente. Para se recordar, a criança não precisa mais

de signos externos. O auge do processo de internalização é o desenvolvimento dos conceitos

científicos e do pensamento teórico.

A inclusão dos símbolos é o que diferencia a ação involuntária da voluntária. O que é

predominantemente instintivo nos animais tem um lugar secundário na criança, levando a

motivos novos, de natureza social. Em outras palavras, são os signos que favorecem o

desenvolvimento das funções psicológicas superiores, da intenção e das ações deliberadas e

previamente planejadas. Segundo Vygotski e Luria (2007), o que falta ao macaco antropoide

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para que possamos classificar sua ação como “voluntária” é o domínio do próprio

comportamento por meio da recorrência a estímulos simbólicos. “Quando alcança esse estágio

de desenvolvimento de seu comportamento, a criança ‘salta’ da ação ‘inteligente’ do antropoide

à ação inteligente e livre do ser humano” (VYGOTSKI; LURIA, 2007, p. 47). A principal

característica das funções psicológicas superiores é que elas não se formaram como produto da

evolução biológica, mas do desenvolvimento histórico do comportamento, “como uma história

social concreta”. Segundo Vygotski e Luria (2007), a trajetória do desenvolvimento das funções

psicológicas superiores começa com formas naturais de desenvolvimento, cresce em seguida

para além delas “e culmina com a radical reconstrução das funções elementares sobre a base do

uso dos signos como meios de organização do comportamento”. (VYGOTSKI; LURIA, 2007,

p. 48).

As funções psicológicas superiores, tais como a atenção voluntária, a memória lógica,

formação dos conceitos, estão ligadas internamente ao desenvolvimento da atividade simbólica

da criança. Esta sofre transformações e se complexifica ao longo da ontogênese. Inicia com as

primeiras ligações entre palavra e objeto incrementando a capacidade de comunicação, tem um

salto com o jogo simbólico ou de imaginação, com o ingresso na escola, até chegar ao domínio

da escrita e da matemática no processo de mediação para o emprego ainda mais abstrato das

capacidades simbólicas. Somente será possível a compreensão das funções psicológicas

superiores se analisarmos as raízes genéticas das modificações que elas sofreram ao longo da

história cultural. A conclusão teórica a que Vygotski e Luria (2007) chegaram é que as funções

superiores, como a atenção voluntária, a memória lógica, as formas superiores de percepção e

de movimento, que haviam sido investigadas separadamente, como fatos psíquicos

independentes, “[...] aparecem à luz de nossos experimentos como fenômenos essencialmente

de uma mesma ordem: unidos em sua gênese e em sua estrutura psíquica” (VYGOTSKI;

LURIA, 2007, p. 48). Conforme Vigotski (2009) desenvolve, tal união é viabilizada pela

linguagem.

Existem formas de atividade simbólica que apresentam padrões evolutivos, organização

e funcionamento idênticos aos da fala. São sistemas psíquicos que executam a mesma função

da fala, a saber, são processos simbólicos de segunda ordem. Além da fala, como exemplos

desses processos, os autores mencionam a leitura, a escrita, o cálculo e o desenho. Todos esses

processos estão interligados ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Em

suma, Vygotski e Luria (2007) esclarecem que, em seus experimentos e nos de seus

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colaboradores, foi constatado o papel central dos estímulos de segunda ordem no

desenvolvimento das funções psicológicas superiores.

Em alguns experimentos, ocorre a construção de operações indiretas com signos. Por

exemplo, na tarefa em que a criança precisa se lembrar de certo número de palavras, os signos

convencionais podem ajudá-la a recuperar a palavra requerida. Segundo Vygotski e Luria

(2007), é fácil observar que esse processo difere da memorização elementar. O problema é

resolvido mediante uma operação indireta, na qual se estabelece uma determinada relação entre

o estímulo e o signo. A memorização simples segue a fórmula E – R (Estímulo-Resposta), já a

estrutura de operação com signos é muito mais complexa: entre o estímulo e a resposta interpõe-

se um signo auxiliar. No que seria operação direta entre um estímulo e uma resposta, observa-

se a atuação de um membro intermediário, um estímulo de segunda ordem. Esse estímulo tem

como função-chave facilitar a organização entre estímulo e resposta, estabelecendo-se

especificamente no sujeito e exercendo uma função inversa, isto é, eliciando determinadas

reações.

Estruturalmente, os signos auxiliares transferem as operações psíquicas para formas

novas e qualitativamente superiores, além de levar o homem, com a ajuda de estímulos

externos, a controlar sua conduta a partir de fora.

Ao ser simultaneamente um meio de autoestimulação, o uso do signo provoca uma

estrutura específica totalmente nova do comportamento humano, uma estrutura que

rompe com as tradições do desenvolvimento natural e cria pela primeira vez uma nova

forma de comportamento psicocultural. (VYGOTSKI; LURIA, 2007, p. 58).

Vygotski e Luria (2007) destacam o fato de que os mecanismos da memorização já eram

conhecidos, porém, as investigações clássicas não os viam como novas formas específicas de

conduta, adquiridas no processo de desenvolvimento histórico. Esses mecanismos foram

criados por exigências práticas, como uma nova forma de auto-estimulação, isto é, um novo

método de atividade humana.

De acordo com os autores é possível encontrar, nas etapas mais iniciais da cultura,

exemplos de operações com signos para organizar os processos de memória: marcas em paus e

em nós, o início da escrita, etc. “Todos eles nos permitem ver que nas primeiras etapas do

desenvolvimento cultural o homem já ia além dos limites das funções psíquicas com as quais

tinha sido dotado pela natureza e procedia a uma organização nova, cultural, de seu

comportamento”. (VYGOSTKI; LURIA, 2007, p. 57).

As operações com signos não são simplesmente inventadas pelas crianças, nem

transmitidas simplesmente por outros adultos:

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[...] surgem de algo que não é em princípio uma operação com signos e que se converte

em tal apenas depois de uma série de transformações qualitativas, cada uma das quais

condiciona o passo seguinte e é por sua vez condicionada pela anterior, e que assim

as vincula entre si como fases de um processo integrado de caráter histórico.

(VYGOSTKI; LURIA, 2007, p. 60).

Portanto, podemos inferir que, para Vygotski e Luria (2007), não existe um a priori que

relaciona o símbolo com os estímulos, mas deve haver tanto a mediação dos outros como da

própria realidade para que se desenvolva uma relação complexa entre os signos auxiliares e os

estímulos/objetos que eles representam.

Ainda a respeito da relação entre fala e ação, vale mencionar a referência de Vigotski e

Luria a uma passagem do evangelho segundo João (1:1-13 apud VIGOTSKI; LURIA, 2007,

p.32): “no princípio era o verbo (palavra)”. Com essa menção, eles tinham o intuito de apontar

que os psicólogos de sua época estavam errados ao supor que a palavra também se faz presente

no início do desenvolvimento infantil. Da perspectiva dos autores, antes da fala simbólica existe

o pensamento instrumental. A inteligência prática seria, para eles, geneticamente anterior à

inteligência verbal: “a ação precede a palavra, mesmo a ação inteligente antecede a palavra

inteligente”. (VYGOTSKI; LURIA, 2007, p.32).

Uma concepção comum em sua época era a de que a ação e a palavra possuiriam uma

relação constante durante o desenvolvimento. Contudo, com base nas investigações genético-

experimentais, os autores concluíram que, como em toda a história do desenvolvimento das

funções psíquicas superiores, há também uma alteração nas relações e nas conexões

interfuncionais desses dois processos. Uma síntese desse pensamento está expressa na seguinte

frase: “se o ato, independente da palavra, está no princípio do desenvolvimento, ao final dele

está a palavra convertendo-se em ato, a palavra torna livre a ação humana”. (VYGOTSKI;

LURIA, 2007, p. 85).

Por isso, a palavra, como signo cultural privilegiado, nasce no interior da atividade, que

é sempre social, pois são as relações sociais que criam as necessidades humanas, afetam o

sujeito e o colocam em movimento, de modo atuante na realidade. O grau em que este sujeito

singular toma consciência de como organiza sua atividade (ações, operações) e também dos

motivos que o impulsionam a realizá-la está em íntima dependência das formas alienadas e

alienantes do trabalho em cada sociedade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Partiu-se da ideia de que a relação entre instrumento e signo foi uma das maiores

contribuições de Vigotski e seus colaboradores para a compreensão do desenvolvimento social

do psiquismo infantil. Salientou-se que os instrumentos psicológicos possuem sua gênese nos

instrumentos criados para o trabalho. Destacamos a relação intrínseca entre ação e fala no

processo de desenvolvimento humano. Embora não tenhamos podido entrar na discussão sobre

a relação entre pensamento e linguagem, mencionamos o papel fundamental da fala no processo

de resolução de problemas. Baseando-nos em sua função de abstração da realidade imediata da

criança, destacamos o papel fundamental da linguagem para a compreensão do processo de

internalização, isto é, da transferência das relações sociais concretas para a consciência

individual. Por fim, mencionamos algumas relações entre as operações com signos e o

desenvolvimento de funções psicológicas específicas, como a atenção e a memória. Em suma,

mostramos que, para Vygotski e Luria (2007), o processo de desenvolvimento não é

espontâneo, mas, pela mediação dos signos socialmente produzidos, está condicionado ao

processo de apropriação das relações travadas pelo sujeito na realidade.

Toda a teorização sobre a relação entre instrumento e signo no desenvolvimento infantil

se articula com a concepção sobre qual seria a relação entre desenvolvimento e o

ensino/aprendizagem para a Psicologia Histórico-Cultural. Apesar de não ter sido o foco do

presente ensaio, convém apenas citar como essa teoria psicológica compreende tal relação.

Vigotski (1996) constatou que os estudos de sua época focavam apenas os aspectos externos do

processo de desenvolvimento infantil, perdendo de vista a essência interna de cada fase. Além

disso, apresentavam o desenvolvimento como ampliação de funções elementares, ignorando os

saltos qualitativos que se produziam. Para o autor, como apresentado, o desenvolvimento passa

pela apropriação das relações sociais, que são externas à criança, e a dinâmica desse processo

não é estática nem natural. Não existiriam estágios ótimos que a criança teria que desenvolver

biologicamente para poder se apropriar dos conceitos científicos.

A revolução operada pelos signos no pensamento se expressa no desenvolvimento do

pensamento conceitual. A descoberta do salto qualitativo que a criança dá indo do pensamento

sincrético para o pensamento conceitual na idade de transição foi uma das grandes contribuições

de Vigotski. O autor evidenciou que a peculiaridade central do pensamento do adolescente, isto

é, aquilo que surge de novo, está relacionado ao desenvolvimento das formas superiores de

pensamento, em particular, do pensamento por meio de conceitos. Nesse salto qualitativo, está

imbricada a relação da criança com os adultos que a rodeiam, com a própria realidade externa,

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com a história social que se faz presente nas relações humanas – relação essa objetivada por

meio da linguagem e dos conceitos - e a relação da criança com o próprio controle e

funcionamento de sua vivência interna. A complexa relação existente entre todos esses

elementos faz com que o adolescente internalize as relações sociais e desenvolva uma

personalidade, capaz de refletir e apreender o movimento da realidade, os outros e ele mesmo.

Conforme Vigotski (1996), o desenvolvimento cultural do comportamento não

modificaria somente o conteúdo do pensamento, mas também suas formas, isto é, surgiriam e

se configurariam novos mecanismos, novas funções, novas operações, novos modos de

atividade, os quais seriam desconhecidos em etapas iniciais do desenvolvimento histórico. As

investigações ensinaram que há uma unidade entre a forma e o conteúdo, a estrutura e a função.

“Na realidade a forma e o conteúdo do pensamento são dois momentos de um só processo

integral, relacionados interiormente por um nexo essencial, não fortuito” (VYGOTSKI, 1996,

p.58). Portanto, para o autor, os conceitos (que são apropriados como signos) estariam

subjacentes a todas as mudanças intelectuais que se produzem nessa idade, isto é, as funções

psíquicas superiores se desenvolveriam juntamente com o desenvolvimento dos conceitos.

Tal concepção do desenvolvimento infantil possui implicações fundamentais para o

processo de organização da educação escolar. A prática pedagógica que está de acordo com a

visão aqui apresentada seria a Pedagogia Histórico-Crítica (MARTINS, 2011). A relação dessa

teoria com a Psicologia Histórico-Cultural dá-se entre apropriação do conhecimento e

desenvolvimento humano. Seriam os conceitos científicos, não cotidianos, e que sintetizam a

produção cultural humana, que formariam a imagem subjetiva da realidade. Esta, por sua vez,

seria o elemento nuclear da relação entre desenvolvimento do psiquismo e educação escolar.

Conforme Martins (2011), o método de ensino da Pedagogia Histórico-Crítica parte da

prática social. O trabalho pedagógico é entendido como uma das formas de expressão da prática

social. A Pedagogia Histórico-Crítica parte da concepção que o desenvolvimento máximo dos

indivíduos se dá pela apropriação do saber objetivo, o qual se vincula à imagem subjetiva da

realidade concreta. Nesse sentido, conforme Martins (2011), a formação da imagem subjetiva

da realidade objetiva representa a intersecção entre Psicologia Histórico-Cultural e a Pedagogia

Histórico-Crítica. Além disso, ambas as teorias (psicológica e pedagógica) formam uma

unidade, pois assentam-se nos preceitos do materialismo histórico-dialético.

Em suma, a trabalho pedagógico que tem como fundamento teórico-metodológico a

relação entre ensino-aprendizagem promotora de desenvolvimento, tem como horizonte a

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Interfaces da Educ., Paranaíba, v.6, n.18, p.101-123, 2015.

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formação da imagem subjetiva da realidade objetiva. E, para que isso ocorra, é preciso que o

ato educativo promova a internalização dos signos e a formação dos conceitos científicos na

direção da constituição do pensamento dialético.

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