318
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

Page 2: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

Iniciação à BioéticaPublicação do Conselho Federal de MedicinaSGAS 915 – Lote 7270390-150 – Brasília-DFFone: (061)346-9800Fax: (061)346-0231http://[email protected]

OrganizadoresSérgio Ibiapina Ferreira CostaVolnei GarrafaGabriel Oselka

Equipe TécnicaEliane Maria Medeiros SilvaSulaima Leise da Silva

Projeto GráficoTereza Hezim

CapaFernando Secchin

Copidesque/revisorNapoleão Marcos de Aquino

Editoração EletrônicaCMJ On Line

Tiragem10.000 exemplares

Copyright @ 1998 Conselho Federal de Medicina

Ficha Catalográfica

Iniciação à bioética / Sergio Ibiapina Ferreira Costa, Gabriel Oselka, Volnei Garrafa, coordenadores. – Brasília : Conselho Federal de Medicina, 1998. pp. 302 ISBN 85-87077-02-3 1 - Bioética. I - Costa, Sergio Ibiapina Fereira.II - Oselka, Gabriel. III - Garrafa, Volnei.

CDD 174.2

Page 3: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

Conselheiros CFMGestão 1994/1999

Antônio Henrique Pedrosa Neto (AL)

Arnaldo Pineschi de Azeredo (RJ)

Carlos Alberto de Souza Martins (MA)

Edilberto Parigot de Souza Filho (AC)

Edson de Oliveira Andrade (AM)

Floriano Rodrigues Riva Filho (RO)

Jaci Silvério de Oliveira (TO)

Jocy Furtado de Oliveira (AP)

José Abelardo Garcia de Menezes (BA)

José Ricardo de Hollanda Cavalcanti (PB)

Júlio Cézar Meirelles Gomes (DF)

Léo Meyer Coutinho (SC)

Lino Antônio Cavalcanti Holanda (CE)

Lúcio Mário da Cruz Bulhões (MS)

Luiz Carlos Sobania (PR)

Marco Antônio Becker (RS)

Maria Hormecinda Almeida de Souza Cruz (RR)

Moacir Soprani (ES)

Nei Moreira da Silva (MT)

Oswaldo de Souza (SE)

Paulo Eduardo Behrens (MG)

Philemon Xavier de Oliveira (GO)

Rubens dos Santos Silva (RN)

Regina Ribeiro Parizi Carvalho (SP)

Sérgio Ibiapina Ferreira Costa (PI)

Silo Tadeu Silveira de Holanda Cavalcanti (PE)

Waldir Paiva Mesquita (PA)

Cláudio Balduíno Souto Franzen (AMB)

Page 4: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

Organizadores

Sérgio Ibiapina Ferreira Costa

Médico; Professor de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade doPiauí; Vice-presidente do Conselho Federal de Medicina; Membro do Con-selho Editorial do Jornal Medicina – Conselho Federal de Medicina; Editorda revista Bioética – Conselho Federal de Medicina

Volnei Garrafa

Cirurgião dentista; Professor Titular do Departamento de Saúde Coletiva;Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universi-dade de Brasília – UnB; Pós-doutorado em Bioética pela Universidade deRoma; Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética; Editor associ-ado da revista Bioética – Conselho Federal de Medicina

Gabriel Oselka

Médico; Professor associado do Departamento de Pediatria da Faculdadede Medicina da Universidade de São Paulo – USP; Editor associado darevista Bioética – Conselho Federal de Medicina

Page 5: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

Colaboradores

Antônio Henrique Pedrosa Neto

Médico; Ginecologista e Obstetra; Professor auxiliar do Departamento deGinecologia e Obstetrícia da Escola de Ciências Médicas de Alagoas;Secretário-Geral do Conselho Federal de Medicina

Antonio Ozório Leme de Barros

Médico e Bacharel em Direito; Promotor de Justiça de Acidentes doTrabalho do Ministério Público do Estado de São Paulo

Carlos Fernando Francisconi

Médico; Professor adjunto do Departamento de Medicina Interna daFaculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,Porto Alegre, RS

Christian de Paul Barchifontaine

Enfermeiro; Mestre em Administração Hospitalar e de Saúde; Doutoran-do em Ciências da Religião; Reitor do Centro Universitário São Camilo,São Paulo, SP

Cláudio Cohen

Médico; Professor Livre Docente do Departamento de Medicina Legal,Ética Médica e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidadede São Paulo – USP, São Paulo, SP

Corina Bontempo D. Freitas

Médica; Assessora do Conselho Nacional de Saúde; Secretária Executi-va da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP – CNS/MS

Dalmo de Abreu Dallari

Advogado; Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade deSão Paulo – USP, São Paulo, SP

Page 6: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

Daniel Romero Muñoz

Médico; Professor responsável pela disciplina de Medicina Legal daFaculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Professor deMedicina Legal e Ética Médica da Faculdade de Ciências Médicas daSanta Casa/SP e das Faculdades de Medicina do ABC – Santo André eda Universidade de Santo Amaro, São Paulo, SP

Débora Diniz

Antropóloga; Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas emBioética, Universidade de Brasília – UnB, Brasília, DF

Délio José Kipper

Médico; Mestre em Pediatria pela Pontifícia Universidade Católica do RioGrande do Sul – PUCRS; Professor de Pediatria na graduação da Facul-dade de Medicina – PUCRS; Coordenador do Comitê de Ética em Pes-quisa da PUCRS, Porto Alegre, RS

Eliane S. Azevêdo

Médica; Núcleo de Bioética, Departamento de Ciências Biológicas,Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, BA

Fermin Roland Schramm

Filósofo; Mestre em Semiótica e doutor em Ciências; Pesquisadoradjunto do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional deSaúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz - ENSP/FIOCRUZ, Rio deJaneiro, RJ

Franklin Leopoldo e Silva

Filósofo; Professor do Departamento de Filosofia, Faculdade de Filo-sofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo-USP,São Paulo, SP

Genival Veloso de França

Médico e Advogado; ex-Professor Titular de Medicina Legal da Universi-dade Federal da Paraíba – UFPB, João Pessoa, PB; Professor convidadodos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Médico-Legal deCoimbra, Portugal

Guido Carlos Levi

Médico; Diretor Técnico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, SãoPaulo, SP

Page 7: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

Joaquim Clotet

Filósofo; Ph. D. (Universidade de Barcelona); Professor de Bioética nosprogramas de pós-graduação em Medicina da Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Porto Alegre, RS

José Eduardo de Siqueira

Médico; Doutor em Medicina; Mestre em Bioética; Professor de ClínicaMédica e Bioética da Universidade Estadual de Londrina, Paraná, PR

José Gonçalves Franco Júnior

Médico; Diretor do Centro de Reprodução Humana da Fundação Mater-nidade Sinhá Junqueira, Ribeirão Preto, SP

José Roberto Goldim

Biólogo do Grupo de Pesquisa e Pós-graduação do Hospital de Clínicasde Porto Alegre, RS

Júlio Cézar Meirelles Gomes

Médico; Hospital Universitário de Brasília, Brasília, DF; 1º Secretário doConselho Federal de Medicina

Léo Pessini

Teólogo; Pós-graduado em Educação Pastoral Clínica, com especializa-ção em Bioética no St. Luke’s Medical Center, Estados Unidos; Vice-reitor do Centro Universitário São Camilo, São Paulo, SP

Leonard M. Martin

Redentorista; Diretor do Instituto Teológico-Pastoral do Ceará; Professorde Teologia Moral e Bioética no Instituto Teológico-Pastoral do Ceará;Presidente da Sociedade Brasileira de Teologia Moral, Fortaleza, CE

Marcos de Almeida

Médico; Professor Titular de Medicina Legal e Bioética da UniversidadeFederal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina - UFSP-EPM; Livre-docente em Ética Médica pela Faculdade de Medicina da Universidadede São Paulo – USP, São Paulo, SP

Marco Segre

Médico; Professor Titular do Departamento de Medicina Legal, ÉticaMédica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina daUniversidade de São Paulo – USP, São Paulo, SP

Page 8: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

Nei Moreira da Silva

Médico; Professor-adjunto de Clínica Neurológica da Faculdade deCiências Médicas da Universidade Federal de Mato Grosso; Diretor doConselho Federal de Medicina

Paulo Antonio Carvalho Fortes

Médico; Professor responsável pelas disciplinas de Ética da Saúde Públi-ca e Ética Aplicada à Administração do Serviço de Saúde, Faculdade deSaúde Pública da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, SP

Regina Ribeiro Parizi

Médica Sanitarista do Hospital do Servidor Público Estadual – FranciscoMonteiro de Oliveira - HSPE-FMO, São Paulo, SP; Mestre emEpidemiologia; Vice-presidente do Conselho Federal de Medicina

Sérgio Danilo J. Pena

Médico; Presidente do Núcleo de Genética Médica de Minas Gerais;Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia, Institutode Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG,Belo Horizonte, MG

Sueli Gandolfi Dallari

Advogada; Professora Titular da Faculdade de Saúde Pública da Univer-sidade de São Paulo; Livre-docente em Direito Sanitário, Universidadede São Paulo – USP, São Paulo, SP

Volnei Garrafa

Cirurgião dentista; Professor Titular do Departamento de Saúde Coletiva;Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universi-dade de Brasília – UnB, Brasília,DF; Pós-doutorado em Bioética pelaUniversidade de Roma; Vice-presidente da Sociedade Brasileira deBioética

William Saad Hossne

Médico; Professor Emérito da Faculdade de Medicina da UniversidadeEstadual Paulista – UNESP, Botucatu, São Paulo, SP; Presidente dehonra da Sociedade Brasileira de Bioética; Coordenador da ComissãoNacional de Ética em Pesquisa – CONEP – CNS/MS

Page 9: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

Prefácio 13

Parte I - Introdução

Apresentando a Bioética 15Sérgio Ibiapina Ferreira Costa, Volnei Garrafa e Gabriel Oselka

Parte II - Conceitos Básicos

Da Ética Filosófica à Ética em Saúde 19Franklin Leopoldo e Silva

Princípios da Beneficência e Não-maleficência 37Délio José Kipper e Joaquim Clotet

O Princípio da Autonomia e o Consentimento Livre e Esclarecido 53Daniel Romero Muñoz e Paulo Antonio Carvalho Fortes

O Princípio da Justiça 71José Eduardo de Siqueira

Bioética: do Principialismo à Busca de uma PerspectivaLatino-Americana 81Léo Pessini e Christian de Paul Barchifontaine

Parte III – Temas Específicos

Bioética e Ciência – Até onde Avançar sem Agredir 99Volnei Garrafa

Reprodução Assistida 111Antônio Henrique Pedrosa Neto e José Gonçalves Franco Júnior

Bioética e Aborto 125Débora Diniz e Marcos de Almeida

Sumário

Page 10: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

12

O Projeto Genoma Humano e a Medicina Preditiva: AvançosTécnicos e Dilemas Éticos 139Sérgio Danilo J. Pena e Eliane S. Azevêdo

Transplantes 157Regina Ribeiro Parizi e Nei Moreira da Silva

Eutanásia e Distanásia 171Leonard M. Martin

Pesquisa com Seres Humanos 193Corina Bontempo D. Freitas e William Saad Hossne

A Bioética e a Saúde Pública 205Sueli Gandolfi Dallari

Bioética e Biossegurança 217Fermin Roland Schramm

Bioética e Direitos Humanos 231Dalmo de Abreu Dallari

Parte IV – Bioética Clínica

Erro Médico 243Júlio Cézar Meirelles Gomes e Genival Veloso de França

Bioética e Medicina Legal 257Marco Segre e Claúdio Cohen

Aspectos Bioéticos da Confidencialidade e Privacidade 269Carlos Fernando Francisconi e José Roberto Goldim

Ética Clínica: a AIDS como Paradigma 285Guido Carlos Levi e Antonio Ozório Leme de Barros

Parte V - Posfácio

A Bioética no Século XXI 295Sérgio Ibiapina Ferreira Costa, Volnei Garrafa e Gabriel Oselka

Índice Remissivo 303

Page 11: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

13

Prefácio

A discussão e o aprofundamento nas questões da Bioética é, hoje maisque nunca, uma necessidade premente para todos os que lidam com os proble-mas que atingem a sociedade e cada ser humano em particular. Em 1993, oConselho Federal de Medicina criou a revista Bioética, de circulação semestral,com um Conselho Editorial próprio, visando incentivar o debate de questõesdoutrinárias, temas emergentes e daqueles considerados pertinentes a essa área.

O sucesso da publicação deveu-se principalmente ao fato de, nela, todasas tendências poderem ser contempladas, admitindo-se como princípio opluralismo moral, sinônimo de diversidade na discussão de qualquer tema.Durante os cinco anos de sua existência, notou-se a necessidade de tornar aBioética compreensível a um universo maior de médicos, muitos dos quais nãoestão familiarizados com as várias abordagens dessa disciplina. Com esse sen-tido, o Conselho Federal de Medicina decidiu elaborar este compêndio.

Desde as primeiras reuniões que trataram da publicação desta obra, apreocupação básica foi a produção de textos acessíveis, que analisassem osfundamentos da Bioética em suas várias vertentes e permitissem, tanto aos prin-cipiantes quanto aos especialistas, despertar e ou aprimorar a atenção paraesse importante tema.

Consideramos que esse objetivo foi atingido. Nos seus capítulos, Iniciaçãoà Bioética contempla as diversas áreas temáticas de grande interesse para odia-a-dia do médico, em linguagem clara e objetiva.

Hoje, o Conselho Federal de Medicina tem o orgulho de apresentar estapublicação que, temos certeza, vai contribuir sobremaneira e criativamente parao debate ético de nossa sociedade como um todo e da comunidade médica emparticular.

Como palavra final, é importante lembrar que este livro não seria possívelsem o zelo, o desprendimento e o entusiasmo dos organizadores, autores, cola-boradores, equipe técnica e corpo de conselheiros e funcionários do CFM.

A todos, nosso mais sincero agradecimento.

Waldir Paiva MesquitaPresidente

Page 12: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

14

Page 13: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

15

Apresentando a Bioética

Parte I - IntroduçãoSérgio Ibiapina Ferreira Costa

Volnei GarrafaGabriel Oselka

Na totalidade do contexto cientí-fico e tecnológico poucas áreasevoluíram com tanta rapidez quanto abioética. Se imaginarmos que apenasem 1971 o cancerologista norte-ame-ricano Van Rensselaer Potter publi-cou a obra que referenciou histori-camente a área – Bioethics: a Bridgeto the Future –, os avanços conquis-tados nestes 27 anos podem ser con-siderados extraordinários. Atualmen-te, é enorme o número de publica-ções periódicas e de novos livros quesurgem diariamente tratando dosmais variados enfoques sobre o tema,além de incontável a quantidade deeventos acadêmicos oferecidos sobrebioética em praticamente todas aspartes do mundo, dirigidas as maisdiferentes especialidades interessa-das no assunto.

Nem o próprio Potter poderia ima-ginar a velocidade como as coisastranscorreriam. É oportuno mencionarque sua visão original da bioética fo-calizava-a como uma questão ou umcompromisso mais global frente aoequilíbrio e preservação da relação dos

seres humanos com o ecossistema e aprópria vida do planeta, diferentedaquela que acabou difundindo-see sedimentando-se nos meios cien-tíficos a partir da publicação do li-vro The Principles of Bioethics, es-crito por Beauchamp e Childress, em1979.

A obra destes dois autores prati-camente pautou a bioética dos anos70 e início dos anos 80, sob uma linhaque, posteriormente, veio a ser cunha-da como “principialismo”, ou seja, odesenvolvimento da bioética a partirde quatro princípios básicos, dois de-les de caráter deontológico (não-maleficência e justiça) e os outros doisde caráter teleológico (beneficência eautonomia). Apesar de não serem ab-solutos sob o prisma filosófico, estesprincípios foram rapidamente assimi-lados, passando a constituir a ferra-menta mais utilizada pelos bioeticistasna mediação e/ou resolução dos con-flitos morais pertinentes à temáticabioética. É importante definir para osleitores da presente publicação, desdejá, que o principialismo é apenas um

Page 14: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

16

dos vários dialetos (ou formas especí-ficas de expressão) do chamado “idi-oma” ou “linguagem bioética”. Ape-sar de este ser o dialeto mais utiliza-do e, hoje, quase hegemônico, devehaver o cuidado para que o mesmonão seja confundido com o próprioidioma (1).

Atualmente, já são mais de dezdiferentes linhas ou “dialetos” utiliza-dos pela bioética no seu desenvolvimen-to, como o contextualismo, o feminis-mo, o contratualismo, o naturalismo,entre outras (2). Destas, merece des-taque, sem dúvida, o contextualismo,que defende a idéia de que cada casodeve ser analisado individualmente,dentro dos seus específicos contextossocial, econômico e cultural. Esta vi-são, por exemplo, faz com que a cultu-ra japonesa se defina não como con-trária ao princípio da autonomia, prin-cípio este simplesmente inexistente nacultura oriental. A análise da ques-tão da autonomia para os índiosianomamis ou terenas pode, também,ser enfocada dentro desse mesmo con-texto.

Toda essa exposição tem o intui-to não de confundir o leitor, mas, pelocontrário, deixar claro que hoje nosencaminhamos em direção à busca deuma bioética mais global, a qual, nãoprescindindo dos instrumentos teóricose práticos que até aqui a caracteriza-ram (os “princípios”), deverá avançarem direção a uma visão maisglobalizada, e ao mesmo tempo maisespecífica, do mundo e do contextoatuais. Ou, no dizer de Campbell: “...aidéia da abertura de uma nova visãodo que possa significar o ser humano,ouvindo a surpreendente diversidadede vozes culturais que procuram fazer-

se ouvir, à medida que a bioética seexpande do Ocidente para outras cul-turas” (3).

É exatamente sob essa ótica quese insere a busca da construção deuma original “bioética brasileira”, seassim podemos dizer, capacitada aenfrentar, mediar e, se possível, darrespostas aos conflitos morais ema-nados das diferentes questõesbioéticas relacionadas com os cos-tumes (mores) vigentes na nossa so-ciedade.

Nesse sentido, para a elabora-ção deste livro houve um especial cui-dado tanto na seleção dos temas eseu ordenamento como nos diversosautores/pesquisadores convidadospara escrever os diferentes capítulos.Assim, em seqüência a esta introdu-ção (parte I), a parte II da obra apre-senta os “Conceitos básicos” dabioética. A abertura cabe ao profes-sor de filosofia da Universidade deSão Paulo, Franklin Leopoldo e Sil-va, que aborda o tema “Da ética fi-losófica à ética em saúde”. Em conti-nuidade, os princípios básicos dabioética são apresentados na seguinteordem: “Princípios da beneficência enão-maleficência” (professores DélioJosé Kipper e Joaquim Clotet, ambosda Pontifícia Universidade Católicado Rio Grande do Sul); “O princípioda autonomia e o consentimento li-vre e esclarecido” (Daniel RomeroMuñoz e Paulo Antonio Carvalho For-tes, ambos da Universidade de SãoPaulo); e “O princípio da justiça”(José Eduardo de Siqueira, da Uni-versidade Estadual de Londrina). Ospadres camilianos Léo Pessini eChristian de Paul Barchifontaine, doCentro Universitário São Camilo,

Page 15: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

17

São Paulo, fecham esta parteenfocando “Bioética: do princi-pialismo à busca de uma perspectivalatino-americana”.

A parte III é a mais longa de to-das, dando espaço a grande diversi-dade dos temas específicos que di-zem respeito à bioética. Ela é abertacom o texto “Bioética e ciência – atéonde avançar sem agredir” (VolneiGarrafa, da Universidade deBrasília). Entre os temas seguintes,estão alguns dos mais polêmicos en-frentados pela bioética, quais sejam:“Reprodução assistida” (AntônioHenrique Pedrosa Neto, secretário-geral do Conselho Federal de Medi-cina e José Gonçalves Franco Júnior,Diretor do Centro de ReproduçãoHumana da Fundação MaternidadeSinhá Junqueira, Ribeirão Preto,SP); “Bioética e aborto” (DéboraDiniz, pesquisadora do Núcleo deEstudos e Pesquisas em Bioética daUniversidade de Brasília, e Marcosde Almeida, da Escola Paulista deMedicina); “O projeto genoma huma-no e a medicina preditiva: avançostécnicos e dilemas éticos” (dogeneticista mineiro Sérgio D. J. Penae Eliane S. Azevêdo, da Universida-de Estadual de Feira de Santana);“Transplantes” (Regina Ribeiro Parizie Nei Moreira da Silva, diretores doConselho Federal de Medicina); “Eu-tanásia e distanásia” (padre LeonardM. Martin, Diretor do Instituto Teoló-gico-Pastoral do Ceará); “Pesquisacom seres humanos” (CorinaBontempo D. Freitas e William SaadHossne, respectivamente, secretária

executiva e coordenador da Comis-são Nacional de Ética em Pesquisa,do Ministério da Saúde); “A Bioéticae a saúde pública” (sob a responsa-bilidade da advogada e professora daUniversidade de São Paulo, SueliGandolf i Dal lari) ; “Bioética ebiossegurança” (do professor da Esco-la Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ, Fermin Roland Schramm);“Bioética e direitos humanos” (abor-dado pelo especialista no assunto eprofessor de Direito da Universida-de de São Paulo, Dalmo de AbreuDallari).

Os capítulos subseqüentes di-zem mais respeito a temas de inte-resse médico, embora guardem rela-ção direta com a própria bioética, deum modo geral: “Erro médico” (JúlioCézar Meirelles Gomes, diretor doConselho Federal de Medicina, eGenival Veloso de França, da Univer-sidade Federal da Paraíba); “Bioéticae medicina legal” (Marco Segre eCláudio Cohen, da Universidade deSão Paulo); “Aspectos bioéticos daconfidencialidade e privacidade”(professores Carlos FernandoFrancisconi e José Roberto Goldim,da Universidade Federal do RioGrande do Sul); e, finalmente, “Éti-ca clínica: a AIDS como paradigma”(de autoria de Guido Carlos Levi, doHospital Emílio Ribas, e AntonioOzório Leme de Barros, do Ministé-rio Público de São Paulo).

Ao final, elaboramos um breveposfácio (parte IV) onde é feita umaanálise sobre o desafiante tema “Abioética no século XXI”.

Page 16: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

18

Referências bibliográficas

1. Garrafa, V, Diniz D, Guilheem D. Thebioethic language, its dialects andidiolects. Cadernos de Saúde Pública.(em publicação).

2. Anjos MF dos. Bioética: abrangência edinamismo. O mundo da saúde1997;21(1):4-12.

3. Campbell A. The President’s Column.IAB News 1998;(7):1-2.

Page 17: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

19

Parte II - Conceitos BásicosFranklin Leopoldo e Silva

Da Ética Filosófica à Éticaem Saúde

Ética e conhecimento

Quando pretendemos situar a éti-ca no contexto das dimensões culturais,encontramos de pronto um primeiro pro-blema. Como separá-la de outras mani-festações como, por exemplo, o conhe-cimento e a religião? Será possível umaseparação tal que a ética se constituacomo uma instância autônoma da cul-tura, claramente definida na suaespecificidade? A relevância da ética nosleva naturalmente a assinalar paraela um campo próprio, a partir doqual possamos reconhecer um modosingular de existir, em primeiro lugarcaracterístico do ser humano e, emseguida, delimitado com nitidez en-tre as dimensões da existência. Po-demos partir deste pressuposto, masquando vamos entender concreta-mente esta separação e estaespecificidade as dificuldades se mul-tiplicam.

Elas aparecem quando tentamos,por exemplo, fazer a distinção entreética e conhecimento. Podemos dizerque quando descrevemos o mundo eprocuramos compreendê-lo efetuamosjuízos que nos permitem assimilar averdade dos fatos; para compreenderestes fatos efetuamos outros juízos,mais abstratos, acerca da ligação en-tre eles e das razões que sustentam taisconexões. Conhecer as coisas édescrevê-las e apreender racionalmen-te as relações que interligam os fenô-menos. Dizemos que aí encontram-sejuízos porque se trata de uma ativida-de que inclui não apenas a mera des-crição, mas julgamentos acerca davalidade e da necessidade das cone-xões que pouco a pouco vamos conhe-cendo. São tais julgamentos que nospermitem enunciar leis científicas. Es-tas não se encontram dadas simples-mente naquilo que percebemos, mas éa partir do que percebemos e observa-mos que nos julgamos autorizados a

Page 18: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

20

formulá-las, atingindo assim conheci-mentos que superam os fatos parti-culares, embora digam respeito a eles.Isto significa que a observação da re-alidade com vistas ao conhecimentonos leva a julgamentos acerca destaprópria realidade. É claro que quandofalamos em julgamentos, nesse senti-do, queremos dizer apenas que a ob-servação nos autoriza a avaliar de for-ma mais ampla e mais geral o com-portamento dos fenômenos, o que noslibera do particular e nos abre o vastohorizonte da legislação da natureza:sabemos não apenas como os fenôme-nos se comportam, mas também comoeles devem se comportar, pois as leisgerais valem para todos os fenômenosdentro das condições determinadaspelos critérios da experiência.

É evidente que assim alcançamosregras de generalidade e de universali-dade que ultrapassam o mero planodos fatos estritamente considerados.Atribuímos à natureza um grau de ne-cessidade que nenhuma observaçãoparticular poderia em si mesma justi-ficar. E quando representamos a natu-reza desta maneira, entendemos quepossuimos acerca dela um conheci-mento muito superior àquele que nosforneceria a percepção atomizada defatos isolados. Julgamos que o conhe-cimento progride quando empregamosprocedimentos intelectuais de ordena-ção, para por meio deles justamenteinferir a ordem dos fatos.

Ora, uma das distinções que secostuma fazer para separar conheci-mento e moral é considerar que osjuízos que a ciência emite estão naordem do ser e os juízos propriamentemorais na ordem do dever ser. Comisto, se quer dizer que a ciência trata

da realidade como ela é, e a moral darealidade como ela deve ser. A ciênciaelaboraria juízos de realidade e a mo-ral juízos dependentes denormatividade. Mas já vimos que aciência atinge justamente os grausmais elevados de conhecimento quan-do apreende as regras de conexão res-ponsáveis pela produção dos fenôme-nos. Já Aristóteles reconhecia que osaber acerca das coisas inclui neces-sariamente o conhecimento das cau-sas de seu aparecimento e de seu modode ser. E as epistemologias modernasenfatizam a constância das relaçõescausais como um dos mais importan-tes requisitos de conhecimento. Reme-ter desta maneira fatos a outros fatospara apreender não apenas relaçõesespecíficas mas a estrutura dos fenô-menos já é, certamente, avaliar a na-tureza, se não no sentido de qualificá-la pelo menos na tentativa de compre-ender na maior generalidade possívela trama tecida pelos fatos.

É preciso lembrar, ainda, que al-gumas teorias do conhecimento daantiguidade – como a de Aristóteles –e da modernidade – como a de Leibniz– incluíam na compreensão desta tra-ma não apenas a eficiência causal daprodução fenomênica como tambéma finalidade a que cada parte está sub-metida na arquitetônica da totalidade.Não bastaria entender como os fatosse produzem, mas seria preciso com-preender a função de cada um no con-junto e as razões da ordem esta-belecida. Embora muitas vezescriticada na história das epistemo-logias modernas, a causalidade fi-nal indica que o esforço de conheci-mento solicita, como que natural-mente, completar-se na formulação

Page 19: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

21

das indagações relativas ao porquê dosfenômenos descritos na estrutura darealidade. E certamente este tipo deresposta, se fosse possível, permitiriaum tipo de conhecimento que não se-ria somente mais abrangente, masmais avaliativo, isto é, possibilitariajulgamentos mais seguros acerca datotalidade, pois nos faria ver – talvezcom mais clareza – o sentido das par-tes e do todo, a razão da posição decada elemento na articulação geral eo modo pelo qual convergem, nasintonia e na diferença. Não se pode-ria dizer a partir daí que inferiríamos,ao menos parcialmente, algo como asnormas que governam o real tanto nosentido do ser quanto no sentido dodever ser?

E, contudo, estaríamos ainda noplano dos juízos de realidade, no sen-tido em que os entendemos quandodizemos que a ciência os produz paradescrever compreensivamente os seusobjetos, articulando as percepções esistematizando a experiência. Mas tal-vez não fiquemos apenas nisto. Por ummisto de ingenuidade e pretensão,muitas vezes emitimos juízos que qua-lificam a realidade. Dizemos não ape-nas que as coisas são desta ou daque-la maneira, mas também que é bomque sejam assim, ou que é mau, ou quepoderiam ser de outra maneira. Talvez,de maneira implícita, isto ocorra sem-pre, sendo impossível olhar as coisassem atribuir a elas um valor, embora adisciplina da atitude científica nos levea recalcar este modo de julgamento.Talvez persista na mentalidade do sen-so comum, e naquilo que o cientistatem de homem comum, algo doanimismo da relação primitiva com omundo, que fazia com que todas as

coisas aparecessem como propícias oumaléficas, extravasando poderes queinterferiam na vida e nas ações huma-nas. Conhecer, neste caso, era tambémsaber como aproveitar o caráter bené-fico e propiciatório ou conjurar o malque as coisas poderiam causar. A ci-ência eliminou esta valoração primei-ramente pelo conhecimento das cau-sas materiais que regem o comporta-mento dos seres naturais e, em segun-do lugar, estabelecendo leis gerais e ne-cessárias que nos permitem prever estecomportamento para, desta forma,dominá-lo. O mundo deixa de ser enig-ma quando o conhecimento se tornasinônimo de determinação necessária.

Critérios éticos

Quando pela primeira vez se ten-tou ligar conhecimento e ética, o pro-blema que surgiu foi justamente o dadeterminação necessária, isto é, a di-ficuldade de estabelecer parâmetros denecessidade para as ações e, princi-palmente, para os critérios pelos quaisconferimos às ações este ou aquelevalor. É possível estabelecer condiçõesgerais e necessárias a partir das quaispossamos determinar o valor ético dasações? Aristóteles pensava que não.Aquele que julga eticamente não o faza partir das mesmas condições daqueleque conhece os objetos físicos. Aqueleque age moralmente não o faz da mes-ma maneira pela qual avalia a causa-lidade necessariamente presente na li-gação entre os fenômenos. Isto ocorreporque o universo das ações humanasnão é regido pela necessidade. O co-nhecimento eventualmente presente na

Page 20: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

22

esfera da moral pode, portanto, não sertambém necessário. É conhecida a in-terrogação socrática acerca da possi-bilidade de se ensinar a virtude. Ensi-nar alguma coisa supõe saber comcerteza o que esta coisa é para podertransmiti-la com clareza àquele que vaiaprender. O homem de bem sabe comabsoluta segurança teórica o que é oBem? A prática do bem supõe estesaber? É possível saber, ensinar eaprender em moral como sabemos,aprendemos e ensinamos geometria?

A resposta é não, e a razão distoé a diferença que existe entre conheci-mento teórico e conhecimento prático.O conhecimento teórico se constituicomo saber acerca do que é necessá-rio. O conhecimento prático se consti-tui como saber acerca do que é con-tingente. O saber das coisas humanaspertence a este segundo tipo. Daí asdificuldades e as oscilações que carac-terizam os juízos morais. Daí a inter-ferência, nestes juízos, de fatores queno conhecimento teórico têm pouca ounenhuma influência. Por que nos jul-gamentos que envolvem decisões mo-rais as pessoas são sensíveis à persu-asão derivada da eloqüência e da ha-bilidade retórica daquele que defendedeterminada causa? Por que a influ-ência das emoções nestes casos podeser determinante? – e os advogados sa-bem muito bem utilizar isto, já que seexercitam em influir nas emoções da-queles que vão dar o veredicto. É por-que nestes assuntos não é possível ademonstração, ao menos no mesmosentido em que ela pode ser efetuadanas ciências teóricas. O bem e o malnão aparecem com a mesma imediateze o mesmo caráter coercitivo da ver-dade e do erro; não chego ao que é

certo em moral da mesma forma quechego à conclusão de um teorema.

E no entanto existe o Bem, assimcomo existe a Verdade. São critériosque em última instância servem de prin-cípios para tudo que é bom e para tudoque é verdadeiro. Mas não se passa doBem ao bom da mesma forma que sepassa da Verdade ao verdadeiro. Me-lhor dizendo: não encontramos o Bemna contingência dos fatos humanos damesma forma que encontramos a Ver-dade refletida na demonstração dasconexões necessárias da ciência. En-tre o que é necessário e o que é contin-gente a diferença está na impossibili-dade de demonstração; daí a aparen-te relatividade das coisas humanas edo que se pode conhecer acerca de-las. A Política, assim como a Ética,participa deste caráter. Mas isto nãosignifica um relativismo total, que re-sultaria na impossibilidade de critéri-os que não fossem puramente circuns-tanciais e subjetivos. A dificuldade daÉtica consiste justamente em introdu-zir normatividade na contingência,pois está fora de dúvida que quem agemoralmente o faz a partir de normasque não são apenas relativas à pessoae ao momento.

Dizer que as coisas humanas sãorelativas é o mesmo que compará-lasa um absoluto que as transcende. Esteabsoluto nunca se fará presente nouniverso das ações, de maneira dire-ta, mas constituirá sempre uma refe-rência, pois agir bem significa realizaro bem no plano da contingência, istoé, agir em vista de um Bem que trans-cende a desordem humana. O fato deque não existem regras teóricas paraisto não afasta inteiramente a ação doconhecimento do Bem. Podemos dizer

Page 21: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

23

que quem age moralmente conhece decerta maneira o Bem, pois o traduz,por assim dizer, na particularidade desua conduta. A extraordinária dificul-dade que a Ética tem que superar é oreconhecimento das mediações que seinterpõem entre o Bem absoluto e asações particulares e contingentes. Nes-ta mediação está contido odiscernimento, que é a distinção entreo bem e o mal sem qualquer regra teó-rica de identificação. Pois as açõeshumanas acontecem sempre numaconfluência complexa de circunstânci-as, no meio das quais é precisodiscernir o modo correto de agir. É sá-bio aquele que possui estediscernimento. Trata-se de um saberbem diferente do saber teórico, poisconsiste essencialmente em discernir overdadeiro em meio à contingência,que não é a ordem ideal das conexõesnecessárias da ciência.

Teoria e prática

É a este saber que denominamosprático. Não significa que ele seja umaaplicação da teoria, mas sim um ou-tro saber que versa sobre um objetoespecífico: a ação. Esta separação en-tre o teórico e o prático pode dar aentender que a Ética está irremedia-velmente relegada a um grau menor decerteza, sendo portanto um tipo de sa-ber inferior. Na verdade, esta distinçãofaz aparecer a autonomia e aespecificidade da Ética. Pois justamen-te mostra que ela não é uma teoria desegundo grau, uma ciência incomple-ta ou um tipo de certeza flutuante. Tra-ta-se de um saber de outra natureza,

com um perfil absolutamente próprio.Também a praxis humana ganha, as-sim, um estatuto específico, já que édefinida não apenas em relação aosobjetos da ciência teórica, como algu-ma coisa menor ou mais pobre, mascomo um domínio singular, afetado porextrema complexidade, sendo a con-tingência de que se reveste um sinaldesta singularidade complexa. Estadiferença de objeto e de procedimentoenfatiza de alguma maneira as proprie-dades singulares do universo humano,mostrando que ele é diferente do mun-do natural, muito embora o homemesteja, por muitos outros aspectos, in-serido na natureza. O que distingueassim tão fortemente o universo huma-no do mundo natural é o valor, e poristo a Ética é o domínio dos juízos devalor.

Isto nos leva ao problema da ori-gem e da especificidade destes juízos.Em geral, pode-se dizer que um juízo ésempre a subordinação de um parti-cular a um universal. Quando dizemosque a água é uma substância, estamosreferindo um elemento particular domundo físico a uma categoria que,enquanto conceito geral, subordina oparticular e o define. O mesmo se po-deria também dizer da subordinaçãoda espécie ao gênero (o cavalo é umanimal). Tais relações servem para or-denar o real e agrupar os objetos par-ticulares, ressaltando a estrutura e oteor sistemático do conhecimento. Épossível notar que os conceitos geraissubordinam particulares empíricos,mas relações do mesmo tipo podem serestabelecidas entre entes abstratos, namatemática e na lógica, como quan-do dizemos que seis é um número parou que a substância é uma categoria.

Page 22: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

24

A questão é saber se há um procedi-mento rigorosamente paralelo quandodizemos que Pedro é generoso ou quea pobreza é uma forma de opressão,ou que a mentira é um vício.

Para que um juízo seja coerente,deve haver concordância entre os ter-mos empregados. Esta concordânciaaparece na visão da compatibilidadeentre o sujeito e o predicado, para to-marmos o juízo na sua forma mais sim-ples. Assim, quando dizemos que aágua é uma substância ou que o ca-valo é um animal, a relação de subor-dinação está corretamente estabe-lecida porque, nestes casos, há umarelação necessária entre os termos, oque faz com que o juízo exprima umconhecimento. Aquele elemento queliga cavalo a animal ou água à subs-tância é de tal ordem que não permitea afirmação contrária como expressãode conhecimento. É fácil notar que estarelação de necessidade não existe en-tre os termos da proposição Pedro égeneroso. Certamente, podemos dizerque quando a formulamos exprimimosque o indivíduo Pedro pode ser incluí-do no conjunto dos indivíduos gene-rosos; mas isto não corresponde exa-tamente à inclusão do cavalo no con-junto dos animais. Pois o que faz comque Pedro seja generoso é diverso da-quilo que faz com que o cavalo sejaum animal. Não podemos entenderque cavalo não seja animal, mas po-demos entender que Pedro eventual-mente fosse mesquinho, ao invés degeneroso. Isto significa que não é ne-cessário que Pedro seja generoso, damesma forma que é necessário que ocavalo seja um animal.

O que liga Pedro à generosidade,não sendo da ordem da necessidade,

impediria que a afirmação da generosi-dade de Pedro tivesse um caráterteórico. O que faz com que Pedro sejageneroso passa por uma incrível com-plexidade de fatores, entre os quaisestá um que é particularmente impor-tante para avaliarmos o significado doque atribuímos a Pedro. Este fator é avontade. Ainda que esta vontade este-ja mesclada com mil outros fatores, taiscomo a educação e a influência domeio, os interesses de Pedro e o con-texto das suas ações, há sempre umnível em que a atribuição do predicadomoral supõe que o sujeito quis possuí-lo, decidiu algo a respeito de si, optoupor uma determinada maneira de agire de posicionar-se diante de si e dosoutros. Ainda que a vontade estejamais ou menos determinada por múl-tiplos fatores, ela se exerce, e o sujeitoprojeta-se diante de si mesmo de umacerta maneira, a qual depende das es-colhas que faz. É este elemento, nãosubmetido a uma necessidade estrita,que confere à generosidade de Pedroo caráter moral atribuído a estepredicado. Suponhamos que Pedro fos-se um ser estritamente determinado aagir generosamente, da mesma formaque os corpos pesados estão determi-nados a cair se algo não os sustenta.Não haveria, neste caso, moralidade nagenerosidade de Pedro – moralidadesupõe vontade e escolha.

Mas supõe, então, da mesmamaneira, que possamos apontar o serque é capaz de escolher a partir davontade, isto é, o ser não submetidoà necessidade. A tendência a respon-der imediatamente que os seres hu-manos são dotados de tal capaci-dade não é, de maneira alguma,tão óbvia quanto se poderia pensar.

Page 23: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

25

O homem não é um ser que se defi-na apenas por um aspecto. A expres-são animal racional, a mais antigadefinição teórica do homem, mostrapor si mesma a dualidade de aspec-tos. Enquanto animal, o homem temalgo que o vincula aos seres puramen-te naturais. Enquanto racional, temalgo que o distingue. Se permanece-mos no âmbito da sensação e da per-cepção, estamos falando de modali-dades de representação que, embo-ra eventualmente mais aperfeiçoadasno homem, não diferem essencial-mente do que acontece no caso dosanimais, que são capazes não ape-nas de sentir e perceber como tam-bém de estabelecer relações de con-secução, como o cão que foge quan-do seu dono pega um bastão, se aca-so aconteceu de já ter sido espanca-do. No entanto, apenas o homempode emitir juízos, isto é, relacionarum caso particular com uma idéiageral, por definição não imediata-mente presente na situação empíricadada. A origem destas idéias gerais,mesmo no que se refere ao mundonatural, é problema que foi resolvidode diversas formas na história do pen-samento. Mesmo assim não há comoexplicar o juízo sem este tipo devinculação. A questão que se colocano caso da Ética é: a que espécie degeneralidade vinculamos o particularquando formulamos juízos morais?Como já sabemos que na Ética for-mulamos juízos de valor, responderí-amos que é a valores que remete-mos os termos dos juízos morais.E dizendo isto abrimos uma outraquestão, que é a da generalidadedos valores e do fundamento destauniversalidade.

A questão dos fundamentosda ética

Assim como os juízos acerca defatos, os juízos de valor também se re-metem à generalidade. Quando dize-mos que Pedro é generoso, e ainda oadmiramos por isto, o que queremosdizer é que Pedro adota, como diretrizde suas ações, um valor dotado de su-perioridade em relação aos indivíduosparticulares. Ainda mais: assim fazen-do, Pedro se coloca como um exemploda possibilidade de as ações humanasparticulares encarnarem valores geraisque as transcendem. Quando julgamosPedro por sua generosidade, estamosimplicitamente entendendo que omundo seria melhor se todos fossemcomo ele. Pois se todos os valores re-metem ao Bem, aquele cujas açõesencarnam algum valor está contribu-indo para a realização do Bem nomundo humano. Pedro seria aquelesábio, de que se falou antes, que sabecomo situar-se no mundo, discernindoentre o bem e o mal, e escolhendoa partir deste conhecimento práti-co – que seria algo como um sensomoral. O sentido da apreensão devalores é um saber prático, quemuitos filósofos chamaram de sa-bedoria.

Não se adquire a sabedoria damesma forma como se adquire o sa-ber teórico. Por vezes se concebeu queas duas coisas se opõem. No início doCristianismo, São Paulo opõe a ciên-cia mundana, fruto do orgulho da ra-zão, à sabedoria da cruz, fruto da hu-mildade. Por isto, a sabedoria cristãaparece como loucura para os não-cristãos. Santo Agostinho, em perspec-

Page 24: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

26

tiva semelhante, difere ciência de sa-piência para mostrar que a atitude te-órica, mesmo que atinja alturas ele-vadas de contemplação da verdade,como aconteceu com alguns filósofosgregos, não permite a posse e a fruiçãodo objeto mais desejado em termos deum saber absoluto, que seria Deus. Pelocontrário, a aceitação da fé e do mis-tério da mediação de Cristo na rela-ção com Deus é que possibilitaria pos-suir a verdade. A hierarquia que o Cris-tianismo estabelece entre a alma e omundo redunda numa separação dasduas instâncias, o que não ocorriaentre os gregos, para quem o homeme sua alma eram parte do mundo. Aseparação cristã, propondo o despre-zo pelas coisas do mundo, concebe aalma como peregrina, isto é, como nãointegrada ao cosmos no qual ela pro-visoriamente se encontra, já que o seudestino deve se realizar em outra di-mensão. O homem estaria sozinho naimensidão do universo, não fôra o con-tato com Deus, e por isto Deus deveser o único objeto de aspiração. Istosignifica que nada, a não ser Deus,determina como a alma deve agir noitinerário de purificação moral. Deter-minar-se por qualquer objeto sensívelou natural é renunciar à condição so-brenatural que constitui a natureza daalma. Portanto, somente valores sobre-naturais são dignos de orientar o homem;tomar qualquer outro objeto comovalor ou como critério de ação é re-baixar a alma. Com isto, a solidão e oestranhamento da alma num mundo aque ela não pertence tornam-se ocasiãopara a afirmação da autonomia, isto é,a liberdade da alma perante as coisas.

Assim como a vontade, a auto-nomia constitui também noção central

na Ética. A moral propriamente cristãvê esta autonomia da vontade comosubordinação a Deus, entendida comolivre aceitação da condição de criatu-ra e dos desígnios de Deus. Amodernidade vai entender a autono-mia como autonomia da razão, e istocertamente repercutirá nas teorias éti-cas. Mesmo assumindo a finitude e aslimitações humanas, Descartes, no sé-culo XVII, não admitirá como critériode verdade em qualquer âmbito senãoa demonstração racional. A autonomiada razão consuma assim a sua sepa-ração da natureza. Esta é menos a to-talidade na qual o homem está inseri-do e muito mais algo que ele deve do-minar para seu proveito através dopoder que lhe confere o pensamento,traduzido nos procedimentos racionaisda ciência e da técnica. Por isto, a no-ção cristã de sabedoria é modificada:considera-se agora que sabedoria é aperfeita integração da teoria e da prá-tica com a finalidade de conseguir parao homem a felicidade, isto é, o gozodos bens que podem advir do saber edo domínio racional da natureza. Estaperfeita integração, numa perpectivaracionalista, se transforma rapidamen-te numa subordinação da prática àteoria, na medida em que se concebeuma continuidade entre a ciência e atecnologia. Neste império da razão, aética só pode ser concebida a partirde uma perspectiva teórica eracionalista. Este é o motivo pelo quala moral aparece em Descartes comoum ramo do saber que depende, paraa sua constituição, das ciências maisfundamentais que a precederiam,como a metafísica, a física e a mate-mática. De direito não haveria dife-rença, a não ser em termos de grau

Page 25: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

27

hierárquico, entre a moral e as outrasciências.

Assim se perde aquela diferençaentre o teórico e o prático, estabelecidapor Aristóteles. O prático passa a serconcebido como o domínio de aplica-ção do teórico, maneira como aindahoje o entendemos. As conseqüênciasdesta mudança são de largo alcance.O que aí se afirma é a unidade de umaracionalidade que doravante deve go-vernar todas as instâncias do mundohumano. Esta racionalidade tem umparadigma e uma finalidade. Oparadigma é a exatidão do saber ma-temático, que a razão clássica consi-dera como critério por excelência deconhecimento e de obtenção de certe-za. A finalidade é o domínio racionalque se traduzirá concretamente na su-bordinação da natureza às necessida-des humanas e na expansão da técni-ca como extensão da ciência, que deverealizar praticamente o domínio dohomem sobre o mundo. A prerrogati-va do sujeito intelectual que desta ma-neira se estabelece contribuirá paraobscurecer a especificidade da praxis,já que esta deve forçosamente se sub-meter aos critérios da racionalidadetécnica. De modo que a predominân-cia de uma perspectiva em princípiohumanista, posto que afirmadora daautonomia da razão, traz consigo estaambigüidade, ou pelo menos estaquestão: terá a racionalidade técnicaalcance suficiente para cobrir todos osaspectos da vida humana, sobretudoos aspectos éticos? Submeter a totali-dade do mundo e a totalidade da vidaa tais critérios não implicaria em re-duzir o mundo humano à perspectivadecorrente dos princípios metafísicose metódicos de uma razão auto-sufici-

ente mas talvez confinada a um domí-nio restrito?

A afirmação da autonomia racio-nal constitui o que ficou conhecido nahistória por Iluminismo. Kant o definecomo a maioridade do gênero humano,isto é, a capacidade de utilização plenada razão, sem a submissão a dogmasou a autoridades; portanto, o exercíciomaduro da liberdade. Mas como definira liberdade? Se analisarmos o que ocor-re na ciência, verificaremos que aracionalidade da experiência consistejustamente em compreender a necessi-dade que, a partir de princípios lógicosdo entendimento, governa a natureza.Isto significa que no âmbito da experi-ência de conhecimento, que é o domí-nio da razão teórica, não se pode falarem liberdade pois tudo a que temosacesso é a uma conexão de fenômenoslogicamente sistematizada, mas carac-terizada justamente pela insepara-bilidade de causa e efeito, condição econdicionado. Sempre haverá, na ordemda experiência, que é a ordem da teoria,fenômenos condicionados, por mais lon-ge que formos na cadeia dos eventosnaturais. Isto faz parte do determinismoda natureza e é o que possibilita a ciên-cia, no rigor das suas explicações. As-sim, a liberdade terá que ser procuradafora do campo da experiência e da ra-zão teórica. Kant institui, então, o domí-nio da razão prática em que é possívelpensar a liberdade e reivindicá-la parao sujeito moral, mas nunca para umobjeto natural. Esta separação permiteque se fale como que de dois mundos:um em que as coisas estão estritamentedeterminadas, pois não existe efeito semcausa; outro em que o sujeito moral, noplano das decisões éticas que nada tema ver com o plano dos eventos empíricos,

Page 26: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

28

pode escolher e optar, atuando assimcomo causa livre, isto é, como aqueletipo de causa que nunca se encontra nouniverso dos fenômenos. Com isto asações humanas podem ser remetidas àliberdade do sujeito, quer dizer, a algoque não atua determinadamente, masque pode iniciar absolutamente uma sé-rie de ações.

A esta liberdade corresponde aautonomia de que deve ser dotado osujeito nas suas decisões morais, au-tonomia que para Kant deve ser abso-luta, ou seja, nenhum motivo de qual-quer ordem pode interferir na decisãodo sujeito, sob pena de contaminar avontade com elementos que a tornari-am dependente de outra coisa que nãoela mesma. Mas, então, qual o critériopara a decisão moral, se absolutamentenada pode interferir? O critério é a for-ma da universalidade que deve orien-tar a ação. Somente a forma atinge apureza que o ato moral deve revestir.Qualquer conteúdo, por mais geral queseja, constituirá uma motivaçãoextrínseca e comprometerá a autono-mia do ato moral. Quando estamosdiante de uma decisão moral devemosperguntar: o que ocorreria se esta açãofosse adotada universalmente? Deve-mos agir como se o critério de nossaação devesse estender-se universal-mente. Qualquer ato que não seja sus-ceptível de universalização seautocontradiz em termos morais. O quese percebe é o esforço de Kant paraencontrar o critério universal que de-veria pautar o juízo moral. Aradicalidade com que ele concebe estecritério o faz encontrá-lo somente naesfera do formal. Assim, o que Kantchama de prático não corresponde àesfera da contingência, mas a um mun-

do inteligível no qual a puraracionalidade da norma universal ga-rante a moralidade do ato. Por isto opróprio Kant nos diz que, dentro de taisparâmetros, jamais houve um só atomoral praticado pela humanidade.Porém isto não o impede de formularo que o ato moral deve ser, na coerên-cia lógica que teria de caracterizá-lo,independentemente das condições con-cretas de realização.

Fundamento e experiênciamoral

O que sobretudo impressiona nes-ta concepção formalista da moral é aseparação drástica entre os planos doser e o do dever ser. Não se trata ape-nas de separar o conhecimento teóri-co ou científico da moral, mas de se-parar todos os aspectos da vida con-creta da realização ética. Independen-te da apreciação que possamos fazerda teoria kantiana, o importante é per-guntar o que isto significa no processohistórico da civilização moderna. Nolimiar da contemporaneidade, numaépoca em que a ciência calcada nomodelo newtoniano alcança a plenitu-de de suas possibilidades, o homem éseparado como que em dois sujeitos:o teórico, que realiza o ideal de certe-za absoluta no interior dos limites doconhecimento científico, e o moral, quepara compreender-se na esfera de sualiberdade é obrigado a colocar esta li-berdade numa altura transcendentalem que ela se situa distante do planoda experiência. Talvez possamos vernesta solução a que chega a filosofiacrítica uma espécie de consolidação

Page 27: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

29

do caminho tomado pela moder-nidade. O que Kant percebe é que, nacontinuidade do teor unitário daracionalidade, instituído por Descar-tes, não seria possível dar conta damoral pois a racionalidade científicanão atinge o plano dos requisitos doato moral, autonomia e liberdade. Istoo levou a conceber uma outra esferade racionalidade na qual os critériosde determinação teórica não teriamvigência. E com isto separou o conhe-cimento da ação, ao menos naquiloque a ação comporta de decisão mo-ral. Podemos medir o alcance desteacontecimento lembrando que, no casodo saber prático preconizado porAristóteles, o sujeito discernia no seioda contingência o meio de realizar aação que guardasse alguma correspon-dência com o Bem absoluto. Em Kanteste é um princípio formal, que a ra-zão pensa de maneira isolada do mun-do concreto, que vai decidir acerca damoralidade, isto é , da conformidadeda ação à moral. Isto significa a tenta-tiva de vincular a universalidade for-mal à ação. Ora, o mundo da contin-gência se distingue de um universologicamente necessário como o daciência exatamente devido à impossi-bilidade desta vinculação. Por isto amoralidade kantiana acaba sendomuito mais um ideal de que devemosnos aproximar do que um critério dediscernimento para a experiência mo-ral concreta.

A época contemporânea sentiumais de perto o impacto da experiên-cia moral concreta. Talvez a drama-ticidade da história deste século tenhamanifestado de forma mais intensacertas contradições entre elementos daação moral, com que antes as teorias

trabalhavam de maneira pacífica. OExistencialismo é seguramente a cor-rente de pensamento em que estes pro-blemas apareceram de forma maisaguda. Pois nele, pela primeira vez, aliberdade é vista como o exercício do-loroso da constante invenção de simesma. Nas teorias clássicas, a liber-dade aparece como uma sábia confor-mação à necessidade. Existe um Deus,existe um mundo transcendente devalores, existe uma teleologia históri-ca, existem referências que dão senti-do ao mundo e aos homens. Claro,existe a insensatez, o erro, o pecado, adesordem, a contingência, enfim, mastudo isto tem causas e explicações quesão fornecidas pela razão e mesmo pelafé. Há uma ordem previamente dada.Quando me insiro nela de maneiraharmônica, sintonizo com o universoe com os seus princípios. Quando setorna mais difícil descobrir esta ori-gem e esta finalidade, como em Kant,tenho ainda o recurso da forma, queé também um princípio a que possotentar conformar minhas ações.Quando não me ponho em sintoniacom a totalidade, não é de todo mi-nha culpa, é antes algo derivado dafinitude que afeta irremediavelmenteo ser humano. Enfim, há essência,que posso realizar de maneira maisou menos completa, mas que consti-tui referência prévia à minha exis-tência. Mesmo quando sinto o uni-verso imenso e estranho, e Deusafastado, posso contar ainda coma esperança.

Mas quando não há mais Deusnem valores transcendentes, quandonão há um plano a realizar, que sen-tido atribuir às contradições, à de-sordem dentro e fora do homem, e à

Page 28: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

30

miséria histórica? O Existencialismocoloca da maneira mais crua a ques-tão da imanência, isto é, nada existeacima do humano com que o homempossa contar para ordenar o seu mun-do e para orientar as suas ações. Éapenas diante de si mesmo que eledeverá construir seus critérios e suasjustificações. A liberdade não é umaforma de Deus testar o homem, é aforma de o homem existir, é o dadoprimeiro, não há critérios anteriores decomo utilizá-la, ela se faz na continui-dade dos atos que a exprimem, cadavez que o homem se projeta na cons-trução de si mesmo. A liberdade é umfardo, como foi o destino para o ho-mem antigo. É isto o que significa di-zer que a existência vem antes da es-sência e que o homem está condena-do a ser livre. A história da humanida-de e a história de minha vida me colo-cam diante de opções. Como enfrentá-las sem critérios absolutos dediscernimento e de escolha? Tenho deinventar, para cada ato, o valor a par-tir do qual eu o escolho, não encontroeste valor, ainda que outro mo apre-sente, tenho que torná-lo meu. Cadaum é aquilo que se torna, aquilo quefaz de si em cada momento da exis-tência. Uma ética com um único crité-rio, que se confunde com um dadoirredutível de realidade: a liberdade.Assumi-la é lucidez e autenticidade;negá-la é má-fé.

O Existencialismo está na verten-te das éticas que partem de uma pro-funda meditação acerca da situaçãohumana, tal como a reflexão a apre-senta. Procura então uma maneira deproporcionar o encontro do homemconsigo próprio e com a história a par-tir da consciência, entendida agora não

mais como essência, mas como proje-to. Mas há uma outra vertente que fazda exterioridade a matriz do pensamen-to ético, e nesta linha estão as éticasutilitaristas. Partem, por exemplo, deuma concepção da evolução dos con-ceitos éticos para estabelecer a origemprática e utilitária destes conceitos. Obom teria sido, na origem, o útil, istoé, a ação benéfica para o indivíduo e,principalmente, para o grupo. Má se-ria a ação prejudicial. Com o passardo tempo e com o progresso da civili-zação esta utilidade imediata deixoude aparecer claramente como critério,mas se manteve a distinção, que foi aospoucos tornada abstrata e resultou nosvalores Bem e Mal. Esta posição pro-cura buscar a origem dos valores pormeio de uma reflexão histórica e psi-cológica acerca da evolução da huma-nidade, e utiliza critérios de uma lógi-ca imanente ao desenvolvimento dasnecessidades humanas. Em última ins-tância, seria a sobrevivência do grupoa origem dos valores, que são entãoestabelecidos para manter obrigaçõesmorais que assegurem a sociabilida-de, a cooperação e a coesão necessá-rias à estabilidade da sociedade. Nes-ta vertente, a liberdade importa menosdo que a adaptação do indivíduo aesquemas de conduta que ele já encon-tra prontos e aos quais é coagido aaceitar. A relatividade cultural dos va-lores aparece, assim, de forma maisnítida, pois é a perspectiva históri-co-sociológica que procura dar con-ta do estabelecimento e das mudan-ças dos critérios morais. Existe umaracionalidade na prescrição dos valo-res, mas ela está a serviço da coesãosocial. Trata-se de uma figura daracionalidade técnica que se estrutura

Page 29: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

31

por parâmetros exclusivamente utilitá-rios.

Ética e progresso da razão

A modernidade se caracteriza pelahegemonia da razão, o que se traduzno triunfo do seu mais eminente pro-duto, a ciência e os seus prolongamen-tos técnicos. Na verdade, estahegemonia nunca deixou de ser con-testada, quase desde o seu apareci-mento. Mas o século XX assiste a umacrítica procedente de fundamentos his-toricamente concretos, que derivam deuma reflexão acerca da relação entremeios e fins nas realizações da razão.Trata-se de um problema ético, mas decerta forma colocado de maneira maisabrangente. O que se questiona é seas promessas de emancipação conti-das no ideário iluminista foram cum-pridas ou estão efetivamente se reali-zando. E um olhar crítico sobre a his-tória da modernidade mostra que não.A expectativa de que haveria a uniãoentre a teoria e a praxis, que deveriacorresponder a uma proporcionalidadeentre o progresso científico-técnico eo aumento da felicidade, não se con-firmou. Isto pode ser constatado devárias maneiras no plano do desenvol-vimento histórico. O homem damodernidade não mais se encontrasubmetido a injunções que caracteri-zavam, por exemplo, a ligação do ho-mem medieval com as instâncias dosagrado, concretamente representadaspela imposição dos dogmas e da au-toridade religiosa. Tampouco se encon-tra submetido às forças naturais, quea ciência explicou e dominou. Mas o

progresso da razão gerou novas formasde dominação ideológica, que se mani-festam nos campos social, político, eco-nômico e que somente são possíveis nummundo em que domina a produção, es-sencialmente vinculada ao aperfeiçoa-mento dos meios técnicos de transfor-mação da natureza. O que se questionaé se, num mundo governado pela razãoliberada das amarras que a prendiam emépocas passadas, o homem pode viverefetivamente de maneira emancipada,isto é, realizar a autonomia enquantocondição da vida ética. A profunda re-flexão de Marx a propósito das relaçõesentre racionalidade e ideologia serviu,pelo menos, para estabelecer sérias dú-vidas acerca da vinculação iluministaentre progresso e liberdade.

O que se nota é que a emancipa-ção não se realizou porque as exigên-cias do progresso técnico fizeram comque as instâncias de controle em to-dos os aspectos da vida se tornassemautônomas, o que trouxe como conse-qüência a submissão do indivíduo atais mecanismos num mundo totalmen-te administrado. Tais instâncias de con-trole não pesam sobre o indivíduocomo a fatalidade das forças naturaisou a autoridade eclesiástica. Elas fo-ram estabelecidas como mecanismosracionais absolutamente necessáriosnum mundo regido pelo progresso téc-nico. Isto significa que foramintrojetadas na consciência do homemmoderno como parâmetros naturais derelacionamento com os outros e como mundo. Esta autonomização dos cri-térios de racionalidade provocou umainversão entre os meios e os fins: o queredundou na dificuldade de sedimensionar, no mundo contemporâ-neo, a capacidade de discernir os fins

Page 30: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

32

à possibilidade de mobilizar os meios.Nunca se dispôs de tantos meios, enunca eles estiveram tão distanciadosdos fins a que deveriam servir. Ora, es-tabelecer a relação entre meios e finsé problema ético. A característica dacontemporaneidade é a incapacidadede estabelecer esta relação pensandoo prático, ou seja, o universo da reali-zação humana, como finalidade doprogresso técnico. O que se observa,então, é a constante reposição das con-dições do progresso técnico como seeste fosse uma finalidade em si mes-mo. A racionalização do social, dopolítico, do econômico e até da instân-cia cultural significa a administraçãode todos os aspectos da vida atravésde parâmetros de objetividade técni-ca, o que se traduz principalmente nahegemonia da tecnocracia.

O que evidencia a profundidade dacrise que afeta o mundo contemporâneoé que, do ponto de vista ético, atecnocracia é uma contradição em ter-mos. A técnica se caracteriza como aprodução de meios. Se ela mesma coor-dena a aplicação dos meios às finalida-des, esta relação acaba se estabelecen-do no interior da própria técnica. Esta éa razão pela qual a planificaçãotecnocrática não produz efeitos fora dopróprio âmbito técnico. Vistas as coisasno limite, o que caracteriza uma tal cul-tura é a recusa da ética. Vivemos nummundo técnica e administrativamente or-denado, de modo unilateral, pelaalternância entre progresso técnico e sa-tisfação de necessidades criadas na pró-pria esfera da produção. Nesse sentido,o consumo não é a finalidade da produ-ção, mas a sua necessária contrapartidatecnológica. O que caracteriza a situa-ção presente e torna difícil a busca de

soluções é que a crise da ética provémde um desdobramento de atributos econseqüências inerentes à própriaracionalidade técnica e ao progresso ci-entífico e tecnológico ocorrido a partirdela. Por isto, para aqueles que conside-ram a inevitabilidade dos rumos da his-tória da razão na modernidade, a situa-ção que estamos vivendo deve ser acei-ta como conseqüência necessária, mes-mo porque seria insensato pensar emsoluções que representassem retrocessoem relação ao já conquistado pela ciên-cia moderna. A dependência da civili-zação em relação aos produtos da ciên-cia e da técnica afasta do horizonte his-tórico este tipo de hipótese.

Crise da razão e éticaaplicadas

O surgimento das éticas aplicadas,entre as quais está a ética da saúde, res-ponde a uma dupla necessidade: de umlado, tenta-se diminuir a distância quese abriu, na modernidade, entre ética econhecimento; de outro, procura-se ins-trumentos para recolocar questões per-tinentes à relação entre ciência e valor,relação esgarçada por conjunturas his-tóricas sobretudo contemporâneas, quecontribuíram para o aparecimento dedúvidas profundas acerca do significa-do e alcance do progresso científico.

Há nisto algo como umaconstatação implícita de que ahegemonia da racionalidade técnica jánão permite que o pensamento acercada vida prática, que os antigos deno-minavam discernimento, realize-se numainstância autônoma, gerando parâ-metros de conduta tais que resultassem

Page 31: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

33

numa manutenção da densidade doespaço público, isto é, o plano das re-lações sociais e da ação política. Aesfera da vida prática esvaziou-se namedida em que a liberdade, nas socie-dades capitalistas modernas, passoua ser considerada simples possibilida-de de decidir individualmente sobreassuntos privados. Mas as causas quecontribuíram para isto também susci-taram um tipo de reação que consisteem tentativas de adaptar a reflexão éti-ca à diversidade dos domínios das es-pecializações. É claro que o pano defundo destas tentativas é uma reflexãomais abrangente sobre a relação entreciência e valor; mas a impossibilidadede levar a cabo esta reflexão na suageneralidade, bem como a urgênciahistórica de restabelecer pelo menosalguma parcela da dimensão ética doconhecimento, levaram à constituiçãode campos delimitados de reflexão,sobretudo a partir de áreas que semostraram especialmente problemáti-cas. Não se pode deixar de dizer que,no fundo, trata-se de uma subordina-ção da ética ao processo de especiali-zação e de fragmentação do saber. Aoutra face desta atitude nos mostra, noentanto, um esforço para recompor,dentro de certos limites, o interesseético que deve fazer parte da atuaçãodo pesquisador e do profissional, prin-cipalmente quando os fatos indicamque a ausência de preocupação éticaocasiona a transgressão das fronteirasque separam o humano do inumano.

Foi devido a razões como essasque a Bioética surgiu a partir da pres-são de fatos históricos, reveladores depráticas de pesquisa das quais estavaausente qualquer parâmetro de consi-deração da dignidade do ser humano.

Após a Segunda Guerra tomou-se co-nhecimento de práticas experimentaisem seres humanos, conduzidas sob onazismo por médicos e cientistas, queultrapassavam qualquer expectativaimaginável de degradação. A primeiramanifestação de caráter mais sistemá-tico e normativo a respeito do assuntoconsta do Código de Nuremberg, queestabelece regras a serem observadasquanto à experimentação com sereshumanos. Dentre os preceitos formu-lados destacam-se: a necessidade deconsentimento daqueles que serão sub-metidos ao experimento; o consenti-mento deve ser dado livremente, porpessoas que estejam em plena capaci-dade de decisão e às quais devem serexplicadas com absoluta clareza todasas condições do experimento, quais se-jam, natureza, duração, objetivos, mé-todos, riscos, efeitos e inconvenientes.Não se deve optar por experimentosem seres humanos quando houver ou-tros procedimentos compatíveis com osresultados esperados. Os experimentosem seres humanos, quando absoluta-mente essenciais, devem ser precedi-dos de experiências com animais, demodo a prover o pesquisador de umrazoável conhecimento acerca do pro-blema estudado. Deve-se reduzir ao mí-nimo os incômodos decorridos do ex-perimento, e este não deve ser condu-zido se houver risco razoável de danograve e permanente. O paciente e osujeito de pesquisa humana devem serprotegidos por meio de cuidados es-peciais, sob a responsabilidade do pes-quisador, que deve suspender de ime-diato os procedimentos se houver situ-ação indicadora de risco grave. O su-jeito do experimento deve poder reti-rar-se dele a qualquer momento, por

Page 32: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

34

livre decisão. Os riscos devem ser pro-porcionais aos benefícios para o indi-víduo e para a sociedade.

O que estes preceitos indicam éum esforço para estabelecer uma rela-ção adequada entre meios e fins. Su-põe-se que há uma medida humanapara avaliar-se os custos do progressocientífico, e isto, por sua vez, pressu-põe que o destinatário deste progressoé o homem, o que torna contraditórioque ele seja visto única e exclusivamen-te como meio. Um dos preceitos fun-damentais da ética kantiana diz quenenhum ser humano será visto comomeio para a obtenção de qualquer fi-nalidade, porque a dignidade huma-na impõe que o homem seja conside-rado somente como fim. Nesse senti-do a Declaração de Helsinque é bemmais explícita, mormente na sua segun-da formulação, ao dizer claramenteque “os interesses do indivíduo devemprevalecer sobre os interesses da ciên-cia e da sociedade”. Uma maneira decompatibilizar esta hierarquia com anecessidade de experiências com se-res humanos é uma avaliação cuida-dosa da relação entre riscos e benefí-cios, bem como uma antecipaçãocriteriosa dos possíveis efeitos resultan-tes. Tudo isto decorre de uma concep-ção básica: há direitos humanos, quese situam acima de qualquer outro in-teresse. Nada justifica a exposição dequalquer ser humano a situações quepossam configurar crueldade ou degra-dação. Este restabelecimento da preo-cupação ética no planejamento e de-senvolvimento do experimento cientí-fico responde à urgência histórica decoibir os abusos cometidos pelos na-zistas em nome da ciência. Apesar detratar-se de códigos, isto é, de conjun-

tos de normas que disciplinam proce-dimentos, os mesmos devem ser vistosa partir de uma questão maisabrangente, que apenas se explicitouem conseqüências assustadoras.

Na verdade, e por mais que nosseja difícil reconhecê-lo, planejar politi-camente o extermínio de pessoas emgrande escala, organizar os meios racio-nais, isto é, administrativos e científicospara que o extermínio seja eficiente, apli-car tais métodos de forma sistemáticae calculada, utilizar pessoas como co-baias, tudo isto está em continuidadecom o predomínio da racionalidade téc-nica desde que esta seja concebida comoabsolutamente hegemônica, quer dizer,sem qualquer parâmetro externo com oqual tenha de se confrontar. No contex-to de tal situação não há incoerência nofato de que seres humanos sejam vistoscomo simples cobaias, mormente se setrata de um determinado grupo que sequer excluir da categoria da humanida-de. Certamente estamos, neste caso, di-ante de uma anomalia, caracterizadapela situação de barbárie a que os indi-víduos são conduzidos sob um regimetotalitário. A tendência é recuar ante ohorror, mas considerar que foi apenasum “episódio”, terrivelmente incompre-ensível, na escalada histórica em queafinal predomina o progresso da civili-zação. Mas é possível pensar, também,que os totalitarismos, com tudo o quetrazem de violência e desumanidade, nãosão interregnos malignos que uma com-preensão abrangente poderia ajustar àtotalidade da história. São, em grandeparte, conseqüências de virtualidades re-gressivas que o progresso traz entranha-das em seu percurso.

Esta visão, que pode parecer pessi-mista, auxilia-nos a compreender as

Page 33: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

35

ambigüidades do progresso e a preveniras monstruosidades que ele pode dar àluz. É nesta direção que podemos enten-der as preocupações éticas que se ex-pressam nos códigos de conduta e emoutros conjuntos de normas aplicadas àspesquisas e às profissões. A Bioética éa ética da vida, quer dizer, de todas asciências e derivações técnicas quepesquisam, manipulam e curam os se-res vivos. A ética da saúde ocupa lugarproeminente neste conjunto, uma vezque se ocupa de questões que têm a vercom a manutenção da vida no caso dosseres humanos. Sendo a vida o primeirode todos os direitos, a ética da saúdeenraíza-se profundamente no solo dosdireitos humanos, e no seu estudo va-mos encontrar, como regras denormatização, alguns dos grandes prin-cípios que vimos aparecer no percursoda ética filosófica. A autonomia, querdizer, o direito à liberdade, o respeito aoser humano considerado como fim (queem Bioética recebe o nome de benefi-cência) e a justiça, isto é, a eqüidade detodos os indivíduos inscritos no reino dahumanidade. Considerados como prin-cípios absolutos não se pode dizer quequalquer um deles tenha sido plenamen-te realizado em qualquer época ou cir-cunstância histórica. Ou são proposiçõesda ética filosófica ou são ideais presen-tes nas grandes transformações políticas,por exemplo, nas grandes revoluções daera moderna, que entretanto os traíramno próprio ato de tentar realizá-los,como ocorreu na Revolução America-na, na Revolução Francesa e na Re-volução Russa. Dir-se-ia que não es-tão dentro das possibilidades humanas,embora sejam o motor do progressocivilizatório e das transformações his-tóricas.

Talvez por isto, na contempo-raneidade, tentamos realizá-los na es-cala reduzida de certos aspectos im-portantes da vida humana, e a saúdecertamente está entre eles, quando con-siderada com suficiente abrangência.Na verdade, esta “redução” de princí-pios absolutos visa traduzi-los nas con-dições concretas da vida histórica edas determinações sociopolíticas eeconômicas. Exemplo deste objetivo éa definição de saúde que consta doRelatório Final da VIII ConferênciaNacional de Saúde, realizada em 1986:“Em seu sentido mais abrangente, asaúde é a resultante das condições dealimentação, habitação, renda, meioambiente, trabalho, transporte, empre-go, lazer, liberdade, acesso e posse daterra e acesso a serviços de saúde”.Esta enumeração de condições soci-ais implica na recusa de um conceitoabstrato de saúde e na afirmação dasresponsabilidades, em todos os níveis,inerentes à consecução de um “esta-do de saúde”, em conformidade coma Declaração de Alma-Ata, que definea saúde como “estado de completobem-estar físico, mental e social e nãoapenas a ausência de doença ou en-fermidade”, enfatizando o seu caráterde direito fundamental.

Assim, também, a ética da saúdedeve guiar-se por princípios concretos.Isto significa que a preservação dos ide-ais éticos propostos historicamente pe-las filosofias implica menos na procla-mação de idéias do que no compromis-so com a realização histórica de valoresque encarnem nas condições determina-das de situações sociais e políticas dife-renciadas o direito de que todo ser hu-mano deveria primordialmente usu-fruir. Este compromisso se fundamenta

Page 34: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

36

principalmente no estado de carência degrande parte da humanidade. Nesse sen-tido, a atitude justificacionista, isto é, atentativa de simplesmente explicar e com-preender as desigualdades que resultamna carência da saúde, é profundamenteantiética, mesmo e sobretudo quandoassumida por filósofos e eticistas. É pre-ciso conhecer a realidade e as situaçõessobre as quais se vai exercer o juízo éti-co; mas fazer com que este juízo traduzauma mera justificação do que existe épropriamente renunciar à ética.

Bibliografia

Adorno T, Horkheimer M. Dialética doesclarecimento. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1986.

Arendt H. As origens do totalitarismo.São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Aristóteles. Ética Nicomaquéia. In:________. Obras Completas. Madri:Aguillar, 1960.

Berlinguer G. Ética da saúde. São Pau-lo: Hucitec, 1996.

Descartes R. Obra escolhida. São Paulo:DIFEL, 1962.

Frankena W. Ethics. Englewood Cliff:Prentice Hall, 1973.

Gracia D. Fundamentos de bioética. Ma-dri: Eudema, 1989.

Heinnemann F. A filosofia contemporâ-nea. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.

Kant E. Crítica da razão prática. BuenosAires: Losada, 1965.

Pessini L; Barchifontaine CP. Bioética esaúde. São Paulo: CEDAS, 1989.

Robin L. A moral antiga. Porto: Desper-tar, s.d.

Sartre JP. O existencialismo é umhumanismo. Lisboa: Presença, 1969.

Page 35: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

37

Caso

Este caso é parte do relato de doismédicos sobre suas interações com umpaciente e sua família e servirá parailustrar o presente tema.

“Em meados de 1989 foi-nos en-caminhado o menino E.M., então comum ano e dois meses de vida e históriade infecções de repetição. O casal ti-nha, também, uma filha saudável detrês anos. O pai era engenheiro, inven-tor de novos utilitários domésticos. Amãe, professora, aparentava ter comoobjetivo maior dedicar-se aos filhos eao marido. Durante a gestação, nasci-mento e primeiros dois meses de vidade E.M. não houve quaisquer anorma-lidades. A partir de então, começou aapresentar infecções de repetição. Foialimentado no seio até os nove meses,quando teve que ser desmamado por-que a mãe submeteu-se à mastectomiapor tumor mamário maligno.

Princípios da Beneficência eNão-maleficência

Délio José KipperJoaquim Clotet

Nesta época, afastamos AIDS econstatamos níveis séricos baixos deimunoglobulinas IgA e IgG e normaisde IgM e IgE. Nesta primeira internaçãopercebemos muito claramente a preo-cupação da mãe com a possibilidadede haver alguma relação entre a doen-ça do filho e o fato de este haver ma-mado no seu seio, já com câncer. Ten-tamos, de todas as maneiras, demoveressas idéias de sua cabeça e a estimu-lamos a continuar o acompanhamen-to com seu médico assistente, apesardos problemas com seu filho.

A partir de então, vivemos umaintensa relação médico-paciente-famí-lia, com altos e baixos, que culminoucom a morte de E.M., nas vésperas doNatal de 1994.

Em novembro de 1989, fechamoso diagnóstico de hipogamaglo-bulinemia, doença congênita que evo-lui com infecções de repetição. O des-fecho natural dessa doença, naquelemomento, era o óbito por infecção ou

Page 36: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

38

neoplasia. Não havia tratamentocurativo disponível, mas as infecçõespoderiam ser atenuadas com a infu-são de imunoglobulinas (ainda mui-to caras e raramente disponíveis àépoca).

O pai viabilizou a vinda dasimunoglobulinas, bem como o acessoà rede internacional de informaçõesmédicas, onde encontramos a possi-bilidade do uso de colostro de vaca,que foi conseguido; a roxitromicinapara o tratamento de infestação porcriptosporidium; as viagens para ava-liação com especialistas em São Pau-lo; os medicamentos experimentais doexterior; tudo sem resultados satis-fatórios, exceto, talvez, o transplante demédula óssea.

Eis que neste ínterim a mãeengravida e aparecem novos dramas:esta doença tem caráter genético oufamiliar? Os pais, após muito bem in-formados, decidiram ter o filho, aliásuma filha, sadia. Ainda estimuladoscom a possibilidade de transplante demédula óssea, fizemos os testes dehistocompatibilidade: as meninaseram compatíveis entre si, mas nãocom o irmão.

Por longo período E.M. ficou comcateter semi-implantado para alimenta-ção parenteral domiciliar e sondanasogástrica, que ficava permanente-mente em seu nariz. Nunca aceitougastrostomia e o respeitamos. Gostavamuito de roupas coloridas, de passearpelo pátio do hospital e de fazer com-pras em sua lojinha. Fazíamos tudo paraque pudesse desfrutar destes prazeres.Quando possível, suas irmãs estavamcom ele e tentávamos não fazer procedi-mentos ou interná-lo quando o time doseu coração jogava.

Mas, de repente, E.M. desapare-ceu. Seus pais não entravam mais emcontato conosco e, aparentemente, nãoestavam em acompanhamento comoutro médico. Preocupado com osmelhores interesses do paciente, pormeio de um amigo comum contac-tamos a família. Eis a surpresa: ospais, sentindo-se cansados edesesperançados, haviam decididoentregar o filho “nas mãos de Deus” enão fazer mais nada. Eram muito religi-osos, rezavam muito e tinham fé de queDeus faria o melhor por seu filho. Apósvárias tentativas e com muito constran-gimento tivemos que ameaçá-los com apossibilidade de denúncia ao ConselhoTutelar por maus-tratos, caso não voltas-sem a procurar ajuda para seu filho.

E.M. voltou desnutrido, com infec-ção severa na perna direita, trombo-se, arterite e necrose do pé. Após to-das as tentativas, constatamos que nãohavia condições de manter aquele pénecrosado, porque estava trazendogrande risco de morte para E.M. Pro-pomos, então, a amputação. Foi peno-so para nós e para os pais, mas era aúnica chance, e os pais concordaramcom a amputação.

As infecções se repetiam. Em de-zembro de 1994, sobreveio a falênciade múltiplos órgãos. No dia 20 de de-zembro, pela manhã, constatamos queo quadro era irreversível. Mesmo coma ventilação mecânica, a gasometriaera péssima. Não urinava mais. Esta-va muito ictérico. As arritmias eramfreqüentes, seu pulso débil e a perfusãoperiférica comprometida. As pupilasestavam midriáticas e não reagiam à luz.Ao aspirar suas vias aéreas, junto comas secreções veio parte de sua mucosa,necrosada. Os pais, segurando as mãos

Page 37: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

39

de seu filho, olharam para nós. Forammomentos de silêncio, de reflexão e dereavaliação que não esqueceremos.Após alguns segundos, que pareciamséculos, perguntamo-lhes: Chega? Aresposta veio rápida e segura: che-ga. Nos vinte minutos seguintes fo-ram suspensas as medicações e aventilação mecânica. Os pais, comum choro suave e abraçados, acom-panharam os últimos batimentos car-díacos de seu filho”.

Introdução

Jean Bernard, hematologista, pre-sidente da Academia de Ciências etambém do Comitê Nacional Consul-tivo de Ética para as Ciências da Vidae da Saúde, da França, afirma que “apessoa é uma individualidade biológi-ca, um ser de relações psicossociais,um indivíduo para os juristas. Contu-do, ela transcende essas definiçõesanalíticas. Ela aparece como um va-lor. (...) Nos problemas éticos decor-rentes do processo das pesquisas bio-lógicas e médicas devem ser respeita-dos todos os homens e o homem todo”(1). O ser humano, na apreciação des-se eminente cientista, merece respeito.Este é um tema relevante na históriado pensamento ético. No século XVIII,Immanuel Kant, destacado filósofo damoral, fez uma afirmação parecida:“Os seres racionais são chamados depessoas porque a sua natureza os di-ferencia como fins em si mesmos, querdizer, como algo que não pode ser usa-do somente como meio e, portanto, li-mita nesse sentido todo capricho e éum objeto de respeito” (2). O mesmo

autor fala na pessoa como possuidorade dignidade e valor interno (3).

Já nos primórdios da civilizaçãoe do pensamento ocidental há sinaisdesse interesse pelo valor do ser hu-mano e pelo respeito a ele devido. Con-tudo, as exceções a essa constatação,ao longo da história da humanidade,foram e continuam sendo, infelizmen-te, muitas. No Corpus Hippocraticum– denominação dada ao conjunto dosescritos da tradição hipocrática, já quehoje se sabe que Hipócrates não foi oúnico autor dos mesmos – é manifestoo interesse por não lesar ou danificaras pessoas, de forma geral, e as pesso-as enfermas, de modo particular. Nãocausar prejuízo ou dano foi a primeiragrande norma da conduta eticamentecorreta dos profissionais de medicinae do cuidado da saúde.

O interesse em conhecer o que ébom, o bem, e os seus opostos, o queé mau e o mal, com os princípios e ar-gumentos que os fundamentam, justi-ficam e diferenciam, é o conteúdo ge-ral da ética teórica. Com toda razão,George Edward Moore afirma na suaobra Principia Ethica: “O que é bom?E o que é mau? Dou o nome de ética àdiscussão dessa questão” (4) e “a per-gunta sobre como deve definir-se ‘bom’é a questão mais importante de toda aética” (5).

O estudo que se ocupa das açõesdas pessoas, se o seu agir pode serqualificado de bom ou de mau, é oconteúdo da ética prática. A esse res-peito, diz Aristóteles na Ética aNicômaco: “Não pesquisamos parasaber o que é a virtude, mas para ser-mos bons” (6). Essa afirmação escla-rece que o interesse de Aristóteles nes-sa obra é basicamente prático.

Page 38: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

40

As teorias éticas ou as escolas éti-cas que apresentam a sua doutrinacomo uma série de normas para agirbem ou de modo correto são chama-das de éticas normativas. Dentre osdiversos tipos de éticas normativascabe destacar a teoria do dever vin-culado ao imperativo categórico deImmanuel Kant, e a teoria dos deveresnum primeiro momento ou deveresnuma primeira consideração (primafacie duties), de William David Ross.Essa última teoria tem grande influên-cia na teoria conhecida como oprincipialismo, a qual aludiremos pos-teriormente.

No seu dia-a-dia, muitos profis-sionais, incluídos os do cuidado à saú-de, pautam o seu agir profissional pornormas ou regras provenientes doschamados códigos deontológicos deuma determinada profissão ou, tam-bém, embora não seja a melhor deno-minação, códigos de ética ou códigosde ética profissional. O interesse pelosaspectos que concernem à boa condu-ta ou à má conduta no exercício deuma profissão foi expresso, ao longoda história, sob a forma de orações,juramentos e códigos. Convém obser-var que a maioria dos códigosdeontológicos profissionais pretendi-am, originariamente, manter e prote-ger o prestígio dos seus profissionaisperante a sociedade. Daí a conveni-ência de punir e excluir aqueles que,na sua conduta, desprestigiavam aimagem da profissão. Ora, expressõescomo punir, disciplinar, fiscalizar, fa-zer denúncia, freqüentes nos códigosprofissionais, têm pouco a ver com olinguajar da ética propriamente dita, emuito a ver com assuntos do CódigoPenal. Por outro lado, no exercício pro-

fissional da medicina, da odontologia,da enfermagem e da psicologia torna-se impossível pautar a conduta ape-nas pelas normas do código profissio-nal, pois alguns dos problemas quepodem se apresentar sequer foram con-templados nos mesmos. A reflexão so-bre um conflito moral no exercício daprofissão, realizada apenas sob oreferencial do código deontológico,será, provavelmente, uma visão mío-pe e muito restrita da problemática éti-ca nele contida.

Como foi colocado, a éticanormativa e a ética deontológica têma ver com a ética prática. Devido aosavanços da tecnologia nos mais diver-sos campos, faz-se necessária a dis-cussão sobre a conveniência, uso ade-quado, riscos e ameaças da mesmapara a humanidade, tanto de formageral como para o indivíduo em parti-cular. Hans Jonas situa muito bem esseproblema ao afirmar que estamos preci-sando de um tratado tecnológico-ético(tractatus technologico-ethicus) paranossa civilização (7). Os princípios daética sobre a conduta boa ou má, cer-ta ou errada, justa ou injusta aplicam-se, na época atual, a problemas novosdecorrentes do progresso tecnológicoe da nova sensibilidade ética da civili-zação e cultura contemporâneas. As-sim, por exemplo, podemos nos pergun-tar: recomendaríamos a fecundaçãoassistida para uma senhora de 60 anosou mais? Podem os animais ser usa-dos indiscrimina-damente para qual-quer tipo de experimentação? Devemser colocados limites ao uso de mate-riais que poluem as águas, as florestase a atmosfera, ameaçando a saúde dasgerações futuras? Essas e outras per-guntas semelhantes são próprias da

Page 39: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

41

ética aplicada, que tem uma pluralidadede formas, por exemplo, entre ou-tras muitas, a Bioética e a Ecoética.Peter Singer caracteriza esses tiposde éticas como o raciocínio éticoaplicado a problemas concretos dodia-a-dia (8).

Conforme afirmamos, a bioéticaintegraliza ou completa a ética prática– que se ocupa do agir correto oubem-fazer, por oposição à ética teó-rica ocupada em conhecer, definir eexplicitar – e abrange os problemas re-lacionados com a vida e a saúde, con-figurando-se, portanto, como uma éti-ca aplicada. Esse seria o significadoaqui dado ao vocábulo bioética, que épresentemente o de maior uso e acei-tação, estreitamente relacionado comas ciências da saúde. O mesmo termopoderia ser usado num sentido bemmais amplo, a conotação da palavravida, de forma geral, que estender-se-ia aos reinos mineral, vegetal e animal;contudo, não é esse o significado utili-zado no presente capítulo.

A bioética, como reflexão de ca-ráter transdisciplinar, focalizadaprioritariamente no fenômeno vidahumana ligada aos grandes avançosda tecnologia, das ciências biomédicase do cuidado à saúde de todas as pes-soas que dela precisam, independen-temente de sua condição social, é,hoje, objeto de atenção e diálogo nosmais diversos âmbitos. O pluralismoético ou a diversidade de valores mo-rais dominantes, inclusive nas pes-soas de um mesmo país – e o Brasil éexemplo típico de diversidadeaxiológica –, torna difícil a busca desoluções harmônicas e generalizadasno que se refere a problemas sobredoação de órgãos, transplantes,

laqueadura de trompas, aborto, deci-sões sobre o momento oportuno damorte e tantos outros. O pluralismoético dominante e a necessidade deuma teoria acessível e prática para asolução de conflitos de caráter ético fezdesabrochar o principialismo comoensinamento e método mais difundi-do e aceito para o estudo e soluçãodos problemas éticos de caráterbiomédico. O principialismo, de acor-do com a versão mais conhecida – queé a de Beauchamp e Childress, em suaobra Principles of Biomedical Ethics (9)– apresenta quatro princípios ou mo-delos basilares: o princípio do respeitoà autonomia, o princípio da não-maleficência, o princípio da beneficên-cia e o princípio da justiça. Ocupar-nos-emos a seguir dos princípios dabeneficência e do princípio da não-maleficência.

Convém relembrar que bem e bom,mal e mau são conceitos pivotais da éti-ca teórica. Além disso, agir bem, agir deforma correta ou, usando as palavras deAristóteles acima mencionadas, “serbons” é tarefa da ética prática. Ser umbom profissional significa, antes de maisnada, saber interagir com o paciente,quer dizer, tratá-lo dignamente no seucorpo e respeitar os seus valores, cren-ças e desejos, o que torna o exercícioprofissional do cuidado à saúde uma ta-refa difícil e às vezes conflitante. O pro-fissional de saúde faz juízos prognósti-cos, juízos diagnósticos, juízosterapêuticos e não pode também se exi-mir de fazer juízos morais. Os problemashumanos não são nunca exclusivamen-te biológicos, mas também morais.Quando o médico que relatou o casorecomendou à mãe que continuasse otratamento para seu câncer de mama,

Page 40: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

42

além de isto ser necessário e bom paraela, o fez porque, prevendo a evoluçãoda doença de seu paciente, o conside-rou na sua totalidade e sabia que a pre-sença de sua mãe, com saúde, seriamuito importante, e fez isto porque seriabom, o que nessa situação é o tema daética. Ao estimular o uso de suas roupascoloridas, suas idas à lojinha e ao pátiodo hospital, ao não interná-lo durante jo-gos do seu time e ao se preocupar com odesconforto perante os colegas pela pre-sença visível da sonda nasogástrica, ofez considerando-o uma pessoa doen-te. Assim, o dentista, o médico, a enfer-meira e a psicóloga não tratam apenasde uma doença, mas sim de uma pes-soa adoentada, com as suas crenças evalores, que não podem ser ignorados.Este é o significado e referencial de “ho-mem todo”, citado por Jean Bernard noinício desta seção, e também do “respei-to” mencionado por Immanuel Kant. Noexercício correto ou adequado da medi-cina, odontologia, enfermagem e psico-logia, portanto, é indispensável a dimen-são ética. Como veremos em continua-ção, a beneficiência e a não-male-ficência estão na base da mesma.

Beneficência e não-maleficência como princípios

Beneficência, no seu significadofilosófico moral, quer dizer fazer o bem.A beneficência, conforme alguns dosautores representativos da filosofiamoral que usaram o termo, é uma ma-nifestação da benevolência. Benevolên-cia tem sido, porém, um conceito bemmais utilizado. Os moralistas britâni-cos dos séculos XVIII e XIX debruça-

ram-se especialmente sobre o mesmo,entre eles cabe mencionar Shaftesbury,Joseph Butler, Francis Hutcheson,David Hume e Jeremy Bentham.Butler, por exemplo, diz que existe nohomem, de forma prioritária, um prin-cípio natural de benevolência ou daprocura e realização do bem dos ou-tros e que, do mesmo modo, temos pro-pensão a cuidar da nossa própria vida,saúde e bens particulares (10). Oposicionamento desses autores é umacrítica à teoria de Thomas Hobbes,que apresentava a natureza humanadominada pelas forças do egoísmo, daautoconservação e da competição(11). Ora, o egoísmo não é o únicodinamismo natural do ser humano,pois toda pessoa normal tem sentimen-tos para com os outros seres que comela convivem, por exemplo, simpatia,gratidão, generosidade e benevolência,que impulsionam a prática do que ébom para os outros e para o bem pú-blico. Essa teoria é denominada porShaftesbury como senso moral ou sen-tido moral. Platão, Aristóteles e Kantoutorgam um papel secundário à be-nevolência, pois eles priorizam nas res-pectivas teorias éticas o papel da ra-zão; a benevolência, vinculada ao sen-timento e às paixões, tem para todoseles um protagonismo menor. Humeestuda, com as características que lhesão peculiares, a virtude natural da be-nevolência nas suas obras morais. Paraele, trata-se de uma tendência que pro-move os interesses dos homens e pro-cura a felicidade da sociedade (12). Deforma geral, a benevolência, formagenérica da beneficência, de acordocom os autores citados, tem as seguin-tes características: 1) é uma disposi-ção emotiva que tenta fazer bem aos

Page 41: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

43

outros; 2) é uma qualidade boa docaráter das pessoas, uma virtude; 3) éuma disposição para agir de formacorreta; 4) de forma geral, todos osseres humanos normais a possuem.

William David Ross, nas três pri-meiras décadas do século XX, desen-volve uma ética normativa conhecidacomo a ética dos deveres num primei-ro momento ou numa primeira consi-deração (prima facie duties). A éticanormativa de Ross traz uma lista dedeveres que têm a particularidade deserem independentes uns dos outros.São os deveres da fidelidade, repara-ção, gratidão, justiça, beneficência,aperfeiçoamento pessoal, não-maleficência (13). O mesmo autor afir-ma que usa a palavra beneficênciapreferindo-a a benevolência, pois, emsua opinião, aquela exprime melhor ocaráter de dever. O dever num primei-ro momento ou numa primeira consi-deração não é um dever absoluto, massim condicional. Trata-se de um deverevidente e incontestável. Entretanto,pode alguém, de repente, encontrar-sediante de dois deveres num primeiromomento ou numa primeira conside-ração ao mesmo tempo. Diante do di-lema, terá que decidir-se por um dosdois. Por esse motivo pode-se afirmarque o dever num primeiro momento ounuma primeira consideração, aindaque muito importante ou incontestá-vel, não tem o caráter de absoluto. Essedever refere-se a uma situação moraldeterminada, é um dever que deve sercumprido, a não ser que entre em con-flito com um dever igual ou mais forte.O mesmo caso ou problema em ques-tão poderia ser também consideradosob a influência ou condicionamentode um outro tipo de dever. Assim, quan-

do os pais do menino não procurarammais o médico, este, mesmo reconhe-cendo que a autonomia do paciente,representada neste caso pelos pais,deveria ser respeitada, priorizou a be-neficência, que considerou seu deverprimeiro, mesmo tendo que ameaçarcom a força da lei. Outra situação édescrita no momento da amputação.Sempre devemos, numa primeira con-sideração, não causar mal ao pacien-te, como mutilá-lo. Mas, nesta situa-ção, o dever mais importante foi man-ter a vida, mesmo que com qualidadeinferior.

William K. Frankena, destaca-do filósofo da moral desde o fim daSegunda Guerra Mundial até a dé-cada dos anos 80, representante donormativismo e da metaética, oque não é muito comum (14), sus-tenta que há pelo menos dois prin-cípios de moralidade, básicos e in-dependentes: o da beneficência eo da justiça (15).

Depois de todo o exposto, pode-mos afirmar que temos os elementosconstitutivos para a compreensão doprincipialismo, de forma geral, e dosseus princípios de beneficência e não-maleficência. Sintetizando, vale a penadestacar: a beneficência, sob o nomede benevolência, é um dos elemen-tos exponenciais da filosofia moralbritânica dos séculos XVIII e XIX ede grande repercussão na bioéticaprincipialista. Beneficência e não-maleficência são deveres independen-tes e condicionais (ou não-absolutos),conforme a classificação de Ross. Be-neficência e justiça são princípios daética, fundamentais e independentes,de acordo com a exposição deFrankena.

Page 42: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

44

Todas estas teorias entram na ges-tação do denominado principialismo.Passemos agora ao seu nascimento. Osanos de 1978 e 1979 são inesquecí-veis no tema que nos ocupa. Neles sãopublicados o Relatório Belmont(Belmont Report) e o livro deBeauchamp e Childress (Principles ofBiomedical Ethics). O RelatórioBelmont apresenta os princípios bási-cos que podem ajudar na solução dosproblemas éticos surgidos na pesqui-sa com seres humanos. Esse relatóriofoi elaborado por onze profissionais deáreas e disciplinas diversas, que naépoca, nos Estados Unidos, eram mem-bros da Comissão Nacional para aProteção dos Sujeitos Humanos daPesquisa Biomédica. Os princípioselencados são: 1) o princípio do res-peito às pessoas; 2) o princípio da be-neficência; 3) o princípio da justiça.Por outro lado, Beauchamp e Childresstentam apresentar uma teoria de prin-cípios básicos da moral alicerçada no:1) princípio do respeito da autonomia;2) princípio da não-maleficência; 3)princípio da beneficência; 4) princí-pio da justiça. A obra tem como panode fundo as teorias apresentadas an-teriormente, às quais devem acrescen-tar-se o utilitarismo e o deontologismomoral kantiano. O principialismo oubioética dos princípios tenta buscarsoluções para os dilemas éticos a par-tir de uma perspectiva aceitável peloconjunto das pessoas envolvidas noprocesso por meio dos princípios sele-cionados. O principialismo é uma éti-ca que não vai se adaptar a todas asteorias éticas nem ao modo de apreci-ar o que é bom e ruim de cada umadas pessoas de nossa sociedade. Todoprincípio apresenta uma perspectiva

válida, porém parcial, das responsa-bilidades das pessoas que o utilizam.Cabe destacar que o principialismo foipensado e desenvolvido numa socie-dade caracterizada pelo pluralismomoral e para a solução de problemasconcretos. Não há, portanto, umametafísica ou ontologia específicaspermeando todos os princípios dessateoria. Essa tem sido uma das críticasmais comuns feitas à teoriaprincipialista. No principialismo as te-orias e regras formuladas têm o cará-ter de normas num primeiro momentoou numa primeira consideração, o queabre espaço para outros princípios esoluções, omitindo o termo dever usa-do por Ross e substituindo-o por obri-gação. O principialismo poderá forne-cer razões e normas para agir que fa-cilmente irão além dos sentimentosmorais individuais do profissional desaúde. Nenhum dos princípios, porém,tem o peso suficiente para decidirprioritariamente em todos os conflitosmorais.

O princípio da beneficência temcomo regra norteadora da prática mé-dica, odontológica, psicológica e daenfermagem, entre outras, o bem dopaciente, o seu bem-estar e os seusinteresses, de acordo com os critériosdo bem fornecidos pela medicina,odontologia, psicologia e enfermagem.Fundamenta-se nesse princípio a ima-gem que perdurou do médico ao lon-go da história, e que está fundada natradição hipocrática já aludida: “usa-rei o tratamento para o bem dos enfer-mos, segundo minha capacidade ejuízo, mas nunca para fazer o mal e ainjustiça” (16). Num contexto diferen-te, Epicuro, filósofo da moral dos sé-culos IV e III a.C., afirma: “não presta

Page 43: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

45

a palavra do filósofo que não servepara curar as doenças da alma” (17).Cabe esclarecer que o termo filósoforefere-se aqui ao homem culto ou sá-bio. A frase poderia, hoje, aplicar-se,de forma restrita, aos profissionais queutilizam a palavra como arte e instru-mento de terapia e, de forma ampla, atoda pessoa medianamente educadacuja palavra, no seu relacionamentocom pessoas afetadas por um proble-ma psíquico ou somático, deveria mi-nimamente aliviar ou suavizar os trans-tornos que facilmente traumatizam oudesequilibram no dia-a-dia. A históriada ética, que tem acompanhado a prá-tica médica ao longo dos séculos, é emalguma medida exercício da beneficên-cia. Edmund Pellegrino e DavidThomasma não ocultam essa marcanem sequer na medicina contemporâ-nea e identificam, portanto, a práticamédica e o princípio da beneficência:“a medicina como atividade humanaé por necessidade uma forma de be-neficência” (18). O princípio da bene-ficência tenta, num primeiro momen-to, a promoção da saúde e a preven-ção da doença e, em segundo lugar,pesa os bens e os males buscando aprevalência dos primeiros. O exercícioprofissional das pessoas aqui já nome-adas tem uma finalidade moral, implí-cita em todo o seu agir, entendida prin-cipalmente em termos de beneficência.Esses profissionais procuram o bem dopaciente conforme o que a medicina,a odontologia, a enfermagem e a psi-cologia entendem que pode ser bom nocaso ou situação apresentada.Bernard ratifica esse posicionamentodizendo: “todo ato terapêutico, todadecisão, tem como único alvo propor-cionar um auxílio eficaz a uma pessoa

enferma em perigo” (19). Isso confir-ma mais uma vez, no exercício das pro-fissões em questão, a afirmação deFrancis Bacon sobre “a disposição ouesforço ativo para promover a felici-dade e bem-estar daqueles que nosrodeiam” (20), característica geral detodo ser humano normal.

A beneficência no seu sentido es-trito deve ser entendida, conforme oRelatório Belmont, como uma duplaobrigação, primeiramente a de nãocausar danos e, em segundo lugar, ade maximizar o número de possíveisbenefícios e minimizar os prejuízos(21). No que diz respeito à primeiraobrigação, o tema será tratado maisadiante. É importante frisar, aqui, umadivergência no principialismo. No Re-latório Belmont, não causar danos in-tegra o princípio da beneficência, en-quanto que para Beauchamp eChildress, seguindo o modelo de Ross,não causar danos é um princípio dife-rente do princípio da beneficência.Cabe observar a influência da éticautilitarista, também chamada de arit-mética moral, na exposição da segun-da obrigação. No Relatório Belmont,focalizado na proteção dos seres hu-manos na pesquisa médica e na pes-quisa sobre a conduta, as obrigaçõesde beneficência são próprias dos pes-quisadores em particular e da socie-dade de forma geral, pois esta devezelar sobre os riscos e benefícios de-correntes das pesquisas sobre a huma-nidade.

É evidente que o médico e demaisprofissionais de saúde não podemexercer o princípio da beneficência demodo absoluto. A beneficência temtambém os seus limites – o primeirodos quais seria a dignidade individual

Page 44: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

46

intrínseca a todo ser humano. Nos mo-mentos finais do caso relatado, o mé-dico e os pais, vendo que inexistiamquaisquer possibilidades de recupera-ção ou manutenção da vida do paci-ente, por inúteis e fúteis, decidiram porsuspendê-las. Assim, a decisão ferre-nha de manter viva uma pessoa portodos os meios cabíveis, quando osseus parâmetros vitais demonstram ainutilidade e futilidade do tratamento,pois não existem possibilidades demelhora ou de recuperação, mostrou-se correta. Da mesma forma, o bemgeral da humanidade não deveria seraduzido como justificativa de uma pes-quisa que desrespeitasse ou abusassede uma vida humana, como poderiaacontecer num paciente terminal ounum feto. O transplante de medula paraE.M., que vinha se encaminhando aoestado de paciente terminal, mesmocom poucas possibilidades terapêuti-cas e curativas, poderia ter sido consi-derado pelos pais, pelo médico, sem-pre à procura de novos recursos, comouma contribuição à sociedade, ofere-cendo o menino como sujeito de pes-quisa. Entretanto, não o fizeram por-que, para ele, os riscos seriam muitomaiores do que os possíveis benefícios,com custos muito elevados para a fa-mília, e decidiram respeitá-lo comopessoa humana e não apenas comoobjeto de pesquisa. É difícil podermostrar onde fica o limite entre a be-neficência como obrigação ou dever ea beneficiência como ideal ético quedeve animar a consciência moral dequalquer profissional. Além disso, ain-da que o princípio da beneficência sejaimportantíssimo, ele próprio torna-seincapaz de demonstrar que a decisãodo médico ou do profissional de saú-

de deva sempre anular a decisão dopaciente, sendo essa uma das carac-terísticas dos deveres num primeiromomento ou deveres numa primeiraconsideração. Essa é uma das razõespelas quais foi afirmado que eles nãosão absolutos, mas sim condicionaisou dependentes da situação ou pontode vista com que são afirmados.

Não foi fácil para o médico de-cidir o que deveria ser feito em cadauma das situações apresentadas.E.M. nunca ouviu de seu médico queiria morrer logo; se o tivesse ouvido,isso não lhe traria nenhum benefício,nem a ele nem à sua família, e certa-mente isto o teria deixado muito tris-te. É preciso aprender a tomar deci-sões de caráter profissional e moralem situações de incerteza. Há umasérie de situações na prática médicanas quais o princípio da beneficên-cia deve ser aplicado com cautelapara não prejudicar o paciente ou aspessoas com ele relacionadas. Assim:no caso de um tratamento paliativo,quando e como dizer a verdade? Atéquando aliviar o sofrimento? Em quemedida a autonomia do paciente estásendo respeitada? No caso da recusado tratamento pelo paciente, deve omédico intervir quando as conseqü-ências serão mortais para o pacien-te, como na necessidade de transfu-são de uma Testemunha de Jeová?O que fazer perante um pacienteadulto e incapaz? E no caso de ummenor acompanhado pelos pais? Abeneficência, nesses casos, deveriatentar esgotar todos os recursos, en-tre outros a troca de médico e o usode outras medidas terapêuticas; nocaso de terapias gênicas seria acon-selhável o uso de uma terapia que

Page 45: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

47

comporta riscos desconhecidos e pro-vavelmente desproporcionados comrespeito aos benefícios esperados?Qual seria a responsabilidade com asgerações futuras? Deveriam ser as-sumidos os riscos no caso do trata-mento de uma doença grave? Cabeobservar, porém, que o princípio dabeneficência pode motivar e justifi-car o uso do screening genético embenefício de uma determinada comuni-dade, ou de pessoas de uma determina-da região ou país. Dizer a verdade aopaciente ou aos seus familiares constituiuma ameaça ou uma ajuda à autono-mia do paciente? Sob o aspecto da be-neficência, de forma geral, dizer a ver-dade contribuiria para uma tomada dedecisões devidamente fundamentada noque se refere ao tratamento, à adminis-tração dos bens, às relações humanas,ao sentido da vida e possíveis crençasreligiosas. G. Hottois e M. H. Parizeau,na sua obra Les Mots de la Bioéthique(22), são mais prolixos na exemplificaçãode casos e situações sobre esse tema quepoderia prolongar-se quase indefinida-mente.

O princípio da não-maleficência

As origens desse princípio remon-tam também à tradição hipocrática:“cria o hábito de duas coisas: socor-rer ou, ao menos, não causar danos”(23). Esse texto não diz: primeiramen-te ou acima de tudo não causar danos(primum non nocere), que é a tradu-ção da forma latina posterior. Segun-do Frankena, o princípio da beneficên-cia requer não causar danos, prevenir

danos e retirar os danos ocasionados.Beauchamp e Childress adotam os ele-mentos de Frankena e os reclassificamna forma a seguir: não-maleficência oua obrigação de não causar danos, ebeneficência ou a obrigação de preve-nir danos, retirar danos e promover obem. As exigências mais comuns dalei e da moralidade não consistem naprestação de serviços senão em restri-ções, expressas geralmente de forma ne-gativa, por exemplo, não roubar. Nomais das vezes, o princípio de não-maleficência envolve abstenção, enquan-to o princípio da beneficência requeração. O princípio de não-maleficência édevido a todas as pessoas, enquanto queo princípio da beneficência, na prática,é menos abrangente.

Nem sempre o princípio da não-maleficência é entendido correta-mente pois a sua prioridade pode serquestionada. Conforme RaananGillon (24), a prática da medicinapode, às vezes, causar danos para aobtenção de um benefício maior. Ospróprios pacientes seriam os primei-ros a questionar a prioridade moralda beneficência. E.M. teve o pé am-putado para salvar-lhe a vida. Umpaciente com melanoma numa dasmãos poderá perder o braço parasalvar a vida. Uma paciente comdoença de Hodgkin deverá subme-ter-se a diversos riscos, incluindopossivelmente a esterilidade, para teruma chance razoável de sobrevivên-cia. É evidente que o interesse prin-cipal não é nem cortar o braço nema esterilidade, mas a saúde geral.Esses são casos típicos da denomi-nada teoria moral do duplo efeito.Recomenda-se, portanto, nos diver-sos casos, examinar conjuntamente

Page 46: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

48

os princípios da beneficência e danão-maleficência. Não sendo assim,os médicos recusar-se-iam a intervirsempre que houvesse um risco ame-açador grave. O nosso objetivo nãoé minimizar a importância do prin-cípio da não-maleficência. Apenas,como já foi observado quando daexposição do princípio da beneficên-cia, indicar que o princípio da não-maleficência não tem caráter abso-luto e que, conseqüentemente, nemsempre terá prioridade em todos osconflitos.

No caso de ter que tirar dúvidasou ter que esclarecer o princípio denão-maleficência, seria bom conside-rar o princípio do respeito devido atodo ser humano, como sublinhávamosno início deste capítulo. A dor ou danocausado a uma vida humana só pode-ria ser justificado, pelo profissional desaúde, no caso de ser o próprio pacientea primeira pessoa a ser beneficiada.Devem passar a segundo ou terceirolugar os benefícios para outros, comoa família, outros pacientes ou a socie-dade de forma geral.

Convém observar que o princípio“não causar danos” nem sempre tem sidointerpretado da mesma forma, mudan-do de acordo com as circunstâncias his-tóricas e as instituições. Tem aconteci-do, às vezes, que o interesse primeiro dosprofissionais de saúde tem sido não cau-sar danos à profissão para manter a boaimagem da mesma perante a socieda-de, conforme citado anteriormente, aofalarmos dos códigos deontológicos oucódigos de ética de uma determinadaprofissão (25). Além disso, não é despre-zível a indicação do Código de ÉticaMédica de 1847, da Associação MédicaAmericana, que proibia criticar o traba-

lho de colegas inferiores ou incompeten-tes, mesmo que o bem-estar dos possí-veis pacientes o exigisse.

O paternalismo

Tratando do princípio da benefi-cência e dos seus limites, afirmávamosque o profissional de saúde não deve-ria exercer o princípio da beneficên-cia de modo absoluto, pois esse tipode conduta aniquilaria a manifestaçãoda vontade, dos desejos e dos senti-mentos do paciente. Como também foicolocado, o verdadeiro ato médico éresultado da interação entre o médicoe o paciente. Ora, a ética médica tra-dicional tem pautado seu agir pelos tri-lhos da beneficência e com alguma fre-qüência tem sido chamada depaternalista. O paternalismo não é umaexclusividade da medicina. É possívelfalar também de um paternalismo eco-nômico, governamental, jurídico,laboralista, familiar e pedagógico, en-tre outros. Evitando aqui qualquer co-mentário sobre a propriedade ou im-propriedade do termo em questão sobo aspecto do gênero, devemos convirque o paternalismo manifesta em to-dos esses tipos mencionados algumascaracterísticas comuns: superproteção,autoritarismo, inibição, infantilismo,conduzindo todas elas a uma situaçãoanormal. Franklin Leopoldo e Silva (26)fala no paternalismo como resultadodo caráter assimétrico da relação mé-dico-paciente, caracterizada pela fra-gilidade do paciente e pela força domédico. Nessa relação desproporcio-nada, o cuidado prestado anula a pes-soa que é objeto do mesmo, dando-se

Page 47: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

49

uma passagem desapercebida do sa-ber ao poder, de conseqüências lamen-táveis, pois a pessoa chega a ser apa-gada como individualidade singular.Conforme Beauchamp e Childress, épossível distinguir entre umpaternalismo forte exercido sobre pes-soas autônomas, passando por cimade sua autonomia e, conseqüentemen-te, desconsiderando-as, e umpaternalismo fraco exercido sobre pes-soas incapazes sob o ponto de vistajurídico ou pessoas incompetentes sobo ponto de vista moral. A verdade éque é difícil traçar uma linha divisóriaentre os dois tipos mencionados. Asociedade brasileira, devido ao consi-derável número de pessoas com nívelde educação insuficiente ou baixo, fa-cilita e até certo ponto justifica a práti-ca do paternalismo no cuidado à saú-de. Eliane Azevêdo diz acertadamentenesse sentido: “Como levar a idéia deautonomia e de integridade a quemnunca teve a oportunidade de sentir-se um ser com autonomia para admi-tir sequer sua própria fome?” (27).

Há casos em que o paternalismoé justificável e, por incrível que pare-ça, a única forma de atendimento, pró-prio ou característico de uma socieda-de em vias de desenvolvimento.

O paternalismo deve ser contem-plado e avaliado por meio da luz irra-diada pelos princípios da beneficênciae da autonomia; aceitar um só dessesprincípios produz ofuscação.

Friedrich Nietzsche diz que todaajuda é um insulto. Não concordamoscom o enunciado desse filósofo. O in-sulto dar-se-ia no caso de ajudar ouassistir um paciente autônomo, contra-riando sua vontade e desejos. Confor-me a teoria moral kantiana, não pos-

so favorecer ninguém, excetuando ascrianças e os incompetentes, de acor-do com o meu conceito de felicidade,mas de acordo com o conceito de feli-cidade daquele a quem tento benefici-ar. O problema, na nossa sociedadebrasileira, como víamos há pouco, éque há pessoas com enorme dificulda-de para poder discernir sobre o seubem e a sua saúde. Sem interessespaternalistas, mas sim de solidarieda-de, o verdadeiro profissional de saúdenão pode deixar de ajudar as pessoasmenos favorecidas, contribuindo assimpara o bom exercício da cidadania eda profissão.

Conclusão

Se a pessoa está inclinada a fa-zer o que é bom e a promover o bem-estar dos outros, ela mesma deveriatentar garantir essa sua capacidade deagir corretamente. Fazer uma boa op-ção pressupõe conhecer o que é certoe realizá-lo. Saber o que é certo e agirde acordo com esse princípio é um idealpara todo ser humano. Ter essa dispo-sição de saber o que é bom e levá-lo àprática é possuir a virtude queAristóteles chama de Phronesis (28) eque os autores latinos traduziram porPrudência. A Prudência, no seu signi-ficado verdadeiro e originário, é a vir-tude que facilita a escolha dos meioscertos para um bom resultado. APhronesis ou Prudência pauta o agirpelo princípio da busca do que é bome pela recusa do que é mau. Fazerjuízos de caráter moral é uma tarefaque não escapa ao profissional de saú-de. Um juízo clínico é, antes de mais

Page 48: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

50

nada, um exercício da Phronesis (29),quer dizer, o modo eticamente corretode exercer a profissão buscando o bemdo paciente. Isso requer o respeito dasua dignidade, o reconhecimento dosseus valores e sentimentos morais e re-ligiosos. Beneficência e não-malefi-cência são dois princípios que podempautar a conduta do profissional desaúde e ajudá-lo em situações de con-flito. Contudo, nenhum desses princí-pios tem caráter absoluto. A aplicaçãoeticamente correta dos princípios dabeneficência e da não-maleficência éo resultado do exercício da Phronesisou Prudência, que sempre deveriaacompanhar toda atividade e decisãodo profissional de saúde.

O princípio da beneficêncianuma sociedade em vias de desenvol-vimento será, provavelmente, o prin-cípio que vai orientar as atividades edecisões do profissional de saúde comocidadão ciente do seu papel e realiza-ção pessoal e social.

Referências bibliográficas

Bernard J. La bioéthique. Paris:Dominos Flamarion, 1994: 80.

Kant I. Grundlegung zur metaphysik dersitten. Hamburg: Verlag von Felix Meiner,1965: 51

Kant I. Grundlegung zur metaphysik dersitten. Hamburg: Verlag von Felix Meiner,1965: 58

Moore GE. Principia ethica. Cambridge:Cambridge University Press, 1971: 3.

Moore GE. Principia ethica. Cambridge:Cambridge University Press, 1971: 5.

Aristotelis. Ethica Nicomachea. Oxford:Oxford University Press, 1979: 1103b.

Jonas H. E l p r inc ip io deresponsabilidad: ensayo de una éti-ca para la civilización tecnológica.Barcelona: Herder, 1995: 17.

Singer P. A companion to ethics.Cambridge, Mass.: Blackwell, 1991: xii.

Beauchamp TL, Childress JF. Principlesof biomedical ethics. 4rd.ed. New York:Oxford University Press, 1994.

Butler J. Upon the social nature of man.In: Raphael DD, editor. British moralists1650-1800. Indianapolis: HackettPublishing Company, 1991. v.1: 338.

Hobbes T. Leviatán. Madrid: EditoraNacional, 1983: 223-7.

Hume D. Enquiries: an enquiryconcerning the principles of morals.Oxford: Clarendon Press, 1989: 181.

Ross WD. Lo correcto y lo bueno.Salamanca: Ediciones Sígueme, 1994: 36.

Darwall S. Learning from Frankena: aphilosophical remembrance. Ethics1997;107:685-705.

Frankena WK. Ética. Rio de Janeiro:Zahar, 1969: 56.

Hippocrates. Hippocrates I: the oath.Cambridge: Harvard University Press;London: William Heinemann, 1984:298-9

Epicuro. Fragmentos y testimoniosescogidos. In: García-Gual C, Acosta E.Ética de Epicuro. Barcelona: Barral,1974: 143.

Pellegrino E, Thomasma D. For thepatient’s good: the restoration ofbeneficence in health care. New York:Oxford University Press, 1988: 32

1.

2.

5.

4.

3.

13.

14.

15.

16.

11.

10.

17.

12.

9.

8.

7.

6.

Page 49: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

51

Bernard J. De la biologie à l’éthique.Paris: Buchet/Chastel, 1990: 71.

Bacon F. Essays of goodness andgoodness of nature. London: Blackie andSon, 1937: 40.

The National Commission for theProtection of Human Subjects ofBiomedical and Behavioral Research.The Belmont Report. Washington:Government Printing Office, 1979: 4

Hottois G, Parizeau MH. Les mots de labioéthique. Bruxelles: De BoeckUniversité, 1993: 89,122,205.

Hippocrates. Hippocrates I: epidemics.Cambridge: Harvard University Press;London: William Heinemann, 1984:164-5.

Gillon R. Primum non nocere and theprinciple of non-maleficence. BMJ1985;291:130-1.

Sharpe VA. Why do no harm. In:Thomasma DC, editor. The influence ofEdmund D. Pellegrino’s philosophy ofmedicine. Dordrecht: Kluwer AcademicPublishers, 1997: 197.

Silva FL. Beneficência e paternalismo.Medicina (CFM) 1997;(88):8-9

Azevêdo E. Debate sobre bioética deveabranger efeito da miséria. Folha de S.Paulo 1994 out 16:5.

Aristotelis. Ethica Nicomachea. Oxford:Oxford University Press, 1979: 1140a.

Pellegrino ED, Thomasma DC. Thevirtues in medical practice. New York:Oxford University Press, 1993: 86.

25.

26.

27.

28.

23.

22.

24.

21.

20.

19.

18.

Page 50: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

52

Page 51: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

53

Daniel Romero MuñozPaulo Antonio Carvalho Fortes

O Princípio da Autonomiae o Consentimento Livre

e Esclarecido

Quem deve decidir?

Um problema fundamental na re-lação médico-paciente é o da tomadade decisão, principalmente no que serefere aos procedimentos diagnósticose terapêuticos a serem adotados. O di-lema que geralmente se impõe nas vá-rias situações é: a decisão deve ser domédico, preparado na arte de curar eque melhor conhece os convenientes eos inconvenientes de cada conduta, ouseja, aquele que sabe mais? Ou do pa-ciente, porque é o dono do seu própriodestino e, portanto, deve decidir o quequer para si ?

Este ponto crucial das discussõesbioéticas implica na formulação de ou-tras questões: qual deve ser a posturado médico no que tange ao esclareci-mento do paciente? Deve contar-lhe,com detalhes, o diagnóstico e o prog-

nóstico, bem como as condutasdiagnósticas e terapêuticas? Deve,sempre, obter dele o consentimentopara realizar essas condutas?

A postura tradicional domédico na relação médico-paciente

O Juramento de Hipócrates, pri-morosa obra do saber humano, forne-ce-nos a postura tradicional do médi-co na relação médico-paciente. É umapostura virtuosa, daquele que busca obem-estar do próximo, às vezes às cus-tas do seu próprio, ou seja, colocacomo regra básica o princípio da be-neficência. Esse juramento continua,ainda hoje, a ser a expressão dos ide-ais da Medicina e o alicerce da postu-ra ética do médico.

Page 52: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

54

Há nele, entretanto, uma lacunano que se refere ao livre arbítrio dopaciente para decidir. O texto não con-templa, em momento algum, os direi-tos da contraparte nesse relacionamen-to: a vontade do paciente não é men-cionada.

Pode parecer estranho, à primei-ra vista, que essa obra grega, tão belae profunda – surgida em uma época eem uma civilização cujo povo uniu-sena defesa de ideais de liberdade e de-mocracia (1) – contivesse um vazio tãogritante.

Ocorre que o Juramento espelhaa moral médica no apogeu do períodoclássico da cultura grega na Antigui-dade (final do século V e século IVa.C.), tendo sido feito por médicos epara os médicos.

Herança da medicina sacerdotal,devendo ser prestado por todos quedesejassem ingressar na “Irmandade”,ele continha, entre outras, a obrigaçãosolene de guardar segredo da doutri-na. Simboliza a idéia religiosa de duasséries distintas de homens, separadaspela divisória rigorosa de uma ciênciaoculta e acessível apenas a alguns. Essadistinção entre o profissional e o leigo,o iniciado e o não-iniciado está ex-pressa nas formosas palavras finais doNomos hipocrático: “As coisas con-sagradas só devem ser reveladas aoshomens consagrados; é vedado revelá-las aos profanos, uma vez que não estãoiniciados nos mistérios do saber” (2).

Nessa época, porém, um novotipo de médico estava surgindo naGrécia: o profissional que exercia amedicina-ciência em contraposiçãoaos que se dedicavam à de cunho reli-gioso . Na verdade, a nova ciência mé-dica – que sob a ação da filosofia

jônica da Natureza converteu a medi-cina grega em uma arte consciente emetódica, na qual as hipóteses eramconstruídas a partir de fatos e não deconcepções religiosas ou filosóficasapriorísticas – sentia como um proble-ma a posição isolada, ainda queelevadíssima, que ocupava na comu-nidade. Esse novo médico, apesar debasear-se em um saber especial que odiferenciava do profano, se esforçaconscientemente para comunicar seusconhecimentos e encontrar os meios eos caminhos necessários para tornar-se inteligível. Seguindo as pistas dossofistas, expõe em público seus proble-mas, por meio de “conferências” ou de“discursos” escritos. Surge assim umaliteratura médica destinada às pessoasestranhas a essa profissão. Com essadivulgação do conhecimento médiconasce também um novo tipo de inte-lectual, “o homem culto em Medicina”,isto é, o homem que consagrava aosproblemas desta ciência um interesseespecial ainda que não profissional ecujos juízos em matéria médica se dis-tinguiam da ignorância da grandemassa (2).

A melhor ocasião para transmitirao leigo o pensamento médico era,certamente, durante o relacionamentocom o paciente. Platão (nas leis) nosmostra que essa relação era muitodiversa no que tange ao esclareci-mento do paciente, dependendo dotipo de médico: o médico dos escra-vos ou o médico dedicado a essamedicina-ciência que tratava dos ho-mens livres. O primeiro tratava seuspacientes sem falar, sua conduta era ade um verdadeiro tirano; o segundo,expunha detalhadamente ao pacien-te a enfermidade e as concepções

Page 53: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

55

que tinha sobre sua origem, apoian-do-se no que se pensava sobre a natu-reza de todos os corpos. Platão comen-ta que “se um destes médicos (de es-cravos) ouvisse um médico livre falarcom pacientes livres, em termos muitossemelhantes aos das conferências cien-tíficas (...), certamente se poria a rir ediria o que a maioria dos médicos diznesse caso: – O que fazes, néscio, não écurar teu paciente, mas ensiná-lo, comose a tua missão não fosse a de devolver-lhe a saúde mas a de convertê-lo em mé-dico”. Ele (Platão), porém, vê nessa con-duta médica, baseada no esclarecimen-to detalhado do paciente, o ideal da te-rapêutica científica (2).

Os relatos supracitados indicamque o profissional dedicado à recém-criada ciência médica, no período clás-sico da cultura grega, já buscava umarelação mais harmoniosa com o paci-ente através do esclarecimento deste,apesar da ética hipocrática ainda nãoter se libertado da influência doautoritarismo da medicina sacerdotal.

Frise-se, entretanto, que essa pos-tura do médico não era a norma gerale não se dirigia à grande massa, masapenas aos homens livres, isto é, àparcela da população grega que seconstituía na classe social de maiordiscernimento e que detinha o poder.Destaque-se ainda que o esclarecimen-to visava aproximar o médico do seupaciente, harmonizando esse relacio-namento; não era uma conduta ado-tada porque o paciente tinha direito àinformação. Na Grécia Clássica aidéia de democracia não incluía o que,mais tarde, veio a ser denominado di-reitos humanos (3).

Esses ideais da ciência médicagrega, mergulhados no absolutismo que

se seguiu à democracia grega e noobscurantismo da Idade Média, fene-ceram no seu nascedouro e a condutaautoritária e paternalista do médicopara com o paciente continuou a pre-ponderar na relação. Pior, durante operíodo medieval a filosofia grega daordem natural foi cristianizada pelosteólogos e a ética médica passou a serformulada pelos moralistas e aplicadapelos confessores; ao médico era dadotudo pronto, pedindo-se – ou exigindo-se – que a cumprisse (4).

A Revolução Francesa chega àmedicina

Com o Renascimento, aredescoberta do espírito da GréciaClássica traz novas luzes ao conheci-mento humano. A arte é a primeira aressurgir, seguida pela filosofia e pelaciência. O pensamento humano come-ça a ressuscitar os ideais da culturagrega e os anseios de liberdade e de-mocracia renascem.

Nesse ressurgimento, porém, ogrande adicional trazido a essas idéiasna modernidade foram os direitos hu-manos. Os gregos não pensavam osdireitos humanos como pertencentes àdemocracia. Eles pensavam a demo-cracia como pertencente ao povo. Noséculo XVIII, quando a democraciaressurge, ela não é apenas o poder dopovo, mas também uma série de direi-tos de cada um. O direito ao voto, odireito à livre expressão, o direito àpropriedade e outros (3).

Na verdade, basta acompanharas declarações fundamentais de di-reitos da humanidade para que se

Page 54: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

56

verifique como foram se definindo econcretizando, desde a Magna Cartaoutorgada pelo Rei João Sem Terra, em1215, passando pela Grande Carta deHenrique III, de 11/2/1225, pelo Bill ofRights, de 1689, pela Declaração deDireitos da Virgínia, de 12/6/1776,pela Declaração dos Direitos do Ho-mem e do Cidadão, de 2/10/1789,pela Declaração dos Direitos do Ho-mem e do Cidadão, de 1793, até aDeclaração Universal dos Direitosdo Homem, aprovada pela ONUem 10/12/1948 (5).

Todas as revoluções democráticasocorridas no mundo ocidental a partirdo século XVIII tiveram por base de-fender estes princípios. O mais curio-so é que este movimento pluralista edemocrático, que se instalou na vidacivil das sociedades ocidentais, só che-gou à medicina recentemente. Na re-lação médico-paciente, este (paciente)continuou a ser considerado não sócomo incompetente físico mas tambémmoral; por isso, devia ser conduzido emambos os campos por seu médico.Desse modo, a relação médico-paci-ente tem sido tradicionalmentepaternalista e absolutista (6).

Em 1969, nos Estados Unidos,por um acordo entre um grupo de as-sociações de consumidores e usuáriose a Comissão Americana de Creden-ciamento de Hospitais (JCAH), surgiuum documento que é considerado aprimeira carta de Direitos do Paciente,da perspectiva do usuário de hospitais.Em 1973, o Departamento de Saúde,Educação e Bem-Estar recomenda aoshospitais e outras entidades de saúdeque adotassem e distribuíssem decla-rações de direitos dos pacientes. Nes-se mesmo ano, a Associação Ameri-

cana dos Hospitais (AHA) aprovouuma Carta de Direitos do Paciente.Outros países passaram a adotar amesma medida (7).

Note-se que o movimento pelos di-reitos do paciente, nos Estados Unidos,não se originou de uma luta social pelaliberdade, mas pelos direitos do consu-midor, isto é, quem paga pelo serviço temdireito sobre a qualidade do atendimen-to. Entretanto, à medida que essa idéiase divulgou, o seu caráter sofreu altera-ções e os seus limites se ampliaram.Concomitantemente, ocorreu um ou-tro fenômeno: os avanços tecnológicoscriaram grandes dilemas morais, propi-ciando o nascimento da Bioética – oumelhor, da reflexão bioética, que propor-ciona um marco filosófico e moral pararesolver estas questões de forma ordena-da e justa, respeitando e tolerando a ética eas diversas crenças profissionais e pesso-ais (8).

Visualizando-se, atualmente, essesfenômenos dentro da perspectiva his-tórica, as Declarações de Direitos doPaciente, somadas aos questio-namentos de ordem ética surgidos comos avanços tecnológicos e ao apareci-mento da Bioética, provocaram ouestão provocando, na ética dos profis-sionais de saúde, uma verdadeira re-volução – que poderia ser enfocadacomo a chegada da Revolução Fran-cesa na Medicina, ou melhor dito, nasciências da saúde.

Apesar de transcorridos dois sé-culos da convulsão social ocorrida naFrança para consagrar os seus ideais,o processo de sua implantação conti-nua sendo o foco das principais lutasna sociedade atual. Pouco a pouco,porém, eles estão sendo assimiladospelas pessoas, integrando-se à cultura.

Julio
Realce
Julio
Realce
Page 55: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

57

A medicina e as demais ciências dasaúde estão agora sentindo o seu im-pacto e incorporando-os à subculturamédica.

A Revolução Francesa estabele-ceu três princípios básicos para a exis-tência de uma sociedade humana jus-ta, onde os homens possam viver comdignidade: liberdade, igualdade efraternidade.

Em bioética, a relação médico-paciente pode reduzir-se a três tiposde agentes: o médico, o paciente e asociedade. Cada um com um signifi-cado moral específico: o paciente atuaguiado pelo princípio da autonomia, omédico pelo da beneficência e a socie-dade pelo da justiça.

A autonomia corresponde, nessesentido, ao princípio de liberdade, abeneficência ao de fraternidade e ajustiça ao de igualdade.

Conceito de autonomia

Autonomia é um termo derivadodo grego “auto” (próprio) e “nomos”(lei, regra, norma). Significaautogoverno, autodeterminação dapessoa de tomar decisões que afetemsua vida, sua saúde, sua integridadefísico-psíquica, suas relações sociais.Refere-se à capacidade de o ser hu-mano decidir o que é “bom”, ou o queé seu “bem-estar”.

A pessoa autônoma é aquela quetem liberdade de pensamento, é livrede coações internas ou externas paraescolher entre as alternativas que lhesão apresentadas. Para que exista umaação autônoma (liberdade de decidir,de optar) é também necessária a exis-

tência de alternativas de ação ou queseja possível que o agente as crie, poisse existe apenas um único caminho aser seguido, uma única forma de algoser realizado, não há propriamente oexercício da autonomia. Além da liber-dade de opção, o ato autônomo tam-bém pressupõe haver liberdade deação, requer que a pessoa seja capazde agir conforme as escolhas feitas eas decisões tomadas.

Logo, quando não há liberdadede pensamento, nem de opções, quan-do se tem apenas uma alternativa deescolha, ou ainda quando não existaliberdade de agir conforme a alterna-tiva ou opção desejada, a ação em-preendida não pode ser julgada au-tônoma (9).

Evolução histórica do respeitoà autonomia

A conquista do respeito à autono-mia é um fenômeno histórico bastanterecente, que vem deslocando pouco apouco os princípios da beneficência eda não-maleficência como prevalentesnas ações de assistência à saúde. A par-tir dos anos 60, movimentos de defesados direitos fundamentais da cidada-nia e, especificamente, dos reivin-dicativos do direito à saúde ehumanização dos serviços de saúdevêm ampliando a consciência dos indi-víduos acerca de sua condição de agen-tes autônomos (6,10)

No Brasil, desde a década de 80,códigos de ética profissional vêm ten-tando estabelecer uma relação dos pro-fissionais com seus pacientes, na qualo princípio da autonomia tenda a ser

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 56: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

58

ampliado. Em nosso país, cresce a dis-cussão e a elaboração de normasdeontológicas sobre as questões queenvolvem as relações da assistência àsaúde, contendo os direitos fundamen-tais que devem reger a vida do ser hu-mano. Tal compreensão é encontradano artigo 46 do Código de Ética Médi-ca, que veda ao médico “efetuar qual-quer procedimento médico sem o es-clarecimento e o consentimento préviosdo paciente ou de seu representantelegal, salvo em iminente perigo devida”. Por sua vez, os artigos 56 e 59reforçam o direito de o paciente deci-dir livremente sobre a execução de prá-ticas diagnósticas e terapêuticas, e oseu direito à informação sobre o diag-nóstico, o prognóstico, os riscos e ob-jetivos do tratamento. Os profissionaissão, ainda, interditados de limitar odireito dos pacientes decidirem livre-mente sobre sua pessoa ou sobre seubem-estar (art.48), princípio que, comrelação às pesquisas médicas, é refor-çado pelos artigos 123 e 124.

Fundamentos da autonomia

O princípio da autonomia nãodeve ser confundido com o princípiodo respeito da autonomia de outrapessoa. Respeitar a autonomia é re-conhecer que ao indivíduo cabe pos-suir certos pontos de vista e que é elequem deve deliberar e tomar decisõessegundo seu próprio plano de vida eação, embasado em crenças, aspira-ções e valores próprios, mesmo quan-do divirjam daqueles dominantes nasociedade ou daqueles aceitos pelosprofissionais de saúde. O respeito à

autonomia requer que se tolerem cren-ças inusuais e escolhas das pessoasdesde que não constituam ameaça aoutras pessoas ou à coletividade. Afi-nal, cabe sempre lembrar que o corpo,a dor, o sofrimento, a doença são daprópria pessoa.

O respeito pela autonomia dapessoa conjuga-se com o princípio dadignidade da natureza humana, acei-tando que o ser humano é um fim emsi mesmo, não somente um meio desatisfação de interesses de terceiros,comerciais, industriais, ou dos própriosprofissionais e serviços de saúde. Res-peitar a pessoa autônoma pressupõea aceitação do pluralismo ético-soci-al, característico de nosso tempo.

A autonomia expressa-se comoprincípio de liberdade moral, que podeser assim formulado: todo ser humanoé agente moral autônomo e como taldeve ser respeitado por todos os quemantêm posições morais distintas (...)nenhuma moral pode impor-se aos se-res humanos contra os ditames de suaconsciência (4).

Certamente que não se espera quea autonomia individual seja total, com-pleta. Autonomia completa é um ideal.Longe de se imaginar que a liberdadeindividual possa ser total, que não exis-tam nas relações sociais forte grau decontrole, de condicionantes e restri-ções à ação individual. Mas, se ohomem não é um ser totalmente au-tônomo isto necessariamente não sig-nifica que sua vida esteja totalmentedeterminada por emoções, fatoreseconômicos e sociais ou influênciasreligiosas. Apesar de todos oscondicionantes, o ser humano podese mover dentro de uma margem pró-pria de decisão e ação.

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Nota
Kant? Ou será que posso ver isso a partir do Benjamin Constant?
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 57: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

59

Como afirma Chaui (11), a deli-beração, no campo da ética, se fazdentro do possível. Se, por vezes,não podemos escolher o que nosacontece, podemos escolher o quefazer diante da situação que nos foiapresentada.

Enquanto Immanuel Kant aceitaa autonomia como manifestação davontade, John Stuart Mill, um dos paisda corrente ética utilitarista, preferiaconsiderá-la como ação e pensamen-to. Argumentava que o controle sociale político sobre as pessoas seria per-missível e defensável quando fosse ne-cessário prevenir danos a outros in-divíduos ou à coletividade. Aos cida-dãos é permitido que desenvolvam seupotencial de acordo com as suas con-vicções, desde que não interfiram coma liberdade dos outros.

O ser humano não nasce autôno-mo, torna-se autônomo, e para istocontribuem variáveis estruturais bioló-gicas, psíquicas e socioculturais. Po-rém, existem pessoas que, de formatransitória ou permanente, têm suaautonomia reduzida, como as crianças,os deficientes mentais, as pessoas emestado de agudização de transtornosmentais, indivíduos sob intoxicaçãoexógena, sob efeito de drogas, em es-tado de coma, etc.

Uma pessoa autônoma pode agirnão-autonomamente em determinadascircunstâncias. Por isso, a avaliação desua livre manifestação decisória é umadas mais complexas questões éticasimpostas aos profissionais de saúde.Desordens emocionais ou mentais, emesmo alterações físicas, podem redu-zir a autonomia do paciente, podendocomprometer a apreciação e aracionalidade das decisões a serem

tomadas. Nas situações de autonomiareduzida cabe a terceiros, familiares oumesmo aos profissionais de saúde de-cidirem pela pessoa não-autônoma.

O conceito legal de competênciaé intimamente relacionado ao concei-to de autonomia. Não costumamosquestionar a competência de decisãode um paciente quando sua decisãoconcorda com nossas escolhas. Aocontrário, somente quando a sua de-cisão conflita com a nossa, como nocaso de recusa a se submeter a umprocedimento que indicamos, é que aquestão da validade da decisão é ques-tionada. O julgamento de competên-cia-incompetência de uma pessoadeve ser dirigido a cada ação parti-cular e não a todas as decisões que apessoa deva tomar em sua vida, mes-mo com aqueles indivíduos legalmenteconsiderados como incompetentes.Concordamos com Culver (12), ao afir-mar que todos os pacientes devem serjulgados capazes até prova de sua in-competência, de que sua autonomiaestá reduzida.

A pessoa acometida por transtor-nos mentais, assim como os indivídu-os retidos em estabelecimentos hospi-talares ou de custódia, não devem servistos como totalmente afetados emsua capacidade decisional. O simplesfato da existência do diagnóstico deuma doença mental não implica queocorra incapacidade do indivíduopara todas as decisões a serem toma-das com respeito à sua saúde ou vida.No âmbito legal, presume-se que umadulto é competente até que o PoderJudiciário o considere incompetentee restrinja seus direitos civis, mas nocampo da ética raramente se julga umapessoa incompetente com respeito a

Julio
Realce
Muito problemático; dá margem a que se delibere sobre esse "tornar-se autônomo" a partir de posições externas ao indivíduo.
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 58: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

60

todas as esferas de sua vida. Mesmoos indivíduos considerados incapa-zes para certas decisões ou camposde atuação, são competentes para de-cidir em outras situações (13).

Os grupos socioeconomicamentevulneráveis, os mais desprovidos de re-cursos, têm menos alternativas de esco-lha em suas vidas, o que afeta o desen-volvimento de seu potencial de amplaautonomia mas não significa que devamser vistos como pessoas que não podemdecidir autonomamente, que os médicosdevam decidir por eles.

Cabe particularizar a situação daautonomia dos adolescentes. O Códi-go de Ética dos médicos incorporou anoção da maioridade sanitária, sempronunciá-la expressamente, pois pos-sibilita aos profissionais ocultareminformações a respeito de pacientesmenores de idade, a seus pais ou res-ponsáveis legais, quando julgarem queos adolescentes tenham competênciapara decidir a partir de uma avalia-ção adequada de seus problemas desaúde. Diz o art. 103 do CEM: “É ve-dado ao médico revelar segredo pro-fissional referente a paciente menor deidade, inclusive a seus pais ou respon-sáveis legais, desde que o menor te-nha capacidade de avaliar seu proble-ma e de conduzir-se por seus própriosmeios para solucioná-lo, salvo quan-do a não revelação possa acarretardanos ao paciente.”

Limites à autonomia

Há um temor que a absolu-tização da autonomia individual gereum culto ao privativismo moral, um

incentivo ao individualismo que sejainsensível aos outros seres humanos,dificultando a existência de solidarie-dade entre as pessoas. Autonomianão significa individualismo, pois ohomem vive em sociedade e a pró-pria ética é um dos mecanismos deregulação das relações entre os sereshumanos que visa garantir a coesãosocial e harmonizar interesses indi-viduais e coletivos. A socialização dohomem, desde a infância, lhe dácondicionantes morais, mas uma so-ciedade livre estimula que as auto-nomias individuais sejam desenvol-vidas, que se possa escolher entre asdiversas morais existentes em cadamomento histórico vivido.

A autonomia não deve ser con-vertida em direito absoluto; seus limi-tes devem ser dados pelo respeito àdignidade e à liberdade dos outros eda coletividade. A decisão ou ação depessoa, mesmo que autônoma, quepossa causar dano a outra(s) pessoa(s)ou à saúde pública poderá não servalidada eticamente.

Se a garantia do princípio da au-tonomia requer o respeito a padrõesmorais que não sejam convencionais,padrões que não são majoritários nasociedade, isto não significa a defesade uma ética sem limites. A opção éti-ca para ser validada deve, segundoSinger (14), ter justificativas que de-monstrem que ela não é exclusivamen-te pessoal. É necessário que os princí-pios defendidos estejam em conformi-dade com princípios mais amplos, quetendam a ser universalizáveis. Se a éti-ca que defendemos fundamenta-se noindivíduo, sua liberdade deve ter comofronteiras a dignidade e a liberdadedos outros seres humanos.

Julio
Realce
Bem interessante. E quem decide isso é o médico; ou seja, um menor de 16 anos, para o código penal, quando mantém relações sexuais, ainda que consentidas, significa estupro. Para o médico, tal não é necessariamente o caso.
Julio
Realce
Significa sim. O autor aqui está confundindo individualismo com egoísmo ético. Kant não é Hobbes.
Page 59: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

61

Deve-se ainda salientar que aautonomia do paciente, não sendo umdireito moral absoluto, poderá vir a seconfrontar com a do profissional desaúde. Este pode, por razões éticas, adenominada cláusula de consciência,se opor aos desejos do paciente derealizar certos procedimentos, taiscomo técnicas de reprodução assisti-da, eutanásia ou aborto, mesmo quehaja amparo legal ou deontológicopara tais ações.

A Constituição brasileira asse-gura o direito à autonomia a todosos cidadãos ao incluir a determina-ção de que ninguém pode ser obri-gado a fazer ou a deixar de fazer al-guma coisa senão em virtude de lei.E o Código Penal Brasileiro exige orespeito a esse direito ao punir, emseu artigo 146, aquele que constran-ger outrem a fazer o que a lei nãomanda ou a deixar de fazer o que alei manda. Essa nossa legislação pe-nal coloca, porém, uma exceção àautonomia: quando se tratar de casode iminente perigo de vida ou paraevitar suicídio, o constrangimento davítima deixa de ser crime. Em outraspalavras, a nossa legislação garanteao cidadão o direito à vida, mas nãosobre a vida; ele tem plena autono-mia para viver, mas não para mor-rer.

Paternalismo

Pode-se conceituar paternalismocomo a interferência do profissional desaúde sobre a vontade de pessoa au-tônoma, mediante ação justificada porrazões referidas, exclusivamente, ao

bem-estar, alegria, necessidades, inte-resses ou valores da pessoa que estásendo tratada. O paternalismo existen-te na interação médico-paciente é con-cebido como sendo uma característi-ca relacional básica, que aliás distin-gue o contrato médico de outras rela-ções contratuais. Por vezes, opaternalismo médico é reconhecidosob a denominação de privilégioterapêutico.

As condutas paternalistas na prá-tica médica originam-se dos fundamen-tos hipocráticos, para quem o médicodeveria aplicar “os regimes para o bemdos doentes, segundo seu saber e ra-zão (...)”, não concedendo lugar à au-tonomia da pessoa que tratava. Aação seria feita com base na opiniãoexclusiva do médico e não da vontadeautônoma do paciente. Fundamenta-se na tese do predomínio, em determi-nadas circunstâncias, avaliadas e con-sideradas pelo próprio médico, do prin-cípio de não causar dano, que em ca-sos específicos sobrepuja e pode mes-mo se opor ao princípio da autonomiado indivíduo.

Segundo Culver & Gert (15), paraque um comportamento seja adequa-do à noção de privilégio terapêutico énecessário que se guie por certas pre-missas, que se evidenciam no relacio-namento médico-paciente. O médicodeve acreditar que sua ação é benéfi-ca a outra pessoa – e não a ele próprioou terceiros – e que sua ação não en-volva uma violação de regra moral.Deverá, também, não ter no passado,no presente ou mesmo em futuro pró-ximo o consentimento da outra pessoaque deve ser competente para tomardecisões. Esta forma de ver a relaçãoprofissional de saúde-paciente legiti-

Julio
Realce
Julio
Realce
O que é um erro! Conflita com a autonomia no sentido de Benjamin Constant, entretanto não conflita com o sentido de Kant.
Julio
Realce
Julio
Realce
O problema está em que, nesse caso, deveremos hierarquizar o principialismo. O que impõe a pergunta sobre o critério dessa heirarquia.
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 60: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

62

ma, por exemplo, que se maneje qua-litativa ou quantitativamente as infor-mações a serem dadas ao doente so-bre seu diagnóstico e prognóstico, porvezes isentando-o da obrigação derevelá-las quando considere que pos-sam conduzir a uma deterioração doestado físico ou psíquico do paciente.

O paternalismo é defendido comoação necessária empreendida pelomédico no interesse daquele a quemtrata. Konrad (16) considera que aconduta paternalista acabaria por terum fim restaurador da autonomia in-dividual, de condições adequadas decompreensão, deliberação e tomadade decisão. Logo, o ato paternalistaseria uma resposta a incapacidades,e não uma negação dos direitos daspessoas.

O Código de Ética Médica brasi-leiro, apesar de dispor sobre aobrigatoriedade do recolhimento doconsentimento para validar o ato mé-dico, de certa maneira aceita atospaternalistas pois permite que, em al-gumas circustâncias, sejam ocultadasinformações que possam provocar da-nos psicológicos ao paciente, apesarde observar ser mandatório que sejacomunicado seu responsável legal(CEM, art.59).

Temos posição contrária à prepon-derância, em nosso meio, da utiliza-ção de condutas paternalistas quemuitas vezes não têm nada depaternalistas, não ocorrem no interes-se da pessoa assistida, mas são frutodo autoritarismo de nossa sociedade,expresso nas relações do sistema desaúde. Entendemos que em situaçõesem que a autonomia está reduzidadevam prevalecer os princípios da be-neficência e da não-maleficência, pois

a pessoa não tem condições de mani-festar livre e esclarecidamente sua von-tade autônoma. Porém, somos contrá-rios a que os médicos decidam, diantede uma pessoa autônoma, o que é bompara ela, o que deverá ser seu bem-estar, sua qualidade de vida, fundamen-tados em seus próprios valores (dosprofissionais). É preciso não esquecerque, muitas vezes, médicos e pacien-tes provêm de classes sociais distintas,com distintos valores socioculturais,valores esses que podem entrar emchoque nas relações estabelecidas en-tre as duas partes.

A medicina compartilhada

A postura do médico na relaçãocom o paciente, dentro dos princípiosbioéticos, é a de consultor, conselhei-ro, parceiro, companheiro e amigo,com maior ou menor predomínio deum desses papéis na dependência dascaracterísticas de personalidade dopaciente e do próprio médico. É umrelacionamento muito similar ao doadvogado e seu cliente: o médico é oprofissional que eu chamo, para estarao meu lado e me defender, quandome sinto ameaçado em minha saúde.Como consultor, pelos seus conheci-mentos pode esclarecer-me sobre asameaças à minha saúde, sobre osmodos possíveis de combatê-las, osriscos e benefícios esperados. Comoconselheiro e profissional capaz, seique indicará e aplicará os recursos etécnicas mais adequados e, como co-nhecedor que é dos avanços da ciên-cia médica, poderá instruir-me sobrea melhor estratégia que, em sua opi-

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 61: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

63

nião, deveria ser adotada. Como par-ceiro, se disporá a agir (por exemplo,realizar uma cirurgia ou outro proce-dimento) ou a indicar o profissional ouserviço capaz de fazê-lo. Como com-panheiro, sei que posso contar com seuauxílio sempre que precisar. Mas, comoherdeiro da cultura latina, gostariamesmo era de ter nele um amigo! Umamigo que desse o melhor de seu co-nhecimento, experiência e dedicaçãoao assistir-me nas decisões a seremtomadas, mas respeitasse minha au-tonomia para decidir o que é melhorpara mim; o papel do amigo é de estarjunto e não de abandonar o paciente,na solidão do seu sofrimento, para quedecida sozinho. E lá no fundo de meuser ainda esperaria dele algo mais: que,no momento da minha aflição, quan-do a dor turvar meu pensamento e adesesperança me furtar o desejo deagir, não tivesse de seus lábios apenasuma sentença fria a massacrar meuanseio de vida, mas encontrasse umartista sensível, experiente na arte decurar, que saberia sedar meu sofrimen-to com aquele “remedinho verde”, dacor da Medicina, que só o médico –com todas as letras maiúsculas – sabeaplicar” (17).

Há ainda um detalhe importantea ser lembrado: alguns profissionaisaderem tão intensamente ao princípioda autonomia que não aceitam que opaciente diga: – Doutor, eu faço o queo senhor achar melhor! E acabam im-pondo a ele, tiranicamente, a “auto-nomia” que ele não deseja, isto é, asdecisões que ele se recusa a tomar.

A nosso ver, se o paciente foi es-clarecido pelo médico e opta pela pos-tura de não escolher nenhuma das al-ternativas propostas, mas sim a de

adotar aquela que o médico acharmais adequada, ele já decidiu e por-tanto está exercendo sua autonomia;forçá-lo a tomar qualquer decisão di-ferente da que escolheu significaconstrangê-lo e agir com autoritarismo.Em outras palavras, renunciar à auto-nomia também é exercer seu direito àautonomia e impor a autonomia aopaciente é autoritarismo.

Consentimento livre eesclarecido

A pessoa autônoma tem o direitode consentir ou recusar propostas decaráter preventivo, diagnóstico outerapêutico que afetem ou venham aafetar sua integridade físico-psíquicaou social.

A noção do consentimento naatividade médica é fruto de posiçõesfilosóficas relativas à autonomia doser humano quando de decisões to-madas em tribunais. Na esfera jurí-dica, a primeira decisão que tratouda questão parece ter sido o casoSlater versus Baker & Staplenton,julgado em 1767 na Inglaterra: doismédicos foram considerados culpa-dos por não terem obtido o consenti-mento do paciente quando da reali-zação de cirurgia de membro inferi-or que resultou em amputação. Deve-se lembrar que naquela época o con-sentimento já era demandado não sópor motivos éticos e legais mas tam-bém pela necessidade da cooperaçãodo paciente na realização do ato ci-rúrgico, pois ainda não eram sufici-entemente desenvolvidas as práticasanestésicas.

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 62: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

64

O processo Schloendorff versusSociety of New York Hospitals, do iní-cio deste século, foi o responsável pelodesenvolvimento da reflexão doutriná-ria nos meios jurídicos norte-america-nos. Refere-se à senhora que, em 1908,dirigindo-se ao New York Hospital,com queixas abdominais, foi examina-da por médico que diagnosticou a exis-tência de tumor benigno instalado noútero, para o qual indicou ser neces-sária a realização de procedimento ci-rúrgico. A paciente submeteu-se à ci-rurgia, tendo seu útero extirpado. Maspouco tempo após a realização do ato,acusa o médico e o hospital peranteos tribunais alegando ter sido engana-da e operada sem que houvesse dadoseu consentimento. Afirmava somenteter autorizado ser anestesiada paraprocedimentos diagnósticos, e não ci-rúrgicos. O caso chegou à Corte Su-prema do Estado de New York, quesentenciou favoravelmente à queixosa.Ocasião em que o juiz Cardozo se ex-pressa: “Todo ser humano na vidaadulta e com a mente sã tem o direitode determinar o que deve ser feito comseu próprio corpo”.

Porém, somente em 1957, é queaparece a expressão informed consent,cunhada pela corte californianajulgadora do caso Salgo versus LelandStanford Jr., University of Trustees.Este caso se referia a um homem quefôra submetido a uma aortografiatranstorácica realizada devido à sus-peita de obstrução da aorta abdomi-nal; posteriormente ao procedimento,o paciente sofrera paralisia dos mem-bros inferiores, complicação dadacomo rara para a técnica utilizada naépoca. Os magistrados do caso julga-ram que houve conduta culposa por

parte dos operadores, porque não ha-viam revelado ao enfermo as possibi-lidades de riscos da técnica emprega-da, e por isso cabia a sançãoindenizatória (18).

Porém, deve-se ressaltar que doponto de vista ético a noção do con-sentimento esclarecido pode diferir daforma adotada pelos tribunais. No Bra-sil, o não recolhimento do consentimen-to da pessoa é tipificado como ilícitopenal apenas quando for ocasionadopor uma conduta dolosa, de acordocom o art.146, § 3º, I, do Código Pe-nal. A norma penal requer somente umconsentimento simples, significando odireito à recusa. O atendimento doprincípio ético do respeito à autono-mia da pessoa requer mais, não se li-mita ao simples direito à recusa ou aoconsentimento simples, requer um con-sentimento livre, esclarecido, renovávele revogável. O consentimento deve serdado livremente, conscientemente, semser obtido mediante práticas de coa-ção física, psíquica ou moral ou pormeio de simulação ou práticas enga-nosas, ou quaisquer outras formas demanipulação impeditivas da livre ma-nifestação da vontade pessoal. Livrede restrições internas, causadas pordistúrbios psicológicos, e livre de co-erções externas, por pressão de fa-miliares, amigos e principalmente dosprofissionais de saúde. O consentimen-to livre requer que o paciente seja esti-mulado a perguntar, a manifestar suasexpectativas e preferências aos profis-sionais de saúde (19).

Aceita-se que o profissional exer-ça ação persuasiva, mas não a coa-ção ou a manipulação de fatos ou da-dos. A persuasão entendida como atentativa de induzir a decisão de outra

Julio
Realce
Julio
Realce
Page 63: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

65

pessoa por meio de apelos à razão évalidada eticamente. Porém, a mani-pulação, tentativa de fazer com que apessoa realize o que o manipuladorpretende, sem que o manipulado sai-ba o que ele intenta, deve ser eticamen-te rejeitada.

Para Hewlett, o consentimento sóé moralmente aceitável quando estáfundamentado em quatro elementos:informação, competência, entendimen-to e voluntariedade (20).

A informação é a base das deci-sões autônomas do paciente, necessá-ria para que ele possa consentir ou re-cusar as medidas ou procedimentos desaúde que lhe foram propostos. O con-sentimento esclarecido requer adequa-das informações, compreendidas pe-los pacientes. A pessoa pode ser infor-mada, mas isto não significa que este-ja esclarecida, caso ela não compre-enda o sentido das informaçõesfornecidas, principalmente quando asinformações não forem adaptadas àssuas circunstâncias culturais e psico-lógicas. Não é necessário que os pro-fissionais de saúde apresentem as in-formações utilizando linguajar técnico-científico. Basta que elas sejam sim-ples, aproximativas, inteligíveis, leaise respeitosas, ou seja, fornecidas den-tro de padrões acessíveis ao nível inte-lectual e cultural do paciente, poisquando indevidas e mal organizadasresultam em baixo potencial informa-tivo, em desinformação.

O paciente tem o direito moral deser esclarecido sobre a natureza e osobjetivos dos procedimentos diagnós-ticos, preventivos ou terapêuticos; serinformado de sua invasibilidade, daduração dos tratamentos, dos benefí-cios, prováveis desconfortos, inconve-

nientes e possíveis riscos físicos, psí-quicos, econômicos e sociais que pos-sa ter. O médico deve esclarecer, quan-do for o caso, sobre as controvérsiasquanto as possíveis alternativas tera-pêuticas existentes. A pessoa deve serinformada da eficácia presumida dasmedidas propostas, sobre as probabi-lidades de alteração das condições dedor, sofrimento e de suas condiçõespatológicas, ou seja, deve ser esclare-cido em tudo aquilo que possa funda-mentar suas decisões. Quanto aos ris-cos, devem compreender sua nature-za, magnitude, probabilidade e aiminência de sua materialização. Ainformação a ser fornecida deve con-ter os riscos normalmente previsíveisem função da experiência habitual edos dados estatísticos, não sendo pre-ciso que sejam informados de riscosexcepcionais ou raros.

Na prática dos profissionais desaúde comumente se apresentam trêspadrões de informação. O primeiro éo padrão da “prática profissional”,onde o profissional de saúde revelaaquilo que um colega consciencioso erazoável teria informado em iguais ousimilares circunstâncias. Nesta padro-nização, a revelação das informaçõesé a determinada pelas regras habitu-ais e práticas tradicionais de cada pro-fissão. É o profissional que estabeleceo balanço entre as vantagens e osinconvenientes da informação, assimcomo os tópicos a serem discutidose a magnitude de informação a serrevelada em cada um deles (21).

A nosso ver, este padrão de infor-mação negligencia o princípio ético daautonomia do paciente, pois o profis-sional se utiliza de parâmetros já esta-belecidos por sua categoria, não adap-

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 64: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

66

tando ou individualizando as informa-ções aos reais interesses de cada indi-víduo.

O segundo padrão encontrado éo da “pessoa razoável”, que se funda-menta sobre as informações que umahipotética pessoa razoável, mediana,necessitaria saber sobre determinadascondições de saúde e propostas tera-pêuticas ou preventivas a lhe seremapresentadas. Esse modelo se baseianuma abstração do que seria uma pes-soa razoável, um ser considerado comorepresentação da “média” de uma de-terminada comunidade e cultura. Nãose requer que o profissional se dispo-nha a revelar informações que julgueestar fora dos limites traçados pela fi-gura hipotética da pessoa razoável. Oprofissional, ao utilizar tal modelo, con-tinua a decidir o que será ou não reve-lado. Também, em nosso entender, opadrão da “pessoa razoável” tende anegligenciar o princípio ético da auto-nomia do paciente.

A utilização de formulários padro-nizados sobre os procedimentos a se-rem realizados em determinadas pato-logias, cirurgias e agravos à saúde se-gue freqüentemente este padrão de in-formações. Geralmente, essas fórmu-las padronizadas, se bem que tendo suaimportância na disseminação de co-nhecimentos sobre os eventos de saú-de, não são suficientes para garantiradequada informação, que deve serpersonalizada para obedecer aos prin-cípios éticos apresentados. Muitas ve-zes, informações por escrito consistemem mero rito legal e administrativo, porisso não devem ser fontes exclusivasde esclarecimento da pessoa assistida.

O terceiro padrão é o denomina-do “orientado ao paciente” ou “padrão

subjetivo”. Utilizando-o, o profissionalprocura uma abordagem informativaapropriada a cada pessoa, personali-zada, passando as informações a con-templarem as expectativas, os interes-ses e valores de cada paciente, obser-vados em sua individualidade. Advo-gamos a utilização deste padrão deinformações, pois requer do profissio-nal descobrir, baseado nos conheci-mentos e na arte de sua prática, e ob-servando as condições emocionais dopaciente e fatores sociais e culturais aele relacionados, o que realmente cadaindivíduo gostaria de conhecer e oquanto gostaria de participar das de-cisões.

Do ponto de vista ético, a infor-mação a ser transmitida ao paciente émais ampla do que exigem as normaslegais e as decisões dos tribunais – quetendem a acatar a validade dos doisprimeiros padrões de informação an-teriormente citados (22).

Enfaticamente, devemos discor-dar dos que consideram que para amaioria dos pacientes em nosso meioé praticamente impossível estabelecercondições para a utilização cotidianado “padrão subjetivo” devido ao bai-xo nível intelectual e sociocultural dospacientes que freqüentam as institui-ções. Consideramos insatisfatórias asexplicações que argumentam que boaparte dos pacientes de instituição hos-pitalar não compreende as informa-ções que lhes são reveladas. Tais afir-mativas trazem consigo, disfarçados ouinconscientes, preconceitos étnicos oude classe social. Muitas vezes, se ospacientes não compreendem as infor-mações a causa está na inadequaçãoda informação e não na pretensa in-capacidade de compreensão (23).

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 65: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

67

Certamente, não defendemos omodo norte-americano de informar.Independentemente do padrão de in-formação utilizado, o profissional desaúde, principalmente os médicos, in-formam ao paciente, mesmo sobreprognósticos graves, quase sempreimediatamente após terem se certifica-do do diagnóstico. Isso ocorre pelo re-ceio de promoção de sua responsabi-lidade jurídica, através de vultosasações indenizatórias. Este tipo de con-duta não atende à conjunção dos prin-cípios éticos aqui dispostos, a autono-mia, a beneficência e a não-malefi-cência, pois se preocupa apenas comrequisitos legais.

A pessoa autônoma também temo direito de “não ser informada”. Serinformado é um direito e não uma obri-gação para o paciente. Ele tem o di-reito de recusar ser informado. Nestescasos, os profissionais de saúde devemquestioná-lo sobre quais parentes ouamigos quer que sirvam como canaisdas informações. É certo que o indiví-duo capaz tem o direito de não ser in-formado, quando assim for sua vonta-de expressa. O respeito ao princípioda autonomia orienta que se aceite avontade pessoal, impedindo os profis-sionais de saúde de lhe fornecerem in-formações desagradáveis e autorizan-do que estes últimos tomem decisõesnas situações concernentes ao seu es-tado de saúde, ou, ainda, que devampreliminarmente consultar parentes ouamigos do paciente.

Para validar-se tal direito, o paci-ente deve ter clara compreensão que édever do médico informá-lo sobre osprocedimentos propostos, que tem odireito moral e legal de tomar decisõessobre seu próprio tratamento. Deve

também compreender que os profissio-nais não podem iniciar um procedi-mento sem sua autorização, exceto noscasos de iminente perigo de vida. E,finalmente, que o direito de decisãoinclui o de consentir ou de recusar ase submeter a determinado procedi-mento. A partir do preenchimento des-ses pressupostos, o paciente pode es-colher não querer ser informado ou,alternativamente, que as informaçõessejam dadas a terceiros, ou ainda que-rer emitir seu consentimento sem re-ceber determinadas informações.

Além de livre e esclarecido o con-sentimento deve ser renovável quandoocorram significativas modificaçõesno panorama do caso, que se diferen-ciem daquele em que foi obtido o con-sentimento inicial. Quando preliminar-mente recolhido, o foi dentro de deter-minada situação, sendo assim, quan-do ocorrerem alterações significantesno estado de saúde inicial ou da cau-sa para a qual foi dado, o consenti-mento deverá ser necessariamente re-novado. A esse propósito, deve-se pon-derar sobre a prática comum adota-da, principalmente nos ambientes hos-pitalares, a respeito do denominado“termo de responsabilidade”. Quandoo consentimento inicial, na entrada aoambiente hospitalar, é tido como per-manente e imutável, mesmo que ocor-ram modificações importantes no es-tado de saúde, pode se estar violandoa vontade autônoma da pessoa. Écomo comprar algo e assinar, apesardas letras miúdas, sem realmente sa-ber com o que se está concordando.

É ainda importante salientar queo consentimento dado anteriormentenão é imutável, pode ser modificado oumesmo revogado a qualquer instante,

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 66: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

68

por decisão livre e esclarecida da pes-soa assistida, sem que a ela devam sercontrapostas objeções e sanções mo-rais ou administrativas.

Cabe também fazer-se distinçãoentre o consentimento esclarecido,que consiste em um processo paracontribuir na tomada de decisão, pelopaciente, do termo de consentimen-to, que é um documento legal, assi-nado pelo paciente ou por seus res-ponsáveis com o intuito de respaldarjuridicamente a ação dos profissio-nais e dos estabelecimentos hospita-lares. Este último tem pouca valida-de ética quando não contempla osfundamentos do processo de mani-festação autônoma da vontade dopaciente. As decisões envolvendoprocedimentos diagnósticos outerapêuticos infreqüentemente se es-gotam em uma única ocasião, aocontrário, ocorrem no transcorrer detoda a relação médico-paciente. Noambiente hospitalar as decisões tam-bém não se restringem somente aosmédicos, mas envolvem diversos pro-fissionais de saúde que participam naassistência ao paciente.

Não queremos minimizar a evi-dente limitação ao direito do pacien-te à informação imposta pelas con-dições de atendimento em prontos-socorros e serviços de emergência. Otempo de contato entre os profissio-nais e pacientes nessas condições éaquém do desejável, e isto evidente-mente impossibilita o estabelecimen-to de uma adequada e necessária co-municação.

A ação dos profissionais de saú-de nas situações de emergência, emque os indivíduos não conseguem ex-primir suas preferências ou dar seu

consentimento, fundamentam-se noprincípio da beneficência, assumindoo papel de protetor natural do pacien-te por meio de ações positivas em fa-vor da vida e da saúde. Nas situaçõesde emergência aceita-se a noção daexistência de consentimento presumi-do ou implícito, pelo qual supõe-se quea pessoa, se estivesse de posse de suareal autonomia e capacidade, se ma-nifestaria favorável às tentativas deresolver causas e/ou conseqüências desuas condições de saúde. Aliás, a ina-ção nas circunstâncias de grave e imi-nente perigo de vida contraria o deverde solidariedade imposto pelo acata-mento ao princípio de beneficência,podendo consubstanciar situação deomissão de socorro.

A compreensão jurídicaprevalente e as normas de ética profis-sional dos médicos e dos profissionaisde enfermagem apontam que no casode iminente perigo de vida o valor davida humana possa se sobrepor ao re-querimento do consentimento e do es-clarecimento do paciente (CEM, arts.46 e 56). A sonegação de informaçõesnessas situações é justificada pragma-ticamente pela premência da necessi-dade de agir, confrontando-se com asdificuldades de ser estabelecida ade-quada comunicação.

Contudo, deve-se realçar que o“iminente perigo” não pode ser de modoque resulte em sonegação de informa-ção/esclarecimento/direito de decisão,em ocasiões em que não existem justifi-cativas éticas para desrespeitar a auto-nomia das pessoas. O Código de ÉticaMédica prevê que o proceder nas situa-ções de iminente perigo de vida seja ori-entado pelos princípios éticos da be-neficência e da não-maleficência, na

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Novamente a mesma questão. O princípio da beneficiência se sobrepõe a tudo.
Page 67: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

69

proteção do bem-estar do paciente, as-sumindo o profissional o papel de prote-tor natural do mesmo. Porém, é precisoobservar que nas próprias situações deexceção é eticamente desejável que de-cisões verdadeiramente autônomas dospacientes ou de seus responsáveis se-jam respeitadas, e que as normas doscódigos de ética profissional não se-jam utilizadas, como freqüentementeacontece, contra os valores e objetivosde vida do paciente.

O termo de consentimentolivre e esclarecido

Fornecer um texto padrão de con-sentimento livre e esclarecido para serseguido, em nossa opinião, não é ade-quado. Alguns requisitos, entretanto,são básicos e não devem ser esque-cidos quando da redação desse do-cumento. Esses elementos essenciais deum termo de consentimento livre e es-clarecido poderiam ser assimsumarizados:

1°) Ser feito em linguagem aces-sível;

2º) Conter: a) os procedimentos outerapêuticas que serão utilizados,bem como seus objetivos e justifi-cativas; b) desconfortos e riscospossíveis e os benefícios esperados;c) métodos alternativos existentes;d) liberdade do paciente recusar ouretirar seu consentimento, semqualquer penalização e/ou pre-juízo à sua assistência; e) assina-tura ou identificação dactilos-cópica do paciente ou de seu re-presentante legal.

A conduta ética na práticamédica atual

A prática médica atual exige rup-turas com o sistema ético tradicional?

A ética hipocrática baseia-se, fun-damentalmente, nos princípios dabeneficiência, não-maleficiência, res-peito à vida, à privacidade e àconfidencialidade.

Como regra geral, esses princípiostradicionais continuam válidos e ade-quados para nortearem a prática mé-dica; o que deve, entretanto, ser acres-centado é o princípio do respeito àautonomia do paciente.

À manifestação autônoma da suavontade, devidamente esclarecida peloprofissional de saúde, cabe a decisãofinal em cada procedimento. Ressalve-se que todos esses princípios não sãoabsolutos e, portanto, admitem condu-tas de exceção.

Referências bibliográficas

Dias CV. Literatura grega. In: Enciclo-pédia Barsa. Rio de Janeiro: Enciclopé-dia Britânica do Brasil Publicações,1966.

Jaeger W. Paideia: los ideales de la cul-tura griega. México: F.C. Economica,1967.

Ribeiro RJ. USP debate os direitos hu-manos. Calendário Cultural, USP, abril,1997.

Gracia D. Introducción. La bioética mé-dica. Bol Of Sanit Panam 1990;108(5-6):374-8.

4.

2.

1.

3.

Julio
Realce
Page 68: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

70

Chaves A. Direito ao próprio corpo. RevMed 1977;6(11):21-4.

Gracia D. La bioética médica. In:Organización Panamericana de la Salud.Bioética: temas y perspectivas. Washing-ton: OPAS, 1990: 3-7.

Pueyo VM, Rojo JÁ, Guevara LL. Losderechos del enfermo. Rev Esp Med Leg1983;36-37:7-44.

Macedo CG. Bioética. Bol Of SanitPanam 1990;108(5-6):1.

Pessini L, Barchifontaine P. Problemasatuais de bioética. 4ª ed. São Paulo:Loyola, 1997.

Pellegrino ED. La relación entre la au-tonomia y la integridad en la ética mé-dica. In: Organización Panamericana dela Salud. Bioética: temas y perspecti-vas. Washington: OPAS, 1990: 8-17.

Chaui M. Convite à filosofia. 5ª ed. SãoPaulo: Ática, 1995.

Culver CM. Competência do pacien-te. In: Segre M, Cohen C,organizadores. Bioética. São Paulo:EDUSP, 1995: 63-73.

Harris J. The value of life: an introductionto medical ethics. London: Routledge andKegan Paul, 1985: 197-8.

Singer P. Ética prática. São Paulo:Martins Fontes, 1994: 18.

Culver CM, Gert B. Philosophy inmedicine. New York: Oxford Press, 1982.

Konrad MS. A defense of medicalpaternalism maximizing patient’sautonomy. In: Edwards RB, Graber GC.Bioethics. San Diego: Hacourt BraceJovanovich Publishers, 1988: 141-50.

Muñoz DR. A bioética e a relação médi-co-paciente. In: Bioética clínica: cursode extensão universitária. São Paulo: Fa-culdade de Ciências Médicas da SantaCasa de São Paulo, 1997.

Fortes PAC. O consentimento informa-do na atividade médica e a resposta dostribunais. Rev Justiça Democracia1996;1(2):185-97.

Fortes PAC. Reflexões sobre a bioéticae o consentimento esclarecido. Bioética1995;2:129-35.

Hewlett S. Consent to clinical research:adequately voluntary or substanciallyinfluenced? J Med Ethics 1996;22:232-7.

Beauchamp TL, McCullough LB. Themanagement of medical information:legal and moral requeriments of informedvoluntary consent. In: Edwards RB,Graber GC. Bioethics. San Diego:Hacourt Brace Jovanovich Publishers,1988: 130-41.

Fortes PAC. A responsabilidade médicanos tribunais [tese]. São Paulo: Univer-sidade de São Paulo, Faculdade de Saú-de Pública, 1994.

Cassileth BR, Zupkis RV, Sutton-SmithK, March V. Informed consent: why areits goals imperfectly realized? N Engl JMed 1980;302:896-900.

23.

22.

20.

12.

21.11.

19.

18.

17.

10.

16.

9.

15.

14.

13.

8.

7.

6.

5.

Page 69: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

71

Introdução

Giovanni Berlinguer, em seu últi-mo livro Ética de la Salud, fala de uma“bioética de justificativa” e retoma acrítica apresentada pela prestigiosarevista Hastings Center Report. AlertaBerlinguer que essa nova tendênciapode ser considerada como o retornoa um deserto moral. Diz textualmente:“Ontem a ética tratava de Justiça, doacesso aos serviços de saúde, dos di-reitos dos enfermos; hoje, fala-se uni-camente da racionalização dos trata-mentos médicos”.

Essa nova visão deformada dabioética pretende legitimar algumasdecisões políticas fortemente restritivasà aplicação de recursos na área dasaúde.

José Eduardo de Siqueira

O Princípio da Justiça“A distribuição natural dos bens não é justa ou injusta; nem éinjusto que os homens nasçam em algumas condições parti-culares dentro da sociedade. Estes são simplesmente fatosnaturais. O que é justo ou injusto é o modo como as institui-ções sociais tratam destes fatos”.

JOHN RAWLS - Theory of Justice

Cifras do Banco Mundial mostramque caso a mortalidade infantil regis-trada nos países pobres fosse reduzi-da ao nível observado nos países ri-cos, onze milhões de crianças pode-riam deixar de morrer anualmente.

Esses registros iniciais nos pare-cem oportunos para introduzir o temado princípio da justiça, já que a possi-bilidade do retorno “ao desertomoral”deve não somente nos provocarindignação como, também, o desejo deresgatar o enunciado kantiano de queo ser humano há de ter sempre digni-dade e não preço, como querem algunsfinancistas.

Com freqüência, as autoridadesque estabelecem as políticas de aten-ção à saúde amparam-se em diferen-tes teorias da justiça para defender

Page 70: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

72

suas decisões. Seria equivocado, po-rém, pensar que somente proposiçõesfilosóficas sobre a justiça determi-nam concretamente medidas gover-namentais. Entretanto, elas não só asinfluenciam como, também, dão sus-tentação às argumentações de seusformuladores.

Imperioso, portanto, é conhecerum pouco das principais correntes depensamento sobre o princípio da jus-tiça propostas ao longo da história dafilosofia política.

A justiça amparada nametafísica

A teoria da justiça formulada pe-los pensadores gregos – que se mante-ve vigente no mundo ocidental desdeo século VI a.C. até o século XVII denossa era – entendia a justiça comouma propriedade natural das coisas.Ao ser humano caberia apenasconhecê-las e respeitá-las. Havendouma lei natural imutável, tudo teria oseu lugar no plano cósmico ou mesmono das relações humanas. Platão des-creve uma sociedade naturalmente or-denada e estabelece, em seu livro ARepública, a categoria de homens in-feriores, os artesãos, ao lado de outrosque naturalmente seriam forjados parao comando político, os governantes. Osindivíduos inferiores prestariam per-manente obediência aos governantes,a mesma que habitualmente se devo-tava aos pais. Este é o fundamento dopaternalismo deste modelo filosófico.Assim, na cidade justa descrita porPlatão, da mesma maneira que o súdi-to devia obediência ao soberano, tam-

bém o enfermo a deveria aos médicos.A medicina era tida como uma espé-cie de sacerdócio e o médico, de al-gum modo, o mediador entre os deu-ses e os homens. Os serviços médicoseram considerados de tal maneira su-periores que, em realidade, não pode-riam ser pagos conforme os preceitoshabituais de troca, senão com a incor-poração obrigatória de um tributo dehonra (honor), o que deu origem aotermo honorário.

Na cultura grega identificava-seuma clara superioridade do bem co-mum sobre o individual. Aristóteles, porexemplo, considerava que a polis se-ria, por natureza, anterior ao indíviduoporque o todo é necessariamente an-terior à parte e por ser somente ela(polis) auto-suficiente em si mesma. Naordem da justiça isto significava que obem comum é necessariamente ante-rior ao bem individual. Fundamental,porém, é ter claro o sentido preciso doque se entendia por “bem comum”.Esse enunciado aristotélico ganha emS. Tomás de Aquino os contornos dedoutrina religiosa. Assim, baseado nolivro do Gênesis, toda a espécie hu-mana procederia de um único homem– Adão. Todos os homens tomariamparte em uma comunidade natural.Essa concepção metafísica que uniaos homens a uma entidade atemporalpersiste ainda hoje na doutrina católi-ca quando aponta para uma Jerusa-lém Celeste unida a uma Jerusalém Ter-restre ou Padecente, esta última repre-sentada por toda a comunidade de cren-tes vivos. O mundo sobrenatural unidoao natural em plena harmonia, tudo re-gido por uma lei imutável. Dentro dessaótica os atos individuais seriam consi-derados “bons” se respeitassem essa

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 71: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

73

ordem natural. Do mesmo modo, aperfeição moral só poderia seralcançada de maneira completa na fi-gura do governante. Todos deveriamestar unidos ao soberano pelo vínculoilimitado da obediência. A figura domédico, nessa sociedade, apresentava-se tal qual a do soberano. QuandoAristóteles e S. Tomás de Aquino fala-vam da perfeição moral do rei, paraquem os súditos deveriam demonstrarincondicional obediência, se reconhe-ce de imediato o mesmo modelo narelação médico-paciente. O médico,tanto quanto o rei e o sacerdote, re-presentava o bem comum e, portanto,a perfeição moral. Por isso, a única vir-tude que se esperava de um enfermoera a obediência. S. Antonio de Flo-rença escreveu em 1459: “Se um ho-mem enfermo recusa os medicamen-tos prescritos por um médico chama-do por ele ou por seus parentes, podeser tratado contra sua própria vontade,do mesmo modo que um homem podeser retirado contra sua vontade de umacasa que está prestes a ruir”.

Nessa sociedade cabia aos legis-ladores implantar leis que expressas-sem este ideal de justiça. A justiçacomo proporcionalidade natural. Oescravo era atendido por um médicoescravo, o artesão era sempre impos-sibilitado de receber tratamentosdispendiosos, somente o cidadão ricoteria completo acesso aos bens da saú-de. Estas diferentes atenções médicaseram consideradas justas, pois eramconsensualmente aceitas como propor-cionais e atenderiam aos princípios dajustiça distributiva na sociedade regidapor uma lei natural, transcendente eimutável. Nesse modelo de justiça ospacientes eram destituídos de autono-

mia e recebiam uma parcela de aten-dimento médico proporcional à suacategoria social e todo esse universoestratificado era justificado por umprincípio metafísico.

A justiça contemplando oindivíduo

Por um largo período da históriaprevaleceu a idéia da lei natural comonorma de relações entre os homens.Somente na modernidade a justiçadeixou de ser concebida como condi-ção natural para transformar-se emdecisão moral. Evoluiu-se no entendi-mento da justiça como valor intrínse-co de uma lei natural para um bemdecidido em termos de um contratosocial. Este novo pacto passou a ditarnormas de relação entre o súdito e osoberano não mais pela submissão,mas sim por uma decisão livre. O ho-mem comum agora desconsiderava alei natural como fonte autêntica depoder e impunha sua decisão moralcomo única e exclusiva norma de jus-tiça. No final do século XVII, JohnLocke descreveu como direitos primá-rios de todo ser humano o direito àvida, à saúde, à integridade física, àliberdade e à propriedade.

No início do renascimento, o temada justiça foi tratado por Jean Bodinoem seu livro República, onde propõeuma monarquia harmônica na qual ossúditos não seriam tratados como cri-anças, numa clara referência ao mo-delo grego, mas sim como adultos, do-tados de liberdade, e condena a idéiados monarcas abusarem das pessoaslivres, bem como dos escravos e dos

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 72: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

74

bens dos súditos como se fossem seus.Disse Bodino: “Entendo por justiça areta distribuição das recompensas e daspenas e do que pertence a cada um deacordo com o direito (...) Dita distri-buição só pode realizar-se pela aplica-ção conjunta dos princípios da igual-dade e da semelhança, o que cabalmen-te constitui a proporção harmônica(...)Nenhum autor grego ou latino referiu-se à justiça harmônica seja para suadistribuição, seja para o governo da Re-pública. Não obstante, se trata da for-ma de justiça mais divina e maisexcelsa...”

Entre Bodino e Locke houve umpensador muito importante, Espinoza,que em seu Tratado Teológico-Políticodefende a idéia de que a soberaniaautêntica do regime político perfeitodeve residir exclusivamente no direitode todos os homens em uma comuni-dade democrática. Condenando o ab-solutismo, Espinoza considera comoantinatural o poder de um monarcasobre seus súditos e propõe, como maisajustado à natureza, que cada cida-dão transfira seus direitos em favor damaioria da sociedade. Espinoza enten-dia a justiça como obra da razão econstruída dentro de um pacto demo-crático.

O Tractatus Theologico-Politicusde Espinoza é de 1670. Em 1690, JohnLocke publica Two Treatises on CivilGovernment, a carta magna do libera-lismo contratualista. O autor é categó-rico em afirmar que quando as leis nãorespeitam os direitos de cada cidadãoo Estado excede os limites de suas fun-ções e torna-se injusto. Para Locke, averdadeira justiça erigia-se em um con-trato social que obrigatoriamente ema-nava do exercício da liberdade indivi-

dual. Segundo o pensamento liberal,há uma concepção minimalista do Es-tado que teria simplesmente a missãode permitir o exercício dos direitosnaturais de cada cidadão: o direito àvida, à saúde, à liberdade e à proprie-dade. Estabelecia-se a prevalência dosdireitos individuais sobre o poder doEstado; a plena liberdade do contratosubstituía o velho ajuste natural.

No campo da saúde este novoenfoque trouxe mudanças substanciais.Se no antigo modelo o indivíduo era umelemento passivo e considerava-se imo-ral a desobediência às decisões médi-cas, no pensamento liberal a justiça sa-nitária incorpora-se à nova realidade domercado e é transacionada segundo asleis livres do comércio, sem qualquer in-tervenção de terceiros. Desta corrente depensamento surgiram os princípios damedicina liberal que estabeleceu regrasno relacionamento médico-paciente aco-modadas às leis de mercado, afastado oEstado de qualquer tipo de intervenção.Qualquer intermediação era considera-da prejudicial. As associações médicasemergentes no século XIX condenavamem seus códigos deontológicos os pro-fissionais que recebiam salários. A as-sistência médica era regida por um con-trato particular entre médico e pacien-te, com regras de comum acordo entreas partes, sem nenhum tipo de contro-le externo.

Segundo este modelo, instituiu-se no século XIX três tipos bem di-ferenciados de assistência médica. Asfamílias ricas, que dispunham de re-cursos financeiros suficientes para ce-lebrar qualquer contrato, pagavam oshonorários arbitrados pelos médicos.Havia, também, um amplo estrato dapopulação que se valia de um seguro

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 73: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

75

privado para conseguir saldar os com-promissos com intervenções médicase internações hospitalares. Finalmen-te, estava a maioria das pessoas po-bres que não tinham recursos paraacesso ao sistema sanitário. Para aten-der a esse enorme contingente dedespossuídos foram criadas as entida-des beneficentes, que se pautavam pelosentimento cristão de misericórdia ecaridade. Assim, surgiram no Ociden-te as Santas Casas de Misericórdia,invariavelmente dirigidas por irmanda-des de freiras católicas. Muitos dosenfermos atendidos nessas entidadeso foram na condição de indigentes. Serecorrermos ao Dicionário de AurélioBuarque de Holanda vamos encontraro termo indigência como “a falta donecessário para viver, pobreza extre-ma, penúria, miséria”. A realidadedestes pacientes é bem conhecida demédicos formados até a década desessenta de nosso século e que, porserem recentes, mostram uma outraface da misericórdia, que é a misériaque imperava no atendimento a essesindivíduos. Em alguns hospitais podia-se ler, af ixados às portas, osversículos iniciais do Salmo 51, cha-mado Misere e que diz:“Tem pieda-de de mim, ó Deus, por teu amor!Apaga minhas trangressões, por tuagrande compaixão!”.

A indigência roubava dessas pes-soas o direito a qualquer reivindica-ção sobre justiça e as tornava prota-gonistas do que Virgílio descrevia comomuta ars. A prática médica exercidacomo a arte muda de deuses que es-palhavam suas benesses a pacientesque absolutamente obedientes as re-cebiam com extrema e comovida gra-tidão. A teoria liberal nada tinha a ofe-

recer a essa multidão de indigentes quenão podia exercer o que seriam, se-gundo Locke, os direitos naturais dequalquer cidadão pelo mero fato de serpessoa humana. O Estado minimalistade Locke era muito frágil e destituídode poder para intervir em benefício dequem quer que fosse. As leis do mer-cado liberal pressupunham para o ple-no exercício da cidadania o domíniodo poder econômico para celebrar con-tratos que possibilitassem acesso aoscuidados de saúde. Fora desse âmbi-to, só restava a esmola, a misericór-dia. E foi exatamente a óbvia injustiçadeste Estado minimalista que gerou oEstado maximalista proposto porMarx.

A justiça contemplando ocoletivo

Karl Marx e Friedrich Engels pro-puseram como alternativa para as in-justiças da sociedade liberal o regimesocialista como único caminho para aconstrução de uma sociedade huma-na autenticamente igualitária e justa.Argumentavam que a justiça distri-butiva jamais poderia prosperar no li-beralismo que se prendia a uma ban-deira dos direitos civis e políticos semconsiderar os direitos econômicos, so-ciais e culturais. Ambos ridiculariza-vam a teoria dos direitos humanos,dizendo que os liberais a defendiamcomo estratégia para se atingir a ver-dadeira meta dos interesses burgueses,que era o de controle da propriedadeprivada sobre os meios de produção.Atacava, portanto, o socialismo a tesecentral dos regimes liberais que se

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 74: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

76

apoiavam no respeito irrestrito à pro-priedade privada. Marx dizia que sóse conseguiria a justiça social anulan-do-se qualquer vestígio da proprieda-de privada, transformando-a em pro-priedade coletiva. O Estado liberal,para os socialistas, era uma superes-trutura edificada sobre uma infra-es-trutura desigual e que apenas faziainstitucionalizar a injustiça. EntendiaMarx que o liberalismo apenas trans-ferira de mãos o poder dos senhoresfeudais para a burguesia. A proprie-dade privada empregava o proletárioque na condição de assalariado faziacrescer o poder da burguesia sem re-ceber em troca qualquer parcela dopoder. Só haveria uma maneira de seconstruir a sociedade justa, que eratornando propriedades comuns os bensde produção. Marx foi mais longe ain-da, ao dizer que se o capital permane-cesse como patrimônio pessoal de al-guns daí resultaria que seus proprietá-rios imporiam suas personalidades einiciativas, enquanto os trabalhadorescareceriam de ambas e, conseqüente-mente, perderiam também sua próprialiberdade. Por considerar essa estrutu-ra injusta, Marx declara que a socie-dade humana deveria aspirar a um Es-tado no qual fossem “abolidas a per-sonalidade, a independência e a liber-dade burguesas”. Interpretava o ho-mem gerado pelo liberalismo como umindivíduo fechado em si mesmo, emseus interesses particulares e aparta-do da comunidade, enfim, um verda-deiro predador dos mais nobres va-lores da sociedade humana. Os úni-cos vínculos que o manteria unido àsociedade seriam suas necessidades einteresses na preservação de sua pro-priedade, ou seja, de seus interesses

egoístas. A injustiça, portanto, era vis-ta como intrínseca ao sistema liberal ecapitalista, não cabendo outra alterna-tiva senão a completa transformaçãodo mesmo. Embora tivesse existidouma corrente de pensadores socialis-tas que vislumbravam a possibilidadede uma humanização do sistema libe-ral, contemplando os operários commaiores direitos no campo econômi-co e social, acabaram, finalmente, porprevalecer as teses de Marx. Para ele,os filósofos idealistas teriam criadouma grande falácia ao identificar apessoa humana com o conceito demoral (Kant) ou a uma realidade espi-ritual (Hegel), esquecendo que o ho-mem real é inseparável de suas condi-ções materiais de vida e de suas rela-ções de produção. Desconhecer essaevidência seria condenar a sociedadea um idealismo puro, sem propostasracionais para os problemas da im-plantação da justiça entre os homens.

Na sociedade comunista a saúdeteria que ser, portanto, um serviço pú-blico que obrigatoriamente seria ofe-recido a todos segundo suas necessi-dades. Advogou Marx a famosa tese“a cada um exigir-se segundo sua ca-pacidade e dar-se segundo sua neces-sidade”. Não havendo lugar para aprática liberal da medicina, o Estadopassa a oferecer a todo cidadão, demodo integral e gratuito, a assistênciasanitária segundo suas necessidades.Dessa maneira se alcançaria a verda-deira justiça no campo da saúde. As-sim foi feito na ex-União Soviéticaapós a Revolução de 1917, e se faz atéhoje em Cuba.

Um problema que permaneceusem solução no socialismo clássico foi odo tratamento desigual dos diferentes

Julio
Realce
Julio
Realce
Page 75: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

77

níveis de liberdade humana. A liber-dade de e a liberdade para, considera-das pelos socialistas, respectivamente,como formal e real. Consagrou-secomo essencial as liberdades para tra-balhar, formar família, educar os filhos,todas atendidas pelos direitos econô-micos, sociais e culturais. Considera-das supérfluas as liberdades de expres-são, de culto religioso, de produçãointelectual, o que recentemente moti-vou os seguintes comentários do ex-primeiro ministro russo Gorbachev,quando da queda do comunismo naUnião Soviética: “O que morreu parasempre foi o modelo criado por Stalin,que desde o primeiro momento foi umaaventura, um regime que ignorava porcompleto a democracia, os direitoshumanos (...)”

Em busca da justiçano século XX

Dois autores marcaram a déca-da de setenta de nosso século comnovas propostas para a justiça: RobertNozick e John Rawls. O primeiro pu-blicou, em 1974, Anarchy, State andUtopia, estabelecendo que somentepoderia ser considerado justo o Esta-do que se limitasse à proteção dos di-reitos individuais das pessoas. Reto-ma a tese do “Estado Mínimo” argu-mentando que o “Estado Maior” vio-lava os direitos dos cidadãos. Na in-trodução de sua mencionada obra,assim expõe seu conceito de Estado:“Nossa conclusão principal a propósi-to do Estado é que está justificado umEstado mínimo, limitado às estritas fun-ções de proteção contra a violência, o

furto, a fraude no cumprimento doscontratos. O Estado não pode usarseu poder de coação com a finalida-de de obrigar alguns cidadãos a aju-dar outros (...)”

Mais influente que Nozick foi, semdúvida, Rawls, que em 1971 publicouA Theory of Justice, onde procura es-tabelecer a justiça como eqüidade.Muito próximo a algumas idéias fun-damentais da ética kantiana, Rawlsparte da pessoa como um absolutomoral. Quer com isto dizer que todoser humano, uma vez alcançada a ida-de da razão, é autonômo e tem umperfeito senso de justiça. Estabeleceuma ponte entre os conceitos de “pes-soa moral” e “sociedade bem-ordena-da”. Para que ocorra o perfeitoentrosamento entre as duas variáveis,pessoa e sociedade, estabelece comoimprescindíveis alguns direitos indivi-duais e sociais primários, que seriam:

1) Liberdades básicas de pensa-mento e de consciência que ca-pacitariam o indivíduo para to-mar decisões e buscar a implan-tação do bem e da justiça;

2) Liberdade de movimento e delivre escolha de ocupações;

3) Liberdade de rendas e rique-zas;

4) Condições sociais para o res-peito a todo indíviduo como pes-soa moral.

Rawls considera que uma socie-dade somente será justa se “todos osvalores sociais – liberdade e oportuni-dades, ingressos e riquezas, assim comoas bases sociais e o respeito a si mes-mo – forem distribuídos de maneira

Julio
Realce
Page 76: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

78

igual, a menos que uma distribuiçãodesigual de algum ou de todos essesvalores redunde em benefício para to-dos, em especial para os mais necessi-tados”.

Partindo do imperativo categó-rico da razão kantiana, Rawls esta-belece uma teoria de justiça socialque busca integrar as liberdades ci-vis e políticas com os direitos econô-micos, sociais e culturais. Transfor-ma-se em modelo para os projetossocial-democratas que passaram aimperar no mundo ocidental. Entreo liberalismo extremo e o socialismoortodoxo propõe uma tese interme-diária que denomina de justiça comoeqüidade. Talvez seja a teoria quemais repercussões teve na socieda-de ocidental moderna. Mesmo namedicina sua influência foi profun-da. Assim, inúmeros são os autoresque basearam-se em Rawls para ela-borar engenhosas propostas para ostemas de justiça sanitária, como, porexemplo, Norman Daniels e RobertVeatch. Este último publicou em 1986o livro The Foundations of Justice,onde, baseado em princípios da mo-ral judaico-cristã, formula uma teo-ria de justiça igualitária em que pro-põe igualdade nos valores morais, nasoportunidades e nas conseqüênciassociais. Outro autor que recebeu in-fluência de Rawls e fez importantescontribuições ao tema da justiçasanitária foi Charles Fried, que con-sidera como obrigação do Estadoprestar assistência aos mais neces-sitados até um mínimo bastanteelevado e muito acima do propos-to por Nozick.

A título de conclusão e poruma justiça sanitária digna noBrasil

A receita do Estado Mínimo fazparte do ideário neoconservador ouneoliberal que propõe um modeloelitista de democracia frente aoparticipativo. Estabelece limitesdrásticos ao papel do Estado, quese ocuparia tão-somente de obras e daordem pública, ou seja, garantir a co-modidade e a segurança dos cidadãos,ao invés de intervir para assegurar aliberdade e a eqüidade. É óbvio que,nesse modelo, a aplicação do princí-pio da justiça ficou tributária da éticautilitarista que responde às leis do mer-cado. Os que defendem uma democra-cia participativa entendem a saúdecomo um bem tão fundamental quepara ser eticamente aceitável deve seroferecida para todos, e não para amaioria. Pretendem substituir o con-ceito de Jeremy Bentham de “o maiorbem para o maior número” para o maisequânime “um adequado nível de as-sistência à saúde para todos”.

Na década de setenta, a Organi-zação Mundial da Saúde (OMS) lan-çou a campanha “Saúde para todosno ano 2000”. Esse projeto contavacom o empenho de vários governospara que, no final deste milênio, fos-sem reduzidas as diferenças nos indi-cadores de saúde das populações po-bres e ricas em pelo menos 25%, o quesignificaria melhora sensível em favordos países mais carentes. A dois anosdo ano 2000, o índice de 25% prova-velmente será atingido, porém em sen-tido oposto, ou seja, mais se acentuoua diferença dos indicadores de saúde

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 77: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

79

do Primeiro para o Terceiro Mundo.Lamentavelmente, constata-se que omote da campanha da OMS está setransformando em “Saúde para pou-cos no ano 2000”.

Os países pobres apresentamuma expectativa de vida média 20 anosmenor que a dos países ricos, e a morta-lidade infantil é 10 a 15 vezes maior.Quando se analisa os indicadores desaúde das classes altas dos países doTerceiro Mundo, verifica-se que osmesmos são comparáveis aos obser-vados nos países do Primeiro Mundo.Este fato deu margem a que fosse iro-nicamente proposto um nome maisapropriado para o nosso país, quepassaria a ser conhecido comoBelíndia. Pequena parte da populaçãovivendo nas condições da rica Bélgicae a grande maioria na pobre Índia.Josué de Castro, em seu livro Geogra-fia da Fome, identificou nesse contras-te uma imensa população de insones.Alguns que não dormiriam de fome eoutros que não dormiriam com medodaqueles que têm fome.

No Brasil já é passada a hora dedefinirmos se desejamos a saúde apre-sentada no balcão de negócios e me-diada pelas leis de mercado, onde osdetentores dos recursos econômicoscompram a melhor assistência médi-ca a qualquer preço, ou a saúde ofere-cida a todos como um direito univer-sal. Nossa Constituição, ao menos,estabelece no artigo 192 que “a Saú-de é um direito de todos e um dever doEstado”.

Infelizmente, vemos o Estado fu-gir de seu compromisso constitucionale entregar recursos a hospitais priva-dos, esquecendo as unidades públicasde saúde. Num artigo publicado na

revista Bioética do Conselho Federal deMedicina, o deputado federal e ex-se-cretário da Saúde do Estado de SãoPaulo, José Aristodemo Pinotti, faz aseguinte afirmação: “A realidade é que,nestes últimos cinco anos, terceirizou-se caoticamente a saúde e, hoje, o se-tor privado contratado, que absorvecerca de 50% dos recursos da área, émal remunerado, mal controlado, frau-da com freqüência e atende sem efici-ência ou eficácia”.

A Bioética, como foro privilegia-do por sempre expressar reflexõesoriundas de saberes multidisciplinares,percebe que a assistência médicacentrada no hospital e calcada nos úl-timos avanços tecnológicos é extrema-mente onerosa e pouco eficiente. NoBrasil, gasta-se 30% dos recursos doSistema Único de Saúde com métodosde investigação que envolvem altatecnologia para o atendimento daestreitíssima faixa de 3% da popula-ção. Por outro lado, a região Sudeste,a mais rica de nosso país, recebeu em1990, do Ministério da Saúde, aproxi-madamente 60% dos recursos para aprestação de atendimento ambula-torial. Em 1993, o Sistema Único deSaúde gastou, no atendimentoambulatorial de pacientes, US$ 25,71por habitante em São Paulo e apenasUS$ 14,43 na Paraíba, sabidamentemuito mais carente. Se considerásse-mos os postulados de Rawls devería-mos inverter estas dotações fazendo,verdadeiramente, uma discriminaçãopositiva para a Paraíba.

Nossas últimas linhas, pesarosa-mente, são para registrar que vivemosa triste realidade de uma Saúde dostrês “i”: ineficiente, iníqua e injusta.Resta-nos o alento de saber que há

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 78: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

80

muito o que fazer e que nossa respon-sabilidade é grande em buscar implan-tar princípios de justiça que transfor-mem nossa saúde em uma prática efi-ciente, equânime e justa. Afinal, é pre-ciso construir o Brasil sobre a Belíndiapara que, sem medo, todos possamosdormir em paz.

Bibliografia

Banco Mundial. Invertir en salud: infor-me sobre el desarrollo mundial. Wa-shington: Oxford Univ.Press, 1993.

Bentham J. Fragmentos sobre elgobierno. Sarpe: Madrid, 1985.

Berlinguer G. Ética de la salud. BuenosAires: Lugar Editorial, 1996.

Berlinguer G. Questões de vida. São Pau-lo: HUCITEC/CEBES, 1993.

Camps V. El malestar de la vida públi-ca. Barcelona: Grijalbo, 1996.

Colomer E. El pensamiento alemán deKant a Heidegger. Barcelona: Herder,1995.

Cortina A. Ética sin moral. Madrid:Tecnos, 1995.

Daniels N. Just health care. Cambridge:Cambridge Univ. Press, 1985.

Gracia D. Fundamentos de bioética.Madrid: Eudema, 1989.

Gracia D. Procedimientos de decisión enética clínica. Madrid: Eudema, 1991.

Habermas J. Escritos sobre moralidad yeticidad. Barcelona: Paidós, 1991.

Locke J. Dos ensayos sobre el gobiernocivil. Madrid: Aguilar, 1969.

Mendes EV. Uma agenda para a saúde.São Paulo: Hucitec, 1996.

Nozick R. Anarchy, state and utopia.New York: Basic Books, 1974.

Pinotti JA. Prioridade x escassez em saú-de: visão política. Bioética (CFM)1997:5:53-66.

Rawls J. Teoria de la justicia. Madrid:Fondo de Cultura Económica, 1979.

Veatch RM, Branson R. Ethics andhealth policy. Cambridge: Ballinger,1976.

Page 79: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

81

Léo PessiniChristian de Paul de Barchifontaine

Introdução

Nosso trabalho é contextualizadona rememoração histórica dos fatos eacontecimentos fundamentais, dos do-cumentos e protagonistas que deramorigem à reflexão bioética princi-pialista: o Relatório Belmont, da Co-missão Nacional Para a Proteçãodos Seres Humanos da PesquisaBiomédica e Comportamental (1978);uma descrição rápida do conteúdo dosprincípios apontados pela Comissão e aobra clássica, Principles of BiomedicalEthics, de T. L. Beauchamp e J. F.Childress (parte I). A seguir, nos pergun-tamos porque a bioética tornou-seprincipialista (parte II).

Nossa reflexão apresenta umaanálise comparativa, tentando traçar

Bioética: do Principialismo àBusca de uma Perspectiva

Latino-Americana

o perfil de uma bioética “made inUSA” e européia (parte III), bemcomo a fisionomia de uma bioéticalatino-americana (parte IV). Finaliza-mos apontando, para além da lingua-gem dos princípios, a existência deoutras linguagens alternativas queajudam a captar a riqueza da expe-riência ética, inesgotável numa de-terminada visão reducionista.Alertamos para a necessidade de ela-boração de uma bioética latino-ame-ricana aderente à vida destes povos,que ao honrar seus valores históri-cos, culturais, religiosos e sociais,obrigatoriamente na sua agendatemática contextual, terá encontromarcado com a exclusão social epontualizará valores tais como co-munidade, eqüidade, justiça e so-lidariedade.

Julio
Realce
Page 80: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

82

Gênese do paradigmaprincipialista da bioética “madein USA”

Para melhor entendermos e fazer-mos uma avaliação crítica pertinentedo paradigma bioético principialista,precisamos mergulhar nas origens dosurgimento da reflexão bioética e des-tacar dois fatos de fundamental impor-tância, quais sejam, o RelatórioBelmont e a obra citada deBeauchamp e Childress, Principles ofBiomedical Ethics.

a) O Relatório Belmont (1)

É importante ressaltar que na ori-gem da reflexão ética principialistanorte-americana está a preocupaçãopública com o controle social da pes-quisa em seres humanos. Em parti-cular, três casos notáveis mobilizarama opinião pública e exigiram regula-mentação ética. São eles: 1) Em 1963,no Hospital Israelita de doenças crô-nicas, em Nova York, foram injetadascélulas cancerosas vivas em idososdoentes; 2) Entre 1950 a 1970, no hos-pital estatal de Willowbrook (NY) inje-taram o vírus da hepatite em criançasretardadas mentais e 3) Desde os anos30, mas divulgado apenas em 1972,no caso de Tuskegee study, no estadodo Alabama, 400 negros sifilíticos fo-ram deixados sem tratamento para arealização de uma pesquisa da histó-ria natural da doença. A pesquisa con-tinuou até 1972, apesar do descobri-mento da penicilina. Em 1996, o go-verno norte-americano pediu descul-pas públicas a esta comunidade negra,pelo que foi feito.

Reagindo a estes escândalos, ogoverno e o Congresso norte-america-no constituíram, em 1974, a NationalCommission for the Protection ofHuman Subjects of Biomedical andBehavioral Research (Comissão Na-cional para a Proteção dos Seres Hu-manos em Pesquisa Biomédica eComportamental), com o objetivo de“levar a cabo uma pesquisa e estudocompleto, que identificasse os princí-pios éticos básicos que deveriamnortear a experimentação em seres hu-manos nas ciências do comportamen-to e na biomedicina”. O Congressosolicitou, também, que a Comissão ela-borasse – num prazo de quatro meses– um relatório de pesquisa envolvendofetos humanos. Inicialmente, os mem-bros da Comissão deram atenção to-tal para esta questão, considerada maisurgente, e deixaram a tarefa de identi-ficar os “princípios éticos básicos”para mais tarde. À medida que os tra-balhos em questões específicas avan-çavam, tais como pesquisa com crian-ças, prisioneiros e doentes mentais, fi-lósofos e teólogos foram convidadospara prestar ajuda na tarefa e identifi-car os “princípios éticos básicos” napesquisa com seres humanos.

Esta Comissão levou quatro anospara publicar o que ficou conhecidocomo o Relatório Belmont (BelmontReport), por ter sido realizado no Cen-tro de Convenções Belmont, emElkridge, no estado de Maryland. Nes-te espaço de tempo, os membros daComissão acharam oportuno publicaralgumas recomendações a respeito decomo enfocar e resolver os conflitoséticos levantados pelas ciênciasbiomédicas. Para eles, os códigos, nãoobstante sua utilidade, não eram

Page 81: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

83

operativos, pois “suas regras são comfreqüência inadequadas em casos desituações complexas”. Além disso, oscódigos apontam para a utilização denormas que em casos concretos podemconflitar, resultando, na prática, como“difíceis de interpretar e de aplicar”. Éclaro que a Comissão dispunha dedocumentos tais como o Código deNuremberg (1947) e a Declaração deHelsinque (1964), entre outros, masconsiderou o caminho apontado peloscódigos e declarações de difíciloperacionalização.

Após quatro anos de trabalhos, aComissão propõe um método comple-mentar, baseado na aceitação de que“três princípios éticos mais globais de-veriam prover as bases sobre as quaisformular, criticar e interpretar algumasregras específicas”. A Comissão reco-nhecia que outros princípios poderiamtambém ser relevantes, e três foramidentificados como fundamentais. Se-gundo Albert R. Jonsen, um dos 12membros da Comissão, após muitadiscussão fixaram-se em três princípi-os por estarem “profundamente enrai-zados nas tradições morais da civiliza-ção ocidental, implicados em muitoscódigos e normas a respeito de experi-mentação humana que tinham sidopublicadas anteriormente, e além dis-so refletiam as decisões dos membrosda Comissão que trabalhavam emquestões particulares de pesquisa comfetos, crianças, prisioneiros e assim pordiante”.

O Relatório Belmont foi oficial-mente divulgado em 1978 e causougrande impacto. Tornou-se a declara-ção principialista clássica, não somentepara a ética ligada à pesquisa comseres humanos, já que acabou sendo

também utilizada para a reflexãobioética em geral. Pela sua importân-cia, vejamos como a Comissão enten-dia os princípios identificados.

b) Os princípios éticos no enten-der da comissão governamental

Os três princípios identificadospelo Relatório Belmont foram o res-peito pelas pessoas (autonomia), abeneficência e a justiça. Vejamos ra-pidamente em que, na visão da Co-missão, consistia cada um destesprincípios.

O respeito pelas pessoas incorpo-ra pelo menos duas convicções éticas:1) as pessoas deveriam ser tratadascom autonomia; 2) as pessoas cujaautonomia está diminuída devem serprotegidas. Por pessoa autônoma, oRelatório entendia o indivíduo capazde deliberar sobre seus objetivos pes-soais e agir sob a orientação destadeliberação. A autonomia é entendidanum sentido muito concreto, como acapacidade de atuar com conhecimen-to de causa e sem coação externa. Oconceito de autonomia da Comissãonão é o kantiano, o homem como serautolegislador, mas outro muito maisempírico, segundo o qual uma ação setorna autônoma quando passou pelotrâmite do consentimento informado.Deste princípio derivam procedimen-tos práticos: um é a exigência do con-sentimento informado e o outro é o decomo tomar decisões de substituição,quando uma pessoa é incompetenteou incapaz, isto é, quando não temautonomia suficiente para realizar aação de que se trate.

No princípio da beneficência, oRelatório Belmont rechaça claramente a

Page 82: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

84

idéia clássica da beneficência comocaridade e diz que a considera de umaforma mais radical, como uma obri-gação. Nesse sentido, são formuladasduas regras como expressões comple-mentares dos atos de beneficência: a)não causar dano e b) maximizar osbenefícios e minimizar os possíveis ris-cos. Não distingue entre beneficênciae não-maleficência, o que será poste-riormente realizado por Beauchamp eChildress.

No terceiro princípio, o da justi-ça, os membros da Comissão enten-dem justiça como sendo a “imparcia-lidade na distribuição dos riscos e be-nefícios”. Outra maneira de entendero princípio de justiça é dizer que “osiguais devem ser tratados igualmen-te”. O problema está em saber quemsão os iguais. Entre os homens exis-tem diferenças de todo tipo e muitasdelas devem ser respeitadas em virtu-de do princípio de justiça, por exem-plo, ideal de vida, sistema de valores,crenças religiosas, etc. Não obstante,existe um outro nível em que todosdevemos ser considerados iguais, detal modo que as diferenças nesse ní-vel devem ser consideradas injusti-ças – neste particular a Comissão nãodeixou nada claro.

O Relatório Belmont, um do-cumento brevíssimo por sinal, inaugu-rou um novo estilo ético de abordagemmetodológica dos problemas envolvi-dos na pesquisa em seres humanos.Desde o mesmo não se analisa mais apartir da letra dos códigos e juramentos,mas a partir destes três princípios, comos procedimentos práticos deles conse-qüentes. Neste contexto, o trabalho deBeauchamp e Childress, consideradosos “pais” da reflexão principialista, vai

ter grande impacto, importância e su-cesso nos anos seguintes.

c) A obra clássica de Beauchampe Childress (2)

É importante notar que o Relató-rio Belmont referia-se somente às ques-tões éticas levantadas pela pesquisaem seres humanos. Estava fora de seuhorizonte de preocupação todo o cam-po da prática clínica e assistencial.Beauchamp e Childress, com sua fa-mosa obra Principles of BiomedicalEthics, aplicam para a área clínico-assistencial o “sistema de princípios”e procuram, assim, livrá-la do velhoenfoque próprio dos códigos e jura-mentos. Esta obra transformou-se naprincipal fundamentação teórica donovo campo da ética biomédica. Foipublicada inicialmente em 1979 (em1994 saiu a quarta edição, revista eampliada), um ano após o RelatórioBelmont. Um dos autores, Beauchamp,era membro da Comissão que redigiuo Relatório Belmont e se beneficiou detodo o processo. Beauchamp eChildress retrabalharam os três princí-pios em “quatro”, distinguindo bene-ficência e não-maleficência. Alémdisso, para sua obra, basearam-se nateoria de um grande eticista inglês doinício do século, David Ross, que es-creveu em 1930 um famoso livrointitulado The Right and the Good, emque fala dos deveres atuais e “primafacie” (prima facie duties e actualduties).

Beauchamp e Childress, no pre-fácio de sua obra, procuram analisarsistematicamente os princípios moraisque devem ser aplicados na biome-dicina. Trata-se pois de um enfoque

Page 83: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

85

claramente principialista: entendem aética biomédica como uma “ética apli-cada”, no sentido de que a suaespecificidade é aplicar os princípioséticos gerais aos problemas da práticamédico-assistencial.

É conveniente assinalar queBeauchamp e Childress são pessoascom convicções filosóficas e éticas bemdistintas. Beauchamp é um utilitarista,enquanto que Childress é claramenteum deontologista. Suas teorias éticassão portanto distintas e dificilmenteconciliáveis na hora de justificar oufundamentar os citados princípios.Mas ao invés de verem-se frente a umabismo, os autores consideram issouma vantagem. As discrepâncias teó-ricas não devem impedir o acordo so-bre normas, isto é, sobre princípios eprocedimentos. Dizem eles que “outilitarismo e o deontologismo chegama formular normas similares ou idênti-cas”. Todos, tanto os teleologistascomo os deontologistas, podem acei-tar o sistema de princípios e chegara decisões idênticas em casos con-cretos, não obstante suas discrepân-cias em relação aos aspectos teóri-cos da ética.

Nos últimos 20 anos, a opiniãode Beauchamp e Childress, a de queos princípios e as normas são consi-derados obrigatórios prima facie e es-tão no mesmo nível, ganhou aceitaçãode renomados bioeticistas e somenteas circunstâncias e conseqüências po-dem ordená-los em caso de conflito.Mas a discussão continua. Por exem-plo, na perspectiva de Diego Graciadeve-se priorizar a não-maleficênciasobre a beneficência. Ele divide osquatro princípios em dois níveis, a sa-ber, o privado (autonomia e beneficên-

cia) e o público (não-maleficência ejustiça). Em caso de conflito entre de-veres destes dois níveis, os deveres nonível público sempre têm prioridadesobre os deveres individuais.

O paradigma da bioéticaprincipialista (3)

Os “princípios éticos básicos”,quer sejam os três do RelatórioBelmont ou os quatro de Beauchampe Childress, propiciaram para os es-tudiosos de ética algo que sua pró-pria tradição acadêmico-disciplinarnão lhes forneceu: um esquema cla-ro para uma ética normativa que ti-nha de ser prática e produtiva.

Segundo Albert Jonsen, um dospioneiros da bioética, os princípiosderam destaque para as reflexões maisabrangentes, vagas e menos opera-cionais dos filósofos e teólogos da épo-ca. Em sua simplicidade e objetivida-de, forneceram uma linguagem parafalar com um novo público, formadopor médicos, enfermeiros e outros pro-fissionais da área de saúde(4).

A bioética tornou-se entãoprincipialista, por várias razões, entreoutras:

1) Os primeiros bioeticistas en-contraram na ética normativa deseu tempo, no estilo dos princí-pios, a via media entre a terraárida da metaética ou metafísicae as riquezas das visões da éti-ca teológica, geralmente inaces-síveis;

2) O Relatório Belmont foi o docu-mento fundamental que respondeu

Page 84: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

86

à necessidade dos responsáveispela elaboração de normas públi-cas, uma declaração simples e cla-ra das bases éticas necessáriaspara regulamentar a pesquisa;

3) A nova audiência, compostapor médicos e estudantes de me-dicina, entre outros profissionaisda área de saúde, foi introduzidanos dilemas éticos da época atra-vés da linguagem dos princípios,que mais do que tornar complexana verdade ajudou a entender,clarear e chegar a acordosprocedurais em questões extrema-mente difíceis e polêmicastrazidas pela tecnociência;

4) O sucesso do modeloprincipialista é devido à sua ado-ção pelos clínicos. Os princípiosderam a eles um vocabulário, ca-tegorias lógicas para percepçõese sentimentos morais nãoverbalizados anteriormente, bemcomo meios para resolver os dile-mas morais num determinadocaso, no processo de compreen-são das razões e tomada de deci-são.

A fonte de abusos do princi-pialismo está na necessidade humanade segurança moral e de certezas nummundo de incertezas. Nesse senti-do, o “principialismo” foi o portoseguro para os médicos durante operíodo de profundas mudanças nacompreensão ética dos cuidadosclínicos assistenciais nos EstadosUnidos.

Tudo isso levou ao fortalecimentodo assim chamado “principialismo”,que sem dúvida teve grandes méritose alcançou muito sucesso. Em grande

parte, o que a bioética é nestes pou-cos anos de existência (30 anos) re-sulta principalmente do trabalho debioeticistas na perspectiva princi-pialista. Hoje, fala-se que o “princi-pialismo” está doente, alguns críticosvão mais longe e até dizem que é um“paciente terminal”, mas chega-se aoquase consenso de que não pode servisto como um procedimentodogmático infalível na resolução deconflitos éticos. Não é uma ortodoxia,mas uma abreviação utilitária da filo-sofia moral e da teologia, que serviumuito bem aos pioneiros da bioética econtinua, em muitas circunstâncias, aser útil ainda hoje. A bioética não podeser reduzida a uma ética da eficiênciaaplicada predominantemente em nívelindividual. Nascem várias perspecti-vas de abordagem bioética para alémdos princípios, que somente elencamospara conhecimento. Temos o modeloda casuística (Albert Jonsen e StephenToulmin), das virtudes (EdmundPellegrino e David Thomasma), docuidado (Carol Gilligan), do direitonatural (John Finnis) e apostando novalor central da autonomia e do indi-víduo, o modelo “liberal autonomista”(Tristam Engelhardt), o modelocontratualista (Robert Veatch), o mo-delo antropológico personalista (E.Sgreccia, D. Tettamanzi, S. Spinsanti)e o modelo de libertação (a partir daAmérica Latina, com a contribuiçãoda teologia da libertação), só paramencionar algumas perspectivas maisem evidência (5).

É bom lembrar que Beauchampe Childress, principialistas notórios,tornam-se casuístas quando examinamos casos. Na quarta edição de sua fa-mosa obra, Principles of Biomedical

Page 85: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

87

Ethics, após a argumentação e refle-xão sobre os princípios ao longo de setecapítulos, o capítulo oitavo (último) étodo dedicado “às virtudes e ideais navida profissional”. Vale a pena regis-trar o que dizem esses autores na con-clusão de sua obra: “Neste capítulo fi-nal fomos além dos princípios, regras,obrigações e direitos. Virtudes, ideaise aspirações por excelência moral,apóiam e enriquecem o esquema mo-ral desenvolvido nos capítulos ante-riores. Os ideais transcendem as obri-gações e direitos e muitas virtudes le-vam as pessoas a agir de acordo comprincípios e normas bem como seus ide-ais.(...) Quase todas as grandes teoriaséticas convergem na conclusão que omais importante ingrediente na vidamoral da pessoa é o desenvolvimen-to de caráter que cria a motivação ín-tima e a força para fazer o que é certoe bom” (6).

Indício claro de que estes autores,notórios “principialistas”, apresentamum horizonte ético que vai além domero principialismo absolutista, tãoduramente criticado hoje pelosbioeticistas. Fica evidente que nestanova versão de sua obra Beauchampe Childress incorporaram as inúmerasobservações críticas que receberam aolongo dos anos desde o surgimento damesma.

O bom-senso aconselha ver osprincípios como instrumentos para in-terpretar determinadas facetas moraisde situações e como guias para a ação.Abusos de princípios ocorrem quandomodelamos as circunstâncias paraaplicar um princípio preferido e aca-ba-se caindo no “ismo”, e não se per-cebe mais que existem limites no pro-cedimento principialista considerado

como infalível na resolução dos confli-tos éticos.

Ao fazer uma avaliação dosprincípios na bioética, que surgiramum pouco como a “tábua de salva-ção dos dez mandamentos”, HubertLepargneur aponta – entre outras ob-servações a respeito dos limites dosprincípios – que na implementaçãosempre está implicada uma casuística(análise de casos clínicos). Além dis-so, no horizonte bioético, para além dosprincípios surge como tarefa para abioética colocar no seu devido lugar aprudência como sabedoria prática, quevem desde a tradição aristotélicatomista e que foi esquecida na refle-xão bioética hodierna. A sabedoriaprática da prudência – phronesis –domina a ética e, portanto, a vivênciada moralidade, porque vincula, numasíntese, o agente (com seu condicio-namento próprio e intenção), o con-texto da ação, a natureza da mesmaação e o seu resultado previsível. A fi-gura de proa da ética é a phronesis,que forma as regras da ação e sabeimplementá-las (7, 8).

A obra de maior colaboraçãointer e multidisciplinar produzida atéo presente momento na área debioética, Encyclopedia of Bioethics, aodefinir o que é bioética muda signifi-cativamente sua conceituação entre aprimeira (1978) e segunda edição(1995), justamente na questão ligadaaos princípios. Na primeira edição abioética é definida como sendo o “es-tudo sistemático da conduta humanano campo das ciências da vida e dasaúde, enquanto examinada à luz dosvalores e princípios morais” (o desta-que em itálico é nosso). Independen-temente das diversas teorias éticas que

Page 86: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

88

pudessem estar por trás destes princí-pios e da interpretação dos mesmos,eles são o referencial fundamental. Nasegunda edição a definição do que ébioética já não faz mais referência aos“valores e princípios morais” que ori-entam a conduta humana no estudodas ciências da vida e do cuidado dasaúde, mas às diversas metodologiaséticas e numa perspectiva de aborda-gem multidisciplinar. A bioética é defi-nida como sendo o “estudo sistemáti-co das dimensões morais – incluindovisão, decisão e normas morais – dasciências da vida e do cuidado da saú-de, utilizando uma variedade demetodologias éticas num contextomultidisciplinar” (o destaque em itáli-co é nosso). Evita-se os termos “valo-res” e “princípios” num esforço parase adaptar ao pluralismo ético atual naárea da bioética. Este é um sintomaevidente de que o panorama bioético,claramente principialista no início dabioética (década de 70), já não é maiso mesmo em meados da década de 90;houve uma evolução (9).

Após termos delineado alguns as-pectos da evolução da bioética de umparadigma hegemônico principialistanas suas origens para uma busca “plu-ral” multi e interdisciplinar deparadigmas, vejamos a seguir algumascaracterísticas de duas tradições debioética, especificamente a norte-ame-ricana e a européia.

Bioética “made in USA” ebioética européia (10)

Pelo exposto até o momento, per-cebemos que a bioética principialista

é um produto típico da cultura norte-americana. Existe uma profunda influ-ência do pragmatismo filosófico anglo-saxão em três aspectos fundamentais:nos casos, nos procedimentos e no pro-cesso de tomada de decisões. Os prin-cípios de autonomia, beneficência,não-maleficência e justiça são utiliza-dos, porém no geral são consideradosmais como máximas de atuaçãoprudencial, não como princípios nosentido estrito. Fala-se mais de proce-dimentos e estabelecimentos de normasde regulação. Por exemplo, não hámuita preocupação em definir o con-ceito de autonomia, mas em estabele-cer os procedimentos de análise dacapacidade ou competência (consen-timento informado). Buscam-se os ca-minhos de ação mais adequados, istoé, resolver problemas tomando deci-sões a respeito de procedimentos con-cretos.

Diego Gracia, bioeticista espanhol,defende a tese de que não é possível re-solver os problemas de procedimentosem abordar as questões de fundamen-tação. Fundamentos e procedimentossão, na verdade, duas facetas da mes-ma moeda, inseparáveis. Pobre é o pro-cedimento que não está bem fundamen-tado e pobre é o fundamento que nãodá como resultado um procedimento ágile correto (11).

Nada mais útil do que uma boafundamentação e nada mais funda-mental que um bom procedimento, sãoconvicções de grande parte debioeticistas europeus. A filosofia naEuropa sempre se preocupou muitocom os temas de fundamentação, tal-vez até exageradamente, dizem alguns.Por outro lado, o pragmatismo norte-americano ensinou a cuidar dos pro-

Page 87: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

89

cedimentos. Nesse sentido, pergunta-se se a integração das duas tradiçõesnão seria algo a ser perseguido.

Duas tradições distintas – é pos-sível dialogar e integrar?

Numa perspectiva dialogal entreas tradições da bioética norte-ameri-cana e da européia é interessante ou-vir o bioeticista James Drane, estu-dioso de ética clínica e que se tem pre-ocupado com a bioética na dimensãotranscultural. Para ele, a ética européiaé mais teórica e se preocupa com ques-tões de fundamentação última e deconsistência filosófica. Diz: “ao estarna Europa e ao identificar-me com ohorizonte mental e com as preocupa-ções de meus colegas, observo o cará-ter pragmático e casuístico de nossoestilo de proceder a partir de vossaperspectiva. Certamente, nossa formade fazer ética não é a correta e as ou-tras são erradas. De fato, estou conven-cido de que todos nós temos de apren-der uns com os outros” (12).

Existe nos Estados Unidos umaforte corrente pragmática, ligada àmaneira como os norte-americanos li-dam com os dilemas éticos. Tal estilo éinfluenciado por John Dewey (1859-1952), considerado o pai dopragmatismo, que aplicou os métodosda ciência na resolução de problemaséticos. Pragmatismo que se desenvol-ve como corolário do empirismo deFrancis Bacon e do utilitarismo deJeremy Bentham e John Stuart Mill –que mais tarde avançará para opositivismo lógico. Dewey pensavaque a ética e as outras disciplinashumanistas progrediam muito poucoporque empregavam metodologiasenvelhecidas. Criticou a perspectivaclássica grega, segundo a qual os ho-

mens são espectadores de um mundoinvariável em que a verdade é absolu-ta e eterna. Dewey elaborou uma éti-ca objetiva, utilizando o método cien-tífico na filosofia. Para ele, a determi-nação do bem ou do mal era uma for-ma de resolver os problemas práticosempregando os métodos próprios dasciências, para chegar a respostas quesejam funcionais na prática. A tendên-cia é de assumir uma perspectivaconseqüencialista com critérioutilitarista. Não podemos esquecer quecomo reação a esta orientação domi-nante surge John Rawls e sua reflexãosobre a justiça como eqüidade.

Drane critica a perspectiva dabioética “made in USA”, que não levaem conta o caráter, as virtudes, masfica pura e simplesmente polarizadanuma reflexão racional sobre as açõeshumanas. Sem dúvida, este enfoque éparcial. A ética não trata somente deações, mas também de hábitos (virtu-des) e de atitudes (caráter). Nesse sen-tido, o enfoque ético europeu, fortemen-te marcado pela idéia de virtude e ca-ráter, pode ser complementar ao nor-te-americano. A ética médica dos Es-tados Unidos se desenvolveu num con-texto relativista e pluralista, porém seinspira na ciência e se apóia no pos-tulado científico que exige submetertoda proposta à sua operacionalidadena vida real.

Segundo Drane, por mais impor-tantes sejam as questões críticas so-bre fundamentação, não seria impres-cindível resolvê-las antes que se possaprogredir. De fato, começar a partir davida real (fatos e casos de uma deter-minada situação clínica) tem muitavantagem sobre o procedimento nosentido inverso, no caso o método de-

Page 88: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

90

dutivo baseado em elegantes teorias.Na visão deste bioeticista norte ame-ricano “um dos aspectos mais inespe-rados e gratificantes da experiênciaamericana em ética médica é ver os inú-meros acordos conseguidos em proble-mas médicos de grande complexidade,numa cultura pluralista, quando o pro-cesso começa com elementos reais etrata de encontrar uma solução práticae provável, mais que uma respostacerta e teoricamente correta” (13).

Outro aspecto importanteenfatizado por Drane é quando eleafirma que a ética médica salvou a éti-ca, enquanto refletiu seriamente so-bre o lícito e o ilícito em contato comos problemas reais. Colocou novamen-te a ética em contato com a vida.Stephen Toulmin fala do renascimentoda filosofia moral em sua obra Comoa Ética Médica Salvou a Vida da Filo-sofia Moral. A filosofia moral reencon-trou o mundo da ação e a teologiamoral libertou-se do moralismo.

A contribuição da ética teológicaneste contexto foi importante e nãodeve ser esquecida. Ela nunca se afas-tou da realidade e foi capaz de tomara iniciativa quando a atenção voltou-se para os problemas médicos. Poucoa pouco, também os especialistas lei-gos de ética se incorporaram nestemovimento. Muitos dos problemascom os quais a ética teológica sepreocupava, por exemplo, as questõesrelacionadas com o início e fim davida, procriação e morte, procediamdo campo médico. A ética foi forçadapela medicina a entrar em contato como mundo real.

Anteriormente, os tratados de éti-ca não eram documentários sobre te-mas de interesse das pessoas comuns,

mas escritos refinados e ininteligíveissobre o significado dos conceitos mo-rais. A ética se tornara inacessível, ex-cetuando-se os refinados especialistasem lingüística, e praticamente não di-zia nada a respeito dos problemas dodia-a-dia do cidadão comum.

A perspectiva anglo-americana émais individualista do que a européia,privilegiando a autonomia da pessoa.Está prioritariamente voltada paramicroproblemas, buscando soluçãoimediata e decisiva das questões paraum indivíduo. A perspectiva européiaprivilegia a dimensão social do serhumano, com prioridade para o senti-do da justiça e eqüidade, preferencial-mente aos direitos individuais. Abioética de tradição filosófica anglo-americana desenvolve uma normativade ação que, enquanto conjunto deregras que conduzem a uma boa ação,caracterizam uma moral. A bioética detradição européia avança numa bus-ca sobre o fundamento do agir huma-no. Para além da normatividade daação, em campo de extrema comple-xidade, entreve-se a exigência da suafundamentação metafísica (14).

Após esta exposição, ainda queintrodutória, de duas visões fundamen-tais de bioética, das quais dependemosmuito e que sem dúvida são fontes deinspiração para uma perspectivabioética típica da América Latina, énecessário tecer algumas considera-ções a respeito de onde nos situamosfrente a todo este cenário. Considera-do como sendo o continente da espe-rança quando se olha prospec-tivamente, mas que, infelizmente, nopresente é marcado pela exclusão, mor-te e marginalização crescente em todosos âmbitos da vida, nos perguntamos

Page 89: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

91

se a bioética não teria um papel críti-co transformador desta realidade.

Bioética latino-americana ebioética “made in USA”

A bioética, no seu início, defron-tou-se com os dilemas éticos criadospelo desenvolvimento da medicina.Pesquisa em seres humanos, o usohumano da tecnologia, perguntas so-bre a morte e o morrer são algumasáreas sensíveis nos anos 90. As ques-tões originais da bioética se expandi-ram para problemas relacionados comos valores nas diversas profissões dasaúde, tais como enfermagem, saúdepública, saúde mental, etc. Grandenúmero de temas sociais foram intro-duzidos na abrangência temática dabioética, tais como saúde pública,alocação de recursos em saúde, saú-de da mulher, questão populacional eecologia, para lembrar alguns.

É dito que a tecnologia médicaimpulsiona o desenvolvimento dabioética clínica. Isto vale tanto naAmérica Latina como nos EstadosUnidos. No início, as perguntas que sefaziam com maior freqüência eram emtorno do uso humano de uma novatecnologia: o uso ou retirada de apa-relhos, a aceitação ou não do consen-timento informado.

Em alguns países da AméricaLatina, a simples existência de altatecnologia e centros de cuidados mé-dicos avançados levanta questões emtorno da discriminação e injustiça naassistência médica. As interrogaçõesmais difíceis nesta região giram emtorno não de como se usa a

tecnologia médica, mas quem temacesso a ela. Um forte saber socialqualifica a bioética latino-america-na. Conceitos culturalmente fortes,como justiça, eqüidade e solidarie-dade, deverão ocupar na bioéticalatino-americana um lugar similar aoprincípio da autonomia nos EstadosUnidos.

Segundo Drane, os latino-ameri-canos não são tão individualistas ecertamente estão menos inclinados aoconsumismo em suas relações com opessoal médico do que os norte-ame-ricanos. Seria um erro pensar que oconsentimento informado – e tudo oque com ele se relaciona – não fosseimportante para os latino-americanos.O desafio é aprender dos Estados Uni-dos e dos europeus sem cair noimitacionismo ingênuo de importarseus programas (13).

a) Ampliar a reflexão ética do ní-vel “micro” para o nível “macro”

O grande desafio é desenvolveruma bioética latino-americana quecorrija os exageros das outras perspec-tivas e resgate e valorize a cultura lati-na no que lhe é único e singular, umavisão verdadeiramente alternativa quepossa enriquecer o diálogomulticultural. Não podemos esquecerque na América-Latina a bioética temo encontro obrigatório com a pobrezae a exclusão social. Elaborar umabioética somente em nível “micro” deestudos de casos, de sabor apenasdeontológico, sem levar em conta estarealidade, não responderia aos anseiose necessidades por mais vida digna.Não estamos questionando o valor in-comensurável de toda e qualquer vida

Page 90: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

92

que deve ser salva, cuidada e protegi-da. Temos, sim, que não perder a vi-são global da realidade excludente la-tino-americana na qual a vida se inse-re (15, 16).

À medida que a medicina moder-na torna-se para as culturas de hoje oque a religião era na Idade Média, asquestões com as quais a bioética sedefronta tornam-se sempre mais cen-trais e geram um crescente interessepúblico. No limiar das controvérsiasbioéticas, significados básicos estãomudando em todos os quadrantes doplaneta: o significado da vida e morte,família, doença, quem é pai ou mãe.Maior comunicação e diálogo mútuoentre os povos com diferentes perspec-tivas será imensamente proveitoso nosentido de trazer uma compreensãomais profunda de cada cultura e solu-ções melhores para problemas críticossimilares. As pessoas de diferentes re-giões e culturas podem trabalhar paraintegrar as diferenças sociológicas, his-tóricas e filosóficas e, algum dia quemsabe, gerar um conjunto de padrõesbioéticos respeitoso e coerente, em queas pessoas religiosas e seculares po-dem igualmente partilhar.

No pensamento de J.A. Mainetti,a América Latina pode oferecer umaperspectiva bioética distinta e diferen-te da norte-americana por causa datradição médica humanista e pelascondições sociais de países periféricos.Para este bioeticista argentino, a dis-ciplina européia de filosofia geral –com três ramos principais (antropolo-gia médica, epistemologia e axiologia)– pode ser melhor equipada para trans-formar a medicina científica e acadê-mica num novo paradigma biomédicohumanista. Tal abordagem evitaria

acusações freqüentemente dirigidas àbioética norte-americana e européia,de que o discurso da bioética somentesurge para humanizar a medicina en-quanto esquece ou não aborda a realdesumanização do sistema. Por exem-plo, o discurso bioético da autonomiapode esconder a despersonalização doscuidados médicos e seus riscos deiatrogenia, a exploração do corpo ealienação da saúde. Como resposta aodesenvolvimento da biomedicina numaera tecnológica, a bioética deve sermenos complacente ou otimista emrelação ao progresso e ser capaz deexercer um papel crítico frente a estecontexto (17).

A realidade da bioética latino-americana, da bioética em tempos decólera, AIDS e sarampo exige umaperspectiva de ética social com preo-cupação com o bem comum, justiça eeqüidade, antes que em direitos indi-viduais e virtudes pessoais. Uma“macroética” de saúde pública podeser proposta como uma alternativapara a tradição anglo-americana da“microética” ou ética clínica. Nestespaíses pobres, a maior necessida-de é de eqüidade na alocação derecursos e distribuição de serviçosde saúde (18,19).

Na perspectiva da bioética naAmérica Latina, diz Diego Gracia: “Oslatinos sentem-se profundamenteinconfortáveis com direitos e princí-pios. Eles acostumaram-se a julgar ascoisas e atos como bons ou ruins, aoinvés de certo ou errado. Eles preferema benevolência à justiça, a amizade aorespeito mútuo, a excelência ao direi-to. (...) Os latinos buscam a virtude e aexcelência. Não penso que eles rejei-tam ou desprezam os princípios (...).

Page 91: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

93

Uma vez que as culturas latinas tradi-cionalmente foram orientadas pela éti-ca das virtudes, a abordagemprincipialista pode ser de grande ajudaem evitar alguns defeitos tradicionaisde nossa vida moral, tais como opaternalismo, a falta de respeito pelalei e a tolerância. Na busca da virtudee excelência, os países latinos tradici-onalmente têm sido intolerantes. A to-lerância não foi incluída como uma vir-tude no velho catálogo das virtudes la-tinas. A virtude real era a intolerância,a tolerância era considerada um vício.(...) A tolerância como uma virtude foidescoberta pelos anglo-saxões no sé-culo XVII. Esta é talvez a mais impor-tante diferença com as outras culturas.A questão moral mais importante nãoé a linguagem que usamos para expres-sar nossos sentimentos morais, mas orespeito pela diversidade moral, a es-colha entre pluralismo ou fanatismo. Ofanatismo afirma que os valores sãocompletamente absolutos e objetivos edevem ser impostos aos outros pelaforça, enquanto que a tolerância defen-de a autonomia moral e a liberdade detodos os seres humanos e a busca deum acordo moral pelo consenso” (20).

O desenvolvimento da bioéticamundial vem ultimamente privilegi-ando preocupações éticas típicas depaíses tais como os da América Lati-na e Caribe. Daniel Wikler, na pales-tra conclusiva do III Congresso Mun-dial de Bioética, realizada em SãoFrancisco, EUA, em 1996, intitulada“Bioethics and social responsibility”,diz que ao olharmos o nascimento edesenvolvimento da bioética temos jáclaramente delineadas quatro fases: a)primeira fase: temos os códigos de con-duta dos profissionais. A bioética é pra-

ticamente entendida como sendo éti-ca médica; b) segunda fase: entra emcena o relacionamento médico-pacien-te. Questiona-se o paternalismo, come-ça-se a falar dos direitos dos pacientes(autonomia, liberdade, verdade, etc.);c) terceira fase: questionamentos a res-peito do sistema de saúde, incluindoorganização e estrutura, financiamen-to e gestão. Os bioeticistas têm que es-tudar economia e política de saúde(Callahan - 1980) e d) quarta fase: é aque estamos entrando, neste final dadécada de 90. A bioética, priorita-riamente, vai lidar com a saúde da po-pulação, com a adição, entre outrostemas candentes, das ciências soci-ais, humanidades, saúde pública, di-reitos humanos e a questão da eqüi-dade e alocação de recursos (21). Estaagenda programática tem tudo a vercom o momento ético da AméricaLatina.

b) O desafio de desenvolver umamística para a bioética

Estaria incompleta nossa reflexãose não apontássemos a necessidadedesafiante de se desenvolver uma mís-tica para a bioética. Pode até parecerestranho para um pensamento marca-do pelo pragmatismo e pelo culto daeficiência sugerir que a bioética neces-site de uma mística. A bioética neces-sita de um horizonte de sentido, nãoimporta o quanto estreito ou amploseja, para desenvolver suas reflexões epropostas. Ao mesmo tempo, não po-demos fazer bioética sem optar nomundo das relações humanas. Isto emsi mesmo é uma indicação da neces-sidade de alguma forma de mística,ou de um conjunto de significados

Page 92: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

94

fundamentais que aceitamos e a par-tir dos quais cultivamos nossos idea-lismos, fazemos nossas opções e orga-nizamos nossas práticas.

Não é fácil definir em poucaspalavras uma mística libertadora paraa bioética. Ela necessariamente inclui-ria a convicção da transcendência davida que rejeita a noção de doença,sofrimento e morte como absolutos in-toleráveis. Incluiria a percepção dosoutros como parceiros capazes de vi-ver a vida em solidariedade ecompreendê-la e aceitá-la como umdom. Esta mística seria, sem dúvida,testemunha no sentido de não deixaros interesses individuais egoístas sesobreporem e calarem a voz dos ou-tros (excluídos) e esconderem suasnecessidades. Esta mística proclama-ria, frente a todas as conquistas dasciências da vida e do cuidado à saú-de, que o imperativo técnico-científi-co, posso fazer, passa obrigatoriamen-te pelo discernimento de outro impe-rativo ético, logo devo fazer? Aindamais, encorajaria as pessoas, gruposdos mais diferentes contextos sócio-político-econômico-culturais, a unir-sena empreitada de garantir uma vidadigna para todos, na construção de umparadigma econômico e técnico-cien-tífico que aceita ser guiado pelas exi-gências da solidariedade humana (22).

Algumas notas conclusivas

1 - O modelo de análise teórica(paradigma) principialista iniciadocom o Relatório Belmont e implemen-tado por Beauchamp e Childress é umalinguagem entre outras linguagens éti-

cas. Não é a única exclusiva. A expe-riência ética pode ser expressa em di-ferentes linguagens, paradigmas oumodelos teóricos, tais como os da vir-tudes e excelência, o casuístico, ocontratual, o liberal autonomista, o docuidado, o antropológico humanista,o de libertação, só para lembrar alguns.Obviamente, a convivência com essepluralismo de modelos teóricos exigediálogo respeitoso pelas diferenças emque a tolerância é um dado impres-cindível. Todos esses modelos ou lin-guagens estão intrinsecamente inter-re-lacionados, mas cada um em si é in-completo e limitado. Um modelo podelidar bem com um determinado aspectoda vida moral, mas ao mesmo temponão com os outros. Não podemosconsiderá-los como sendo exclusivos,mas complementares. As dimensõesmorais da experiência humana nãopodem ser capturadas numa únicaabordagem. Isto não surpreende, poisa amplidão e a riqueza da profundi-dade da experiência humana sempreestão além do alcance de qualquer sis-tema filosófico ou teológico. É estahumildade da sabedoria que nos dei-xará livres do vírus dos “ismos” quesão verdades parciais que tomam umaparticularidade de uma realidadecomo sendo o todo.

2 - Os problemas bioéticos maisimportantes da América Latina eCaribe são aqueles que se relacionamcom a justiça, eqüidade e alocação derecursos na área da saúde. Em amplossetores da população ainda não chegoua alta tecnologia médica e muito menoso tão almejado processo de emancipa-ção dos doentes. Ainda impera, via be-neficência, o paternalismo. Ao princí-pio da autonomia, tão importante na

Page 93: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

95

perspectiva anglo-americana, precisa-mos justapor o princípio da justiça,eqüidade e solidariedade (23, 24).

A bioética elaborada no mundodesenvolvido (Estados Unidos e Euro-pa) na maioria das vezes ignorou asquestões básicas que milhões de ex-cluídos enfrentam neste continente eenfocou questões que para eles sãomarginais ou simplesmente não exis-tem. Por exemplo, fala-se muito demorrer com dignidade no mundo de-senvolvido. Aqui, somos impelidos aproclamar a dignidade humana quegarante primeiramente um viver comdignidade e não simplesmente umasobrevivência aviltante, antes que ummorrer digno. Entre nós, a morte é pre-coce e injusta, ceifa milhares de vidasdesde a infância, enquanto que no Pri-meiro Mundo se morre depois de se tervivido muito e desfrutado a vida comelegância até na velhice. Um sobrevi-ver sofrido garantiria a dignidade noadeus à vida?

3 - Característica típica de toda aregião da América Latina e Caribe é aprofunda religiosidade cristã católica,que hoje sofre um profundo impactocom seitas fundamentalistas via mídiaeletrônica. O processo de seculariza-ção atingiu a burguesia culta, porémnão a grande massa do povo. A moraldessa sociedade continua a ser funda-mentalmente confessional, religiosa.Esta sociedade não conheceu opluralismo característico da culturanorte-americana. Nasce aqui, semdúvida, um desafio de diálogo,bioética-teologia, entre esta bioéticasecular, civil, pluralista, autônoma eracional com este universo religioso.

Thomasma e Pellegrino, notáveispioneiros da Bioética, levantam três

questões que a bioética terá de enfren-tar no futuro: a primeira é como resolvera diversidade de opiniões sobre o que ébioética e qual é o seu campo!; a segun-da é como relacionar os vários modelosde ética e bioética, uns com os outros; aterceira é justamente o lugar da religiãoe a bioética teológica nos debates públi-cos sobre aborto, eutanásia, cuidadogerenciado (managed care) e assim pordiante. Até agora, a bioética religiosa fi-cou na penumbra da bioética filosófica.“À medida que nossa consciência dediversidade cultural aumenta, prevejoque os valores religiosos que embasamo diálogo público virão à tona. No mo-mento, não existe uma metodologia paralidar com a crescente polarização queconvicções autênticas trazem para os de-bates. De alguma forma, devemos ser ca-pazes de viver e trabalhar juntos mesmoquando nossas convicções filosóficas ereligiosas a respeito do certo e do erradoestejam freqüentemente em conflito e porvezes até incompatíveis” (25).

4 - Uma macrobioética (socieda-de) precisa ser proposta como alterna-tiva à tradição anglo-americana deuma microbioética (solução de casosclínicos). Na América Latina, abioética sumarizada num “bios” de altatecnologia e num “ethos” individualis-ta (privacidade, autonomia, consenti-mento informado) precisa sercomplementada por um “bios”humanista e um “ethos” comunitário(solidariedade, eqüidade, o outro).

Refletindo prospectivamente comAlastair V. Campbell, presidente daAssociação Internacional de Bioética(1996-1998), a respeito da bioética dofuturo, uma questão-chave a ser en-frentada é a justiça na saúde e noscuidados de saúde. Maior esforço de

Page 94: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

96

pesquisa no sentido de construção dateoria bioética faz-se necessário juntocom esta questão. A bioética não podetornar-se uma espécie de “capelão nacorte real da ciência”, perdendo seupapel crítico em relação ao progressotécnico-científico (26).

5 - É preciso cultivar uma sabe-doria que desafie profeticamente oimperialismo ético daqueles que usama força para impor aos outros, comoúnica verdade, sua verdade moral par-ticular, bem como o fundamentalismoético daqueles que recusam entrar numdiálogo aberto e sincero com os de-mais, num contexto sempre mais se-cular e pluralista. Quem sabe, a intui-ção pioneira de Potter (1971) ao cu-nhar a bioética como sendo uma pon-te para o futuro da humanidade (27)necessita ser repensada neste limiar deum novo milênio, também como umaponte de diálogo multi e transcultural(28) entre os diferentes povos e cultu-ras, no qual possamos recuperar nãoapenas nossa tradição humanistacomo também o sentido e o respeitopela transcendência da vida na suamagnitude máxima (cósmico-ecológi-ca) – e desfrutá-la como dom e con-quista, de forma digna e solidária.

Referências

The Belmont Report: ethical principles andguidelines for the protection of humansubjects of research. National Commissionfor the Protection of Human Subjects ofBiomedical and Behavioral Research1979. In: Reich WT, editors. Encyclopediaof Bioethics. revised edition. New York:Macmillan, c1995: 2767-73.

Beauchamp TL, Childress JF. Principlesof biomedical ethics. Fourth Edition.New York: Oxford University Press, 1994.

Dubose ER, Hamel RP, O’Connell LJ,editors. A matter of principles? fermentin U.S. bioethics. Pennsylvania: TrinityPress International, 1994. Esta é a me-lhor obra disponível no momento atualpara uma compreensão histórico cultu-ral da gênese dos princípios bioéticos bemcomo uma profunda análise crítica eproposta de alternativas. É fruto de umencontro multidisciplinar (caseconference) realizado em Chicago (Es-tados Unidos- 1992) sob os auspícios doPark Ridge Center, do qual participa-ram especialistas em bioética das maisdiferentes partes do planeta. Represen-tando a perspectiva latino-americana,Márcio Fabri dos Anjos, teólogo brasi-leiro, apresentou uma contribuição naperspectiva da teologia da libertaçãoque é publicada nesta obra com o tí-tulo “Bioethics in a liberationist key”.p.130-47.

Jonsen AR. Foreword. In: Dubose ER,Hamel RP, O’Connell LJ, editors. Amatter of principles: ferment in U.S.bioethics. Pensylvania: Trinity PressInternational, 1994: ix-xvii.

Para um aprofundamento crítico doprincipialismo a partir dos protagonis-tas norte-americanos da bioética, ver onúmero monográfico Theories andmethods in bioethics: principlism and itscritics. Kennedy Institute of EthicsJournal 1995;5(3). Destacamos:Beauchamp TL. Principlism and itsalleged competitors. p.181-98; VeatchRM. Resolving conflicts among principles:ranking, balancing and specifying, p.199-218; Cluser KD. Common morality asan alternative to principlism, p.219-36;Jonsen AR. Casuistry: an alternative orcomplement to principles?, p.237-51;Pellegrino EP. Toward a virtue-basednormative ethics for the healthprofessions, p.253-77.

1.

5.

4.

2.

3.

Page 95: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

97

Beauchamp TL, Childress JF. Op. Cit.1994: 502. Ezekiel Emanuel ao fazer seucomentário da quarta edição da obraclássica de Beauchamp e Childress noprestigioso periódico Hastings CenterReport 1995;25(4):37-8 intitulou seu tra-balho “The beginning of the end ofprinciplism”. Este autor lembra que a4ª edição é muito diferente das anterio-res e pode até nem ser maisprincipialista, uma vez que os autores,nesta edição, apelam para um funda-mento na moralidade comum e isto,segundo E. Emanuel, “constitui umamudança radical e anuncia o fim doprincipialismo”. Outros críticos da pers-pectiva principialista merecem ser lem-brados: Gert B, Culver CM, Clouser KD.Bioethics: a return to fundamentals.Oxford : Oxford University Press, 1997,especialmente o capítulo quatrointitulado “Principlism”, p. 71-92. Vertambém o trabalho de Closer D, GertB. A critique of principlism. J Med Philos1990;15:219-36.

Lepargneur H. Força e fraqueza dos prin-cípios da bioética. Bioética (CFM)1996;4:131-43.

Lepargneur H. Bioética, novo conceito:a caminho do consenso. São Paulo:Loyola/CEDAS, 1996.

Reich WT, editors. Encyclopedia ofbioethics. Revised edition. New York:Macmillan, 1995. Ver especialmente in-trodução, vol. 1, p. XXI.

Pessini L, Barchifontaine CP, organiza-dores. Fundamentos da bioética. SãoPaulo: Paulus, 1996.

Gracia D. Procedimientos de decisión enética clínica. Madrid: Eudema, 1991.

Drane JF. Preparación de un programade bioética: consideraciones básicaspara el Programa Regional de Bioéticade la OPS. Bioética (CFM) 1995;1:7-18.

Drane JF. Bioethical perspectivesfrom ibero-america. J Med Philos1996:21:557-69.

Patrão Neves MC. A fundamentaçãoantropológica da bioética. Bioética(CFM) 1996;4:7-16.

Anjos MF dos. Medical ethics in thedeveloping world: a liberation theologyperspect ive. J Med Phi los1996;21:629-37.

Anjos MF dos. Bioethics in a liberationistkey. In: Dubose ER, Hamel RP,O’Connell LJ, editors. A matter ofprinciples: ferment in US bioethics.Valley Forge, Pennsylvania: Trinity PressInternational, 1994: 130-47.

Mainetti JÁ. History of medical ethics:the americas and Latin America. In:Reich WT, editors. Encyclopedia ofbioethics. revised edition. New York:Macmillan, c 1995. vol 5: 1639-44.

Garrafa V, Oselka G, Diniz D. Saúdepública, bioética e eqüidade. Bioética(CFM) 1997;5:27-33.

Leisinger KM. Bioethics in USA and in poorcountries. Cambridge Quarterly ofHealthcare Ethics 1993;2:5-8. Este autorfala de política de saúde como uma rami-ficação da bioética, sendo esta ainda umadisciplina nascente. Ao constatar o enor-me fosso que separa a realidade de saúdenorte-americana em comparação com osoutros países em desenvolvimento, valeregistrar: “Enquanto nós começamos aenfrentar alguns de nossos complexos pro-blemas de saúde com a engenharia genéti-ca, centenas de milhões de pessoas nospaíses em desenvolvimento sofrem demalária, filariose, esquistossomose, doen-ça de Chagas ou mal de Hansen. Nenhu-ma dessas doenças – que são perfeitamen-te preveníveis e/ou curáveis – está sendocontrolada de uma forma satisfatória e,para algumas delas, a situação está em fran-ca deterioração.” A bioética, na visão desteautor, deveria considerar a política de de-senvolvimento nos países pobres. Um de-

9.

7.

8.

6.

19.

18.

17.

16.

15.

14.

13.

12.

11.

10.

Page 96: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

98

senvolvimento que satisfaça as necessida-des humanas mais básicas da população.Conseqüentemente, provisão de comida,educação básica, água potável, educaçãoe facilidades sanitárias, habitação e cui-dados de saúde básicos devem serpriorizados.

Gracia D. Hard times, hard choices:founding bioethics today. Bioethics1995;9:192-206.

Wikler D. Bioethics and socialresponsibility. Bioethics 1997;11:185-6.

Anjos MF dos. Op.Cit. 1994:145.

Pessini L, Barchifontaine CP. Problemasatuais de bioética. 4ª ed.rev.ampl. SãoPaulo: Loyola, 1997. (Cf. Especialmen-te o capítulo “Bioética na América Lati-na e Caribe”, p. 59-72)

Garrafa V. A dimensão da ética em saú-de pública. São Paulo, Faculdade deSaúde Pública, USP/Kellogg Foundation,1995.

Thomasma DC, Pellegrino ED. Thefuture of bioethics. Cambridge Quarterlyof Health Care Ethics 1997;6:373-5.

Campbell AV. A bioética no século XXI.Saúde Heliópolis 1998;abr/maio:9-11.

Potter VR. Bioethics: bridge to the future.Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, 1971.

Esforços nesse sentido já estão em cur-so. Digna de nota é a atuação do Con-selho de Organizações Internacionais deCiências Médicas (CIOMS). Em1994, esta organização internacio-nal, em cooperação com a Organiza-ção Mundial da Saúde, Unesco e Go-verno do México, na sua XXVIII Assem-bléia, realizada em Ixtapa (México, 17-20 de abril), abordou a candente pro-blemática: “Pobreza, vulnerabilidade,valor da vida humana e emergência dabioética”. Como resultado deste even-to, ao propor uma agenda global para abioética “a declaração de IXTAPA” afir-ma: “À luz do fato que a bioética se de-senvolveu primordialmente, mas não deforma exclusiva, na maioria dos paísesdesenvolvidos, existe a necessidade pre-mente para a elucidação e adoção uni-versal dos princípios básicos da bioética,de uma forma que reconheça as dife-rentes perspectivas em nível mundialrelacionadas com moral, cultura, prio-ridades e valores. Um passo significati-vo em direção a este objetivo seria esta-belecer ligações bilaterais e multilaterais,tais como cooperação técnica, intercâm-bio e informação entre instituições esociedades profissionais que trabalhamcom bioética nos países industrializadose nos países em desenvolvimento. Taisassociações seriam mutuamente benéfi-cas”. Cf. Bankowski Z, Bryant JH,editors. Poverty, vulnerability, and thevalue of human Life: a global agendafor bioethics. Geneva: CIOMS, 1994.

28.

27.

26.

25.

24.

23.

22.

21.

20.

Page 97: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

99

Parte III - Temas EspecíficosVolnei Garrafa

Bioética e Ciência - Até ondeAvançar sem Agredir

Os avanços alcançados pelo de-senvolvimento científico e tecnológiconos campos da biologia e da saúde,principalmente nos últimos trinta anos,têm colocado a humanidade frente asituações até pouco tempo inima-gináveis. São praticamente diárias asnotícias provenientes das mais diferen-tes partes do mundo relatando a utili-zação de novos métodos investigativose/ou de técnicas desconhecidas, a des-coberta de medicamentos mais efica-zes, o controle de doenças tidas atéagora como fora de controle. Se, porum lado, todas estas conquistas trazemna sua esteira renovadas esperançasde melhoria da qualidade de vida, poroutro criam uma série de contradiçõesque necessitam ser analisadas respon-savelmente com vistas ao equilíbrio ebem-estar futuro da espécie humana eda própria vida no planeta.

Hans Jonas (1) foi um dos pes-quisadores que se debruçou com maispropriedade sobre este tema, ressaltan-

do a impotência da ética e da filosofiacontemporâneas frente ao homemtecnológico, que possui tantos poderesnão só para desorganizar como tam-bém para mudar radicalmente os fun-damentos da vida, de criar e destruir asi próprio. Paradoxalmente, ao mesmotempo que gera novos seres humanosatravés do domínio das complexas téc-nicas de fecundação assistida, agridediariamente o meio ambiente do qualdepende a manutenção futura da es-pécie. O surgimento de novas doen-ças infectocontagiosas e de diversostipos de câncer, assim como a des-truição da camada de ozônio, a de-vastação de florestas e a persistên-cia de velhos problemas relacionadoscom a saúde dos trabalhadores(como a silicose) são “invenções”deste mesmo “homem tecnológico”,que oscila suas ações entre a cria-ção de novos benefícios extraordiná-rios e a insólita destruição de si mes-mo e da natureza.

Page 98: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

100

Ao contrário do que muitos pen-sam, a atual pauta bioética interna-cional não diz respeito somente às si-tuações emergentes proporcionadaspor avanços como aqueles alcançadosno campo da engenharia genética eseus desdobramentos (projeto genomahumano, clonagem, etc.), mas tambémàs situações persistentes, relacio-nadas principalmente com a falta deuniversalidade no acesso das pessoasaos bens de consumo sanitário e à uti-lização eqüânime desses benefícios portodos os cidadãos indistintamente (2).

Considerando estas duas situações,portanto, a humanidade se vê atualmen-te às voltas não apenas com alguns ve-lhos dilemas éticos que persistem teimo-samente desde a antigüidade como tam-bém com os novos conflitos decorrentesda marcha acelerada do progresso. Jun-tamente com seus inquestionáveis bene-fícios, a biotecnociência, para utilizar umneologismo proposto por Schramm (3),pode, contraditoriamente, proporcionara ampliação dos problemas de exclusãosocial hoje constatados. Como impedir,por exemplo, que os conhecimentos re-centemente alcançados sobre as proba-bilidades de uma pessoa vir a desenvol-ver determinada doença no futuro, devi-da a uma falha em seu código genético(como nos casos da doença deHuntington), não sejam transformadosem novas formas de discriminação porparte das companhias seguradoras res-ponsáveis pelos chamados “planos desaúde”? (4)

Tudo isso se torna ainda mais dra-mático quando se sabe que o perfilpopulacional mundial tem sofrido trans-formações profundas a partir da eleva-ção da esperança de vida ao nascer (emanos), aliada ao fenômeno da

globalização econômica que produzuma crescente e insólita concentraçãoda renda mundial nas mãos de poucasnações, empresas e pessoas privilegia-das. Dentro deste complexo contextomerecem menção, ainda, o aumento doscustos sanitários através da criação eexpansão de tecnologias de ponta quepossibilitam novas formas de diagnósti-co e de tratamento, o recrudescimentode algumas doenças que já estiveram sobcontrole (como a tuberculose, febre ama-rela, dengue, malária e outras), osurgimento de novas enfermidades(como a AIDS).

Segundo o presidente daInternational Association of Bioethics,Alastair Campbell, em visita que fez aoBrasil em 1998, “o maior desafio para abioética será encontrar uma forma maisadequada de justa distribuição de recur-sos de saúde, numa situação crescentede competitividade”. Para ele, é indis-pensável fugirmos do debatereducionista voltado exclusivamentepara os direitos individuais, preocupan-do-nos, além do problema mais básicoda exclusão social aos novos benefícios,com o resgate de conceitos mais abrangen-tes relacionados à “dignidade da vidahumana, sua duração, o valor da di-versidade na sociedade humana e, es-pecialmente, à necessidade de se evitarformas de determinismo genético (...)” (5).

Moral, ética e pesquisacientífica

Alguns dos principais bioeticistasque têm se dedicado a estudar a éticae a moral, bem como suas relaçõescom situações que envolvem a vida

Julio
Realce
Julio
Realce
Page 99: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

101

no planeta, de uma forma geral procu-ram considerá-las como sinônimos(6,7,8). Mesmo assim, nas disciplinase cursos de bioética que venho minis-trando na Universidade de Brasília eem outras universidades de 1994 paracá, tenho utilizado, para fins didáticos,alguns parâmetros diferenciais entre asduas. Esta diferenciação se revelou útilno sentido de uma melhor compreen-são de alguns temas mais conflitivos efronteiriços da análise bioética, prin-cipalmente quando os interlocutoressão alunos dos cursos de graduação.

Assim sendo, é inicialmente indis-pensável comentar que o termo éticavem do grego ethos e quer dizer “modode ser” ou “caráter”, no sentido simi-lar ao do “forma(s) de vida(s)adquirida(s) pelo homem”. A palavramoral, por sua vez, deriva etimolo-gicamente do latim mos ou mores(“costume” ou “costumes”) e quer di-zer “alguma coisa que seja habitualpara um povo”. Ambas, portanto, têmsignificado similar. Contudo, foi a par-tir do latim que estabeleceram-se asbases do “direito romano”. Na RomaAntiga é que criou-se, historicamente,o que se entende hoje por justiça, noseu sentido formal, através de leis queforam sendo adaptadas durante os sé-culos subseqüentes e que até os diasatuais estabelecem as diferentes formasde relação e regem os destinos de pes-soas, povos e nações.

Como os romanos não encontra-ram uma tradução que lhes fosse in-teiramente satisfatória para o ethos,passaram a utilizar de forma generali-zada o mores, que em português é tra-duzido por MORAL. Desta forma, a“boa” ou “correta” normatização pas-sou a ser entendida como aquela le-

gislação que interpretasse e manifes-tasse as situações concretas que acon-teciam, de modo mais aproximado aoscostumes ou às formas habituais doscidadãos e das comunidades procede-rem nas suas vidas societárias quoti-dianas.

Em resumo, se por um lado o sig-nificado etimológico de ética e moralé similar, por outro existe uma diferen-ça historicamente determinada entreambas. Como vimos acima, a moralromana é uma espécie de traduçãolatina de ética, mas que acabou ad-quirindo uma conotação formal e im-perativa que direciona ao aspecto ju-rídico e não ao natural, a partir daantiga polarização secularmenteverificada, e especialmente forte na-quela época, entre o “bem” e o “mal”,o “certo” e o “errado”, o “justo” e o“injusto” (9). Para os gregos, o ethosindicava o conjunto de comportamen-tos e hábitos constitutivos de uma ver-dadeira “segunda natureza” do ho-mem. Na Ética a Nicômaco, Aristótelesinterpretava a ética como a reflexãofilosófica sobre o agir humano e suasfinalidades (10). E é a partir da inter-pretação aristotélica que a ética pas-sou, posteriormente, a ser referidacomo uma espécie de “ciência” damoral. Na prática, no entanto, a dis-cussão persiste até hoje. Os códigosde ética profissional, por exemplo, con-sistem em manifestações maniqueístase formais (e muito bem estruturadas,sob o ponto de vista corporativo...)daquilo que os romanos entendiampor moral. As legislações, de modogeral, também obedecem conotaçãosemelhante.

Dentre as muitas discussões en-contradas na literatura sobre as dife-

Julio
Realce
Julio
Realce
Page 100: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

102

renças ou semelhanças entre moral eética, merecem destaque as posiçõesde Joseph Fletcher, de acordo com oqual não deveríamos sentir-nos obri-gados por qualquer regra moral intan-gível: só o contexto e as conseqüên-cias úteis ou prejudiciais das nossasescolhas deveriam determinar-nos(11). Segundo Lucien Sève (12), queanalisa as posições de Fletcher, nume-rosos médicos o apoiaram tomando “adefesa deste repúdio dos absolutosmorais em defesa de umcontextualismo de espírito utilitarista,a partir da expressão ética de situa-ções”. Assim, estabeleceu-se uma dis-tinção, que passou a ser corrente emalguns meios, entre moral e ética, querecobre o conflito entre a exigibilidadedas condutas prescritas por normasuniversais e a flexibilidade das decisõesadequadas em cada caso singular.

Transportando o foco da discussãopara o tema das investigações científi-cas, que é o objeto do nosso assunto,é indispensável assinalar que as regrase as leis que dispõem sobre o desen-volvimento científico e tecnológicodevem ser cuidadosamente elaboradaspara, por um lado, prevenir abusos e,pelo outro, evitar limitações e proibi-ções descabidas. Segundo o filósofoitaliano Eugenio Lecaldano (13), “exis-te um núcleo de questões que precisamser reconduzidas dentro de regras decaráter moral, e não sancionadas juri-dicamente”; e um outro “no qual estasquestões devam ser rigidamente san-cionadas e, portanto, codificadas”. Oprimeiro aspecto se refere aopluralismo, à tolerância e à solidarie-dade, prevalecendo a idéia de legiti-midade (moral). O segundo diz maisrespeito ao direito formal e à justiça,

onde prevalece a idéia de legalidade(ética). Desta forma, dentro dopluralismo moral constatado nos diasatuais, parece-nos preferível confiarmais no transculturalismo (nas singu-laridades culturais e nas diferenças demoralidades verificadas entre pesso-as e povos) do que em certas “ver-dades universais” e normas jurídicasinflexíveis.

Vou ilustrar a diferenciação quepercebo entre ética e moral com umexemplo situado na zona de limites (doque chamo de bioética “forte” oubioética “dura”) para a tomada dedecisões. Uma menina de rua comapenas doze anos de idade, sem famí-lia, prostituta desde os oito anos, na-tural de grande capital de uma regiãopobre do Brasil, procura um médicopara auxiliá-la na realização do abor-to. Um detalhe: a menina é HIV positi-va. Apesar de ser católico e saber queno Brasil o aborto, nestes casos, é proi-bido, o médico decide efetivar o ato,dizendo, nessa circunstância, estartranqüilo por não ter pecado contra seuDeus nem infringido o código de éticamédica ou a legislação do país. Estasituação pode ser caracterizada entreaquelas que Adela Cortina denominade “ética sem moral” (14). Ou seja,apesar de existir formalmente umatransgressão legal (ética), pela infraçãoaos mandamentos católicos, códigoprofissional e legislação brasileira, omédico tomou partido por uma deci-são legítima pautada na sua própriamoralidade, que o impediu de deixaruma situação de limites como esta se-guir adiante. Neste caso, a essência dadiscussão não deve incidir na decisãoespecífica e individual do médico,mas na análise mais globalizada da

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 101: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

103

responsabilidade pública do Estadocom relação à sociedade que o man-tém e a quadros dramáticos de inad-missível abandono e injustiça social.

A manipulação da vida e otema dos “limites”

A questão da “manipulação davida” pode ser contemplada a partir devariados ângulos: biotecnocientífico,político, econômico, social, jurídico,moral... Em respeito à liberdade indivi-dual e coletiva conquistada pela huma-nidade através dos tempos, a pluralidadeconstatada neste final do século XX re-quer que o estudo bioético do assuntocontemple, na medida do possível e deforma multidisciplinar, todas estas pos-sibilidades.

Com relação à vida futura do pla-neta, não deverão ser regras rígidas ou“limites” exatos que estabelecerão atéonde o ser humano poderá ou deveráchegar. Para justificar esta posição,vale a pena levar em consideração al-guns argumentos de Morin sobre ossistemas dinâmicos complexos. Paraele, o paradigma clássico baseado nasuposição de que a complexidade domundo dos fenômenos devia ser resol-vida a partir de princípios simples e leisgerais não é mais suficiente para con-siderar, por exemplo, a complexidadeda partícula subatômica, a realidadecósmica ou os progressos técnicos ecientíficos da área biológica (15). En-quanto a ciência clássica dissolvia acomplexidade aparente dos fenômenose fixava-se na simplicidade das leisimutáveis da natureza, o pensamentocomplexo surgiu para enfrentar a

complexidade do real, confrontando-se com os paradoxos da ordem e de-sordem, do singular e do geral, daparte e do todo. De certa forma, in-corpora o acaso e o particular comocomponentes da análise científica ecoloca-se diante do tempo e dos fe-nômenos.

Segundo Hans Jonas, o tema da“liberdade da ciência” ocupa posiçãoúnica no contexto da humanidade,não limitada pelo possível conflito comoutros direitos (16). Para ele, no en-tanto, o observador mais atento perce-be uma contradição secreta entre asduas metades dessa afirmação, porquea posição especial alcançada no mun-do graças à liberdade da ciência signi-fica uma posição exterior de poder ede posse, enquanto a pretensão deincondicionalidade da liberdade da in-vestigação tem que apoiar-se precisa-mente em que a atividade de investi-gar, juntamente com o conhecimento,esteja separada da esfera da ação. Por-que, naturalmente, na hora da açãotoda liberdade tem suas barreiras naresponsabilidade, nas leis e conside-rações sociais. De qualquer maneira,ainda de acordo com Jonas, sendo útilou inútil a liberdade da ciência é umdireito supremo em si, inclusive umaobrigação, estando livre de toda e qual-quer barreira.

Abordando o tema da “ética paraa era tecnológica”, Casals diz que “tra-ta-se de atingir o equilíbrio entre oextremo poder da tecnologia e aconsciência de cada um, bem comoda sociedade em seu conjunto: “Osavanços tecnológicos nos remetemsempre à responsabilidade individual,bem como ao questionamento ético dosenvolvidos no debate, especialmente

Julio
Realce
Julio
Realce
Bobagem. Temos aqui uma confusão entre uma proposta epistemológica; formalizada em Newton, e uma definição metafísica quanto a unidade-pluralidade, que pode ou não ser assumida, sem que isso implique nem na assunção nem na rejeição do paradigma epistemológico.
Julio
Realce
Page 102: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

104

aqueles que protagonizam as tomadasde decisões”(16).

De acordo com o que já foi colo-cado anteriormente, para as pessoasque defendem o desenvolvimento livreda ciência, embora de forma respon-sável e participativa, é difícil conviverpacificamente com expressões que es-tabeleçam ou signifiquem “limites”para a mesma. O tema, contudo, é dedifícil abordagem e solução. Por isso,enquanto não encontrar uma expres-são (ou iluminação moral suficiente...)que se adeque mais às minhas exatasintenções prefiro utilizar a palavra “li-mites” entre aspas, procurando, comesse artifício, certamente frágil, expres-sar minha dificuldade sem abdicar deminhas posições.

Assim sendo, é necessário que sepasse a discutir sobre princípios maisamplos que, sem serem quantitativosou “limítrofes” na sua essência, pos-sam proporcionar contribuiçõesconceituais e também práticas no quese refere ao respeito ao equilíbriomulticultural e ao bem-estar futuro daespécie. Nesse sentido, parece-nos in-dispensável agregar à discussão algunstemas que tangenciam as fronteiras dodesenvolvimento, sem limitá-lo: apluralidade e a tolerância, a participa-ção e a responsabilidade; a eqüidadee a justiça distributiva dos benefícios(18, 19).

Diversos setores da sociedade,principalmente aqueles religiosos emais dogmáticos, têm traçado umavisão perturbadora, pessimista eapocalíptica da relação entre a ciên-cia e a vida humana neste final de sé-culo. Um dos documentos mais respei-táveis surgidos nos últimos anos e quecontempla a discussão bioética – a

Encíclica Evangelium Vitae, do PapaJoão Paulo II – desenvolve esta linhade pensamento (20). A relação de te-mas abordados pela Encíclica papalabrange tudo aquilo que se opõe deforma direta à vida, como a fome e asdoenças endêmicas, guerras, homicí-dios, genocídios, aborto, eutanásia;tudo aquilo que viole a integridade dapessoa, como as mutilações e torturas;tudo aquilo que ofenda a dignidadehumana, como as condições subhu-manas de vida, prisões arbitrárias, es-cravidão, deportação, prostituição, trá-fico de mulheres e menores, condiçõesindignas de trabalho. A partir destarealidade incontestável o Papa chegaa definir o século XX como uma épo-ca de ataques massivos contra a vida,como o reino do culto à morte. A ve-racidade destes fatos, no entanto, émaculada pela unilateralidade do jul-gamento sobre o presente e pela es-curidão apontada para o futuro.

A insistência nos aspectos nega-tivos da realidade obstaculiza uma vi-são mais precisa e articulada desteséculo. Sem cair na posição oposta,deve-se reconhecer que o século XX,apesar das guerras e crimes e de estarse encaminhando para seu final emclima de incerteza, foi também o sé-culo da vida. Foi o século no qualaprofundou-se o conhecimento cientí-fico sobre a própria vida que, sem dú-vida, melhorou em termos de qualida-de para a maioria da espécie huma-na. Foi o século no qual, pela primeiravez na história, a duração média davida aproximou-se aos anos indicadoscomo destino “normal” da nossa es-pécie; no qual a saúde dos trabalha-dores foi defendida e sua dignidadereconhecida em muitos países; onde

Page 103: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

105

vimos emergir os direitos vitais, jurídi-cos e culturais das mulheres, que nosséculos anteriores foram sempre des-prezados; em que existiu uma substan-cial valorização do corpo; onde as ci-ências biológicas e a medicina chega-ram a descobertas fantásticas, benefi-ciando indivíduos e populações. Ogrande desafio de hoje, portanto, éconstruir o processo de inclusão detodas as pessoas e povos comobeneficiários deste progresso.

A força da ciência e da técnicaestá, exatamente, em apresentar-secomo uma lógica utópica de liberta-ção que pode levar-nos a sonhar parao futuro inclusive com a imortalidade.Tudo isso deveria, pois, desaconselharas tentativas de impor uma ética auto-ritária, alheia ao progresso técnico-ci-entífico. Deveria, além disso, induzir-nos a evitar formulações de regras ju-rídicas estabelecidas sobre proibições.É preferível que os vínculos e os “limi-tes” das leis sejam declinados positi-vamente e que seja estimulada umamoral autógena, não imposta mas ine-rente. Em outras palavras, é necessá-rio que entre os sujeitos ético-jurídicosnão seja desprezada a contribuiçãodaqueles que vivem a dinâmica pró-pria da ciência e da técnica (os cien-tistas), sem chegar, todavia, a delegarsomente a estes decisões que dizemrespeito a todos.

Nesse sentido, é necessário queocorram mudanças nos antigosparadigmas biotecnocientíficos, o quenão significa obrigatoriamente a dis-solução dos valores já existentes, massua transformação: “deve-se avançarde uma ciência eticamente livre paraoutra eticamente responsável; de umatecnocracia que domine o homem

para uma tecnologia a serviço da hu-manidade do próprio homem (...) deuma democracia jurídico-formal auma democracia real, que concilie li-berdade e justiça (21). Trata-se, por-tanto, de estimular o desenvolvimentoda ciência dentro de suas fronteirashumanas e, ao mesmo tempo, dedesestimulá-lo quando essa passa aavançar na direção de “limites” desu-manos.

“Endeusamento” versus“demonização” da ciência

Com relação às ciênciasbiomédicas, as reflexões morais ema-nadas de diferentes setores da socie-dade mostram hoje duas tendênciasantagônicas. De um lado, existe umaradical bioética racional e justificativa,através da qual “tudo aquilo que podeser feito, deve ser feito”. No extremooposto, cresce uma tendência conser-vadora baseada no medo de que nossofuturo seja invadido por tecnologiasameaçadoras, levando seus defensoresà procura de um culpado, erroneamen-te identificado na matriz das novastécnicas, na própria ciência. Nestequadro complexo, a bioética pode vira ser usada por alguns como instru-mento para afirmar doutrinasanticientíficas e, por outros, ser consi-derada como um obstáculo impertinen-te ao trabalho dos cientistas e ao de-senvolvimento bioindustrial; ou ain-da como um instrumento para negaro valor da ciência (ou como valida-ção de posições anticientíficas) ou,então, para justificá-la a qualquercusto (22).

Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Julio
Realce
Page 104: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

106

Orientar-se entre estas duas tesesopostas não é tarefa fácil. A novidadee a complexidade são característicasinerentes à maioria dos temas bioéticosatuais, dos transplantes às pesquisascom seres humanos e animais, do pro-jeto genoma à reprodução assistida.Sobre muitos destes problemas aindanão foram formuladas regulamenta-ções que em outros campos e em épo-cas passadas conduziram a compor-tamentos mais ou menos homogêneose se constituíram no fundamento de leiscujo objetivo, mais do que evitar oupunir qualquer conduta censurável, erao de manter um certo equilíbrio na so-ciedade. Nos dias atuais, o desenvol-vimento da ciência está sujeito a cho-ques com diversas doutrinas e crençasexistentes, ao mesmo tempo em que asopiniões pessoais também oscilamentre sentimentos e orientações diver-sas. Por outro lado, linhas de pesquisase alargarão no futuro, alcançando re-sultados ainda imprevisíveis, enquan-to diversos conhecimentos já adquiri-dos (como a clonagem) estão hoje ape-nas na fase inicial de sua aplicaçãoprática.

De acordo com esta ordem pola-rizada de coisas, o mundo modernopoderá desaguar em uma crescente“confusão diabólica”, ou na resoluçãode todos os problemas da espécie hu-mana através do progresso científico.As duas hipóteses incorrem no riscode alimentar na esfera cultural odogmatismo, e na esfera prática a pas-sividade. Se por um lado são inúme-ros os caminhos a serem escolhidospara que a terra se transforme numverdadeiro inferno, são também infi-nitas as possibilidades de utilizaçãopositiva das descobertas científicas.

O embate entre valores e interesses so-bre cada uma das opções é um dadoreal, inextinguível e construtivo sobmuitos aspectos. A adoção de normase comportamentos moralmente aceitá-veis e praticamente úteis requer, portodas as razões já expostas, tanto oconfronto quanto a convergência dasvárias tendências e exigências (23).

Pluralidade e tolerância,participação e responsabilidade,eqüidade e justiça distributiva

Enfim, toda esta desorganizaçãode idéias e práticas comprometem di-retamente a própria espécie humana,que se tornou interdependente em re-lação aos fatos, ainda que por sorte semantenha diversificada em termos dehistória, leis e cultura. A relação entreinterdependência, diversidade e liber-dade poderá tornar-se um fator positi-vo somente no caso das escolhas prá-ticas e das orientações bioéticas teremreforçadas suas tendências aopluralismo e à tolerância.

A intolerância e a unilateralidade,porém, são fenômenos freqüentes tan-to nos comportamentos relacionadosàs situações persistentes quanto nasatitudes que se referem aos problemasemergentes surgidos mais recentementee que crescem todos os dias. Quantoaos comportamentos, no que se refereaos problemas persistentes, pode-secitar, por exemplo, o ressurgimento doracismo na Europa e em outras partesdo mundo e cujas bases culturais es-tão exatamente em negar o fato de queas etnias pertencem ao domínio comumda espécie humana e em confundir o

Page 105: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

107

conceito de diferença com o de infe-rioridade. Para as atitudes com rela-ção aos problemas “emergentes”,pode-se recordar a decisão do presi-dente norte-americano Bill Clinton deproibir as pesquisas de clonagem comseres humanos e cortar todo possívelauxílio governamental para as mes-mas, contrariando as sugestões dacomissão nacional de bioética por eleconvocada.

O desenvolvimento da ciênciapode percorrer caminhos diversos, uti-lizar diferentes métodos. O conheci-mento é por si só um valor, mas a de-cisão sobre quais conhecimentos asociedade ou os cientistas devem con-centrar seus esforços implica na con-sideração de outros valores. Da mes-ma forma, não se pode deixar de con-siderar o papel do cientista ou da ati-vidade que ele exerce. Sua responsa-bilidade ética deve ser avaliada não sópelo exercício das suas pesquisas emsi mas, principalmente, pelas conseqü-ências sociais decorrentes das mes-mas. Enquanto a ciência, não sendoideológica por sua estrutura, pode es-tar a serviço ou dos fins mais nobresou dos mais prejudiciais para o gêne-ro humano, o cientista não pode per-manecer indiferente aos desdobramen-tos sociais do seu trabalho. Se a ciên-cia como tal não pode ser ética oumoralmente qualificada, pode sê-la, noentanto, a utilização que dela se faça,os interesses a que serve e as conse-qüências sociais de sua aplicação.Está ainda inserido nessa pauta otema da democratização do acessopara todas as pessoas, indistinta eeqüanimemente, aos benefícios dodesenvolvimento científico e tecnoló-gico (às “descobertas”), uma vez que

a espécie humana é o único e real sen-tido e meta para esse mesmo desen-volvimento.

Dentro ainda do tema da demo-cracia e desenvolvimento da ciência,não se poder deixar de abordar a ques-tão do controle social sobre qualqueratividade que seja de interesse coleti-vo e/ou público. Mesmo em temascomplexos como o projeto genomahumano ou a doação e os transplan-tes de órgãos e tecidos humanos, apluriparticipação é indispensável paraa garantia de que os direitos humanose a cidadania sejam respeitados. Ocontrole social, através do pluralismoparticipativo, deverá prevenir o difí-ci l problema de um progressobiotecnocientífico que reduz o cidadãoa súdito ao invés de emancipá-lo. Osúdito é o vassalo, aquele que está sem-pre sob as ordens e vontades de ou-tros, seja do rei, seja dos seusopositores. Esta peculiaridade é abso-lutamente indesejável em um proces-so no qual se pretende que a partici-pação consciente da sociedade mun-dial adquira um papel de relevo. A éti-ca é um dos melhores antídotos con-tra qualquer forma de autoritarismo ede tentativas espúrias de manipula-ções.

Ainda no que diz respeito à tole-rância, Mary Warnock destacou o prin-cípio segundo o qual a única razãoválida para não se tolerar um com-portamento é que este cause danos aoutras pessoas, além de quem o adota(24). O exemplo ao que ela se refere éa legislação sobre embriões, que foidiscutida na Inglaterra durante anos.Com relação ao aborto, é oportunorecordar, na mesma linha de idéias jáabordada em tópico anterior, que existe

Julio
Realce
Julio
Realce
Ciência como Vocação do Weber entra bem nesse contexto.
Julio
Realce
Page 106: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

108

uma diferença entre seu enfoque legale moral. Sobre a legalidade, váriospaíses o reconheceram, objetivandoevitar que ele permanecesse como umfenômeno clandestino, por isto mesmoagravado e impossível de prevenir.Quanto à moralidade, ele é, de qual-quer modo, um ato interruptivo de umprocesso vital, ao qual setores da so-ciedade atribuem significado negativoe outros não. De qualquer forma, ques-tões complexas como o aborto nãoencontram respostas satisfatórias uni-camente no âmbito exclusivo dopluralismo e da tolerância, devendo serintegradas a outros conceitos como aresponsabilidade (da mulher, da soci-edade e do Estado) e a eqüidade noseu mais amplo sentido.

Considerações finais

É sempre preferível confiar maisno progresso e nos avanços culturais emorais do que em certas normas jurí-dicas. Existem, de fato, zonas de fron-teira nas aplicações da ciência. Levan-do em consideração a velocidade doprogresso biotecnocientífico é, contu-do, impossível reconstruir rapidamen-te certas referências ou valores quepossam vir a ser compartilhados portodos, a menos que se insista na alter-nativa da imposição autoritária e uni-lateral de valores. A solução está, en-tão, em verificarmos se é possível tra-balhar para a definição de um conjun-to de condições de compatibilidadeentre pontos de vista que permanece-rão diferentes, mas cuja diversidadenão implique necessariamente em umconflito catastrófico ou em uma radi-

cal incompatibilidade (25). É oportu-no levantar neste ponto o importantepapel formador desempenhado pelamídia (virtual, impressa, falada etelevisionada), que deve avançar dopatamar do simples entretenimento emdireção à abertura de debates públi-cos relacionados e comprometidoscom temas de interesse comum.

O grande nó relacionado com aquestão da manipulação da vida huma-na não está na utilização em si de novastecnologias ainda não assimiladas mo-ralmente pela sociedade, mas no seucontrole. E esse controle deve ocorrer empatamar diferente ao dos planos cientí-ficos e tecnológicos: o controle é ético. Éprudente lembrar que a ética sobrevivesem a ciência e a técnica; sua existêncianão depende delas. A ciência e a técni-ca, no entanto, não podem prescindir daética, sob pena de, unilateralmente, setransformarem em armas desastrosaspara o futuro da humanidade, nas mãosde ditadores ou de minorias poderosase/ou mal-intencionadas.

O “xis” do problema, portanto,está no fato de que dentro de uma es-cala hipotética de valores vitais para ahumanidade a ética ocupa posiçãodiferenciada em comparação com apura ciência e a técnica. Nem anterior,nem superior, mas simplesmente dife-renciada. Além de sua importânciaqualitativa no caso, a ética serve comoinstrumento preventivo contra abusosatuais e futuros que venham a trazerlucros e poderes abusivos para poucos,em detrimento do alijamento e sofri-mento de grande parte da populaçãomundial e do próprio equilíbriobiossociopolítico do planeta.

Para que a manipulação da vidase faça dentro do marco referencial da

Julio
Realce
Page 107: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

109

cidadania, com preservação da liber-dade da ciência a partir do paradigmaético da responsabilidade, existem doiscaminhos. O primeiro, por meio de le-gislações que deverão ser(re)construídas democraticamente pe-los diferentes países, levando-se emconsideração os indicadores acimamencionados e no sentido da preser-vação de referenciais éticos estabele-cidos em consonância com o progres-so moral verificado nas respectivassociedades. No que diz respeito a essetópico, vale a pena recordar o fracas-so representado pela nova legislaçãobrasileira com relação à doação pre-sumida de órgãos para transplantes.Após a promulgação da lei nos últimosmeses de 1997, a qual em momentoalgum foi discutida coletivamente emuito menos aceita pela sociedade dopaís, o número de doadores mortospassou a diminuir progressivamente,mês após mês, até que em agosto de1998 o Ministério da Saúde decidiupor solicitar ao Congresso Nacionalnovas discussões objetivando sua al-teração.

O segundo, por meio da constru-ção democrática, participativa e soli-dária – pela comunidade internacio-nal de nações – de uma versão atuali-zada da Declaração Universal dos Di-reitos Humanos, pautada não em proi-bições, mas na busca afirmativa dainclusão social, de saúde, bem-estar efelicidade. Uma espécie de Estatuto daVida, que possa vir a servir de guiapara as questões conflitivas já consta-tadas atualmente e para aquelas no-vas situações que certamente surgi-rão no transcorrer dos próximos anoscomo conseqüência do desenvolvimen-to.

Referências bibliográficas

Jonas H . Il principio responsabilità.Un’etica per la civiltà tecnologica. Tu-rim: Einaudi Editore, 1990.

Garrafa V. Reflexões bioéticas sobre ci-ência, saúde e cidadania. Bioética(CFM) 1998;6(2). (no prelo)

Schramm FR. Paradigma biotecnocien-tífico e paradigma bioético. In: Oda LM.Biosafety of transgenic organisms inhuman health products. Rio de Janeiro:Fundação Oswaldo Cruz, 1996:109-27.

Morelli T. Genetic testing will lead todiscrimination. In: Bener D, Leone B,organizadores. Biomedical ethics:opposing viewpoints. San Diego:Greennhaven, 1994: 287-92.

Campbell A. A bioética no século XXI.Saúde Heliópolis 1998;3(9):9-11.

Engelhardt HT Jr.. Fundamentos dabioética. São Paulo: Ed. Loyola, 1998.

Mori M. A bioética: sua natureza e histó-ria. Humanidades (UnB) 1994,34:332-41.

Singer P. Ética prática. São Paulo:Martins Fontes, 1994: 01-23.

Garrafa V. Dimensão da ética em saú-de pública. São Paulo: Faculdade deSaúde Pública USP/Kellogg Foundation,1995: 20-4.

Aristóteles. Ética a Nicômaco. 3.ed.Brasília: Editora UnB, 1992.

Fletcher J. citado por Sève L. Para umacrítica da razão bioética. Lisboa: Insti-tuto Piaget, 1994:138-9.

Sève L. Para uma crítica da razãobioética. Lisboa: Instituto Piaget,1994:138-9.

6.

12.

11.

10.

9.

8.

7.

5.

4.

3.

2.

1.

Julio
Realce
Page 108: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

110

Lecaldano E. Assise Internazionale diBioetica; 1992 Maio 28-30; Roma. No-tas preparatórias ao Encontro, cujo con-teúdo completo foi publicado por RodotàS, organizador. Questioni di bioetica.Roma-Bari: Sagittari Laterza, 1993.

Cortina A. Ética sin moral. Madrid:Tecnos, 1990.

Morin E. Ciência com consciência. Riode Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.

Jonas H. Técnica, medicina y ética.Barcelona: Paidós, 1997: 67-5.

Casals JME. Una ética para la eratecnologica. Cuadernos del ProgramaRegional de Bioética (OPS/OMS)1997;5:65-84.

Berlinguer G. Questões de vida: ética,ciência e saúde. São Paulo: APCE/Hucitec/CEBES, 1993: 19-37.

Berlinguer G, Garrafa V. La merce uomo.MicroMega (Roma) 1993; (1):217-34.20.João Paulo II. Evangelium vitae.

Lettera enciclica sul valore el’inviolabilità della vita umana. Bolonha:Edizione Dehoniane, 1995.

Küng H. Projeto de uma ética mundial.São Paulo: Paulinas, 1994.

Berlinguer G, Garrafa V. O mercadohumano: estudo bioético da compra evenda de partes do corpo. Brasília: Edi-tora UnB, 1996.

Garrafa V, Berlinguer G. A manipula-ção da vida. Folha de S. Paulo 1996Dez 01;Caderno “Mais”:5.

Warnock M. I limiti della tolleranza. In:Mendus S, Edwards D. Saggi sullatolleranza. Milão: I1 Saggiatori/Mondadori, 1990: 169.

Rodotà S. Questioni di bioetica. Roma-Bari: Sagittari Laterza, 1993:IX.

25.

22.

24.

21.

20.

19.

18.

17.

16.

15.

14.

13.

23.

Page 109: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

111

A Igreja Católica e a reprodu-ção assistida

Sem dúvida, dentre os assuntosque mais provocam debates situam-seaqueles referentes à reprodução huma-na, em vista do forte componente reli-gioso, moral e ético que envolve aquestão. O dogmatismo da Igreja Ca-tólica sobre o tema, desde o início daera cristã, dando uma conotação divi-na à reprodução humana, tornou,durante quase dois mil anos, essa dis-cussão proibida. Ou, pelo menos, res-trita a grupos de pensadores e filóso-fos que ousaram desafiar os dogmasestabelecidos. No Novo Testamento,no Evangelho segundo S. João, lê-se:“Os quais não nasceram do sangue,nem da vontade da carne, nem da von-tade do varão, mas de Deus” – por sisó esta asserção impõe um silênciosobre a questão da reprodução e nãoadmite discussão.

A influência de diversas religiões,principalmente da católica, impedindoa livre manifestação do pensamento

Antônio Henrique Pedrosa Neto José Gonçalves Franco Júnior

Reprodução Assistida

sobre o assunto, levou à aceitação deque a reprodução humana era umamanifestação exclusiva da vontadede Deus e, portanto, seria inadmissí-vel sua discussão pelo homem. Ainterferência humana no processoreprodutivo constituía uma agressão àvontade de Deus. Esse dogma perdu-rou durante séculos, mantendo a hu-manidade sob a doutrina de uma reli-gião que impunha seus conceitos atodos, religiosos ou não, em uma ati-tude claramente coercitiva que nãoreconhecia a diversidade do pensa-mento humano.

Um dia, a espécie humana deci-frou os mistérios da reprodução. Co-nheceu o poder de trazer uma novavida ao mundo, não mais submeten-do-se ao simples acaso da natureza.Corrigindo uma falha desta, permitiuque o homem e a mulher pudessemdesenvolver o privilégio da reprodução.Devolveu ao homem e a mulher o di-reito à descendência. Devolveu à mu-lher sua função biológica de conceberuma nova vida. Não quis o homemtornar-se Criador. As sementes da vida

Page 110: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

112

são Sua criação. O homem apenasjuntou as sementes para que dessemorigem a um novo ser. Sob essa lógi-ca, não se pode falar de desvios reli-giosos, morais ou éticos.

A respeito da inseminação artifi-cial, Pio XII manifestou-se contraria-mente, pois o esperma do marido nãopodia ser obtido através damasturbação e a fecundação ser reali-zada sem qualquer contato sexual.Sobre a questão, D. Ivo Lorscheiderafirmou: “Todas essas experiências dese fazer nenês artificiais, bebês de pro-veta, são condenáveis. Isso vai ter umarepercussão terrível sobre a humani-dade, porque toda procriação temcomo fundamento o amor entre a es-posa e o esposo. Quando o amor nãoexiste mais, qual o significado dessacriança?”.

Nesse sentido, a Igreja coloca aquestão do amor, do sexo e da repro-dução dentro de sua lógica dogmática:de que a união do homem e da mu-lher, através do matrimônio, tem comoobjetivo único a reprodução, não im-portando os equívocos da natureza ea satisfação do casal. O cardealJoseph Ratzinger, a respeito do do-cumento “O pecado maternal”, divul-gado pela Santa Sé, ao ser questiona-do sobre como ficaria o casal que pre-tendendo ter filhos não os pudesse ter,por algum problema de esterilidade, res-pondeu: “As pessoas nessas condiçõesdevem se resignar com a sorte”.

A respeito da questão, as palavrasdo padre Guareschi encerram a polê-mica quando coloca o amor e a reali-zação do ser humano, inclusive dentrodos princípios cristãos, acima dosdogmas estabelecidos pela SagradaCongregação para a doutrina da Fé.

“O princípio que dá sentido à famíliaé que ela, à semelhança da Trindade(...), procura a realização ecomplementação mútua de dois oumais seres, através do amor. (...) Cos-tuma-se dizer que os filhos são frutodeste amor. Se formos aplicar essasreflexões ao problema da inseminaçãoartificial (in vitro) poderíamos dizer queessa ação, quando contém em si esseprincípio fundamental de amor, rea-lização e complementação mútua, secoloca muito bem dentro dos princí-pios cristãos. A experiência nos mos-tra que casais chegam a gastar fortu-nas, fazem sacrifícios ingentes parapoderem ter um filho que vai ser ofruto de seu amor. Pode-se reduzir oamor à relação sexual normal? Nãopoderiam existir outros caminhospara que eles cheguem à realização ecomplementação de suas vidas, atra-vés do amor?”.

Finalmente, a Igreja Protestanteapresenta um pensamento mais libe-ral a respeito das técnicas de reprodu-ção assistida (RA). O pastor AndréDumas assim manifestou-se sobre oassunto: “Eu sou favorável ainseminação artificial humana, mesmocom esperma de doador, pois é umapossibilidade obtida pela ciência, desuperar a esterilidade, mas ela deve serpraticada com a concordância domarido e da mulher. ( ... ) Atualmente,intervém-se, cada vez mais, nos pro-cessos biológicos. A natureza é ummito. É legítimo para o homem inter-vir nos processos da natureza. O pro-blema da doação de esperma deveser considerado como um problemade transplante, no plano da doaçãode órgãos. A semente deve serdessacralizada. Evidentemente, a

Page 111: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

113

genética representa um papel na per-sonalidade da criança, mas a culturae a educação também”.

Portanto, o determinismo biológi-co da reprodução e a satisfação docasal com a chegada de um filho jus-tifica plenamente a utilização das téc-nicas de reprodução assistida. A pro-cura do casal em corrigir uma imper-feição da natureza encontra na ciên-cia a solução dos seus problemas. Éjusto negar esse direito ao Homem?Não é possível concordar com o car-deal Joseph Ratzinger quando afirmaque as pessoas que não podem con-ceber um filho devem resignar-se coma sorte.

Por fim, não seria justificável oenorme esforço da humanidade emdesenvolver o conhecimento científicose não fosse para colocá-lo a serviçodo Homem. Não podemos, pordogmas ou crenças religiosas, retornarao primitivismo da humanidade. Se amedicina pode intervir sobre a repro-dução humana, dentro de princípiosmorais e éticos perfeitamente estabe-lecidos, porque impedir essa interven-ção? É perfeitamente legítima a pro-cura do homem pela sua realização esatisfação plenas. E a ciência, coloca-da à sua disposição, deve ser um ins-trumento dessa realização.

Problemas éticos envolvidos,seus conflitos

A medicina, desde temposimemoriais, sempre exigiu um debatepermanente sobre as questões éticasque envolvem sua prática e o desen-volvimento de novos conhecimentos.

O marco inicial, sem dúvida, foi fixa-do quando Hipócrates, em 460 A.C.,estabeleceu os primeiros postuladoséticos da medicina – que atravessa-ram séculos, chegando ao terceiromilênio como uma referência indelé-vel que tem norteado a medicina atéos dias atuais.

A curiosidade científica e a bus-ca incansável de novas descobertasnas ciências da saúde sempre preo-cupou a humanidade. Daí, a neces-sidade de estabelecer limites precisosno desenvolvimento da ciênciabiomédica. O conhecimento biomé-dico, acumulado ao longo do tempo,buscou essencialmente o benefício daespécie humana. No entanto, em nomedesse desenvolvimento, regras básicasde comportamento ético foram desres-peitadas. Cabe à sociedade, portanto,controlar a ciência, evitando desvios.

O desenvolvimento do conheci-mento baseou-se durante séculos noempirismo e na observação pura e sim-ples das manifestações naturais e bioló-gicas. Não havia, à época, conhecimen-tos suficientes que dessem suporte cien-tífico para sua comprovação. Da mes-ma forma, não existia uma reflexão so-bre as questões éticas desse desenvolvi-mento empírico. A partir do momento emque o desenvolvimento científico retiroua ciência do empirismo, a humanidadepassou a refletir com mais profundidadesobre as questões éticas que envolvemseu desenvolvimento e sua aplicabilidadesobre os seres humanos.

Mesmo nos tempos atuais, ondea sociedade exerce um papelcontrolador mais efetivo, o desenvol-vimento científico muitas vezes enco-bre violações de princípios éticos, enão raro humanitários, em nome da

Page 112: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

114

high-tech na ciência biomédica. Noentanto, cada vez mais cresce a dis-cussão sobre a questão e a Bioética –a qual busca estabelecer com a socie-dade, em todo o mundo, um diálogoconseqüente – propicia uma vigilânciamais efetiva do rápido e contundenteavanço científico e tecnológico.

Desde sua gênese, a humanida-de sempre demonstrou grande preo-cupação com a fecundidade. Envolven-do aspectos religiosos, morais, éticose culturais a humanidade debateu-sedurante séculos sobre o problema. Prin-cipalmente por encerrar questões deli-cadas como a sexualidade, o matrimô-nio e a reprodução esse tema aindahoje permanece, e com maior ênfase,como um dos dilemas éticos mais atu-ais da humanidade. A primordial dis-cussão sobre a sacralidade do inícioda vida e da concepção sempre colo-cou em permanente debate a questãoda reprodução humana.

Desde as mais remotas épocassempre coube à mulher a responsabi-lidade pela concepção – inclusive pelaanticoncepção. A ela caberia recebera semente do homem e procriar. Ainfertilidade feminina era vista comouma grave deformidade biológica – etambém considerada uma repreensãodivina, já que a mulher não era mere-cedora da benção da procriação.

Durante séculos, não admitiu-sea esterilidade masculina. A esterilida-de ou a infertilidade sempre colocou amulher em uma condição de inferiori-dade, submetendo-a a forte discrimi-nação. Ao contrário, a fertilidade e achegada de um filho sempre foi feste-jada e abençoada. A união entre umhomem e uma mulher sempre ensejauma pergunta: quando chega o bebê?

É a pressão da sociedade sobre o ca-sal e principalmente sobre a mulher, arespeito da função reprodutiva. A es-terilidade ou infertilidade, vista comoum “defeito” biológico, leva à discri-minação que alimenta o sentimento deinferioridade e de culpa na mulher.

A família, como tradicionalmen-te conceituada, constitui-se da uniãode um homem e de uma mulher e desua prole. A ausência de filhos fragilizaa estrutura familiar e influi na relaçãoentre os cônjuges. É comum as sepa-rações de casais que não podem con-ceber. E cada um dos participantesprocura acreditar que o “defeito” é dooutro, em uma busca desesperada paralivrar-se da maldição da esterilidade.

Segundo Cabau e Senarclens, égrande o número de fatores subcons-cientes que determina o desejo por umfilho. O filho sempre existiu, de umaforma ou de outra, nas fantasias dohomem e da mulher. Por isso mesmotorna-se insignificante determinar se ainfertilidade é causada pelo homem oupela mulher; a descoberta atinge aambos e afeta o equilíbrio do casal.Ainda segundo os autores: “Este é oprimeiro sentimento expresso numasociedade onde a anticoncepção éampla, a fertilidade é aceita como cer-ta e o único problema é controlá-la.Para aqueles que têm o hábito de ven-cer todos os obstáculos, essa situação,na qual a sua vontade está impedida,pode parecer intolerável”. E estaintolerabilidade, segundo estudos rea-lizados pelos cientistas com base naspesquisas de Menning, se manifestaem progressiva ascensão que passapor seis fases consecutivas: recusa,raiva, sensação de isolamento, culpa,obsessão, angústia e depressão.

Page 113: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

115

Sem dúvida, o desenvolvimentodas técnicas de reprodução assistidatrouxe uma possibilidade real aos ca-sais com problemas de infertilidade,auxiliando-os a realizar um dos maisprimitivos desejos humanos: a repro-dução. A partir do conhecimento ad-quirido com a experimentação animale a evolução do conhecimento cientí-fico na área reprodutiva humana, evo-luiu-se da inseminação artificial (IA)às atuais técnicas de fertilização invitro com transferência de embrião(FIV). No entanto, ao lado dos benefí-cios trazidos com o desenvolvimentodessas técnicas, surgiram preocupa-ções e questionamentos de ordem téc-nica, moral, religiosa, jurídica e, prin-cipalmente, de natureza ética.

Uma das questões amplamentediscutidas e que encerra um forte com-ponente social diz respeito ao direitode um casal investir importantes recur-sos financeiros e submeter-se a riscos,à sua própria vida e à de sua descen-dência, para ter um filho. À sua volta,legiões de crianças abandonadas ouvivendo em miséria absoluta. Não se-ria mais ética e socialmente mais jus-ta a adoção? A adoção seria mais jus-ta do ponto de vista social, principal-mente em um país como o Brasil. Aconvivência com uma criança, mesmoque não contenha a carga genética deum ou de ambos os cônjuges, quandointegrada ao convívio familiar, desen-volve rapidamente a afetividade.

No entanto, a autodeterminaçãode cada indivíduo deve ser respeita-da, pois cada um tem o direito de versatisfeitas as suas aspirações interio-res. E se a ciência dispõe dos meiosque permitam essa satisfação, qual oimpedimento de coloca-lá à disposição

daqueles que a necessitam? Ou seriaum egoísmo exacerbado, por parte damulher ou do casal, a procura de umfilho que contenha seus componentesgenéticos? Ou o desejo de vivenciar afantástica experiência da gravidez e doparto? Não acreditamos que seja esseo sentimento envolvido. O sentimento,único que envolve essa procura por umfilho é sem dúvida o amor, de tal inten-sidade que o casal renuncia à intimi-dade da concepção e à sua privacida-de quando admite a participação deum terceiro, nos casos de fertilizaçãoheteróloga.

No mundo inteiro, os países quedominam as técnicas de reproduçãoassistida têm procurado criar protoco-los e normas que impeçam desvios edistorções no desenvolvimento dessanova tecnologia. A velocidade da evo-lução do conhecimento na área da re-produção humana tem exigido das so-ciedades e dos governos envolvidosuma permanente vigilância a respeitoda questão.

Após o nascimento de LouiseBrown, o primeiro bebê de proveta, em1978, na Inglaterra, o mundo, perple-xo, viu-se diante de um dilema éticoaté então só existente na ficção cientí-fica. A realidade, inesperada, provo-cou uma reação imediata dos paísesdesenvolvidos. Os Estados Unidos cri-aram as Comissões Nacionais Gover-namentais. A Inglaterra constituiu aComissão Warnock. A Suécia crioucomissões especializadas sobre o as-sunto. A França, o Comitê ConsultivoNacional de Ética para as Ciências daVida e da Saúde. Na Itália, o ComitêNacional de Bioética, em dezembro de1994, excluiu das possibilidades deutilização das técnicas de reprodução

Page 114: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

116

assistida a doação de óvulos eespermatozóides em mulheres fora daidade reprodutiva, em casais do mes-mo sexo, em mulher solteira, após mortede um dos cônjuges e em casais quenão proporcionem garantias adequa-das de estabilidade afetiva para criare educar uma criança.

No mesmo sentido, o Colégio Mé-dico Italiano interviu ampliando a proi-bição de todas as formas de gravidez desubstituição, em mulheres em menopau-sa não-precoce, sob inspiração racial ousocioeconômica e a exploração comer-cial, publicitária ou industrial de gametas,embriões ou tecidos embrionários. En-fim, os países industrializados procura-ram intervir sobre o problema. Não paraimpedir o desenvolvimento e o progres-so científico dessa nova tecnologiareprodutiva, mas para estabelecer limi-tes éticos e morais para sua utilização.

Na América Latina e nos paísesem desenvolvimento, praticamentenão há regulamentação ou legislaçãosobre o assunto. Porém, com a cres-cente preocupação mundial a respeitodessa nova tecnologia, que desenvol-ve-se numa velocidade espantosa, atendência de todos os países que jádominam as técnicas de RA é regula-mentar e controlar suas aplicações so-bre o ser humano. Regulamentaçãoessa que tem como objetivo estabele-cer os limites de sua utilização e nun-ca obstaculizar ou impedir seu desen-volvimento científico. Da mesma for-ma, busca delimitar seu campo de apli-cação para não cair no terreno peri-goso da técnica pela técnica,desumanizando e artificializando oprocesso da reprodução humana.

No Brasil, o domínio das técni-cas de FIV teve início em 1984, quan-

do nasceu a primeira criança atravésde fertilização in vitro com transferên-cia embrionária. Até o momento, nãohá nenhuma regulamentaçãolegislativa sobre o assunto. Trami-ta no Congresso Nacional o Proje-to de Lei n° 3.638, de 1993, deautoria do deputado Luiz Moreira,que regulamenta a utilização dastécnicas de RA.

O Conselho Federal de Medicina(CFM), antecipando-se a qualquer ini-ciativa governamental ou legislativa,regulamentou, com uma visão maisatual e liberal, em 1992, a utilizaçãodas técnicas de RA através da Resolu-ção CFM n° 1.358/92, a qual estabele-ce os critérios técnicos e éticos a se-rem seguidos por todos os médicosbrasileiros que utilizam o procedi-mento. É importante registrar doisfatos. Primeiro, o projeto de lei oraem tramitação no Congresso Nacio-nal contempla, em sua íntegra, aResolução CFM n° 1.358/92. Segun-do, preocupado com sua atualização,após cinco anos da edição, o CFMpromoveu a sua revisão. Não foi ne-cessária nenhuma alteração, vistomanter-se atualizada, cientifica e eti-camente, com o desenvolvimento al-cançado pelas referidas técnicas.

Principais conflitos éticosenvolvidos na Resolução CFMnº 1.358/92

1. Necessidade de vínculo matri- monial

Em geral, aceita-se o casamen-to como a instituição que melhor

Page 115: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

117

representa a família. Entretanto, deve-se reconhecer que o casamento nãoconstitui aval para a estabilidade con-jugal, nem garante a harmonia famili-ar necessária para o desenvolvimentode uma criança. Desta forma, deve-seconsiderar, para efeito de aplicaçãodas técnicas de RA, a estabilidade e aafetividade do casal, que será o supor-te emocional que permitirá o cresci-mento saudável da criança, e não aformalidade dessa união. Até porquena América Latina, e particularmenteno Brasil, é freqüente a união informalde casais, o que não exclui a existên-cia de uma família. Assim sendo,deve-se fazer a distinção entre famí-lia e casamento.

Não existe impedimento legalpara que casais unidos informalmen-te venham a constituir sua descen-dência. Ao contrário, a ConstituiçãoBrasileira garante, em seu artigo 226,parágrafo 3°: “Para efeito da prote-ção do Estado, é reconhecida a uniãoestável entre o homem e a mulhercomo entidade familiar, devendo a leifacilitar sua conversão em casamen-to.” Em seu parágrafo 4° lê-se: “En-tende-se, também, como entidade fa-miliar a comunidade formada porqualquer dos pais e seus descenden-tes.” Neste particular a lei procurouregular a natureza civil da descen-dência, dando-lhe a proteção doEstado.

Portanto, exigir o vínculo matri-monial para os casais que necessitamdo uso dessa metodologia reprodutivaconstitui, sem dúvida, além de umadiscriminação inaceitável, uma viola-ção constitucional, muito embora paí-ses como a Áustria, Egito, Japão,Coréia, Líbano, Singapura e África do

Sul exigam a união formal do casalpara a realização das técnicas de re-produção assistida. A Resolução CFMn° 1.358/92, no entanto, exige para asua aplicação a concordância livre econsciente em documento de consen-timento informado, e a anuência for-mal do cônjuge ou companheiro.

Há, também, o entendimento deque as técnicas de RA não devam serutilizadas como uma alternativa desubstituição da reprodução naturalatravés do ato sexual. As técnicas deRA são aceitáveis apenas com o obje-tivo de corrigir os problemas deinfertilidade ou esterilidade do homem,da mulher ou do casal. Do mesmomodo, a referida resolução proíbe autilização de técnicas de RA com oobjetivo de selecionar o sexo ou qual-quer outra característica biológica dofuturo filho, exceto quando se trate deevitar doenças genéticas ligadas aosexo. Proíbe a experimentação sobre osembriões obtidos e a redução embrio-nária em casos de gravidez múltipla.

2. Doação de gametas

A doação de gametas estáindicada nos casos em que um ouambos os componentes do casal nãopossuem gametas, ou nos casos emque uma doença genética pode sertransmitida com alta freqüência paraseus descendentes. A paternidade, amaternidade e a família podem serestabelecidas, legal e eticamente, semnenhum vínculo genético. O exemplomaior para essa afirmação é o institu-to da adoção, garantida pela lei e pelaConstituição Federal.

A Resolução CFM n° 1.358/92estabelece a gratuidade da doação e o

Page 116: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

118

anonimato dos doadores e receptoresde gametas e pré-embriões. Estabele-ce, ainda, que em situações especiaisditadas por necessidade médica as in-formações clínicas do doador podemser fornecidas, resguardando-se, noentanto, sua identidade. Para tanto, oscentros ou serviços responsáveis peladoação devem manter, permanente-mente, o registro de dados clínicos decaráter geral, características fenotípi-cas e amostragem de material celulardos doadores. Estabelece, ainda, quea escolha dos doadores é de inteira res-ponsabilidade da unidade prestadorados serviços, devendo garantir a mai-or semelhança fenotípica e imunoló-gica com a receptora.

A manutenção do anonimato en-tre doadores e receptores é de funda-mental importância no sentido de evi-tar-se, no futuro, complexas situaçõesemocionais e legais entre doadores ereceptores, com repercussões no desen-volvimento psicológico das criançasnascidas através desse procedimento.Sob essa ótica, alguns especialistasacreditam que a manutenção do ano-nimato torna possível aos pais exerce-rem uma maior influência de suas iden-tidades sobre os filhos. Entretanto, ou-tros afirmam que as crianças com des-conhecimento de sua origem genéticapoderiam apresentar incompleta per-cepção de sua identidade, com gravesrepercussões psicológicas. SegundoWood (1994), isso é muito difícil deprovar, estabelecendo uma relação decausa e efeito.

Por outro lado, em diversos paí-ses onde o anonimato dos doadoresnão é obrigatório, persistem dúvidasquanto a revelar ou não a origem ge-nética das crianças. Na Austrália,

Munro e cols. (1992) avaliaram 36casais e as crianças nascidas atravésde um programa de doação deoócitos, verificando que 37,5% doscasais que obtiveram filhos por doa-ção anônima e 56% dos casais comfilhos de doadores conhecidos iriamrevelar para os filhos, no futuro, suaorigem. Nessa mesma pesquisa, 37,5%dos casais com doação anônima e33% com doação conhecida não re-velariam sua origem através de proce-dimentos de reprodução assistida.Apenas 19% dos casais revelariam autilização do procedimento se isso fos-se justificável do ponto de vista médi-co. Não houve consenso em 6% doscasais com doação anônima e em11% dos com doação conhecida quan-to a revelar ou não a identidade dosdoadores,.

Da mesma forma, há divergênciasentre os especialistas em reproduçãohumana sobre o aconselhamento aospais em revelar para a criança sua ori-gem, identificando o doador. Na lite-ratura atual, os dados são insuficien-tes para uma análise precisa das re-percussões sobre o desenvolvimento psi-cológico de crianças que conhecem, eforam criadas, em estreita relação comseus doadores genéticos.

A perda do anonimato preconi-zada por alguns autores poderia criarsituações anômalas, onde os doado-res de gametas poderiam ser um dosfilhos do casal infértil (filha doandoóvulos para a mãe, por exemplo), au-mentando, sobremaneira, os riscos deproblemas emocionais para os envol-vidos. A ocorrência de complicaçõesobstétricas ou o nascimento de crian-ças com incapacidades físicas ou men-tais, morte da receptora ou do

Page 117: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

119

concepto, poderiam criar para os do-adores importantes problemas psico-lógicos, como sentimento de culpa ede perda. Independentemente da ida-de cronológica do doador, como nemsempre é possível determinar com pre-cisão sua capacidade de suportar ousuperar tensões emocionais, a doaçãode gametas por filhos de casal infértildeveria ser considerada de alto riscopara o desenvolvimento de problemaspsíquicos, sendo fundamental evitaresse tipo de doação.

A idade da receptora, nos casosde FIV pós-menopausa, representa umproblema especial que deve ser consi-derado. Define-se menopausa comouma parte do ciclo natural da vida damulher. Portanto, aquelas que desejamexpressar sua maternidade nessa faseda vida, poderiam fazê-lo desde queapresentem condições clínicas ade-quadas. O estabelecimento de um li-mite etário para a gravidez na pós-menopausa é assunto polêmico e con-troverso.

A contaminação da discussãopor conceitos e preconceitos, pessoaisou coletivos, impede uma definiçãomais objetiva da questão. Além, evi-dentemente, do perigo de introduzir-se,camuflado sob mantos diversos, o pre-conceito contra a mulher. Não há ne-nhuma discussão ou restrição etáriapara a reprodução masculina. É claroque antes havia uma restrição naturalpara a reprodução feminina: a própriamenopausa. Hoje, a ciência permitecontornar com relativa segurança esseobstáculo natural. Como, então, esta-belecer limite de idade para a repro-dução feminina? Se a ciência deveestar a serviço do ser humano na bus-ca de sua satisfação plena, ela deve

ser um instrumento dessa satisfação,respeitados os limites da ética, da se-gurança e do bom-senso.

Finalmente, a doação deespermatozóides não é permitida parasua utilização nos procedimentos deFIV na Áustria, Egito, Japão, Líbano,Noruega e Suécia. No mesmo sentido,a doação de óvulos é proibida na Áus-tria, Egito, Japão, Alemanha, Norue-ga e Suécia. No Líbano, a doação deóvulos é permitida, desde que usadapelo próprio marido da doadora parauma outra esposa, já que a tradição ea legislação permitem ao homem pos-suir mais de uma esposa. Entretanto,a doação de espermatozóides é proi-bida em qualquer hipótese.

3. Número de embriões transfe- ridos

Não existe uniformidade entre asnormas existentes nos diversos paísessobre o número ideal de embriões aserem transferidos. Em Singapura, porexemplo, admite-se a transferência dequatro embriões em mulheres acima de35 anos, com dois insucessos emprocedimentos anteriores. O núme-ro ideal considerado na Itália é de trêsembriões transferidos, porém admite-se quatro em mulheres acima de 36anos. Na Coréia do Sul, transfere-seentre quatro e seis pré-embriões, en-quanto na Grécia o número varia en-tre cinco e sete.

No Brasil, a Resolução CFM n°1.358/92 limitou a transferência de atéquatro embriões por cada procedimen-to, com o intuito de impedir a transfe-rência de um número cada vez maiorde embriões visando obter sucesso degravidez, porém aumentando ainda

Page 118: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

120

mais os riscos existentes de gestaçõesmúltiplas.

Atualmente, a tendência mundialé transferir apenas dois embriões, fatoque evitaria a obtenção de gestaçõestriplas ou de número superior. Issodeve-se, com certeza, ao aprimoramen-to das técnicas de FIV, com resultadosmais satisfatórios na obtenção de gra-videz por tentativa de transferência.

4. Criopreservação de gametas e embriões

O estágio atual do desenvolvimen-to da criobiologia permite a preserva-ção de células por tempo prolongado,mantendo suas propriedades bioló-gicas após o descongelamento. A im-plantação de um programa decriopreservação de embriões em umcentro de reprodução assistida trazvantagens, porém alguns problemaspodem resultar da estocagem de em-briões humanos. Uma das principaisvantagens seria o aumento das possi-bilidades de gestação por um únicociclo de punção folicular, determinadapela transferência dos embriões exce-dentes criopreservados, após transfe-rência a fresco. Ao mesmo tempo, per-mite a diminuição do número de em-briões transferidos, minimizando o gra-ve problema das gestações múltiplas.

Embora a criopreservação deembriões excedentes constitua rotinaem diversos centros ou unidades dereprodução humana, este procedimen-to deve ser considerado de risco pelosproblemas éticos, legais e econômicosque encerra. No Brasil, a ResoluçãoCFM n° 1.358/92 regulamenta que osembriões excedentes obtidos através deFIV, após transferência a fresco, não

podem ser descartados. Autoriza suacriopreservação, para posterior trans-ferência em caso de insucesso, desejoda mulher ou do casal de ter uma novagravidez ou mesmo para doação.Como não é possível determinarquantos óvulos serão fecundados emcada ciclo de punção folicular, e con-siderando-se o fato de a transferênciaestar limitada a quatro embriões, asolução foi a criopreservação, deven-do o casal conhecer o número de em-briões a ser congelados e expressar, porescrito, o destino dos mesmos em casode divórcio, doença grave ou morte deum ou ambos os membros do casal.

O problema é agravado por fato-res adicionais como o alto índice decasais que abandonam o tratamentodevido a diversos problemas, inclusi-ve econômicos, após uma ou duas fa-lhas no programa de FIV, ou porqueconsideram ideal o número de filhosobtidos após o emprego das técnicasde reprodução assistida. Outro fatoragravante para o problema é pratica-mente a ausência de casais interes-sados em receber esses embriões emdoação, pois não haverá nenhum vín-culo genético entre eles. Nesses casos,a decisão do casal geralmente recaipela adoção de uma criança.

A mesma resolução proíbe a uti-lização de embriões humanos parafins de pesquisa, permitindo a interven-ção com fins de diagnóstico ou de tra-tamento de doenças genéticas ou he-reditárias quando houver garantias re-ais de sucesso da intervenção, sendoobrigatório o consentimento informa-do do casal sobre todos os procedimen-tos a serem utilizados.

Por fim, limita a 14 dias apósa fertilização o tempo máximo de

Page 119: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

121

desenvolvimento embrionário in vitro.A referida resolução adotou a tendên-cia mundial de não permitir o desen-volvimento in vitro além desse prazo,quando começa, então, a formação dotubo neural, dando início à formaçãodo sistema nervoso central.

5. Diagnóstico genético in vitro

O diagnóstico genético realizadodurante a fase embrionária in vitropermite identificar alteraçõescromossômicas nos embriões antes deos mesmos serem transferidos para acavidade uterina. O avançotecnológico permite a realização doprocedimento com segurança para odesenvolvimento da futura criança. Éimportante destacar que, nesta fase dedesenvolvimento embrionário, cadablastômero pode originar um novoembrião.

Atualmente, em todo o mundo, odiagnóstico genético pré-implantaçãouterina é ainda considerado um pro-cedimento experimental. Desta forma,mesmo constituindo-se uma terapêu-tica genética, deve ser considerado decaráter experimental, devendo perma-necer como um procedimento de inves-tigação.

A Resolução CFM n° 1.358/92regula que as técnicas de RA podemser utilizadas no diagnóstico e trata-mento de doenças hereditárias e ge-néticas, quando perfeitamenteindicadas e com suficientes garantiasde sucesso. Fica evidente que a preo-cupação do legislador foi impedir amanipulação e a experimentação em-brionária sem a necessária objetivida-de científica, evitando-se desvios éti-cos e bloqueando-se a especulação

científica. A única finalidade admiti-da é a avaliação da viabilidade em-brionária ou o diagnóstico e tratamen-to de doenças genéticas e/ou hereditá-rias de alta prevalência.

6. A gravidez de substituição

O desenvolvimento da medicinareprodutiva criou uma nova realidadeao permitir que casais, antes sem pos-sibilidades de constituir sua prole comseus elementos genéticos, pudessemsatisfazer esse desejo natural do serhumano. A gravidez de substituição, noentanto, ao permitir essa possibilida-de, criou perplexidade e suscitou umgrande debate sobre as fronteiras daética e do progresso científico. Umadas questões colocadas nesse debatediz respeito ao poder, ou ao limite quedeve ser imposto ao homem, de inter-ferir nos processos biológicos da repro-dução humana. A interposição de umterceiro elemento, visível e conhecido,na vida afetiva e familiar do casal in-troduz na questão, sem dúvida, um for-te componente emocional, ético e jurí-dico.

Com o domínio do homem sobrea reprodução humana e a manipula-ção genética através da bioengenharia,assiste-se a uma crescente demandapor regulamentações que garantam aproteção dos valores fundamentais dapessoa; no entanto, essa proteção temse mostrado totalmente inadequada einsuficiente. No mesmo sentido, surgeuma significativa preocupação, mun-dial, com os desafios jurídicos que otema encerra. São muitas as questõescolocadas aos juristas: desde a defini-ção de um estatuto do embrião até aproteção de bens essenciais como a

Page 120: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

122

unidade familiar, a salvaguarda dovalor da procriação e a licitude dosmeios e dos fins que caracterizam suasaplicações no campo científico.

As legislações de diversos países,em um primeiro momento, adquiriramuma certa uniformidade de orientaçãono sentido de considerar de nulidadeabsoluta os contratos sobre materni-dade de substituição, portanto semefeitos jurídicos. A intenção dos legis-ladores foi a de evitar e prevenir a ex-ploração comercial, inclusive estabe-lecendo sanções penais à publicidade,incitação e intermediação levada acabo por pessoas ou instituições.

A primeira tentativa de estabele-cer uma legislação sobre o assunto,proposta pelos Estados Unidos, ado-tou como requisito principal a presen-ça de vínculo genético da criança comum dos componentes do casal, de talmaneira que se encontre na famíliauma referência genética segura. Se-guindo o mesmo princípio, o ReinoUnido admitiu em sua legislação amaternidade de substituição, no entan-to incorporou a intervenção da autori-dade judicial para controlar os requi-sitos do contrato consensual e alegitimação do recém-nascido.

Na Itália, a Câmara de Deputa-dos comprometeu o Governo a corro-borar, com o necessário apoiolegislativo, as funções do Comitê Na-cional para a Bioética, afirmando oprincípio da não-comercialização docorpo humano e de seus produtos,excluindo toda forma de apropriaçãoprivada, bem como empreender inicia-tivas legislativas que considerem a ori-entação comunitária e o compromis-so da Itália com o Projeto GenomaHumano, com referência particular às

novas biotecnologias e métodos de fe-cundação humana assistida.

Toda essa preocupação demons-tra a importância e complexidade queo assunto encerra. Os limites entre aautodeterminação da pessoa e a suaplena satisfação, o desenvolvimentocientífico na área da reprodução as-sistida e a ética da intervenção nosprocessos biológicos da reproduçãohumana, cada vez tornam-se mais es-treitos, exigindo uma pronta respostasocial para contê-los.

A intervenção do homem nos pro-cessos reprodutivos, rompendo com asrelações biológicas entre os seres huma-nos, exige uma permanente e severa vi-gilância no sentido de impedir a genera-lização e a banalização da procriaçãotecnológica. A rápida transferência deconhecimentos, associada ao fantásticodesenvolvimento da biotecnologia, levaà imperiosa necessidade de elaboraçãode legislações que controlem e conte-nham esse desenvolvimento, colocando-o dentro de um contexto ético, moral ejurídico que garanta a autodetermina-ção do indivíduo – porém assegurandoo respeito dos valores fundamentais dapessoa humana, a proteção do embriãoe a garantia de um desenvolvimento sau-dável da criança.

No Brasil, a Resolução CFM n°1.358/92 permite a utilização da gra-videz de substituição, desde que existaimpedimento físico ou clínico para quea mulher, doadora genética, possa le-var a termo uma gravidez. Essa condi-ção impede a vulgarização do proce-dimento, restringindo sua utilização aindicações médicas absolutas. Em con-formidade com a tendência internacio-nal, restringe a receptora biológica aoambiente familiar, permitindo que a

Page 121: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

123

volvimento psíquico da criança. Asconseqüências jurídicas, psicológicase éticas advindas dessa relação sãoperfeitamente previsíveis. A afetividadepassa a ser estabelecida entre a mãesubstituta, biológica, e o filho que ge-neticamente não lhe pertence. A rela-ção econômica, fria e impessoal, nãoencerra o amor e o sentimentohumanístico da doação.

Finalmente, a intervenção na re-produção humana através da ciênciae da tecnologia é ética e moralmenteadmissível, desde que respeite os va-lores fundamentais do ser humano, aunidade familiar, a salvaguarda dosvalores da reprodução, a licitude dosmeios e dos fins e a utilização éticadesses conhecimentos em benefício dahumanidade.

Bibliografia

Anjos MF dos. Bioética; abrangência edinamismo. O Mundo da Saúde1997;21(1):4-12.

APUD Pio XII

Brasil. Constituição 1988. Constituiçãoda República Federativa do Brasil.Brasília: Imprensa Nacional, 1989.

Cabau A, Senarclens M. Aspectos psi-cológicos da infertilidade. São Paulo:Manole, 1992.

Caporale M. Aspectos civiles y penalesde la maternidad por encargo. Medicinae ética 1996;7(3):305-25.

del Castillo BPF. Aspectos jurídicos y éti-cos de la procreación asistida. Medici-na e ética 1994;5(4):443-56.

gestação aconteça dentro da família,criando os laços de afetividade neces-sários para o desenvolvimento saudá-vel da futura criança. No mesmo sen-tido, impede qualquer caráter lucrati-vo ou comercial na relaçãoestabelecida.

Mesmo consciente das possíveiscomplicações jurídicas que possamfuturamente advir de utilização dessesprocedimentos, é importante que seestenda o direito da utilização das re-feridas técnicas a todos os casais comdistúrbios da reprodução. De outra for-ma, seria uma imperdoável discrimi-nação à mulher portadora de uma in-capacidade física ou clínica que a im-peça de desenvolver uma gravidez. Ainviolabilidade da autodeterminaçãodo indivíduo deve ser respeitada, des-de que a tecnologia disponível permi-ta atuar em seu benefício e que princí-pios morais e éticos sejam preserva-dos. A preocupação basilar deve serfocada na preservação dos direitos doembrião e da criança, garantindo-lhesum desenvolvimento saudável dentroda família.

A mãe genética, doadora, e a mãebiológica, receptora, devem estar liga-das por laços familiares e deafetividade para que a criança nasci-da dessa relação encontre o ambientepropício para um desenvolvimentobiopsíquico-social desejável. A parti-cipação de um terceiro elemento, nocaso a mãe biológica, criando um pe-rigoso triângulo reprodutivo, fica bas-tante minimizada quando a gravidezocorre dentro do ambiente familiar.Essa relação, quando estabelecida atra-vés de interesses econômicos, anula aafetividade e rompe o vínculo familiar,com graves repercussões para o desen-

Page 122: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

124

Conselho Federal de Medicina (Brasil).Parecer CFM nº 23, de 11 de setembrode 1996. A Resolução CFM nº 1358/92, que adota normas éticas para a uti-lização de técnicas de reprodução assis-tida, proíbe o descarte ou destruição depré-embrião criopreservado. Porém, ne-cessário se faz que o CFM promova tra-balhos com o objetivo de aprofundar es-tudos sobre a necessidade de atualiza-ção das referidas normas sobre este eoutros questionamentos a respeito.Relator: Antônio Henrique Pedrosa Neto.

Franco JG Jr. Donor anonymity anddonation betweem family members.Hum Reprod 1995;10:1333.

Franco JG Jr. Frozen embryos in Brazil.Hum Reprod 1995;10:3082-3.

Leite EO. Procriações artificiais e o di-reito. São Paulo: Ed. Revista dos Tribu-nais, 1995.

Munro J, Leeton J, Horsfall T.Psychosocial folow up pf families froma donor oocyte programme: anexploratory study. Reprod Fertil Dev1992;4:725-30.

Pessini L, Barchifontaine CP. Problemasatuais de bioética. São Paulo: Loyola,1994.

LaVertu DS, Parada AML. Analisis dela nuevas tecnicas de reproducciónasistida: una perspectiva de genero. In:Gómez EG, editora. Genero, mujer ysalud en las americas. Washington:OMS/OPS, 1993: 232-41. (Publicacióncientifica, 541)

Wood EC. Oocyte donation: recentstrends and concerns. Med J Aust1994;160:282-4.

Page 123: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

125

Débora DinizMarcos de Almeida

Introdução

O tema do aborto é, dentre a to-talidade das situações analisadas pelaBioética, aquele sobre o qual mais setem escrito, debatido e realizado con-gressos científicos e discussões públi-cas. Isso não significa, no entanto, quetenham ocorrido avanços substanciaissobre a questão nestes últimos anos oumesmo que se tenham alcançado al-guns consensos morais democráticos,ainda que temporários, para o proble-ma. Ao contrário. A problemática doaborto é um exemplo nítido tanto dadificuldade de se estabelecer diálogossociais frente a posições morais dis-tintas quanto do obstáculo em se criarum discurso acadêmico independentesobre a questão, uma vez que a pai-xão argumentativa é a tônica dos es-critos sobre o mesmo. Para um não-iniciado, a maior dificuldade ao serapresentado à literatura relativa aoaborto é discernir quais são os argu-mentos filosóficos e científicos con-sistentes dentre a infinidade de ma-

Bioética e Aborto

nipulações retóricas que visam ape-nas arrebatar multidões para o cam-po de batalha travado sobre o abor-to.

Nesse contexto, não é tarefa fácilapresentar um panorama dos estudosbioéticos pertinentes ao assunto. Mis-turam-se textos acadêmicos, políticose religiosos, e selecionar quais os maissignificativos para o debate parece sersempre uma tarefa injusta. E, em al-guma medida, o é. Entretanto, não foipreocupação deste capítulo contem-plar todos os pesquisadores que escre-veram sobre o tema. Selecionamos al-guns escritos pontuais que marcaramo debate contemporâneo e, a partir dosargumentos de seus autores, traçamosum panorama bioético acerca doaborto.

O capítulo está dividido em trêspartes, assim distribuídas: na primeira,esclarecemos a terminologia e os princi-pais tipos de aborto; em seguida, apre-sentamos dados sobre legislação com-parada, para, na terceira parte, noscentrarmos no debate bioético propria-mente dito sobre o tema.

Page 124: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

126

Terminologia e tipos deaborto

Uma avaliação semântica dosconceitos utilizados pelos pesquisado-res que escreveram (e escrevem) so-bre o aborto seria de extrema valia paraos estudos bioéticos. A variedadeconceitual é proporcional ao impactosocial causado pela escolha de cadatermo. Infelizmente, e isso é claro paraqualquer pesquisador interessado notema, não se escolhem os conceitosimpunemente. Cada categoria possuisua força na guerrilha lingüística, al-gumas vezes sutil, que está por trás dasdefinições selecionadas. Fala-se deaborto terapêutico como sendo abor-to eugênico, deste como aborto seleti-vo ou racista, numa cadeia de defini-ções intermináveis que gera uma con-fusão semântica aparentementeintransponível ao pesquisador. No en-tanto, ao invés de se deixar abalar peladiversidade conceitual, o primeiro pas-so de uma pesquisa sobre o aborto édesvendar quais pressupostos moraisestão por trás das escolhas. Há umacerta regularidade moral na seleção decada conceito.

Para este capítulo, utilizaremos anomenclatura mais próxima do discur-so médico oficial, por considerá-la aque mais justamente representa as prá-ticas a que se refere. Basicamente,pode-se reduzir as situações de abortoa quatro grandes tipos:

1. Interrupção eugênica da gesta-ção (IEG): são os casos de abor-to ocorridos em nome de práticaseugênicas, isto é, situações emque se interrompe a gestação porvalores racistas, sexistas, étnicos,

etc. Comumente, sugere-se o pra-ticado pela medicina nazistacomo exemplo de IEG quandomulheres foram obrigadas a abor-tar por serem judias, ciganas ounegras (1). Regra geral, a IEG pro-cessa-se contra a vontade da ges-tante, sendo esta obrigada a abor-tar;

2. Interrupção terapêutica da ges-tação (ITG): são os casos de abor-to ocorridos em nome da saúdematerna, isto é, situações em quese interrompe a gestação parasalvar a vida da gestante. Hoje emdia, em face do avanço científicoe tecnológico ocorrido na medi-cina, os casos de ITG são cadavez em menor número, sendo ra-ras as situações terapêuticas queexigem tal procedimento;

3. Interrupção seletiva da gesta-ção (ISG): são os casos de abor-to ocorridos em nome de anoma-lias fetais, isto é, situações em quese interrompe a gestação pelaconstatação de lesões fetais. Emgeral, os casos que justificam assolicitações de ISG são de pato-logias incompatíveis com a vidaextra-uterina, sendo o exemploclássico o da anencefalia (2);

4. Interrupção voluntária da ges-tação (IVG): são os casos deaborto ocorridos em nome daautonomia reprodutiva da gestan-te ou do casal, isto é, situaçõesem que se interrompe a gestaçãoporque a mulher ou o casal nãomais deseja a gravidez, seja elafruto de um estupro ou de umarelação consensual. Muitas vezes,

Page 125: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

127

as legislações que permitem a IVGimpõem limites gestacionais àprática.

Com exceção da IEG, todas asoutras formas de aborto, por princípio,levam em consideração a vontade dagestante ou do casal em manter a gra-videz. Para a maioria dos bioeticistas,esta é uma diferença fundamental en-tre as práticas, uma vez que o valor-autonomia da paciente é um dos pila-res da teoria principialista, hoje a maisdifundida na Bioética (3). Assim, noque concerne à terminologia, tratare-mos mais especificamente dos três úl-timos tipos de aborto, por serem os quemais diretamente estão em pauta nadiscussão bioética.

Em geral, ISG é também denomi-nada por ITG, sendo esta a justaposi-ção de termos mais comum. Na ver-dade, muitos pesquisadores utilizamITG como um conceito agregador parao que subdividimos em ISG e ITG.Esta é uma tradição semântica herda-da, principalmente, de países onde alegislação permite ambos os tipos deaborto, não sendo necessária, assim,uma diferenciação entre as práticas.No entanto, consideramos que, mes-mo para estes países onde o conceitoITG é mais adequado, em alguma me-dida ele ainda pode gerar confusões,uma vez que há limites gestacionaisdiferenciados para os casos em que seinterrompe a gestação em nome dasaúde materna ou de anomalias fetaisAlém disso, o alvo das atenções é dife-rente nos casos de ISG e ITG: no pri-meiro, a saúde do feto é a razão doaborto; no segundo, a saúde materna.O outro motivo que nos fez diferenciara saúde materna da saúde fetal para a

escolha da terminologia a ser adotadafoi o fato de vários escritores denomi-narem a ISG de IEG. Este é um exem-plo interessante do que denominamos“terminologia de guerra”. O termo “se-letivo”, para nós, remete diretamenteà prática a que se refere: é aquele fetoque, devido a malformação fetal, fazcom que a gestante não deseje o pros-seguimento da gestação. Houve, é cla-ro, uma seleção, só que em nome dapossibilidade da vida extra-uterina ouda qualidade de vida do feto após onascimento. Tratar, no entanto, o abor-to seletivo como eugênico é nitidamen-te confundir as práticas. Especialmen-te porque a ideologia eugênica ficouconhecida por não respeitar a vonta-de do indivíduo. A diferença fundamen-tal entre a prática do aborto seletivo ea do aborto eugênico é que não há aobrigatoriedade de se interromper agestação em nome de alguma ideolo-gia de extermínio de indesejáveis,como fez a medicina nazista. A ISGocorre por opção da paciente.

Muitos autores, especialmenteaqueles vinculados a movimentos so-ciais, tais como o movimento de mu-lheres, preferem falar em autonomiareprodutiva ao invés de IVG (4). Naverdade, entre ambos os conceitos háuma relação de dependência e nãode exclusão. Apesar de o valor querege a IVG ser o da autonomiareprodutiva, consideramos que auto-nomia reprodutiva é um conceito“guarda-chuva” que abarca não ape-nas a questão do aborto, mas tudo oque concerce à saúde reprodutiva. Naverdade, como já foi dito, o princípiodo respeito à autonomia é o pano-de-fundo de boa parte das discussões con-temporâneas em Bioética.

Page 126: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

128

Além da variedade conceitual,outro ponto interessante, no tocanteao estilo dos artigos sobre o aborto,é a escolha dos adjetivos utilizadospelos autores para se referirem a seusoponentes morais. Não raro, encon-tram-se artigos que chamam os pro-fissionais de saúde que executamaborto como “aborteiros”, “homici-das”, “assassinos” ou “carniceiros”(5). Na verdade, há relatos de casosde clínicas de aborto que foramincendiadas e os profissionais quenelas trabalhavam agredidos por gru-pos contrários ao aborto – grupos“defensores da vida”, como seautodenominam. Fala-se do fetoabortado como “vítima inocente” oumesmo “criança inocente”. Adjetivoscomo “hipócrita” ou “criminoso” va-lem para ambos os lados, sejam osproponentes ou oponentes da práti-ca. Nem mesmo sobre o resultado deum aborto há consenso: as denomi-nações variam desde “embrião”e“feto” até “criança”, “não-nascido”,“pessoa” ou “indivíduo” (6,7).

Um exemplo clássico, porémpontual, desta retórica sedutora e vio-lenta que é a tônica do debate sobreo aborto é o vídeo Grito Silencioso,editado por grupos contrários à prá-tica do aborto. O filme mostra as re-ações de um feto de 12 semanas(tempo máximo permitido por váriaslegislações para a IVG) durante umaborto. Vale a pena conferir um tre-cho da narração em que o especta-dor é convidado a identificar-se como feto: “Esta pequena pessoa, com12 semanas, é um ser humano com-pletamente formado e absolutamen-te identificável. Tem apresentado on-das cerebrais desde as seis sema-

nas...” (8). Não é preciso recorrer aargumentos baseados nas recentesdescobertas da neurofis io-embriologia, como fizeram algunsautores na intenção de provar a im-possibilidade de um feto de 12 sema-nas sentir dor (9,10), para analisar oobjetivo de um vídeo como este. Aidéia era provocar, no espectador,a compaixão pela suposta dor dofeto durante o aborto e, conse-quentemente, sustentar o princípiodo direito à vida desde a fecundaçãoque, como veremos mais adiante, éum dos pilares da argumentação con-trária ao aborto. No entanto, é preci-samente esse tipo de discurso quegera uma das maiores dificuldades naseleção da literatura sobre o aborto:misturam-se argumentos científicos ecrenças morais com a mesma facili-dade com que se combinam ingredi-entes em uma receita de bolo. E estaé uma prática comum tanto entre pro-ponentes quanto oponentes da ques-tão. A dosagem de delírio varia naintensidade da paixão.

Legislação comparada

A Conferência Internacional sobrePopulação e Desenvolvimento ocorri-da no Cairo, em 1994, é consideradaum marco para as legislações e as po-líticas internacionais e nacionais acer-ca do aborto. Considera-se que, atéantes da conferência do Cairo, o temado aborto não compunha a agenda desaúde pública de inúmeros países (11).Segundo Kulczycki et al, “...em Cairo,pela primeira vez, um fóruminterministerial reconheceu que as

Page 127: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

129

complicações do aborto apresentamameaças sérias à saúde pública e re-comendam que, onde o acesso aoaborto não é contra a lei, ele deveser efetuado em condições segu-ras...”(11).

O aborto, juntamente à práticado coito interrompido, tem sido du-rante os séculos XIX e XX o métodode controle de natalidade mais utili-zado e difundido (12). Em nome dis-so, as taxas mundiais de aborto sãobastante elevadas, tendo como recor-distas alguns países da América La-tina e África. Apesar de difícilmensuração, uma vez que o aborto éconsiderado crime em inúmeros paí-ses, calcula-se que a taxa mundial deabortos por ano esteja entre 32 e 46abortos por 1000 mulheres na idadede 15 a 44 anos, havendo uma enor-me variação entre os países, a de-pender da prevalência dos métodosanticonceptivos, de sua eficácia e dasleis e políticas relativas ao aborto(11). Nos países ocidentais, o picoetário do aborto ocorre entre as mu-lheres de 20 anos, como, por exem-plo, na Inglaterra, onde 56% dosabortos são praticados por mulherescom menos de 25 anos, ao passo quenos Estados Unidos este número é de61% na mesma faixa etária.

Segundo dados do Instituto AlanGuttmacher sobre o aborto na Amé-rica Latina, há uma correlação acen-tuada entre renda e acesso ao abor-to praticado por médicos. Enquantoapenas 5% das mulheres pobres ru-rais têm acesso ao aborto médico,este número é de 19% entre as mu-lheres pobres urbanas e de 79% en-tre as mulheres urbanas de renda

superior (13). No Brasil, para o anode 1991, estimou-se que o total deabortos induzidos foi de 1.443.350,constituindo uma taxa anual, por 100mulheres de 15 a 49 anos, de 3,65.Nos Estados Unidos, por exemplo,esta taxa é de 2,73 (13).

Se, por um lado, o levantamen-to demográfico acerca do número deabortos praticados no mundo é con-testável, uma vez que se lida com es-timativas ante a ilegalidade da práti-ca, o estudo das legislações com-paradas se mostra mais confiável.O melhor estudo sobre o assunto é orealizado por Rahman et al que vemfazendo um acompanhamento da le-gislação mundial desde 1985, oca-sião da publicação do primeiro rela-tório comparativo, sendo que o últi-mo levantamento foi publicado emjunho de 1998, com dados relativosaté janeiro do mesmo ano (14). Se-gundo dados do relatório, 61% dapopulação mundial vive em paísesonde o aborto induzido (IVG) é per-mitido por algumas razões específi-cas ou não apresenta restrições, aopasso que 25% da população resideem países onde o aborto é radical-mente proibido (14). Os autores dorelatório argumentam, ainda, quecomparando dados da primeira pes-quisa – de 1985 – com os levanta-dos no último estudo há um direcio-namento mundial para a liberali-zação do aborto. Dos vinte países quemodificaram suas legislações des-de o primeiro estudo, 19 o fizerampara legislações mais abertas paraa prática. Vale a pena conferir adisposição legal mundial acerca doaborto:

Page 128: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

130

7991-oãigeramocodrocaed,otrobaedsielsanoãçirtseralep,sesíaP

oaoãçirtseRotrobA

sacirémAsAebiraCoe

lartneCaisAetseLaidéMadetroNe

acirfÁ

luSeetseLoeaisÁad

ocifícaPaporuE araaS-buSacirfÁ

ravlasaraPadadiva

rehlum

-lisarB E oãtsinagefA hsedalgnaB adnalrI alognA racsagadaM

-elihC DN -otigE AS aisénodnI nineB ilaM

aibmôloC ãrI soaL.peR

-ortneCanacirfA

ainâtiruaM

acilbúpeRanacinimoD

onabíL nemeiMedahC

ognoCsuitiruaM

rodavlaSlEDN

-aibíL AP lapeN )ellivazzarB( regiN

alametauGairíSnamO

AP-SAavoNaupaP

éniuGodatsoC

mifraMairégiN

itiaHsodarimE

sebarÁAP-AS

sanipiliFmeD.peRognoCod

FlageneS

sarudnoH Iê nem aknaLirS oãbaG ailámoS

-ocixéM E ogoT -oãduS E

augáraciNAP-PS

uassiB-éniuGAP-AS Tâ ainazn

amánaPF-E-AP

ainêuQ

iaugaraP otoseL adnagU

aleuzeneV

edúaSacisíF

-anitnegrAE )odatimil(

tiawuKF-AP-AS

oãtsiuqaPainôloPF-I-E

anikruB-ossaF E

-iwalaM AS

aivíloBI-E

-socorraMAS

ad.peRaieróC

F-I-E-ASidnuruB euqibmaçoM

aciRatsoCaibarAatiduaSAP-AS

-aidnâliaT EseõramaC

F-I-EadnauR

rodauqEI-E

)odatimil(rtirE éa

bmiZ á eubE

ureP itE ó aip

-iaugurU E niuG é uassiB-

edúaSlatneM

aciamaJAP

airéglA ailártsuAodadnalrI

etroNstoB u ana

I-E-FbiL é air

I-E-F

&dadinirTogaboT

euqarII-E-F-S

gnoKgnoHI-E-F

lagutroPE-F-AP Gâ aibm

maN í aibI-E-F

learsII-E-F

aisálaMahnapsE

E-FanaG

I-E-F

ainâdroJavoN

aidnâleZI-F

açíuS oeLarreS a

seõtseuQ-oceoicoS

sacimôn

aidnÍF-E-AP

-oãpaJ AS

nawiaTF-I-AP-AS

Page 129: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

131

* - limite gestacional de 12 semanas

Y - limite gestacional de 14 semanas

y - limite gestacional de 24 semanas

# - limite gestacional de 90 dias

** - limite gestacional de 18 semanas

NOTAS: para os limites gestacionais durante agravidez, calcula-se a partir da última menstruação,a qual geralmente considera-se ter ocorrido duassemanas antes da concepção. Por isso, os limitesgestacionais calculados a partir da data daconcepção devem ser estendidos em duas semanas.

ND - defesa de necessidade é duvidosa

SA - autorização do marido é exigida

PA - autorização dos pais é exigida

E - aborto permitido em casos de estupro

I - aborto permitido em casos de incesto

F - aborto permitido em casos de anomalia fetal

L - a lei não indica limites gestacionais

PV - a lei não limita previamente o aborto

Fonte: (14)

meSseõçirtserovitomed

abuC * - AP ainêmrA *aijobmaC

AP-Y ainâblA * luSodacirfÁ *

sodatsEsodinU - VP oãtsiabrezA * anihC

L-AP-airtsúA Y

ociRotroPVP aigroeG * ailógnoM * -suraleB Y

-ádanaC L ãtsiuqazaK o*odaiéroC

-etroN L-ezreH-ainsóB

anivog * - AP

.peRygryK *z

arupagniS airágluB *

oãtsiuqijaT * ãnteiV - L aicáorC * - AP

aisinuT * akehcT.peR *AP

aiuqruT *P-AS

acramaniD *AP

oãtsinemkruT * ainôtsE *

oãtsiuqebzU * açnarF * - AP

-ahnamelA Y

aicérG * - AP

-airgnuH Y

-#ailátI AP

aivtaL *

ainâutiL *

ainôdecaM *AP

aivodloM *

-adnaloH VP

ageuroN *AP

-ainêmoR Y

deFaissúR *

aiuqávolSpeR * - AP

ainêvolS *AP

aicéuS **

ainârcU *

aiválsoguY *AP

Page 130: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

132

Debate bioético

Caso fosse possível estabeleceruma escala onde os extremos morais

sobre o aborto estivessem nas pontas,a representação seria algo do tipo:

O quadro acima, apesar de seruma redução grosseira da realidade àlinguagem gráfica, possui o mérito defacilitar a compreensão e localizaçãodas idéias sobre o aborto. Entre os ex-tremos morais representados, há umainfinidade de pequenas variâncias que,aparentemente, são incoerentes aosprincípios maiores, sejam eles o daheteronomia ou o da autonomia. Eisalguns exemplos: certos grupos defen-sores da heteronomia da vida são, es-pecificamente no que se refere ao abor-to, defensores da tangibilidade da vida.O exemplo mais conhecido desta com-binação é o grupo chamado “Católi-cas Pelo Direito de Decidir”. Este mo-vimento é composto por católicas, se-guidoras da doutrina cristã, que defen-dem o direito de a mulher decidir so-bre a reprodução. Pelo vínculo religio-so, estas mulheres encontram-se sob oideal da heteronomia (a vida é um domdivino e, portanto, não lhes pertence),porém, ao mesmo tempo, são adeptasde um movimento social que defendea autonomia. Outro exemplo são al-guns líderes políticos reconhecidamen-te defensores da liberdade do indiví-duo e, conseqüentemente, defensoresda autonomia individual, porém adep-tos do princípio da heteronomia da

vida no que concerne ao aborto (noBrasil, há o exemplo de um deputadofederal de esquerda com um projeto delei contrário a qualquer forma dedescriminalização do aborto). Istoocorre basicamente porque, no cam-po da moral, com raras exceções,as pessoas não se comportam coma coerência lógica comum aos trata-dos de filosofia moral. As escolhasmorais processam-se de inúmerasmaneiras – com influências da famí-lia, do matrimônio, da escola, dos mei-os de comunicação em massa, etc. –o que acaba por mesclar princípios ecrenças inicialmente inconciliáveis. Naverdade, grande parte da populaçãoencontra-se confusa entre os extremosmorais acima representados. Poucossão os grupos ou movimentos sociaise religiosos que se identificariam comos mesmos.

No entanto, a eficácia do gráficoestá na propriedade de resumir o ob-jeto de conflito entre os bioeticistas.Grande parte dos escritos sobre o abor-to gira em torno dos princípios daheteronomia e da autonomia. Assim,para fins deste capítulo, chamaremosos defensores da heteronomia da vidae os defensores da autonomiareprodutiva, respectivamente, como

Heteronomia da vida _____________________ Autonomia reprodutiva

Santidade da vida _____________________ Tangibilidade da vida

Aborto é crime _____________________ Aborto é moralmente neutro

Page 131: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

133

oponentes e proponentes da questãodo aborto. Esta é apenas uma manei-ra de agregar as diferenças entre osgrupos com o intuito de esclarecer poronde se conduz, hoje, o debate sobreo aborto em Bioética. Além disso, osextremos morais, exatamente por suaradicalidade, possuem propriedadesheurísticas na análise da questão.

O argumento principal dos defen-sores da legalização ou descrimi-nalização do aborto é o do respeito àautonomia reprodutiva da mulher e/oudo casal, baseado no princípio da li-berdade individual, herdeiro da tradi-ção filosófica anglo-saxã cujo pai foiStuart Mill (15). Na Bioética, o abortonão é tema exclusivo de mulheres oude militantes de movimentos sociais;a idéia de autonomia do indivíduopossui uma penetração imensa naBioética laica, especialmente para osautores simpatizantes da linha norte-americana. É em torno do princípio dorespeito à autonomia reprodutiva queos proponentes da questão do abortoagregam-se. E, talvez, o que melhor re-presente a idéia de autonomiareprodutiva para os proponentes sejaa analogia feita em 1971, porThomson, no artigo A Defense ofAbortion, entre a mulher que não de-seja o prosseguimento da gestação e amulher presa, involuntariamente, a umviolinista famoso (16). Vale conferir umpequeno trecho da fantástica históriade Thomson:

“...Você acorda no meio da ma-nhã e se vê, lado a lado, na cama comum violinista inconsciente. Um famo-so violinista inconsciente. Ele desco-briu que tinha uma doença renal fatale a Sociedade dos Amantes da Músi-ca, após avaliar todos os recursos

médicos disponíveis, descobriu quevocê era a única que tinha exatamen-te o tipo sangüíneo capaz de socorrê-lo. Eles tinham, então, lhe sequestradoe, na noite anterior, o sistema circula-tório do violinista fora ligado ao seu,de forma que seus rins poderiam serusados para extrair as impurezas dosangue dele bem como as do seu san-gue. Neste momento, o diretor do hos-pital lhe diz: “Entenda, nós nos senti-mos mal pelo que a Sociedade dosAmantes da Música fizeram com você— nós jamais permitiríamos, se sou-béssemos antes. Mas agora eles já ofizeram, e o violinista está ligado avocê. Para desligá-lo, ele morrerá. Masnão se desespere, será apenas por novemeses. Depois disso, ele irá recuperar-se com alimentação própria e poderáser desligado de você a salvo...”(16).

Esta história provocou uma ver-dadeira onda de discussões e debates,tendo aqueles que argumentavam queo exemplo de Thomson serviria ape-nas para casos onde a gestação foi fru-to de violência sexual e outros que sus-tentavam que o respeito ao princípioda autonomia era a questão-chave dorelato.

Já os oponentes do aborto têmcomo nó a heteronomia, isto é, a idéiade que a vida humana é sagrada porprincípio (17). Na Bioética, os oponen-tes do aborto não são apenas aquelesvinculados a crenças religiosas, sendo,ao contrário, esta uma idéia bastantedifundida até mesmo entre osbioeticistas laicos (esta aceitação daidéia da intocabilidade da vida huma-na entre os bioeticistas laicos fez comque Singer falasse em “especismo” doHomo sapiens, ou seja, um discursoreligioso baseado nos pressupostos

Page 132: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

134

científicos da evolução da espécie e nasuperioridade humana) (18). Na ver-dade, o princípio da heteronomia davida está tão arraigado na formaçãodos profissionais de saúde que temascomo a eutanásia e a clonagem nãosão bem-vindos. A crença em um sen-tido para a vida humana além daorganicidade é muito difundida nomundo ocidental cristão (6).

Se, por um lado, os proponentesda legalização do aborto encontramabrigo no princípio da autonomiareprodutiva e, por outro, os oponentesno princípio da heteronomia da vidahumana, as diferenças entre os doisgrupos se acentuam ainda mais nosdesdobramentos argumentativos des-tes princípios. Enquanto os proponen-tes se unem em torno do valor-auto-nomia, os oponentes esforçam-se pordesdobrar o princípio da heteronomiaem peças de retórica que irão deter-minar, de uma vez por todas, o debatesobre o aborto. A partir do instante emque os desdobramentos argumen-tativos dos oponentes passaram a fa-zer parte do discurso bioético em tor-no do aborto, a discussão tomou ru-mos jamais imaginados. Desde então,os oponentes se fazem presentes comum discurso ativo, ao passo que os pro-ponentes se caracterizam por ter assu-mido um posicionamento reativo aosargumentos contrários ao aborto. Ve-jamos o que isto significa.

Uma vez aceito o princípio daheteronomia da vida humana, os teó-ricos preocupados em sustentá-lo par-tem constantemente ao encontro deargumentos filosóficos, morais ou ci-entíficos para mantê-lo. Alguns já setornaram clássicos ao debate sobre oaborto. Iremos analisar dois deles que,

de alguma maneira, encontram-se tãointerligados que é impossível sua aná-lise em separado. O primeiro é a cren-ça de que o feto é pessoa humana des-de a fecundação; o segundo, a defesada potencialidade do feto em tornar-se pessoa humana.

Sustentar a idéia de que o feto épessoa humana desde a fecundação étransferir para o feto os direitos e con-quistas sociais considerados restritosaos seres humanos, em detrimento dosoutros animais. O principal direito – eo mais alardeado pelos oponentes daquestão do aborto – é o direito à vida.Todas as implicações jurídicas e antro-pológicas do status de pessoa humanaseriam, com isso, reconhecidas no feto.E, para os mais extremistas, sendo ofeto uma pessoa humana torna-se im-possível qualquer dispositivo legal quepermita o aborto. Finnis pode ser con-siderado um exemplo interessante desteposicionamento extremo, diz ele:

“...Sustento que o único argumen-to razoável é que o não-nascido é jápessoa humana (...) Todo ser huma-no individual deve ser visto comouma pessoa (...) Uma lei justa e éti-ca médica decente que impeça amorte dos não-nascidos não podeadmitir a exceção “para salvar a vidada mãe”(7).

Já a segunda idéia, a de que ofeto é uma pessoa humana em poten-cial, tem ainda maior número de de-fensores do que a que concede o statusde pessoa ao feto desde a fecundação.A teoria da potencialidade sugere queo feto humano representa a possi-bilidade de uma pessoa humana e,portanto, não pode ser eliminado.Para os representantes da teoria dapotencialidade, de feto para pessoa

Page 133: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

135

humana completa é apenas uma ques-tão de tempo e, é claro, de evolução.Assim, em nome da futura transforma-ção do feto em criança, sendo o gran-de marco o nascimento, o aborto nãopode ser permitido (7). Tanto para osdefensores da teoria da potencialidadequanto para os defensores da idéia deque o feto é já pessoa humana desdea fecundação, o aborto possui o signi-ficado moral e jurídico de um assassi-nato — e é desta maneira que seusexpoentes se referem à prática.

Diante de argumentos como es-tes os proponentes da legalidade doaborto assumem, então, uma argumen-tação reativa. Com algumas exceções,como os escritos de Singer (18,19), osbioeticistas defensores do aborto rara-mente utilizam uma positividade nodiscurso. Em geral, quando os argu-mentos favoráveis ao aborto se afas-tam do princípio da autonomiareprodutiva, o alvo é desconstruir a re-tórica contrária ao aborto, especial-mente as duas teorias acima expostas.Frente à defesa de que o feto é pessoahumana desde a fecundação, osbioeticistas proponentes argumentamque a idéia de “pessoa humana” éantes um conceito antropológico quejurídico e necessita, portanto, da re-lação social para fazer sentido. Ostatus de pessoa não é mera conces-são, mas sobretudo uma conquistaatravés da interação social. Por ou-tro lado, há escritores que argumen-tam que, caso o feto seja mesmo pes-soa, a mãe e/ou o casal que deseja ainterrupção da gestação é ainda maispessoa do que o feto. Por isso, seusinteresses (mãe/casal) devem preva-lecer sobre os supostos interesses dofeto (20).

A teoria da potencialidade, assimcomo entre os oponentes, tambémapresenta maior simpatia dos propo-nentes do aborto e isso pode ser vistona enorme discussão quanto aos limi-tes gestacionais em que um aborto se-ria moralmente aceitável. Em geral, oslimites estabelecidos baseiam-se emargumentações científicas tais como:quando o feto começa a sentir dor,quando iniciam os movimentos fetais,quando há a possibilidade de vida ex-tra-uterina, etc. No entanto, não sãoos dados evolutivos da fisiologia fetalque decidem quando se pode ou nãoabortar, mas sim os valores sociaisconcedidos a cada conquista orgâni-ca do feto. Sentir ou não dor, ter ounão consciência, assim como a mobi-lidade, são valores sociais que, trans-feridos para o feto, estruturam os limi-tes entre o que pode e o que não podeser feito. Alguns autores extremistasconsideram que não há diferença mo-ral entre um embrião, um feto ou umrecém-nascido e que qualquer imposi-ção de limites gestacionais (número demeses) para a execução do aborto fazparte de um exercício cabalístico (20).Vale a pena conferir o que Harris dizsobre isso:

“...Eu espero que tenhamos alcan-çado o ponto no qual ficará claro queos recém-nascidos, os bebês, osneonatos têm, qual seja, o status mo-ral dos fetos, embriões e zigotos. Se oaborto é justificável, também o é oinfanticídio (...)” (20).

Por outro lado, o argumento dapotencialidade pode permitir que seafirme que as células sexuais do serhumano são potencialmente uma pes-soa, o que enfraqueceria seu poder deconvencimento. No entanto, a maioria

Page 134: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

136

dos bioeticistas defensores do abortoargumentam que é necessária a impo-sição de limites gestacionais, sendo onascimento um divisor de águas, es-tando assim o infanticídio fora daspossibilidades (21).

Apesar das diferenças entre pro-ponentes e oponentes não-extremistas,há alguns pontos em que o diálogo tor-na-se possível. Existe, como sugeriuMori, uma maior simpatia tanto dopensamento científico quanto do sen-so comum na aceitação do abortoquando fruto de estupro, de riscos àsaúde materna ou de anomalias fetaisincompatíveis com a vida (6). As di-vergências entre as partes voltam aacentuar-se quando é preciso definiros limites gestacionais a cada prática.De fato, o grande centro das diferen-ças está na possibilidade da mulher/casal decidir sobre a reprodução. Ointeressante deste problema é que al-guns países, tais como a Rússia, en-frentam dilemas radicalmente opostos.Em um artigo chamado The MoralStatus of Fetuses in Russia,Tichtchenko e Yudin, após apresenta-rem o que denominam de “cultura doaborto” (tamanha a facilidade e atranqüilidade com que se executamabortos no país), clamam pelo reco-nhecimento de alguma moralidade nofeto (22).

Assim, apesar de bastante difun-dido, o problema da moralidade doaborto é histórica e contextualmentelocalizado e qualquer tentativa desolucioná-lo tem que levar em consi-deração a diversidade moral e culturaldas populações atingidas. Como podeser constatado, seja pela diversidadelegal acerca da temática quanto pelamultiplicidade argumentativa do debate

bioético, o aborto é uma das questõesparadigmáticas da bioética exatamen-te porque nele reside a essência trági-ca dos dilemas morais que, por suavez, são o nóconflitivo da Bioética.Para certos dilemas morais não exis-tem soluções imediatas. Os dilemas-limite, os teyku, segundo Engelhardt,dos quais, talvez, o aborto componhaum de seus melhores exemplos, são si-tuações que desafiam os inimigos mo-rais à coexistência pacífica (23).

Referências bibliográficas

Müller-Hill B. Ciência assassina: comocientistas alemães contribuíram para aeliminação de judeus, ciganos e outrasminorias durante o nazismo. Rio de Ja-neiro: Xenon, 1993.

Diniz D. O aborto seletivo no Brasil e osalvarás judiciais. Bioética 1997;5:19-24.

Beauchamps T, Childress J. Theprinciples of biomedical ethics. 4 ed. NewYork: Oxford University Press, 1994.

Lloyd L. Abortion and health care ethicsIII. In: Gillon R, editor. Principles ofhealth care ethics. Chichester, Englnd:John Wiley and Sons, 1994: 559-76.

Crianças filhas do estupro. CorreioBraziliense 1997 Out.

Mori M. Abortion and health care ethicsI: a critical analysis of the mainarguments. In: Gillon R, editor. Principlesof health care ethics. Chichester: JohnWiley and Sons, 1994: 531-46.

Finnis J. Abortion and health care ethicsII. In: Gillon R, editor. Principles ofhealth care ethics. Chichester: JohnWiley and Sons, 1994: 547-57.

6.

5.

4.

3.

2.

1.

7.

Page 135: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

137

Vídeo “O Grito Silencioso”.

Linnas RR. The working of the brain:development, memory and perception.New York: WH Freeman, 1990.

Dworkin R. Life’s dominion: anargument about abortion, euthanasiaand individual freedom. New York:Vintage Books, 1994.

Kulczycki, Andrzej; Potts, Malcom &Rosenfield, Allan. Abortion and FertilityRegulation. Vol. 347 (9016), June 15,1996, pp. 1663-1668.

Wrigley, E. A Population and history.London. Weidenfeld and Nicolson.1969.

The Alan Guttmacher Institute, 1994,Aborto clandestino: uma realidade lati-no-americana. Nova-Yorque. The AlanGuttmacher Institute.

Rahman, Anika; Katzive, Laura &Henshaw, Stanley K. A Global Reviewof Laws on Induced Abortion, 1985-1997. Vol. 24, no 2, June 1998, 56-64.

Mill JS. Sobre a liberdade. Petrópolis:Vozes, 1986.

Thomson JJ. A defense of abortion.Philosophy and Public Affairs1971;1:47-66.

França GV. Aborto: breves reflexões so-bre o direito de viver. Bioética 1994;2:29-35.

Singer P. Ética prática. São Paulo:Martins Fontes, 1993.

Kuhse H, Singer P. Should the baby live?Oxford: Oxford Press, 1985.

Harris J. Not all babies should be keptalive as long as possible. In: Gillon R,editor. Principles of health care ethics.Chichester: John Wiley and Sons, 1994:644-55.

Bermúdez JL. The moral significance ofbirth. Ethics 1996;106:378-403.

Tichtchenko P, Yudin B. The moralstatus of fetuses in Russia. CambridgeQuarterly of Healthcare Ethics1997;6:31-8.

Engelhardt TH. Los fundamentos de labioética. Barcelona: Paidós, 1995.

As citações originalmente escritas em lín-gua inglesa foram traduzidas pelos autores

23.

22.

21.

20.

19.

18.

17.

16.

15.

14.

13.

12.

11.

10.

9.

8.

Page 136: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

138

Page 137: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

139

Sérgio Danilo J. PenaEliane S. Azevêdo

O Projeto Genoma Humanoe a Medicina Preditiva:

Avanços Técnicos eDilemas Éticos

O Projeto Genoma Humano -PGH

Na história da civilização ociden-tal, os avanços tecnológicos freqüen-te-mente trazem como conseqüênciaverdadeiras revoluções sociais e eco-nômicas. Isto ocorreu, por exemplo,com o desenvolvimento da agricultu-ra, que permitiu a sedentarização dassociedades nômades; com a invençãoda bússola, que permitiu as grandesnavegações e, mais recentemente, comos desenvolvimentos da eletricidade,física nuclear, microeletrônica einformática. Sem dúvida alguma, aemergência da biotecnologia modernarepresenta um avanço técnico de igualmagnitude: o potencial de progresso é

fantástico e certamente haverá impac-tos múltiplos da nova tecnologia emnossa vida quotidiana e em nossasrelações humanas. Para nós, abiotecnologia é inquietante porquemanipula a própria vida. E torna-semais inquietante ainda quando voltaa sua atenção para a própria pessoahumana. É o caso do Projeto GenomaHumano – PGH.

O genoma humano consiste de 3bilhões de pares de base de DNA dis-tribuídos em 23 pares de cromossomose contendo de 70.000 a 100.000 genes.Cada cromossomo é constituído poruma única e muito longa molécula deDNA, a qual, por sua vez, é o cons-tituinte químico dos genes. O DNA écomposto por seqüências de unida-des chamadas nucleotídeos ou bases.

Page 138: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

140

Há quatro bases diferentes, A(ademina), T (timina), G (guamina) eC (citosina). A ordem das quatro ba-ses na fita de DNA determina o con-teúdo informacional de um determina-do gene ou segmento. Os genes dife-rem em tamanho, desde 2.000 basesaté 2 milhões de bases. Fica claro, en-tão, que os genes estruturais, que con-têm a mensagem genética propriamen-te dita, perfazem apenas aproximada-mente 3% do DNA de todo o genoma.O restante é constituído de seqüênciascontroladoras e, principalmente, deregiões espaçadoras, muitas das quaisgeneticamente inertes. O PGH propõeo mapeamento completo de todos osgenes humanos e o seqüenciamentocompleto das 3 bilhões de bases dogenoma humano. Mapeamento é o pro-cesso de determinação da posição eespaçamento dos genes noscromossomos. Seqüenciamento é oprocesso de determinação da ordemdas bases em uma molécula de DNA.A projeção é que o projeto esteja com-pleto no ano 2005, a um custo total detrês a cinco bilhões de dólares.

O PGH tem avançado em veloci-dade surpreendente. Genes expressosde centenas de tecidos humanos já fo-ram parcialmente seqüenciados apóscópia do RNA mensageiro em biblio-tecas de DNA complementar (cDNA).Mais de 800.000 destas seqüênciasparciais, chamadas ESTs (etiquetas deseqüências transcritas), já estão dispo-níveis em bancos de dados públicos(dbEST, 1998) (1), representando cer-ca de 40.000 a 50.000 genes huma-nos de um total estimado em 70.000-100.000. Já temos um mapa genético.O mapeamento destes genes e demarcadores de vários tipos no genoma

humano já está virtualmente completoem baixa e média resolução (2,3,4).O seqüenciamento em grande escalados três bilhões de pares de base queconstituem o genoma humano come-çou há menos de um ano. Apenas 60milhões de pares de base já foram ana-lisados até agora. Entretanto, são ex-celentes as perspectivas de que oseqüenciamento esteja completo em2005, como planejado originalmente(5). O PGH tem sido comparado como projeto de envio do homem à lua.Porém, como salientado por SidneyBrenner, após enviar o homem à lua omais difícil é trazê-lo de volta.Analogamente, completar oseqüenciamento não será o fim doPGH, pois teremos, então, apenas oconhecimento anatômico. O mais di-fícil será o longo processo de entendi-mento da fisiologia, patologia e farma-cologia do genoma.

Por que o tema do PGH é rele-vante para nós, no Brasil? Afinal, nãosão os nossos problemas e carênciastão básicos que tal empreitada parecealienada da nossa realidade? Múltiplosargumentos têm de ser aqui analisa-dos. Em primeiro lugar, o genoma hu-mano é um patrimônio da humanida-de. Assim, o Projeto Genoma reveste-se de um significado simbólico univer-sal muito importante. Em nossogenoma está registrada toda nossa his-tória como espécie e projetada a nos-sa potencialidade evolutiva. Sevisualizarmos a ciência como uma ten-tativa de compreender o mundo quenos cerca e de entender oposicionamento do homem neste uni-verso, o Projeto Genoma vai fundo: ohomem compreendendo-se em seu ní-vel mais essencial. Em segundo lugar,

Page 139: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

141

temos de nos interessar por todo oenorme ganho prático e conflitos éti-cos pertinentes que certamente resul-tarão do PGH (6). Este ganho serámais palpável na invenção de novastécnicas de estudo e no desenvolvimen-to de novos métodos diagnósticos eterapêuticos em medicina. Os confli-tos éticos, cujo surgimento está interli-gado aos avanços técnicos, à medidaque surgem vão revelando o quanto amoral prevalente nas sociedades mo-dernas e pluralistas acata ou questio-na determinados avanços. Inquestio-navelmente, têm especial importânciapara todos nós os aspectos sociais emorais do conhecimento gerado peloprojeto. Na mesma medida em que oque aprendermos nos permita conquis-tar novas liberdades, não trarão a re-boque ameaças às liberdades já exis-tentes? A resposta a essa indagaçãoexige uma reflexão ética profundaque deve cercar todo o ProjetoGenoma, e da qual toda a sociedadedeve participar.

A Bioética e o PGH

Por sua própria natureza, o PGHcerca-se de incertezas éticas, legais esociais (ELSI). Reconhecendo isto, oPGH dedicou 10% de seu orçamentototal à discussão destes temas. Trêsitens se destacam na agenda ELSI: 1)privacidade da informação genética;2) segurança e eficácia da medicinagenética e 3) justiça no uso da infor-mação genética (7). Subjacentes a es-tes itens há cinco princípios básicossobre os quais está sendo construídoo edifício ético consensual do PGH:

autonomia, privacidade, justiça, igual-dade e qualidade (8). O princípio daautonomia estabelece que os testesdeverão ser estritamente voluntários,após aconselhamento apropriado, eque a informação deles resultante éabsolutamente pessoal. Reconhece-se,todavia, que para que haja umaconselhamento apropriado é indis-pensável que o médico tenha conheci-mentos suficientes sobre genética. La-mentavelmente, mesmo nos EstadosUnidos, a falta de uma compreensãoclara e segura sobre o significado dospercentuais de risco está se constituin-do em grave problema ético no diálo-go entre a maioria dos médicos e seuspacientes (9). O princípio da privaci-dade determina que os resultados dostestes genéticos de um indivíduo nãopoderão ser comunicados a nenhumaoutra pessoa sem seu consentimentoexpresso, exceto talvez a familiares comelevado risco genético e, mesmo assim,após falha de todos os esforços paraobter a permissão do probando. ODNA de cada pessoa representa umtipo especial de propriedade por con-ter uma informação diferente de todosos outros tipos de informação pessoal.Mais que um relatório de exame clíni-co de rotina cujos resultados podemser transitórios e passíveis de variaçãocom dieta ou medicação, o resultadodo exame de DNA não muda: está pre-sente durante toda a vida da pessoa erepresenta sua programação biológi-ca no passado, no presente e no futu-ro. O princípio da justiça garante pro-teção aos direitos de populações vul-neráveis, tais como crianças, pessoascom retardo mental ou problemas psi-quiátricos e culturais especiais. Nãoapenas em nível pessoal mas também

Page 140: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

142

populacional, em casos específicos depopulações indígenas ou similares. Oprincípio da igualdade rege o acessoigual aos testes, independente de ori-gem geográfica, raça, etnia e classesocioeconômica. Para nós, brasileiros,fortemente marcados por tradicionaisdesigualdades de acesso aos bens desaúde, o princípio da igualdade cons-titui uma página especial de conflitoséticos que exige reflexões e ações tam-bém especiais. Finalmente, o princípioda qualidade assegura que todos ostestes oferecidos terão especificidadee sensibilidade adequados e serão re-alizados em laboratórios capacitadoscom adequada monitoragem profis-sional e ética. A questão importante éque não há maneiras legais de garan-tir que estes princípios éticos serãoaceitos e provavelmente haverápressões enormes, principalmentede interesses econômicos, para aimplementação de testes genéticossem adesão a eles. Compete, pois, aosbioeticistas e aos cientistas moralmen-te motivados trazerem estas reflexõeséticas para a sociedade. Aqui, sobre-modo, prevalece o reconhecimentoda responsabilidade moral de produ-zir o conhecimento favorecendo seusbons efeitos e limitando seus efeitosperversos (10).

Em última análise, toda a proble-mática ELSI vai convergir na interaçãosocial de três elementos: a comunida-de científica do PGH, que vai gerar onovo conhecimento, indiferente ou nãoa seus aspectos éticos; a comunidadeempresarial, que vai transformar esteconhecimento em produtos e oferecê-los à população e, finalmente, à socie-dade como um todo, que vai absorvere incorporar o novo conhecimento em

sua visão de mundo e suas práticassociais, além de consumir os novosprodutos. Que as comunidades cientí-fica e empresarial estão devidamenteestruturadas para exercer suas fun-ções, ninguém tem qualquer dúvida.Mas a quem, afinal, compete a respon-sabilidade maior de esclarecer os con-sumidores? Diferentemente de outrostipos de consumo, as pessoas terão naoferta destes produtos conseqüênciasde ordem pessoal, moral, psicológicae afetiva. Além disso, a interação en-tre cientistas, empresários e sociedadeserá transparadigmática, ou seja, de-penderá fundamentalmente dos dife-rentes paradigmas específicos que re-gem a maneira pela qual os três ele-mentos percebem e expressam a im-portância relativa da genética e do am-biente na determinação do comporta-mento e da saúde humana.

Regulamentação bioéticado PGH

Após o lançamento do PGH nosEstados Unidos, em 1989, grandenúmero de outros programasgenômicos emergiu em nível nacio-nal e internacional. Há, atualmente,programas no Reino Unido, França,Itália, Canadá, Japão, Austrália,Rússia, Dinamarca, Suécia, Holandae Comunidade Européia. Para a co-ordenação internacional destes esfor-ços foi criada a Organização doGenoma Humano (Human GenomeOrganization – HUGO). A HUGOtem escri tórios em Londres,Bethesda, Moscou e Tóquio. No Bra-sil, o escritório da HUGO funciona

Page 141: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

143

no Núcleo de Genética Médica, emBelo Horizonte. A missão da HUGOé promover a colaboração internacio-nal na iniciativa genômica humanae assistir na coordenação da pesqui-sa. A HUGO tem vários comitês, in-cluindo: mapeamento, bioinfor-mática, propriedade intelectual ebioética. Do ponto de vista de pro-priedade intelectual, a HUGOtem tido uma posição firme contra opatenteamento de ESTs que, como jáexplicado acima, são fragmentos cur-tos de DNA seqüenciados aleatoria-mente de genes codificadores de pro-teínas de função desconhecida (11).Por outro lado, a HUGO, embora es-timulando a publicação rápida e dis-ponibilidade livre de informação so-bre seqüências genômicas, é contraqualquer proibição do patenteamentode genes completos com função co-nhecida (12). O Comitê de Bioéticatem estado principalmente preocupa-do em normatizar a participação deindivíduos e populações em estudosgenômicos, especialmente com aquestão do consentimento informa-do. Recentemente, este comitê enun-ciou quatro princípios que devemnortear toda a pesquisa sobre ogenoma humano (13): (1) reconhe-cimento de que o genoma humano éparte do patrimônio da humanidade;(2) aderência a normas internacio-nais de direitos humanos; (3) respei-to pelos “valores, tradições, culturae integridade” dos participantes nosestudos; (4) aceitação e defesa dadignidade humana e da liberdade.

A UNESCO também tem tido umpapel importante na coordenação in-ternacional do PGH, principalmentecomo mediadora do diálogo Sul-Nor-

te neste contexto (14,15). Mais recen-temente, o Comitê Internacional deBioética da UNESCO aprovou umaimportante “Declaração Universal doGenoma Humano”, cuja cópia estáintegralmente transcrita no Apêndiceanexo.

O diagnóstico pré-sintomáti-co e a medicina preditiva

Qual a relação entre o genoma eas características físicas e mentais?

Como vimos acima, o genomahumano contém aproximadamente50.000 a 100.000 genes. Um gene éuma unidade funcional que geralmen-te corresponde a um segmento deDNA que codifica a seqüência deaminoácidos de uma determinadaproteína. Os produtos gênicos – asproteínas – integram, coordenam eparticipam dos processos enorme-mente complexos do nosso desenvol-vimento embrionário e do nosso me-tabolismo. O produto final destes pro-cessos de desenvolvimento e metabo-lismo é o ser humano. As caracterís-ticas observáveis deste ser humano,ou seja, sua aparência física, seu es-tado de saúde, suas emoções, cons-tituem o seu fenótipo. Ao contráriodo genoma (genótipo) que permane-ce constante por toda a vida, ofenótipo é dinâmico e muda constan-temente ao longo de toda a existên-cia do indivíduo, registrando, assim,a sua história de vida. O genótiponão determina o fenótipo; ele deter-mina uma gama de fenótipos possí-veis, uma norma de reação. A norma

Page 142: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

144

de reação é todo o repertório de viasalternativas de desenvolvimento emetabolismo que podem ocorrer nosportadores de um dado genótipo emtodos os ambientes possíveis, favo-ráveis e desfavoráveis, naturais ouartificiais. Em resumo, nosso genomanão determina um fenótipo, mas es-tabelece uma gama de possibilida-des. Qual fenótipo se concretizará vaidepender do ambiente e de suasinterações com o genótipo. Para com-plicar ainda mais, a maior parte dascaracterísticas fenotípicas são com-plexas e sujeitas à ação de váriosgenes em interação com múltiplosdeterminantes ambientais. Assim, omero conhecimento da seqüência debases do genoma humano não podeser traduzido diretamente em termosfenotípicos, exceto os mais simples.

Um conceito fundamental queemerge da discussão acima é quenão existem intrinsecamente “genesbons” nem “genes maus”. O genomahumano é muito variável – se com-pararmos os genomas de dois indi-víduos vamos encontrar, em média,uma diferença em cada 500nucleotídeos, ou seja, há 6 milhõesde posições diferentes em doisgenomas humanos. O que precisa-mos saber é qual o efeito que estasvariações exercem sobre o fenótipo.Ao nível apenas do DNA não pode-mos fazer julgamentos de valor. Parasaber se uma determinada mutaçãoterá efeito fenotípico temos, em pri-meiro lugar, de saber se ela está emum segmento transcrito (em RNAmensageiro) e traduzido (em proteí-na) do genoma, em outras palavras,se esta mutação acarretará uma mu-dança em uma proteína. Temos tam-

bém de saber qual o tipo de altera-ção na proteína, o grau de robustezestrutural da mesma (uma única tro-ca de aminoácidos pode abolir suafunção?) e o papel fisiológico da pro-teína (é uma enzima, um canaliônico, um receptor, etc.?). Quandomutações em um único gene são ca-pazes de, sozinhas, causar uma do-ença genética, falamos de um “genede grande efeito” e a doença é cha-mada “monogênica”, podendo terherança autossômica dominante,autossômica recessiva ou ligada aosexo. Por outro lado, a maioria dasdoenças comuns do homem (câncer,diabetes, arteriosclerose, hiperten-são, etc.) são multifatoriais, depen-dendo de uma interação complexa demúltiplos genes de pequeno efeito(doenças poligênicas) com o ambi-ente.

O que se pode conseguir com amedicina preditiva?

A essência da medicinapreditiva, como o próprio nome in-dica, é a capacidade de fazer predi-ções quanto à possibilidade de queo paciente venha a desenvolver al-guma doença (nível fenotípico) combase em testes laboratoriais em DNA(nível genotípico). Assim, a capaci-dade preditiva do teste vai dependerdo nível de relacionamento do genetestado com a doença. Por exemplo,imaginemos a situação de um indi-víduo jovem, filho de uma senhorana qual foi diagnosticada a coréia deHuntington, uma doença neurode-generativa autossômica dominantecausada por um gene de grande efei-to localizado em 4p16.3 (isto é, na

Page 143: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

145

banda 16.3 do cromossomo n° 4). Adetecção neste indivíduo jovem deuma mutação (mutações neste casosão causadas por expansões patoló-gicas de uma região repetitiva) per-mitirá a afirmação de que inevitavel-mente ele virá a desenvolver, no fu-turo, a mesma doença que sua mãe,independente de qualquer medidaque possa tomar (obviamente, se vi-ver por tempo suficiente, já que a do-ença geralmente manifesta-se namaturidade). Neste caso, então, te-mos um diagnóstico pré-sintomático.Por outro lado, imaginemos um ou-tro indivíduo jovem no qual foi feitoum teste de polimorfismo genético daenzima conversora da angiotensina(ECA). Foi inicialmente relatado naliteratura que o genótipo DD em umpolimorfismo deste gene estaria as-sociado com um risco de infarto domiocárdio duas vezes maior que o deindivíduos com genótipo II (16), em-bora estudos posteriores não tenhampodido evidenciar um risco tão claro(17,18). O infarto do miocárdio écausado pela coronariopatiaaterosclerótica, uma doença noto-riamente multifatorial, na qual fato-res genéticos poligênicos e fatoresambientais (dieta, fumo, atividade fí-sica, etc.) interagem. Assim, opolimorfismo da ECA é apenas umdos inúmeros polimorfismos genéti-cos envolvidos no estabelecimento deum risco, como, por exemplo,polimorfismos de genes do metabo-lismo do colesterol, polimorfismos degenes dos fatores da coagulação e dafibrinólise, polimorfismos de genes dasuperfície das plaquetas, doendotélio, do controle de proliferaçãoda musculatura lisa das artérias, etc.

Portanto, o valor do diagnósticolaboratorial do genótipo DD é extre-mamente limitado como medicinapreditiva (só escolhemos este exem-plo porque este teste específico jáestá sendo oferecido em São Paulocom marketing direto ao consumi-dor; com a contrapartida de queseria muito fácil contrabalançarqualquer aumento de risco genéti-co por meio de controle ambiental(ex., parar de fumar, emagrecer,fazer exercício aeróbico, etc.) (19).

Assim, podemos definir a gamada medicina preditiva. Por um lado,temos o diagnóstico pré-sintomáticode doenças gênicas, situação em quehá grande previsibilidade mas baixapossibilidade de modificação do ris-co de desenvolvimento da doença.Por outro, temos doenças multifa-toriais poligênicas em que um únicoteste genético tem baixa previsi-bilidade, mas as chances de se ma-nipular o ambiente para tentarevitar o desenvolvimento da doençasão grandes (Figura 1).

A maior parte das doenças cometiologia genética fica entre estes ex-tremos – são raras as doenças

puramente monogênicas (na grandemaioria das enfermidades genéticasmonogênicas há influência de outrosgenes e de fatores ambientais na de-terminação da penetrância e dograu de expressividade da doença)

Figura 1 – Previsibilidade dos testes genéticos

Page 144: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

146

e também são raras as doenças pura-mente poligênicas (na grande maioriadas doenças poligênicas há algunsgenes com efeito mais importante queoutros, que são chamados “genes mai-ores”). Como exemplo, vamos exami-nar a situação de algumas síndromesgenéticas de câncer.

Exemplo de medicina preditiva:câncer familial de mama

Após a clonagem de alguns genesde predisposição ao câncer na últimadécada, testes preditivos têm sido ofe-recidos a indivíduos com risco genéti-co. Por exemplo, em famílias com múl-tiplos casos de carcinoma medular datireóide ou com a síndrome deneoplasias endócrinas múltiplas tipo2a, a detecção de mutações no proto-oncogene RET em uma criança podepermitir a tireoidectomia profiláticaeliminando o risco de câncertireoidiano que pode ser fatal. Outroexemplo é a polipose familial do colo,onde mutações no gene APC determi-nam elevadíssimo risco de desenvolvi-mento de tumores colorretais malignos.Testes deste gene indicarão quais in-divíduos da família necessitarão demonitoragem por exames de reto-sigmoidoscopia e quais não terão dese preocupar. A situação é mais com-plexa nos casos de câncer familial demama causados por mutações nosgenes BRCA1 ou BRCA2, porque, in-felizmente, não há uma vantagem ine-quívoca de uma pessoa saber se pos-sui ou não mutações nesses genes. Exa-minemos a situação de uma jovemcuja mãe teve câncer de mama e temuma mutação em BRCA1. Esta jovemtem 50% de chance de ter herdado o

gene mutante e 50% de ter herdado ogene normal. Se ela herdou o genenormal, pode se tranqüilizar, já que seurisco de câncer de mama será exata-mente o mesmo da população geral,ou seja, aproximadamente 10%. Poroutro lado, se herdou o gene mutanteela tem 85% de probabilidade de de-senvolver um câncer de mama antesdos 70 anos de idade e uma probabili-dade de 50% de desenvolver um cân-cer de ovário. Imaginemos, agora, queela fez um teste de BRCA1 e este reve-lou que ela herdou o gene mutante. Oque ela deve fazer? Um programa deexames regulares com mamografia ouuma mastectomia profilática e/ou umaooforectomia profilática? Não há res-postas absolutas.

O fato do câncer de mama seruma doença comum traz à baila a novapossibilidade de que testes genéticossejam feitos em indivíduos sadios dapopulação, sem qualquer históriafamilial de câncer de mama. Váriascomplicações devem ser aqui discuti-das com relação a esta “triagempopulacional”. Para melhor entendi-mento, será essencial fazer uma peque-na digressão sobre genética molecular.Tanto o BRCA1 quanto o BRCA2 sãogenes muito grandes e centenas demutações diferentes nos mesmos po-dem causar anormalidades nas pro-teínas codificadas, que estão envolvi-das no reparo de danos causados noDNA por radiação. A procura de umamutação em BRCA1 e BRCA2 é umprocedimento complexo e muitodispendioso, que depende do seqüen-ciamento completo dos genes. Este pro-cedimento justifica-se no caso de umafamília com vários casos de câncer demama, pois após a identificação da

Page 145: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

147

mutação exata em uma das afetadasé fácil, pela reação em cadeia dapolimerase (PCR), desenhar um exa-me específico para esta mutação, quepode então, de maneira simples e pou-co dispendiosa, ser oferecido a todasas mulheres com risco genético na fa-mília. Por outro lado, na triagempopulacional é necessário testar todasas mutações em todas as candidatas,com várias conseqüências: (i) a ausên-cia de mutações detectáveis não ga-rante que nenhuma mutação estejapresente; (ii) algumas alterações daseqüência normal de BRCA1 e BRCA2são variantes normais (polimorfismos),ou seja, não representam um risco ele-vado de câncer; (iii) algumas muta-ções, mesmo patológicas, podem es-tar associadas com riscos de câncermuito menores que os 85% até os 70anos citados acima (por exemplo, amutação mais comum em judiasaskenazitas confere um risco de 56%de câncer de mama e 16% de câncerde ovário); (iv) a percepção deinevitabilidade do risco tem um fatortemporal importante, ou seja, emboraos riscos sejam para toda a vida, ohorizonte de preocupação da pacien-te é com os próximos 10 anos; e (v) osefeitos dos genes de predisposição po-dem ser modificados por outros genespolimórficos e por fatores ambientaise estilos de vida, tais como a idade damenarca, gravidez, uso de pílula anti-concepcional, etc. (20). Certamente, aavaliação ponderada de todos esteselementos está muito além do que po-deria ser esperada da maioria dasmulheres da população e talvez mes-mo de seus médicos. Desta maneira,a triagem populacional está semprecercada de incertezas e sua eficácia

ainda não foi estabelecida; várias so-ciedades médicas e científicas já semanifestaram contra o seu uso clíni-co rotineiro (American Society ofHuman Genetics, 1994; NationalAdvisory Council for Human GenomeResearch, 1994; National ActionPlan on Breast Cancer, 1996)(21,22,23).

A medicina preditiva pode sernociva?

A medicina preditiva carrega con-sigo um potencial iatrogênico impor-tante. É ético fazer o diagnóstico pré-sintomático de doenças que não têmcura? Quão confiáveis são os testesgenéticos preditivos? Quais são as con-seqüências de indivíduos sadios fica-rem sabendo do seu destino médico?A regulamentação de laboratórios queoferecem testes preditivos é suficiente-mente confiável para evitar erros de-vastadores? Como podem os indivídu-os sadios ser protegidos de discrimi-nação por seguradoras e empregado-res potenciais? Quais são os verdadei-ros prós e contras dos testes preditivos?As pessoas, em geral, não percebemcom clareza que entre ser portador deum gene alterado e apresentar a doen-ça relacionada a este gene existe umaprobabilidade e não uma certeza. Semesta percepção há a vulnerabilidadea falsos alarmes ou a fantasiosas eu-forias. A desinformação genética po-derá, às vezes, ter conseqüências maismaléficas do que o próprio genemutante. Um tópico importante é sa-ber se o conhecimento gerado pelostestes preditivos pode salvar vidas. Paradoenças neurodegenerativas, a respos-ta é não. Para cânceres familiares, a

Page 146: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

148

resposta ainda não está clara. Temosde determinar se as medidas preventi-vas que funcionam para a população ge-ral (mamografia, retossigmoidoscopia,etc.) aplicam-se também aos cânceresfamiliares. Por outro lado, como vistoacima, o valor de um resultado nor-mal é inegável quando o exame foi fei-to com inquestionável competência ecredibilidade.

Para o paciente, haverá proble-mas psicológicos, porque o diagnósti-co pré-sintomático antecipa a passa-gem do indivíduo do estado de sadiopara o de doente. Haverá, também, oproblema da estigmatização social e odo preconceito. Ele poderá sofrer dis-criminação de vários tipos. É possívelque os empregadores venham a exigirtestes genéticos dos candidatos a em-prego e recusar a admissão dos “afe-tados”. E a companhia de seguros?Teria ela o direito de pedir testes gené-ticos para o indivíduo que tem predis-posição para câncer? Terá ela acessoa ficha médica dessa pessoa?

Recentemente, no New York Ti-mes (24), foi relatado o caso de umajovem com forte história familial decâncer de mama, cujo teste genéticomostrou a presença de uma mutaçãoem BRCA1. Informada do risco de85% de desenvolvimento de câncer demama até os 70 anos, a paciente op-tou por fazer uma mastectomia preven-tiva. Para tal, pediu a autorização doseu plano de saúde, sem revelar o re-sultado do teste genético, mas relatan-do sua forte história familial. O planode saúde negou o pedido, argumentan-do que não pagaria por medicina pre-ventiva. A paciente, então, apresentouo resultado do teste de BRCA1. A com-panhia novamente negou, agora argu-

mentando que a paciente tinha umadoença preexistente, um “defeito ge-nético”, quando ingressou no planoe que não estaria então coberta. Apaciente pagou pela cirurgia comrecursos próprios e no estudoanatomopatológico foi constatada apresença de um tumor canceroso quenão havia sido detectado pelamamografia.

Uma outra problemática que deveser discutida é a leitura exagerada dopapel da genética na determinação detraços comportamentais e psíquicos, oque tem sido chamado por Rose (25)de “determinismo neurogenético”. Odeterminismo neurogenético proclamaser capaz de explicar tudo pela genéti-ca, da violência urbana à orientaçãosexual. Por exemplo, em 1994 a revis-ta Time (15/8/1994) publicou uma re-portagem de capa intitulada “Infidelity– It may be in our genes”. Independen-te da argumentação falha do artigo,que não vamos nos dar ao trabalho dediscutir, a tentativa de responsabilizaro genoma pelo comportamento formal-mente “reprovável” de algumas pesso-as é bastante sintomática de uma pro-pensão da nossa sociedade a assumirparadigmas deterministas para abdi-car de responsabilidade social. Nãosurpreendentemente, no ano passadoa revista brasileira VIP-Exame (julho de1997) publicou uma reportagem decapa no mesmo teor: “Porque você trai– Não se sinta um canalha. A ciênciadiz que a culpa é do DNA”. A questãode livre arbítrio versus determinismo étão velha quanto a humanidade. Comas reformas Luterana e Calvinista fir-mou-se a teoria determinista dapredestinação, que estabeleceu os ali-cerces culturais de países protestantes

Page 147: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

149

como os Estados Unidos e grande par-te da Europa e que, conseqüentemen-te, têm influência em todo o pensamen-to ocidental. Este determinismo temcontrapartidas igualmente fortes nohinduísmo (conceito do karma) e noislamismo [a própria palavra islamevem do árabe “resignação” (à vonta-de de Deus)]. Embora de certo modoassustador, pela impossibilidade de es-cape, este determinismo é por outrolado conveniente, pois o peso da res-ponsabilidade criada pelo livre arbítriotalvez seja mais apavorante ainda. Dequalquer maneira, com a diminuiçãoda importância social da religião nasúltimas décadas, quem vai determinarnosso destino? Nada mais tentador queresignar-nos aos desígnios do nossogenoma. Assim, tenta-se explicar queuma pessoa é homossexual porque temgenes de homossexualidade; embria-ga-se porque tem genes do alcoolismo;comete crimes porque tem genes “cri-minosos”, etc. Este reducionismo estáprofundamente incrustado na culturada nossa sociedade e vai influenciarfundamentalmente a receptividade aosfrutos do PGH (26). Talvez, com umprograma de educação pública vigo-roso, possamos gerar uma desejávelmudança deste paradigma, que permi-tiria, então, a implantação de progra-mas de testes genéticos dentro dos al-tos ideais éticos de autonomia, priva-cidade, justiça, igualdade e qualidadedefendidos pelo PGH.

Qual deve ser a nossa condutacom relação à medicina preditiva?

Por um lado, temos o diagnósticopré-sintomático de doenças gênicas,situação em que há grande previ-

sibilidade mas baixa possibilidade demodificação do risco de desenvolvi-mento da doença, e por outro temosdoenças multifatoriais poligênicas emque um único teste genético tem baixaprevisibilidade, mas grandes chancesde se manipular o ambiente para evi-tar o desenvolvimento da doença. Es-tas últimas incluem as várias formasde câncer, diabetes, coronariopatias,hipertensão, doença de Alzheimer, ar-trite reumatóide, colite ulcerativa,esclerose lateral amiotrófica, esclerosemúltipla e as grandes psicoses(esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva). Em conjunto, estas doen-ças acometem ou virão a acometergrande parte da população. Todas elastêm em sua etiologia componentes ge-néticos importantes e a identificaçãodos genes envolvidos abrirá novasoportunidades para a intervenção mé-dica. Assim, poderíamos usar testes deDNA em indivíduos sadios, digamosaos 18 anos, para determinar as suaspropensões genéticas para doenças,estabelecendo, dessa forma, um mapaindividual de predisposições. A partirdeste conhecimento o indivíduo pode-ria, com o aconselhamento e acompa-nhamento apropriados, fazer as modi-ficações ambientais necessárias (die-ta, estilo de vida, escolha de profissão,etc.) para evitar o aparecimento dasdoenças.

Nem todas as doenças são boascandidatas para fazer parte da medi-cina preditiva. As condições que con-sideramos indispensáveis são: (i) umgene de efeito maior deve estar entreos que predispõem a doença; (ii) devehaver um teste genético simples paraestabelecer a presença de mutaçõesneste gene; (iii) o teste preditivo deve

Page 148: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

150

gerar conhecimento útil para a preven-ção da doença; e (iv) devem ser bemconhecidos os efeitos da informaçãodos vários possíveis resultados dos tes-tes sobre o bem-estar psicológico esocial do indivíduo testado. Assim, anossa conduta com relação à medici-na preditiva deve ser de um otimismocauteloso. Acreditamos que, por en-quanto, a prática dos testes preditivosainda deve ser restrita à esfera dos cen-tros de pesquisa universitários. A ge-neralização da sua prática deve seracompanhada de cuidadosa regula-mentação.

Nos Estados Unidos, esta regula-mentação já foi iniciada. Criou-se noseio do PGH um Comitê (“Task For-ce”) de Testes Genéticos para avaliaro estado da arte dos testes preditivos eemitir recomendações quando neces-sário para garantir: (i) o desenvolvi-mento de testes genéticos seguros e efi-cientes; (ii) o controle da qualidade doslaboratórios que oferecem estes testes;(iii) o uso apropriado dos testes pelacomunidade médica e pelos consumi-dores; e (iv) o estímulo ao desenvolvi-mento de novos testes (27). Em 1997,foi aprovada legislação nos EstadosUnidos garantindo que caso um indi-víduo esteja em um plano de saúde hápelo menos um ano, e caso tenha umadoença genética diagnosticada nos úl-timos seis meses, esta informação nãopode ser usada para cancelar ou limi-tar a cobertura do plano. Também é ile-gal, nos Estados Unidos, negar segurode vida ou seguro de saúde com baseem resultados de testes preditivos. Vintedos 50 estados americanos já têm le-gislação impedindo o aumento do pre-ço de planos de seguro médico porcausa de presença de mutações gené-

ticas (24). Além disso, o governo ame-ricano iniciou medidas para impedira discriminação com base em testesgenéticos na contratação ou promoçãode trabalhadores nas empresas (28).Efetivamente, a legislação proibirá aosempregadores requisitar um teste ge-nético ou informação genética comocondição para o emprego, bem comoutilizar informação genética para limi-tar as oportunidades de trabalho, en-tretanto permitirá o uso de testes ge-néticos em algumas situações, visan-do garantir a saúde e segurança dostrabalhadores. Paralelamente, temos delevar em conta que todas estas regula-mentações podem vir a ter efeitos drás-ticos na estrutura dos seguros de saú-de e seguros de vida (29).

Há dois componentes importan-tes na medicina “preditiva”: a comu-nidade médico-científica, que conhe-ce os testes e quer empregá-los, e acomunidade do consumidor, que é opaciente em potencial. Infelizmente,está surgindo um terceiro componen-te: as empresas de biotecnologia, nasquais está envolvida a indústria far-macêutica. Essas empresas estão in-vestindo pesadamente no PGH. Háa expectativa de que a medicinapreditiva abra mercados potencial-mente enormes, de bilhões de dóla-res, o que tem atraído as empresasfarmacêuticas e de biotecnologiapara esta área de atividade (30). Es-tima-se que até 1996 estas empresas,conjuntamente, já haviam investidomais de um bilhão de dólares noPGH. Assim, vão entrar na relaçãomédico-paciente como um coringa.Elas, certamente, vão querer induziro médico a fazer os testes genéticosque elas mesmas desenvolveram e/ou

Page 149: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

151

estão comercializando, e não terão oprurido ético de tentar distinguir o queé bom, ou não, para o paciente. Tere-mos o trinômio médico-paciente-indús-tria biotecnológica. Isso já existe, decerta maneira, com a indústria farma-cêutica. Portanto, um desafio imediato éfazer com que os profissionais de saúdee o público em geral compreendam o queestá em jogo e tornem-se consumidoresbem informados e alertas.

Referências bibliográficas

dbEST (1998). O banco de dados deESTs pode ser acessado através do ser-vidor BLAST no National Center forBiotechnology Information (NCBI)n o endereço de Internet http://www.ncbi.nlm.nih.gov/BLAST/.

Hudson TJ, Stein LD, Gerety SS, Ma J,Castle AB, Silva J, Slonin DK et al. NaSTS-based map of the human genome.Science 1995;270:1945-4.

Dib C, Faure S, Fizames C, Samson D,Drowat N, Vignal A et al. Acomprehensive genetic map of thehuman genome based on 5,264microsatellites. Nature 1996;380:152-4.

Schuler GD, Boguski MS, Stewart EA,Stein LD, Gyapay G, Rice K et al. Agene map of the human genome.Science 1996;274:540-6.

Rowen L, Mahairas G, Hood L.Sequencing the human genome. Science1997;278:605-7.

Pena SDJ. Third world participation ingenome projects. Trends inBiotechnology 1996;14:74-7.

Collins F, Galas D. A new five-year planfor the U.S. human genome project.Science 1993;262:43-9.

Knoppers BM, Chadwick R. The humangenome project: under an internationalethical microscope. Science 1994;265:2035-6.

Opitz MJ. O que é normal consideradono contexto da genetização da civilizaçãoocidental? Bioética (CFM) 1997;5:131-43.

Bernard J. Da Biologia à ética. Bioética:novos poderes da ciência, novos deve-res do homem. Campinas: Editorial Psy,1994.

Caskey CT. HUGO and gene patents.Nature 1995;375:351.

HUGO warning over broad patents ongene sequences [news]. Nature1997;387:326.

Dickson D. HUGO approves ethics codefor genomics. Nature 1996;380:279.

Grisolia S. UNESCO Program for thehuman genome project. Genomics1991;9: 404-5.

Pena SDJ. First South-North HumanGenome Conference. Gene1992;120:327-8.

Cambien F, Poirier O, Lecerf L, EvansA, Cambou JP, Arveiler D et al. Deletionpolymorphism in the gene forangiotensin-converting enzyme is apotent risk factor for myocardialinfraction. Nature 1992;359:641-4.

Lindpainter K, Pfeffer MA, Kreutz R,Stampfer MJ, Grodstein F, La Motte Fet al. A prospective evaluation of naangiotensin-converting-enzyme genepolymorphism and the risk of ischemicheart disease. New Engl J Med1995;332:706-11.

Samani NJ, Thompson JR, O’Toole L,Channer K, Woods KL. A meta-analysisof the association of the deletion alleleof the angiotensin-converting enzymegene with myocardial infraction.Circulation 1996;94:708-12.

19.Giannini D, Almeida AO. A bola de cris-

18.

17.

16.

15.

14.

13.

12.

11.

10.

9.

8.

7.

6.

5.

4.

3.

2.

1.

Page 150: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

152

tal da medicina. Folha de S. Paulo 1997abr 20;Revista da Folha.

20.Ponder B. Genetic testing for cancer risk.Science 1997;278:1050-4.

21.American Society of Human Genetics.Statement on genetic testing for breastand ovarian cancer predisposition. AmJ Hum Genet 1994;55:i-iv.

22.National Advisory Council for HumanGenome Research. Statement on use ofDNA testing for presymptomaticidentification of cancer risk. J Am MedAss 1994;271:785.

23.National Action Plan on Breast Cancer.Commentary on the ASCO statementon genetic testing for cancersusceptibility. J Clin Oncol1996;14:1738-40.

24.Kolata G. Advent of testing for breastcancer genes leads to fears of disclosureand discrimination. New York Times 1997Feb 4.

25.Rose S. A perturbadora ascensão dodeterminismo neurogenético. CiênciaHoje 1997;21:18-27.

26.Pena SDJ. Conflitos paradigmáticos e aética do projeto genoma humano. Re-vista USP 1994;24:68-73.

27.Holtzman NA, Murphy PD, Watson MS,Barr PA. Predictive genetic testing: frombasic research to clinical practice.Science 1997;278:602-5.

28.Page S. (1998) White House wants banon genetic bias. USA Today 1998 Jan21.

29.Pokorski RJ. Genetic information and lifeinsurance. Nature 1995;376:13-14.

30.Cohen J. The genomics gamble. Science1997;275:767-81.

Apêndice

Comitê de Bioética da UNESCO:Declaração Universal do Genoma Hu-mano e dos Direitos Humanos

O Comitê de Especialistas Governa-mentais, convocado em julho de 1997 paraa conclusão de um projeto de declaraçãosobre o genoma humano, examinou o es-boço preliminar revisto e redigido pelo Co-mitê Internacional de Bioética. Ao términode suas deliberações, em 25 de julho de1997, o Comitê de Especialistas Governa-mentais, no qual mais de 80 Estados esti-veram representados, adotou por consensoo projeto de uma Declaração Universal doGenoma Humano e dos Direitos Humanos,que foi apresentado para adoção na 29a

sessão da Conferência Geral da Unesco (de21 de outubro a 12 de novembro de 1997).Esta declaração foi publicada pela Folha deS. Paulo em 15 de novembro de 1997 eestá integralmente transcrita abaixo.

A. Dignidade Humana e o Genoma Humano

Artigo 1o

O genoma humano subjaz à unidadefundamental de todos os membros dafamília humana e também ao reco-nhecimento de sua dignidade e diver-sidade inerentes. Num sentido simbó-lico, é a herança da humanidade.

Artigo 2o

a) Todos têm direito ao respeito porsua dignidade e seus direitos huma-nos, independentemente de suas ca-racterísticas genéticas.

b) Essa dignidade faz com que sejaimperativo não reduzir os indivídu-os a suas características genéticase respeitar sua singularidade e di-versidade.

Artigo 3o

O genoma humano, que evolui por suaprópria natureza, é sujeito a muta-ções. Ele contém potencialidades que

Page 151: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

153

são expressas de maneira diferentesegundo o ambiente natural e socialde cada indivíduo, incluindo o estadode saúde do indivíduo, suas condiçõesde vida, nutrição e educação.

Artigo 4o

O genoma humano em seu estadonatural não deve dar lugar a ganhosfinanceiros.

B. Direitos das Pessoas Envolvidas

Artigo 5o

a) Pesquisas, tratamentos ou diagnós-ticos que afetem o genoma de um in-divíduo devem ser empreendidas so-mente após a rigorosa avaliação pré-via dos potenciais riscos e benefíciosa serem incorridos, e em conformida-de com quaisquer outras exigências dalegislação nacional.

b) Em todos os casos, é obrigatório oconsentimento prévio, livre e informa-do da pessoa envolvida. Se esta nãose encontrar em condições de consen-tir, o consentimento ou autorizaçãodeve ser obtido na maneira previstapela lei, orientada pelo melhor inte-resse da pessoa.

c) Será respeitado o direito de cadaindivíduo de decidir se será ou não in-formado dos resultados de seus exa-mes genéticos e das conseqüênciasresultantes.

d) No caso de pesquisas, os protoco-los serão, além disso, submetidos auma revisão prévia em conformidadecom padrões ou diretrizes nacionais einternacionais relevantes relativos apesquisas.

e) Se, de acordo com a lei, uma pes-soa não tiver a capacidade de con-sentir, as pesquisas relativas a seugenoma só poderão ser empreendidascom vistas a beneficiar sua própriasaúde, sujeitas à autorização e às con-dições protetoras descritas pela lei. Aspesquisas que não previrem um bene-fício direto à saúde somente poderãoser empreendidas a título de exceção,

com restrições máximas, expondo apessoa apenas a riscos e ônus míni-mos e se as pesquisas visarem contri-buir para o benefício da saúde de ou-tras pessoas que se enquadram namesma categoria de idade ou que te-nham as mesmas condições genéti-cas, sujeitas às condições previstas emlei, desde que tais pesquisas sejamcompatíveis com a proteção dos di-reitos humanos do indivíduo.

Artigo 6o

Ninguém será sujeito à discriminaçãobaseada em características genéticasque vise infringir ou exerça o efeito deinfringir os direitos humanos, as liber-dades fundamentais ou a dignidadehumana.

Artigo 7o

Quaisquer dados genéticos associadosa uma pessoa identificável e armaze-nados ou processados para fins depesquisa ou para qualquer outra fina-lidade devem ser mantidos em sigilo,nas condições previstas em lei.

Artigo 8o

Todo indivíduo terá o direito, segundoa lei internacional e nacional, à justareparação por danos sofridos em con-seqüência direta e determinante deuma intervenção que tenha afetadoseu genoma.

Artigo 9o

Com o objetivo de proteger os direitoshumanos e as liberdades fundamen-tais, as limitações aos princípios doconsentimento e do sigilo só poderãoser prescritas por lei, por razões deforça maior, dentro dos limites da le-gislação pública internacional e da leiinternacional dos direitos humanos.

C. Pesquisas com o Genoma Humano

Artigo 10

Nenhuma pesquisa ou aplicação depesquisa relativa ao genoma huma-

Page 152: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

154

no, em especial nos campos da biolo-gia, genética e medicina, deve preva-lecer sobre o respeito aos direitos hu-manos, às liberdades fundamentais eà dignidade humana dos indivíduosou, quando for o caso, de grupos depessoas.

Artigo 11

Não serão permitidas práticas contrá-rias à dignidade humana, tais comoa clonagem reprodutiva de seres hu-manos. Os Estados e as organizaçõesinternacionais competentes são con-vidados a cooperar na identificaçãode tais práticas e a determinar, nosníveis nacional ou internacional, asmedidas apropriadas a serem toma-das para assegurar princípios expos-tos nesta Declaração.

Artigo 12

a) Os benefícios decorrentes dos avan-ços em biologia, genética e medicina,relativos ao genoma humano, deve-rão ser colocados à disposição de to-dos, com a devida atenção para a dig-nidade e os direitos humanos de cadaindivíduo.

b) A liberdade de pesquisa, que é ne-cessária para o progresso do conheci-mento, faz parte da liberdade de pen-samento. As aplicações das pesquisascom o genoma humano, incluindoaquelas em biologia, genética e medi-cina, buscarão aliviar o sofrimento emelhorar a saúde dos indivíduos e dahumanidade como um todo.

D. Condições para o Exercício da Atividade Científica

Artigo 13

As responsabilidades inerentes às ati-vidades dos pesquisadores, incluindoo cuidado, a cautela, a honestidadeintelectual e a integridade na realiza-ção de suas pesquisas e também naapresentação e na utilização de suasdescobertas, devem ser objeto de aten-ção especial no quadro das pesquisascom o genoma humano, devido a suas

implicações éticas e sociais. Os res-ponsáveis pelas políticas científicas,em âmbito público e privado, tambémincorrem em responsabilidades espe-ciais a esse respeito.

Artigo 14

Os Estados devem tomar medidasapropriadas para fomentar as condi-ções intelectuais e materiais favorá-veis à liberdade na realização de pes-quisas sobre o genoma humano e paralevar em conta as implicações éticas,legais, sociais e econômicas de taispesquisas, com base nos princípios ex-postos nesta Declaração.

Artigo 15

Os Estados devem tomar as medidasnecessárias para prover estruturas parao livre exercício das pesquisas com ogenoma humano, levando devidamen-te em conta os princípios expostos nes-ta Declaração, para salvaguardar orespeito aos direitos humanos, às li-berdades fundamentais e à dignidadehumana e para proteger a saúde pú-blica. Eles devem buscar assegurar queos resultados das pesquisas não se-jam utilizados para fins não-pacíficos.

Artigo 16

Os Estados devem reconhecer a im-portância de promover, nos diversosníveis apropriados, a criação de co-mitês de ética independentes,multidisciplinares e pluralistas, paraavaliar as questões éticas, legais e so-ciais levantadas pelas pesquisas como genoma humano e as aplicações dasmesmas.

E. Solidariedade e Cooperação Internacional

Artigo 17

Os Estados devem respeitar e promo-ver a prática da solidariedade com osindivíduos, as famílias e os grupospopulacionais que são particularmentevulneráveis a, ou afetados por, doen-ças ou deficiências de caráter genéti-

Page 153: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

155

co. Eles devem fomentar pesquisas“inter alia” sobre a identificação, pre-venção e tratamento de doenças defundo genético e de influência genéti-ca, em particular as doenças raras eas endêmicas, que afetam grandeparte da população mundial.

Artigo 18

Os Estados devem envidar todos osesforços, levando devidamente emconta os princípios expostos nestaDeclaração, para continuar fomentan-do a disseminação internacional doconhecimento científico relativo aogenoma humano, a diversidade huma-na e as pesquisas genéticas e, a esserespeito, para fomentar a cooperaçãocientífica e cultural especialmente en-tre os países industrializados e os paí-ses em desenvolvimento.

Artigo 19

a) No quadro da cooperação interna-cional com os países em desenvolvi-mento, os Estados devem procurarencorajar:

1. que seja garantida a avaliação dosriscos e benefícios das pesquisas como genoma humano, e que sejam im-pedidos os abusos;

2. que seja desenvolvida e fortalecidaa capacidade dos países em desen-volvimento de promover pesquisassobre biologia e genética humana, le-vando em consideração os problemasespecíficos desses países;

3. que os países em desenvolvimen-to possam se beneficiar das conquis-tas da pesquisa científica etecnológica, para que sua utilizaçãoem favor do progresso econômico esocial possa ser feita de modo a be-neficiar todos;

4. que seja promovido o livre inter-câmbio de conhecimentos e informa-ções científicas nas áreas de biologia,genética e medicina.

b) As organizações internacionais re-levantes devem apoiar e promover as

medidas tomadas pelos Estados paraas finalidades acima mencionadas.

F. Promoção dos Princípios Expostos na Declaração

Artigo 20

Os Estados devem tomar medidasapropriadas para promover os princí-pios expostos nesta Declaração, pormeios educativos e relevantes, inclu-sive, “inter alia”, por meio da realiza-ção de pesquisas e treinamento emcampos interdisciplinares e da promo-ção da educação em bioética, em to-dos os níveis, dirigida em especial aosresponsáveis pelas políticas científicas.

Artigo 21

Os Estados devem tomar medidasapropriadas para encorajar outras for-mas de pesquisa, treinamento e dis-seminação de informações, meios es-tes que conduzam à conscientizaçãoda sociedade e de todos os seus mem-bros quanto às suas responsabilida-des com relação as questões funda-mentais relacionadas à defesa da dig-nidade humana que possam ser levan-tadas pelas pesquisas em biologia, ge-nética e medicina e às aplicações des-sas pesquisas. Também devem se pro-por a facilitar a discussão internacio-nal aberta desse tema, assegurando alivre expressão das diversas opiniõessocioculturais, religiosas e filosóficas.

G. Implementação da Declaração

Artigo 22

Os Estados devem envidar todos osesforços para promover os princípiosexpostos nesta Declaração e devempromover sua implementação pormeio de todas as medidas apropria-das.

Artigo 23

Os Estados devem tomar as medidasapropriadas para promover, por meioda educação, da formação e da dis-seminação da informação, o respeito

Page 154: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

156

pelos princípios acima mencionadose para fomentar seu reconhecimentoe sua aplicação efetiva. Os Estadostambém devem incentivar os inter-câmbios e as redes entre comitês éti-cos independentes, à medida que fo-rem criados, com vistas a fomentaruma cooperação integral entre eles.

Artigo 24

O Comitê Internacional de Bioéticada Unesco deve contribuir para a dis-seminação dos princípios expostosnesta Declaração e para fomentar oestudo detalhado das questões levan-tadas por suas aplicações e pela evo-lução das tecnologias em questão.Deve organizar consultas apropriadascom as partes envolvidas, tais comoos grupos vulneráveis. Deve fazer re-

comendações, de acordo com os pro-cedimentos estatutários da Unesco,dirigidas à Conferência Geral, e emi-tir conselhos relativos à implementaçãodesta Declaração, relativos especial-mente à identificação de práticas quepossam ser contrárias à dignidade hu-mana, tais como intervenções nas cé-lulas germinativas.

Artigo 25

Nada do que está contido nesta De-claração pode ser interpretado comouma possível justificativa para quequalquer Estado, grupo ou pessoa seengaje em qualquer atividade ou rea-lize qualquer ato contrário aos direi-tos humanos e às liberdades funda-mentais, incluindo, “inter alia”, os prin-cípios expostos nesta Declaração.

Page 155: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

157

Regina Ribeiro Parizi Nei Moreira da Silva

Os transplantes

Desde tempos imemoriais, os so-nhos de eterna juventude e imortalida-de sempre acompanharam a humani-dade e alimentaram lendas e mitos.Assim, quando os primeiros transplan-tes de órgãos obtiveram sucesso, oimaginário pareceu tornar-se real. En-tretanto, ainda que essa técnica seconstitua numa das mais admiráveisconquistas da ciência, muitas são ain-da as dificuldades a vencer.

Os transplantes de órgãos, hojecorriqueiros, representam ocoroamento de séculos de aperfeiçoa-mento da cirurgia – especialmente apartir do desenvolvimento das técnicasde anastomoses vasculares, por Carreze Gouthrie, em 1902 – e da imunologia– com o conhecimento dos mecanis-mos de rejeição e o desenvolvimentode drogas imunossupressoras, culmi-nando com a introdução da ciclosporina,por Borel, em 1976.

Uma das primeiras experiênciasocorreu, em 1954, quando David

Transplantes

Hume, no Peter Brent Brigham Hos-pital, em Boston, obteve sucesso comum transplante renal, após uma fracas-sada tentativa, 7 anos antes, de trans-plante heterotópico (fora do sítioanatômico normal) de rim. No entan-to, os transplantes somente adquiriramgrande destaque na mídia quandoBarnard, em dezembro de 1967, nacidade do Cabo, realizou o primeirotransplante cardíaco, feito esse repeti-do no Brasil seis meses depois, em SãoPaulo, por Zerbini. Nessa época, emapenas 15 meses foram realizados 118transplantes e, para decepção geral,todos os pacientes estavam mortos emdezembro de 1969. Houve então umasignificativa redução de cirurgias atéque critérios mais rígidos de seleçãode pacientes e o avanço obtido nastécnicas de cuidados pós-operatóriosintensivos permitissem maior seguran-ça nos transplantes.

Hoje, a demanda mundial portransplantes está muito acima de suacapacidade de realização. Para se teruma pequena amostra dessa realida-de, existem aproximadamente 25 mil

Page 156: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

158

pacientes em hemodiálise, dos quaispelo menos 15 mil têm indicação detransplante. No Brasil, são cerca de 5mil aguardando por um rim. Em SãoPaulo, são 2.600 aguardando por rims,419 por fígado e 144 por um coração.Por outro lado, existem no país 176instituições realizando transplantes,concentradas nas regiões Sul e Sudes-te. No ano de 1997 (até setembro in-clusive) foram realizados 1.456 trans-plantes de órgãos sólidos, sendo 1.247de rim, 49 de coração, 150 de fígado,1 de pâncreas, 8 de pâncreas/rim e 1de pulmão. Quanto aos transplantes detecidos, foram 842 no total, sendo 650de córnea, 185 de medula óssea e 7de ossos.

Outro fator a ser considerado sãoos custos, que já chegaram a até 200mil dólares para um transplantecardíaco e 400 mil dólares para umde fígado. Além disso, no seguimentoapós a cirurgia, os gastos comciclosporina podem ficar em torno de6 mil dólares ano/paciente.

Legislação brasileira

A Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de1997, bem como seu respectivo Decretonº 2.268, de 30 de junho de 1997, vie-ram substituir a Lei nº 8.489, de 18 denovembro de 1992 e o Decreto nº 879,de 22 de julho de 1993, introduzindomodificações nas normas relativas aostransplantes, em particular à doação pre-sumida – a qual tem provocado um in-tenso debate tanto na esfera da bioéticaquanto na sociedade.

Diversos aspectos relacionadosaos transplantes estão contidos na le-

gislação atual; assim, ela disciplina agratuidade da doação, o creden-ciamento das instituições junto aoSistema Único de Saúde (SUS) e cri-térios para a seleção do doador, entreoutros.

A doação de tecidos, órgãos epartes do corpo humano passa a serrealizada post mortem mediante odiagnóstico de morte encefálica regu-lamentado pela Resolução nº 1.480/97, do Conselho Federal de Medicina(CFM), e o Decreto nº 2.268/97, o qualconsidera doador toda pessoa que nãomanifestou em vida vontade contrária,devendo gravar em sua Carteira deIdentidade ou Carteira Nacional deHabilitação a expressão “Não Doa-dor de Órgãos e Tecidos” para ga-rantir efetivamente a sua condição denão-doador.

A doação em vida, por outro lado,sofre alterações na ampliação de seuscritérios pois na legislação anterior (Leinº 8.489/92) a doação só poderiaocorrer em caso de parentesco muitopróximo ou com autorização judicial,enquanto na lei atualmente em vigor épermitida a qualquer pessoa juridica-mente capaz, desde que se trate de ór-gãos duplos ou partes do corpo huma-no que não coloquem em risco a vidaou representem grave comprometimen-to de sua funções vitais.

É vedada a publicidade sobre di-versos aspectos relacionados aos trans-plantes de órgãos, bem como a pro-moção de instituições que realizem talprocedimento, a arrecadação de fun-dos em benefício de particulares e oapelo público de doação para deter-minada pessoa.

As instituições ficam obrigadasa notif icar os casos de morte

Julio
Realce
Page 157: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

159

encefálica às centrais de notificaçãoexistentes em cada unidade da Fede-ração. Por sua vez, o Decreto nº2.268/97, visando desenvolver o pro-cesso de captação e distribuição detecidos, órgãos e partes do corpohumano, organizando para tanto alista única nacional de receptores,cria o Sistema Nacional de Trans-plante – SNT, regulamentando as re-lações e atribuições do Ministério daSaúde, secretarias estaduais e mu-nicipais de Saúde, instituições hos-pitalares e redes de serviços.

Aos infratores a lei prevê, de for-ma minuciosa, sanções penais e ad-ministrativas que vão desde odescredenciamento até a multa e re-clusão.

O Código de Ética Médica e ostransplantes

O atual Código de Ética Médica,vigente desde 1988, já possui um ca-pítulo com quatro artigos disciplinan-do a questão. Tais artigos vedam aomédico, quando pertencente à equipede transplantes, participar da verifica-ção de morte encefálica, bem comoretirar órgãos de interditos ou incapa-zes. Proíbem, ainda, ao médico dei-xar de esclarecer o doador e o recep-tor acerca dos riscos envolvidos nosprocedimentos, bem como a comercia-lização de órgãos humanos. Garante-se, assim, tanto a isenção do processode constatação da morte encefálicacomo o esclarecimento necessário parao consentimento por parte do doadore receptor, com respeito à autonomiade cada um.

Perspectivas futuras

A legislação brasileira referenteaos transplantes pode ser consideradabastante atualizada, tendo em vistaprincípios fundamentais que vêmnorteando internacionalmente os paí-ses que realizam tais procedimentos.No entanto, encerra questões polêmi-cas, tanto do ponto de vista ético comotécnico.

O principal debate, sem dúvida, temsido em torno da doação presumida, poisembora tal medida venha sendo aplica-da em diversos países – como Austrália,Bélgica, França, Espanha e outros – mui-tos aspectos têm sido motivo de contro-vérsias, originadas pelas diferenças cul-turais e de condições estruturais dos sis-temas e serviços de saúde de cada loca-lidade.

No Brasil, tanto a comunidadecientífica como a opinião pública di-videm-se em considerar doador umapessoa que não manifestou, de manei-ra expressa, posição contrária em vida.Defende-se que a doação é sobretudoum ato de solidariedade e como talpressupõe informação e conscien-tização, com a conseqüente sensibi-lização para ser efetivada verdadeira-mente, requisitos esses bastantequestionáveis no contexto atual em vis-ta do grande contingente de analfabe-tos e semi-alfabetizados na populaçãobrasileira, que sequer têm acesso aosregistros civis do país.

A perspectiva que vem se deline-ando quanto à doação é que dificil-mente, sem a anuência da família dopaciente,os profissionais de saúdeprocederão à retirada de órgãos e/ououtros tecidos de pessoa que não se

Page 158: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

160

manifestou contrária, mesmo porqueo Brasil tem uma cultura preponderan-temente cristã, onde o núcleo familiaré extremamente valorizado e em cujaopinião normalmente é baseada a con-duta do profissional, principalmentediante da falta de autonomia do paci-ente.

A questão estrutural do sistema desaúde é outro fator relevante do deba-te, uma vez que haverá falta de recur-sos humanos e materiais tanto para odiagnóstico e sustentação da morteencefálica quanto para a captação,distribuição e realização do transplan-te. Sem dúvida, questões estratégicasvêm sendo discutidas: a precariedadedos serviços públicos e do atendimen-to de emergência, a frágil articulaçãoentre o setor público e privado, a bai-xa remuneração dos honorários e pro-cedimentos. Todos esses aspectos, con-juntamente, podem ser apontadoscomo os principais responsáveis pelobaixo número de transplantes.

Os dados da Associação Brasi-leira de Transplantes de Órgãos –ABTO corroboram a tese de que, hoje,o maior problema dos transplantes noBrasil está vinculado a uma rede defi-citária de serviços.

A maior disponibilidade de órgãos,portanto, não significará necessariamen-te um incremento no número de trans-plantes, como ocorreu em outros países,e pode, inclusive, resultar em maioresconflitos éticos já que mesmo se dispon-do das condições de doador e receptornão se conseguirá efetuar os transplan-tes porque seu número ultrapassa a ca-pacidade operacional dos centrostransplantadores. Assim, para que real-mente ocorram mudanças no panora-ma atual, a aplicação da lei deve ser

efetivada com uma política de finan-ciamento e capacitação de novos cen-tros.

Já no Decreto n° 2.268/97 obser-vamos algumas impropriedades. Inici-almente, restringir a confirmação damorte encefálica apenas aos neurolo-gistas configura-se flagrantemente ile-gal, pois não pode um decreto limitaro que a lei não limitou. Ademais doaspecto jurídico, qual a lógica de nãopermitir aos neurocirurgiões ou neu-rologistas infantis, intensivistas,traumatologistas, etc., igualmente ha-bituados a lidar com tais situações, aconfirmação da morte encefálica? Res-salte-se o fato de que na legislação bra-sileira um médico legalmente habilita-do para o exercício da profissão podeexecutar qualquer ato médico, respon-dendo ética, civil e penalmente peloque faz, o que caracteriza ainda maisa incongruência de se restringir deter-minado ato a uma única especialida-de. Observe-se também o reduzidonúmero de neurologistas existentes emnosso país (apenas 1.893, segundopesquisa realizada pelo CFM), 80% dosquais radicados na região Sudeste.

Outro ponto negativo é a previ-são de que o receptor poderá assumiros riscos de receber um órgão doente.Ou seja, a um paciente angustiado pelosofrimento, aguardando ansiosamentepor um órgão sadio, será oferecida ahipótese de aceitar um órgão de umdoador com doença transmissível,como, por exemplo, AIDS, sífilis, do-ença de Chagas, etc. Com que auto-nomia este paciente poderá decidir? Àluz de que liberdade ele escolherá en-tre uma ou outra doença? Com queconhecimento decidirá se é melhormorrer desta ou daquela doença?

Page 159: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

161

Por outro lado, os médicos têm seus atosregidos por princípios bioéticos, deven-do observar sobremodo os dabeneficiência e da não-maleficiência, ouseja, seus atos devem produzir o bem enão o mal aos seus pacientes. Sob talenfoque, como poderia um médico fa-zer semelhante oferta a seu paciente ?

A maior liberalidade na doaçãointervivos tem também suscitado polê-mica, pois se acredita que acomercialização de órgãos tornar-se-áincontrolável. Hoje, pela Internet, já épossível verificar organizações interna-cionais fazendo apelos aos centrostransplantadores que disponham de ór-gãos para atender aos seus receptores.Portanto, o cuidado deve ser extremo,pois estaremos comercializando o direi-to de vida e morte, embora acreditemosque essa questão deva ficar dificultadaem função dos critérios de compatibili-dade que serão exigidos, os quais res-tringirão bastante a condição de doa-dor.

No entanto, há que preponderaro bom-senso. No futuro, a carência deórgãos também poderá ser em partesanada pela utilização de órgãos deorigem animal, já havendo promisso-ras pesquisas com a utilização de fí-gados e rins de porcos. Recorde-se atentativa da utilização do coração debabuíno em um recém-nascido (BabyFae). Considerando-se os rápidosavanços da Medicina, dentro em pou-co tal discussão pode estar superadatanto por causa do Projeto Genomacomo pelo desenvolvimento da com-patibilidade com órgãos provenientesde animais – experiências essas quesempre trouxeram desafios na área dabioética, que por sua vez tem procura-do não confrontar e sim compatibilizar

princípios fundamentais como os daautonomia e da solidariedade. Outrapossibilidade será o emprego de dis-positivos mecânicos tipo “coração ar-tificial” e/ou equipamentos miniatu-rizados de hemodiálise, os quais segu-ramente serão aperfeiçoados nos pró-ximos anos.

Direito comparado

Um número considerável de paí-ses dos diversos continentes apresen-tam legislação, normas e/ou códigosreferentes aos transplantes de órgãos,tecidos ou partes do corpo humano,sendo que a maioria possui regulamen-tação respeitando os princípios funda-mentais sobre transplantes humanos,publicados em 1991 pela OrganizaçãoMundial da Saúde (OMS).

Verifica-se, assim, que grandeparte do continente americano, quasea totalidade da Europa, parte da Áfri-ca e as regiões do Mediterrâneo Ori-ental, Pacífico Ocidental e ÁsiaSudoriental adotaram medidas proibin-do a comercialização de órgãos huma-nos. Também é vedada, em boa partedesses países, qualquer publicidadeque envolva financiamento, instituiçõesou receptores para transplantes, bemcomo a participação simultânea deequipes médicas no processo de cap-tação, distribuição e realização detransplantes.

A doação intervivos tambémapresenta uma legislação bastante ho-mogênea entre os países que permitemtal procedimento. Nesses, está previs-ta a doação preferencial entre pa-rentes próximos ou geneticamente

Page 160: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

162

compatíveis, como está se adotandono Brasil. O doador deve receber, domédico, todas as informações sobreos riscos e benefícios, dando pos-teriormente seu consentimento ex-presso.

Em alguns países, como a Tur-quia, o consentimento também podeser verbal, desde que atestado pelaequipe médica, mas a regra é fazê-lopor escrito, desde que maior de 18anos. As doações de órgãos de crian-ças vivas são autorizadas apenas emsituações excepcionais nos transplan-tes de tecidos regeneráveis.

A doação post mortem apresentauma situação diversa entre os países,podendo ser dividida em dois grandesblocos. Num, estão os países que exi-gem uma manifestação expressa emvida, ou de seus familiares, da condi-ção de doador, como os Estados Uni-dos, Alemanha, Suécia, Portugal e Tur-quia, entre outros. Noutro, os paísesque adotam o consentimento presumi-do, ou seja, é doador todo aquele quenão manifestou vontade contrária emvida, fazem parte dos quais a maioriados países membros do Mercado Co-mum Europeu, Colômbia e, agora, oBrasil, entre outros.

Existem variações na legislaçãoquanto à vontade ser expressa ou não,tanto na condição de doador como nade não-doador, mas na maioria dospaíses, em ambas as situações, a ma-nifestação da família é considerada,podendo inclusive ser determinante,como é o caso da Irlanda. O que severifica é que mesmo nos países ondea legislação não prevê consulta à fa-mília – como Áustria, Brasil e outros –a tendência é que a equipe médica aconsulte.

Órgãos dos vivos ou órgãosdos mortos?

Os transplantes podem ser reali-zados com órgãos de doadores mor-tos ou vivos, sendo nestes últimos li-mitados à órgãos duplos, sem ameaçade dano à saúde do doador. No entan-to, as duas situações são palco parainúmeras discussões.

Idealmente, não deveríamos utili-zar órgãos de pessoas vivas pois, semdúvida, a retirada de um órgão hígidode uma pessoa saudável não lhe traznenhum benefício. Pelo contrário, dei-xa-a numa situação vulnerável, de pas-sar a dispor de apenas um órgão, quese lesado não mais terá seu par parasuprir-lhe a função, ainda que parcial-mente.

A doação intervivos exige infor-mação clara ao doador sobre todos osriscos imediatos e tardios do processode doação, a fim de que ele possa exer-cer sua autonomia de formaesclarecida. Dessa forma, livre de qual-quer constrangimento, poderá prestarum gesto de solidariedade de valor in-calculável para um seu semelhante, quenão dispõe de qualquer outra alterna-tiva para viver. Essas são as duas ques-tões fundamentais em relação ao doa-dor vivo – a autonomia e a motivação.

No que diz respeito à autono-mia, há que se discutir a possibilida-de da utilização de órgãos de deter-minados grupos populacionais comredução da sua autonomia, taiscomo menores, prisioneiros, incapa-zes e recém-natos portadores demalformações neurológicas incom-patíveis com a sobrevida, como é ocaso dos anencefálicos.

Page 161: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

163

A utilização de órgãos de crian-ças, geralmente em benefício de irmãosou outros parentes muito próximos –aceita sem muitas controvérsias pelasociedade –, é condicionada ao con-sentimento dos pais e, em vários paí-ses, à autorização judicial. No entan-to, será justo que os pais possam dis-por dos órgãos de um filho em benefí-cio de outro? A doação de órgãos éum ato irreversível, sem possibilidadede arrependimentos ou revisões, dife-rentemente, por exemplo, de uma op-ção religiosa feita pelos pais, que po-derá mais tarde ser modificada pelofilho. Ao atingir a capacidade dediscernimento este filho poderá repu-diar uma religião e converter-se a ou-tra, mas nunca poderá pleitear a de-volução do seu rim “doado” há mui-tos anos.

Em relação aos prisioneiros dequalquer natureza, igualmente não éético e moralmente justificável a con-cessão de benefícios de redução depena e abrandamento das condiçõescarcerárias como recompensa peladoação de órgãos. Recorde-se quehouveram propostas nesse sentidoquando da regulamentação da ques-tão em nosso país.

Tal possibilidade nos parece tam-bém inadequada, pois, em tese, a penaimposta pela sociedade aos crimino-sos tem caráter educativo, objetivandotornar aquele cidadão ajustado ao con-vívio social. Não pode, portanto, ser“trocada” por um órgão, pois assimestaria a sociedade admitindo o retor-no ao seu convívio de alguém que de-veria ter sido reeducado e não o foi.

Outro ponto a discutir é quantoà utilização de órgãos de fetosinviáveis como, por exemplo, na

anencefalia, uma malformação con-gênita do sistema nervoso central emque não se desenvolvem os hemisfé-rios cerebrais, mas na qual o pacien-te permanece com tronco cerebralfuncionante, mantendo, portanto,suas funções vitais por dias e até se-manas. Podemos compará-los a adul-tos com lesão grave dos hemisférioscerebrais, sem capacidade de qual-quer contato com o meio exterior,mas capazes de regular suahomeostasia graças a persistência dofuncionamento adequado do troncocerebral. Ou seja, adultos em que nãose caracterizando a morte encefálicanão podemos dispor de seus órgãospara tranplantes. Dessa forma, não po-deríamos igualmente dispor dos órgãosdos anencefálicos. Por outro lado, nãotendo se formado nos anencefálicos acórtex cerebral não teriam eles desen-volvido nenhuma forma de percep-ção que viesse a propiciar qualqueratividade consciente? Não teriamtido, em nenhum momento, “vidacerebral”? Poderiam, então, serconsiderados apenas meros bancosde órgãos ?

Um gesto de altruísmo podeser pago?

No que diz respeito à motivação,ao lado da solidariedade e do altruís-mo, há que se discutir a remuneraçãoou oferta de vantagens de várias natu-rezas aos doadores.

Patel, em 1987, defendeu a re-muneração dos doadores como umincentivo àquilo que chamou de“presentes de vida”. Em 1989, Daar

Page 162: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

164

propôs uma classificação das doa-ções de órgãos, incluindo as doaçõesremuneradas e as doações comerciais.Hoje, em todo o mundo, o comércioclaro ou velado de órgãos é uma re-alidade. Anunciam-se órgãos aberta-mente ou de forma cifrada, num co-mércio de partes de seres humanos,lembrando a escravidão onde, po-rém, as pessoas eram vendidas intei-ras e não fragmentadas. Em todo omundo os pobres vendem órgãospara os ricos, visando minorar suamiséria.

A maioria dos países proíbe rigo-rosamente a venda de órgãos, sendo,no entanto, relativa a eficácia destasproibições legais. Pensamos que amaneira mais eficaz de se evitar talprática seja limitá-la a parentes próxi-mos e apenas mediante autorizaçãojudicial. Poderíamos, assim, restringin-do-a a pessoas com um envolvimentoafetivo, preservar o altruísmo e reduziros riscos de comercialização. A legis-lação brasileira atual (Lei n° 9.434, defevereiro de 1997, e o Decreto n°2.268, de junho de 1997) suprimiu estaexigência, o que, sem dúvidas, farárecrudescer entre nós a compra e ven-da de órgãos.

Devem-se mencionar, também, asdenúncias de obtenção de órgãos atra-vés de práticas criminosas, inclusive deseqüestros de crianças e de adultos,adoções de menores e, mesmo, da exe-cução de prisioneiros pré-selecionados.Tais fatos, dos quais não temos com-provação, assumem características tãoignominiosas que não podemos ima-ginar médicos envolvidos em tais prá-ticas.

Quanto aos transplantes a partirde doadores cadáveres, há que se dis-

cutir os critérios empregados na com-provação da morte e o tipo de consen-timento para utilização dos órgãos: semediante autorização prévia do doa-dor, através de diversos mecanismos;se obtida dos familiares, quando damorte; ou se mediante o consenti-mento presumido, ou seja, na ausên-cia em vida de manifestação contrá-ria à doação.

A morte encefálica

Hoje, o conceito de morteencefálica é mundialmente aceito pelacomunidade científica. Ou seja, aoinvés de se aguardar a paradacardiorrespiratória e a conseqüenteautólise dos orgãos, deve-se verificara ocorrência de dano encefálico denatureza irreversível que impossibilitea manutenção das funções vitais; equanto ao emprego de recursos de te-rapia intensiva, garantir a perfusão dosdemais órgãos durante um período quepossibilite sua utilização em transplan-tes. Tais critérios, estabelecidos a par-tir da década de 60, envolvemparâmetros clínicos e, em alguns paí-ses, inclusive o Brasil, a realização deexames complementares que demons-trem, durante um determinado inter-valo de tempo, de forma inequívoca, aparada da circulação ou da atividadebioelétrica encefálica, situações quecaracterizam a irreversibilidade doquadro. Tal matéria é disciplinada pelaResolução CFM nº 1.480/97, confor-me determina a Lei n° 9.434/97, queexige a participação de dois médicosnão pertencentes à equipe de transplan-tes. Tal exigência é fundamental para

Page 163: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

165

que não se exerça nenhuma forma deinfluência dos transplantadores sobreos que verificam a condição que pro-piciará a retirada dos órgãos. A ocor-rência de morte encefálica é de notifi-cação compulsória e deve ser feita emcaráter de urgência aos órgãos com-petentes, a fim de possibilitar agilida-de aos procedimentos, garantindo-seassim uma maior viabilidade dos ór-gãos utilizados.

A doação “presumida“ érealmente uma doação?

Quanto ao caráter da doação, aatual legislação brasileira introduziu oprincípio da doação presumida, peloqual, não havendo manifestação emdocumentos legais da decisão de nãodoar, todos os indivíduos são doado-res. Ou seja, inverte-se o significadoaltruísta da doação e passa a vigoraro princípio da “ausência de negativa”como sinônimo de consentimento. Adoação passa a ser simplesmente aconseqüência da não renovação deum documento ou até mesmo do totaldesconhecimento da necessidade demanifestar-se sobre a disponibilidadeou não dos seus órgãos, bem distinta,portanto, do que vem a ser um gestode solidariedade.

Vigente em países de culturaanglo-saxônica com visão e costu-mes diferentes dos nossos, pensa-mos que o princípio da “doaçãopresumida” choca-se com nossaalma latina, por assemelhar-se à“obrigação”, o que possivelmentetrará, ao menos de início, reduçãono número de doadores.

A opção pela doação expressaou presumida, segundo Veatch e Pitt,em 1995, está subordinada à visãopredominante que a comunidade temsobre o direito individual e coletivo eo papel do Estado. Assim, verifica-seque nos países com forte tradiçãodoutrinária fundamentada no direi-to à propriedade e na individualida-de do cidadão, como nos EstadosUnidos, a doação (propriedade dedispor ou não de seu corpo) tem queser expressa, para que o Estado pos-sa garantir a vontade ou o direito docidadão.

Por outro lado, nos países queadotaram a doação presumida, euro-peus principalmente, há predominân-cia da tese de que os direitos individu-ais e de propriedade do cidadão de-vem ser preservados desde que não fi-ram os interesses da coletividade, nosquais o Estado deve intervir para fazerprevalecer. No entanto, mesmo nessespaíses há a tendência de buscar con-ciliar esses interesses quando se obser-va a preocupação em certificar-se daopinião da família.

A justificativa para a adoção do“princípio da doação presumida” foiexatamente o baixo índice de doações,com conseqüente carência de órgãospara transplantes ocasionando gran-des filas de pacientes que aguardamdesesperados por órgãos que nuncachegam, gerando, inclusive, privilegia-mento dos pacientes mais ricos.

Pensamos que não são estas nemas verdadeiras causas da insuficiênciade transplantes em nosso meio nem amelhor solução para o problema. Naverdade, a baixa oferta de transplan-tes em nosso país é apenas uma parti-cularidade da ineficiência do sistema

Page 164: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

166

de saúde em atender às necessidadesda população, desde os cuidados bá-sicos até os procedimentos de maiorcomplexidade e alto custo, como o casode quimioterapia para câncer, trata-mento da AIDS, exames sofisticados eos transplantes. Assim, sem que se re-solva essa questão estrutural do siste-ma, nada funcionará adequadamentena saúde no país, até mesmo a políti-ca de transplantes, qualquer que sejaa natureza da doação preconizada emlei. A experiência de outros países, in-clusive de culturas bastante diferentesda nossa, demonstram que umamelhoria dos índices de transplantesdepende mais de uma adequada es-trutura do que de uma ilusóriasuperoferta de órgãos almejada peladoação presumida. Na prática, conti-nuam os médicos a procurar obter al-gum tipo de autorização familiar paraa retirada dos órgãos.

Defendemos o princípio da doa-ção consentida (haverá outra manei-ra de doar algo que não com o con-sentimento expresso?) associado agrandes e permanentes campanhas dedivulgação junto à população, ao ladoda reestruturação do sistema de saú-de, adequando-o às necessidades dapopulação brasileira. É necessário queo governo federal assuma suas respon-sabilidades de grande financiador dasaúde (pois é o grande arrecadador deimpostos) e viabilize a efetivaimplementação do SUS dentro dosprincípios constitucionais e das leisregulamentadoras, vigentes já há qua-se uma década e, na prática, ignora-das pelos governantes.

Bibliografia

Argentina. Decree nº 512 of 10 April1995, laying down regulations for theimplementation of law nº 24193 of 24March 1993 on the transplantation oforgans and anatomical materials.Boletin Oficial de la República Argenti-na, Section 1, 17 April 1995.International Digest of Health Legislation1996;47:461-2.

Bailey L. Organ transplantation: aparadigm oh medical progress. HastingsCent Rep 1990;20(1):24-8.

Brasil. Decreto nº 879, de 22 de julho de1993. Regulamenta a Lei nº 8.489, de 18de novembro de 1992, que dispõe sobrea retirada e o transplante de tecidos, ór-gãos e partes do corpo humano, com finsterapêuticos, científicos e humanitários.Diário Oficial da União, Brasília, n. 139,p. 10298, 23 jul 1993. Seção 1.

Brasil. Decreto nº 2.268, de 30 de ju-nho de 1997. Regulamenta a Lei nº9.434, de 4 de fevereiro de 1997, quedispõe sobre a remoção de órgãos, teci-dos e partes do corpo humano para finsde transplante e tratamento, e dá ou-tras providências. Diário Oficial daUnião, Brasília, n. 123, p. 13739, 1 jul1997. Seção 1.

Brasil. Lei nº 8.489, de 18 de novem-bro de 1992. Dispõe sobre a retirada etransplante de tecidos, órgãos e partesdo corpo humano com fins terapêuticose científicos, e dá outras providências.Diário Oficial da União, Brasília, n. 223,20 nov 1992. Seção 1.

Brasil. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos,tecidos e partes do corpo humano parafins de transplante, e dá outras providên-cias. Diário Oficial da União, Brasília, n.25, p. 2191-3, 5 fev 1997. Seção 1.

Cabrol C. Transplantes y donación deórganos. Foro Mundial de la Salud1995;16:210-211.

Page 165: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

167

Canada. Manitoba. The human tissueact, chapter 39. Date to assent: 17 July1987. Acts of the Legislature odManitoba, 1987-88, pp. 345-357.International Digest of Health Legislation1990;41:251-5.

Canada. New Brunswick. An act,chapter 44, to amend the human tissueact. Date to assent: 18 June 1986. Actsof New Brunswick, 1986, 2 pp.International Digest of Health Legislation1990;41:255.

Chaves A. Direito à vida e ao própriocorpo. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 1986.

Council of Europe. Organtransplantation. Conference of EuropeanHealth Ministers; 1987 Nov 16-17; Pa-ris. Strasbourg: Council of Europe,1987.

Denmark. Law nº 402 of 13 June 1990on the examination of cadavers, autop-sies and transplantation. Lovtidende,1990, 14 June 1990, nº 63, pp. 1331-1334. International Digest of HealthLegislation 1991;42:30-2.

Dickens BM. Tendencias actuales de labioética en el Canadá. Bol Of SanitPanam 1990;108:524-30.

Finland. Law nº 780 of 25 August 1994amending section 11 of the law on theremoval of human organs and tissuesfor medical purposes. FinlandsFörfattningssamting, 31 August 1994, nº780-788, p. 2383. International Digestof Health Legislation 1995;46:33.

Fluss SS. Comercio de órganos huma-nos: reacción internacional. Foro Mun-dial de la Salud 1991;12:325-8.

France. Decree nº 90.845 of 24September 1990 on activities realting toorgan transplantation that requireimmunosuppressive treatment. JournalOfficiel de la République Française, Loiset Décrets, 25 September 1990, nº 222,pp. 11607-11608. International Digestof Health Legislation. 1991;42:650-1.

France. Decree nº 94.870 of 10 October1994 on the french transplantationestablishment, and amending the publichealth code, second part: decrees madeafter conculting the Conseil d´État.Journal Officiel de la RépubliqueFrançaise, Lois et Décrets, 11 October1994, nº 236, pp. 14375-14379.International Digest of Health Legislation1995;46:33-4.

France. Decree nº 96.327 of 16 April1996 on the import and export oforgans, tissues, and cells of human body,with the exception of gametes andamending the public health cade.Second part: decrees made afterconsulting the Conseil d´État. JournalOfficiel de la République Française, Loiset Décrets, 18 April 1996, nº 92, pp.5954-5957. International Digest ofHealth Legislation 1996;47:331-7.

France. Law nº 94.654 of 29 July 1994on the donation and use of elements andproducts of the human body, medicallyassisted procreation, and prenataldiagnosis. Journal Officiel de laRépublique Française, Lois et Décrets,30 July 1994, nº 175, pp. 1160-1168.International Digest of Health Legislation1994;45:473-82.

France. Order of 24 September 1990 onthe contents of the dossier for applyingfor an authorization to undertale organtransplantations. Journal Officiel de laRépublique Française, Lois et Décrets,25 September 1990, nº 222, p. 11608.International Digest of Health Legislation1991;42:652.

France. Order of 24 September 1990 onthe management aand financing of thelist of patient awaiting transplantation.Journal Officiel de la RépubliqueFrançaise, Lois et Décrets, 25 September1990, nº 222, p. 11610. InternationalDigest of Health Legislation1991,42:653.

France. Order of 24 September 1990 onthe procedures for the evaluation oforgan transplantation activities. JournalOfficiel de la République Française, Lois

Page 166: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

168

et Décrets, 25 September 1990, nº 222,pp. 11608-11609. International Digestof Health Legislation 1991,42:652.

Garrafa V, Berlinguer G. A última mer-cadoria: a compra, a venda e o aluguelde partes do corpo humano. Humani-dades 1993;8:315-27.

Garrafa V. O mercado de estruturas hu-manas; A soft human market. Bioética1993;1:115-23.

Garrafa V. Resposta ao mercado huma-no. Rev Ass Med Brasil 1995;41(1):67-76

Garrafa V. Usos e abusos do corpo hu-mano. Saúde em Debate 1992;36:24-9.

India. An act, nº 42 of 1994, to providefor the regulation of removal, storage andtransplantation of human organs fortherapeutic purposes and for theprevetion of commercial dealings inhuman organs and for matters connectedtherewic or incidental thereto. Date ofassent by the president: 8 July 1994. Thetransplantation of human organs act,1994. International Digest of HealthLegislation 1995;1:34-8.

Italy. Basilicata. Regional law nº 5 of10 February 1992 promulgatingmeasures for the promotion of organtransplantation in Italy. BollettinoUfficiale della Basilicata, 16 February1992, nº 7; La Legislazione Italiana, 1992,vol. 49, p. 194. International Digest ofHealth Legislation 1994; 45:320.

Italy. Decree nº 694 of 9 November 1994of the President of the Republicpromulgating regulations laying downprovisions governing the simplification ofthe authorization procedure fortransplants. Gazzetta Ufficiale dellaRepublica Italiana, 21 December 1994,nº 297. International Digest of HealthLegislation 1995;46:477-8.

Italy. Law nº 198 of 13 July 1990regulating the removal of parts ofcadavers for purposes of therapeutictransplantation. Gazzetta Ufficiale dellaRepublica Italiana, part I, 25 July 1990,

nº 172, p. 3. International Digest ofHealth Legislation 1991;42:448-449.

Italy. Law nº 301 of 12 August 1993promulgating rules on the removal andtransplantation of corneas. GazzettaUfficiale della Republique Italiana, 17August 1993, nº 192, p.3. InternationalDigest of Health Legislation1994;45:319.

Italy. Sardina. Regional Law nº 8 of 3February 1993 laying down provisionssupplementing regional law nº 3 of 8January 1988 regulating the removaland transplatation of human organs andtissues. Ragiusan, April 1993, nº 107,pp. 162-164. International Digest ofHealth Legislation 1994;45:320.

Lienhar A, Luciani J, Maroudy D,Haertig A, Frantz Ph, Kuss R et all.Incidence de la loi caillavet sur lesprélèvements d” organes. Le ConcoursMédical; 9(03085):107-10.

Mexico. Decree of 11 June 1991amending and repealing variousprovisions of the general law on health.Diario Oficial de la Federación, 14 June1991, nº 11, pp. 27-40; corrigendum,ibid., 12 July 1991, pp. 18-19.International Digest of Health Legislation1992;43:704-12.

Mexico. Technical rules nº 323 of 8November 1988 on the donation ofhumanorgans and tissues for therapeuticpurposes. Diario Oficial de laFederación, 14 November 1988, nº 10,pp. 35-40. International Digest of HealthLegislation 1994;45:320.

Portugal. Decree-Law nº 244/94 of 26September 1994. Diário da República,part I-A, 26 September 1994, o. 223,pp. 5780-5782. International Digest ofHealth Legislation 1995;46:38-9.

Russian Federation. Law of 22 December1992 of the russian federation on thetransplantation of human organs and/or tissues. Dated 22 December 1992.International Digest of Health Legislation1993;44:239-42.

Page 167: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

169

Russian Federation. Resolution of 22December 1992 of the supreme sovieteof the russian federation on the entry intoforce of the law of the russian federationon the transplantation of human organsand/or tissues. International Digest ofHealth Legislation 1993;44:243.

Spain. Murcia. Order of 20 March 1991of the office of the councellor for healthon the authorization of centres forreneval and transplation opf humanorgans and tissues in the autonomouscommunity of the region of murcia.Boletín Oficial del Ministerio de Sanidady Consumo, April-June 1991, nº 34, pp.1126-7.

Spinsanti S. Ética biomédica. São Pau-lo: Edições Paulinas, 1990.

Sweden. Law nº 831 of June 1995 ontransplantation, etc. Svenkförfattningssamling, 1995, 22 June1995, 4pp. International Digest ofHealth Legislation 1996;47:28-30.

Switzerland. Geneva. Law of 16September 1988 on the determinationof death and interventions on humancadavers. Recueil authentique des loiset actes du governement de laRèpublique et canton de Gèneve,November 1988, nº 11, pp. 864-870.International Digest of Health Legislation1990;41:68

United Kingdon. An act, chapter 31, toprohibit commercial dealings in humanintended for transplanting; to restrict thetransplanting to such organs betweenpersons who are not genetically reealted;and for supplementary purposesconnected with those matters. Date toassent: 27 July 1989. The Human OrganTransplant Act 1989. International Digestof Health Legislation 1989;40:840-1.

United Kingdon. General MedicalCouncil issues statement ontransplantation of organs from livedonors. International Digest of HealthLegislation 1993;44:370-6.

United Kingdon. Isle of Man. An act,chapter nº 3, to prohibit commercialdealings in human organs intended fortransplantating; to prohibit thetransplantating of such organs betweenpersons who are not genetically realted;and for connected purposes. Dated 16March 1993. The human organstransplants acts 1993. InternationalDigest of Health Legislation1996;47:169-70.

United States of America. California.The uniform anatomical gift act. West’sAnnotated California Codes, Health andSafety Code, vol. 39, sections 4600 to9999 (1991 Cumulative Pocket part), pp.55-64. International Digest of HealthLegislation 1992;43:52-9.

United States. Public law 98-507:national organ transplant act. In:Mathiev D, editor. Organ substitutiontechonology: ethical, legal and publicpolicy issues. Boulder: Westview, c1988:309-16.

Veatch RM, Pitt JB. The myth ofpresumed consent: ethical problems innew organ procurement strategies.Transpl Proc 1995;27:1888-92.

World Health Organization. Human organtransplantation: a report on developmentsunder the auspices of WHO 1987-1991.Geneva: WHO, 1991.

Page 168: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

170

Page 169: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

171

Leonard M. Martin, C.Ss.R

Eutanásia e Distanásia

Introdução

O compromisso com a defesa dadignidade da vida humana, na grandemaioria dos casos, parece ser a preo-cupação comum que une as pessoassituadas nos diversos lados da dis-cussão sobre eutanásia e distanásia.Este fato é importante porque indicaque as discordâncias ocorrem mais emrelação aos meios a utilizar do que emrelação ao fim desejado. Isto não sig-nifica que há consenso sobre o que seentende por “compromisso com a de-fesa da dignidade da vida humana”,mas possuir clareza sobre a tarefa emmãos – seja esclarecimento dos fins al-mejados, seja esclarecimento dos meios– só pode ajudar na busca de uma éti-ca que respeite a verdade da condi-ção humana e aquilo que é bom e cor-reto nos momentos concretos da vidae da morte.

Neste capítulo, portanto, nossoobjetivo é modesto. Não pretendemosresolver todos os problemas que a di-nâmica da tensão entre a eutanásia e

a distanásia levanta. Pretendemos,sim, contribuir para um maior escla-recimento sobre o que significa falaracerca de uma morte digna e sobre osmeios éticos necessários para alcan-çar este fim. Nesta busca de compre-ensão, o grande instrumento a nossodispor é a linguagem e a identificaçãode palavras cujas referências são apro-priadas nos contextos onde são utili-zadas. Assim, podemos descobrir commais segurança aquilo que é bom,compreender melhor aquilo que é fra-queza e desmascarar sem medo aqui-lo que é maldade humana.

A estratégia que propomos seguirem nossa reflexão é, primeiro, tentaridentificar os problemas que a eutaná-sia e a distanásia querem resolver. Osofrimento no fim da vida é um dosgrandes desafios, que assume novoscontornos neste fim de milênio dianteda medicalização da morte e do poderque as novas tecnologias dão à profis-são médica para abreviar ou prolongaro processo de morrer. Qualidade e quan-tidade de vida na fase terminal da exis-tência humana assumem conotações

Page 170: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

172

insuspeitadas há cinqüenta ou cemanos. Esta situação complica-se ain-da mais diante das mudançasverificadas no estilo de praticar a me-dicina. No Brasil, pode-se detectar pelomenos três paradigmas da prática mé-dica: o paradigma tecnocientífico, oparadigma comercial-empresarial e oparadigma da benignidade humanitá-ria e solidária, cada qual com suasprioridades e estratégias diante do do-ente terminal e da problemática do seusofrimento.

O segundo ponto que pretende-mos abordar é a situação muitas ve-zes chamada de eutanásia social. Su-gerimos que este conjunto de situaçõesé melhor caracterizado pelo termomistanásia, a morte miserável, fora eantes da hora. A eutanásia, pelo me-nos em sua intenção, quer ser umamorte boa, suave, indolor, enquanto asituação chamada eutanásia socialnada tem de boa, suave ou indolor.Dentro da grande categoria demistanásia quero focalizar três situa-ções: primeiro, a grande massa de do-entes e deficientes que, por motivospolíticos, sociais e econômicos, nãochegam a ser pacientes, pois não con-seguem ingressar efetivamente no sis-tema de atendimento médico; segun-do, os doentes que conseguem ser pa-cientes para, em seguida, se tornar ví-timas de erro médico e, terceiro, os pa-cientes que acabam sendo vítimas demá-prática por motivos econômicos,científicos ou sociopolíticos. Amistanásia é uma categoria que nospermite levar a sério o fenômeno damaldade humana.

O terceiro ponto que queremosaprofundar é a eutanásia propriamen-te dita, um ato médico que tem por fi-

nalidade acabar com a dor e a indig-nidade na doença crônica e no mor-rer, eliminando o portador da dor. Odebate sobre o sentido deste termogera, às vezes, mais calor que ilumi-nação mas é importante que as pesso-as percebam com clareza o que estãoaprovando e o que estão condenando.

Nosso quarto ponto é um esfor-ço para mostrar que rejeitar a euta-násia não significa necessariamentecair no outro extremo, a distanásia,onde a tecnologia médica é usadapara prolongar penosa e inutilmenteo processo de agonizar e morrer.Mais uma vez, neste caso, a clarezaterminológica é indispensável parafundamentar juízos éticos consisten-tes.

Nosso quinto ponto, trabalhandocom o conceito de saúde como bem-estar, procura mostrar que não preci-samos apelar nem para a eutanásianem para a distanásia para garantir adignidade no morrer. Nossa tese finalserá que a ortotanásia, que procurarespeitar o bem-estar global da pessoa,abre pistas para as pessoas de boavontade garantirem, para todos, dig-nidade no seu viver e no seu morrer.

Os problemas que a eutanásiae a distanásia querem resolver

A eutanásia e a distanásia, comoprocedimentos médicos, têm em co-mum a preocupação com a morte doser humano e a maneira mais adequa-da de lidar com isso. Enquanto a euta-násia se preocupa prioritariamente coma qualidade da vida humana na sua fasefinal – eliminando o sofrimento –, a

Page 171: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

173

distanásia se dedica a prolongar ao má-ximo a quantidade de vida humana,combatendo a morte como o grande eúltimo inimigo.

Estas caracterizações iniciais daeutanásia e da distanásia, apontandopara os valores que querem proteger,podem servir de ponto de partida paranossa discussão.

A primeira grande questão paraambas é a morte do ser humano e osentido que esta morte apresenta, prin-cipalmente quando acompanhada defortes dores e sofrimento psíquico eespiritual. Até um momento relativa-mente recente na história da humani-dade, a chamada morte natural porvelhice ou doença simplesmente faziaparte da vida e, em grande parte, fu-gia do nosso controle. A morte violen-ta, por outro lado, vem sendo aperfei-çoada pela maldade humana duranteséculos e já alcançou requintes de per-versidade e capacidade de mortanda-de em massa jamais sonhados no pas-sado. Muitos dos receios que surgemna discussão sobre eutanásia edistanásia refletem a consciência quese tem de tanta violência e, no contex-to da medicalização da morte, são re-sultado do crescente poder modernosobre os processos ligados com a cha-mada morte natural e o espectro damão curadora do médico se transfor-mar em mão assassina.

Diante destas ambigüidades, paramaior clareza na discussão, parece-meoportuno distinguir entre a morteprovocada que acontece num contex-to terapêutico sob a supervisão de pes-soal médico devidamente habilitado etodas as outras formas de morte vio-lenta, sejam acidentais, sejam propo-sitais. Esta distinção nos proporciona-

rá uma maior precisão terminológicae maior segurança nas decisões queprecisam ser tomadas, seja como mem-bro da equipe médica, seja como pa-ciente, familiar ou responsável legal.

No período pré-moderno, o mé-dico e a sociedade estavam bastanteconscientes de suas limitações diantedas doenças graves e da morte. Mui-tas vezes, o papel do médico não eracurar, mas sim acompanhar o pacien-te nas fases avançadas de sua enfer-midade, aliviando-lhe a dor e tornan-do o mais confortável possível avivência dos seus últimos dias. Demodo geral, o médico era uma figurapaterna, um profissional liberal, numrelacionamento personalizado com seupaciente, muitas vezes um velho co-nhecido. Os ritos médicos foram acom-panhados de ritos religiosos e tanto omédico como o padre tornaram-separceiros na tarefa de garantir para apessoa uma morte tranqüila e feliz.

Com a modernização da medici-na, novos estilos de praticar a ciênciae novas atitudes e abordagens dianteda morte e do doente terminal emergi-ram. O paradigma tecnocientífico damedicina se orgulha, com bastante ra-zão, diante dos significativos avançosobtidos nos últimos cem anos nas ci-ências e na tecnologia biomédica. Atu-almente, doenças e feridas antigamen-te letais são curáveis desde que tenhamtratamento adequado. O orgulho, po-rém, facilmente se transforma em ar-rogância e a morte, ao invés de ser odesfecho natural da vida, transforma-se num inimigo a ser vencido ou numapresença incômoda a ser escondida.

Outro paradigma da moder-nidade, bastante ligado aos desenvol-vimentos tecnológico e científico, é o

Page 172: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

174

paradigma comercial-empresarial. Oadvento da tecnologia, novosfármacos e equipamentos sofistica-dos tem um preço, e às vezes bemalto. Este fato deu margem para aevolução de um estilo de medicinaonde o médico deixa de ser um pro-fissional liberal e se torna um funcio-nário, nem sempre bem pago, queatua no contexto de uma empresahospitalar. Principalmente no setorprivado, a capacidade do doente ter-minal pagar a conta, e não o diag-nóstico, é o que determina sua ad-missão como paciente e o tratamen-to a ser subseqüentemente emprega-do. Já que, nesta perspectiva, o fatoreconômico predomina, é o poderaquisitivo do freguês, mais que a sa-bedoria médica, que determina oprocedimento terapêutico – a infiltra-ção desta mentalidade nota-se mes-mo nos grandes centros de atendi-mento médico mantidos pelos cofrespúblicos.

Um terceiro paradigma da me-dicina, o paradigma da benignidadehumanitária e solidária, reconhecen-do os benefícios da tecnologia e daciência e a necessidade de uma boaadministração econômica dos servi-ços de saúde, procura resistir aos ex-cessos dos outros dois paradigmas ecolocar o ser humano como o valorfundamental e central na sua visãoda medicina a serviço da saúde, des-de a concepção até a morte. Esteparadigma rejeita a mistanásia emtodas as formas, questiona os queapelam para a eutanásia e adistanásia e, num espírito de benig-nidade humanitária e solidária,procura promover nas suas práti-cas junto ao mor ibundo a

ortotanásia, a morte digna e huma-na na hora certa.

Um outro problema – que tem umgrande peso na discussão sobre euta-násia e distanásia – é a definição domomento da morte. Em muitos casos,não há nenhuma dúvida sobre o óbitodo paciente e o fato é aceito sem con-testação tanto pela equipe médicacomo pela família. Há outros casos,porém, bastante polêmicos. A utiliza-ção de tecnologia sofisticada que per-mite suporte avançado da vida levan-ta a questão de quando iniciar e quan-do interromper o uso de tal recurso. Acrescente aceitação da constatação demorte encefálica como critério paradeclarar uma pessoa morta é decisivanão somente em casos onde se preci-sa liberar o corpo para enterro, mas,também, para liberá-lo como fonte deórgãos para transplante.

A mistanásia: a “eutanásiasocial”

Uma frase freqüentemente utiliza-da é eutanásia social. No entanto, con-sidero ser este um uso totalmenteinapropriado da palavra eutanásia e,assim, deve ser substituído pelo uso dotermo mistanásia: a morte miserávelfora e antes do seu tempo. A eutaná-sia, tanto em sua origem etimológica(“boa morte”) como em sua intenção,quer ser um ato de misericórdia, querpropiciar ao doente que está sofrendouma morte boa, suave e indolor. Assituações a que se referem os termoseutanásia social e mistanásia, porém,não têm nada de boas, suaves nemindolores.

Page 173: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

175

Mistanásia em doentes e deficien-tes que não chegam a ser pacientes

Na América Latina, de modo ge-ral, a forma mais comum demistanásia é a omissão de socorro es-trutural que atinge milhões de doentesdurante sua vida inteira e não apenasnas fases avançadas e terminais desuas enfermidades. A ausência ou aprecariedade de serviços de atendi-mento médico, em muitos lugares, ga-rante que pessoas com deficiências fí-sicas ou mentais ou com doenças quepoderiam ser tratadas morram antes dahora, padecendo enquanto vivem do-res e sofrimentos em princípio evitá-veis.

Fatores geográficos, sociais, polí-ticos e econômicos juntam-se para es-palhar pelo nosso continente a mortemiserável e precoce de crianças, jo-vens, adultos e anciãos: a chamadaeutanásia social, mais corretamentedenominada mistanásia. A fome, con-dições de moradia precárias, falta deágua limpa, desemprego ou condiçõesde trabalho massacrantes, entre outrosfatores, contribuem para espalhar afalta de saúde e uma cultura excludentee mortífera.

É precisamente a complexidadedas causas desta situação que gera nasociedade um certo sentimento de im-potência propício à propagação damentalidade “salve-se quem puder”.Planos de saúde particulares paraquem tem condições de pagar e o ape-lo às medicinas alternativas tradicio-nais e novas por parte do rico e dopobre, igualmente, são dados sintomá-ticos de um mal-estar na sociedadediante da ausência de serviços de saú-de em muitos lugares e do

sucateamento dos serviços públicos eda elitização dos serviços particularesem outros. Numa sociedade onde re-cursos financeiros consideráveis nãoconseguem garantir qualidade no aten-dimento, a grande e mais urgente ques-tão ética que se levanta diante do do-ente pobre na fase avançada de suaenfermidade não é a eutanásia, nem adistanásia, destinos reservados paradoentes que conseguem quebrar asbarreiras de exclusão e tornar-se paci-entes, mas, sim, a mistanásia, destinoreservado para os jogados nos quar-tos escuros e apertados das favelas ounos espaços mais arejados, emboranão necessariamente menos poluídos,embaixo das pontes das nossas gran-des cidades.

Mistanásia por omissão é, semdúvida, a forma de mistanásia maisespalhada no chamado Terceiro Mun-do. Há, porém, formas de mistanásiaativa que merecem breve comentáriotanto por causa de sua importânciahistórica como da tendência de con-fundi-las com eutanásia.

A política nazista de purificaçãoracial, baseada numa ciênciaideologizada, é um bom exemplo daaliança entre a política e as ciênciasbiomédicas a serviço da mistanásia.Pessoas consideradas defeituosas ouindesejáveis foram sistematicamenteeliminadas: doentes mentais, homos-sexuais, ciganos, judeus. Pessoas en-quadradas nestas categorias não pre-cisavam ser doentes terminais paraserem consideradas candidatas ao ex-termínio. Pode-se argumentar, tam-bém, que o uso de injeção letal em exe-cuções nos Estados Unidos, principal-mente se a aplicação for feita por pes-soal médico qualificado, é um abuso

Page 174: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

176

da ciência médica que constituimistanásia e, de fato, é um tipo de máprática condenado pelo Código [Bra-sileiro] de Ética Médica (elaborado em1988), no seu artigo 54.

Os campos de concentração, comgrande quantidade de cobaias huma-nas à disposição, favoreceram outro tipode mistanásia ativa. Em nome da ciên-cia, foram realizadas experiências emseres humanos que em nada respeita-vam nem a integridade física nem odireito à vida dos participantes. Assim,seres humanos foram transformadosem cobaias descartáveis.

O Brasil não está à margem daforte reação mundial a este tipo decomportamento. A Resolução n° 196/96, do Conselho Nacional de Saúde,adota uma série de medidas para ga-rantir a integridade e a dignidade deseres humanos que participam em ex-periências científicas. A resolução exi-ge, nesta situação, cuidados especiaispara defender os interesses de gruposvulneráveis. O Código de Ética Médi-ca comunga com esta mesma preo-cupação quando, atentando para umgrupo vulnerável específico, o pacientecrônico ou terminal, proíbe explicitamen-te, em seu artigo 130, experiências semutilidade para o mesmo, com a intençãode não lhe impor sofrimentos adicionais.

Mistanásia em pacientes vítimas deerro médico

Um outro tipo de situaçãomistanásica que nos preocupa é aquelados doentes que conseguem ser admi-tidos como pacientes, seja em consul-tórios particulares, em postos de saú-de ou em hospitais, para, em seguida,se tornarem vítimas de erro médico.

O Código de Ética Médica (1988)fala de três tipos de erro médico: deimperícia, de imprudência e de negli-gência (artigo 29). Nossa intenção aquié apenas apontar alguns destes errosque surgem no caso do paciente crô-nico ou terminal e que constituemmistanásia.

Um exemplo de mistanásia porimperícia é quando o médico deixa dediagnosticar em tempo uma doençaque poderia ter sido tratada e curadaporque ele descuidou da sua atualiza-ção e da sua formação continuada(conforme o art. 5º do Código). A im-perícia do médico por desatualizaçãocondena o paciente a uma morte do-lorosa e precoce.

Outra forma de mistanásia porimperícia é a equipe médica deixarde tratar adequadamente a dor dopaciente crônico ou terminal por fal-ta de conhecimento dos avanços naárea de analgesia e cuidado da dor,principalmente quando este conhe-cimento for de acesso relativamentefácil. A falta de habilidade nesta áreapode significar, para o paciente, umamorte desfigurada por dor desneces-sária.

A mistanásia como resultado daimprudência médica pode ser aponta-da em vários casos.

Principalmente quando o médicofor adepto da medicina curativa e nãovê muito sentido em perder tempo compacientes desenganados, ele pode cor-rer o risco de prescrever tratamento ououtros procedimentos sem exame di-reto do paciente (postura condenadapelo artigo 62 do Código). Esta atitu-de talvez poupe o tempo do médico,mas expõe o doente a risco de terapiapaliativa inadequada e sofrimento des-

Page 175: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

177

necessário, ambos características típi-cas da mistanásia.

Outra forma de imprudência quepode levar a resultados mistanásicos éo profissional de saúde efetuar qual-quer procedimento médico sem o es-clarecimento e o consentimento prévi-os do paciente, só porque é crônico outerminal. Deixando de lado os casosprevistos nos artigos 46 e 56 do Códi-go (apelo ao responsável legal e imi-nente perigo de vida), a imprudênciaem desconsiderar a autonomia do pa-ciente crônico e terminal pode provo-car um mal-estar mental e espiritualdevido à perda sensível de controlesobre sua vida, tornando miserável emistanásico o processo de morrer. Odireito de saber e o direito de decidirnão são direitos absolutos, mas o res-peito por eles no contexto de parceriaentre o doente e a equipe médica certa-mente é elemento fundamental na pro-moção do bem-estar global do pacienteem fase avançada ou terminal de sua do-ença.

Mistanásia por negligência tam-bém surge para ameaçar o doente queconsegue se transformar em paciente.

Sem levar em consideração oscasos de mistanásia que atingem osdoentes que não têm acesso a servi-ços de atendimento médico e que mor-rem antes da hora devido à omissãode socorro estrutural, queremos aquiapontar a mistanásia provocada poromissão de socorro na relação médi-co-paciente já estabelecida ou peloabandono do paciente.

É verdade que casos de negligên-cia que provocam danos ao pacientecrônico ou terminal, aumentando seusofrimento e tornando mais miserávelsua morte, podem ser fruto de pregui-

ça ou desinteresse por parte do médi-co e tais casos, certamente, são repro-váveis. Não seria justo, porém, jogar aculpa por toda a negligência nas cos-tas do médico como indivíduo, já quemuitas vezes a negligência é fruto decansaço e sobrecarga de serviços de-vido às condições de trabalho impos-tas a muitos profissionais em hospitaise postos de saúde.

Sem desmerecer estas considera-ções, é importante apontar duas for-mas de mistanásia por negligênciaonde o médico precisa se responsabi-lizar e que o atual Código de ÉticaMédica procura evitar: a omissão detratamento e o abandono do pacientecrônico ou terminal sem motivo justo.

Não se contesta que o médico tem,até certo ponto, o direito de escolherseus pacientes e ele não é obrigado aatender a qualquer um, indiscrimi-nadamente (conforme o artigo 7º doCódigo). Este direito, porém, como tan-tos outros, não é absoluto. É limitadopela cláusula, no mesmo artigo, “salvona ausência de outro médico, em ca-sos de urgência, ou quando sua nega-tiva possa trazer danos irreversíveis aopaciente”. O princípio de beneficênciae o apelo à solidariedade humana nestecaso pesam mais que o princípio daautonomia do médico. O Código re-força esta posição no artigo 58 quan-do veda ao médico “deixar de atenderpaciente que procure seus cuidadosprofissionais em caso de urgência,quando não haja outro médico ou ser-viço médico em condições de fazê-lo”.O médico que na ausência de outro seomite em casos de urgência ou que,pela inércia, causa danos irreversíveisao paciente, precipitando uma morteprecoce e/ou dolorosa, é responsável

Page 176: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

178

por uma negligência que constitui nãoapenas um erro culposo mas, também,uma situação mistanásica.

Se esta posição é válida para ospacientes de modo geral, aplica-se demodo especial ao paciente crônico eterminal e o Código se esforça paraindicar precisamente isso quando tra-ta especificamente do problema doabandono do paciente.

Além dos artigos 36 e 37 que ve-dam ao médico abandonar plantão epacientes de modo geral, há um artigoque trata especificamente da proble-mática do abandono do paciente crô-nico e terminal, o artigo 61. A posiçãofundamental assumida é que é veda-do ao médico “abandonar pacientesob seus cuidados”. As exceções sãoregulamentadas por dois parágrafosexplicativos. O § 1º estabelece o pro-cedimento a seguir quando o médicoconsidera que não há mais condiçõespara continuar dando assistência:“Ocorrendo fatos que, a seu critério,prejudiquem o bom relacionamentocom o paciente ou o pleno desempe-nho profissional, o médico tem o di-reito de renunciar ao atendimento, des-de que comunique previamente ao pa-ciente ou seu responsável legal, asse-gurando-se da continuidade dos cui-dados e fornecendo todas as informa-ções necessárias ao médico que lhe su-ceder”. O § 2º insiste que o fato de opaciente ser portador de moléstia crô-nica ou incurável não é motivo sufici-ente para abandoná-lo, “salvo por justacausa, comunicada ao paciente ou aseus familiares, o médico não podeabandonar o paciente por ser este por-tador de moléstia crônica ou incurá-vel, mas deve continuar a assisti-lo ain-da que apenas para mitigar o sofrimen-

to físico ou psíquico”. É interessantenotar que nos códigos de 1929 e de1931, em artigos com a mesma nu-meração, o abandono do pacientecrônico ou terminal é categoricamen-te proibido. De acordo com o artigo8/1929 (pouco modificado em 1931):“0 médico não deverá abandonarnunca os casos chronicos ouincuraveis e nos difficeis e prolonga-dos será conveniente e ainda neces-sário provocar conferencias com ou-tros collegas”.

O abandono do paciente crônicoou terminal que implica na recusa de“continuar a assisti-lo ainda que apenaspara mitigar o sofrimento físico ou psí-quico” constitui, pois, por causa das suasconseqüências, uma forma demistanásia rejeitada pela profissão mé-dica no Brasil desde os primórdios dasua tradição codificada.

Mistanásia em pacientes vítimas demá prática

A grande diferença entre amistanásia por erro médico e amistanásia por má prática reside nadiferença entre a fraqueza humana ea maldade. O erro, mesmo culposo porcausa da presença dos fatores imperí-cia, imprudência ou negligência, é fru-to da fragilidade e da fraqueza huma-na e não de uma intenção propositalde prejudicar alguém. A má prática,porém, é fruto da maldade e amistanásia por má prática ocorrequando o médico e/ou seus associa-dos, livremente e de propósito, usam amedicina para atentar contra os direi-tos humanos de uma pessoa, em be-nefício próprio ou não, prejudicandodireta ou indiretamente o doente ao

Page 177: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

179

ponto de menosprezar sua dignidadee provocar uma morte dolorosa e/ouprecoce.

Fundamental para esta análise éa convicção de que o foco de atençãopara a profissão médica deve ser asaúde do ser humano, convicção for-mulada claramente no artigo 2º doCódigo de 1988: “O alvo de toda aatenção do médico é a saúde do serhumano, em beneficio da qual deveráagir com o máximo de zelo e o melhorde sua capacidade profissional”. Odesvio deste alvo levanta sérias preo-cupações de ordem ética. Já é gravequando se usa a medicina para mal-tratar qualquer pessoa, como, porexemplo, na prática de tortura ou nacomercialização de órgãos para trans-plante, principalmente quando retira-dos de doador pobre, vulnerável porcausa de sua situação econômica.Quando se usa a medicina para mal-tratar o paciente, a gravidade é maiscomplexa ainda por violar um rela-cionamento especial de confiança ede vulnerabilidade estabelecido entrea pessoa doente e o profissional desaúde.

A malícia, aqui, consiste no usomaldoso da medicina contra o ser hu-mano ou para tirar proveito dele, emlugar de usá-la para promover seu bem-estar.

Não pretendemos demorar muitoneste ponto, mas vale a pena indicaralgumas situações típicas para ilustrarmelhor esta forma de mistanásia.

Um primeiro exemplo demistanásia por má prática pode surgirno caso de idosos internados em hos-pitais ou hospícios onde não se ofere-cem alimentação e acompanhamentoadequados, provocando assim uma

morte precoce, miserável e sem digni-dade. Não há dúvida que tal situaçãoconstitui mistanásia, a única dúvida éde que tipo? É preciso distinguir entrea mistanásia que, por exemplo, ocorrenuma cidadezinha pobre do interior,num abrigo para idosos abandonadosmantido a duras penas por pessoas deboa vontade e com poucos recursos, ea mistanásia por má prática que surgenuma empresa hospitalar quando averba destinada à alimentação eacompanhamento dos idosos for des-viada para beneficiar financeiramen-te donos, administradores ou funcio-nários da instituição, deixando os pa-cientes numa situação de miséria, pro-vocando-lhes uma morte indigna eantes da hora.

Outro exemplo de mistanásiapor má prática, muitas vezes confun-dido com eutanásia por causa da mo-tivação do responsável pelo ato, équando profissionais de saúde, mui-tas vezes enfermeiros que têm dificul-dades pessoais em conviver por lon-gos períodos com pacientes termi-nais, por conta própria se tornam“anjos da morte”, administrandomedicamentos aos seus pacientesidosos, crônicos ou terminais, visan-do apressar o óbito. O fato de sermotivado por compaixão não justifi-ca esta atitude autoritária que, alémde ferir o direito à vida dessas pes-soas confiadas aos seus cuidados,fere também outros direitos ligadosà autonomia do paciente crônico outerminal: o direito de saber qual o tra-tamento proposto pela equipe médi-ca e o direito de decidir sobre proce-dimentos terapêuticos que o afetam,ou pessoalmente ou por meio do seuresponsável legal.

Page 178: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

180

Claro que a má prática se tornamuito mais grave se procedimentospara abreviar a vida de pacientes ido-sos, crônicos ou terminais, especial-mente sem sua anuência, for políticaassumida pela administração do hos-pital ou hospice e não apenas iniciati-va de profissionais isolados.

Um último exemplo de mistanásiapor má prática é retirar um órgão vi-tal, para transplante, antes de a pes-soa ter morrido. O Código de ÉticaMédica de 1988 procura evitar estaprática proibindo ao médico que cui-da do paciente potencial doador – eresponsável pela declaração de óbito– participar da equipe de transplante.Além da dimensão ética que pede res-peito pelo direito à vida da pessoa,mesmo nos seus últimos momentos, háuma dimensão pragmática ligada comesta proibição. Se pessoas desconfiamque possam ser mortas para fornecerórgãos para outros, é bem possível queo número de pessoas recusando serdoador aumente significativamente.

Resumindo, podemos dizer que assituações de mistanásia provocada porerro são graves mas, de modo geral,são fruto da fraqueza e fragilidade dacondição humana. Não devem serjulgadas com a mesma severidade comque se julgam situações mistanásicasonde as pessoas se tornam vítimas demá prática por motivos econômicos,científicos ou sociopolíticos, ou de ou-tra forma de má prática qualquer frutoda maldade humana.

Estas distinções todas que acaba-mos de ver são importantes porque nospermitem distinguir entre situações deimpotência devido às macroestruturassociais e às situações de responsabili-dade individual ou comunitária

marcadas pela fraqueza e a maldadehumana.

Com esta análise das diversas for-mas de mistanásia, preparamos o ter-reno para tentar esclarecer melhor osentido dos termos eutanásia, distanásiae ortotanásia.

A eutanásia

A detalhada discussão damistanásia que acabamos de apresen-tar é importante, em primeiro lugar,para explicar o que se entende pormistanásia e, em segundo lugar, paraajudar-nos a entender melhor aquiloque a eutanásia não é. No meio detanta confusão terminológica, a abor-dagem do tema pela via negativa faci-lita o processo de esclarecimento peloqual um determinado tipo de compor-tamento se identifica corretamentecomo sendo eutanásia, o que é indis-pensável para poder emitir com sere-nidade um juízo ético fundamentado.É pouco provável que os comporta-mentos que acabamos de caracterizarcomo mistanásia tenham seus defen-sores do ponto de vista da ética, masa eutanásia, para muita gente, conti-nua uma questão aberta. É justamen-te por isso que queremos examinar aeutanásia levando em consideração oresultado que provoca, a intenção oumotivação que se tem para praticar oato, a natureza do ato e as circunstân-cias. Também, precisamos distinguirentre o valor moral, considerado obje-tivamente, que se pode atribuir a umato eutanásico e a culpa ética ou jurí-dica que se pode atribuir num deter-minado caso.

Page 179: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

181

Uma das grandes diferenças en-tre a mistanásia e a eutanásia é o re-sultado. Enquanto a mistanásia provo-ca a morte antes da hora – de umamaneira dolorosa e miserável –, a eu-tanásia provoca a morte antes da horade uma maneira suave e sem dor. Éjustamente este resultado que torna aeutanásia tão atraente para tantas pes-soas.

A grande preocupação dos parti-dários da eutanásia é justamente tirarda morte o sofrimento e a dor e a gran-de crítica que eles fazem aos que rejei-tam a eutanásia é que estes são desu-manos, dispostos a sacrificar sereshumanos no altar de sistemas moraisautoritários que valorizam mais prin-cípios frios e restritivos que a autono-mia das pessoas e a liberdade que asdignificam.

Não há dúvida que, aqui, existemelementos éticos de peso: o direito dodoente crônico ou terminal ter sua dortratada e, quando possível, aliviada; apreocupação em salvaguardar, aomáximo, a autonomia da pessoa e suadignidade na presença de enfermida-des que provocam dependência pro-gressiva e a perda de controle sobre avida e sobre as funções biológicas; e opróprio sentido que se dá ao fim davida e à morte.

Resta, porém, a questão: se a eu-tanásia é tão desejável como seus de-fensores afirmam, por que há tantaresistência, durante tanto tempo, porparte da ética médica codificada e porparte da teologia moral?

Pelo menos uma parte da respos-ta reside no próprio resultado que aeutanásia traz. O grande objetivo éproteger a dignidade da pessoa, elimi-nando o sofrimento e a dor. A dificul-

dade, do ponto de vista da ética médi-ca codificada e da teologia moral, éque, na eutanásia, se elimina a dor eli-minando o portador da dor.

O Código de Deontologia Médi-ca de 1931 expressa bem este dilemano seu artigo 16. Primeiro, afirma que“o médico não aconselhará nem prati-cará, em caso algum, a eutanásia”. Emseguida, afirma que o médico tem odireito e o dever de aliviar o sofrimen-to, “mas esse alívio não pode ser leva-do ao extremo de dar a morte por pie-dade”. A postura adotada é sedar, sim;matar, não. A partir do Código deDeontologia Médica de 1945 (artigo 4º.5) os códigos brasileiros de ética mé-dica não mais utilizam o termo euta-násia, porém a reprovação da morteproposital por mão de médico perma-nece firme.

No atual Código, de 1988, o arti-go 6º dá continuidade a esta tradiçãoafirmando claramente a preocupaçãocom o valor da vida humana quandodiz: “O médico deve guardar absolutorespeito pela vida humana, atuandosempre em benefício do paciente. Ja-mais utilizará seus conhecimentos paragerar sofrimento físico ou moral, parao extermínio do ser humano ou parapermitir e acobertar tentativa contrasua dignidade e integridade”. Esta for-mulação vai muito além de qualquerconcepção biologista do ser humano,afirmando que o tratamento deve serem benefício do paciente, que não sedeve usar a medicina para gerar sofri-mento, nem para ofender a dignidadee integridade das pessoas e, menosainda, para o extermínio do ser huma-no. Como complemento desta afirma-ção de princípios, dentro da grandetradição da benignidade humanitária,

Page 180: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

182

o Código veda ao médico: “Utilizar, emqualquer caso, meios destinados aabreviar a vida do paciente, ainda quea pedido deste ou de seu responsávellegal” (artigo 66).

A moral católica, nos seus textosoficiais, adota uma postura semelhan-te quando declara moralmente repro-vável a eutanásia, entendida como“uma ação ou omissão que, por suanatureza ou nas intenções, provoca amorte a fim de eliminar toda a dor”.Esta afirmação da Sagrada Congrega-ção para a Doutrina da Fé é reforçadapelas palavras do Papa João Paulo II,na sua Carta Encíclica EvangeliumVitae n° 65, quando confirma que “aeutanásia é uma violação grave da leide Deus, enquanto morte deliberada,moralmente inaceitável de uma pessoahumana”.

Resumindo, podemos perceber noresultado da eutanásia dois elementos:a eliminação da dor e a morte do por-tador da dor como meio para alcan-çar este fim. A ética médica codifica-da e a teologia moral acolhem o pri-meiro elemento, o tratamento e a eli-minação da dor, e recusam o segundoelemento, a morte direta e propositaldo portador da dor. Quando se con-dena a eutanásia, não é o controle dador, nem a defesa da dignidade dapessoa humana doente ou moribundaque se condena, mas, sim, aquela par-te do resultado que acaba matando apessoa a fim de matar sua dor. O de-safio é como defender e promover osvalores positivos da eutanásia (quemnão queria uma boa morte, suave e semdor?) sem cair no extremo de matar apessoa depositária da dignidade hu-mana que fundamenta todos os outrosdireitos.

Outra grande diferença entre amistanásia e a eutanásia é a intençãoou motivação que se tem para prati-car o ato. Em certas formas demistanásia, especialmente por má prá-tica, existe a intenção de usar a medi-cina para prejudicar o doente crônicoou terminal, retirando vantagem destasituação. Para um comportamento secaracterizar como eutanásia, porém,é importante que a motivação e a in-tenção visem beneficiar o doente.Apressar o óbito de um doente termi-nal com a intenção de ganhar maisrapidamente a herança seriamistanásia, se não simplesmente as-sassinato. Apressar o óbito deste mes-mo doente terminal, motivado por com-paixão e com a intenção de mitigar seusofrimento, seria eutanásia.

Boas intenções não levam, neces-sariamente, a bons resultados. Com-paixão por aquele que sofre é, semdúvida, um sentimento que enobrecea pessoa. Quando esta compaixãotem como resultado o alívio da dor ea criação de estruturas de apoio quemelhorem o bem-estar do doente ter-minal, estamos diante de uma posturaeticamente louvável. Quando, porém,esta compaixão leva a um ato médicoque diretamente mata o paciente, aca-ba-se tirando da pessoa não apenas apossibilidade de sentir dor mas, tam-bém, qualquer outra possibilidade exis-tencial.

Na administração de analgésicosaos pacientes em fase avançada da suadoença, a questão de intenção podeassumir uma importância muito gran-de na avaliação ética do procedimen-to. Quando, por compaixão, se aplicao analgésico com a finalidade de abre-viar a vida, estamos diante de um caso

Page 181: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

183

de eutanásia. Quando, porém, se apli-ca o analgésico com a finalidade dealiviar a dor e mitigar o sofrimento, emdoses não-letais, mesmo se com issopode haver como efeito colateral umcerto encurtamento da vida, estamosdiante de uma situação diferente. Noprimeiro caso, um ato tem como seuprincipal efeito algo mau (matar dire-tamente alguém) e um efeito secundá-rio bom (eliminar a dor), enquanto nosegundo caso o ato tem como seu prin-cipal efeito algo bom (eliminar a dor)e um efeito secundário mau (indireta-mente, apressar a morte de alguém).No segundo caso, pode-se ver que adiferença reside precisamente na inten-ção: fazer o bem, aliviando a dor; e nanatureza do ato que também é bom:sedar para promover o bem-estar dopaciente. O procedimento se justificapelo princípio do duplo efeito pelo qualse pode fazer algo bom (sedar), comintenção reta (aliviar a dor), mesmo seisso tiver um efeito secundário negati-vo (apressar o processo de morrer numcaso onde a terminalidade irreversi-velmente se instalou).

A distinção entre ação direta eresultados secundários aqui percebidanão pode ser transformada em critériode aplicação mecânica, mas pode serde grande utilidade mais adiante, nadiscussão sobre a distanásia e o senti-do de prolongar indefinidamente a vidahumana em certas circunstâncias.

Para ajudar na clarificaçãoterminológica, nesta fase da discussão,sugerimos que o termo eutanásia sejareservado apenas para a ação ou omis-são que, por compaixão, abrevia dire-tamente a vida do paciente com a in-tenção de eliminar a dor e que outrosprocedimentos sejam identificados

como sendo expressões de mistanásia,distanásia ou ortotanásia, conformeseus resultados, intencionalidade, na-tureza e circunstâncias.

Dentro desta perspectiva queestamos desenvolvendo, ainda faltaconsiderar um pouco mais a fundo anatureza do ato eutanásico e as cir-cunstâncias em que se realiza.

Uma ambigüidade que freqüen-temente surge em relação à naturezada eutanásia é se ela é exclusivamenteum ato médico ou não. Se os fatoresdecisivos na definição da eutanásiasão o resultado (morte provocada, eli-minação da dor) e a motivação (com-paixão), a palavra pode continuar ten-do uma conotação bastante ampla.Nesta acepção da palavra, o ato de ummarido atirar e matar sua esposa queestá morrendo de câncer, porque nãoagüenta mais ouvir suas súplicas paraacabar com tanto sofrimento, poderiaser caracterizado como eutanásia. Se,porém, se acrescenta outro fator, anatureza do ato e a eutanásia for defini-da como ato de natureza médica, de re-pente a situação descrita não é maiseutanásica.

Já que é o uso que consagra osentido das palavras, minha sugestãoé que o ato descrito seja caracterizadocomo homicídio por misericórdia ou,quando muito, suicídio assistido, de-pendendo da participação da vítimano processo. Mais ainda, proponhoque se reserve a palavra eutanásia ex-clusivamente para denotar atos médi-cos que, motivados por compaixão,provocam precoce e diretamente amorte a fim de eliminar a dor.

Acolhida ou não esta sugestão, éimportante, na análise de casosconcretos, notar a diferença entre

Page 182: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

184

um homicídio por misericórdia,culposo ou não, praticado por um pa-rente ou amigo, e um ato médico quemata intencionalmente o doente a fimde aliviar sua dor.

Independentemente desta dis-cussão sobre a abrangência do termo, aeutanásia como ato médico merece ain-da um pequeno comentário. Do pontode vista ético, é importante distinguirentre eutanásia praticada em pessoasque estão sofrendo física ou psicologi-camente, mas cuja condição não é talque ameace imediatamente a vida (life-threatening), e pessoas cuja enfermida-de já entrou numa fase terminal, comsinais de comprometimento progressivode múltiplos órgãos.

Em ambos os casos, seria empo-brecer muito a discussão reduzir a pro-blemática ética à simples questão deautonomia e ao direito da pessoa de-cidir se quer continuar vivendo ou não.Mesmo na perspectiva da ética de prin-cípios, além da autonomia, é precisolevar em conta os princípios da bene-ficência, da não-maleficência e da jus-tiça. Se alargarmos mais ainda o hori-zonte para dialogarmos com as pers-pectivas da ética baseada numpositivismo jurídico ou da ética da vir-tude, novas indagações e novas res-postas aparecerão. Diante desta reali-dade do pluralismo ético, um conceitoadequado de saúde pode ajudar aredimensionar a questão de conflitoentre valores e procedimentos e ofere-cer outras pistas a não ser a morte pre-coce da pessoa.

Analisando, especificamente, ocaso da pessoa que está sofrendo físi-ca ou psicologicamente, mas cuja con-dição não ameaça imediatamente suavida, podemos tecer as seguintes con-

siderações. É perfeitamente compreen-sível que uma pessoa tetraplégica,consciente, lúcida e angustiada peçaa morte para pôr fim ao seu sofrimen-to. Se a saúde significa a ausênciade doença e de enfermidadesincapacitantes e se a autonomia sig-nifica que a pessoa tem liberdade demorrer quando e como quiser, faltan-do outros elementos é difícil encontrarargumentos para negar este pedido. Se,porém, a saúde tem outra conotaçãoe se a autonomia se enquadra numarede de sentidos e não é um critério deação isolado, opções alternativas po-dem ser cogitadas.

Na situação onde se define a saú-de como ausência de doença ou deincapacidade psicomotora, não existemuito sentido falar da saúde do doen-te tetraplégico com pouca perspectivade cura. Quando, porém, se entende asaúde como o bem-estar físico, men-tal, social e espiritual da pessoa, abre-se todo um leque de possibilidadespara falar na saúde do doente crônicoe para promover seu bem-estar. Obem-estar físico da pessoa tetraplégicase promove, em primeiro lugar, cuidan-do de sua higiene, conforto e tratandoinfecções ou moléstias que possam pôrem risco sua vida. Um quarto limpo,com cores alegres e temperatura agra-dável, onde não apenas o doente mastambém os outros que entram se sen-tem à vontade, contribui muito. Nãobasta, porém, cuidar apenas do bem-estar físico. A promoção do bem-estarmental é de fundamental importânciapara poder descobrir junto com o do-ente, exercitando justamente uma au-tonomia co-responsável, outras saídaspara lidar com sua situação a não sera morte precoce. A reconquista de

Page 183: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

185

autoestima e a descoberta das possi-bilidades existenciais dentro das novaslimitações impostas pela sua condiçãofísica são todos caminhos para promo-ver não apenas o bem-estar mental dodoente mas, também, no sentido am-plo do termo, sua saúde. A reconquis-ta da auto-estima acontece, de modoespecial, no mundo das relações hu-manas e é difícil divorciar a promo-ção do bem-estar mental da promoçãodo bem-estar social. Isolamento daconvivência com pessoas significativasé uma das grandes fontes de misériapara o doente crônico. Reverter esteisolamento, recriando redes de rela-cionamento e construindo novo senti-do para viver é um caminho alternati-vo que leva o doente a esquecer seupedido de morte e a investir novamen-te na vida. Nesta fase de construçãode novos sentidos, a preocupação como bem-estar espiritual pode ser um fa-tor decisivo na promoção da saúde glo-bal da pessoa.

À luz desta reflexão, pode-se ar-gumentar que nesta situação onde aangústia é provocada por uma condi-ção que não ameaça diretamente avida, a eutanásia é um procedimentoinapropriado do ponto de vista da éti-ca. O que a situação requer não é in-vestimento na morte mas, sim, investi-mento no resgate da vida e do seu sen-tido.

No caso onde a terminalidade jáse instalou e o comprometimentoirreversível do organismo está em faseavançada, novamente o conceito desaúde com que se trabalha é decisi-vo para poder dialogar com a pro-posta eutanásica. Enquanto no casoanterior o procedimento apropriado foiinvestir na vida, neste caso o procedi-

mento apropriado é investir na morte.A questão é, que tipo de morte?

Se a saúde significa a ausência dedoença e se o doente está com dores atro-zes e numa situação onde não há míni-mas condições de efetuar uma cura,parece não ter sentido falar da saúde dopaciente terminal e a eutanásia pode seapresentar como uma proposta razoá-vel. Se, porém, se entende a saúde comoo bem-estar físico, mental, social e es-piritual da pessoa podemos começar apensar não apenas na saúde do doentecrônico mas, também, em termos dasaúde do doente em fase avançada dasua doença e com índices claros determinalidade.

Nesta perspectiva, a promoção dobem-estar físico do doente terminal,claro, não consiste na sua cura, masnos cuidados necessários para asse-gurar seu conforto e o controle da suador. Garantir este bem-estar físico é umprimeiro passo para manter sua saú-de enquanto morre. Mas bem-estar fí-sico apenas não basta. Muitas vezes,é o mal-estar mental que leva o doenteterminal a pedir a morte antes da hora.Por isso, uma estratégia importantepara permitir a pessoa repensar seupedido de eutanásia é ajudá-la a re-criar seu equilíbrio e bem-estar men-tal. O sentir-se bem mental e emocio-nalmente é componente fundamentalna saúde do doente terminal. Da mes-ma forma, o bem-estar social e espiri-tual agregam às outras formas de bem-estar uma condição que permita à pes-soa aguardar com tranqüilidade amorte e viver plenamente dentro desuas possibilidades enquanto ela nãovem.

Para concluir esta parte da nossareflexão sobre a eutanásia e os dile-

Page 184: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

186

mas éticos que levanta, precisamosdistinguir entre o valor moral, consi-derado objetivamente, que se pode atri-buir a um ato eutanásico e a culpa éti-ca ou jurídica que se pode atribuir numdeterminado caso.

Trabalhando com a definição deeutanásia que nós mesmos propomos:atos médicos que, motivados por com-paixão, provocam precoce e direta-mente a morte a fim de eliminar a dor,precisamos traçar alguns parâmetrospara a valoração da eutanásia em ca-sos concretos.

Na tradição jurídica ocidental ena tradição da ética médica codifica-da e da teologia moral não há dúvidaque a eutanásia, nos termos traçados,é considerada objetivamente comosendo um mal. Isto não significa, po-rém, que estas tradições desconsideremo elemento subjetivo e tratem unifor-memente todos os casos onde há ho-micídio por misericórdia ou onde háeutanásia no sentido mais restrito pornós proposto. As distinções que exis-tem no direito entre crime e pena e nateologia moral entre o mal, o pecado ea culpa podem ajudar nos casos con-cretos onde a pessoa pratica o que éobjetivamente um mal, segundo os cri-térios dos sistemas jurídicos e éticos,mas onde ela considera que está pro-cedendo corretamente.

Em relação à problemática jurí-dica, um sistema de leis pode, perfei-tamente, continuar acenando no sen-tido de que a eutanásia é um mal ob-jetivo, prejudicial à sociedade, carac-terizando-a como crime e, ao mesmotempo, incorporar na legislação meca-nismos pelos quais não se prevêempenas para pessoas que praticam taisatos movidas por fortes emoções,

como, por exemplo, compaixão diantede grande sofrimento, ou por retas in-tenções, como, por exemplo, aliviar ador. O ato continua sendo crime, masas pessoas que o praticam, em deter-minadas circunstâncias especificadas,não são punidas, não porque a euta-násia em si não seja um mal, mas por-que outros fatores entram na elabora-ção do juízo ético-jurídico.

Na teologia moral, algo semelhan-te existe na distinção que se faz entreo mal objetivo e o pecado, entre amaldade praticada e a culpa pessoal.Para caracterizar um pecado gravenão basta uma pessoa cometer um atoobjetivamente mal, como matar umapessoa inocente. Precisa, também, terconhecimento claro e pleno que aqui-lo que se faz está errado e ter plenaliberdade para agir. Em relação à eu-tanásia, em determinados casos é pos-sível juntar estes três elementos: maté-ria grave, clara consciência e plenaliberdade; nesta circunstância, o atoeutanásico seria um pecado. Porém,no dia-a-dia dos doentes terminais,quando se praticam atos eutanásicos,muitas vezes por causa das pressõesemocionais, familiares ou sociais, fal-tam os elementos de clareza de cons-ciência ou de liberdade. Nestes casos,o próprio documento do Vaticano queversa sobre a eutanásia (de 1980) re-conhece que pode haver diminuiçãoou até ausência total de culpa.

A distanásia

A mistanásia e a eutanásia têmem comum o fato de provocarem amorte antes da hora. A distanásia erra

Page 185: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

187

por outro lado, não conseguindodiscernir quando intervenções terapêu-ticas são inúteis e quando se deve dei-xar a pessoa abraçar em paz a mortecomo desfecho natural de sua vida.Neste comportamento, o grande valorque se procura proteger é a vida hu-mana. Enquanto na eutanásia a preo-cupação maior é com a qualidade davida remanescente, na distanásia atendência é de se fixar na quantida-de desta vida e de investir todos osrecursos possíveis em prolongá-la aomáximo.

A distanásia, que também é ca-racterizada como encarniçamentoterapêutico ou obstinação ou futilida-de terapêutica, é uma postura ligadaespecialmente aos paradigmastecnocientífico e comercial-empresarialda medicina.

Ajuda-nos a entender melhor aproblemática da distanásia situá-lana transição da medicina como arte,nas suas expressões pré-modernas,para a medicina como técnica e ci-ência, na sua expressão mais moder-na. Os avanços tecnológicos e cien-tíficos e os sucessos no tratamentode tantas doenças e deficiências hu-manas levaram a medicina a se pre-ocupar cada vez mais com a cura depatologias e a colocar em segundoplano as preocupações mais tra-dicionais com o cuidado do porta-dor das patologias. A saúde se defi-ne em termos de ausência de doençae o grande inimigo a derrotar é amorte. O importante é prolongar aomáximo a duração da vida humana;a qualidade desta vida, um conceitode difícil mediação para a ciência ea tecnologia, passa para segundo pla-no.

A questão técnica, nesta ótica, écomo prolongar os sinais vitais de umapessoa em fase avançada de sua do-ença e cuja terminalidade se constataa partir de critérios objetivos como, porexemplo, a falência progressiva e múl-tipla de órgãos. A questão ética é: atéquando se deve investir neste empre-endimento? Que sentido este investi-mento tem?

No Brasil, na tradição da éticamédica codificada, durante certo tem-po havia uma tendência a respaldarum comportamento distanásico. Omotivo apresentado pelo Código de1931 para reprovar a eutanásia é “por-que um dos propósitos mais sublimesda medicina é sempre conservar e pro-longar a vida” (artigo 16). Se aceitar-mos que a finalidade da medicina “ésempre conservar e prolongar a vida”estamos claramente deitando as raízesda justificação da distanásia com seuconjunto de tratamentos que não dei-xam o moribundo morrer em paz. Noatual Código de Ética Médica notamosuma importante mudança de ênfase.O objetivo da medicina não é apenasprolongar ao máximo o tempo de vidada pessoa. O alvo da atenção do mé-dico é a saúde da pessoa e o critériopara avaliar seus procedimentos é seeles vão beneficiá-la ou não (artigo 2º).O compromisso com a saúde, princi-palmente se for entendida como bem-estar global da pessoa e não apenasausência de doença, abre a possibili-dade de se preocupar com questõesoutras no tratamento do doente termi-nal que apenas questões curativas.Mesmo assim, continua firme a con-vicção, encontrada em códigos ante-riores, de que “o médico deve guardarabsoluto respeito pela vida humana”

Page 186: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

188

(artigo 6º). Esta tensão entre benefici-ar o paciente com tratamentos paliati-vos – que talvez abreviem sua vida masque promovem seu bem-estar físico emental – e a absolutização do valor davida humana no seu sentido biológicogera um dilema que alguns médicospreferem resolver a favor do prolonga-mento da vida.

Dentro da perspectiva doparadigma tecnocientífico, a justifica-ção do esforço para prolongar indefi-nidamente os sinais vitais é o valorabsoluto que se atribui à vida huma-na. Dentro da ótica do paradigma co-mercial-empresarial da medicina, aobstinação terapêutica segue outraracionalidade. Aqui, ela tem sentido namedida em que gera lucro para a em-presa hospitalar e os profissionais nelaenvolvidos. Havendo um plano de saú-de ou uma família ou instituição dis-postos a investir neste procedimento,os tratamentos continuam enquanto opaciente não morrer ou os recursosnão acabarem. Dentro de um sistemade valores capitalistas, onde o lucro éo valor primordial, esta exploração dafragilidade do doente terminal e dosseus amigos e familiares tem sua pró-pria lógica. Uma lógica sedutora por-que, além de garantir lucro para aempresa, parece defender um dos gran-des valores da ética humanitária, ovalor da vida humana. Porém, a pre-cariedade do compromisso com o va-lor da vida humana, nesta perspecti-va, se manifesta logo que comecem afaltar recursos para pagar as contas.Uma tecnologia de ponta que pareciatão desejável de repente é retirada etratamentos mais em conta, do pontode vista financeiro, são sugeridos.

O paradigma médico da benigni-

dade solidária e humanitária e a teo-logia moral procuram outras aborda-gens na tentativa de resolver o dilemaentre tratar em excesso ou deixar detratar o suficiente o doente terminal.Procuram mostrar que atribuir grandevalor à vida humana não significa umaopção por uma frieza cruel diante dosofrimento e da dor do paciente termi-nal. A medicina tecnocientífica tendea resolver o dilema caindo em um dosdois extremos. Ou escolhe a eutanásia– reconhecendo sua impotência e, nes-te caso, opta por abreviar o sofrimen-to, abreviando a vida, alegando que jáque não pode mais curar a pessoa nãohá sentido em prolongar a agonia – ouescolhe a distanásia – ofendida no seubrio, optando por resistir à morte atéas últimas conseqüências, mostrandouma obstinação terapêutica que vaialém de qualquer esperança de bene-ficiar o doente ou promover seu bem-estar global. A medicina que atua den-tro do paradigma da benignidade hu-manitária e solidária e que opera como conceito de saúde como bem-estartende a optar por um meio termo quenem mata nem prolonga exagera-damente o processo de morrer, masque procura favorecer à pessoa umamorte sem dor, uma morte digna nahora certa, rodeada de amor.

A teologia moral procura abordara questão afirmando que a vida e asaúde são bens fundamentais que per-mitem a conquista de tantos outrosbens, mas que não são bens absolu-tos. A vida nesta terra é finita e a mor-te é um fenômeno natural que pode serdomado mas não evitado. O sentidoque se dá ao viver e ao morrer é que éimportante. A tradição cristã reconhe-ce que há circunstâncias em que a

Page 187: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

189

pessoa pode, legitimamente, sacrificarsua saúde e sua vida – por exemplo,para salvar a vida de outra pessoa.Reconhece, também, que há momen-tos quando se deve lutar para afastara morte e momentos quando se deveparar e abraçá-la.

Já em meados do século XX, opapa Pio XII, preocupado emhumanizar a situação do paciente ter-minal, falou da distinção entre meiosordinários e meios extraordinários emrelação ao direito e dever de empregaros cuidados necessários para conser-var a vida e a saúde. Enquanto con-denava claramente a eutanásia, elerechaçou a distanásia afirmando queninguém é obrigado a usar meios ex-traordinários para manter a vida. Eleestabelece como princípio básico odireito e dever de empregar os cuida-dos necessários para conservar a vidae a saúde. Somente é obrigação, po-rém, usar meios ordinários que nãoimpõem nenhum ônus extraordináriopara si mesmo ou para outros. Nestaperspectiva, determinadas cirurgias outratamentos caros no exterior podemser legitimamente recusados. O fato denão ser obrigado a fazer algo não tiraa liberdade de fazê-lo e isto é a tercei-ra consideração que Pio XII apresen-ta. É permitido apelar para meios ex-traordinários, com a condição de nãofaltar com deveres mais graves.

Em 1980, com a Declaração so-bre a Eutanásia, a posição da Igreja foiaperfeiçoada um pouco mais. Diantedas dificuldades de se definir, em ca-sos concretos, quais os meios ordiná-rios e extraordinários, a Declaraçãoadota a terminologia de meios propor-cionados e meios não proporcionados.Por esta distinção se entende que há

um dever básico de cuidar da saúde,mas deve existir uma proporciona-lidade entre os meios usados para istoe os resultados previsíveis. Principal-mente quando não há mais possibili-dade de se recuperar de uma doença– e quando já se iniciou o processo demorrer – “é lícito, em consciência, to-mar a decisão de renunciar a tratamen-tos que dariam somente um prolonga-mento precário e penoso da vida sem,contudo, interromper os cuidados nor-mais devidos ao doente em casos se-melhantes”.

O que abre horizontes para pro-cedimentos éticos que evitam adistanásia é a distinção entre terapiae cuidados normais. Cuidar do asseiodo paciente, do seu conforto e de suaalimentação – na medida em que essapode ser tolerada por via oral – consti-tuem, sem dúvida, cuidados normais.A obrigação ética de recorrer a qual-quer outro procedimento que constituiato médico ou terapêutico, incluindo,a meu ver, alimentação artificial, pre-cisa ser avaliada à luz da propor-cionalidade entre o ônus para o paci-ente e para os responsáveis pelo seubem-estar e os benefícios que razoa-velmente possam ser previstos. Não hánenhuma obrigação de iniciar ou con-tinuar uma intervenção terapêuticaquando o sofrimento ou o esforço gas-to são desproporcionais aos benefíciosreais antecipados. Neste caso, não é ainterrupção da terapia que provoca amorte da pessoa, mas a patologia previ-amente existente.

Na perspectiva da benignidadehumanitária e solidária, o importanteé viver com dignidade e, quando che-gar a hora certa, morrer com dignida-de também.

Page 188: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

190

A ortotanásia

Estas reflexões nos levam a per-ceber que, para os que favorecem umamedicina tecnocientífica ou comerci-al-empresarial, uma mudança deparadigma se impõe se quiserem evi-tar os excessos da eutanásia e dadistanásia. Enquanto o referencial fora medicina predominantemente cura-tiva, é difícil encontrar caminho quenão pareça desumano, por um lado, oudescomprometido com o valor da vidahumana, por outro. Uma luz importan-te advém da mudança de compreen-são do que realmente significa saúde,que vem sendo impulsionada pelaredefinição deste termo pela Organi-zação Mundial da Saúde, para a qualjá chamamos a atenção. Em lugar deser entendida como a mera ausênciade doença, propõe-se uma compreen-são da saúde como bem-estar globalda pessoa: bem-estar físico, mental esocial. Quando a estes três elementosse acrescenta também a preocupaçãocom o bem-estar espiritual, cria-se umaestrutura de pensamento que permiteuma revolução em termos da aborda-gem ao doente crônico ou terminal.

Dentro do horizonte da medicinacurativa que entende a saúde, primor-dialmente, como a ausência de doen-ça, é absurdo falar da saúde do doen-te crônico ou terminal porque, por de-finição ele não tem nem pode ter saú-de. Porém, se redimensionamos nossoconceito de saúde para focalizar suasdimensões positivas, reinterpretando-a como sendo um estado de bem-es-tar, descobrimos formas de discursonas quais existe sentido em se falar dasaúde do doente crônico ou terminal,

já que nos referimos a seu bem-estarfísico, mental, social e espiritual, mes-mo quando não há mínima perspecti-va de cura, e isto faz sentido.

O compromisso com a promoçãodo bem-estar do doente crônico e ter-minal permite-nos não somente falarde sua saúde mas, também, de desen-volver um conceito de ortotanásia, aarte de bem morrer, que rejeita todaforma de mistanásia sem, no entanto,cair nas ciladas da eutanásia nem dadistanásia.

A ortotanásia permite ao doenteque já entrou na fase final de sua do-ença, e àqueles que o cercam, enfren-tar seu destino com certa tranqüilida-de porque, nesta perspectiva, a mortenão é uma doença a curar, mas simalgo que faz parte da vida. Uma vezaceito este fato que a cultura ocidentalmoderna tende a esconder e a ne-gar, abre-se a possibilidade de tra-balhar com as pessoas a distinçãoentre curar e cuidar, entre manter avida – quando isto for o procedimentocorreto – e permitir que a pessoa mor-ra – quando sua hora chegou.

Neste processo o componente éti-co é tão importante quanto o compo-nente técnico. O ideal é realizar aintegração do conhecimento científico,habilidade técnica e sensibilidade éti-ca numa única abordagem. Quandose entende que a ciência, a técnica e aeconomia têm sua razão de ser no ser-viço à pessoa humana individual, co-munitária e socialmente, descobre-seno doente crônico e terminal um valoraté então escondido ou esquecido.Respeito pela sua autonomia: ele temo direito de saber e o direito de deci-dir; direito de não ser abandonado;direito a tratamento paliativo para

Page 189: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

191

amenizar seu sofrimento e dor; direitode não ser tratado como mero objetocuja vida pode ser encurtada ou pro-longada segundo as conveniências dafamília ou da equipe médica são to-das exigências éticas que procurampromover o bem-estar global do doen-te terminal e, conseqüentemente, suasaúde enquanto não morre. No fundo,ortotanásia é morrer saudavelmente,cercado de amor e carinho, amando esendo amado enquanto se preparapara o mergulho final no Amor que nãotem medida e que não tem fim.

Conclusão

Em nosso esforço para esclareceros termos eutanásia e distanásia intro-duzimos na discussão mais dois ter-mos: mistanásia e ortotanásia. Agin-do assim, esperamos tanto ter aperfei-çoado os instrumentos lingüísticos anosso dispor como ter permitido umpequeno avanço na promoção dobem-estar e saúde do doente crônicoe terminal.

Uma convicção básica que nossustentou nesta reflexão é que o rosto dodoente cuja vida chega ao fim não podeser escondido em toda esta discussão,nem seu nome esquecido. É quando seesconde o rosto e se esquece o nome queé mais fácil despersonalizar o caso e tra-tar o corpo – objeto dos nossos cuida-dos – como um objeto desprovido dascomplicações inerentes no trato da mãe,do filho ou do avô de alguém querido.

Não há dúvida que é mais fáciltratar a morte como um fenômeno pu-ramente biológico. A dificuldade é quea morte de seres humanos recusa sim-

plificações desta natureza. Aspectosjurídicos, sociais, psicológicos, cultu-rais, religiosos insistem em se “intro-meter” e “complicar” a situação. Oobjeto biológico constantemente setransforma num sujeito pessoal reivin-dicando direitos, dignidade e respeito.Nesta insistência do “eu” em incomo-dar o objetivo científico, surgem osparâmetros éticos e as questões vitaisque procuramos identificar dentro dascategorias de mistanásia, eutanásia,distanásia e ortotanásia.

Bibliografia

Anjos MF. Eutanásia em chave de liber-tação. Boletim do ICAPS, 1989jun;7(57):6.

Bizatto JI. Eutanásia e responsabilida-de médica. Porto Alegre: Sagra, 1990.

Comissão Episcopal Espanhola. Comis-são Episcopal para a Defesa da Vida. Aeutanásia: 100 perguntas e respostas so-bre a defesa da vida humana e a atitu-de dos católicos. Lisboa: Edições SãoPaulo, 1994.

Conselho Federal de Medicina (Brasil). Có-digo de Ética Médica. Resolução CFM nº1.246/88. Rio de Janeiro: CFM, 1988.

Gafo J. La eutanasia: el derecho a unamuerte humana. Madrid: Ediciones Te-mas de Hoy, 1989.

Gafo J, editors. La eutanasia e el artede morir. Madrid: Universidad PontificiaComillas, 1990. (Dilemas éticos de lamedicina actual, 4).

Häring B. Medicina e moral no séculoXX. Lisboa: Editorial Verbo, 1974.

Page 190: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

192

João Paulo II. Evangelium vitae: cartaencíclica sobre o valor e a inviolabilidadeda vida humana. São Paulo: Paulinas,1995.

Kübler-Ross E. Sobre a morte e o mor-rer. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

Martin LM. A ética médica diante dopaciente terminal: leitura ético-teológi-ca da relação médico-paciente terminalnos códigos brasileiros de ética médica.Aparecido, SP: Santuário, 1993.

Martin LM. O código brasileiro de éticamédica e os direitos do doente na fasefinal da AIDS. In: Pessini L,Barchifontaine CP, organizadores. SãoPaulo: Paulus, 1996.

Martin LM. Evangelizar e serevangelizado pelo doente terminal. In:Pessini L. Vida, esperança e solidarie-dade: subsídio para profissionais eagentes de Pastoral da Saúde e dosenfermos, para o trabalho domiciliar,hospitalar e comunitário. Aparecida,SP: Santuário, 1992: 136-44.

Martin LM. Os limites da vida: questõeséticas nos cuidados do paciente termi-nal. Fragmentos de Cultura: revista doInstituto de Filosofia e Teologia de Goiás1997 jun;(24):21-36.

Martin LM. O paciente terminal nos có-digos brasileiros de ética médica I. Re-vista Eclesiástica Brasileira 1993Mar;53:72-86.

Martin LM. O paciente terminal nos có-digos brasileiros de ética médica II. Re-vista Eclesiástica Brasileira 1993Jun;53:349-73.

Martin LM. Saúde e bioética: a arte deacolher e conquistar o bem-estar. OMundo da Saúde 1996 nov./dez.;20(10):368-73.

Pessini L. Distanásia: até quando inves-tir sem agredir? Bioética 1996;4:31-43.

Pessini L. Eutanásia e América Latina:questões ético-teológicas. Aparecida,SP: Santuário, 1990.

Pessini L. Morrer com dignidade: atéquando manter a vida artificialmente?Aparecida, SP: Santuário, 1990.

Sagrada Congregação para a Doutrinada Fé. Declaração sobre a eutanásia.SEDOC 1980 Set., col. 173.

Vidal M. Eutanásia: um desafio para aconsciência. Aparecida, SP: Santuário,1996.

Vidal M. Moral da pessoa e bioética te-ológica. In: ______. Moral de atitudes.4.ed.rev.atual. Aparecida, SP: Santuá-rio, 1997. vol 2, t.1.

Page 191: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

193

Introdução

Admite-se que as ciências expe-rimentais, a partir das quais se desen-volveram os outros ramos da ciência,têm como marco inicial simbólico ascontribuições e, sobretudo, a posturade Galileu no século XVI.

Desde então os avanços científi-cos se fizeram de tal forma que, ao fi-nal de dois séculos, configurou-se econsolidou-se a chamada RevoluçãoCientífica.

No século XX, a evolução cientí-fica e tecnológica apresentou ritmo tãovertiginoso a ponto de se poder falarem mais duas revoluções, no mesmoséculo: a revolução atômica, na primei-ra metade do século, e a revoluçãomolecular, a partir da década de 50 ecujo auge está sendo vivenciado nosdias de hoje.

Por outro lado, desde Galileu onúmero de cientistas vivos vem dupli-cando a cada 10 a 15 anos; estima-seque, hoje, o mundo dispõe de um nú-mero de cientistas maior, talvez, que o

Corina Bontempo D. FreitasWilliam Saad Hossne

Pesquisa com Seres Humanos

número total de cientistas que o mun-do já teve e morreram. E, caso a curvado crescimento não sofra inflexão, da-qui a 10 – 15 anos teremos o dobro decientistas em relação aos dias atuais.

Essas duas considerações, a re-volução científica e o número de cien-tistas em ação, merecem pequena re-flexão dentro de nosso tema. Ambosos fatos significam, em última análise,a geração constante e crescente denovos conhecimentos e novastecnologias, os quais se destinam aohomem e irão atingi-lo de modo diretoe indireto. E a primeira aplicação doconhecimento ou da tecnologia no serhumano é, no fundo, uma experimen-tação. Assim, é lícito assumir o con-ceito de que, cada vez mais, estaráaumentando o número de experimen-tações em seres humanos.

Em geral, quando se pensa noassunto, o foco se concentra nas pes-quisas na área médica, no máximo nabiomédica ou na saúde. Compreende-se, até certo ponto, que assim seja. Aspesquisas na área das profissões dasaúde são, em geral, mais visíveis, com

Page 192: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

194

conseqüências imediatas; além domais, principalmente na área médica,onde existe uma tradição ética de vin-te e cinco séculos, há constante preo-cupação com esse aspecto.

Contudo, na verdade, a experi-mentação com seres humanos ocorreue vem ocorrendo em muitas outrasáreas, muitas vezes sem a devida pre-ocupação com os aspectos éticos.

Faz-se experimentação com sereshumanos no setor da educação, da fi-sioterapia, da terapia ocupacional, daeducação física, da sociologia, etc. eaté na economia (nem sempre com asdevidas premissas científicas ou bási-cas e, no geral, atingindo coletivida-des).

O ser humano pode também es-tar sendo objeto (e não sujeito) de pes-quisa, sem que o saiba; podem ocor-rer situações em que só a posteriori oscientistas e o ser humano submetido àexperimentação tomam conhecimentode que houve uma “experimentaçãohumana”.

Foi o caso dos linfomas detecta-dos em prevalência maior nas locali-dades (na Europa) em que as crian-ças conviveram constantemente comredes de alta tensão. Foi o caso, tam-bém, das leucemias diagnosticadas emoperadores (e em seus descendentes)de radar por longo período, durante aII Guerra.

Vale lembrar que, do ponto de vis-ta biológico, em animais, está bem de-monstrada a ocorrência de alteraçõessangüíneas, eletroencefalográficas,cromossômicas, oculares e testiculares,decorrentes da emissão de energias dealta freqüência. Convém, a propósito,não esquecer a “alta poluição” nos gran-des centros, ocasionada pela elevada

concentração de torres de emissão deenergia.

Nos dias de hoje, o ser humanotem o poder, graças à nova biologia,de interferir e até dominar setores ouáreas de importância vital (ou mortal):poder sobre a reprodução (até mesmoa concepção sem sexo), sobre a here-ditariedade (terapêuticas gênicas,transgenicidade), sobre as neurociên-cias (transplante de células nervosas,condicionamentos psico-farmacoló-gicos), clonagem.

A possibilidade da aplicaçãoindevida dos conhecimentos, da ciên-cia e da tecnologia, podendo levar atéà destruição da humanidade, foium dos fatores que deram origemao neologismo proposto há vinte ecinco anos por Potter – “Bioética” –,o qual tem, hoje, na verdade, uma ou-tra conotação, mais ampla.

Todas essas considerações apon-tam para a oportunidade e necessida-de premente de se discutir a questãoda experimentação com seres huma-nos, de modo a permitir os avanços daciência e da tecnologia em benefícioda humanidade, tendo, contudo, comocentro de preocupação, o respeito peladignidade do ser humano.

Quanto à pesquisa propriamentedita, são de estarrecer o número, a di-versidade e as circunstâncias em quese cometeram abusos, dentro e forados campos de concentração, durantea II Grande Guerra. Abusos que, àsvezes, tiveram a participação de pes-soas de alto prestígio científico e comamparo de órgãos de apoio à pesqui-sa e de outros cuja função seria a decuidar da saúde da população.

Inoculação experimental de sífilisem adolescentes, o não – tratamento

Page 193: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

195

deliberado de pacientes sifilíticos ou demulheres com lesões pré-cancerosasdo colo do útero, com objetivo de curi-osidade científica, a inoculação pro-posital do vírus da febre amarela, dadengue, da hepatite, sem o devido res-paldo ético, são exemplos clássicos –sem falar das experiências realizadascom prisioneiros de guerra, em estu-dos sobre congelamento, ação de ve-nenos ou radiações.

Com este pano de fundo, não dei-xa de ser surpreendente o fato de quesomente em 1947 a humanidade deci-diu estabelecer as primeiras normasreguladoras da pesquisa em seres hu-manos. Normas que surgiram quandodo julgamento dos crimes de guerrados nazistas, ao se tomar conhecimento(aliás, na verdade, parte já era conhe-cida) das situações abusivas da expe-rimentação, que foram denominadascomo “crimes” contra a humanidade.Surge, então, o Código de Nürembergestabelecendo normas básicas de pes-quisas em seres humanos, prevendo aindispensabilidade do consentimentovoluntário, a necessidade de estudosprévios em laboratórios e em animais,a análise de riscos e benefícios da in-vestigação proposta, a liberdade dosujeito da pesquisa em se retirar doprojeto, a adequada qualificação ci-entífica do pesquisador, entre outrospontos.

O princípio da autonomia, reco-nhecidamente um dos referenciais bá-sicos da Bioética, se enuncia, assim,no Código de Nüremberg. Vale lembrar,pois, que esta autonomia (autodeter-minação) se firma na regulamentaçãoda pesquisa e que, somente muitosanos depois, se incorpora nos Códi-gos de Ética (melhor dizendo, de

Deontologia) dos profissionais desaúde.

Não obstante a dramaticidade docontexto em que surge o Código deNuremberg, os abusos continuaram aocorrer. Já na década de 60, Beecherchamava a atenção para o grande nú-mero de pesquisas de experimentaçãohumana conduzidas de forma etica-mente inadequada e publicadas emrevistas médicas de renome.

Em 1964, na 18ª Assembléia daAssociação Médica Mundial foi revis-to o Código de Nüremberg e aprovadaa Declaração de Helsinque, introdu-zindo a necessidade de revisão dosprotocolos por comitê independente, aqual, revista na década de 70 (Tóquio)e de 80 (Veneza e Hong Kong) e, porúltimo, em 1996 na 48ª AssembléiaGeral realizada em Somerset West, Re-pública da África do Sul, continuouporém conhecida com o nome de De-claração de Helsinque. Nesta declara-ção se estabelecem também as normaspara a pesquisa médica sem finsterapêuticos.

Na década de 80, o Council forInternational Organizations of MedicalSciences (CIOMS), juntamente com aOrganização Mundial da Saúde(OMS), elaboraram um documentomais detalhado sobre o assunto esti-pulando as “Diretrizes internacionaispara a pesquisa biomédica em sereshumanos”, traduzida para a línguaportuguesa pelo Ministério da Saúde.O documento foi reavalizado e pu-blicado em nova versão em 1993,traduzido e publicado pela revistaBioética, do Conselho Federal deMedicina (CFM).

Na década de 90, o CIOMS lançao primeiro documento especificamente

Page 194: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

196

voltado para a pesquisa em estudos decoletividade (estudos epidemiológicos):International Guidelines for EthicalReview of Epidemiological Studies.

Normas no Brasil: aResolução CNS nº196/96

No Brasil, merece destaque a Re-solução CNS nº 1, de 13 de junho de1988, do Conselho Nacional de Saú-de – é o primeiro documento oficialbrasileiro que procurou regulamentaras normas da pesquisa em saúde.

Todos os documentos até aqui ci-tados levam em conta referenciais (“ouprincípios”) básicos da Bioética: anão-maleficência, a beneficência (ris-cos e benefícios), a justiça e, sobretu-do, a autonomia (autodeterminação),respeitando-se o sigilo, a privacidade,a auto-estima. Vieira e Hossne (1987)analisam os principais aspectos conti-dos em tais documentos.

Em 1995, sete anos após a apli-cação da Resolução CNS nº 1/88, oConselho Nacional de Saúde (CNS)decidiu pela revisão da mesma, com oobjetivo de atualizá-la e preencher la-cunas geradas pelo desenvolvimentocientífico. Um Grupo Executivo de Tra-balho (GET), integrado por represen-tantes de diversas áreas sociais e pro-fissionais, contando com o apoio demédicos, teólogos, juristas, biólogos,engenheiros biomédicos, empresáriose representantes de usuários elaborouuma nova resolução (CNS nº 196/96)que estabelece as normas de pesquisaenvolvendo seres humanos.

Alguns pontos dessa resoluçãomerecem destaque:

· a inclusão, no preâmbulo, dedisposições legais que dão respal-do à resolução;

· a necessidade de revisão perió-dica das normas;

· a incorporação dos referenciaisbásicos da Bioética (não-maleficência, beneficência, auto-nomia, justiça, eqüidade, sigilo,privacidade);

· a ampla abrangência, aplican-do-se as normas a toda e qual-quer pesquisa (todas as áreas doconhecimento e não só abiomedicina) que, individual oucoletivamente (estudos de comu-nidades, pesquisas epidemioló-gicas), envolva o ser humano, deforma direta ou indireta, em suatotalidade ou partes dele, incluin-do o manejo de informações oumateriais;

· a proibição de qualquer forma deremuneração, cabendo, porém, oressarcimento de despesas e inde-nização (direito indeclinável) aossujeitos da pesquisa;

· a conceituação de risco comosendo a possibilidade de danos àdimensão física, psíquica, moral,intelectual, social, cultural ou es-piritual do ser humano;

· a consideração de que todo pro-cedimento (de qualquer natureza)cuja aceitação não esteja consa-grada na literatura será tido comopesquisa em ser humano;

· o respeito total à dignidade doser humano e a necessidade dese obter o consentimento livre eesclarecido dos indivíduos-alvo e

Page 195: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

197

a proteção a grupos vulneráveis,excluindo-se as possibilidades dedependência, subordinação, coa-ção ou intimidação;

· o respeito à vulnerabilidade,sem, porém, exclusão, isto é, pre-servação do direito de decisão;

· a exigência de condições (recur-sos humanos e materiais) adequa-das à execução do projeto;

· a proteção à imagem, a não-estigmatização, o direito àconfidencialidade e à privacida-de, nas pesquisas em coletivida-de, bem como o respeito aos va-lores culturais;

· a adequação da metodologiacientífica às exigências básicasnos casos de randomização;

· a necessidade de justificativapara a dispensa de obtenção doconsentimento;

· a necessidade de justificativapara o uso do placebo;

· o planejamento das medidaspara o acompanhamento, trata-mento ou orientação, conforme ocaso, nas pesquisas de rastrea-mento, com a demonstração dapreponderância de benefícios so-bre os riscos e custos;

· o compromisso de retorno de van-tagens para o país, nos casos depesquisas conduzidas no exterior;

· a utilização de material biológi-co e dos dados obtidos na pes-quisa exclusivamente para a fina-lidade prevista no protocolo;

· a recomendação quanto à par-ticipação do pesquisador na fase

de delineamento da pesquisa, nosestudos multicêntricos;

· a necessidade de comunicaçãoaos Comitês de Ética, nos casosde descontinuidade do projeto depesquisa;

· a necessidade de retorno de be-nefícios à coletividade pesquisada,bem como a obrigatoriedade deacesso dos sujeitos às vantagens dapesquisa;

· a importância e a relevância doconsentimento livre e esclareci-do, atestada pela presença deum capítulo (capítulo IV) no cor-po da resolução; enfatiza-se aobrigatoriedade de todos os escla-recimentos ao sujeito da pesqui-sa (em linguagem acessível), res-guardando-se o direito à recusa eo direito de ter cópia do termo as-sinado;

· a inclusão de normas para apesquisa em pessoas com diag-nóstico de morte encefálica e emcomunidades culturalmente dife-renciadas;

· a obrigatoriedade de análise deriscos e benefícios, cuja relevân-cia mereceu capítulo especial (ca-pítulo V);

· a exigência de apresentação doprojeto de pesquisa, por parte dopesquisador responsável, contendo,entre outros, os seguintes dados: de-finições de atribuições, anteceden-tes científicos, metodologia, análi-se crítica de riscos e benefícios,duração do projeto, critérios de in-clusão e de exclusão dos sujeitos, ocompromisso de tornar públicos osresultados, a previsão de riscos, a

Page 196: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

198

qualificação do pesquisador, o or-çamento detalhado;

· a obrigatoriedade de apresenta-ção do projeto ao Comitê de Éti-ca em Pesquisa (CEP) da institui-ção, para apreciação;

· a característica multidisciplinarda composição do CEP (não maisdo que a metade dos membrospertencentes a mesma profissão),incluindo, obrigatoriamente, umrepresentante dos usuários;

· as atribuições do CEP, prevendoatividades de caráter educativo,consultivo e deliberativo;

· a possibilidade do CEP podercontar com assessoria especi-alizada, ad hoc;

· a competência para solicitar, àadministração, a instauração desindicância;

· a competência para interrompero projeto de pesquisa, quandojulgar indicado;

· a obrigatoriedade de acompa-nhamento da execução da pesqui-sa na instituição, mediante rela-tórios;

· a co-responsabilidade do CEPao aprovar os projetos a ele sub-metidos;

· a total independência em rela-ção à direção da instituição;

· a criação da Comissão Nacionalde Ética em Pesquisa (CONEP),órgão máximo na área, ligado aoConselho Nacional de Saúde – Mi-nistério da Saúde;

· a responsabilidade da ComissãoNacional na criação (e acompa-

nhamento) de um banco de da-dos referente às pesquisas em se-res humanos, aprovadas pelosCEPs;

· a elaboração, por parte daCONEP, de normas complemen-tares nas áreas temáticas: repro-dução humana, genética huma-na, pesquisas em indígenas, pes-quisas que envolvam questões debiossegurança, pesquisasconduzidas do exterior, pesquisascom novos equipamentos. As nor-mas para pesquisa na áreatemática de novos fármacos, me-dicamentos e vacinas já foramaprovadas (Resolução CNS nº251/97);

· a responsabilidade da CONEPem instaurar sindicâncias e inter-romper pesquisas em andamen-to, se necessário;

· a composição da CONEP, cons-tituída por treze membros titula-res e respectivos suplentes, esco-lhidos pelo Conselho Nacional deSaúde dentre nomes indicadospelos CEPs.

Destaque especial é dado, nomomento, aos Comitês de Ética emPesquisa, considerando-se o papel re-levante que lhes é atribuído pela Reso-lução CNS nº 196/96.

Os Comitês de Ética emPesquisa

A análise da validade ética daspesquisas se concretiza nos Comitês de

Page 197: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

199

Ética em Pesquisa – CEP das institui-ções.

A clara caracterização de proje-tos e estudos como pesquisas e, con-seqüentemente, a análise de sua vali-dade e aceitabilidade, embasada emconhecimentos prévios que apontempara o benefício, e o acompanhamen-to controlado de seus resultados, deforma sistemática e universal (cobrin-do todos os protocolos), pode trazerganhos enormes tais como a diminui-ção do número de pessoas desneces-sariamente expostas a procedimentosinúteis ou danosos e, acima de tudo, aclara compreensão da utilidade (rela-ção risco/benefício) dos procedimen-tos.

Dessa forma, toda pesquisa en-volvendo seres humanos deve ser sub-metida a uma reflexão ética no senti-do de assegurar o respeito pela identi-dade, integridade e dignidade da pes-soa humana e a prática da solidarie-dade e justiça social.

A partir de 1975, na revisão daDeclaração de Helsinque, se admitiua necessidade de analisar os proble-mas morais que surgem nas pesquisas,e se estabeleceu: o desenho e o desen-volvimento de cada procedimento ex-perimental envolvendo o ser humanodevem ser claramente formulados emum protocolo de pesquisa, o qual de-verá ser submetido à consideração,discussão e orientação de um comitêespecialmente designado, independen-te do investigador e do patrocinador.Estes comitês desempenham um papelcentral, não permitindo que nem pes-quisadores nem patrocinadores sejamos únicos a julgar se seus projetos es-tão de acordo com as orientações acei-tas. Dessa forma, seu objetivo é prote-

ger as pessoas, sujeito das pesquisas,de possíveis danos, preservando seusdireitos e assegurando à sociedade quea pesquisa vem sendo feita de formaeticamente correta.

Na segunda metade deste século,o grande desenvolvimento das ciênci-as biomédicas tem possibilitado enor-me poder de intervenção sobre a vidahumana. Além disso, tem se tornadomais e mais difícil distinguir a pesquisade suas aplicações, o que coloca a ciên-cia estreitamente ligada à indústria e àeconomia. Inseridas num mundo capi-talista, onde os investimentos exigemretorno rápido, as pesquisas tambémsofrem as pressões de mercado. Taisfatos, associados à expansão do setorde comunicações e à busca de consoli-dação dos direitos sociais a partir doprincípio da cidadania plena, trazem àtona dilemas éticos para os envolvidoscom a ciência e, mais ainda, para asociedade como um todo.

Torna-se, portanto, cada vez maisrelevante e imprescindível a avaliaçãodo projeto de pesquisa por uma ter-ceira parte, independente, consideran-do-se princípios éticos minimamenteconsensuais.

Noelle Lenoir, presidente da Co-missão de Ética da UNESCO, ressaltaque o movimento de preocupação coma ética é, sem dúvida, o maior fenôme-no deste fim de século e que, equivoca-damente, muitas vezes se pede a cientis-tas (médicos, biólogos e outros) que di-tem os parâmetros éticos para a socie-dade. Enfatizando que não se pode serjuiz e parte ao mesmo tempo, remete aresponsabilidade para a sociedadecomo um todo.

Assim, os Comitês de Ética emPesquisa não devem se restringir a uma

Page 198: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

200

instância burocrática, mas constituir-seem espaços de reflexão e monitorizaçãode condutas éticas, de explicitação deconflitos e de desenvolvimento da com-petência ética da sociedade.

Nas últimas décadas, os Comitêsde Ética Médica vinham desenvolvendoum papel importante nesse sentido,aportando uma experiência e tradiçãode reflexão ética desde Hipócrates. Po-rém, além da necessidade de afastamen-to de posições corporativistas, a experi-mentação com seres humanos, cada vezmaior com o progresso da ciência, vaialém dos limites de qualquer categoriaprofissional, envolvendo novas catego-rias como fisiólogos, biólogos,geneticistas, sociólogos, psicólogos,nutricionistas, farmacêuticos, odontó-logos, enfermeiros, fisioterapeutas, alémde pedagogos, professores, cientistassociais, entre outros. A experimentaçãoem seres humanos deve, portanto, serdiscutida abertamente por esses profis-sionais e, mais ainda, com profissionaisde outras áreas do conhecimento, comodireito, filosofia, ciências políticas, teo-logia, comunicação, etc. Indo maisalém, a sociedade precisa assumir estedebate e participar com responsabili-dade das decisões. O fato é que a téc-nica, hoje, pode fazer muitas coisas –resta saber o que a sociedade quer queseja feito.

Os CEPs, além de fórum específi-co para avaliação de cada pesquisa,estarão identificando e ampliando osdebates e contribuindo para amelhoria da regulamentação sobre otema. Daniel Winkler, ex-presidente daAssociação Internacional de Bioética,colocou como indicador de funcio-namento dos Comitês a chegada dasdiscussões às mesas das famílias. Amy

Gutmann, professora de Ciências Po-líticas da Universidade de Princeton,autora do livro Democracy andDisagreement, ressalta que os Comitêsde Ética em Pesquisa, bem constituí-dos, transcendem o seu papel específicopois contribuem para a efetivação dademocracia deliberativa, concepçãocontemporânea mais promissora de evo-lução democrática.

A metodologia de trabalho dosCEPs deve procurar a representação detodos os interessados, também dos in-divíduos considerados leigos na ciên-cia médica ou biológica, isto é, dospacientes, seus familiares, representan-tes da opinião pública. Se não for pos-sível que todos os interessados estejampresentes, uma participação mínimadeve ser assegurada para levar a umaadequada apresentação e considera-ção dos interesses de todos os envolvi-dos. Se os critérios para tomada dedecisões são realmente éticos, então osleigos não são menos capacitados queos cientistas. A presença de usuáriosnos CEPs constitui o elemento novo,trazendo a perspectiva da alteridade epropiciando o surgimento do diálogo.

Baseado nessas reflexões, à épocada elaboração da Resolução CNSnº 196/96 consolidou-se a idéia de queos CEPs deveriam ser constituídos de for-ma a favorecer o aporte dos pontos devista de todos os envolvidos, bem comopermitir a inclusão dos diversos interes-ses, seja de pesquisadores, patrocinado-res, sujeitos da pesquisa e da comuni-dade. Por meio de uma composiçãomultidisciplinar com contribuição devárias áreas do conhecimento, de par-ticipação de pesquisadores e de usu-ários, se buscará levar em conta aconsideração de todos os interesses,

Page 199: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

201

inclusive dos envolvidos mas não parti-cipantes, como, por exemplo, dos sujei-tos da pesquisa em situação devulnerabilidade, como das crianças, in-capacitados mentais, dos ainda nãonascidos, entre outros.

Assim, a resolução cria os Comitêsde Ética nas instituições e estabelece oscritérios para a sua formação. A carac-terística de independência deve serconstruída através de uma composiçãoadequada e da adoção de procedimen-tos transparentes. A disposição ao diá-logo e à transparência é o que pode le-var ao respeito à dignidade da pessoa, àprática consciente dos profissionais e àjustiça social.

No Brasil, a receptividade da nor-ma foi tal que, a despeito das dificul-dades de implantação de procedimen-tos novos, com um salto para um pa-tamar de organização social maisavançado, no primeiro ano de implan-tação da Resolução CNS nº 196/96 (deoutubro de 1996 a outubro de 1997)foram criados cerca de 150 CEPs nasinstituições de destaque na pesquisano país. Em média, foram constituídospor 11 membros, destacando-se a par-ticipação, além dos profissionais desaúde, de profissionais do direito, filo-sofia e teologia. A participação de pelomenos um membro representante deusuários da instituição se concretizouem grande esforço de identificação eaproximação de representantes de pa-cientes e de militantes de grupos orga-nizados da sociedade, desde associa-ções de portadores de patologias a as-sociações de voluntários, de represen-tantes em conselhos municipais a ve-readores. Evidenciou-se grande avan-ço em relação a 1995 quando se cons-tatou a existência de tão-somente um

CEP constituído conforme a norma vi-gente à época (Resolução CNS nº 1/88),dentre instituições universitárias depesquisa em saúde.

Cumprida a etapa de criação econstituição dos CEPs, emerge comodesafio o seu funcionamento de formaresponsável e eficaz, tanto no que dizrespeito à análise dos projetos de pes-quisa e acompanhamento de sua exe-cução quanto na proposição de alter-nativas viáveis para possíveis confli-tos éticos encontrados. Além disso, es-pera-se adequado desenvolvimento nosentido de sua função educativa, re-sultando em maior sensibilidade dospesquisadores e da comunidade aosproblemas éticos.

O trabalho dos Comitês de Éti-ca em Pesquisa depende de duascondições essenciais: legitimidade einfra-estrutura adequada, esta últimaincluindo equipe preparada, facilida-des operacionais, organizacionais (re-gimento interno, controle de prazos) eorçamento. Também devem ser previs-tos mecanismos de avaliação do im-pacto das suas ações, com medição daadesão às normas, da repercussão esensibilização para o tema, como porexemplo através da introdução do temaem seminários e nas conversas na orga-nização, da publicação das recomenda-ções, da evolução do número de consul-tas ao Comitê, da evolução da qualida-de científica e ética dos protocolos, etc.

A credibilidade do grupo vai seestabelecendo por meio de delibera-ções cuidadosas, pronto acesso a con-sultas e agilidade nas respostas. Nãose espera que haja sempre consensoentre os membros, o que se procura sãodeliberações mais inclusivas no sentidode consideração dos vários interesses,

Page 200: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

202

com ampla compreensão dasdiscordâncias e do dilema, com mú-tuo respeito. Desta forma, certamentese estará contribuindo para a saúde denossa sociedade.

Os membros dos Comitês estãogeralmente conscientes do seu papel,mas sabem que andam sobre uma finalinha entre trabalhar no interesse dossujeitos da pesquisa e trabalhar no in-teresse das instituições e patrocinado-res. Não resta dúvida de que estão sobenorme pressão para não retardar ouinterromper as pesquisas, numa épo-ca em que as instituições estão ansio-sas pelos aportes financeiros trazidospelas mesmas.

A Comissão Nacional de Éticaem Pesquisa

A Comissão Nacional de Ética emPesquisa foi criada pela Resolução CNSnº 196/96, órgão de controle social, paradesenvolver a regulamentação sobre pro-teção dos sujeitos da pesquisa e paraconstituir um nível de recursos disponí-veis a qualquer dos envolvidos em pes-quisas com seres humanos. Tem tambémum papel coordenador da rede de Co-mitês institucionais, além de se consti-tuir em órgão consultor na área de éticaem pesquisas. Num primeiro momento,tem ainda a atribuição de apreciar osprojetos de pesquisa de áreas temáticasespeciais, enviados pelos CEPs, ou seja,projetos que contemplam áreas commaiores dilemas éticos e grande reper-cussão social, até que se acumulem ex-periências para a elaboração de nor-mas específicas, complementares àsexistentes.

Algumas situações concretas

Nos projetos apresentados paraavaliação dos CEPs, os pontos quecom maior freqüência são considera-dos eticamente incorretos são os rela-tivos ao consentimento livre e esclare-cido, ao uso de placebo e à participa-ção de pessoas em situação devulnerabilidade.

Consentimento livre e esclareci-do – os modelos de termo de consenti-mento têm sido, freqüentemente, moti-vo de não aprovação dos projetos porconterem informação insuficiente; ou-tras vezes por serem indutores da par-ticipação ou por não estarem em lin-guagem acessível ao paciente. Por ou-tro lado, termos de consentimentos lon-gos demais, traduzidos que são de ou-tros países, mais confundem que es-clarecem, estando também muitas ve-zes inadequados à nossa cultura, porserem frios e diretos.

A preocupação, muitas vezes ex-pressa, acerca da incapacidade dossujeitos da pesquisa compreenderemdo termo pode ser enfrentada com ointeresse e a capacitação dos pesqui-sadores para informarem adequada-mente, num esforço de diálogo com asociedade.

João de Freitas chama a atençãopara o uso do termo de consentimentocomo instrumento de proteção dos pes-quisadores e estratégia de permissibi-lidade de procedimentos que ferem adignidade do sujeito da pesquisa, o quenão é o espírito da Resolução CNS nº196/96. Vale, portanto, salientar: oobjetivo fundamental do termo de con-sentimento é a proteção da liberdadee dignidade dos sujeitos da pesquisa,

Page 201: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

203

e não dos pesquisadores ou patroci-nadores.

Uso de placebo – principalmenteem estudos de novos medicamentos evisando evitar interferência psicogênica,em alguns casos justifica-se a compa-ração entre o tratamento com a novadroga e o tratamento onde se usa umplacebo (substância sem efeitofarmacológico). No entanto, existindotratamento minimamente eficaz paraa doença não é eticamente correto dei-xar um grupo de pacientes sem tera-pia, sendo que o experimento deveriacomparar, então, o novo tratamentocom o tratamento existente ou padrão.Têm sido identificados problemas nes-sa área, pois no interesse decomercialização de novos produtos,num mercado de grande concorrência,usa-se a demonstração da eficácia dadroga (frente ao placebo) e não a suasuperioridade sobre o medicamento jáexistente. Muitas vezes, esse subterfú-gio não é percebido e colocam-se pes-soas em situação de risco à sua saú-de, sem nenhum possível benefício, anão ser para a contabilidade das in-dústrias.

Vulnerabilidade – situações emque não existem as condições para oconsentimento livre, sem coações oupressões, devem ser cuidadosamenteanalisadas, como propostas de pesqui-sas em soldados, servidores, funcioná-rios de laboratórios e alunos. Por ou-tro lado, é preocupante a situação damaioria dos sujeitos de pesquisa nestepaís, que sem acesso assegurado à as-sistência à saúde muitas vezes buscama participação na pesquisa como for-ma de obter acesso a algum tratamen-to ou a melhor acompanhamento.

Para crianças e pessoas em situaçãode discernimento prejudicado, comoportadores de doença mental, deve serrequisitado o consentimento de seusresponsáveis legais; além disso, devemser informadas de acordo com a suacapacidade e consideradas suas deci-sões.

Exemplos de incorreções éticasmais graves, se bem que raros, podemser enumerados como alertadores paraos participantes de Comitês. Uma pes-quisa com proposta de indução de pro-blema respiratório em crianças, seguidade tratamento para um grupo e deplacebo para outro (controle), não pôdeser aceita, assim como outro projeto emque se propunha o uso de um novo me-dicamento, controlado com grupo rece-bendo placebo, para pacientes com in-suficiência cardíaca congestiva, doençagrave e com tratamento disponível. Umoutro estudo tinha como objetivo encon-trar formas de “superar barreiras éticase legais” para uso de determinado pro-cedimento! Enfim, estes são casos quedemonstram a relevância da proposta deavaliação ética dos projetos de pesqui-sa e a responsabilidade dos Comitês naapreciação dos projetos e no desempe-nho de seu papel educativo com relaçãoaos sujeitos da pesquisa, à comunidadecientífica e à sociedade como um todo.

Bibliografia

Annas GJ. Will the real bioethics(commission) please stand up? HastingsCenter Report 1994;24(1):19-21

Beecker HK. Ethics and clinical research.New Engl. J. Med, 1966;274:1340-60.

Page 202: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

204

Bertomeu MJ. Implicações filosóficas nareflexão, discurso e ação dos comitês deética. Bioética 1996;3:21-7.

Conselho Nacional de Saúde (Brasil).Resolução nº 196, de 10 de outubro de1996. Aprova diretrizes e normasregulamentadoras de pesquisas envol-vendo seres humanos. Diário Oficial daUnião, Brasília, n. 201, p. 21082, 16Out. 1996. Seção 1.

Conselho para Organizações Internaci-onais de Ciências Médicas (CIOMS). Or-ganização Mundial da Saúde (OMS). Di-retrizes éticas internacionais para pes-quisas biomédicas envolvendo seres hu-manos. Bioética 1995;3:95-133.

Edgard H, Rothman DJ. Theinstitutional review board and beyond:future challenges to the ethics of humanexperimentation. Milbank Q 1995,73:4.

Francisconi CF, Kipper DJ, Oselka G, ClotetJ, Goldim JR. Comitês de ética em pes-quisa: levantamento de 26 hospitais bra-sileiros. Bioética (CFM) 1995;3:61-67.

Freitas CBD. Ética comum. Medicina(CFM) 1997 Mar;10(79):6.

Freitas J. O consentimento na relaçãomédico-paciente: experimentação in ani-ma nobili. In: ________. Bioética. BeloHorizonte: Jurídica Interlivros,1995:103-16.

Levine RJ. Ethics and regulation ofclinical research. Baltimore: Urban andSchwarzenberg, 1996: 332-61.

Neves MCP. As comissões de ética hos-pitalares e a institucionalização dabioética em Portugal. Bioética (CFM)1996;3:29-35.

Royal College of Physicians of London.Guidelines on the practice of ethicscommitees in medical research involvinghuman subjects. London: Royal Collegeof Physicians,1996.

Vieira S, Hossne WS. Experimentaçãocom seres humanos. São Paulo: Moder-na, 1987.

Wells F. Research ethics committees. In:Luscombe D, Stonier PD, editors.Clinical research manual supplement 2.Londres: Euromed Communication,1996: s2.1

Page 203: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

205

Sueli Gandolfi Dallari

A Bioética e a Saúde Pública

A evolução do conceitode saúde

Durante a história da humanida-de, muito já se escreveu a respeito daconceituação de saúde. Entretanto, oreconhecimento de que a saúde deuma população está relacionada àssuas condições de vida e de que oscomportamentos humanos podemconstituir-se em ameaça à saúde dopovo e, conseqüentemente, à seguran-ça do Estado, presente já no começodo século XIX, fica claramente estabe-lecido ao término da II Guerra Mundi-al. Sem dúvida, a experiência de umaguerra apenas vinte anos após a ante-rior, provocada pelas mesmas causasque haviam originado a predecessorae, especialmente, com capacidade dedestruição várias vezes multiplicada,forjou um consenso. Carente de recur-sos econômicos, destruída sua crençana forma de organização social, alijadade seus líderes, a sociedade que sobre-viveu a 1945 sentiu a necessidadeineludível de promover um novo pac-

to, personificado na Organização dasNações Unidas. Esse organismo incen-tivou a criação de órgãos especiais des-tinados a promover a garantia de al-guns direitos considerados essenciaisaos homens. A saúde passou, então, aser objeto da Organização Mundial daSaúde (OMS), que considerou sua pro-teção com o primeiro princípio básicopara a “felicidade, as relações harmo-niosas e a segurança de todos os po-vos” (1). No preâmbulo de sua Consti-tuição, assinada em 26 de julho de1946, é apresentado o conceito de saú-de adotado: “Saúde é o completo bem-estar físico, mental e social e não ape-nas a ausência de doença”. Observa-se, portanto, para essa conceituação,o reconhecimento da essencialidadedo equilíbrio interno e do homem como ambiente (bem-estar físico, mental esocial), recuperando a experiência pre-dominante na história da humanida-de, de que são reflexos os trabalhos deHipócrates, Paracelso e Engels, porexemplo.

O conceito de saúde acordado em1946 não teve fácil aceitação. Diz-se

Page 204: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

206

que corresponde à definição de felici-dade, que tal estado de completo bem-estar é impossível de alcançar-se e que,além disso, não é operacional. Váriospesquisadores procuraram, então,enunciar de modo diferente o concei-to de saúde. Assim, apenas comoexemplo, para Seppilli saúde é “acondição harmoniosa de equilíbriofuncional, físico e psíquico do indiví-duo integrado dinamicamente no seuambiente natural e social” (2); paraLast saúde é “um estado de equilíbrioentre o ser humano e seu ambiente,permitindo o completo funcionamentoda pessoa” (3); e para Dejours, con-vencido de que não existe o estado decompleto bem-estar, a saúde deve serentendida como “a busca constante detal estado” (4). Essas exemplificaçõesparecem evidenciar que, embora sereconheça sua difícil operaciona-lização, qualquer enunciado do concei-to de saúde que ignore a necessidadedo equilíbrio interno do homem e des-se com o ambiente o deformará irre-mediavelmente.

O Estado e a saúde pública

É interessante notar que a preo-cupação com a saúde é – nas civiliza-ções conhecidas – contemporânea aoaparecimento da sociedade e do Esta-do. E mais esclarecedor é perceber quetal preocupação revela-se ao pesqui-sador hodierno no exame de textosnormativos das mais antigas civiliza-ções. Para explicar a existência dessacontemporaneidade Sieghart (5) cons-trói uma interessante alegoria, quepode ser assim resumida:

Supondo-se pacífica a afirmaçãode que os Estados contemporâneossejam fundados no consentimento deseus membros, que concordam sobreas regras mínimas que devem gover-nar seus próprios comportamentospara o bem-comum, e supondo-se queisso sempre foi assim, observa-se anecessidade do ar, da água, do alimen-to e do abrigo para que Adão sobrevi-vesse. A formação da família e da pe-quena comunidade dela decorrente –“Adãolândia” – percebe, então, que al-gumas atividades seriam mais bemrealizadas se o fossem em conjunto,reconhece diferentes habilidades emdiversos indivíduos e desenvolve umaestrutura onde os membros exercemfunções típicas. Enquanto vivendo no“paraíso” não havia qualquer conflito.Entretanto, vindo um período de escas-sez apresentam-se duas opções: com-petição ou cooperação (6). Supondo-se que os cidadãos de “Adãolândia”tenham decidido cooperar – sob o ar-gumento de que dividindo amplamen-te o sofrimento sua quantidade totalpode ser reduzida – e que ao voltar aprosperidade tenham proposto umasérie de regras para a distribuição dequalquer bem que no futuro se tornas-se escasso, tais regras seriamvinculantes para todos os membros dacomunidade. Novos problemas seapresentam em “Adãolândia”: o crimede Caim, a chegada de novos habitan-tes, provocando decisões tais como:fixar uma reparação para o crime e,não sendo ela realizada, expulsar Caimda comunidade por não ter respeitadoas leis; reconhecer e respeitar os direi-tos de todos os recém-chegados desdeque eles se comprometessem a aceitaras leis de “Adãolândia”.

Page 205: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

207

Ora, a conquista e a preservaçãoda saúde pressupõem limitações àscondutas nocivas para a vida social.Isso explica porque documentos daAntigüidade possuem, entremeadascom preceitos morais e religiosos, re-gras que implicam o reconhecimentoda saúde como indispensável à digni-dade humana. Existem, por exemplo,normas relativas ao zelo exigido doprofissional que cuida da doença noCódigo de Hamurabi – direitobabilônico –, e no Código de Manu –direito hindu (7). Durante a Idade Mé-dia, com o predomínio da religião, foiestabelecida a obrigação da caridade.A Igreja mantinha a responsabilidadeprincipal de ajuda aos desafortunadose desempenhava um papel preponde-rante no desenvolvimento dos estabe-lecimentos que lhes eram destinados.Tratava-se, entretanto, de obrigaçãomoral. Nos últimos séculos desse lon-go período histórico começa-se a ob-servar uma lenta infiltração do podercomunal no funcionamento da assis-tência “pública” aos desfavorecidos,que objetiva, também, a defesa social,iniciando o processo de transformaçãoda obrigação moral em dever legal.

A confluência dos ideais revolu-cionários do liberalismo, em suas ver-tentes política e econômica, com oracionalismo como fundamento e mé-todo, propulsores da Revolução Indus-trial, alterou radicalmente o compor-tamento social em relação à saúde.Um olhar sobre esse período pode ex-plicar, assim, a construção do direitoà saúde: a urbanização, conseqüênciaimediata da industrialização no séculoXIX, foi, juntamente com o própriodesenvolvimento do processo industri-al, causa da assunção, pelo Estado, da

responsabilidade pela saúde do povo.De fato, é inestimável o papel da pro-ximidade espacial na organização dasreivindicações operárias. Vivendo nascidades, relativamente próximos, por-tanto, dos industriais, os operários pas-sam a almejar padrão de vida seme-lhante. Conscientes de sua força po-tencial, devida à sua quantidade e im-portância para a produção, organizam-se para reivindicar tal padrão. Entre-tanto, cedo o empresariado percebeuque precisava manter os operáriossaudáveis para que sua linha de mon-tagem não sofresse interrupção. Per-cebeu, também, que devido à proxi-midade espacial das habitaçõesoperárias ele poderia ser contamina-do pelas doenças de seus empregados.Tais conclusões induziram outra: oEstado deve se responsabilizar pelasaúde do povo. É claro que para ele –empresário – o povo era apenas osoperários, uma vez que os cuidadosindividuais de saúde eram facilmentefinanciados pelos industriais. Por ou-tro lado, eles também faziam parte dopovo quando exigiam que o Estadogarantisse a ausência de doençascontaminantes em seu meio ambien-te. E, como o Estado liberal era ostensi-vamente instrumento do empresariadonessa fase da sociedade industrial, foirelativamente fácil, aos empresários,transferir para o Estado as reivindica-ções operárias de melhores cuidadossanitários. O processo contínuo de or-ganização do operariado promovido apartir da conscientização de suas con-dições de trabalho e facilitado pelo de-senvolvimento dos meios de comuni-cação levou-o a reivindicar que o Es-tado, idealmente acima dos interessesdos industriais, se responsabilizasse

Page 206: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

208

pela fiscalização das condições de saú-de no trabalho.

Outro olhar pode, contudo, expli-car a construção do direito à saúde,pela grande influência das idéias re-volucionárias do liberalismo políticovigente no final do século XVIII. Comoafirma Ligneau, os filósofos desse sé-culo “persuadiram os dirigentes revo-lucionários que apenas a caridade fa-cultativa para com os infelizes é umsistema humilhante e aleatório que nãoestava mais de acordo com as neces-sidades e o espírito dos tempos mo-dernos” (8). Assim, a discussão na As-sembléia Constituinte francesa de 1791apresentou conclusões muito próximasdo conceito hodierno de direito à saúde.

O individualismo permaneceu acaracterística dominante nas socieda-des reais ou históricas que sucederamàquelas diretamente forjadas nas re-voluções burguesas. Nem mesmo o so-cialismo ou as chamadas “sociedadesdo bem-estar” eliminaram a predomi-nância do individualismo, uma vez quesão indivíduos os titulares dos direitoscoletivos, tais como a saúde ou a edu-cação. Justifica-se a reivindicação en-cetada pelos marginalizados, de seusdireitos humanos frente à coletivida-de, porque os bens por ela acumula-dos derivaram do trabalho de todos osseus membros. Os indivíduos têm, por-tanto, direitos de crédito em relação aoEstado – representante jurídico da so-ciedade política. Assim, embora o in-dividualismo permaneça como princi-pal característica dos direitos huma-nos enquanto direitos subjetivos, sãoestabelecidos diferentes papéis para oEstado, derivados da opção políticapelo liberalismo ou socialismo. De fato,para a doutrina liberal o poder do Es-

tado deve ser nitidamente limitado, ha-vendo clara separação entre as funçõesdo Estado e o papel reservado aos in-divíduos. Tradicionalmente, as funçõestípicas do Estado restringiam-se à pre-servação da ordem, da moralidade eda saúde públicas (9). Já o socialis-mo, impressionado com os efeitos so-ciais da implementação do Estado li-beral – e do egoísmo capitalista quelhe serviu de corolário –, magistralmen-te apresentados por Dickens (10), porexemplo, reivindicava para o Estadopapel radicalmente oposto. Com efei-to, os socialistas do século XIX luta-vam para que o Estado interviesse ati-vamente na sociedade, para terminarcom as injustiças econômicas e soci-ais. Entretanto, nem mesmo os socia-listas ignoraram o valor das liberdadesclássicas, do respeito aos direitos in-dividuais declarados na Constituição.

O mundo contemporâneo vive àprocura do difícil equilíbrio entre taispapéis heterogêneos, hoje, indubita-velmente, exigência do Estado demo-crático. Todavia, o processo deinternacionalização da vida socialacrescentou mais uma dificuldade àconsecução dessa estabilidade: os di-reitos cujo sujeito não é mais apenasum indivíduo ou um pequeno conjun-to de indivíduos, mas todo um grupohumano ou a própria humanidade.Bons exemplos de tais direitos detitularidade coletiva são o direito aodesenvolvimento (11) e o direito aomeioambiente sadio (12). Ora, a pos-sibilidade de conflito entre os direitosde uma determinada pessoa e os di-reitos pertencentes ao conjunto dacoletividade pode ser imediatamente evi-denciada e, talvez, os totalitarismos doséculo XX, supostamente privilegiando

Page 207: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

209

os direitos de um povo e, nesse nome,ignorando os direitos dos indivíduos,sejam o melhor exemplo de uma dasfaces da moeda. A outra face pode serretratada na destruição irreparável dosrecursos naturais necessários à sadiaqualidade de vida humana, decorren-te do predomínio do absoluto direitoindividual à propriedade.

A bioética reintroduzindo apreocupação ética no comporta-mento dos sistemas de saúde

A prevalência do individualismo– ainda que matizado – em época ca-racterizada pela rápida e crescenteinternacionalização da vida social pro-vocou a supervalorização do cresci-mento econômico, visto como o únicocaminho para a conquista da felicida-de humana. De fato, naquele mesmocenário de reconstrução do períodoimediatamente após a II Grande Guer-ra, a ajuda – dita “humanitária” – pres-tada às sociedades mais atingidas peloconflito bélico visava ao fornecimen-to, e o estímulo para a produção, dosbens econômicos que o benfeitor con-siderava indispensáveis para a manu-tenção de um adequado padrão devida. Assim, tanto as sociedades quehaviam experimentado a revolução in-dustrial no século anterior quantoaquelas que – sob jugo colonial – man-tinham uma agricultura de subsistên-cia adotaram o mesmo modo de pro-dução, procurando objetos semelhan-tes para a satisfação de suas necessi-dades. E, apesar das váriasintercorrências com reflexos fundamen-talmente econômicos, foi clara a cons-

tante tendência à identificaçãoprioritária de tais necessidades combens materiais, menosprezando-se asnecessidades espirituais.

O desenvolvimento científico etecnológico, corolário dessa evolução,começa – a partir da segunda metadedos anos sessenta do século XX – aintroduzir questões que o próprio de-senvolvimento não consegue respon-der. É curioso, então, observar que –para evitar qualquer ameaça à ordemsocioeconômica e política estabelecida– a liderança política e intelectual dassociedades contemporâneas encontraa resposta na reintrodução da preocu-pação ética. Com efeito, pode-se en-contrar a partir daquele período – ini-cialmente nas sociedades de economiamais avançada, mas em breve atingin-do, também, os Estados ditos “em de-senvolvimento” – movimentos, eventos,documentos, e publicações tendo portema a ética aplicada ao exercício pro-fissional, ao comércio, ao governo, àsrelações internacionais, às situaçõesbiomédicas, etc.

Pode-se afirmar que a bioética oua ética aplicada aos sistemas de saú-de foi, sem dúvida, o ramo da éticaaplicada que mais se desenvolveu, con-siderando-se o número de eventos,publicações, documentos internacio-nais e disciplinas acadêmicas a eladedicados. É importante, mesmo, no-tar que a propagação do uso do termobioética revela, de certo modo, a ex-pansão dessa ética aplicada. De fato,cunhado para traduzir a importânciacrescente das ciências biológicas nadeterminação da qualidade de vida(13), o termo tem-se prestado a umaquerela em busca de sua definição, emdiversas sociedades (14). Entretanto,

Page 208: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

210

talvez o único princípio, já agora “tra-dicionalmente” aceito como básicopara a discussão bioética, que não seencontra esboçado no juramentohipocrático, seja aquele da autono-mia. E isso pode ser facilmente com-preendido quando se percebe que elese refere, prioritariamente, à autono-mia das pessoas, conceito de impos-sível estipulação na democracia gre-ga da antigüidade, onde “a harmo-nia entre o homem e a totalidade docosmos permaneceu como critérioético” (15).

É inegável, contudo, que a reper-cussão da bioética provocou uma novaleitura dos princípios hipocráticos,adaptando-os às situações postas peloavanço da ciência e da tecnologia naárea da saúde. A simples referência,por exemplo, à justiça pelo seu contrá-rio (16) dá origem à aplicação da teo-ria da eqüidade na distribuição dosbens e benefícios decorrentes do co-nhecimento biomédico no campo dasaúde. E, quando se pretende exami-nar os princípos bioéticos à luz de suaimplicação com a saúde pública, tor-na-se evidente a necessidade dessanova leitura, uma vez que aprevalência do individualismo numambiente de contestação vem provo-cando, inclusive, uma redefinição dopapel do Estado na promoção da saú-de pública.

Com efeito, a constatação da re-lativa ineficiência, seja do setor públi-co, seja da política regulatória em saú-de, tem fomentado um ambiente cul-tural de desvalorização da saúde pú-blica que vem contaminando os pró-prios sanitaristas. Muitos deles pro-põem, então, que as reformas do setorcaminhem no sentido de valorizar op-

ções sociais e econômicas que promo-vam agressões à saúde pública. Assim,o mercado é visto como “virtualmentesempre o melhor protetor da saúde”(17) e se esquece que muitas vezes adoença não resulta apenas de umsubproduto mas sim do produto mes-mo do mercado, como comprovamaquelas decorrentes da afluência (die-tas hipergordurosas, carros velozes) ouda tensão social (drogas, violência).Por outro lado, cresce o número dosque acreditam que a doença seja as-sunto pessoal (decisão de fumar, usarcapacete e cinto de segurança) e mé-dico (a melhora do estado de saúdedepende do acesso aos cuidados mé-dicos) e que, portanto, as escolhasefetuadas são responsabilidade indivi-dual. Eles procuram ignorar que a saú-de pública deve – necessariamente –adotar uma postura ecológica, uma vezque o próprio conceito de saúde en-volve aspectos sociais e culturais, alémdos estritamente físicos, biológicos egeográficos. Daí decorre que a deci-são de fumar, por exemplo, não confi-gura uma escolha puramente pessoalmas, principalmente, um condiciona-mento cultural. O mesmo ocorre no queconcerne à opção individual. Há quemacredite que, por exemplo, a decisãode fumar – ainda que sabidamenteprejudicial à saúde – deva ser sem-pre respeitada, uma vez que suas con-seqüências recaem no próprio indiví-duo fumante e que, portanto, a liber-dade individual não deve ser limitada.Mais uma vez se esquece que a satis-fação pessoal usada como indicadorde saúde pública induz ao aumento degastos que resultam apenas na maiorsensação individual de segurança (nosEstados Unidos da América, 95% de

Page 209: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

211

todo o dinheiro que a sociedade gastacom saúde vai para a atenção médi-ca) (18) e provoca, também, o “para-doxo preventivo” definido por Burris(19) como “uma medida preventivaque traz grande benefício para a po-pulação mas oferece pouco para cadamembro individualmente”.

Verifica-se, conseqüentemente,que o mesmo raciocínio empregadopara explicar a reintrodução da éticano mundo atual justifica sobremanei-ra sua especial valorização pelos pro-fissionais de saúde pública – que vêmaceitando a mudança conceitual im-posta pelo individualismo predominan-te. Essa constatação é necessária nãopara menosprezar a preocupação éti-ca reinstalada no campo da saúdepública mas – principalmente – paraque se tenha claro, na avaliação dassituações submetidas ao crivo ético,que as alternativas correntementeapresentadas representam apenasuma parte – aquela decorrente daaceitação inquestionada do individu-alismo – do leque das alternativaspossíveis.

A solidariedade como base daconstrução de um sistema desaúde justo

Ao reorganizar o Estado, os bur-gueses revolucionários do séculoXVIII decidiram – na França – que asolidariedade era um valor tão impor-tante quanto a igualdade e a liberdadepara fundamentar a nova organização.Essa é a razão pela qual “Liberdade,Igualdade e Fraternidade” são os ter-mos da divisa republicana de 1792.

A incorporação pelo discurso políticoe jurídico dos conceitos ali expressos– conseqüência do predomínio da fi-losofia jusnaturalista e doracionalismo – decorreu da noção deque todos os homens estão, e devemestar, ligados entre si como irmãos.Portanto, fraternidade, durante o perí-odo revolucionário, significava afraternidade universal (20). Apresenta-da como o resultado e a expressãodesse novo elo entre o povo, a noçãode fraternidade estavaindissoluvelmente ligada à reivindica-ção da liberdade e da igualdade. Con-tudo, somente a conquista política des-ses valores permitiu que a noção defraternidade passasse a abrigar a ela-boração de leis e decretos sobre assis-tência social e solidariedade. Com efei-to, como já se observou, a partir dofim do século XIX a maioria dos filó-sofos considera a intervenção das au-toridades públicas na assistência so-cial não apenas necessária mas partedas funções do Estado. Frente ao cres-cente aumento da pobreza o Estadodeveria intervir e responsabilizar-sepela organização da assistência socialporque “se a assistência for bemdirigida, dever-se-á contabilizá-la me-nos como uma despesa para o Tesou-ro público que como um empréstimoque trará grande benefício para a Na-ção” (21).

De fato, a idéia de fraternidade queinspirou os revolucionários do séculoXVIII foi suplantada pela noção de soli-dariedade, considerada mais operativapelos revolucionários do século seguin-te. Recuperava-se, então, a compreen-são de que o pacto social tinha por ori-gem e por conseqüência a solidarieda-de: a motivação que levava os homens

Page 210: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

212

a associarem-se seria a oportunidade dese beneficiarem da solidariedade do gru-po, justificando a existência de obriga-ções e direitos sociais. Assim, também,reafirmava-se ser a solidariedade tradu-ção de um direito natural (22),contrapartida do direito de propriedade(23) ou necessidade da vida em socie-dade, para aumentar o rendimento so-cial, preservando o capital produtivo, epara manter a ordem pública. O que sebuscava, assim, na segunda metade doséculo XIX, era construir uma doutrinaque permitisse a imediata operacio-nalização de direitos derivados do reco-nhecimento do princípio da solidarieda-de. Para tanto, o desenvolvimento da fi-losofia positiva de Auguste Comte ofere-ceu um ponto de partida ao declarar serseu objeto “ressaltar a ligação de cadaum a todos (...) de modo a tornarinvoluntariamente familiar o sentimentoíntimo da solidariedade social, conveni-entemente aplicável a todos os tempos ea todos os lugares” (24) e sublinhar aimportância do princípio da divisão dotrabalho como constitutivo da solidarie-dade. E Renouvier fez decorrer do prin-cípio da solidariedade conseqüênciasjurídicas precisas: a instituição de umimposto progressivo e a criação de umsistema geral de garantias visando ofe-recer aos indivíduos, além dos direitosclássicos (trabalho, educação e assistên-cia), a previsão contra todos os riscossociais susceptíveis de ameaçar sua pes-soa ou seus bens, por meio da técnicado seguro (25) – que precederam a for-mulação do solidarismo de Bourgeois.

Buscava-se, então, estabelecer umabase sólida e incontestável para o deverde solidariedade, que não mais deveriarepousar sobre a caridade e o amor –sentimentos subjetivos – mas sobre um

princípio científico e racional que pudes-se justificar a intervenção do Estado. Ou,na precisa tradução de Borghetto, “o sen-tido profundo e o ensinamento essencialda doutrina deve residir, em última aná-lise, nesta única ambição: alargar o cír-culo das obrigações morais susceptíveisde serem sancionadas pelo Direito dan-do a esse alargamento o caráter de umanecessidade tanto mais confiável e sóli-da quanto apoiada numa lei reveladapela ciência e num fato observado portodos: a lei e o fato da interdependênciae da solidariedade social” (26).

O solidarismo não foi imple-mentado como opção política; entre-tanto, a idéia de solidariedade trans-formou o direito público positivo, sen-do suas principais conseqüências jurí-dicas a adoção de um sistema de as-sistência e de previdência social e aimplementação de uma política de so-cialização dos riscos. Esse direito pú-blico definiu uma fase histórica da vidasociopolítica e econômica que o ex-secretário de planejamento do gover-no francês, Michel Albert (27), chamade capitalismo enquadrado pelo Esta-do, em que o Estado, por meio de leis,decretos e por convenções coletivas,sob pressão das lutas operárias, sededica a humanizar os rigores do ca-pitalismo primitivo. E que ele conside-ra suplantada, após a vitória dos Es-tados Unidos na Guerra do Golfo(1991), pela instauração da nova fase– chamada do capitalismo no lugar doEstado. Trata-se, então, de reduzir ocampo de competência do Estado a ummínimo, de substituí-lo pelas forças domercado, proposta que vinha confi-gurando a nova ideologia do capitalis-mo – o mercado é bom/o Estado é ruim;a fiscalidade desencoraja os mais dinâ-

Page 211: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

213

micos e arrojados; a previdência socialestimula a preguiça – desde os gover-nos Thatcher, na Inglaterra, e Reagan,nos Estados Unidos – e que, somadaao sucesso econômico estadunidenseapós aquela guerra, passa a parecerimbatível. Contudo, o que Rosanvallonrevela com precisão é que existe, naatualidade, uma crise do paradigmaassegurador no Estado-providência,pois ao assumir a socialização dos ris-cos por meio do seguro a sociedadetorna secundária a avaliação das fal-tas pessoais e das atitudes individuais.A seguridade instaura a idéia de umajustiça puramente contratual (o regimede indenizações), deixando de ser ne-cessário o recurso à argumentação ju-rídica ou moral para fundamentar aspolíticas sociais. Assim, “o seguro so-cial funciona como a mão invisível pro-duzindo segurança e solidariedadesem que intervenha a boa vontade doshomens” (28). E tal resultado, compatí-vel com uma sociedade política e so-cialmente mais homogênea comoaquela do final do século XIX, é ina-dequado à sociedade contemporâ-nea onde, em matéria social, o con-ceito central é muito mais o de pre-cariedade ou de vulnerabilidade doque o de risco.

Com efeito, a organização socialatual não mais estimula a manutençãode um sistema de seguridade socialcomo reflexo da solidariedade que de-corre do conceito de justiça, que deacordo com Rawls apenas pode serestabelecido sob o véu da ignorância.Assim, para que a virtude da justiçaopere é necessário que “as partes nãosaibam como as várias alternativasirão afetar seu caso particular e queelas sejam obrigadas a avaliar os prin-

cípios baseadas somente em conside-rações gerais” (29). Ora, num contex-to de desemprego em massa e de cres-cimento da exclusão social a possibili-dade técnica de se identificar compor-tamentos individuais que causam pre-juízos aos próprios indivíduos e à so-ciedade tende a ser empregada sem-pre que a solidariedade esteja em dis-cussão, rasgando o véu da ignorância,que antes havia permitido a instaura-ção do seguro social.

A mesma inadequação reveladapelo mecanismo assegurador na socie-dade atual parece caracterizar a ordemjurídica que, para atender a demandade regulação de sujeitos complexos ede setores de funcionamento autôno-mo, sobrecarrega o legislador. De fato,no Estado-providência contemporâneoos problemas de sujeição à lei e de se-gurança jurídica se agudizam. Eles sãoassim descritos por Habermas: “De umlado, as normas de prevenção defini-das pelo legislador são apenas parci-almente capazes de regularnormativamente e incluir no processodemocrático os programas de açãocomplexos, concebidos em função deum futuro longínquo e de prognósticosincertos que requerem uma constanteautocorreção e são, de fato, dinâmi-cos. De outro lado, constata-se a der-rota dos meios de regulação impera-tivos de prevenção clássicos, conce-bidos mais em função dos riscos ma-teriais que de riscos atingindo po-tencialmente um número importante depessoas.” (30). Acrescente-se, ainda,que os direitos sociais concebidos comodireito compensador de uma disfunçãopassageira são inadaptados e terminampor originar uma espiral de autodes-truição da solidariedade.

Page 212: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

214

Contudo, apenas com a rein-trodução da solidariedade na vida soci-al se poderá construir um sistema de saú-de pública justo e, portanto, conforme aopretendido pela bioética. Trata-se, então,de repensar a solidariedade sabendo cla-ramente qual a situação e quais as opor-tunidades de cada um. Assim, conven-cidos de que o véu da ignorância foi ir-remediavelmente rompido, os homensdo final do século XX buscam encontrarum caminho comum entre as preferên-cias individuais, as escalas de valores eos conceitos para construir a solidarie-dade, valorizando a cidadania social. Apartir da constatação de que o seguro éuma técnica, enquanto a solidariedadeé um valor, eles consideram que o segu-ro pode ser um modo de produção dasolidariedade mas não evitam a conclu-são de que o imposto deve ser parte dofinanciamento do sistema de solidarie-dade a ser instalado no Estado contem-porâneo, lembrando que o imposto desolidariedade será tanto melhor aceitoquanto mais esteja indexado a fatoresobjetivos: solidariedade entre deficientese normais, jovens e velhos, empregadose desempregados, pois se a solidarieda-de consiste em organizar a segurança detodos ela implica compensar asdisparidades de status. Para tanto, vemdesenvolvendo mecanismos de distribui-ção vertical – entre classes – no interiordos sistemas de seguridade social e,mesmo, criando novos tipos de direitosocial, compreendidos entre o direito eo contrato, tendo por fundamento ex-presso o princípio da solidariedade (31).

Tem-se claro que o direito podeassegurar a coesão de sociedades com-plexas. Entretanto, para que permita aconstrução de um sistema de saúde jus-to, conforme aos princípios da bioética

contemporânea, é indispensável que ascondições procedimentais do processodemocrático sejam protegidas. Isto é,torna-se necessário garantir que as dis-cussões relativas à aplicação do direitosejam completadas por aquelas referen-tes aos fundamentos do direito. Assim, éindispensável a criação de um espaçojurídico público, “suplantando a culturaexistente dos peritos e suficientementesensível para submeter ao debate públi-co as decisões sobre princípios – comoo da solidariedade social – que trazemos problemas”(32). Ainda na lição deHabermas, a chave para a gênese de-mocrática do direito encontra-se nacombinação e mediação recíproca en-tre a soberania do povo juridicamenteinstitucionalizada e a soberania do povonão institucionalizada. Tal equilíbrio im-plica “a preservação de espaços públi-cos autônomos, a extensão da partici-pação dos cidadãos, a domesticação dopoder das media e a função mediado-ra dos partidos políticos não estatiza-dos” (33). Assim, por exemplo, a par-ticipação popular na administraçãodeve ser considerada um procedimen-to eficiente ex ante para legitimar asdecisões que – apreciadas conformeseu conteúdo normativo – atuam comoatos legislativos ou judiciários.

Conclui-se que a aplicação dabioética na saúde pública implica a cons-trução de uma sociedade solidária que,necessariamente, deve estar refletida nodireito de gênese democrática. Ora, ape-nas a produção da solidariedade, agorasob o sol do conhecimento, e a manu-tenção do espaço jurídico público per-mitem superar a velha oposição entredireitos formais e reais, direitos políticose sociais, e mesmo a diferença entre aidéia de democracia e a de socialismo,

Page 213: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

215

uma vez que é no seio de uma teoriaampliada de democracia que os di-reitos sociais podem ser repensadose os direitos políticos aprofundadosao mesmo tempo. E somente umasociedade assim constituída podegerar um sistema de saúde justo,onde o respeito pela autonomia daspessoas e a busca constante de seumaior benefício integrarão o compor-tamento que o definirá comobioeticamente adequado.

Referências

1. Constituição da Organização Mundialda Saúde, adotada pela Conferência In-ternacional da Saúde, realizada em NewYork de 19 a 22 de julho de 1946.

2. Seppilli A. citado por Berlinguer G. Adoença. São Paulo: HUCITEC/CEBES,1988: 34.

3. Last JM. Health: a dictionary ofepidemiology. New York: OxfordUniversity Press, 1983.

4. Dejours C. Por um novo conceito desaúde. Rev Bras Saúde Ocup1986;14(54):7-11.

5. Sieghart P. The lawful rights of mankind.Oxford: Oxford University Press, 1986: 3-11.

6. Questão magistralmente apresentadapor Machado de Assis, em QuincasBorba, que popularizou a expressão “aovencedor as batatas”.

7. Veja-se os artigos 218 e 219 do Códigode Hamurabi e o artigo 695 do Códigode Manu.

8. Ligneau P. Droit de la protectionsanitaire et sociale. Paris: Berger-Levrault, 1980: 69.

9. Funções do Estado-polícia, enumeradasno art.356 da Constituição francesa de1795 (termidoriana, de 5 frutidor, ano III).

10.Como em Oliver Twist.

11.Objeto da Declaração sobre o direito aodesenvolvimento, adotada pela Assem-bléia Geral da ONU em 4 de dezembrode 1986.

12.Objeto da Declaração do Rio de Janei-ro de 1992, da ONU.

13.Portter VR. Bioethics: bridge to thefuture. Englewood Cliffs: Prentice-Hall,1971.

14.Veja-se, por exemplo, a tentativa de con-senso representada na elaboração daEncyclopedia of Bioethics [Reich WT,editor. New York: Macmillan, 1978]: “oestudo sistemático da conduta humanana área das ciências da vida e dos cui-dados de saúde, na medida em que essaconduta é examinada à luz dos valorese princípios morais”; ou a longa argu-mentação empregada por GuyBourgeault. L’éthique et le droit: face auxnouvelles technologies bio-médicales.Bruxelles: De Boeck-Wesmael, 1990,para justificar seu estudo: “um novomodo de aproximação, orientado pelatomada de decisão, dos desafios éticosligados à utilização crescente detecnologias que interferem diretamentecom a vida humana e a saúde”.

15.Silva FL. Breve panorama histórico daética. Bioética (CFM) 1993;1: 7-11.

16.“(...) e me absterei de todo o mal e detoda a injustiça (...)” CorpusHippocratique, Serment. Traduction E.Litré IV p. 629-43.

17.Burris S. The invisibility of public health:population-level measures in a politicsof market individualism. Am J PublicHealth 1997;87:1607-10.

18.McGinnisJM, FoegeW. Actual causes ofdeath in the United States. JAMA1993:270:2207-12.

Page 214: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

216

19.Burris S. Op.cit. 1987:1609.

20.Veja-se, por exemplo, o que demanda-va o Terceiro Estado da cidade de Vienneem seu cahier de doléance: “ Os France-ses terão uma pátria comum, não serãomais que um só povo, uma grande fa-mília onde os mais velhos empregarãoa superioridade de sua inteligência e desuas forças apenas para a felicidade deseus irmãos” (Recueil complet des débatslégislatifs et politiques des Chambresfrançaises de 1787 à 1860. Achives Par-lamentares, t.2:83).

21.Condorcet. Essai sur la constitution etles fonctions des assemblées provin-ciales, 2éme partie, article IV.

22.Veja-se, já nesse mesmo sentido, o pro-jeto de declaração de direitos apresen-tado por Robespierre em abril de 1793:

“art.1º- O objetivo de toda associação po-lítica é a manutenção dos direitos natu-rais e imprescritíveis do homem e o de-senvolvimento de todas as suas facul-dades.

art.10- A sociedade é obrigada a prover asubsistência de todos os seus membros,seja fornecendo-lhes trabalho, seja as-segurando os meios de subsistênciaàqueles que não têm condições de tra-balhar” (Recueil complet des débatslégislatifs et politiques des Chambresfrançaises de 1787 à 1860, seção de 24de abril de 1793. Archives Parlamenta-res; t.36:198-9.).

23.Conforme se deduz do projeto apresen-tado à Assembléia Legislativa porBernard d’Airy, em nome do Comité desSecours Publics, na seção de 13 de ju-nho de 1792: “... a propriedade do ricoe a existência do pobre, que é sua pro-priedade, devem ser igualmente coloca-das sob a proteção da fé pública”(Recueil complet des débats législatifs et

politiques des Chambres françaises de1787 à 1860. Archives Parlamentaires,t.45: 138).

24.Comte A. Discours sur l’esprit positive.Paris: Vrin, 1983: 118 citado emBorghetto M. La notion de fraternité endroit public français. Paris: L.G.D.J,1993: 354.

25.Renouvier C. Science de la morale. Pa-ris: Alcan, 1908 citado em Borghetto M.Op.cit. 1993: 358.

26.Borghetto M. Op.cit. 1993: 378.

27.Albert M. Capitalisme contrecapitalisme. Paris: Seuil, 1991.

28.Rosanvalon P. La nouvelle questionsociale. Paris: Seuil, 1995: 26.

29.Rawls J. A theory of justice. Cambridge:Harward University Press, 1971: 136-7.

30.Habermas J. Droit et démocratie: entrefaits et normes. Paris: Gallimar, 1996:461.

31.Veja-se o exemplo francês, onde, a par-tir de 1982, os funcionários públicos re-colhem 1% de seu salário para financi-ar o seguro-desemprego, embora nãoestejam sujeitos a esse risco; e onde foicriada – por meio de uma lei de 1º dedezembro de 1988 – a renda mínima deinserção social-RMI, que, usando o im-posto sobre a fortuna recolhido pelosmais favorecidos, oferece uma ajudafinanceira para os mais desfavorecidos,que se engajam pessoalmente a pro-curar uma inserção social.

32.Habermas J.Op.cit. 1996: 469.

33.Habermas J. Op.cit 1996: 471.

Page 215: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

217

Introdução

O humano enfrenta seu estado denecessidade e precariedade de váriasmaneiras, inclusive com o saber-fazerracional e operacional da tecnociência.Ademais, neste século adquiriu a com-petência biotecnocientífica, que visatransformar e reprogramar o ambien-te natural, os outros seres vivos e a simesmo em função de seus projetos edesejos, fato que se torna, cada vezmais, motivo de grandes esperanças eangústias, consensos e conflitos, emparticular do tipo moral.

Antes da Época Moderna, que viusurgir a ciência experimental, a cultu-ra dos direitos humanos e o Estadode direito, as fontes de legitimidadedo agir eram, de regra, de tipo trans-cendente (míticas, religiosas ou na-turais), mas aos poucos foram sendodesconstruídas até serem substituídaspor princípios seculares, imanentes aoimaginário social, às forças políticas,econômicas e tecnocientíficas vigentesna sociedade.

Fermin Roland Schramm

Bioética e Biossegurança

Hoje, este processo de seculari-zação da sociedade parece irreversível,apesar da persistência de várias for-mas de transcendência em seu âmbi-to, e o bem-estar humano parece de-pender, prevalentemente, dos progres-sos da biotecnociência. Esta situaçãoconfigura uma nova condição antro-pológica que não se dá sem conflitos econtrovérsias acerca do que é bem,bom e razoável, devido à existência deuma pluralidade de concepções perti-nentes, legítimas, e não necessariamen-te comensuráveis, sobre o Bem, o Jus-to e o Verdadeiro (1).

Por transformar nossas concep-ções mais arraigadas acerca da vida eda morte, saúde e doença, bem-estare precariedade, assim como dos limi-tes que podemos, ou não, ultrapassar,a competência biotecnocientífica éconsiderada por alguns um progres-so; por outros, um perigo. Uma aná-lise imparcial da moralidade dabiotecnociência deve, portanto, con-siderar que esta é motivo de fascínioe espanto (2), mas deve também sub-meter tais sentimentos à luz da razão,

Page 216: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

218

analisando a “cogência” (cogency) dosargumentos pró e contra os fatos dabiotecnociência, evitando seja oniilismo progressista seja ofundamentalismo conservador, optan-do por uma ponderação prudencial deriscos e benefícios.

Deve-se encarar, por exemplo, osargumentos de que não existiriam limi-tes a priori ao know how tecnocientífico,que os limites considerados outrora in-superáveis podem tornar-se rapidamen-te obsoletos e que “em ciência nuncadeve-se dizer nunca” (3), razão pelaqual doenças, moléstias, incapacida-des e outros transtornos, que causammal-estar, poderão um dia serminimizados ou vencidos.

Mas existem também argumentoscontrários, como aquele de que existi-riam riscos inerentes à práticatecnocientífica e biotecnocientífica,tais como: 1) os riscos biológicos as-sociados à biologia molecular e à en-genharia genética, às práticaslaboratoriais de manipulação de agen-tes patogênicos e, sobretudo, aos Or-ganismos Geneticamente Modificados(OGMs), que podem estar na origem,por exemplo, do surgimento de novasdoenças virais ou do ressurgimento deantigas doenças infecciosas mais vi-rulentas, por um lado, e 2) os riscosecológicos resultantes da introdução deOGMs no meio ambiente ou da redu-ção da biodiversidade, por outro.

Ambos os tipos de argumentossão pertinentes mas, provavelmente,não são totalmente novos. Com efeito,o homem adapta e transforma seumeio natural há milhares de anos, ten-do aprendido a domesticar, selecionar,cruzar animais e plantas e a utilizarmicroorganismos para fabricar alimen-

tos e roupas. Parece, portanto, que hojesó estaríamos continuando práticasimemoriais que, em si, não deveriamser motivo de apreensão particular poisé delas que dependeram as condiçõesde vida passadas e dependem, ainda,as presentes. Porém, a praxis do ho-mem contemporâneo mudou de esca-la, atingindo patamares nunca vistosantes: ela já não se limita à “reforma”do mundo externo, mas alcança as pró-prias estruturas da matéria e da vida,inclusive a estrutura da vida humana.Por isso, o know how biotecnocientíficoatual levanta questões que, para mui-tos, são inéditas, tais como a seguran-ça biológica e a transmutação dos va-lores morais.

A biossegurança, enquanto novadisciplina científica, e a bioética, en-quanto nova disciplina filosófica, sepreocupam com esta situação (aparen-temente) inédita, tentando ponderar osprós e os contras e, se for o caso, pro-por leis, normas e diretrizes com o in-tento de minimizar riscos, abusos, con-flitos e controvérsias, sem prejudicar,entretanto, os avanços biotecnocien-tíficos. Nesse sentido, a biossegurançae a bioética parecem ter o mesmo tipode objetivo ou “vocação”.

Mas cada disciplina opera tambéma partir de seus pontos de vista específi-cos e com suas ferramentas próprias elegítimas, em princípio diferentes. Isto nãoimpede que, respeitando determinadascondições, exista uma cooperação intere transdisciplinar entre as duas discipli-nas, sobretudo se consideramos queexistem preocupações comuns, tais comoa qualidade do bem-estar presente efuturo dos seres humanos e não-huma-nos; o grau de aceitabilidade das vári-as formas de risco; a legitimidade de

Page 217: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

219

intervir no dinamismo intrínseco dosprocessos biológicos em geral e da vidahumana em particular, etc. Tais pro-blemas são complexos e polêmicos eparece que nenhuma disciplina, sozi-nha, possa dar conta deles.

Mas, mesmo aceitando esta argu-mentação no plano dos fins, bioéticae biossegurança devem ter, cada uma,suas ferramentas específicas, condiçãonecessária para uma autêntica coope-ração interdisciplinar. Em suma,ambas se preocupam com uma sériede referentes comuns (a probabilida-de dos riscos e de degradação da qua-lidade de vida de indivíduos e popula-ções) e legítimos (a aceitabilidade dasnovas práticas), mas a biossegurançao faz quantificando e ponderando ris-cos e benefícios, ao passo que abioética analisa os argumentos racio-nais que justificam ou não tais riscos.

Em nossa apresentação aborda-remos, de forma introdutória, duasquestões: 1) a emergência doparadigma biotecnocientífico e osurgimento das biotecnologias moder-nas, responsáveis pela evolução doconceito de biossegurança; 2) os dife-rentes papéis de biossegurança ebioética na avaliação de riscos e be-nefícios da biotecnociência.

Paradigma biotecnocientífico,biotecnologias e biossegurança

O paradigma biotecnocientíficoemerge, progressivamente, a partir dasegunda metade do século XX, graçasaos espetaculares avanços na compe-tência em analisar e manipular a in-formação genética de praticamente

todas as espécies de seres vivos, inclu-sive da espécie humana.

Esta competência é recente e ain-da rodeada por incertezas, mas pode-se razoavelmente supor que veio paraficar. Por isso, ela é hoje objeto de es-peranças, temores e controvérsiasmorais.

Historicamente, as raízes doparadigma biotecnocientífico se encon-tram na segunda metade do séculoXIX, quando surgiram a teoria da evo-lução de Darwin (4) e a teoria genéti-ca de Mendel (5). De fato, existemraízes mais antigas: as da ciência ex-perimental ou Moderna do século XVII,nascida da aliança entre o saber raci-onal da epistéme e o fazer operacionalda téchne que, dos Gregos até à Re-nascença, haviam sido rigorosamen-te separadas devido a um profundopreconceito contra os “artesões”, con-siderados com desdém tanto porPlatão e Aristóteles quanto pelosEscolásticos (6).

Entretanto, é somente após a Se-gunda Revolução Biológica, ocorridacom a descoberta da estrutura do DNApor Watson e Crick (1953)(7), e a con-seqüente aplicação prática operadapela engenharia genética dos anos oi-tenta, que se pode falar em emergên-cia stricto sensu do paradigmabiotecnocientífico. Com efeito, é a partirdeste momento que se criam as condi-ções para que a forma de saber-fazerracional e técnico dos engenheiros nãose limitasse mais aos objetos físicos equímicos, mas fosse também aplicadoaos organismos biológicos com o ob-jetivo de reprogramá-los de acordocom projetos de melhoria do bem-estarhumano. Em outros termos, com a Se-gunda Revolução Biológica torna-se

Page 218: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

220

possível uma aliança entre o saber-fa-zer dos engenheiros e aquele dos bió-logos, e é então que surge o biotecno-logista e a biotecnociência se torna umparadigma científico (8).

A vigência deste paradigma am-plia quantitativa e qualitativamente opoder humano de atuação, logo tam-bém a probabilidade dos riscos liga-dos a suas práticas. Com isso, trans-forma-se também a responsabilidadehumana em pelo menos dois sentidos:a) porque o saber-fazer dobiotecnologista afeta a própria identi-dade do homem, ou sua “natureza”,graças à intervenção programada nosseus genes ou “programa”; b) porquetransforma-se a própria autocom-preensão que o humano tem de si, desuas práticas e de sua posição no mun-do. Assim, o novo know how torna-seobjeto das mais variadas especulaçõese motivo de controvérsias morais.

Este é o caso, por exemplo, daengenharia genética (9), que consistena “transformação da composição ge-nética de um organismo, resultante daintrodução direta de material genéticode um outro organismo, ou construídoem laboratório” (10) e que torna com-petente um organismo em fazer “arti-ficialmente” o que um outro organis-mo sabe fazer “naturalmente” (porexemplo, uma proteína como a insuli-na). Isso é objeto de preocupações tan-to por parte de leigos quanto por partedos especialistas, sobretudo tendo emconta que se esta tecnologia foi inici-almente aplicada a microrganismos eplantas hoje é aplicada a animais su-periores (como foi o caso recente dasduas ovelhas transgênicas produtorasdo Fator IX, uma proteína utilizada nocombate contra a hemofilia) (11) e

pode, em princípio, ser aplicada aoshumanos.

Eis a razão porque crescem ostemores acerca dos novos poderes e deeventuais abusos que a engenhariagenética tornaria possíveis e que – se-gundo alguns – quase certamente serealizarão, a menos que renunciemosa ela, por consenso ou por lei.

Em particular, cresce a suspeitaacerca da incapacidade dos humanosem controlar seus efeitos daninhos,que seriam cumulativos, irreversíveis,de longo alcance e em escala planetá-ria. Neste caso, utiliza-se o assim cha-mado argumento do possível deslize(slippery slope argument), segundo oqual deveríamos renunciar a fazer algomesmo que isso fosse, em determina-das circunstâncias, positivo, porqueseria o primeiro passo rumo a um pos-sível dano futuro.

Preocupação e suspeita são legí-timas, pelo menos se considerarmosem conta aquilo que muitos especia-listas consideram um gap crescenteentre a competência biotecnocientíficae a competência moral, sendo que estaseria incapaz (pelo menos nas suasformas tradicionais) de dar conta dosnovos desafios. Esta perplexidade foisintetizada por Hans Jonas com a ex-pressão “vazio ético” (ethicalvacuum), resultante do fato de a ci-ência contemporânea ser essencial-mente reducionista, mecanicista edespreocupada com os anseios atu-ais acerca do futuro da vida sobre aTerra (12).

Mas porque utilizar o termo“biotecnociência” e não o sinônimo“biotecnologias”? O que é que os distin-gue? Afinal de contas, a biotecnologia é“a aplicação da biologia para fins

Page 219: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

221

humanos, que implica em utilizar or-ganismos para prover aos humanosalimentos roupas, medicamentos, eoutros produtos” (13).

De fato, embora sinônimos, osdois termos têm um sentido técnicodiferente, sendo que o termo“biotecnociência” indica a vigência deum paradigma científico, ao passo queo termo “biotecnologias” indica o con-junto de práticas e produtos que oparadigma torna possíveis, tais comoa engenharia genética ou a repro-dução artificial, por um lado, e osOGMs ou clones, por outro. Emoutras palavras, trata-se de concei-tos de ordens lógicas diferentes, poisas biotecnologias e seus produtos sãoobjetos conceituais de primeira ordem,ao passo que a biotecnociência é umobjeto de segunda ordem que define oespaço conceitual da análiseepistemológica de tais ciências e téc-nicas. Os problemas abordados nosdois casos são diferentes: a descriçãoe compreensão dos fenômenos, assimcomo seu campo de aplicabilidade, porum lado; a consistência e a fidedigni-dade dos conceitos e métodos adotadospelas primeiras, por outro.

Esta distinção é importante nãosó para o filósofo da ciência, que lidacom objetos de segunda ordem, isto é,com paradigmas, mas também para ofilósofo moral, que distingue um obje-to de primeira ordem como a moral eum objeto de segunda ordem como aética (ou bioética), sendo que a moralé o conjunto de códigos de valores eprincípios vigentes num momento his-tórico determinado, ao passo que aética analisa a consistência dos argu-mentos morais, quer dizer, objetos deprimeira ordem (14). No caso especí-

fico da análise bioética, a distinçãoentre primeira e segunda ordem é im-portante porque evita, por exemplo, aconfusão entre os sentimentos e valo-res morais intuitivos do senso comum(que todos nós temos na medida emque possuímos uma moral) e a análiseracional e imparcial da consistênciados argumentos em jogo numa dispu-ta moral (que em princípio só um pro-fissional da análise moral, filósofo ounão, possui).

Feita esta distinção, consideremosas “biotecnologias”. Com este termoindicam-se tanto as tecnologias bioló-gicas da engenharia genética(tecnologia do DNA recombinante,clonagem, fertilização in vitro, dentreoutras) quanto tecnologias biológicasmais antigas ou “tradicionais” (queremontam a milhares de anos a.C.),tais como a seleção, a criação e o cru-zamento de animais e plantas, a utili-zação de microrganismos para produ-zir pão, vinho, cerveja, iogurte e quei-jo, razão pela qual poder-se-ia afirmarque a própria genética “é provavelmen-te uma ciência muito mais antiga doque se pense” (15).

Um argumento a favor desta afir-mação é que as biotecnologias tradi-cionais certamente implicaram natransferência de genes que alteraramo patrimônio genético de determina-das espécies, e que provavelmente nãoteria ocorrido naturalmente. Este foi ocaso do trigo que, atualmente, contémaproximadamente três vezes maisgenes que o trigo cultivado no OrienteMédio há dez mil anos.

Mas, embora a seleção e o cruza-mento possam ter sido, em alguns ca-sos, conscientes e racionais, é maisprovável que fossem baseados na

Page 220: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

222

experiência prática sem uma teoria ra-cional abrangente, que só se tornarápossível a partir da genética e da bio-logia molecular. Por isso, é correto fa-zer a distinção entre biotecnologias tra-dicionais e biotecnologias modernas,sendo que estas só se tornaram de fatopossíveis nas últimas décadas, quan-do surgiram práticas disciplinares taiscomo a cultura de células, de micror-ganismos, de tecidos e, em princípio,de órgãos e organismos inteiros; atransferência de embriões; a engenha-ria genética e, recentemente, aclonagem. Nesse sentido, somente as“biotecnologias modernas” seriam,estritamente falando, biotecnologiascomo as entendemos hoje, quer dizer,resultantes da vigência do paradigmabiotecnocientífico.

Biotecnologias tradicionais e mo-dernas se distinguem em pelo menostrês aspectos:

a) o cruzamento efetuado pelasprimeiras acontecia entre espéci-es próximas, ao passo que as se-gundas permitem que seja feitoem princípio entre qualquer tipode espécie, independentementede sua distância genética;

b) o tempo necessário para a atu-ação das primeiras era muito maislongo (em geral numa escala deanos), ao passo que o tempo ne-cessário às segundas é muito me-nor (podendo chegar a poucassemanas);

c) o campo de aplicação das pri-meiras era bastante reduzido, aopasso que “a biotecnologia mo-derna é muito mais ambiciosa”(15), pois pretende controlar apoluição ambiental, criar novos

fármacos, novos organismos ereprogramar o próprio patrimôniogenético humano em vista de umamelhor adaptação a condiçõesadversas futuras e da prevençãode doenças e incapacidades deorigem genética.

A magnitude do know howbiotecnológico moderno tem, portan-to, um significado importante para aanálise moral, como veremos apresen-tando os diferentes papéis debiossegurança e bioética.

Biossegurança e bioética:limites e argumentos

Antes de apresentar os diferentespapéis de biossegurança e bioética, épreciso lembrar que os artefatos dasbiotecnologias modernas são objeto depreocupação de ambas as disciplinas,tanto os artefatos já produzidos, comoOGMs e clones animais, quanto osainda não produzidos, mas virtualmen-te possíveis, como os clones humanos.O caráter “atual” ou “virtual” de taisartefatos não é relevante para a pon-deração de seus riscos e benefícios,pois estes sempre serão computadosem termos de probabilidades.

Por outro lado, os enfoques debiossegurança e bioética são diferen-tes, sendo que a bioética se preocupacom os argumentos morais a favor oucontra, e a biossegurança visa estabe-lecer os padrões aceitáveis de seguran-ça no manejo de técnicas e produtosbiológicos. A biossegurança é, portan-to, “o conjunto de ações voltadas paraa prevenção, minimização ou elimina-ção de riscos inerentes às atividades

Page 221: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

223

de pesquisa, produção, ensino, desen-volvimento tecnológico e prestação deserviços, riscos que podem comprome-ter a saúde do homem, dos animais,do meio ambiente ou a qualidade dostrabalhos desenvolvidos” (16). Emsuma, seu objeto é a segurança, quedeve ser entendida tanto em sentidoobjetivo, isto é, associada à probabili-dade aceitável do risco que pode sermedida ou inferida, quanto em senti-do subjetivo, quer dizer, associada aosentimento (feeling) de bem-estar. Osdois sentidos, embora logicamente dis-tintos, não devem ser dissociados poisambos são necessários para uma po-lítica de segurança legítima e eficaz.

Em outros termos, bioética ebiossegurança se preocupam com alegitimidade, ou não, de se utilizar asnovas tecnologias desenvolvidas pelaengenharia genética para transformara qualidade de vida das pessoas. Masa natureza e a qualidade dos objetose dos argumentos de cada disciplinasão diferentes: a bioética preocupan-do-se com a análise imparcial dosargumentos morais acerca dos fatosda biotecnociência; a biossegurançaocupando-se dos limites e da seguran-ça com relação aos produtos e técni-cas biológicas.

A nova competência representadapela biotecnociência é encarada, mui-tas vezes, como tendo um poder pelomenos ambíguo, senão daninho, queprecisa portanto ser considerado caute-losamente, ou até rejeitado. O argumen-to utilizado é de que este poder estariainterferindo na assim chamada “ordemnatural” das coisas ou na “ordem divi-na” das mesmas, como indica a metá-fora “brincar de Deus” (playing God),utilizada desde a Conferência de

Asilomar (Califórnia, 1975) (17) masque, desde então, deve ser consideradaum mero clichê moral, “em substituiçãoa um pensamento moral sério” (18).

Em Asilomar discutiu-se a legiti-midade da utilização da tecnologia doDNA recombinante e foi proposta aelaboração de normas para o novocampo de atividades, o que de fatoaconteceu em 1976, quando oNational Institute of Health (NIH) nor-te-americano promulgou as primeirasdiretrizes de biossegurança. Contudo,tais diretrizes referiam-se unicamenteà segurança laboratorial e a agentespatogênicos para os humanos, e é comesse espírito que a iniciativa norte-americana repercutiu em outros paí-ses como o Reino Unido, França, Ale-manha e Japão (19,20,21,22). Assimsendo, a concepção sobre o papel dabiossegurança era bastante limitada,devido essencialmente ao conceito,muito restrito, de risco, utilizado paraimplementar as normas e políticas deprevenção.

Desde então, o conceito de riscotornou-se mais complexo e abrangente,graças sobretudo às análises daepidemiologia e das demais ciênciasda Saúde, vindo a ser concebido comouma verdadeira característica estrutu-ral das sociedades pós-industriais (23).Esta transformação do conceito de ris-co afetou a própria concepção do pa-pel da biossegurança, que veio incluir,inicialmente, a segurança contra ou-tros riscos presentes nas atividades delaboratório, tais como riscos físicos,químicos, radioativos, ergonômicos eoutros, e em seguida integrou os ris-cos ambientais, o desenvolvimentosustentado, a preservação da biodiver-sidade e a avaliação dos prováveis

Page 222: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

224

impactos advindos da introdução deOGMs no meio ambiente. Pode-seassim dizer que, desde então, consti-tui-se uma “nova lógica [da]biossegurança [que] passa a ser umadas premissas que alicerçam os Pro-gramas de Gestão da Qualidade”, ra-zão pela qual “a biossegurança sai deuma discussão apenas no contextolaboratorial, onde medidas preventivasbuscavam preservar a segurança do tra-balhador e a qualidade do trabalho, parauma necessidade mais complexa de pre-servar as espécies do planeta”(24).

Paralelamente à complexificaçãodo conceito de risco e à ampliação docampo de aplicação da prevenção dosriscos (abordadas pela biosse-gurança), houve também um recrudes-cimento dos sentimentos morais impli-cados pelas novas biotecnologias. Umclaro exemplo desse “clima” são asreações que acompanham as experi-ências de clonagem animal, motivo defascínio para alguns, de espanto paraoutros, porque estariam supostamen-te abrindo o caminho para a clonagemdo homem como um todo, quer dizer,não só de órgãos e tecidos (como pa-rece provável e desejável) mas tambémde inteiros organismos humanos (quepoderiam servir de “reservatórios” deórgãos e tecidos) e até de sua perso-nalidade (o que é impossível, poucorentável e não desejável) (25,26).

Assim sendo, do ponto de vistamoral delineiam-se claramente doiscampos antagônicos:

a) para os defensores da novabiotecnologia esta seria certamen-te legítima desde que fosse emprol de uma melhoria do bem-es-tar humano, propiciando, por

exemplo, uma competênciareprodutiva impossível por outrosmeios e, evidentemente, após pon-deração dos riscos e benefícios;

b) para seus detratores esta im-plicaria em riscos praticamenteimponderáveis, tais como aeugenia positiva e a discrimina-ção, razão pela qual dever-se-ia– conforme a lógica do slipperyslope argument – impor uma pru-dente moratória, senão uma proi-bição tout court. Em outros ter-mos, a possibilidade de abusosseria razão suficiente para a proi-bição da nova tecnologiareprodutiva mesmo que esta, emalguns casos, pudesse ser consi-derada como um bem para deter-minadas pessoas como, porexemplo, casais não férteis ouportadores, atuais ou potenciais,de doenças e incapacidades deorigem genética.

Mas o slippery slope argument,muito utilizado em situações de rápi-das transformações (como é o caso daengenharia genética), deve serlogicamente distinguido de outros tiposde argumentos, como os de tipoprobabilístico, que ponderam os efei-tos a médio e longo prazo de determi-nadas práticas, ou aqueles sobre seusefeitos colaterais. Com efeito, os argu-mentos probabilísticos são em princí-pio de tipo racional, ao passo que osprimeiros “não são muito racionais,mas expressão de sentimentos de in-quietação acerca de tendências exis-tentes na sociedade”, apesar de seremmuito utilizados em debates públicosgraças a seu poder retórico, mais doque argumentativo, acerca de aspec-

Page 223: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

225

tos controvertidos da realidade e depossíveis desdobramentos futuros (27).

Existem também outros tipos deperplexidades e críticas, como aque-las – de matriz foucaultiana – que es-tigmatizam a medicalização da vida eo assim chamado “biopoder”, pois esteestaria transformando as pessoas emobjetos de políticas eugênicas, racistas eautoritárias, ou aquela – de tiponeodarwiniano – acerca da ameaça àvariabilidade genética, ou biodiversidade,indispensável para que os sistemas vi-vos continuem evoluindo dentro dosparâmetros estabelecidos pelas assimchamadas leis naturais.

Existe ainda uma crítica vindados defensores dos Direitos Humanos.Neste caso – argumenta-se – a pessoahumana se tornaria um mero instru-mento em mãos de terceiros, contra-dizendo o princípio de benevolênciakantiano que estabelece que a pessoanunca pode ser considerada comomero meio mas deve ser consideradatambém como fim em si. Em outrostermos, a engenharia genética seriauma potencial ameaça aos DireitosHumanos porque poderia vir a ser umpotente fator de limitação da autono-mia pessoal e da eqüidade na alocaçãode recursos, aprofundando assim asdesigualdades sociais já existentes.

Tais argumentos são em partepertinentes, visto que seria “ingênuoacreditar que as multinacionais quecontrolam hoje o desenvolvimento dasbiotecnologias queiram promover, deforma voluntária, o bem-estar geral ea justiça global”, e que os própriosbiotecnologistas não tenham interessespessoais envolvidos (prestígio acadê-mico, recursos, etc.), razão pela qualum certo pessimismo seria mais do que

justificado (28). Mas pode-se perguntar,também, se tais receios não estariam,de fato, reconfigurando o campo daslutas ideológicas e políticas, agora di-vidido entre defensores do progres-so biotecnocientífico (ou “progressis-tas”) e seus detratores (ou “tradiciona-listas”). Se isso for verdade, estaríamosreproduzindo o tipo de atitude quesempre acompanhou as revoluções ci-entíficas desde o século XVII e que, emmuitos casos, atrasou o desenvolvimen-to científico de muitas nações.

Seja como for, bioética e biosse-gurança deverão assumir papel de des-taque neste debate, pois ambas têm umforte componente normativo que asaproxima, apesar de suas diferenças.Ou seja, tanto uma como outra dizemrespeito às práticas da engenharia ge-nética, mas a bioética as enfoca a par-tir do método da análise racional eimparcial dos argumentos morais próe contra a aplicação de tais discipli-nas, e tentando caracterizar quais sãoos “bons” argumentos, ao passo quea biossegurança refere-se às medidaspráticas que visam ao controle dos ris-cos de tais disciplinas, impondo-lhes,quando necessário, limites no tocanteao controle e minimização. Assim sen-do, seria um erro pretender que abioética deva impor limites àtecnociência e à biotecnociência pois,neste caso, atribuir-se-ia à bioéticauma tarefa que, de fato, é da biosse-gurança.

Em outros termos, entre as duasdisciplinas existem pontos em comum,como o caráter normativo e prescritivode suas conclusões e a ponderaçãoentre riscos e benefícios prováveis, mascada uma tem seu método específico,condição sine qua non da cooperação

Page 224: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

226

entre os especialistas das duas disci-plinas.

Por outro lado, quando se afirmaque a bioética é a análise racional eimparcial dos argumentos pró e con-tra os fatos da biotecnologia, pode-seentender dois tipos de argumentos di-ferentes: os intrínsecos e os extrínsecos.

Os argumentos intrínsecos dizemrespeito àquilo que, em princípio, ébom ou mau em si, ou seja, referem-se à natureza da ação ou ao caráterdo agente; os extrínsecos, ao contrá-rio, referem-se às conseqüências, boasou más, da ação. Se, por exemplo, afir-mo que uma coisa ou uma ação é boaou má em si, não existem, em princí-pio, outras considerações morais per-tinentes, e nada poderá reverter meuprimeiro julgamento.

Argumentos intrínsecos eextrínsecos têm uma estrutura lógicadiferente e configuram, portanto, teo-rias morais diferentes: as deontológi-cas, por um lado, as teleológicas ouconseqüencialistas, por outro. No casodos argumentos deontológicos as con-seqüências não são pertinentes, aopasso que no caso de argumentosteleológicos sim, visto que os argumen-tos deontológicos lidam com obriga-ções (do grego deon, “obrigação”,“dever”) que devem, em princípio, serobedecidas sem ter em conta asconseqüências, ao passo que os argu-mentos teleológicos (do grego telos,“fim”, “finalidade”) lidam com acon-tecimentos ou probabilidades de acon-tecimentos, tendo em vista suas con-seqüências ou resultados.

Porém, no caso das “conseqüên-cias” consideradas “boas” ou um“bem” deve-se, ainda, estabelecer oque pode ser considerado como um

“bem”, mas isso só distingue as váriasteorias conseqüencialistas entre si, taiscomo as utilitaristas (que consideramum “bem” a felicidade ou o bem-estarda maioria); o conseqüencialismohedonista (que considera um “bem” oprazer pessoal independente das con-seqüências para a coletividade); oconseqüencialismo altruísta (uma va-riante do utilitarismo que considera um“bem” sacrificar os interesses pesso-ais em nome dos interesses da coleti-vidade), e outros (29). Mas estas sãodistinções internas ao próprio campoconseqüencialista.

Em outros termos, se utilizo argu-mentos do tipo extrínseco, uma ação éboa ou má dependendo das suas con-seqüências, fato que será avaliado poralguém (em princípio um espectadorimparcial) que terá a sua concepçãosobre aquilo que deve ser consideradoum “bem”. No caso de riscos biológi-cos, o “bem” será minimizar a proba-bilidade dos riscos e dos danos possí-veis. O papel do observador consisti-rá, assim, em avaliar não a priori maspor assim dizer a posteriori qual dasprevisões tem mais probabilidade dese realizar, ou qual é a relação entre osriscos e os benefícios que efetivamen-te se realizarão. Em suma, contraria-mente aos argumentos intrínsecos –que valem ou não em si e por si – osargumentos extrínsecos valem por com-paração.

Acredito que no caso da engenha-ria genética, e considerando que vive-mos num mundo prevalentemente se-cular, onde existe uma pluralidade de“bens” legítimos, somente os argumen-tos de tipo conseqüencialista sejampertinentes. Este é, aliás, um possívelponto de convergência entre

Page 225: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

227

biossegurança e bioética, visto que abiossegurança lida com a relação entreriscos e benefícios (amplamente enten-didos) e a bioética com argumentosmorais acerca das conseqüências po-sitivas ou negativas.

Em particular, a biossegurançaocupa-se atualmente com a pondera-ção de riscos e benefícios referentes aosOGMs. Para tanto, alguns países,como o Brasil, dotaram-se de instru-mentos legais específicos, interditandopor exemplo sua produção industrial eliberação no meio ambiente (30). Con-tudo, não entraremos no mérito desteaspecto legal, tarefa que caberia a umespecialista em biodireito. O que nosinteressa aqui destacar são os argu-mentos morais. Vejamos.

Um dos argumentos mais co-muns contra a Engenharia Genética(EG) em geral e os OGMs em particu-lar é que tais práticas seriam necessa-riamente de risco, como bem mostra-riam as catástrofes ecológicas já ocor-ridas neste século XX.

Um outro argumento é que a ma-nipulação genética, sendo não “natural”,seria também prejudicial à preservaçãoda biodiversidade, necessária para quecontinue o processo evolutivo dos orga-nismos e meios biológicos. Em outrostermos, a EG seria uma “ecologicalroulette” (31) que, como a roleta russa,teria uma chance mínima de não aca-bar numa catástrofe, resultante da redu-ção da biodiversidade. Este argumentoé de tipo intuitivo, não demonstrativo,portanto frágil, e sua fragilidade residena utilização do próprio conceito princi-pal da biossegurança: o conceito debiodiversidade.

Com efeito, quando se utiliza oargumento da biodiversidade supõe-se

que toda a diversidade biológica tenhaa mesma importância funcional paraa evolução dos sistemas vivos, a pre-servação da saúde humana e de seumeio. Entretanto, esta é uma suposi-ção inferida a partir de alguns indíci-os, que não prova sua validade, comobem demostrou Popper na sua críticaao indutivismo (32). Ademais, numestudo recente questiona-se a própriaconsistência do conceito debiodiversidade e deixa-se entender quenem todas as espécies teriam a mes-ma importância funcional para a pre-servação dos delicados equilíbriosambientais e, conseqüentemente, parao bem-estar presente e futuro dos hu-manos. Existiria, de fato, umabiodiversidade “boa” e necessáriapara o bem-estar humano e a saúdedo planeta, e uma outra que seriairrelevante (33). Esta hipótese deverá,evidentemente, ser testada pelos espe-cialistas que trabalham neste campo,pois é sempre possível que aquilo quehoje é considerado como irrelevante setorne relevante mais tarde. Mas, mes-mo não podendo dirimir esta questão,podemos, no entanto, analisar a consis-tência dos argumentos morais racionaisa favor e contra utilizados nas discus-sões da biossegurança.

Existe ainda o argumento dos Di-reitos Humanos, baseado na possibi-lidade da engenharia genética vir a sero primeiro passo para o eugenismouniversal, devido à instrumentalizaçãoe coisificação do humano. Como jáalertava Rifkin, “se continuarmos nes-te caminho, podemos acabar por re-duzir a espécie humana a um produtotecnologicamente projetado” (34). Esteargumento é ainda muito utilizado hoje,mas, contra ele, pode-se argumentar que

Page 226: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

228

numa sociedade de risco estrutural,como é a sociedade contemporânea,é de fato impossível provar que umevento seja 100% seguro. Em suma, orisco sempre fez parte da condiçãohumana do passado, quando o poderdo homem sobre a natureza erairrelevante, e ele continua a fazer par-te mutatis mutandis da condição hu-mana atual, só que por causas parci-almente diferentes, ou seja, não maissomente devido à impossibilidade decontrolar a totalidade complexa dasinterações entre seres vivos e meioambiente, mas também pela interferên-cia biotecnológica na dinâmica inter-na desta complexidade. Mas, nestecaso – pode-se perguntar – abiotecnociência não constituiria defato um aumento da complexidade dossistemas vivos, ao invés de sua redu-ção? Esta pergunta justifica-se se con-siderarmos que a prática humana sem-pre interferiu nos processos naturais e,na maioria das vezes, com sucesso,melhorando as próprias condiçõesnaturais nas quais os humanos vive-ram e vivem ainda.

Com isso não se quer dizer que aexistência atual do risco estrutural re-duza a responsabilidade com o bem-estar de indivíduos e populações hu-manas, inclusive preservando as con-dições das gerações futuras. Em parti-cular, a existência de fato do risco nãodesresponsabiliza quem trabalha comOGMs. Ao contrário, só aumenta talresponsabilidade e, de uma certa ma-neira, a define melhor.

Em síntese, a responsabilidade docientista é dupla e diz respeito à:

1) redução da probabilidade dorisco e ao aumento da probabili-

dade dos benefícios esperados,sabendo, no entanto, que o risco,mesmo reduzido, sempre estarápresente e que surgirão outros ris-cos, resultantes da interferêncianos processos naturais;

2) defesa de seu trabalho profis-sional contra interferências e res-trições não relacionadas às ativi-dades de pesquisa, pois estas sãonecessárias para sua sobrevivên-cia num mundo competitivo e vi-tais para a própria espécie huma-na.

Concluindo, para reduzir um ris-co atual é preciso, muitas vezes, corrernovos riscos, que tentar-se-á reduzirnovamente, criando outros riscos eassim por diante. A consciência destefato já é um passo importante na abor-dagem do risco de viver num mundonatural em permanente transformação,que muda não só devido à sua“processualidade” intrínseca mas tam-bém à contínua e necessária interven-ção humana, quer dizer, devido à suatransformação biotecnocientífica ebiotecnológica. Em suma, uma “exces-siva prudência não elimina necessaria-mente o risco de catástrofes futuras”(35) e a prudência excessiva e conser-vadora pode eliminar a possibilidadede nos protegermos contra ameaçasfuturas, inclusive contra catástrofesnaturais de grande magnitude.

A análise moral racional e impar-cial, propiciada pela teoriaconseqüencialista, pode ajudar a pon-derar, com responsabilidade e prudên-cia, e dentro das condições objetivasexistentes, as soluções que tenham amelhor (ou a menos ruim) relação entrecustos e benefícios para o bem-estar de

Page 227: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

229

indivíduos e populações, dentro dosvalores e princípios vigentes, sobre osquais não existe necessariamente con-senso.

Referências

1. Engelhardt HT Jr. The foundations ofbioethics. 2nd ver.ed. London: OxfordUniversity Press, 1996. Título em portu-guês: Os fundamentos da bioética. SãoPaulo:Loyola, 1998.

2. Schramm FR. Eugenia, eugenética e oespectro do eugenismo: consideraçõesatuais sobre biotecnociência e bioética.Bioética 1997;5:203-20.

3. Bloom FE. Breakthroughs 1997. Science1998;278:2029.

4. Darwin C. On the origin of species bymeans of natural selection or thepreservation of favored races in thestruggle for life. London: Murray, 1859.

5. Mendel G. Versuche über Pflanzen-hybriden. Verh. Natur. Vereins Brünn1866;4(1865):3-57.

6. Hottois G. Le paradigme bioéthique:une éthique pour la technoscience.Bruxelles: De Boeck-Wesmael, 1990.Título em português: O paradigmabioético: uma ética para a tecnociência.Lisboa: Salamandra.

7. Watson JD, Crick FHC. Molecularstructure of nucleic acids: a structure fordeoxyribose nucleic acid. Nature1953;171:737-8.

8. Schramm FR. Paradigma biotecnocien-tífico e paradigma bioético. In: Oda LM,editor. Biosafety of transgenic organismsin human health products. Rio de Ja-neiro: FIOCRUZ, 1996: 109-27.

9. A engenharia genética é conhecida tam-bém como “biotecnologia moderna”,“manipulação genética”, “modificaçãogenética” e, com sentido mais restrito eespecífico, de “tecnologia do DNArecombinante”.

10.Reiss MJ, Straughan R. Improvingnature? the science and ethics of geneticengineering. Cambridge, UK: CambridgeUniversity Press, 1996.

11.Schniecke AE, Kind AJ, Ritchie WA,Mycock K, Scott AR, Ritchie M et al.Human factor IX transgenic sheepproduced by transfer of nuclei fromtransfected fetal fibroblasts. Science1997;278:2130-33.

12.Jonas H. The imperative ofresponsability. Chicago: University ofChicago Press, 1984.

13.Reiss M. Biotecnology. In: Chadwick R,editor. Encyclopedia of Applied Ethics.San Diego, CA: Academic Press, 1998.v.1: 319-33.

14.Alguns autores utilizam a expressão “ci-ência da moral” quando referem-se àética, mas preferimos não utilizá-la pelaconfusão que introduz entre análise fi-losófica e análise científica.

15.Reiss M. Op.cit. 1998: 320.

16.Comissão de Biossegurança da Funda-ção Oswaldo Cruz, citado em TeixeiraP, Valle S, organizadores. 1996.Biossegurança: uma abordagemmultidisciplinar. Rio de Janeiro: Ed.Fiocruz, 1996: 13.

17.Howard T, Rifkin J. Who should playgod? the artificial creation of live andwhat it means for the future of thehuman race. New York: Delacorte, 1977.

18.Grey W. Playing god. In: Chadwick R,editor. Encyclopedia of Applied Ethics.San Diego, CA: Academic Press, 1998.v.3: 525-30.

Page 228: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

230

19.Organization for Economic Cooperationand Development. (OECD). Biotechno-logy: international trends andperspectives. Paris: OECD Publ, 1982.

20.Organization for Economic Cooperationand Development. (OECD). Safetyconsiderations for recombinant DNA.Paris: OECD Publ, 1986.

21.Organization for Economic Cooperationand Development. (OECD). Safetyconsiderations for biotechnology. Paris:OECD Publ, 1992.

22.Organization for Economic Cooperationand Development. (OECD). Safetyevaluation of food derived by modernbiotechnology. Paris: OECD Publ, 1993.

23.Beck U. Risk society: towards a newmodernity. London: Sage Publ., 1992.

24.Oda LM. Biossegurança: alguns dadospara a reflexão da CTBio-Fiocruz. Riode Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz,1997. (mimeo)

25.Schramm FR. O fantasma da clonagemhumana: reflexões científicas e moraissobre o “caso Dolly”. Ciência Hoje1997;22(127):36-42.

26.Schramm FR. O “fantasma” Dolly e o“fármaco” Polly. Ciência Hoje1997;22(132):58-60.

27.Van Der Burg W. Slippery slopearguments. In: Chadwick R, editor.

Encyclopedia of Applied Ethics. SanDiego, CA: Academic Press, 1998. v.4:129-142.

28.Häyry M, Häyry H. Genetic engineering.In: Chadwick R, editor. Encyclopedia ofApplied Ethics. San Diego, CA:Academic Press, 1998. v.2: 407-17.

29.Hallgarth MW. 1998. Consequencialismand deontology. In: Chadwick R, editor.Encyclopedia of Applied Ethics. SanDiego, Academic Press, 1998. v.1: 609-21.

30.Brasil. Leis, Decretos. Lei nº 8.974, de5 de janeiro de 1995. Normas para ouso das técnicas de engenharia genéticae liberação no meio ambiente de or-ganismos geneticamente modificados.Diário Oficial da União, Brasília, v.403, n. 5, p. 337-9, 6 de janeiro 1995.Seção 1.

31.Rifkin J. Declaration of a heretic.London: Routledge and Kegan Paul,1985.

32.Popper KR. Conjectures and refutations.London: Routledge and Kegan Paul,1963.

33.Grime JP. Biodiversity and ecosystemfunction: the debate deepens. Science1997;277:1260-1.

34.Rifkin J. Op.cit. 1985: 71.

35.Reiss MJ, Straughan R. Op.cit. 1996: 57.

Page 229: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

231

A vida humana como valorético

Qualquer ação humana que tenhaalgum reflexo sobre as pessoas e seuambiente deve implicar o reconheci-mento de valores e uma avaliação decomo estes poderão ser afetados. Oprimeiro desses valores é a própriapessoa, com as peculiaridades que sãoinerentes à sua natureza, inclusive suasnecessidades materiais, psíquicas eespirituais. Ignorar essa valoração aopraticar atos que produzam algum efei-to sobre a pessoa humana, seja dire-tamente sobre ela ou através de modi-ficações do meio em que a pessoa exis-te, é reduzir a pessoa à condição decoisa, retirando dela sua dignidade.Isto vale tanto para as ações de gover-no, para as atividades que afetem anatureza, para empreendimentos eco-nômicos, para ações individuais oucoletivas, como também para a cria-ção e aplicação de tecnologia ou paraqualquer atividade no campo da ciên-cia.

Bioética e Direitos Humanos

Dalmo de Abreu Dallari

Entre os valores inerentes à con-dição humana está a vida. Embora asua origem permaneça um mistério,tendo-se conseguido, no máximo, as-sociar elementos que a produzem ousaber que em certas condições ela seproduz, o que se tem como certo é quesem ela a pessoa humana não existecomo tal, razão pela qual é de primor-dial importância para a humanidadeo respeito à origem, à conservação e àextinção da vida.

O que hoje pode ser afirmadocom argumentos sofisticados, apósmilênios de reflexões e discussões filo-sóficas, foi pensado ou intuído pelahumanidade há milhões de anos e con-tinua presente no modo de ser de to-dos os grupos humanos, tanto naque-les que se consideram mais avançadoscomo nos que vivem em condiçõesjulgadas mais rudimentares, como osgrupos indígenas que ainda vivem iso-lados nas selvas. Como foi assinaladopor Aristóteles e por muitos outros pen-sadores, e as modernas ciências quese ocupam do ser humano e de seucomportamento o confirmam, o ser

Page 230: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

232

humano é associativo por natureza. Pornecessidade material, psíquica (aquiincluídas as necessidades intelectuaise afetivas), espiritual, todo ser huma-no depende de outros para viver, paradesenvolver sua vida e para sobrevi-ver. A percepção desse fato é que fazda vida um valor, tanto nas socieda-des que se consideram mais evoluídase complexas quanto naquelas julgadasmais simples e rudimentares.

Desse modo, reconhecida a vidacomo um valor, foi que se chegou aocostume de respeitá-la, incorporando-a ao ethos de todos os povos, emboracom algumas variações decorrentes depeculiaridades culturais. Assim, inde-pendentemente de crenças religiosas oude convicções filosóficas ou políticas,a vida é um valor ético. Na convivên-cia necessária com outros seres huma-nos cada pessoa é condicionada poresse valor e pelo dever de respeitá-lo,tenha ou não consciência do mesmo.A par disso, é oportuno lembrar quetanto a Declaração Universal dos Di-reitos Humanos, editada pela ONU em1948, quanto os Pactos de DireitosHumanos que ela aprovou em 1966proclamam a existência de uma digni-dade essencial e intrínseca, inerente àcondição humana. Portanto, a vida hu-mana é mais do que a simples sobre-vivência física, é a vida com dignida-de, sendo esse o alcance da exigênciaética de respeito à vida, que, como ob-serva Cranston, por corresponder, en-tre outras coisas, ao desejo humanode sobrevivência, está presente na éti-ca de todas as sociedades humanas(1).

A ética de um povo ou de um gru-po social é um conjunto de costumesconsagrados, informados por valores.

A partir desses costumes é que se es-tabelece um sistema de normas decomportamento cuja obediência é ge-ralmente reconhecida como necessá-ria ou conveniente para todos os inte-grantes do corpo social. Se alguém, porconveniência ou convicção pessoal,procura contrariar ou efetivamentecontraria uma dessas normas tem com-portamento antiético, presumivelmenteprejudicial a outras pessoas ou a todoo grupo, quando não a todos os sereshumanos. Assim, fica sujeito às san-ções éticas previstas para a desobedi-ência, podendo, pura e simplesmente,ser impedido de prosseguir na práticaantiética ou, conforme as circunstân-cias, ser punido pelos danos que te-nha causado ou ser obrigado a repará-los. Todos estes fatorem têm aplicaçãoà proteção da vida no plano da ética,sem prejuízo da proteção resultante deseu reconhecimento como valor jurí-dico.

Ciência, tecnologia e Bioética

Recentes avanços tecnológicos,como também alguns progressos cientí-ficos, criaram possibilidades novas deinterferência na vida humana, que po-dem representar uma vantagem ou, con-trariamente, um risco ou mesmo um gra-ve prejuízo. Pelo fato de que a vida é ge-ralmente reconhecida como um valorhumano ou social, muitos sentiram anecessidade de refletir sobre essas ino-vações e seus efeitos, de prever ou, pelomenos, tentar prever, suas conseqüên-cias prováveis, benéficas ou maléficas e,finalmente, de avaliar tais possibilidadesà luz de considerações de ordem ética.

Page 231: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

233

A primeira advertência formalsobre os riscos inerentes ao progressocientífico e tecnológico foi feita pelaONU, em 10 de novembro de 1975,quando proclamou a Declaração so-bre a Utilização do Progresso Científi-co e Tecnológico no Interesse da Paz eem Benefício da Humanidade. Entreas considerações preliminares, essedocumento contém o reconhecimentode que o progresso científico etecnológico, ao mesmo tempo em quecria possibilidades cada vez maioresde melhorar as condições de vida dospovos e das nações, pode, em certoscasos, dar lugar a problemas sociais,bem como ameaçar os direitos huma-nos e as liberdades fundamentais doindivíduo. O artigo 6º dessa Declara-ção é bem expressivo como advertên-cia, tendo a seguinte redação: “Todosos Estados adotarão medidas tenden-tes a estender a todos os estratos dapopulação os benefícios da ciência eda tecnologia e a protegê-los, tanto nosaspectos sociais quanto materiais, daspossíveis conseqüências negativas douso indevido do progresso científico etecnológico, inclusive sua utilizaçãoindevida para infringir os direitos doindivíduo ou do grupo, em particularrelativamente ao respeito à vida priva-da e à proteção da pessoa humana e desua integridade física e intelectual”.

Nessa mesma linha de preocupa-ções tem-se desenvolvido nos últimosanos a Bioética, expressão de novaspreocupações relacionadas com a vidae seu significado ético. No ano de1993, ao ser implantado o Comitê In-ternacional de Bioética, por iniciativada UNESCO, foi assinalado que eletinha sido criado em decorrência daspreocupações éticas suscitadas pelos

progressos científicos e tecnológicosrelacionados com a vida, sobretudo noâmbito da genética. Entretanto, a con-sideração da vida humana em si mes-ma e das relações dos seres humanoscom outros seres vivos e com a natu-reza circundante tem ampliado rapi-damente a extensão e a diversidade daabrangência da Bioética, à medida quecada reflexão ou discussão revela anecessidade de consideração de novosaspectos, como também, segundo afeliz expressão de Miguel Reale, a ne-cessidade de “repensar o pensado”.Vem a propósito lembrar a identifica-ção da Bioética feita por Clotet: “Como termo Bioética tenta-se focalizar areflexão ética no fenômeno da vida.Constata-se que existem formas diver-sas de vida e modos diferentes de con-sideração dos aspectos éticos com elasrelacionados. Multiplicaram-se as áreasdiferenciadas da Bioética e os modosde serem abordadas. A éticaambiental, os deveres para com osanimais, a ética do desenvolvimento ea ética da vida humana relacionadacom o uso adequado e o abuso dasdiversas biotecnologias aplicadas àmedicina são exemplos dessa diversi-ficação” (2). Essa enorme amplitude éreveladora da consciência de que aprocura de avanços científicos etecnológicos, bem como os seus efei-tos, esperados ou não, colocam pro-blemas éticos e exigem reflexão para adefesa do ser humano, de sua vida ede sua dignidade.

Outro sinal de alerta formal e so-lene, que também pode ser conside-rado um passo importante no senti-do da fixação de parâmetros para aaplicação de novos conhecimentos enovas possibilidades nas áreas da

Page 232: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

234

biologia e da medicina, é a Conven-ção sobre Direitos Humanos eBiomedicina, adotada em 19 de no-vembro de 1996 pelo Conselho deMinistros do Conselho da Europa.Entre as considerações constantes doPreâmbulo, está a advertência de queo mau uso da biologia e da medici-na pode conduzir à prática de atosque ponham em risco a dignidadehumana. Isso sem deixar de reconhe-cer, em outro considerando, que oprogresso na biologia e na medicinapode ser usado para o benefício dageração presente e das futuras.

São particularmente expressi-vos, para as questões aqui aborda-das, os artigos 2º e 4º dessa Conven-ção. De acordo com o artigo 2º, “osinteresses e o bem estar do ser hu-mano devem prevalecer sobre o in-teresse isolado da sociedade ou daciência”. Segundo o artigo 4º “qual-quer intervenção no campo da saú-de, incluindo a pesquisa, deve serconduzida de acordo com obrigaçõese padrões profissionais de maior re-levância”. Como fica evidente, nãose pretende criar obstáculos ou oporbarreiras ao desenvolvimento cien-tífico e tecnológico nos campos dabiologia e da medicina, impedindo osavanços para que sejam preservadospadrões éticos ideais. O que se exigeé que toda experiência ou aplicaçãode novos conhecimentos científicose novas possibilidades tecnológicasocorra com o mais absoluto respeitoà pessoa humana, pois, além de tudo,seria contraditório agredir a dignida-de de seres humanos ou desrespeitara vida humana sob o pretexto de bus-car novos benefícios para a humani-dade.

Um fato que não se pode igno-rar é que, sobretudo em campos maissofist icados, como a biologiamolecular e a engenharia genética, asinovações freqüentemente são apre-sentadas de modo espetacular, como anúncio de resultados fantásticos,que muitas vezes não se confirmammas que, misturando fantasia e rea-lidade, dão ensejo à mistificação, àaquisição de autoridade científicainjustificada e, também, à explora-ção econômica. A par disso, o fascí-nio de penetrar no desconhecido e dedesvendar mistérios que desafiam ahumanidade há séculos ou milêniospode eliminar escrúpulos e produzirresultados desastrosos, eticamenteinjustificáveis.

Sinal evidente desse risco é de-monstrado por Schramm quando, ex-pondo o pensamento de G. Hottois,registra a “emergência de umparadigma bioético, um paradigmamoral constituído pela coexistência deprincípios e teorias em conflito e, mui-tas vezes, inconciliáveis, embasadosnuma pluralidade de cosmovisões e deconcepções do Bem e do Mal” (3). Narealidade, essa aparente coexistênciade princípios significa, inevitavelmen-te, que nenhum deles é levado em con-ta, pois sendo inconciliáveis serão neu-tralizados uns pelos outros. E o“paradigma bioético” acaba resultan-do, em última análise, na ausência deparadigma ético.

Aqui entra a necessidade de con-sideração jurídica dos mesmos valo-res de que se ocupa a Bioética, poissão valores humanos fundamentais,que precisam ser tutelados em benefí-cio de cada ser humano e de toda ahumanidade.

Page 233: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

235

A vida humana como valorjurídico

Para a consideração da vidacomo valor jurídico, um ponto de par-tida adequado é a observação, aindaque sucinta, do tratamento dispensa-do à pessoa humana e suas caracte-rísticas essenciais ao longo dos tem-pos. O exame dos documentos maisantigos, inclusive dos mais remotostextos legislativos, mostra que se per-de na origem dos tempos o reconheci-mento de que os seres humanos sãocriaturas especiais, que nascem comcertas peculiaridades. Com o avançodos conhecimentos humanos foi ha-vendo maior precisão, esclarecendo-seque há certas necessidades básicas, denatureza material, psicológica e espi-ritual, que são as mesmas para todasas pessoas. Entre as peculiaridades dacondição humana encontra-se a possi-bilidade de se desenvolver interiormen-te, de transformar a natureza e de esta-belecer novas formas de convivência.

Essa evolução levou à conclusãode que o ser humano é dotado de es-pecial dignidade, bem como de que éimperativo que todos recebam prote-ção e apoio tanto para a satisfação desuas necessidades básicas como parao pleno uso e desenvolvimento de suaspossibilidades físicas e intelectuais. Emdecorrência de todos esses fatores, foisendo definido um conjunto de facul-dades naturais necessitadas de apoioe estímulo social, que hoje se externamcomo direitos fundamentais da pessoahumana. Nos textos da antiguidade seconfundem preceitos religiosos, políti-cos e jurídicos, mas já se percebe aexistência de regras de comportamen-

to social impostas à obediência de to-dos e com a possibilidade de puni-ção para os que desobedecerem. Emvários casos a punição vai além dasanção moral e uma autoridade públi-ca pode impor castigos ou restrições adireitos.

Aí está a origem humana e socialdos direitos, inclusive do direito à vida,que através dos séculos será reconhe-cido e protegido como um valor jurídi-co. Conforme observam muitos auto-res, durante séculos a proteção da vidacomo direito se deu por via reflexa.Não havia a declaração formal do di-reito à vida, mas era punido com se-veridade quem atentasse contra ela.Isso chegou até os nossos dias, sendointeressante assinalar que no Brasil odireito à vida só foi expresso na Cons-tituição de 1988, embora desde 1830a legislação brasileira já previsse apunição do homicida.

Existem divergências quantoao momento e local em que surgi-ram as primeiras normas que, à luzdas concepções atuais, podem seridentificadas como de direitos huma-nos. Mas em autores da Grécia anti-ga, assim como em documentos de di-ferentes épocas e que hoje recebem aqualificação de monumentos legisla-tivos da humanidade, encontram-seafirmações e dispositivos que corres-pondem ao que atualmente denomina-mos normas de direitos humanos. Apartir do século V da era cristã, no iní-cio da Idade Média, a humanidadepassou por transformações profundas,incluindo grandes movimentos migra-tórios, aquisição de novos conheci-mentos que passariam a influenciarconsideravelmente a vida e a convivên-cia das pessoas, invenção de novas

Page 234: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

236

formas de organização política e mui-tas outras descobertas que mudariamsubstancialmente os rumos da históriahumana.

Nesse ambiente surgiram gravesconfrontos de valores e de objetivostemporais imediatos ou permanentes,favorecendo a formação de grupossociais privilegiados, fundados naacumulação dos poderes militar, polí-tico e econômico. Como parte desseprocesso, foi-se definindo também umasituação de submissão de indivíduose de coletividades, fragilizados por nãoterem participação nos instrumentos depoder. E como sempre acontece quan-do há grupos sociais com o privilégiode uso do poder, os direitos fundamen-tais daquelas pessoas e coletividadesmais fracas foram sendo anulados pelavontade e pelos interesses dosdominadores, a tal ponto que nemmesmo a dignidade inerente à sua con-dição humana foi respeitada.

Assim nasceu a moderna diferen-ciação entre nobres e plebeus, entre osricos proprietários, sempre participan-tes diretos ou indiretos do poder políti-co, e os outros, incluindo pequenosproprietários e também muitas pesso-as pobres ou miseráveis que só tendoa força de seu corpo e de sua menteviviam, como vivem ainda hoje, emsituação de sujeição, sendo forçados,mediante coação expressa oudisfarçada, a contribuir para a pros-peridade dos primeiros.

Durante essa fase histórica, queirá durar alguns séculos, os chefes quedispunham de mais força assumirampoderes absolutos, exercendo, inclusi-ve, o poder de julgar e de impor penasescolhidas segundo seu arbítrio, o queincluía a pena de morte, muitas vezes

aplicada para eliminar um inimigo oucompetidor, como também para servirde exemplo e fator de intimidação, pre-venindo eventuais rebeliões. Na segun-da metade da Idade Média, com o au-mento do número de cidades e o cres-cimento de suas populações, vai-sedefinir e desenvolver a figura do co-merciante e emprestador de dinheiroo qual, muitas vezes, será também vi-timado pelo poder absoluto dosgovernantes – que sob diversos pretex-tos eliminavam os credores e confis-cavam seu patrimônio.

O excesso de agressões à vida, àintegridade física e à dignidade da pes-soa humana, em decorrência do ego-ísmo, da insaciável voracidade, da in-sensibilidade moral dos dominadores,acabaria por despertar reações tantono plano das idéias quanto no âmbitoda ação material. Desse modo, surgi-ram teorias e movimentos revolucio-nários que foram contribuindo paraque um número cada vez maior de se-res humanos tomasse consciência desua dignidade essencial e dos direitosa ela inerentes.

Os direitos humanos: defesada pessoa e da vida

No final da Idade Média, no sé-culo XIII, aparece a grande figura deSanto Tomás de Aquino, que terá gran-de importância para a recuperaçãodo reconhecimento da dignidadeessencial da pessoa humana. Emborasendo um pensador cristão, Santo To-más de Aquino retomou Aristóteles,sob muitos aspectos, e procurou fixarconceitos universais. De seus estudos,

Page 235: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

237

pondo-se de parte alguns pontos desuas idéias que se apóiam em dogmasde fé, resultam noções fundamentaisque foram e podem ser acolhidas mes-mo por quem não aceite os princípioscristãos. Tomando a vontade de Deuscomo fundamento dos direitos huma-nos, Santo Tomás condena as violên-cias e discriminações dizendo que oser humano tem Direitos Naturais quedevem ser sempre respeitados, chegan-do a afirmar o direito de rebelião dosque forem submetidos a condições in-dignas. Nessa mesma época nasce aburguesia, uma nova força social,composta por plebeus que foram acu-mulando riqueza mas continuavamexcluídos do exercício do poder políti-co e, por isso, eram também vítimasde violências, discriminações e ofen-sas à sua dignidade.

Durante alguns séculos foram ain-da mantidos os privilégios da nobre-za, que, associada à Igreja Católica,tornara-se uma considerável força po-lítica e usava a fundamentação teoló-gica dos direitos humanos para sus-tentar que os direitos dos reis e dos no-bres decorriam da vontade de Deus. Eassim estariam justificadas as discri-minações e injustiças sociais. Os sé-culos XVII e XVIII trouxeram elemen-tos novos, que acabaram pondo fimaos antigos privilégios. No campo dasidéias surgem grandes filósofos políti-cos, que reafirmam a existência dosdireitos fundamentais da pessoa huma-na, sobretudo os direitos à liberdade eà igualdade, mas dando como funda-mento desses direitos a própria natu-reza humana, descoberta e dirigidapela razão.

Isso favoreceu a eclosão de mo-vimentos revolucionários que, associ-

ando a burguesia e a plebe, ambas in-teressadas na destruição dos secula-res privilégios, levaram à derrocada doantigo regime e abriram caminho paraa ascensão política da burguesia. Ospontos culminantes dessa fase revolu-cionária foram a independência dascolônias inglesas da América do Nor-te, em 1776, e a Revolução Francesa,que obteve a vitória em 1789. A novasituação criada a partir daí foi intei-ramente favorável à burguesia, masadiantou muito pouco para os que nãoeram grandes proprietários. Em 1789foi publicada a Declaração dos Direi-tos do Homem e do Cidadão, onde seafirmava, no artigo primeiro, que “to-dos os homens nascem e permanecemlivres e iguais em direitos”, mas, aomesmo tempo, admitia “distinções so-ciais”, as quais, conforme a Declara-ção, deveriam ter fundamento na “uti-lidade comum”.

Logo foram achados os pretextospara essas distinções, instaurando-se,desse modo, um novo tipo de socieda-de discriminatória, com novas classesde privilegiados, estabelecendo-seenorme distância entre as camadasmais ricas da população, pouco nume-rosas, e a grande massa dos mais po-bres. Sob o pretexto de garantir o di-reito à liberdade, e esquecendo com-pletamente a igualdade, foram cria-das novas formas políticas que pas-saram a caracterizar o Estado libe-ral-burguês: o mínimo possível de in-terferência nas atividades econômicase sociais; supremacia dos objetivos docapitalismo, com plena liberdadecontratual, garantia da propriedadecomo direito absoluto, sem responsa-bilidade social; e ocupação dos cargose das funções públicas mais relevantes

Page 236: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

238

apenas por pessoas do sexo masculi-no e com independência econômica.

As injustiças acumuladas, as dis-criminações formalmente legalizadas, ouso dos órgãos do Estado para susten-tação dos privilégios dos mais ricos e deseus serviçais acarretaram sofrimentos,miséria, violências e inevitáveis revoltas,agravadas pelas disputas, sobretudo denatureza econômica, entre os partici-pantes dos grupos sociais mais favore-cidos, em âmbito nacional e internacio-nal. Essa produção de injustiças tevecomo conseqüência a perda da paz, comduas guerras mundiais no século XX,chegando-se a extremos, jamais imagi-nados, de violência contra a vida e a dig-nidade da pessoa humana.

Um aspecto paradoxal da históriados direitos humanos é que, apesar deserem direitos de todos os seres huma-nos, o que deveria levar à conclusão ló-gica de que nenhuma pessoa é contraos insumos, pois não é razoável que al-guém se posicione contra seus própriosdireitos, não é isso o que se tem verifica-do. Há pessoas que colocam suas am-bições pessoais, busca de poder, prestí-gio e riqueza acima dos valores huma-nos, sem perceber que desse modo eli-minam qualquer barreira ética e semei-am a violência, criando insegurançapara si próprias e para seu patrimônio.Isso explica as violências da Idade Mé-dia, com o estabelecimento dos privilé-gios da nobreza e a servidão dos traba-lhadores. Essa é, também, a raiz dasagressões sofridas pelos índios da Amé-rica Latina com a chegada dos europeus,estando aí, igualmente, o nascedouro dasviolências contra a pessoa humana ins-piradas nos valores do capitalismo, quetenta renovar agora sua imagemdesgastada, propondo a farsa da

globalização. Aí estão pessoas que sãocontra os direitos humanos.

Assinale-se também que existempessoas ingênuas, mal informadas ouexcessivamente temerosas, que nãochegam a perceber o jogo maliciosodos dominadores, feito especialmenteatravés dos meios de comunicação demassa. A defesa dos direitos humanosé apresentada como um risco para asociedade, uma subversão dos direi-tos, especialmente dos direitospatrimoniais, aterrorizando-se essaspessoas com a afirmação de que adefesa dos mais pobres significa umacaminhada para a pobreza generaliza-da, pois não há bens suficientes paraserem distribuídos. Outros, igualmen-te ingênuos, mal informados ou exces-sivamente temerosos, aceitam o argu-mento malicioso de que protestar con-tra a tortura, exigir que a pessoa sus-peita, acusada ou condenada tenharespeitada a dignidade inerente à suacondição humana é fazer a defesa docrime. Aí está outra espécie de pesso-as que pensa ser contra os direitoshumanos, por não perceberem que es-ses são os seus direitos fundamentais,que deveriam defender ardorosamente.

São também contra os direitoshumanos os que, em nome do progres-so científico e de um futuro e incertobenefício da humanidade, ou alegan-do atitude piedosa em defesa da dig-nidade humana, pregam ou aceitamcom facilidade a inexistência de limi-tes éticos para as experiências cientí-ficas ou o uso dos conhecimentos mé-dicos para apressar a morte de umapessoa. E assim estes últimos defendema eutanásia e o suicídio assistido, quesão formas de homicídio, atitudes quelevam à antecipação da extinção da

Page 237: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

239

vida, que nenhuma norma de direitoshumanos autoriza. Há hipóteses emque só resta uma aparência de vida e,neste caso, tomadas todas as cautelaspara a eliminação de dúvidas quantoao verdadeiro estado do paciente eobtida a autorização livre e conscien-te de quem pode decidir pela pessoa –que, na realidade, já deixou de viver –aí sim é possível deixar de prolongar avida aparente e optar pela ortotanásia,em nome da dignidade humana. Issoé compatível com os direitos humanos.

Um dado importante é que, pormeio da experiência, da reflexão e, mui-tas vezes, do sofrimento, muitas pessoasde boa fé, que se julgavam contráriasaos direitos humanos, adquiriram cons-ciência de sua contradição e mudaramde atitude. É necessário e oportuno res-saltar que, embora sem a rapidez queseria ideal, vem aumentando sempre onúmero de pessoas conscientizadas, sen-do necessário um trabalho constante deesclarecimento e estímulo para que seacelere a ampliação do número de de-fensores dos direitos humanos.

Os direitos humanos no séculoXX: avanços e resistências

A segunda metade do século XXficará marcada na história da huma-nidade como a abertura de um novoperíodo, caracterizado pelos avanços dosdireitos humanos. Terminada a II Guer-ra Mundial, estando ainda abertas asferidas da grande tragédia causada peloegoísmo, pelo excesso de ambições ma-teriais, pela arrogância dos poderosos epela desordem social resultante, iniciou-se um trabalho visando a criação de um

novo tipo de sociedade, informada porvalores éticos e tendo a proteção e pro-moção da pessoa humana como seusprincipais objetivos. Foi instituída, então,a ONU, com o objetivo de trabalharpermanentemente pela paz. Demons-trando estarem conscientes de que esseobjetivo só poderá ser atingido medi-ante a eliminação das injustiças e apromoção dos direitos fundamentaisda pessoa humana, os integrantes daAssembléia Geral da ONU aprovaram,em 1948, a Declaração Universal dosDireitos Humanos.

Embora não tenha a eficácia jurí-dica de um tratado ou de uma Consti-tuição, a Declaração Universal é ummarco histórico, não só pela amplitudedas adesões obtidas mas, sobretudo,pelos princípios que proclamou, recupe-rando a noção de direitos humanos efundando uma nova concepção de con-vivência humana, vinculada pela solida-riedade. É importante assinalar, também,que a partir da Declaração e com basenos princípios que ela contém já foramassinados muitos pactos, tratados e con-venções tratando de problemas e situa-ções particulares relacionados com osdireitos humanos. Estes documentos im-plicam obrigações jurídicas e odescumprimento dos compromissos ne-les registrados acarreta sanções de vári-as espécies, como o fechamento do aces-so a fontes internacionais de financia-mento e aos serviços de organismos in-ternacionais, além de outras conse-qüências de ordem moral e material.

Um exemplo muito significativo dosavanços obtidos a partir da DeclaraçãoUniversal é a generalização da proibi-ção de discriminações contra a mulher.A partir da proclamação da igualdadede todos os seres humanos, em direitos

Page 238: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

240

e dignidade, como está expresso no arti-go primeiro da Declaração Universal,vários pactos e tratados dispuseram so-bre situações específicas em que a igual-dade vinha sendo negada, fixando re-gras e estabelecendo responsabilidades.E essa mesma diretriz, tanto no caso dosdireitos das mulheres como em outrosde igual magnitude, já penetrou nasConstituições, o que significa um refor-ço, de ordem prática, da eficácia das nor-mas, bem como facilidade maior paraseu conhecimento e aplicação.

Todos estes fatores que marcama existência de uma nova mentalida-de, caracterizada pela valorização daética e pelo reconhecimento dos direi-tos humanos, não foram feitos e nãoocorrem sem resistências. Os quepõem acima de tudo a consecução deobjetivos econômicos têm aliadosnuma intelectualidade que usa argu-mentos sofisticados, chamando de“idealistas utópicos” os defensores dosdireitos humanos. O deslumbramentocom os avanços no mundo da ciênciae da tecnologia também cria resisten-tes, estando entre estes os que seopõem à Bioética ou que tentammanipulá-la, propondo o estabeleci-mento de padrões de comportamen-to que, aparentando uma nova éti-ca, são de tal modo flexíveis que equi-valem à negação da ética. E por essecaminho negam também os direitoshumanos.

Direitos humanos e Bioética:conjugação necessária

Os direitos humanos e a Bioéticaandam necessariamente juntos.

Qualquer intervenção sobre a pes-soa humana, suas características fun-damentais, sua vida, integridade físi-ca e saúde mental deve subordinar-sea preceitos éticos. As práticas e osavanços nas áreas das ciências bioló-gicas e da medicina, que podem pro-porcionar grandes benefícios à huma-nidade, têm riscos potenciais muitograves, o que exige permanente vigi-lância dos próprios agentes e de todaa sociedade para que se mantenhamdentro dos limites éticos impostos pelorespeito à pessoa humana, à sua vidae à sua dignidade. Na prática, a verifi-cação desses limites é facilitada quan-do se levam em conta os direitos hu-manos, como têm sido enunciados eclarificados em grande número de do-cumentos básicos, incluindo a Decla-ração Universal dos Direitos Humanose os pactos, as convenções e todos osacordos internacionais, de caráteramplo ou visando a objetivos específi-cos, que compõem o acervo normativodos direitos humanos.

O que se pode concluir disso tudoé que a Declaração Universal dos Di-reitos Humanos marca o início de umnovo período na história da humani-dade. E a Bioética está inserida noamplo movimento de recuperação dosvalores humanos que ela desencadeou.Os que procuram a preservação ou aconquista de privilégios, os que bus-cam vantagens materiais e posições desuperioridade política e social, semqualquer consideração de ordem éti-ca, os que pretendem que seus inte-resses tenham prioridade sobre a dig-nidade da pessoa humana, os quesupervalorizam a capacidade da inte-ligência e se arrogam poderes divinos,pretendendo o controle irresponsável

Page 239: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

241

da vida e da morte, esses resistem àimplantação das normas inspiradasnos princípios da Declaração Univer-sal.

Apesar das injustiças e da violên-cia muito presentes no mundo contem-porâneo, o exame atento da realida-de, através das grandes linhas dasações humanas e num período de tem-po mais amplo, mostra um avanço con-siderável na conscientização das pes-soas e dos povos. Existem razões ob-jetivas para se acreditar que a históriada humanidade está caminhando no sen-tido da criação de uma nova socieda-de, na qual cada pessoa, cada gruposocial, cada povo, terá reconhecidos erespeitados seus direitos humanos fun-damentais. O que reforça essa crençaé a constatação de que vem aumen-tando incessantemente o número dosque já tomaram consciência de que,para superar as resistências, cada umdeverá ser um defensor ativo de seuspróprios direitos humanos. A par dis-so, verifica-se que já não é possível ig-norar as normas fundamentais de di-reitos humanos ou sustentar sua im-portância secundária sob o pretexto deque isso é necessário para o progressoeconômico e social ou para o desen-volvimento das ciências.

O significado atual dos direitoshumanos e sua importância práticapara toda a humanidade e, em con-jugação com esta, a imperativa obe-diência aos seus preceitos, foram sin-tetizados de modo magistral num do-cumento da UNESCO em que foramfixadas diretrizes para estudiosos de to-das as áreas:

“Os direitos humanos não sãouma nova moral nem uma religião lei-ga, mas são muito mais do que um

idioma comum para toda a humani-dade. São requisitos que o pesquisa-dor deve estudar e integrar em seusconhecimentos utilizando as normas eos métodos de sua ciência, seja esta afilosofia, as humanidades, as ciênciasnaturais, a sociologia, o direito, a his-tória ou a geografia” (4).

A consciência dos direitos huma-nos é uma conquista fundamental dahumanidade. A Bioética está inseridanessa conquista e, longe de ser opor aela ou de existir numa área autônomaque não a considera, é instrumentovalioso para dar efetividade aos seuspreceitos numa esfera dos conhecimen-tos e das ações humanas diretamenterelacionada com a vida, valor e direi-to fundamental da pessoa humana.

Referências bibliográficas

1. Cranston M. O que são os direitos hu-manos? São Paulo: DIFEL, 1979: 25-27.

2. Clotet J. Bioética como ética aplicada egenética. Bioética (CFM) 1997;5:173-83.

3. Schramm FR. Eugenia, eugenética e oespectro do eugenismo: consideraçõesatuais sobre biotecnociência e bioética.Bioética (CFM) 1997;5:203-20.

4. UNESCO. Medium-term plan 1977-1982. Genebra: UNESCO, 1977: 7,parágrafo 1122. (Documento 19 C/4).

Page 240: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

242

Page 241: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

243

Parte IV - Bioética Clínica

Introdução

O presente capítulo tem comopreocupação central estudar a naturezado erro médico, estimar seusdeterminantes essenciais e buscar osmeios de conjurá-los, se não reduzi-losà expressão mínima. Em segundo lugar,pretende avaliar a atitude dos Conselhoscomos órgãos fiscalizadores e julgadoresda classe médica, no sentido de averi-guar sua tolerância na fiscalização epunição do erro médico; particularmen-te, aferir se os Conselhos punem com ri-gor os desvios de conduta do médico queresultam em danos para o paciente. Eem que medida isto contribui para aprofilaxia do erro médico.

O último desafio enseja um natu-ral aprofundamento das reflexões ofe-recidas com base em estatísticas deConselhos de Medicina e, sobretudo,numa recente pesquisa de cunho cien-tífico sobre o perfil do médico no Bra-sil, a qual oferece elementos técnicosconsistentes para uma avaliação rigo-rosa e desapaixonada do erro médico,

Júlio Cézar Meirelles GomesGenival Veloso de França

Erro Médico

além de estudar o próprio médicocomo agente exclusivo do ato médico,do seu universo de trabalho e da suaeventual propensão para erros e acer-tos na profissão, crime, castigo, glóriae miséria.

A segunda questão, de naturezajudicante/punitiva, em princípio, pare-ce mal situada quando considera aformulação sobre o maior ou menorrigor das punições. Essa formulaçãooferece nuances da suspeição pela to-lerância, ou seja, que os Conselhos nãoatuariam com rigor máximo, ungidosde um espírito repressivo marcial. Ri-gor no presente caso deve ser conside-rado como severidade máxima ou sen-tença desproporcional à infração (paramais, é claro). Esse tipo de indagaçãoadvém quase sempre da imprensa lei-ga, isto é, da mídia, e traduz uma pro-vocação e oferece a presunção da cul-pa médica sem pena, pouco apenadaou não apenada.

Basta ferir um destes artigos,como se vê no gráfico abaixo, se nãodois ou mais artigos combinados ouseqüenciais para alcançar o núcleo do

Page 242: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

244

algoritmo que configura o erro/dano.É possível, ainda, admitir a dupla ação

por paralelismo ou então composiçãomista para o erro médico.

Definição

Erro médico é o dano provocadono paciente pela ação ou inação domédico, no exercício da profissão, esem a intenção de cometê-lo. Há trêspossibilidades de suscitar o dano ealcançar o erro: imprudência, imperí-cia e negligência. Esta, a negligência,consiste em não fazer o que deveriaser feito; a imprudência consiste emfazer o que não deveria ser feito e aimperícia em fazer mal o que deveriaser bem feito. Isto traduzido em lingua-gem mais simples.

A negligência ocorre quase sem-pre por omissão. É dita de caráteromissivo, enquanto a imprudência e aimperícia ocorrem por comissão.

O mal provocado pelo médico noexercício da sua profissão, quandoinvoluntário, é considerado culposo,posto não ter havido a intenção decometê-lo. Diverso, por natureza, dosdelitos praticados contra a pessoa hu-mana, se a intenção é ferir, provocar osofrimento com dano psicológico e/oufísico para negociar a supressão domal pela maldade pretendida.

A Medicina presume um compro-misso de meios, portanto o erro médi-

co deve ser separado do resultado ad-verso quando o médico empregou to-dos os recursos disponíveis sem obtero sucesso pretendido ou, ainda,diferenciá-lo do acidente imprevisível.O que assusta no chamado erro médi-co é a dramática inversão de expecta-tiva de quem vai à procura de um beme alcança o mal. O resultado danosopor sua vez é visível, imediato na mai-oria dos casos, irreparável quase sem-pre e revestido de sofrimento singularpara a natureza humana. Muitos ou-tros erros, de outras profissões, passamdespercebidos. Menos os erros dosmédicos.

Erro médico – definição edistinção

Erro médico é a conduta pro-fissional inadequada que supõe umainobservância técnica capaz de produ-zir um dano à vida ou à saúde de ou-trem, caracterizada por imperícia, im-prudência ou negligência.

Cabe diferenciar erro médicooriundo do acidente imprevisível e doresultado incontrolável. Acidenteimprevisível é o resultado lesivo,

Page 243: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

245

adviado de caso fortuito ou força mai-or, incapaz de ser previsto ou evitado,qualquer que seja o autor em idênti-cas circunstâncias. Por outro lado, oresultado incontrolável é aquele decor-rente de situação incontornável, decurso inexorável, próprio da evoluçãodo caso – quando, até o momento daocorrência, a ciência e a competênciaprofissional não dispõem de solução.

Um pouco da história do erromédico

O Código de Hamurabi (2400a.C.) já estabelecia que: “O médico quemata alguém livre no tratamento ouque cega um cidadão livre terá suasmãos cortadas; se morre o escravopaga seu preço, se ficar cego, a meta-de do preço”. Entre os povos antigoshá notícias de que Visigodos eOstrogodos entregavam o médico àfamília do doente falecido por supostaimperícia para que o justiçassem comobem entendessem. Outros códigos anti-gos, como o livro dos Vedas, o Levítico,já estabeleciam penas para os médi-cos que não aplicassem com rigor amedicina da época. Assim, eles pode-riam ter as mãos decepadas ou perdera própria vida se o paciente ficassecego ou viesse a falecer, quando estefosse um cidadão e, se escravo fosse,indenizariam o senhor com outro ser-vo. Entre os egípcios havia a tradiçãode punir o médico quando este se afas-tava do cumprimento das normas, eainda que o doente se salvasse estavao médico sujeito a penas várias, inclu-sive a morte. Entre os gregos havia tam-bém um tratamento rigoroso do supos-

to erro médico. Conta-se que “a man-do de Alexandre Magno foi crucifica-do Clauco, médico de Efésio, por ha-ver este sucumbido em conseqüênciade uma infração dietética enquanto omédico se encontrava num teatro”. EmRoma, à época do Império, os médi-cos pagavam indenização pela mortede um escravo e com a pena capital amorte de um cidadão quando consi-derados culpados por imperícia (LeiAquília). Na Idade Média, a rainhaAstrogilda exigiu do rei, seu marido,que fossem com ela enterrados os doismédicos que a trataram, aos quais atri-buía o insucesso no tratamento.

“Hoje pode-se descobrir os errosde ontem e amanhã obter talvez novaluz sobre aquilo que se pensa ter certe-za”. Este pensamento do médico ju-deu espanhol Maimonides reflete apreocupação em evitar o erro e apren-der com sua ocorrência. Em suma, aexistência de sanções inscritas nos li-vros sagrados ou nas constituições pri-mitivas denota a atenção dispensadaao erro médico desde os primórdios daMedicina.

A visão da mídia

O erro médico tem sido malfocado pela mídia, que busca no roldos eventos sociais a exceção, a ocor-rência extravagante com forte fascínioe forte apelo comercial; a mídia vai embusca da versão factual da atitude hu-mana com o duplo interesse da denún-cia e da promoção de venda da notí-cia. Despreza em regra as causasconcorrentes mais expressivas, como amá formação profissional, o ambiente

Page 244: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

246

adverso ao ato médico, a demanda as-sustadora aos órgãos de assistênciamédica, os baixos e tenebrosos pa-drões de saúde pública, etc.

Há, sim, uma atenção especialsobre o erro médico por parte das en-tidades fiscalizadoras e não apenasessas, como também por parte dasentidades associativas responsáveispelo aprimoramento técnico no exer-cício ético-profissional, bem como te-mos, ainda, a convicção de umpercentual expressivo de punição querecai sobre o médico, maior do queem outras profissões. Punições nemsempre tornadas públicas para não in-fundir descrédito sobre uma profissãoque fundamenta-se na estreita relaçãode confiança entre médico e paciente,além da discrição própria dos tribunaisde discernimento médico. Vale citarDioclécio Campos Júnior em seu livro“Crise e Hipocrisia”, onde dispõe:

“Pretende-se que ao médico nãoassista o direito de errar porque a me-dicina lida diretamente com a vida.Mas, a vida não é apenas a antíteseda morte. Sua plenitude depende igual-mente da economia, da moradia, daalimentação, do direito, da educação,do lazer, da imprensa, da polícia, dapolítica, do transporte, da ecologia.

Os erros cometidos pelos profis-sionais de qualquer uma destas áreasatentam conseqüentemente contra avida humana. Embora sejam freqüen-tes e graves, não têm merecido a mes-ma indignação, nem o mesmo desta-que que os meios de comunicação de-dicam às incorreções de médicos.”

E sintetiza:“Em conclusão, o problema da

sociedade brasileira não é o erro mé-dico, mas o erro.”

Quanto à ação fiscalizadora epunitiva dos Conselhos de Medicinanão existe rigor na acepção leiga dotermo, há sim uma justiça singular,educativa, sábia, pluralista, que temcomo objetivo fundamental a reabili-tação do profissional e como tal nãopode se restringir à simples punição.

Há quem postule na reforma da leidos Conselhos a prerrogativa de instituirprogramas de treinamento para reabili-tação técnica do médico, quando seuerro advém de imperícia, inabilidade ouconhecimentos insatisfatórios. A leituraobrigatória de um tratado de medicinainterna educa mais o médico relapso doque três anos de castigos corporais.

Mais do que a classe médica, ca-rece a sociedade como um todo deuma reforma ética e estrutural, profun-da e vigorosa, sobre a qual deve bro-tar a nova medicina como flor de rarabeleza, furando o asfalto, o tédio, onojo e erguendo-se pura e radiosa,meio ciência, meio arte, mas inteira nasua vocação do bem.

Pontos fundamentais na preven-ção do erro médico: um roteiro críticopara a formação e modelagem do pro-fissional médico, conforme avaliaçãoda Comissão Interinstitucional Nacio-nal de Avaliação do Ensino Médico –CINAEM (Associação Brasileira deEducação Médica; Associação Médi-ca Brasileira; Associação Nacional dosMédicos Residentes; Conselho de Rei-tores das Universidades Brasileiras;Conselho Federal de Medicina; Conse-lho Regional de Medicina do Estado deSão Paulo; Conselho Regional de Me-dicina do Estado do Rio de Janei-ro; Direção Executiva Nacional dosEstudantes de Medicina; Federação

Page 245: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

247

Nacional dos Médicos; Sindicato Na-cional dos Docentes das Instituiçõesde Ensino Superior). A CINAEM foicriada a partir de 1989 como uma res-posta à crise da medicina no fim dadécada de 80 por iniciativa, sobretu-do, do CFM e da Associação Brasilei-ra de Ensino Médico – ABEM.

O que se propõe:

- graduação voltada ao SUS;terminativa;

- residência / necessidades sociais;

- não ao sistema hospitalo-cêntrico;

- educação continuada;

- condições adequadas de traba-lho;

- forte relação médico-paciente;

- justiça salarial;

- estabelecimentos de objetivos;

- estímulo ao vínculo único;

- código de ética nos serviços;

- saneamento ético dos congres-sos;

- atuação efetiva dos CRMs e doCFM;

- avaliação das escolas médicas.

O que se pretende obter:

- integração das escolas com oSUS e a comunidade;

- política educacional do país fa-vorecendo as universidades;

- modelo pedagógico integrandoos ciclos básico e profissional eapresentando currículo interdisci-plinar adequado à realidade so-

cial, orientando-se por critériosepidemiológicos;

- infra-estrutura adequada às ati-vidades das escolas médicas, comprograma de manutenção eficaze racionalização do uso dos equi-pamentos;

- gestão autônoma, participativae com perspectiva estratégica,enfatizando a avaliação contínuae global das escolas médicas;

- comunidade acadêmica motiva-da e participativa, atuando ativa-mente nos programas de forma-ção e gestão das escolas médicas;

- tecnologias incorporadas de for-ma adequada;

- dotações orçamentárias sufici-entes;

- profissionais capacitados, con-tratados criteriosamente e remu-nerados condignamente por meiode um plano de cargos, carreirase salários.

A razão mais essencial do erro

O médico representa o ser huma-no investido da prerrogativa sobre-hu-mana de amenizar a dor, mitigar o so-frimento e adiar a morte do semelhan-te. Por isto, o seu erro assume propor-ções dramáticas, representa a negaçãodo bem, mas nunca a intenção do mal.No entanto, a repercussão do erro so-bre o paciente depende do grau deparceria estabelecido no binômio mé-dico-paciente, no âmago dessa relaçãocomplexa e melindrosa voltada para abusca do bem. Quando há uma par-

Page 246: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

248

ceria ativa, bilateral, marcada pelo res-peito, pela afeição e pela transparên-cia e consumada sob os auspícios daautonomia, essa relação alcança umelevado e primoroso grau de compre-ensão e tolerância mútuas. Não a pon-to de consentir erros de parte a parte,mas de tornar as falhas compreensí-veis e ensejar o exercício do perdãona parte ofendida ou pelo menos umarespeitosa tolerância. O que mais irri-ta o paciente e sua família é a arro-gância do médico apoiada à sua con-cepção de excelência técnica. A ar-rogância, unilateral e de cima parabaixo é incompatível com a boa re-lação médico-paciente. O âmagodessa relação depende do respeitobilateral, da atenção ao pacientecomo um ser humano subtraído deseu ambiente familiar e do seu con-vívio social de origem, refém de umainstituição não prazerosa, além daameaça de estranhas enfermidades,dolorosas ou humilhantes.

É preciso prestar atenção ao serhumano que se esconde no estado depaciente. Para tanto, vale a pena co-nhecer a ilustração poética do profes-sor de Pneumologia Gerson Pomp, hojebeletrista de elevada estirpe e refinadosaber:

“EU SOU UMA PESSOA”, cujasíntese é:

“Dona Enfermeira, Seu Doutor

o que me magoa,

quero confessar,

é que me tratam como caso

mas, por favor,

eu sou é uma pessoa”

Não há como afirmar que uma boarelação médico-paciente possa inibir adenúncia ou fomentar no paciente umsentimento de resignação pelo prejuízoorgânico ou funcional. Não! Mas segu-ramente a boa relação médico-pacienteé um estímulo subjetivo para o acerto deatitudes e um espaço adequado ao en-tendimento das partes, sobrevindo umdiálogo mais rico e proveitoso onde omédico, mais a vontade, formula pergun-tas acertadas e capricha no exame físi-co; nesse ponto sobrevêm o prazer dotoque que presume amizade e não rejei-ção. O paciente, por sua vez, mostra-semais relaxado, mais disposto a informare aceitar testes diagnósticos.Uma primo-rosa sentença de Leterneau: “a melhormaneira de evitar ação por responsabi-lidade médica é estabelecer e manteruma boa relação médico-paciente.”

Por fim, em nossa experiência detantos anos em Conselhos Regional eFederal de Medicina temos visto umasignificativa redução da denúnciacomo represália diante do erro médi-co e, às vezes, até mesmo a sua rever-são quando as partes superam o mo-mento agudo de insatisfação. Longe denós admitir que uma boa relação mé-dico-paciente possa ser usada para“abafar” o erro médico, mas com cer-teza os erros médicos levados ao co-nhecimento dos Conselhos têm semprena sua origem uma relação médico-paciente adversa, áspera.

A questão mais crucial: comoavaliar os deveres de condutado médico?

Os deveres de conduta do médi-co constituem predicados essenciais na

Page 247: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

249

construção das virtudes inerentes àqualidade do ato médico. Se observa-dos a contento, e mais do que isto, seestimulados e desenvolvidos, contribu-em de forma primorosa para ameni-zar ou reduzir ao mínimo a possibili-dade do erro médico. Daí porque en-tendemos sua inserção neste capítuloque trata do erro médico, em suas pos-sibilidades e matizes, como fator pre-ventivo.

Qualquer que seja a forma deavaliar a responsabilidade de um pro-fissional em determinado ato médico,no âmbito ético ou legal, é imprescin-dível que se levem em conta seus de-veres de conduta.

Entende-se por responsabilidadea obrigação de reparar prejuízo decor-rente de uma ação onde se é culpado.E por dever de conduta, no exercícioda medicina, um elenco de obrigaçõesa que está sujeito o médico, e cujo nãocumprimento pode levá-lo a sofrer asconseqüências previstas normati-vamente.

Desse modo, responsabilidade éo conhecimento do que é justo e ne-cessário por imposição de um sistemade obrigações e deveres em virtude dedano causado a outrem.

Discute-se muito se o médico res-ponde por erro de diagnóstico ou porerro de conduta. A maioria tem se pro-nunciado admitindo que o erro de diag-nóstico não é culpável, desde que nãotenha sido provocado por manifestanegligência; que o médico não tenhaexaminado seu paciente ou omitido asregras e técnicas atuais e disponíveis;que não tenha levado em conta as aná-lises e resultados durante a emissão dodiagnóstico, valendo-se do chamado“olho clínico”, ou que tenha optado por

uma hipótese remota ou absurda.Mais discutida ainda é a possibi-

lidade do médico responder por errode prognóstico. É claro que não sepode exigir dele o conhecimento detudo o que venha a acontecer emimponderáveis desdobramentos. O quese exige é prudência e reflexão.

Já os erros de conduta podemocorrer – e são os mais comuns –, masconvém que sejam analisados criterio-samente pois, nesse sentido, hádiscordâncias sobre a validade de cadamétodo e conduta.

Enfim, para a caracterização daresponsabilidade médica basta avoluntariedade de conduta e que elaseja contrária às regras vigentes eadotadas pela prudência e pelos cui-dados habituais, que exista o nexo decausalidade e que o dano esteja bemevidente. As regras de condutaargüídas na avaliação da responsabi-lidade médica são relativas aos deve-res de informação, de atualização, devigilância e de abstenção de abuso.

Dever de informação

São todos os esclarecimentos narelação médico-paciente que se con-sideram como incondicionais e obri-gatórios, tais como:

a) informação ao paciente. É fun-damental que o paciente seja in-formado pelo médico sobre a ne-cessidade de determinadas con-dutas ou intervenções e sobre osseus riscos ou conseqüências.Mesmo que o paciente seja me-nor de idade ou incapaz, e queseus pais ou responsáveis tenham

Page 248: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

250

tal conhecimento, ele tem o direi-to de ser informado e esclarecido,principalmente a respeito das pre-cauções essenciais. O ato médi-co não implica num poder excep-cional sobre a vida ou a saúde dopaciente. O dever de informar éimperativo como requisito préviopara o consentimento. O consen-timento pleno e a informação bemassimilada pelo paciente configu-ram numa parceria sólida e lealsobre o ato médico praticado.

Com o avanço cada dia mais elo-qüente dos direitos humanos, o atomédico só alcança sua verdadeira di-mensão e seu incontestável destinocom a obtenção do consentimento dopaciente ou dos seus responsáveis le-gais. Isso atende ao princípio da auto-nomia ou da liberdade, onde todo in-divíduo tem por consagrado o direitode ser autor do seu próprio destino ede optar pelo rumo que quer dar a suavida.

Se o paciente não pode falar porsi ou é incapaz de entender o ato quese vai executar, estará o facultativoobrigado a obter o consentimento deseus responsáveis legais (consenti-mento substituto). Mesmo assim éimportante saber o que é represen-tante legal, pois nem toda espécie deparentesco qualifica um indivíduocomo tal; importante saber tambémo que se pode e o que não se podeconsentir.

Deve-se considerar, ainda, que acapacidade do indivíduo consentir nãoreflete as mesmas proporções entre aética e a lei. O entendimento sob o pris-ma ético não tem a mesma inflexibili-dade da lei, pois certas decisões, em-

bora de indivíduos considerados civil-mente incapazes, devem ser respeita-das principalmente quando se avaliamsituações mais delicadas. Assim, porexemplo, os portadores de transtornosmentais, mesmo legalmente incapazes,não devem ser isentos de sua capaci-dade moral de decidir.

Sempre que houver mudançassignificativas nos procedimentosterapêuticos deve-se obter o consenti-mento continuado, pois a permissãodada anteriormente tinha tempo e atosdefinidos (princípio da temporalidade).Admite-se, também, que em qualquermomento da relação profissional, opaciente tem o direito de não maisconsentir uma certa prática ou condu-ta, mesmo já consentida por escrito,revogando assim a permissão outorga-da (princípio da revogabilidade). Oconsentimento não é um ato inexorávele permanente.

b) Informações sobre as condiçõesprecárias de trabalho. Ninguémdesconhece que muitos dos mausresultados na prática médica sãooriginados pelas péssimas e pre-cárias condições de trabalho,mesmo que se tenha avançadotanto em termos propedêuticos.Nesse cenário perverso, quepode parecer desproposital ealarmista, é fácil entender o quepode acontecer em certos locaisde trabalho médico onde semultiplicam os danos e as víti-mas, e onde o mais fácil é cul-par os médicos.

Por tais razões, não se pode ex-cluir dos deveres do médico o de in-formar as condições precárias de tra-balho, registrando-as em locais próprios e

Page 249: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

251

até omitindo-se de exercer alguns atoseletivos da prática profissional, tendo,no entanto, o cuidado de conduzir-secom prudência nas situações de urgên-cia e emergência.

Deve o médico manifestar-se sem-pre sobre as condições dos seus ins-trumentos de trabalho, para não serrotulado como negligente tendo emconta a teoria subjetiva da guarda dacoisa inanimada, principalmente se odano verificou-se em decorrência damá utilização ou de conhecidos defei-tos apresentados pelos equipamentos.

c) informações registradas noprontuário. Uma das primeirasfontes de consulta e informaçãosobre um procedimento médicocontestado é o prontuário do pa-ciente. Por isso, é muito importan-te que ali estejam registradas to-das as informações pertinentes eoriundas da prática profissional.Infelizmente, por questão de há-bito ou de alegada economia detempo, os médicos têm se preo-cupado muito pouco com a do-cumentação do paciente, comdestaque para a elaboração maiscuidadosa do prontuário.

Entende-se por prontuário mé-dico não apenas o registro daanamnese do paciente, mas todoacervo documental ordenado e con-ciso, referente às anotações e cui-dados médicos prestados e aos do-cumentos anexos. Consta do exameclínico do paciente, com suas fichasde ocorrências e de prescrição tera-pêutica, dos relatórios da enferma-gem, da anestesia e da cirurgia, daficha de registro dos resultados deexames complementares e, até mes-

mo, das cópias de atestados e das so-licitações de práticas subsidiárias dediagnóstico.

d) informações aos outros profis-sionais. Em princípio, o médiconão pode atuar sozinho. Muitassão as oportunidades em que aparticipação de outros profissio-nais de saúde é imprescindível.Para que essa interação transcorrade forma proveitosa para o paci-ente, é necessário não existir so-negação de informações conside-radas pertinentes.

Essa exigência não representaapenas simples cortesia entre colegas,nem requisito de caráter burocrático.São práticas recomendadas em favordos alienáveis interesses do paciente.Deixar de enviar informações sobre otratamento e meios complementares dediagnóstico é uma forma de deslizegrave nos deveres de conduta do mé-dico.

O censurável, no entanto, é aomissão de informações julgadas im-portantes em determinado quadro clí-nico e cuja não revelação possa trazerirreparáveis danos ao paciente, pois oalvo de toda atenção do médico é asaúde e o bem-estar do ser humano.Muitas vezes essas informações sãosonegadas por simples capricho doprofissional, que não se conforma emter seu paciente transferido para outrocolega.

Outro fato, nesta mesma linha deraciocínio, é a falta de informações aossubstitutos do plantão sobre pacientesinternados, principalmente os mais gra-ves, seja de forma verbal ou atravésdo registro circunstanciado em livrosde ocorrências.

Page 250: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

252

Dever de atualização

O regular exercício profissionaldo médico não requer apenas umahabilitação legal. Implica também noaprimoramento continuado, adquiridopor meio dos conhecimentos mais re-centes de sua profissão, no que se re-fere às técnicas de exame e aos meiosde tratamento, seja nas publicaçõesespecializadas, congressos, cursos deespecialização ou estágios em centroshospitalares de referência. A capaci-dade profissional é sempre ajuizadatoda vez que se discute uma responsa-bilidade médica.

No fundo, mesmo, o que se quersaber é se naquele discutido ato pro-fissional pode-se admitir a imperícia,se o dano deveu-se à inobservância denormas técnicas ou despreparo profis-sional, em face da inadequação deconhecimentos científicos e práticos daprofissão. Os erros de técnica são difí-ceis de ser apurados e, por isso, osmagistrados devem se omitir dessaavaliação valendo-se da experiênciados peritos, pois os métodos utilizadosna prática médica são discutíveis e àsvezes controversos. Por sua vez, a cul-pa ordinária não é difícil de compro-vação, como, por exemplo, a do médi-co que se ausenta do plantão e umpaciente vem a sofrer dano pela suaomissão. A culpa profissional, esta não,traz um certo grau de dificuldade nasua apreciação, pois nem sempre háconsenso na utilidade e na indicaçãode uma técnica ou conduta.

O que se procura em tais avalia-ções é saber se o facultativo portou-secom falta de conhecimento e habilida-des exigidos minimamente aos que

exercem a profissão. Ou seja, se elenão se credenciou para o que ordina-riamente se sabe na profissão, ou sepoderia ter evitado o dano caso nãolhe faltasse o mínimo conhecimentopara exercer suas atividades.

Dever de vigilância

O ato médico, quando avaliadona sua integridade e licitude, deve es-tar isento de qualquer tipo de omissãoque venha a ser caracterizada comoinércia, passividade ou descaso. Essaomissão tanto pode ser por abandonodo paciente como por restrição do tra-tamento ou retardo no encaminhamen-to necessário.

É omisso do dever de vigilância omédico que inobserva os reclamos decada circunstância, concorrendo paraa não realização do tratamento neces-sário, a troca de medicamento por le-tra indecifrável e o esquecimento decertos objetos em cirurgias. É omissodo dever de vigilância o profissional quepermanece em salas de repouso limitan-do-se a prescrever sem ver o paciente,medicar por telefone sem depois confir-mar o diagnóstico ou deixar de solicitaros exames necessários.

A forma mais comum de negli-gência é a do abandono do pacien-te. Uma vez estabelecida a relaçãocontratual médico-paciente, a obri-gação de continuidade do tratamen-to é absoluta, a não ser em situaçõesespeciais como no acordo mútuo oupor motivo de força maior. O conceitode abandono deve ficar bem claro,como no caso em que o médico écertificado de que o paciente ainda

Page 251: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

253

necessita de assistência e, mesmoassim, deixa de atendê-lo.

Pode o médico faltar com o deverde vigilância pela omissão de outromédico? Alguém já chamou isso denegligência vicariante. Isto é, quandocertas tarefas exclusivas de um profis-sional são repassadas a outro, e o re-sultado não é satisfeito. Exemplo: ummédico, confiando no colega, deixa oplantão na certeza de pontualidadedeste, o que não vem a se verificar. Emconseqüência, um paciente sofre da-nos pela ausência do profissional na-quele local de trabalho. Pergunta-se:qual dos dois faltou com o dever devigilância. O Código de Ética Médicaconsidera que ambos são infratores. Omesmo não pode ser dito quando ummédico é substituído por um colega, aseu pedido, e este age negligentemen-te. Seria injusto que o primeiro médi-co respondesse pelo descaso do outro,quando este poderia atender o paci-ente de maneira cuidadosa. O médicoindicado para substituir um outro nãopode ser considerado como prepostodele. A condição de profissional libe-ral habilitado legal e profissionalmen-te afasta a possibilidade de preposição,cabendo-lhe responder por seus pró-prios atos. É patente que tal substitui-ção deva ser realizada por outro pro-fissional que tenha a devida qualifica-ção, baseada no “princípio da confi-ança”, no qual alguém acredita que ooutro venha atuar de forma correta,sempre que as circunstâncias o permi-tam. Isto também se verifica quandose analisa a responsabilidade do mem-bro de uma equipe, desde que qualifi-cado para exercer aquele tipo de tare-fa. Não se deve responsabilizar umchefe de equipe se um dos seus mem-

bros faltou com o dever de vigilânciapara aquilo que é de sua competência.

Compreende-se também comofalta do cumprimento do dever de vi-gilância a displicência que favorece re-sultados inidôneos de exames com-plementares, capazes de comprome-ter o diagnóstico e a terapêutica dosdoentes, em laboratórios de anato-mia patológica, patologia clínica,radioisótopos, citologia, imunologia,hematologia e serviços de radiodia-gnóstico. Os responsáveis pelos resul-tados dos exames subsidiários execu-tados por centros complementares dediagnóstico são seus diretores, cujapresença é imperiosa na elaboraçãodos laudos, mesmo que tecnicamenteo exame possa ser feito sob sua super-visão. O radiologista que avalia erra-damente uma fratura, o patologistaque se equivoca no diagnóstico de umtumor e o hematologista que troca oresultado de um exame, vindo tais ati-tudes causarem dano, faltaram com odever de cuidado, dentro dos padrõesexigidos na prática profissional.

Dever de abstenção de abuso

Quando da avaliação do dano pro-duzido por um ato médico, deve ficar cla-ro, entre outros, se o profissional agiucom a cautela devida e, portanto,descaracterizada de precipitação,inoportunismo ou insensatez. Isso por-que a norma penal relativa aos atosculposos exige das pessoas o cumprimen-to de certas regras cuja finalidade é evi-tar danos aos bens jurídicos protegidos.

Exceder-se na terapêutica ou nosmeios propedêuticos mais arriscados

Page 252: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

254

é uma forma de desvio de poder e, seo dano deveu-se a isso, não há porquenegar a responsabilidade profissional.Ainda que esses meios não sejaminvasivos ou de grande porte, basta fi-car patente sua desnecessidade. Bas-ta que o autor assuma o risco excessi-vo, ultrapasse uma conduta não per-mitida e que no momento da ação eleconheça, nela, um risco para o bemtutelado. Essa capacidade deprevisibilidade de dano em um indiví-duo de boa qualificação profissional éo que se chama de dever subjetivo decuidado e tem um grau mais elevadode responsabilidade. No dever subjeti-vo de cuidado avalia-se em cada casoo que deveria ser concretamente segui-do, exigindo-se do autor um mínimode capacidade para o exercício daqueleato e a certeza de que outro profissionalem seu lugar teria condição de prevero mesmo dano – se seguiu as regrastécnicas naquele procedimento, conhe-cidas como lex artis, ou seja, se não sedesviou dos cuidados e das técnicasnormalmente exigidos.

Qualquer ato profissional maisousado ou inovador, fora do consenti-mento esclarecido do paciente ou deseu representante legal, tem de ser jus-tificado e legitimado pela imperiosanecessidade de intervir. Nisso, é fun-damental o respeito à vontade do pa-ciente, consagrada pelo princípio daautonomia. Quando isso não for pos-sível, em face do desespero da morteiminente, que se faça com sprit definesse.

Falta com o dever de abstençãode abuso o médico que opera pelo re-lógio, que dispensa a devida partici-pação do anestesista ou que delega cer-tas práticas médicas a pessoal técnico

ou a estudantes de medicina, sem suasupervisão e instrução. Nesse últimocaso, mesmo sendo comprovada aimprudência ou negligência deles, nãose exclui a responsabilidade do médi-co por culpa in vigilando.

Constitui abuso ou desvio de po-der o médico fazer experiências em seupaciente, sem necessidade terapêuti-ca, pondo em risco sua vida e sua saú-de. Isso não quer dizer que se excluamda necessidade do homem do futuroas vantagens do progresso da ciênciae a efetiva participação do pesquisa-dor. É preciso que ele não contribuacom o ultraje à dignidade humana eentenda que a pretensão da pesquisaé avançar em favor dos interesses dasociedade. Também não se pode jul-gar como insensato ou intempestivo orisco assumido em favor do paciente,superior ao habitual, o qual se pode-ria chamar de risco permitido ou riscoproveito.

Sugestões para prevenção doerro médico:

1. Trabalhar com a sociedadepara que ela tome parte na lutapela melhoria das condições dosníveis de vida e de saúde;

2. Entender, o médico, que seuato profissional é antes de tudoum ato político;

3. Lutar pela revisão das propos-tas do aparelho formador;

4. Melhorar a relação médico-pa-ciente;

5. Promover a atualização e oaperfeiçoamento dos profissionais

Page 253: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

255

por meio do ensino médico con-tinuado;

6. Exigir dos órgãos de fiscaliza-ção profissional um enfoque par-ticular com relação à doutrinaçãoe à ação pedagógica.

Conclusões

A despeito de tudo, de uma re-lação médico-paciente que se apro-xima da tragédia e de um número as-sustador de demandas judiciais, osque exercem criteriosamente a me-dicina prefeririam estar próximos deseus assistidos por compromissosmorais, gravados na consciência decada um pelo mais tradicional deseus documentos – O Juramento deHipócrates. Por sua vez, a sociedadeespera do profissional o respeito àdignidade humana como forma demanter uma tradição que consagroua medicina como patrimônio da hu-manidade, desde os temposimemoriais.

Com o passar dos anos, os im-perativos de ordem pública forampouco a pouco se impondo comoconquista da organização social. Foi-se vendo que a simples razão de omédico ter um diploma não o eximede sua responsabilidade. Por outrolado, o fato de se considerar o médi-co, algumas vezes, como infrator, di-ante de uma ou outra condutadesabonada pela lex artis, não querdizer que o prestígio da medicina estácomprometido.

O pior de tudo é que as possibi-lidades de queixas, cada vez maiscrescentes, começam a perturbar

emocionalmente o médico, e na práti-ca isto vai redundar no aumento docusto financeiro para o profissionale para o paciente. Além disso, tam-bém se começa a notar, entre outrosfatores, a aposentadoria médica pre-coce, o exagero dos pedidos de exa-mes complementares sofisticados e arecusa em procedimentos de maiorrisco, contribuindo, assim, para aconsolidação de uma “medicina de-fensiva”. Essa posição tímida domédico, além de constituir um fatorde diminuição na assistência aospacientes de risco, o expõe a umasérie de efeitos secundários ou a umagravamento da saúde e dos níveisde vida do conjunto da sociedade. Senão houver, desde logo, um trabalhobem articulado, os médicos, num fu-turo não muito distante, vão traba-lhar pressionados por uma mentali-dade de inclinação litigiosa, voltadapara a compensação, toda vez queos resultados não forem, pelo menossob aquela ótica, absolutamente per-feitos.

Finalmente, deve-se conscientizara sociedade mostrando que além doerro médico existem outras causas quefavorecem o mau resultado, como aspéssimas condições de trabalho e apenúria dos meios indispensáveis notratamento das pessoas. Afinal de con-tas, muitos dos pacientes não estãomorrendo nas mãos dos médicos, masnas filas dos hospitais, a caminho dosambulatórios, nos ambientes miserá-veis onde moram e na iniqüidade davida que levam. Desse modo, ignoran-do tais realidades o mais simples é sem-pre condenar os médicos.

Page 254: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

256

Bibliografia

Alcântara HR. Responsabilidade médi-ca. Rio: José Ronnfino Editores, 1971.

Bandeira MA, Pereira LA. Manual demedicina defensiva. Porto Alegre:AMERIGS, 1997.

Buchanan AE. What is ethics. In:Iserson KV, Sandres AB, Mathieu D,editors. Ethics in emergency medicine.2.ed. Tucson, Arizona: Galen Press,c1995: 31-7.

Campos D Jr. Saúde, crise e hipocrisia.Brasília: Ed. Autor, 1996: 123-24.

Conselho Federal de Medicina (Brasil). Re-solução CFM nº 1.246, de 8 de janeiro de1988. Aprova o Código de Ética Médica.Diário Oficial da União, Brasília, p. 1574-6, 26 jan. 1988, Seção I.

Dória A. Responsabilidade profissionalmédica. In: Ética médica. Rio de Janei-ro: Conselho Regional de Medicina doEstado da Guanabara, 1974: 253-68.

Fávero F. Deontologia médica e medici-na profissional. s.l.: BibliothecaScientífica Brasileira, 1930.

França GV. Comentários ao código deética médica. 2.ed. Rio de Janeiro:Guanabara Koogan, 1997.

França GV. Direito médico. 6.ed. SãoPaulo: BYK, 1995: 241-2.

França GV. Medicina legal. 5.ed. Rio deJaneiro: Guanabara Koogan, 1988

Gomes JCM. Erro médico: reflexões.Bioética (CFM) 1994;2:139-46.

Gordon R. A assustadora história da me-dicina. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995.

Gullo C, Vitória G. Medicina: até osdeuses erram. Isto é 1995 Jul26;(1347):86-91.

Kfouri Neto M. Responsabilidade civil domédico. São Paulo: Revista dos Tribu-nais,1995.

Leopoldo Neto LS. O erro diagnóstico.BsB Brasília Médica 1997;34(1/2):44-6.

Moraes IN. Erro médico. 2.ed. São Pau-lo: Santos-Maltese, 1991: 35-49.

Negligência, imperícia ou imprudência.Especial seguros 1996 Set 30;(3):3.

Penneu J. La responsabilité médicale.Paris: Ed. Sirey, 1977.

Pomp G. Eu sou uma pessoa. In:___________. Hoje quem joga é o desti-no. Rio de Janeiro: Eduerj, 1996: 27-8.

Segre M. O médico e a justiça. Rev AMB1985;31(5/6):106-8.

Silva WM. Responsabilidade sem culpa.2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1974.

Stoco R. Responsabilidade civil e sua in-terpretação jurisprudencial. 2.ed. SãoPaulo: RT, 1995.

Uchoa AC. Erro médico: de senhor davida a senhor da morte. ARS 1993Ago.:111-6.

Wambier LR. Liquidação do dano. Por-to Alegre: Fabris, 1988.

Zapieri S Jr., Moreira A. Erro médico:semiologia e implicações legais. JBM1995;69(1):116-20.

Page 255: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

257

Marco SegreCláudio Cohen

Bioética e Medicina Legal

Há efetiva ligação entre a Bioéticae a Medicina Legal. Nossos mestres daciência forense diziam que aDeontologia Médica é a outra mão dedireção da Medicina Legal: enquan-to esta consiste na contribuição dasciências médico-biológicas para aaplicação e elaboração das leis,aquela seria a contribuição do Direi-to para a normatização do exercícioprofissional do médico. Ou, de for-ma mais ampla, as deontologias (mé-dica, odontológica, dos psicólogos,dos enfermeiros, enfim de todos osprofissionais de saúde), sendo elasembasadas em “códigos de deveres”(deontos, em grego, significa dever),são instrumentos jurídicos, emana-dos portanto do Direito.

Por isso, tradicionalmente, por es-tarem ambas – a Medicina Legal e aDeontologia Médica – com um pé fin-cado na Medicina (ou nas ciências mé-dico-biológicas, de maneira maisabrangente, conforme postulavaFlamínio Fávero) e outro no Direito,elas são ministradas em conjunto nosDepartamentos ou nas disciplinas de

Medicina Legal (e Deontologia Médi-ca) das universidades.

Essa ligação, conceitual einstitucional, da Medicina Legal coma Deontologia Médica está presente noBrasil e nos outros países latino-ame-ricanos, tendo sua origem na tradiçãoeuropéia (italiana e francesa, princi-palmente).

Pretende-se, aqui, para enfocar aÉtica (e, mais especificamente, aBioética), revendo os conceitos deMedicina Legal e, principalmente,transpondo o limite entre a moralista ecartorária Deontologia, mostrar que aligação entre as duas áreas de conhe-cimento continua existindo, embora, anosso ver, ela possa ser concebida deuma forma mais abrangente e profun-da do que a exposta pelos nossos pro-fessores.

Ainda hoje, muitos vêem a Medi-cina Legal como uma simples aplica-ção de conhecimentos médicos (oumédico-biológicos) à prática forense.Quando se “pensa” a Medicina Legal,a idéia mais presente, mesmo na men-te dos profissionais de saúde, é a do

Page 256: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

258

especialista realizando necrópsias parafins de esclarecimento de crimes. Paraos que cursaram Medicina a visão daespecialidade é um pouco mais ampla:conseguem agregar, a essa área doconhecimento, o exame genital paraconstatação de estupro, a identificaçãode ossadas humanas e, no máximo, oexame de “corpo de delito” visando aoregistro de lesões corporais. Há gran-de desinformação, por exemplo, quan-to à existência de uma “PsicopatologiaForense”, que preferimos denominar“Saúde Mental e Justiça”, uma dasáreas de atuação da Medicina Legal.Com relação a esse aspecto, podemosafirmar que não há Medicina puramen-te biológica sem ênfase na psyché hu-mana, assim, como já vimos, não ha-verá Medicina Legal apenas “corpo-ral”: o estudo do psicopatológico e dasexologia são partes integrantes da ci-ência forense.

Nossa compreensão da psychénão está reduzida a uma visão neuro-lógica ou neuroquímica, mas sim comoo ponto de integração entre a “alma eo corpo”; nunca poderemos reduzir odesejo humano a uma simples descar-ga de enzimas, embora estejamos sem-pre investigando o seu registroanatômico.

O estudo do DNA permite-nosreconhecer tanto as vítimas de aciden-tes aéreos que não poderiam seridentificadas de outro modo, como umestuprador através da análise de seuesperma; mas, supomos, o DNA nun-ca revelará as emoções que levam umestuprador a cometer tal crime, ou ossentimentos das vítimas desses crimes.

E, ainda, não poderemos maispensar no criminoso nato como que-ria Lombroso, mas sim no indivíduo

que não entende (ou não aceita) o ca-ráter ilícito de seu ato.

Entretanto, mesmo com relação àimportância atualmente dada aosavanços da pesquisa genética, aoDNA — criando-se uma verdadeiraDNAlatria (nova evidência depositivismo exacerbado, que nos colo-ca, a cada um de nós seres humanos,como mero resultado das diferentescombinações de DNA) —, foge ao co-nhecimento de muitos que a utilizaçãodas técnicas da biologia molecularpara o reconhecimento, por exemplo,do vínculo entre pais e filhos tambémé Medicina Legal. Fato semelhanteocorre com a imunohematologia, tam-bém empregada para fins clínicos, queacerca de duas décadas tem valor re-levante na perícia de investigação depaternidade.

Ao pouco conhecimento sobre ri-queza conceitual da Medicina Legalaliam-se, como agravantes, as carac-terísticas desabonadoras da carreirados médicos legistas na maioria dosestados brasileiros, aos quais não sedão sequer condições razoáveis dedesenvolvimento e atuação profissio-nal.

Com isso, a especialidade médi-co-legal é quase sempre a segunda oua terceira opção do médico, que é an-tes cirurgião, clínico ou de qualqueroutra especialidade, não sendo insti-gado a interessar-se academicamentepela Medicina Legal.

Vem-nos da Medicina Legal euro-péia a tradição de uma ciência forenseabrangente, com doutrina e método pró-prios, que não se atém tão somente àaplicação de técnicas para fins judici-ais, mas que se presta decisivamentepara a estruturação das próprias leis.

Page 257: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

259

Transcreveremos um trecho de tra-balho anterior (Segre), apresentado porocasião da “II Jornada Oscar Freire”:

“A Medicina Legal, como queriaFlamínio Fávero, abrange a contribui-ção das ciências médicas e biológicaspara a elaboração e aplicação das leis,de cujo conhecimento elas, as leis, ne-cessitam.

Percebeu o prof. Flamínio, ali-nhando-se com o pensamento expos-to por Canuto e Tovo da escola médi-co-legal de Torino (Itália), que a con-tribuição das “ciências da vida” (bio-lógicas, lato sensu) era necessária paraorientar os legisladores na elaboraçãodas “regras”, e os magistrados, na suaaplicação.

Essas mesmas regras, que a so-ciedade humana teve que redigir, des-de sempre, para permitir o convívioentre os seus componentes, não podi-am prescindir dos fundamentos bioló-gicos da “vida” que elas pretendiamorganizar.

Faz-se uma “biologização” da lei,por exemplo, quando se procuraconceituar o que seja um “louco detodo gênero”, nos termos do CódigoCivil projetado em 1916 por ClóvisBevilacqua. “Biologiza-se”, ou“medicaliza-se” a lei, outro exemplo,quando se procuram caracterizar osconceitos de semi-imputabilidade e deinimputabilidade. Os conceitosatualizados de morte encefálica, outroexemplo, foram atualmente utilizadospara a elaboração da recente Lei dosTransplantes de Órgãos”.

Mais adiante, diríamos, naquelaocasião: “Não se pode mais falar, tãosomente, em Medicina Legal. É melhorreferirmo-nos às ciências biológicas(como já intuía Flamínio Fávero) – e a

Medicina não é uma ciência biológi-ca? –, às ciências biológicas, portan-to, auxiliares do Direito na elaboraçãodas leis (como queria Flamínio) e emsua aplicação. Não será o “conheci-mento da vida” o norteador da própriafilosofia do Direito, a partir do instan-te em que o Direito regulamenta o con-vívio entre os homens?”

Entendemos que até a abran-gência da biologia esteja superada, seobservarmos a messe das contribuiçõesque a “ciência da vida” pode dar aoDireito.

Um exemplo é a psicanálise, tam-bém “ciência da vida”, que, tendo vis-lumbrado a estrutura da afetividadehumana e estabelecido um fio condu-tor, lógico, para a compreensão doscomportamentos, transcende o fenô-meno biológico estudando o psiquismocomo algo autônomo.

Como balizaremos, então, essecampo ampliado das ciências do “co-nhecimento da vida”, que é indispen-sável para a estruturação do Direito?

Cremos firmemente que não preci-samos balizá-lo, eis que os princípios doDireito, constituindo a sua filosofia, jásão por si mesmos embasados no co-nhecimento da vida. Logo, as “ciênci-as da vida” e o Direito estão vincula-dos, as primeiras indispensáveis aosegundo, sendo despicienda uma deli-mitação precisa de suas áreas.

Queremos dizer que o próprioconhecimento da etiologia do crimetranscende a Medicina e a Biologia. Ocrime apenas existe porque se estabe-leceu a regra, e a regra foi criada vi-sando um objetivo pragmático, espe-cífico. E a percepção desses aspectos,já na área da Sociologia Criminal, nãoé ela também fundamento do Direito?

Page 258: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

260

– estamos falando de Criminologia, naqual a Medicina Legal se prolonga.

William Saad Hössne, em 1993,apresentou na Conferência de Abertu-ra da “I Jornada Oscar Freire” umavisão iluminista do que ele consideradeva ser a Medicina em geral, e a Me-dicina Legal em especial.

Iluminista, porque bem nos mol-des do movimento que se difundiu naEuropa no século XVIII, dirigiu suas“luzes” para o âmago do ser humano.Fez-nos ele muito bem sentir, e com-partilhamos esse pensamento, que àMedicina (e, conseqüentemente, tam-bém à Medicina Legal) não cabe o ró-tulo de ciência biológica. A menos quese queira incluir no “bios”, oabrangente (e riquíssimo) conteúdohumano que não pode ser dissociadode qualquer prática de saúde. A Medi-cina é o cerne de uma integração en-tre ciências biológicas e humanas. Denossa parte, afirmamos, ainda, quenão há Medicina sem a ênfase napsyché humana, entendida no sentidoanímico que os gregos lhe atribuíam, enão apenas de mera decorrência dadescarga de dopaminas, ou outrassubstâncias, emanadas da função dedeterminadas células nervosas, comopretendem os psicobiologistas.

Esperamos que tenha ficado cla-ra, após todas essas considerações, aextraordinária abrangência queatribuimos à expressão “Medicina Le-gal” (que preferimos entender como“Ciência da Vida aplicada ao Direi-to”), abrangência essa que tambémnossos mestres lhe concediam, embo-ra, talvez, nem sempre a tenhamexplicitado.

Quanto à bioética, parte da éticaque se volta para as questões da vida

(e, portanto, também da morte) e saú-de humanas, reportar-nos-emos ao tre-cho de um capítulo por nós escrito nolivro Bioética.

“Já vimos que nosso conceito deética situa esse ramo da filosofia apartir de uma visão tão autônomicaquanto possível de cada ser humano,visando a uma situação teórica dedescentramento (proposto pelos filóso-fos da “ilustração” – séc. XVIII, movi-mento iluminista). Isto significa a tenta-tiva (teórica, conforme já se mencionou)de cada ser humano posicionar-se in-dividualmente com relação àsmais variadas situações passíveis deestudo ético, como poderiam ser a penade morte, a dependência de drogas, oaborto, a engenharia genética, etc.

Fizemos considerações quanto aofato desse descentramento só poder sertentado (produzindo certa capacidadeindividual de abstração quanto às in-fluências afetivas do ambiente em quese vive, e à cultura prevalecente) atra-vés da experiência psicanalítica – me-diante a qual se obtém acesso às emo-ções, oferecendo-se a possibilidade de,percebendo-as, valorá-las (hierarqui-zando-as, portanto, pelo seu “peso”social) e estabelecendo-se para cadaindivíduo uma ética ou ética resultan-te do desenvolvimento do “ego”.

Esse conceito de ética contra-põe-se ao que chamamos de moral,conforme já se expôs em capítulo an-terior, que resulta de juízos de valoresimpostos (pela família, pela socieda-de, pela religião, pelos códigos, escri-tos ou não) e que exclui a autonomia(crítica) do indivíduo, trazendo embuti-da a idéia de prêmio (pelo ato “bom”)ou de castigo (pelo ato “mau”). A moralé resultado da obediência (o oposto da

Page 259: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

261

autonomia), sendo representada, napessoa, essencialmente pelo “super-ego”. Assim, podemos observar queum indivíduo poderá agir de forma ile-gal sem deixar de ser coerente com suaética, tomando como paradigma a si-tuação de “Robin Hood”, que rouba-va dos ricos, distribuindo os seus bensaos pobres; ainda poderemos ver umapessoa agindo moralmente de forma“correta” (não se ajustando, entretan-to, aos nossos valores), por exemplo,quando sob o jugo de um regime au-toritário se submete à autoridade pararealizar atos com os quais ela mesmonão concorda.

A utilização da teoria e davivência psicanalítica para a nossaconceituação de ética pretende ofere-cer um instrumental psíquico, a cadapessoa, para discutir, questionar emesmo contestar todo ordenamentomoral ou legal vigente, com o fim de seobter uma dinamização, na socieda-de, do julgamento de valores das dife-rentes situações. Sem o que, confor-me tem ocorrido em muitas comuni-dades, a moral torna-se imutável, es-tanque, calcificada.

Tentando explicar melhor esta vi-são do ético, não se trata de moldar oque é lícito ou não à evolução da ciên-cia e da tecnologia, mas, isto sim, àluz dos novos conhecimentos, trazerperspectivas inimagináveis para o fu-turo da espécie humana e das novasexperiências de vida (quantas experi-ências, por exemplo, trouxe-nos ogenocídio de milhões de seres huma-nos, em épocas recentes), permite-nosos valores tradicionalmente atribuídosà vida, à morte, à saúde e à liberdade.

Reforçando-se o esclarecimentodessa self-ética, poderíamos também

denominar “ética da liberdade”, veja-se como exemplo o posicionamentocom relação à discriminação do abor-to, a pedido da paciente. Não desejan-do, aqui, tomar uma posição quantoao problema, a reflexão ética sobre eledeve fincar-se na percepção, individu-al, de dois sentimentos conflitantesentre si, que estão provavelmente pre-sentes em toda pessoa. Um deles é orespeito pela vida do embrião, com oqual, ser humano em formação, háuma identificação de cada um de nós:fere-nos, magoa-nos, a produção damorte de um organismo em desenvol-vimento, semelhante ao nosso. A cau-sa desse sentimento de empatia com ofeto, que será tanto maior quanto maisavançada estiver a idade gestacional(o que não tem explicação racional,uma vez que, com dois ou seis mesesde gestação, se tratará, sempre, de umser humano em desenvolvimento), po-derá ser inerente a uma pulsão genuí-na de amor (e de solidariedade) como “irmão-feto” ou, então, resultado deum sentimento de culpa, super-egóico,decorrente da condenação (castigo) àextinção da vida (só humana?). Pode-rá estar também presente nesse confli-to com relação à realização do abortoa pedido da mãe (porque, para nós,apenas essa situação autônoma dapaciente merece ser agora considera-da) a empatia com o desejo de suaauto-determinação, que não quer, porrazões próprias, dar prosseguimento àgravidez. A resposta à questão “podea mãe dispor da vida do feto?”, quepara alguns é um prolongamento damãe e, para outros, algo independen-te, sobre o qual ela não tem poder dedecisão, é decisiva para a reflexão éti-ca. Simplificando, a pessoa poderá

Page 260: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

262

posicionar-se francamente contra oaborto se, na reflexão, predominar arepulsa pelo feticídio, ou então poderápender para um juízo favorável, se pre-valecer a sintonia com a vontade damãe. Nesse “jogo” pela mãe ou pelofeto poderão influir, na decisão, outrosvalores. Muitos estão a favor da inter-rupção da gravidez ante uma graveanomalia fetal, ou em situações em quea maternidade possa trazer um gravedistúrbio na vida psicossocial da pa-ciente, ou quando a gravidez tiver re-sultado de estupro (situação, aliás, pre-vista pela lei penal vigente).

Fica assim clara, através do exem-plo acima referido, a nossa defesa deum posicionamento ético individualtão “descentrado” quanto possível dosvalores morais de um determinado gru-po ou sociedade, e que vai interagircom esse grupo ou sociedade.Idealmente, se toda pessoa tiver a con-dição intrínseca de poder escolher en-tre o construtivo e o destrutivo, o efi-caz e o ineficaz (rejeitamos, proposi-talmente, os termos “bom” e “mau”,“certo e errado” porque os considera-mos valores consolidados, emanadosde um juízo externo ao indivíduo),existirá um contínuo questionamentodos valores anteriormente estabeleci-dos, com maior liberdade no ajuste dasregras às novas situações.

Inserida no contexto maisabrangente de Ética, assim como nósa concebemos, vemos que a Bioéticadeve ser livre, considerando o méritode cada uma das questões inerentes àvida e à saúde humana, valendo-se dametodologia psicanalítica e posicio-nando-se altaneiramente em face dosavanços das ciências biomédicas. Estáclaro que por ser basicamente livre é

inadmissível o estabelecimento de umadoutrina bioética válida para determi-nados grupos sociais, comunidades,nações ou conjuntos de países.

O que ora se propõe é uma estra-tégia de abordagem, esta sim poden-do ser comum, dos problemas ineren-tes à vida e à saúde humana”.

Faremos agora um parêntesepara, assim como realizamos com aMedicina Legal ao enfocarmos algunsaspectos de seu exercício lançar umavisão crítica sobre a atuação dosbioeticistas. Atuam eles nas universi-dades, provindo de áreas como Medi-cina, Biologia, Psicologia, Saúde Co-letiva, Filosofia, Direito, etc., nos hos-pitais (Comissões de Ética, Bioética,Ética em Pesquisa), em Conselhos deÉtica das diferentes profissões, em en-tidades governamentais e em ONGs.

A Bioética abrange as mais va-riadas linhas de pensamento, confron-tando tendências por vezes absoluta-mente opostas, sendo paradigmático oexemplo “Bioética sacra x Bioéticalaica”, a primeira heterônoma (de for-ma clara ou disfarçada), tendo comopressuposta a existência de uma ordemanterior (religiosa, ou natural); e a se-gunda autônoma, tendo como pré-re-quisito exclusivo a capacidade de pen-sar e de sentir do ser humano.

É imperioso enfatizar que Bioéticaé uma área de discussão sobre valo-res, não podendo precipitar-se para avala comum dos positivismos (buscada “verdade”), sendo portanto nadamais do que um espelho do relativismoético do qual, ainda que possamosdesejar, nunca escaparemos.

Após este parêntese, creio poder-mos agora pairar, nas asas da fanta-sia, num mundo supostamente sem

Page 261: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

263

regras, sem padrões anteriormente es-tabelecidos (sem cultura anterior, semreligião, etc), imaginando-nos os pri-meiros seres humanos ensaiando, àscustas de suas novíssimas experiên-cias, um convívio comunitário. Estaabstração é necessária para que nospossamos situar (ainda que ficticia-mente) num mundo onde a caracteri-zação do “certo” e do “errado” depen-derá somente de nós, antes da moral,antes da religião, antes das leis – ape-nas assim conseguiremos utilizar nos-so senso crítico com relação ao que aíestá, valendo-nos, para isso, daintegração entre nossos sentimentos enossa razão. Não seremos mais “obje-tos” (para fins deste raciocínio), dedogmas, tabus e prescrições ditadaspor outras pessoas, mas sim “sujei-tos” de uma ordem absolutamentefincada em nossos valores humanos,que erigiremos e modificaremos tan-tas vezes quantas considerarmos ne-cessário.

Nesse mundo fantástico, cada umde nós ama, odeia, sente inveja, querproteger e busca proteção, é palco,enfim, desse caleidoscópio que é a su-cessão dos sentimentos humanos.Mas, também, cada um de nós perce-be que o grupo social necessita de al-guma forma de normatização, não po-dendo esse convívio estar apenas su-jeito à materialização das emoções decada um, em cada momento, sob penade destruição do próprio grupo social.Surge então a necessidade de estabe-lecermos o que é lícito e o que não o é,buscando-se a definição da moralidadee do crime.

Desnecessário repetir que o “atomoral” e o “crime” são conceitos porsi mesmos absolutamente vazios, uma

vez que requerem um delineamentoanterior da normalidade de licitude eilicitude legal. E esse delineamentopoderá ser totalmente diverso em mo-mentos e geografias diferentes.

É nesse terreno, por irreal quepareça, que não é propriamente doDireito, mas da filosofia do Direito, quenão é da Moral (constituída), mas simda ética (ou meta-ética?), entendidaenquanto busca de cada indivíduo, deuma hierarquização de seus própriosvalores – (leia-se, para melhor enten-dimento, o Breve discurso sobre valo-res, ética, eticidade e moral, Cohen C.,Segre M., Bioética, 1994; 2(1):19-24) –,terreno que não é apenas da Medicinae da Biologia, mas que é também o quetranscende a essas ciências, partindoda visão holística do ser humano – éjustamente aí que vamos encontrar aconfluência entre a Bioética e a Medi-cina Legal.

Para melhor explicitar essas colo-cações teóricas vamos nos valer de al-guns exemplos.

Tomemos o caso da reproduçãoassistida: já se consegue, nos diasatuais, a gemelaridade induzida. Já sepratica a fecundação in vitro, bemcomo o desenvolvimento do embriãofora do útero materno. Realiza-se, tam-bém, a implantação do embrião emoutro útero, que não o da mãe biológi-ca, tendo-se assim criado a figura da“mãe substituta”. Surgem problemasimpregnados de conflitos éticos, mo-rais e legais, como o de indicar aquem pertencerão os embriões crio-preservados em caso de separaçãodo casal, ou o que se fazer com osembriões que não foram implantados(a inutilização dos embriões, com in-terrupção da vida fetal, em qualquer

Page 262: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

264

momento, caracteriza o aborto, segun-do a lei brasileira) ou, ainda, quanto àmoralidade de se aceitar a “barriga dealuguel”.

Vemos, claramente, nessas situa-ções, o papel da ciência médico-bio-lógica. Ai está ela, com sua doutrina ecom sua técnica, informando-noscomo ocorre a fecundação artificial, adivisão provocada do ovo, e a nidaçãoinduzida de embriões em úteros, bemcomo oferecendo os recursos para aimplementação dessas práticas.

É a reflexão bioética que, empre-endida com o tom de liberdade sobreo qual tanto insistimos, pré-moral epré-legal, tentará avaliar as priorida-des, em termos de valores, dosando orisco de se produzirem anomalias fetais(com relação às quais a ciência nosdá informações) com a prática da Re-produção Assistida (RA) – veja-se aResolução nº 1.358/92, do CFM –, ouo de se permitir através da pesquisagenética que os futuros homens sejamelaborados com características pré-determinadas, visando a objetivos tam-bém variáveis (casais que querem terfilhos masculinos, ou com olhos azuis,ou, até, o Estado pretendendo imporuma natalidade mais freqüente de ho-mens) ou, ainda, de se permitir ainutilização de embriões que não se-rão implantados ou, por fim, da vali-dade de se pagarem mulheres para le-var adiante gestações de outras mães.

Todos esses aspectos, e muitos ou-tros também relativos à RA, deverão servistos, antes de qualquer lei, utilizando,conforme já foi referida, a disponibilida-de dos informes científicos.

A reflexão bioética – que poderápor exemplo concluir que os embriõesnão implantados podem ser “descar-

tados”, tendo como valor prioritário asaúde e a vontade do casal a partir doqual eles foram gerados ou, então, quea condição autonômica da mãe (ou docasal) é fator suficiente para que ascaracterísticas somáticas do feto sejampreviamente escolhidas, ou, ainda, quenão nos cabe impedir quem quer queseja de “alugar” o próprio útero, poiscada um tem o direito de dispor de seucorpo e de seus órgãos – servirá parase elaborarem regras que normatizemtodas essas práticas. Reflexão seme-lhante pode ser empreendida com re-lação à clonagem em seres humanos.De um lado está o conhecimento bio-lógico, informando o que é e como seobtém a clonagem, bem como as ca-racterísticas genéticas do ser assimgerado; do outro, a reflexão sobre osvalores humanos em jogo ante a exis-tência desse ser. São “faces” diversas,a científica e a da reflexão sobre valo-res (bioética) – da qual se poderá con-cluir que nada há de mal quanto àclonagem de seres humanos desdeque a técnica não vá ser utilizada con-trariamente aos ideais de respeito àdignidade e liberdade –, mas os doisenfoques emanam das “ciências davida”, devendo sempre servir de alicer-ce para a legislação (que, no caso dosclones humanos, não poderá serinquisitorialmente proibitiva, conformese está atualmente propondo). Parece-nos ter ficado claro que a ciência mé-dico-biológica limitou-se a oferecersubsídios para a reflexão bioética, sen-do que, nesta última, influirão aspec-tos afetivos (inclusive religiosos) e ra-cionais de cada pessoa.

É com este exemplo, e logo maismencionaremos outros, que pretende-mos delimitar o alcance da medicina

Page 263: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

265

e da biologia (ofertando subsídios) comrelação à valoração bioética (que étambém do médico e do biólogo, nosentido de se utilizar o seu conhecimen-to das “ciências da vida”, mas tam-bém o seu pensamento de homens do-tados de sentimentos e de razão), e opapel do legislador, assessorado peloque os nossos mestres denominavamsimplesmente “Medicina Legal”, crian-do as leis e determinando as sançõespara os que as descumprirem.

Use-se agora um outro exemplo,que é o da discussão da ideologia quenorteou a lei antitóxicos. No momentoem que se estabelece punição para ousuário de drogas (ou mesmo paraquem as transporte, em doses mínimas,para uso pessoal) assume-se, implici-tamente, uma postura paternalista dasociedade, não permitindo que umapessoa se valha de suas percepções(ainda que com risco de dependência)na busca do “seu” prazer. Mesmotranscendendo ao enfoque penal, a sim-ples conotação de “doente”, aplicadaao fármaco-dependente, que portanto“precisa ser tratado”, pressupõe que aspessoas não são livres para procura-rem sua satisfação da maneira quepreferirem, ainda que não prejudiquemde qualquer forma a dinâmica social.Não sendo este o momento para quenos posicionemos sobre o assunto, ficaclaro que nossa legislação éheteronômica (paternalista) e, conse-qüentemente, não-autônomica, impon-do punição (ou tratamento compulsó-rio) a quem realize escolhas que fogemao consenso social.

Observamos, uma vez mais, quea reflexão bioética lastreada no conhe-cimento científico dos efeitos da dro-ga sobre a personalidade – reflexão

essa onde se visa à definição do que émais importante, a autonomia da pes-soa ou o suposto bem-estar social – éao mesmo tempo criminológica e, naacepção mais abrangente do termo,também médico-legal. Muitos outrosexemplos poderão ser aqui trazidos. Alegislação sobre transplantes de órgãosfundamenta-se num “pensar bioético”e, a partir do momento que se visouuma normatização jurídica, num “pen-sar médico-legal”. São um rim, umsegmento de fígado, a medula óssea, opróprio sangue, bens disponíveis?Uma pessoa pode doá-los, estando emvida, ou até vendê-los? É a própria vidaum bem disponível (ou não), a pontode aceitarmos (ou não) a eutanásia(em termos de o médico ser parceirodo seu paciente num processo de abre-viação da vida), ou ela pertence aomédico, à família, ao Estado ou a Deus(só eles poderiam retirá-la)? Essa re-flexão é tipicamente bioética,posicionando-se as pessoas num ounoutro sentido segundo suas crençase razões.

Ponderações semelhantes ocor-rem com relação ao cadáver, tendosido questionada a legislação que tor-nou a retirada de órgãos de cadáverespara transplantes obrigatória, a menosque exista objeção expressa em vidapor parte da própria pessoa ou de suafamília. E os juristas necessitam deste“pensar médico-legal”, que secomplementa com o “bioético”, ao re-digirem as leis.

E o que se dizer da discussão éti-co-jurídica quanto à descriminaçãodas cirurgias de “mudança de sexo”de transexuais, a seu pedido, ou,mesmo, das laqueaduras de trompae das vasectomias por solicitação dos

Page 264: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

266

pacientes, para controle da natalida-de? Andaram bem, o Conselho Fede-ral de Medicina e o Conselho Regionalde Medicina do Estado de São Paulo(CFM e CREMESP) – embora, a nos-so ver, de forma tímida –, ao emitiremresoluções referentes às cirurgias de“mudança de sexo” em transexuais ede “esterilização (laqueaduras de trom-pas e vasectomias) – Resolução CFMnº 1.482/97 e parecer/consulta CRM nº20.613/94 –, dando aso a que essasintervenções, tendo a autonomia comonorte, possam ser realizadas.

Não há mais dúvidas, a esta altu-ra, quanto à convergência, na suaconceituação mais profunda, entre aBioética e a Medicina Legal. Não setrata mais, apenas, do Direito Médicosendo a contramão da Medicina Le-gal. É a própria ideologia da Bioéticaque se superpõe à da Medicina Le-gal, considerada no seu sentido maisamplo.

Eminentes professores de Medici-na (e também de Medicina Legal) pre-tenderam (e raramente conseguiram)influir nos parâmetros de moral vigen-te. Transcrevem-se, aqui, trechos datese de doutoramento de JoséLeopoldo Ferreira Antunes:

“Senhores, quando se trata deestudar a civilização, bem como qual-quer outra condição, qualquer outrofenômeno moral complexo ...” A.J. deSouza Lima, 1885.

Com estas palavras, o Dr. Agosti-nho José de Souza Lima introduziauma questão de método relativa àabordagem de algum tema que inte-ressou a classe médica durante suagestão como presidente da AcademiaImperial de Medicina do Rio de Ja-neiro”.

O autor da tese, partindo da afir-mação de Souza Lima, observa emseguida, iniciando seu trabalho, a ten-tativa de se dar à Medicina umaconotação positivista, transformando-a em “ciência da moral”.

E escreve: “Assim deslocado deseu contexto original, assim recortadoe isolado, esse trecho de frase servebem como epígrafe para a introduçãode um trabalho que procurou mostraro pensamento médico dirigindo-se aobjetos da vida social, mais especifi-camente aos fatos morais relacionadosao crime, ao sexo e à morte. Um traba-lho que se debruçou sobre um períododa história da medicina no Brasil, noqual se produziu uma ampla ecriteriosa reflexão sobre esses temas.Uma reflexão que se pretendeu “cien-tífica”, isto é, submetida às confronta-ções teóricas e verificações empíricas.De algum modo, a citação refere esseesforço dos médicos que fizeram damedicina uma verdadeira ciência dosocial. Mais que isso, fizeram da me-dicina algo bem próximo daquilo queAugusto Comte queria fazer da socio-logia: uma ciência da moral.

Com esses predicados, o trabalhoque ora se introduz deveria interessarespecialmente aos médicos e aos so-ciólogos; mas corre o risco de desa-gradar tanto uns como outros. Aos pri-meiros, porque possivelmente não re-conhecerão a medicina legal na proje-ção histórica delineada para a especia-lidade. Talvez rejeitem, como excessi-va, a amplitude dos temas e aborda-gens; talvez reivindiquem um perfil téc-nico mais restrito para sua atividadeprofissional. Aos segundos, porquemuitos deles dificilmente aceitarão aleitura do pensamento médico como

Page 265: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

267

um capítulo da reflexão social no Brasil.Talvez acusem, como não científicas, asperspectivas analíticas recuperadaspelo levantamento histórico; talvez, pro-clamem a originalidade e a especifici-dade de seus próprios métodos”.

E, mais adiante:“Nos capítulos que se seguem,

veremos que diferentes perspectivasteóricas separavam Nina Rodrigues eSouza Lima, um contraste que nãodeveria ser reduzido à sucessão de fa-ses evolutivas da medicina legal, atéporque Souza Lima faleceu quase vin-te anos depois de Nina Rodrigues,tendo se mantido profissionalmenteativo durante todo esse período.Como indicação de seus diferentesposicionamentos quanto às questõesenvolvidas pela medicina legal, pode-ríamos destacar o agudo sentimentoantiliberal de Nina Rodrigues, paraquem inexistiria um substrato comuma toda a espécie, um “espírito huma-no” que igualasse os indivíduos de di-ferentes raças. Desse modo, para omédico maranhense, o estudo da com-posição étnica das populações brasi-leiras impor-se-ia como pré-requisitoessencial tanto para a orientação mé-dica como para às formulações jurídi-cas. Ainda mais; seria necessário nãofundamentar as avaliações médico-le-gais nas conclusões da literatura mé-dica internacional, porque esta teriasido inspirada pela observação de po-vos de raízes biológicas distintas. Ora,para Souza Lima, que partia de pre-missas diferentes, eram outras asconsequências. Assim, o “primaz” damedicina legal no Brasil (título com queNina Rodrigues saudara o colega ilus-tre) pôde fazer um uso pródigo da pro-dução médica vinda do exterior”.

Vimos, assim, que os médicos,e neste caso os médicos-legistas,sempre se envolveram (com todapertinência) em questões morais.Mas nem sempre foram capazes dediscernir as razões de seusposicionamentos e de suas divergên-cias, atribuindo-as, equivocadamen-te, à sua ciência médico-biológica.Faltou-lhes o “pensar bioético”, que,conforme estudamos, faz parte doâmbito maior das “ciências da vida”,conjuntamente com a Medicina Le-gal.

Vemos que este capítulo se inicioucom a exposição de uma visão amplia-da da Medicina Legal, que se propõea integrar as “Ciências da Vida apli-cadas ao Direito”; postula, conseqüen-temente, a sua transcendência quantoà Medicina e à Biologia; procura, fi-nalmente, conceituar a Bioética, den-tro de um enfoque moderno e amplo.

Aí percebemos que Bioética eMedicina Legal, ambas “ciências davida”, ambas fundamentais para oDireito, em sua própria estruturação,e também na sua aplicação, são áreasdo conhecimento muito próximas, li-gadas conceitualmente entre si, de for-ma muito mais profunda do que asdefinições meramente deontológicas ascaracterizavam.

Referências bibliográficas

1. Antunes JLF. Crime, sexo, morte:avatares da medicina no Brasil.[tese].São Paulo: Departamento de Sociolo-gia, Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas da Universidade deSão Paulo, 1995.

Page 266: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

268

2. Segre M. Retrato atual da medicina le-gal brasileira. Conferência proferida noPrimeiro Seminário de Estudos Médico-Legais; 1985 Out; Blumenau.

3. Segre M. Medicina legal do século XXI:mesa-redonda. Segunda Jornada OscarFreire; 1994 Abr 28-30; São Paulo.

4. Segre M. Definição de bioética e suarelação com a ética, deontologia ediceologia. In: Segre M, Cohen C,organizadores. Bioética. São Paulo:EDUSP, 1995: 13-22.

5. Segre M. Bioética e medicina legal. Saú-de, Ética e Justiça 1996;1(1):1-10.

Page 267: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

269

Introdução

A confidencialidade, embora umdos preceitos morais mais antigos daprática médica, continua um tema ex-tremamente atual no exercício da re-lação médico-paciente. O mais das ve-zes o seu exercício não apresenta difi-culdade maior para os profissionais dasaúde, haja vista que a imensa maio-ria tem uma idéia do significado e va-lor da preservação dos segredos emmedicina. Não é difícil, para um mé-dico, entender que a confidencialidadeé um dos pilares fundamentais à sus-tentação de uma relação médico-pa-ciente produtiva e de confiança. É estagarantia que faz com que os pacientesprocurem auxílio profissional quandonecessitam, sem medo de repercussõeseconômicas ou sociais que possamadvir de seu estado de saúde (1).

As informações fornecidas pelospacientes, quando de seu atendimen-

Carlos Fernando FrancisconiJosé Roberto Goldim

Aspectos Bioéticos daConfidencialidade e Privacidade

to em um hospital, posto de saúde ouconsultório privado, assim como osresultados de exames e procedimentosrealizados com finalidade diagnósticaou terapêutica, são de sua proprieda-de. Durante muito tempo houve o en-tendimento de que estas informaçõespertenciam ao médico assistente ou àinstituição. Desta visão é que surgiramas denominações “prontuário médico”e “arquivo médico”. Esta maneira detratar as informações do paciente deveser atualizada. Os profissionais e asinstituições são apenas seus fiéis de-positários. Os médicos, enfermeiros edemais profissionais de saúde e admi-nistrativos que entram em contato comas informações têm apenas autoriza-ção para o acesso às mesmas em fun-ção de sua necessidade profissional,mas não o direito de usá-las livremen-te. Dessa forma, os profissionais so-mente deverão ter acesso às informa-ções que efetivamente contribuam aoatendimento do paciente.

Page 268: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

270

A garantia da preservação do se-gredo das informações, além de umaobrigação legal contida no Código Pe-nal (2) e na maioria dos Códigos deÉtica profissional (3), é um dever pri-ma facie de todos os profissionais etambém das instituições. Este concei-to foi proposto por Sir David Ross, em1930 (4). Ele propunha que não há,nem pode haver, regras sem exceção.O dever prima facie é uma obrigaçãoque se deve cumprir, a menos queconflite, numa situação particular, comum outro dever de igual ou maior por-te. Por exemplo, como veremos poste-riormente, existem situações que cla-ramente constituem exceções à preser-vação de segredos devido ao risco devida associado ou ao benefício socialque pode ser obtido.

A preservação de segredos profis-sionais é um direito do paciente e umaconquista da sociedade (5). Esta rela-ção de confiança se estabelece entre opaciente e seu médico, e se estende atodos os demais profissionais das áre-as de saúde e administrativa, incluin-do-se as secretárias e recepcionistasque tenham contato direto ou indiretocom as informações obtidas. Muito dovínculo que se estabelece pode ser cre-ditado a esta garantia.

A preservação das informações éum compromisso de todos e para comtodos. Algumas vezes observamos queos médicos têm mais facilidade emmanter a confidencialidade de seuspacientes mais abonados, sendo mais“flexíveis” em deixar escapar informa-ções de seus pacientes mais empobre-cidos tanto social como intelectualmen-te. No entanto, é moralmente inaceitá-vel que os médicos, em função de va-riáveis socioeconômicas, ajam de

maneira diferente em relação a qual-quer princípio. É este um valor quedeve ser precocemente transmitido eexemplificado aos alunos dos cursosmédicos através de uma atitude corre-ta por parte dos professores quando doseu exercício docente-assistencial noshospitais universitários. As populaçõesvulneráveis devem ser protegidas porpolíticas extremamente claras sobre ouso das informações geradas ao longode seu atendimento pelo sistema desaúde.

Muitos autores e códigos utilizamindistintamente os termos sigilo e se-gredo. A palavra segredo pode ter osignificado de mera ocultação ou depreservação de informações. Os segre-dos dizem respeito à intimidade dapessoa, portanto devem ser mantidose preservados adequadamente. A pa-lavra sigilo tem sido cada vez menosutilizada. A sua utilização em diferen-tes idiomas tem caracterizado cada vezmais os aspectos de ocultação e me-nos os de preservação.

A omissão de informações é umasituação que permite verificar a dife-rença entre segredo e sigilo. Não rarofamiliares de pacientes solicitam aosmédicos que omitam informações oumintam aos mesmos, principalmentena situação de diagnóstico de doen-ças malignas. Neste caso, o médicoestará mantendo uma informação emsigilo, quando deveria comunicá-la aquem de direito. Os pacientes tambémpedem para que os médicos omitamou mintam para as suas famílias, pe-los mais diferentes motivos. A primei-ra circunstância, omitir informações apedido do paciente, pode ser encaradacomo um claro exercício de sua auto-nomia, preservando sua intimidade e

Page 269: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

271

segredos. A segunda solicitação – men-tir – pode constituir-se em um ato eti-camente inadequado. Recomenda-seao médico muita prudência nestas si-tuações. Ele deverá entender bem osaspectos psicodinâmicos envolvidos ediscuti-los claramente com a família oucom o paciente, conforme o caso, an-tes de tomar uma decisão séria comoesta: enganar deliberadamente a al-guém.

A veracidade, a exemplo daconfidencialidade, é também um de-ver prima facie. Desta forma, a únicajustificativa moralmente aceitável paraque o médico omita a verdade é a deque o bem maior para o paciente, na-quela circunstância específica, é nãoter acesso a uma dada informação. Acaracterização deste caráter de exce-ção deve ser feita pelo próprio médi-co, em função dos argumentos de fa-miliares próximos e baseando-se essen-cialmente em sua observação e julga-mento.

Esta situação é peculiar às cultu-ras latinas, que têm caráter mais cole-tivo em suas relações familiares (6).Muitas vezes as informações médicassão primeiro relatadas às famílias e,posteriormente, aos pacientes. Nospaíses anglo-saxãos, de formação maisindividualista, o paciente, de maneiraquase que obrigatória, terá primeira-mente acesso às informações e, entãodecidirá se alguém mais compartilha-rá das mesmas.

O dilema ético, na realidade, nãoestá situado entre revelar ou não odiagnóstico, ao paciente, ou qualqueroutra informação relevante, mas simna forma e momento de revelar. Valerelembrar que a garantia recíproca decomunicar a verdade e de não ser en-

ganado, ou seja a veracidade, é umdos princípios básicos sobre os quaisse estabelece a relação médico-paci-ente.

A preservação de segredos estáassociada tanto à questão da privaci-dade quanto da confidencialidade. Aprivacidade, mesmo quando não hávínculo direto, impõe ao profissional osdeveres de resguardar as informaçõesque teve contato e de preservar a pró-pria pessoa do paciente – pode ser con-siderada como sendo um deverinstitucional. A confidencialidade, porsua vez, pressupõe que o paciente re-vele informações diretamente ao pro-fissional, que passa a ser o responsá-vel pela preservação das mesmas.

Confidencialidade

A confidencialidade é uma carac-terística presente desde os primórdiosdas profissões de saúde. O juramentohipocrático, do século V a.C., estabe-lecia que: “qualquer coisa que eu vejaou ouça, profissional ou privadamente,que deva não ser divulgada, eu man-terei em segredo e contarei a ninguém”(7). Thomas Percival, em seu livroMedical Ethics, de 1803, também rei-terava a importância da garantia dapreservação das informações parauma adequada relação médico-paci-ente (8). Confidencialidade, desta for-ma, é a garantia do resguardo das in-formações dadas em confiança e aproteção contra a sua revelação nãoautorizada (9).

A confidencialidade não é umaprerrogativa dos pacientes adultos, elase aplica a todas as faixas etárias.

Page 270: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

272

As crianças e os adolescentes têm,como um adulto, o mesmo direito depreservação de suas informações pes-soais, de acordo com a sua capacida-de, mesmo em relação a seus pais ouresponsáveis (10). Com relação aospacientes idosos, especial atençãodeve ser dada à revelação de informa-ção aos familiares e, especialmente,aos cuidadores. Estes deverão receberapenas as informações necessárias aodesempenho de suas atividades (11).

Confidencialidade tem origem napalavra confiança, que é a base para umbom vínculo terapêutico. O paciente con-fia que seu médico irá preservar tudo quelhe for relatado, tanto que revela infor-mações que outras pessoas, com asquais convive, sequer supõem existir.

Os deveres do terapeuta para coma preservação dos dados de um paci-ente não cessam com a morte deste,nem com o fato de ser uma pessoapública. O profissional não deve sequerconfirmar uma informação que já é dedomínio público. Os familiares, por suavez, não têm o direito de acesso e,muito menos, de obrigar o terapeuta afornecer estas informações, que devempermanecer resguardadas. Neste tipode situação o profissional somentepoderá dizer à família, ou a qualqueroutra pessoa que solicitar informações,que está impedido de atender a estespedidos por motivos morais e legais,justificando a sua conduta sob o pon-to de vista da adequação ética.

Privacidade

A privacidade é a limitação doacesso às informações de uma dada

pessoa, bem como do acesso à pró-pria pessoa e à sua intimidade. É apreservação do anonimato e dos se-gredos (12). É o respeito ao direito deo indivíduo manter-se afastado ou per-manecer só. É o direito que o pacientetem de não ser observado sem suaautorização. O artigo XII da Declara-ção Universal dos Direitos Humanos,proposta pela ONU em 1948, já esta-belecia o direito à não interferência navida privada pessoal ou familiar (13).

As instituições têm a obrigação demanter um sistema seguro de proteçãoaos documentos que contenham regis-tros com informações de seus pacien-tes. As normas e rotinas de restriçãode acesso aos prontuários e de utiliza-ção de senhas de segurança em siste-mas informatizados devem ser conti-nuamente aprimoradas. Por sua vez,o acesso de terceiros envolvidos noatendimento, como seguradoras e ou-tros prestadores de serviços, deve me-recer especial atenção.

Em média, durante umainternação clínica habitual em hospi-tais norte-americanos, 75 diferentespessoas lidam com o prontuário de umpaciente (14). Estes dados são seme-lhantes aos verificados no Hospital deClínicas de Porto Alegre. Os médicos,psicólogos, enfermeiros e outros pro-fissionais de saúde, assim como todosos demais funcionários administrativos(secretárias de unidade, funcionáriosdo setor de arquivo de prontuários, desetores de internação, da área defaturamento e de contas de pacientes,entre outros) que entram em contatocom as informações têm o mesmocomprometimento, ou seja, apenas au-torização para o acesso às mesmas emfunção de sua necessidade profissional,

Page 271: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

273

mas não o direito de usá-las livremen-te. Cabe às instituições e profissionaisresponsáveis pelo atendimento dospacientes, especialmente aos médi-cos, um importante papel educativono processo de manutenção das in-formações (15).

A garantia da preservação da pri-vacidade deve limitar o acesso à própriapessoa, à sua intimidade. Deve impedirque um paciente seja observado sem adevida autorização. Isto é extremamen-te importante no atendimento de paci-entes em Ginecologia, por exemplo, ten-do em vista o tipo de exposição a quesão submetidas na maioria dos examesfísicos realizados de rotina. Muitas ve-zes, o espaço de intimidade destas paci-entes é invadido por diferentes pessoascom as quais nunca tiveram qualquercontato prévio. Esta situação se agravaquando o atendimento ocorre em umhospital de ensino, onde, além dos pro-fissionais, também os alunos partici-pam dos procedimentos (16).

As diferentes formas dequebra de privacidade econfidencialidade

As quebras de privacidade ou deconfidencialidade podem surgir narelação do terapeuta com terceiros,tais como com a família, cuidadoresou empresas seguradoras. Em todasestas relações deve ficar claro que odever de lealdade do terapeuta é paracom o paciente. A este cabe a deci-são de quais dados devem ser reve-lados ou não. É extremamente impor-tante que este compromisso seja pre-servado, esteja o paciente em estado

de inconsciência e, até mesmo, apóssua morte.

Algumas vezes os médicos sevêem em uma situação difícil, quandoo paciente, fazendo uso de sua auto-nomia, toma alguma decisão que nãovisa ao seu melhor interesse biomédicoe exige a preservação destas informa-ções, por parte do médico, quanto àsrazões que o levam a tal decisão. Nãohavendo qualquer elemento que leve apensar em prejuízo do exercício daautonomia do paciente e não haven-do qualquer razão moral que justifiquea quebra da confidencialidade, estasinformações deverão ser preservadas,por mais difíceis sejam os problemasque porventura surjam no contato comos familiares do paciente.

Uma vez estabelecido um tratocom o paciente, ou seja, a concordân-cia do médico em seguir a vontade dopaciente, ele deve resistir a todas aspressões de familiares ou de outraspessoas – como amigos, colegas, su-periores hierárquicos e imprensa –para manter a confidencialidade da in-formação médica. Vale ressaltar quenem mesmo a morte do paciente de-sobriga o médico a preservar as infor-mações privilegiadas, isto é, ele nãopode tornar pública quaisquer informa-ções biomédicas de pacientes, tantovivos como mortos, se com eles assu-miu um compromisso. Recomenda-seque estas situações sejam discutidascom os pacientes para que eles orien-tem o médico como proceder em rela-ção a quem deve ou pode ter acessoàs informações médicas.

Mesmo segredos podem, em algu-mas situações específicas, por força deobrigação legal, ser comunicados semque haja quebra de confidencialidade

Page 272: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

274

(17), constituindo-se em uma exceçãoà preservação de informações.

A exceção à preservação de in-formações pode existir, desde que porjusta causa e com amparo na legisla-ção, em circunstâncias tais como:

- testemunhar em corte judicial,em situações especiais previstasem leis e compatíveis com a gra-vidade;

- comunicar, à autoridade com-petente, a ocorrência de doença,procedimento ou situação de in-formação compulsória, de maus-tratos em crianças ou adolescen-tes, de abuso de cônjuge ou ido-so – ou de ferimento por arma defogo ou de outro tipo, quandohouver a suspeita de que esta le-são seja resultante de um ato cri-minoso.

Nesses casos o profissional ficadesobrigado de cumprir com o deverde preservar as informações,objetivando beneficiar a sociedadecomo um todo. É o exemplo de quan-do um dever maior se sobrepõe a umoutro, constituindo-se em um novodever prima facie. Porém, mesmo nes-tas situações existem diferentes abor-dagens. Na legislação norte-america-na há o conceito de “informações pri-vilegiadas” – aquelas dadas em confi-ança a um advogado, médico, clérigoou cônjuge, que não podem ser reve-ladas em corte judicial se este privilé-gio for solicitado pelo cliente, pacien-te, fiel ou cônjuge. No Brasil, os códi-gos de ética profissional dos médicos(18) e dos fonoaudiólogos (19) impe-dem a estes profissionais prestar infor-mações mesmo a um juiz, independen-

temente da solicitação de privilégio porparte dos pacientes.

O profissional de saúde, ao serchamado para testemunhar em umaCorte Judicial, deve comparecer peran-te a autoridade e declarar-se impedi-do de revelar qualquer informação,pois está moralmente comprometidocom a preservação das informações.Existem opiniões, contudo, que admi-tem que um juiz pode assumir a res-ponsabilidade de inquirir a revelaçãode informações, mesmo contrariandoo código de ética profissional, desdeque isto fique claramente configuradonos autos do processo. Desta formaestaria caracterizada uma exceção –e não uma quebra à confidencialidade.Essa alternativa pode contemplar osaspectos legais do ato de revelar infor-mações tidas como confidenciais, po-rém não atende plenamente ao aspec-tos morais envolvidos.

As situações de abuso ou maus-tra-tos devem ser avaliadas com cautela. NoBrasil, existe a obrigação legal de comu-nicar essas ocorrências quando consta-tadas em crianças ou adolescentes (20).As demais situações de abuso de cônju-ge ou idoso da família não estão previs-tas em lei, mas podem ser equiparadas,desde o ponto de vista moral, àsverificadas em menores. Nestes casos ébom contatar um Comitê de Bioética oualguma outra estrutura de defesa dos di-reitos dos pacientes porventura existen-te na própria instituição. No caso de tra-balho em consultório privado a situaçãofica mais delicada, pois as decisões sãomais solitárias. Nessa circunstânciapode ser solicitada uma consultoria ousupervisão formal a algum colega comexperiência nesta área ou ao Conse-lho Regional de Medicina do estado.

Page 273: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

275

Em todos estes episódios os profissionaisenvolvidos também passam a ser soli-dários na manutenção da confiden-cialidade e privacidade do caso.

A comunicação de doença de no-tificação compulsória (21) ou da supo-sição de preenchimento dos critérios demorte encefálica (22), assim como desituações com possíveis desdobramen-tos judiciais como, por exemplo, lesãopor arma de fogo, tem por base o prin-cípio da beneficência, tomado no seusentido mais amplo e utilitarista, isto é,como beneficência expandida ou bene-ficência social. O indivíduo não tem be-nefício pessoal, mas a sociedade, poten-cialmente, sim. Uma situação de notifi-cação compulsória, porém, não se en-quadra nesta justificativa: é a referenteaos procedimentos de esterilização cirúr-gica (23), cuja comunicação não tem be-nefício social.

Com relação à comunicação decrimes, o médico tem o dever legal decomunicá-los à autoridade competen-te, salvo, segundo Nelson Hungria (24),quando esta revelação possa vir a pre-judicar seu paciente.

Resumindo, a exceção deconfidencialidade pode ser eticamen-te aceitável desde que o paciente dê asua permissão; que a lei obrigue a re-velação; que haja risco de vida oupossibilidade de dano físico ou psico-lógico para uma ou mais pessoasidentificadas (25).

Podemos fazer a distinção entrequebra de privacidade e quebra deconfidencialidade: a primeira consisteno acesso desnecessário ou uso de in-formações sem a devida autorizaçãodo paciente; a segunda, é a ação derevelar ou deixar revelar informaçõesfornecidas em confiança.

As quebras de confidencialidadeou de privacidade, conforme o caso,podem ocorrer em situações muitocomuns entre os profissionais de saú-de, por exemplo, quando realizam co-mentários sobre pacientes em elevado-res, corredores, restaurantes, cantinasou refeitórios. Uma pesquisa (26) re-velou que em 13,9% das situaçõesobservadas em elevadores houve co-mentários inadequados, dos quaismetade claramente revelavam infor-mações confidenciais.

Devem ser estabelecidas medidaspara evitar que pessoas sem qualquerenvolvimento com o paciente, ou quenão necessitam saber detalhes impres-cindíveis à sua atividade profissional,venham a ter informações sobre omesmo. Estas informações só devemser utilizadas no próprio local de tra-balho, para o cumprimento específicoda tarefa de cada profissional. A polí-tica a ser seguida deve tomar por basea questão: “quem necessita saber, pro-fissionalmente, o quê, de quem?”

Uma situação de igual risco é ouso de dados para exemplificar situa-ções clínicas ou administrativas. Essautilização, que pode ser necessáriapara ensino, por exemplo, deve ter sem-pre o cuidado de descaracterizar ple-namente a identificação do paciente,preservando, assim, as informações.Na área administrativa, a utilização dedados para fins de auditoria ou avali-ação da qualidade do atendimentoprestado pode expor desnecessaria-mente um ou mais pacientes. Nas ati-vidades de pesquisa, muitas vezes sãoutilizados dados constantes em pron-tuários e bases de dados. Essa utiliza-ção deve ser resguardada e permitidaapenas para projetos previamente

Page 274: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

276

aprovados por um Comitê de Ética emPesquisa, desde que plenamentedescaracterizada a identificação dopaciente, inclusive quanto as suas ini-ciais e registro hospitalar. Mesmo naspublicações científicas não deve ser pos-sível identificar os pacientes através defotografias ou outras imagens. Em casode necessidade imperiosa, isto será per-mitido apenas com o consentimento, porescrito, dos mesmos – o que tem ampa-ro na própria Constituição Federal, emseu Art. 5º, item X (27).

O Caso Tarasoff, que ocorreu naUniversidade da Califórnia, emBerkeley/EEUU, em 1969, provocougrande discussão sobre a adequaçãoda quebra de confidencialidade. Odesfecho judicial só ocorreu sete anosapós, em 1976, na Suprema Corte daCalifórnia. Neste caso, um pacienteatendido por um psicólogo em umambulatório universitário, sob a super-visão de um psquiatra, revelou que iriamatar sua ex-namorada. O psicólogorecomendou formalmente a internaçãocompulsória do paciente. As providên-cias, contudo, não foram seguidas pelasegurança do campus universitário,responsável pelos procedimentos deinternação nessas circunstâncias. Opaciente não foi internado, por ter sidoconsiderado mentalmente capaz pelosseguranças, e veio a matar a ex-namo-rada. Os pais desta processaram auniversidade por não avisá-los do ris-co que sua filha corria, pois desta for-ma poderiam ter tomado medidas pre-ventivas que impedissem o trágico des-fecho. Os três juízes da Suprema Cor-te do Estado da Califórnia/EEUU, en-carregados do caso, se dividiram: umdefendeu o direito de preservar total-mente as informações, mesmo aque-

las que pudessem ter repercussões gra-ves como as deste caso; os outros doispropuseram que existiam motivos su-ficientes para que as informações fos-sem reveladas.

A partir principalmente deste caso,Junkerman e Schiedermayer (28), daUniversidade de Wisconsin/EEUU, es-tabeleceram critérios que devem ser ob-servados para lidar com situações destetipo. A quebra de confidencialidade, istoé, a revelação não autorizada de infor-mações fornecidas em confiança, so-mente é eticamente admitida quando:

- um sério dano físico a uma pes-soa identificável e específica tiveralta probabilidade de ocorrer(não-maleficência);

- um benefício real resultar destaquebra de confidencialidade (be-neficência);

- for o último recurso, após ter sidoutilizada a persuasão ou outrasabordagens (autonomia);

- este procedimento for genera-lizável, ou seja, o mesmo será no-vamente utilizado em outra situa-ção com características idênticas,independentemente da posição so-cial do paciente envolvido (justiça,tomando por base o imperativocategórico de Kant (29)).

Mesmo quando estes quatro crité-rios estiverem contemplados é prudenteapresentar o caso ao Comitê deBioética, se houver, a um colega ou aoConselho Regional de Medicina de seuestado, em situação formal deconsultoria, esclarecendo adequada-mente os fatos e a situação encontrada.

Em suma, o fundamental é com-preender a importância do respeito que

Page 275: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

277

merecem todas as informações dospacientes e o desenvolvimento de es-tratégias de como lidar com as mes-mas de forma eticamente adequada.

O prontuário do paciente

Os documentos com as informa-ções obtidas com ou sobre o pacientesão armazenados no prontuário. Oprontuário é um arquivo, em papel ouinformatizado, cuja finalidade é facili-tar a manutenção e o acesso às infor-mações que os pacientes fornecem,durante o atendimento, seja em umaárea de internação ou ambulatorial,bem como os resultados de exames eprocedimentos realizados com finali-dade diagnóstica ou de tratamento. Oprontuário é de propriedade do paci-ente. O hospital ou outra instituição desaúde detém a guarda destes documen-tos visando preservar o histórico deatendimento de cada paciente.

Como já citado anteriormente, emum hospital universitário, durante o pe-ríodo de uma internação média de oitodias, pelo menos 75 diferentes pessoaspodem lidar com o prontuário do paci-ente. Deve-se ressaltar que tanto os mé-dicos como os enfermeiros e demais pro-fissionais de saúde, assim como todosos funcionários administrativos que en-tram em contato com as informações pordever de ofício, têm autorização para oacesso às mesmas apenas em função danecessidade profissional. Vale salientarque qualquer outra pessoa, que não opaciente, não tem o direito de usar asinformações do prontuário livremente,salvo no caso de pacientes menores deidade ou declarados como incapazes.

Nessas situações, os seus representan-tes legais assumem este direito.

As recentes propostas decompartilhamento de informações en-tre diferentes instituições de saúde,com o objetivo de permitir o rápidoacesso às informações de um pacien-te, independentemente de se ele foiatendido localmente ou não, agregamnovas questões. A principal delas tal-vez seja a da garantia da preservaçãodas informações durante a transmis-são dos dados. A utilização de linhastelefônicas convencionais pode facili-tar o uso indevido das informações,mesmo que os dados estejamcriptografados e existam sistemas desegurança para acesso às bases dedados.

A consulta aos prontuários depacientes pode ser necessária para finsde comprovação de realização de pro-cedimentos. Esta verificação deverá serfeita apenas por auditores creden-ciados, preferencialmente médicos, nopróprio estabelecimento de saúde. Osprontuários não podem ser retirados dainstituição, pois poderiam acarretar pre-juízos na eventualidade de um atendi-mento ao próprio paciente.

As autoridades policiais não têmacesso aos dados constantes no pron-tuário, pois isto caracterizaria uma in-vasão de privacidade. No caso de au-toridade judicial, devidamentejustificada e solicitada por escrito emdocumento oficial, as informações po-derão ser fornecidas, mas não envia-dos os documentos originais do pron-tuário.

Os alunos e professores tambémutilizam os dados do prontuário comfinalidade educativa, essencial àformação de novos profissionais de

Page 276: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

278

saúde. Este acesso é eticamente ade-quado, desde que especificamente vin-culado às atividades de ensino-apren-dizagem; qualquer outro uso implicaquebra de privacidade.

Para as atividades de pesquisacomo já dito, o pesquisador somentepode acessar o prontuário após ter ela-borado um projeto e o mesmo ter sidoaprovado pelo Comitê de Ética emPesquisa. No Hospital de Clínicas dePorto Alegre foi baixada uma normaespecífica sobre este tema, que obrigaos pesquisadores a assinarem um Ter-mo de Compromisso para Uso de Da-dos (30). Este documento formaliza odever de preservar os dados e o ano-nimato dos pacientes estudados – esteprocedimento foi adotado, posterior-mente, em outras instituições.

Situações especiais

HIV-AIDS

A AIDS trouxe um desafio ao prin-cípio da confidencialidade, na medi-da em que um valor mais alto, no casoa vida das pessoas que têm contatodireto com o paciente, surge na dis-cussão. Na prática, estamos obrigadostanto moralmente como legalmente ainformarmos ao cônjuge/companheirodo nosso paciente a sua situação dedoença (31). É igualmente compulsó-ria a notificação da doença às autori-dades de saúde. É ainda controversae, portanto não universalmente acei-ta, a atitude de informar contatos docaso mesmo garantindo-se o anonima-to do caso-índice. Obviamente, na si-tuação de contato monogâmico e não

exposto a outra situação de risco, aquebra da confidencialidade seria ime-diata. Não se provou, até o momento,que este tipo de medida é eficiente nocontrole da epidemia da AIDS e, poroutro lado, uma política desta naturezapode ter o efeito perverso de afastar doscentros de saúde pacientes de risco pelomedo da quebra de confidencialidade deinformação tão delicada (32).

Os critérios que serviram de basepara a elaboração da Resolução nº1.358/92, do Conselho Federal de Me-dicina, relativa a situações que envol-vam pacientes com AIDS, foram osmesmos utilizados por Junkerman eSchiedermayer (1993) com base nocaso Tarasoff. Esta resolução estabe-lece que o segredo profissional deveráser rigorosamente cumprido, mesmoapós a morte do paciente, inclusivecom relação à família. O diagnósticode que o indivíduo é HIV+ será in-formado a seus parceiros sexuais ouusuários de seringas em comum quan-do o paciente se negar a fazê-lo, desdeque observados todos os critérios paraa quebra de confidencialidade.

Crianças e adolescentes

As crianças e os adolescentes, sobo ponto de vista legal, são considera-dos incapazes. Porém, moralmente,podem ser considerados como porta-dores de autonomia crescente e, segun-do vários autores, a partir dos dozeanos de idade, como não passíveis dedistinção de um adulto capaz (33).

Os responsáveis legais têm o di-reito de acessar as informações cons-tantes no prontuário de seus dependen-tes. O Código de Ética Médica de1988, em seu artigo 103, consagra que

Page 277: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

279

o médico deve respeitar a confidencia-lidade dos pacientes menores deidade, desde que capazes de avaliar econduzir adequadamente o problemaabordado. Estes pacientes, em umapesquisa realizada com oncologistas ecirurgiões pediátricos, tiveram a suaautonomia considerada como igual ade um adulto a partir dos 10 anos, commediana de 16 anos (34).

O atendimento de pacientes ado-lescentes, especialmente na área gine-cológica, pode levar a situações deconflito de fidelidade do médico comsua paciente, com a eventual respon-sabilidade de informar seus pais ourepresentantes legais.

As crianças e adolescentes têm odireito de ter a sua imagem e identida-de preservadas. A confidencialidadede seus dados, assim como o acessoaos mesmos, também deve ser garan-tida (35).

Pacientes psiquiátricos

Todo paciente tem o direito deacessar seus dados pessoais. Umaquestão ética que emerge é se este di-reito também se aplica de forma inte-gral ao paciente psiquiátrico. Porexemplo, algumas vezes este não temconhecimento de seu próprio diagnós-tico, apesar de o mesmo já estar regis-trado no seu prontuário ou ficha deatendimento. Com o acesso aos regis-tros, o paciente poderia ter conheci-mento de uma informação-chave,agravada pelo fato de que, algumasvezes, o psiquiatra pode anotar, noprontuário, observações com relaçãoà interpretação de elementos da histó-ria, que dizem respeito ao inconscien-te de seu paciente. Estas informações,

em alguns casos, podem ainda não tersido discutidas com ele. Este acessoindiscriminado poderia mudar o cur-so de seu tratamento e, talvez, de suaprópria vida. Esta questão pode talvezser incluída na discussão anteriormentefeita sobre a questão da veracidade.

Na área da Terapia de Famíliapode surgir outro problema, que é ode estabelecer os critérios de acesso aoprontuário de família. Qualquer dosmembros da família atendida podesolicitar uma cópia do prontuário ou énecessária a autorização ou solicita-ção coletiva de todos os participantes?Como os dados foram gerados em con-junto, a alternativa mais adequada tal-vez seja a de sua liberação pelo grupo,e não como um exercício de direitoindividual de seus participantes. Porprudência, estes critérios devem serestabelecidos com todos os participan-tes desde o início do processopsicoterapêutico. O registro de infor-mações de atendimentos individuaisem prontuários de família, prática uti-lizada em algumas instituições, podetrazer riscos adicionais à confiden-cialidade. Um deles é o compartilha-mento indevido de informações entreterapeutas de diferentes membros dafamília, simultaneamente ou em mo-mentos distintos. Isto poderia se cons-tituir em quebra de confidencialidadee de privacidade.

Na área psiquiátrica, a supervi-são é um eficiente meio de aprendiza-do especialmente em psicoterapia. Oimportante é ressaltar que os pacien-tes atendidos durante a etapa de for-mação do terapeuta não devem ser vis-tos apenas como um instrumento di-dático, mas como a finalidade des-ta atividade. O uso de informações

Page 278: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

280

confidenciais, pelo terapeuta, deve serfeito com extrema cautela. As situaçõesenvolvidas em supervisões devem sercercadas de cuidados formais paracom o comprometimento do supervisorna preservação de todas estas infor-mações. O objetivo de revelar informa-ções a um supervisor, além do apren-dizado com o caso, deve ser o de pres-tar o melhor atendimento possível aopaciente (36).

Estas recomendações tambémsão válidas para digitadores e datiló-grafos contratados por tarefa. Muitasvezes, os terapeutas e, principalmen-te, os alunos em período de formaçãoou estágio supervisionado utilizam-sedestes serviços na transcrição de aten-dimentos psicoterápicos e na forma-tação de relatórios.

Demonstrações médicas

Na área da psicoterapia é muitocomum a prática da observação atra-vés de janelas espelhadas, com visãounidirecional. O paciente tem o direi-to de ser informado sobre esta obser-vação por terceiros. Previamente, deveser solicitada a sua autorização paraque este tipo de atividade ocorra. Ofato do atendimento ser realizado emuma instituição de ensino não pressu-põe a autorização implícita para aobservação.

Uma prática cada vez mais utili-zada para fins pedagógicos é a de-monstração de atos médicos tanto emtransmissões ao vivo quanto com autilização de diferentes recursosaudiovisuais. Não é difícil imaginarcom que freqüência quebra-se aconfidencialidade ou a privacidadenestas situações: expõem-se dados

médicos, imagem dos pacientes e pro-cedimentos médicos tanto invasivos nosentido orgânico quanto psicológico.Com muita freqüência, podem ser vis-tos diapositivos ou vídeos com imagensradiológicas, endoscópicas ouanatomopatológicas com o nome porextenso de pacientes. Muitas vezes opaciente não tem conhecimento destautilização indevida de seu nome ouimagem, tanto por omissão quanto porengano deliberado.

A utilização de registros de aten-dimentos através de gravações emáudio ou vídeo devem ser expressa-mente autorizadas pelos pacientes. Asgravações devem ter sua finalidadepreviamente estabelecida, inclusivecom a indicação do destino a ser dadoao material após este uso. As grava-ções em vídeo, assim como as fotogra-fias ou outros métodos de registros deimagem pessoal, devem ser realizadasapós a obtenção de uma Autorizaçãopara Uso de Imagem, semelhante a umTermo de Consentimento Informado.Caso o projeto já venha a utilizar esteinstrumento, a obtenção das imagens,a sua utilização e o destino dos regis-tros devem constar, de forma explíci-ta, entre os procedimentos que serãorealizados.

A utilização de vídeos, em espe-cial, requer alguns cuidados adicionais.Nas fichas de arquivamento dos ma-teriais as pessoas não devem seridentificadas por seus próprios nomes,ou qualquer outra forma que possa serdecodificada como tal, por exemplo:iniciais, números de registros ou ou-tras características pessoais peculiares.A preservação da identidade pessoalno próprio vídeo pode ser feita atravésde processos de edição, que quando

Page 279: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

281

bem utilizados não descaracterizam asituação a ser apresentada. A citaçãode terceiros deve ser igualmentedescaracterizada, pois os mesmos nãoforam consultados a este respeito e, seo fossem, isto, por si só, caracterizariauma situação eticamente inadequada.Devem ser fornecidos apenas os da-dos necessários à compreensão da si-tuação a ser apresentada, sendo pre-servadas todas as demais informações.

Não devem ser permitidas cópiasdos vídeos para qualquer outra pessoa,mesmo alunos em processo de forma-ção, salvo prévia autorização pelospacientes, de forma explícita, indican-do a finalidade específica de tal pro-cedimento. Os cuidados devem ser re-dobrados quando são utilizados servi-ços de outros profissionais em qualquerdas etapas de produção dos vídeos.Estes profissionais também têm deve-res para com a preservação da priva-cidade dos pacientes, sendo obrigaçãodo pesquisador ou terapeuta enfatizartais obrigações. Além disso, estesvídeos não poderão ser utilizados comodemonstração ou propaganda dos ser-viços prestados por estes profissionais.

Pesquisa

A realização de um projeto depesquisa envolve aspectos deconfidencialidade e privacidade emtodas as suas etapas. Desde o plane-jamento até a divulgação, o pesquisa-dor e todas as demais pessoas que vie-rem a se envolver têm o compromissode resguardar as informações, ou seja,de impedir que as mesmas sejam utili-zadas de forma inadequada.

Durante a fase de planejamentoa preservação das informações entre

os membros da equipe é fundamental,pois o projeto ainda não foi apresen-tado. Da mesma forma, os Comitês deÉtica em Pesquisa, em todas as ins-tâncias, e os Comitês Assessores dasagências financiadoras assumem ocompromisso com a preservação dasinformações a eles submetidas. Quan-do forem utilizados consultores ad hoc,esta característica deve constar formal-mente na solicitação do parecer (37).

Durante a execução do proje-to devem ser mantidas todas aspropostas contidas no mesmo, ouseja, a não identificação dos indiví-duos pesquisados, a preservação desuas imagens, o uso específico para afinalidade do projeto. Os pesquisado-res, entre si, devem, igualmente ter umagarantia sobre as informações duran-te a execução do projeto. Nenhumainformação pode ser divulgada pormembros isolados, mesmo que sob aforma de “cartas a editor” ou “temaslivres”, salvo quando a toda a equipeautorize tal situação.

Na divulgação, o importante é agarantia de que todos os participantestiveram as suas identidades preserva-das na íntegra. Os editores de revistascientíficas, por sua vez devem garantira preservação dos contéudos, durantea tramitação do artigo. Novamente, to-dos os consultores e membros do Cor-po Editorial estão comprometidos for-mal e solidariamente.

Considerações finais

Inúmeros novos desafios estão sen-do propostos. O uso crescente de re-cursos de transmissão de dados sobre

Page 280: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

282

pacientes, utilizando telefone, fax, redesde computadores, podem se constituirem novas situações de quebra de confi-dencialidade ou de privacidade.

A nova medicina preditiva trazconsigo questões complexas como aforma de registrar estas novas informa-ções e seu risco de acarretar danos,muitas vezes irreparáveis, ao pacien-te. Outra importante questão, ainda naárea da genética, é a do tempo ade-quado para revelar informações a umpaciente que ainda terá vários anos devida antes que sua doença genéticavenha a se expressar. O profissionaldeve revelar esta informação ou, ba-seado na não-maleficência, deve evi-tar causar um dano deliberado?

A telemedicina também é um de-safio, pois o médico e o paciente esta-rão em locais diferentes, muitas vezessem qualquer contato pessoal anteriorou futuro. Este novo tipo de vínculo nãoalterará o compromisso do profissio-nal para com seu paciente, porém sem-pre haverá a participação de outrosprofissionais mediando a relação en-tre ambos. Isto por si só poderia sercaracterizado como sendo uma que-bra de privacidade.

Estes e outros novos desafios de-vem ser enfrentados com sabedoria,entendida como o conhecimento ne-cessário para lidar com o próprio co-nhecimento. Novas situações exigemnovas soluções, que muitas vezes res-gatam antigas proposições, apenasadequando-as ao novo contexto. Ofundamental é reconhecer que as pes-soas sempre possuem dignidade, inde-pendentemente de sua idade ou capa-cidade, merecendo, desta forma, todoo nosso respeito e cuidado para comas informações a elas pertinentes.

Referências bibliográficas

1. Edwards RB. Confidenciality and theprofessions. In: Edwards RB, Graber GC.Bio-Ethics. San Diego: Harcourt BraceJovanovich, 1988: 74-7.

2. Brasil. Código Penal Brasileiro 1941.Violação do segredo profissional: Art.154. Revelar alguém, sem justa causa,segredo de que tem ciência em razão defunção, ministério, ofício ou profissão, ecuja revelação possa produzir dano aoutrem: Pena – detenção, de 3 (três)meses a 1 (um) ano, ou multa.

3. Conselho Federal de Medicina (Brasil).Código de Ética Médica. Resolução CFMnº 1.246/88. É vedado ao médico: Art.102 - Revelar fato de que tenha conheci-mento em virtude do exercício de sua pro-fissão, salvo por justa causa, dever legalou autorização expressa do paciente.

4. Ross W.D. The right and the good.Oxford: Clarendon, 1930: 19-36.

5. França GV. Comentários ao Código deÉtica Médica. Rio de Janeiro:Guanabara-Koogan, 1994: 103.

6. Hofstede G. Cultures and organizations.New York: McGraw-Hill, 1997: 67.

7. Lloyd GER. Hippocratic writings.London: Penguin, 1983: 67.

8. Percival T. Medical ethics. Manchester:Russel, 1803: 101.

9. Bioethics Information Retrieval Project.Bioethics thesaurus. Washington:Kennedy Institue of Ethics, 1995: 9

10.Conselho Federal de Medicina (Brasil).Código de Ética Médica. Resolução CFMnº 1.246/88. É vedado ao médico: Art.103 - Revelar segredo profissional refe-rente a paciente menor de idade, inclu-sive a seus pais ou responsáveis legais,desde que o menor tenha capacidade

Page 281: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

283

de avaliar seu problema e de conduzir-se por seus próprios meios parasolucioná-lo, salvo quando a não re-velação possa acarretar danos ao pa-ciente.

11.Goldim JR. Bioética e envelhecimento.Gerontologia 1997;5(2):66-71.

12.Bioethics Information Retrieval Project.Bioethics thesaurus. Washington:Kennedy Institue of Ethics, 1995: 38.

13.Goldim JR. Pesquisa em saúde: leis,normas e diretrizes. Porto Alegre: HCPA,1997: 77.

14.deBlois J, Norris P, O’Rourke K. A Primerfor health care ethics. Washington:Georgetown, 1994: 30-32.

15.Conselho Federal de Medicina (Brasil).Código de Ética Médica. Resolução CFMnº 1.246/88. Art. 107, veda ao médico“deixar de orientar seus auxiliares e dezelar para que respeitem o segredo pro-fissional a que estão obrigados por lei”.

16.Goldim JR, Matte U, Francisconi CF.Bioética e ginecologia. In: Freitas F,Menke CH, Rivoire W, Passos EP. Roti-nas em ginecologia. 3ed. Porto Alegre:Artes Médicas, 1997: 162-7.

17.Junkerman C, Schiedermayer D.Practical ethics for resident physicians:a short reference manual. Wisconsin:MCW, 1993.

18.Conselho Federal de Medicina (Brasil).Código de Ética Médica. Resolução CFMnº 1.246/88. O item b, do art. 102, es-tabelece que mesmo quando do depoi-mento como testemunha continua ve-dado ao médico revelar fato que tenhaconhecimento em virtude de sua profis-são, salvo por justa causa, dever legalou autorização expressa do paciente. Omédico comparecerá perante a autori-dade e declarará seu impedimento, mes-mo que os fatos já sejam de conheci-mento público e/ou o paciente tenhafalecido.

19.Conselho Federal de Fonaudiologia.Código de Ética do Fonaudiologo. O art.31 estabelece que este profissional “nãorevelará, como testemunho, fatos de quetenha conhecimento no exercício de suaprofissão, mas intimado a depor, é obri-gado a comparecer perante a autorida-de para declarar-lhe que está preso àguarda do sigilo profissional”.

20.Estatuto da Criança e do Adolescente:Lei nº 8.069/90. Brasília: Ministério daSaúde, 1991. Art. 2 - Considera-se cri-ança, para os efeitos desta Lei, a pes-soa até doze anos de idade incomple-tos, e adolescente aquela entre doze edezoito anos de idade. (...) Art. 13 - Oscasos de suspeita ou confirmação demaus-tratos contra crianças ou adoles-centes serão obrigatoriamente comuni-cados ao Conselho Tutelar da respecti-va localidade, sem prejuízo de outrasprovidências legais.

21.Brasil. Ministério da Saúde. Port. MS/GMnº 1.100, de 24 de maio de 1996. Especi-fica quais as doenças de notificação com-pulsória. Brasília: Diário Oficial da União,n. 154, p. 15131, 9 ago. 1996. Seção 1.As doenças de notificação compulsóriasão as seguintes: Cólera, Coqueluche, Den-gue, Difteria, Doença meningocócica eoutras meningites, Doença de Chagas (ca-sos agudos), Febre amarela, Febre tifóide,Hanseníase, Leishmaniose tegumentar evisceral, Oncocercose, Peste, Poliomielite,Raiva humana, Rubéola e síndrome darubéola congênita, Sarampo, Sífilis con-gênita, Síndrome de imunodeficiênciaadquirida (AIDS), Tétano, Tuberculose,Varíola, Hepatites virais, Esquistossomose(exceto nos estados do Maranhão, Piauí,Ceará, Rio Grande do Norte), Filariose(exceto em Belém e Recife) e Malária(exceto na região da Amazônia Legal).

22.Brasil. Lei nº 9.434, de 4 de fevereirode 1997. Estabelece os critérios para aremoção de órgãos, tecidos e partes docorpo humano para fins de transplantee tratamento. Brasília : Diário Oficial daUnião, p. 2191-3, 5 fev. 1997. Seção 1.

Page 282: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

284

23.Brasil. Lei n º 9.263, de 12 de janeirode 1996. Regula o artigo 7 da Consti-tuição Federal, que trata do planejamen-to familiar. Brasília: Diário Oficial daUnião, v.134, n.10, 15 jan. 1996. Se-ção 1.

24.Liberal HSP. Sigilo profissional. In:Assad JE, coordenador. Desafios éticos.Brasília: CFM, 1993: 97-103.

25.Edwards RB. Op.Cit. 1988: 81.

26.Ubel PA, Zell MM, Miller DJ, Fisher GS,Peters-Stefani D, Arnold RM. Elevatortalk: observational study of inappriatecomments in a public space. Am J Med1995;99:190-4.

27.Brasil. Constituição da República Fede-rativa do Brasil-1988. Brasília: MEC,1989.

28.Junkerman C, Schiedermayer D.Practical ethics for resident physicians:a short reference manual. Wisconsin:MCW, 1993.

29.Kant E. Fundamentos da metafísica doscostumes. Rio de Janeiro: Ediouro, sd:70. O imperativo categórico de Kantpropõe que todo indivíduo deve agir “so-mente, segundo uma máxima tal, quepossas querer ao mesmo tempo que setorne lei universal”.

30.Goldim JR. Pesquisa em saúde. Op.Cit.1997: 71-2.

31.Conselho Federal de Medicina (Brasil).Parecer nº 14/88, aprovado em 20 demaio de 1988. Analisa aspectos éticosda AIDS quanto à discriminação na re-lação médico-paciente, instituições. me-dicina do trabalho e pesquisa. Relator:Antonio Ozório Lemos de Barros, GuidoCarlos Levi.

32.Francisconi CF. AIDS e Bioética.URL:http://www.ufrgs.br/HCPA/gppg/aids.htm

33.Goldim JR. A ética e a criança hospita-lizada. In: Ceccim RB, Carvalho PRA,organizadores. Criança hospitalizada.Porto Alegre: UFRGS, 1990.

34.Goldim JR, Matte U, Antunes CRH.Paciente menor de 18 anos: autonomiae poder de decisão na opinião de cirur-giões e oncologistas pediátricos. RevistaHCPA 1996;16(2):126-7.

35.Brasil. Ministério da Justiça. ConselhoNacional dos Direitos da Criança e doAdolescente. Resolução nº 41, de 13 deoutubro de 1995. Aprova na íntegra o tex-to da Sociedade Brasileira de Pediatria, re-lativo aos direitos da criança e do adoles-cente hospitalizados. Brasília: Diário Oficialda União, 17 out. 1991. Seção 1. O assun-to é abordado nos artigos 16 e 18.

36.Goldim JR. Psicoterapias e bioética. In:Cordioli AV. Psicoterapias: abordagensatuais. Porto Alegre: Artes Médicas,1998: 119-33.

37.Conselho Nacional de Saúde (Brasil). Re-solução nº 196, de 10 de outubro de 1996.Aprova normas regulamentadoras de pes-quisa envolvendo seres humanos. Brasília:Diário Oficial da União, p. 21082-5, 16out. 1996. Seção 1. Item VII.13.c, sobreas atribuições dos Comitês de Ética emPesquisa: “manter a guarda confidencialde todos os dados obtidos na execuçãode sua tarefa e arquivamento do protoco-lo completo, que ficará à disposição dasautoridades sanitárias”.

Page 283: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

285

Introdução

A palavra ética deriva do gregoethos, que significa hábito, comporta-mento. Afirma Aristóteles que as virtu-des éticas provêm do hábito: “não segeram nem por natureza nem contra anatureza, mas nascem em nós, que, ap-tos pela natureza a recebê-las, nos tor-namos perfeitos mediante o hábito” (1).

Admitindo que a filosofia materialrelaciona-se com determinados obje-tos e com as leis a que estes estão sub-metidos, Kant define a Ética como aciência das leis da liberdade, aceitan-do também que se a compreenda comoa teoria dos costumes (2).

Importante, para nós, é reconhe-cer que a Ética encontra sua razão deser fundamentalmente nas relaçõeshumanas, pois nestas deposita o seucaráter teleológico; volta-se, assim, emsuma, para a criação de condições quevisem à afirmação da dignidade do ser

Ética Clínica:a AIDS como Paradigma

humano. No pensamento de Kant esseobjetivo se impõe como fundamento deum princípio prático supremo,estabelecedor da humanidade comofim em si mesma (3).

Parte significativa dos comporta-mentos que uma determinada socieda-de pretende ver observados será orga-nizada sob a forma de regras jurídicas,dotadas de força coercitiva destinadaa lhes garantir a observância. Há quese ter em vista que o Direito consistenum conjunto de técnicas (ou ferramen-tas) destinadas a regular sociedadessob uma determinada visão de mun-do, voltando-as para a realização dedeterminados objetivos; não se confun-de, portanto, com o conceito de Justi-ça, que é fundamentalmente um valor(admite-se, mesmo, que se diga que oDireito pode ser, ou não, um instrumen-to de realização da Justiça).

Há que se entender que a Éticadiscute o comportamento desejável dosseres que integram uma determinada

Guido Carlos LeviAntonio Ozório Leme de Barros

Page 284: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

286

sociedade, tendo em vista os valores(dentre estes a Justiça) que a orientam;volta-se, conseqüentemente, para aformulação de uma teoria dos costu-mes, da qual nos fala Kant.

Do debate de temas éticos resul-tará sempre, portanto, sob o ponto devista prático, um conjunto de precei-tos de conduta social destinados a tor-nar as relações humanas mais harmô-nicas e agradáveis, o que implica,substancialmente, o respeito à pessoaem sua integralidade. Não se perca devista que esses preceitos estão sujeitosa constantes modificações, decorren-tes da natureza dinâmica dos valoressociais.

Dessa linha de raciocínio deflui aconclusão de que a Ética pode regularcampos específicos de atividades so-ciais; trata a Ética Clínica das condu-tas desejáveis no âmbito da relaçãoque se forma entre profissionais daárea da saúde e seus pacientes, crian-do-se, com isso, condições para que,por um lado, os valores pessoais dosseres humanos envolvidos sejam pre-servados e respeitados e, por outro, aprestação do serviço que constitui oobjeto especial dessa relação possaalcançar a máxima eficácia possível.

Pode-se afirmar com segurançaque a parte mais importante dos códi-gos éticos que regulam os comporta-mentos dos profissionais da saúde é aque trata das relações com os seuspacientes, já que estas constituem oeixo de suas atividades.

A relação entre o profissional eseu paciente se dá dentro de riquíssimae variada gama de matizescomportamentais que tornam cada si-tuação única e inigualável. Há, toda-via, múltiplos aspectos dessa relação

que podem ser classificados, a fim dese buscar parâmetros éticos que per-mitam sejam reguladas situações aná-logas. Dois desses aspectos assumemparticularíssima importância, por se-rem inevitavelmente relevantes para ahigidez da relação profissional: a in-formação que é devida ao pacien-te e a preservação de sua intimi-dade.

Quando se cuida da informação aque tem direito o paciente, trata-se de segarantir a ele o poder de decidir sobre opróprio destino, permitindo, ou não, queo profissional da saúde realize em seufavor determinado procedimento (exer-cendo o paciente o que se convencionouchamar de consentimento informa-do); para que possa tomar essa decisão,necessitará o paciente de informaçõespormenorizadas sobre as hipótesesdiagnósticas de seu problema, bem comoacerca dos procedimentos destinadosà complementação ou à confirmaçãodesses diagnósticos, os tratamentospossíveis (e suas conseqüências) e oprognóstico.

A preservação da privacidade dopaciente, por seu turno, está vincula-da ao princípio de que tudo que dizrespeito à sua intimidade lhe perten-ce, e somente ele poderá dela dispor;a proteção dessa intimidade se dá pormeio da adoção do sigilo, que torna acirculação de informações relaciona-das à intimidade do paciente restritaapenas ao círculo integrante da rela-ção profissional.

Evidentemente, tais institutos —o consentimento informado e o sigiloprofissional — se aplicam a todas ashipóteses possíveis que ensejem a ocor-rência da relação entre profissionais epacientes.

Page 285: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

287

Quando se toma a síndrome daimunodeficiência adquirida (AIDS)como paradigma para este trabalho,leva-se em consideração que não ocor-reu, propriamente, o surgimento de al-guma nova situação para o campo daÉtica Clínica; problemas éticosconcernentes à AIDS já haviam sido,de algum modo, identificados no quetange a outras moléstias transmissíveis.

A eclosão da AIDS implicou, naverdade, que alguns aspectos éticos darelação profissional fossem profunda-mente revistos e exaustivamenterediscutidos, seja em decorrência deaspectos epidemiológicos da infecção,seja em razão do caráter dramáticoque reveste o aparecimento dessapandemia, seja em conseqüência doprognóstico sombrio que se desenhapara o portador do agente etiológicoda doença.

Veremos, a seguir, os pontos quese nos afiguram mais importantes comrelação ao consentimento informado eao sigilo profissional.

Consentimento informado

Guardando-se, sempre, a pers-pectiva de que se tem, aqui, a AIDScomo paradigma deste breve estudo depontos relevantes da Ética Clínica, ver-se-á que o consentimento informado éum dos mais importantes aspectos quepermeiam o atendimento clínico dospacientes.

O Conselho Federal de Medicina(CFM), interpretando a codificaçãoética em vigor para os médicos do País,estabeleceu (4,5) que é necessária aautorização (oral e escrita) do pacien-

te (ou de seu responsável legal) a fimde que se proceda à coleta de materialdestinado à realização de examesorológico para diagnóstico de infec-ção pelo vírus da imunodeficiênciahumana (HIV).

Muitos, entretanto, se rebelaramcontra essa orientação, argumentandonão ser procedimento habitual pedir-se autorização para outros examesdiagnósticos. Tal insurgência revela,em primeiro lugar, eventual precarie-dade de comunicação entre o profissi-onal da saúde e o paciente, deixandoeste de receber informação, por resu-mida que seja, acerca dos procedimen-tos diagnósticos a que está sendo sub-metido (inclusive em circunstâncias emque isso se reveste de especial impor-tância, como, por exemplo, na realiza-ção de rotinas diagnósticas pré-natais);em segundo lugar, evidencia uma cer-ta falta de percepção da gravidade comque repercute, em múltiplos aspectosda vida do paciente, o diagnóstico deinfecção pelo HIV, sobretudo quandose tem em vista a carga de desconhe-cimento, incompreensão e preconcei-to que ainda cerca essa patologia, oque implica a necessidade da adoçãode cuidados éticos especiais na suainvestigação.

A propósito dessa carga franca-mente discriminatória que envolve essainfecção, é oportuno lembrar que cer-tas instituições, até mesmo algumas deexcelente qualidade técnica, exigiam,até recentemente, investigaçãosorológica do HIV como condiçãopara a internação de pacientes, sob aalegação de que isso permitiria prote-ção mais adequada não apenas dosinfectados como também dos de-mais internados e dos profissionais

Page 286: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

288

da saúde. A ignorância e o preconcei-to que permeiam esse tipo de exigên-cia são evidentes, bastando verificarque outras patologias também poten-cialmente transmissíveis por contatocom sangue ou fluidos corporaisinfectantes — em alguns casos, atémuito mais facilmente que a própriainfecção pelo HIV, como, por exemplo,a hepatite B — nunca foram alvo des-se tipo de triagem. Hoje em dia, feliz-mente, o reconhecimento de que a ado-ção de cuidados universais constitui omelhor procedimento profilático impli-cou a sua ampla aceitação, tornandosem sentido qualquer exigência referen-te a triagem sorológica nas circunstân-cias supramencionadas, restringindo-a a casos excepcionais.

No âmbito de várias especialida-des médicas, a orientação do CFM nosentido de se observar a regra do con-sentimento informado produz signifi-cativos efeitos: no campo da medici-na do trabalho, torna inaceitável (comose verá mais adiante) a realização, peloprofissional da saúde, de triagemsorológica de empregados (6); na pe-diatria (mormente na área daneonatologia), leva o profissional dasaúde a solicitar a autorização dospais ou dos responsáveis legais paraque se efetuem exames sorológicos nascrianças; na infectologia — campo emque o exame sorológico é,freqüentemente, a chave para a formu-lação do diagnóstico —, exige, igual-mente, do profissional da saúde, quesolicite a autorização do paciente paraque se proceda à investigaçãosorológica. É importante ressaltar queessa orientação valerá, ainda, para asatividades de pesquisa (inclusiveepidemiológica), nas quais, muitas

vezes, o profissional da saúde se vêtentado a suprimir explanações quepossam dificultar a realização de eta-pas práticas da investigação.

Esses exemplos, como se vê, de-monstram a importância do consenti-mento informado no campo da ÉticaClínica. Quando se tem em vista aAIDS, as dificuldades encontradas parase cuidar do consentimento informa-do revelam, talvez, a ponta do icebergconstituído pela magnitude desse pro-blema ético na prática clínica.

Relacionado ao tema do consen-timento informado — ainda que comocorolário —, há um interessante pro-blema que o advento da AIDS fezemergir: quando profissionais da saú-de e instituições começaram acondicionar o atendimento de pacien-tes ao prévio conhecimento de seustatus sorológico, estes passaram a terconduta recíproca, vindo a solicitar —ou mesmo a exigir — que aqueles, so-bretudo os cirurgiões, revelassem suacondição sorológica.

Embora, num primeiro momento,tenha havido, por parte de algumasassociações de especialistas e algunsdirigentes de instituições, endosso a talpostura dos pacientes, em pouco tem-po deu-se praticamente o seu abando-no por vários motivos, destacando-seentre estes o fato de que a divulgaçãodo resultado positivo do examesorológico para detecção da infecçãopelo HIV, ao qual se houvesse subme-tido o profissional da saúde, poderiaatentar contra o direito individual aotrabalho (já que a pessoa infectada seexporia a prejuízos de difícil repara-ção em sua atividade profissional);ademais, concluiu-se pela inocuidadeda medida, pois seria impossível

Page 287: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

289

proceder-se continuamente à investi-gação sorológica de toda a comunida-de de profissionais da saúde; além dis-so, haveria outras patologias tambémtransmissíveis por contaminação comsangue que não seriam detectadas.

Prevaleceu o bom-senso de se re-comendar aos profissionais realizado-res de práticas invasivas (particular-mente aquelas de maior risco de aci-dentes pérfuro-cortantes para os queas realizam) que, se pertencentes a al-gum grupo com comportamento de ris-co, submetam-se periodicamente, emcaráter voluntário, a exames paradetecção de doenças transmissíveispelo sangue. Caso o profissional dasaúde tenha exame sorológico cujoresultado venha a ser positivo para al-guma patologia cuja erradicação doagente etiológico ainda não é possível,será desejável seja ele realocado paraoutro tipo de atividade na qual nãohaja risco para o paciente; nunca, po-rém, deverá ser impedido de exercer asua profissão.

Sigilo profissional

A proteção da intimidade do pa-ciente se dá por meio do reconheci-mento daquilo que o Direito identificacomo direito ao resguardo (defini-do o resguardo pelo jurista italianoAdriano de Cupis como “o modo deser da pessoa que consiste na exclu-são do conhecimento pelos outros da-quilo que se refere a ela só” (7)) e di-reito ao segredo (compreendido emsuas diversas formas: epistolar, do-cumental, profissional, etc. (8)), inte-grantes dos chamados direitos de

personalidade, nos quais se incluem,além desses já mencionados, os direi-tos à vida, à integridade física, às par-tes destacadas do corpo, ao cadáver,à honra, à identidade pessoal e à pro-teção autoral.

Um ilustre mestre do direito pe-nal brasileiro, Paulo José da CostaJúnior, assevera que na sociedade,“para solver determinados problemas,faz-se necessário socorrer-se de pes-soas dotadas de determinada capaci-dade técnica ou funcional, ou voltadasa ministérios peculiares, às quais seconfiam segredos da intimidade pes-soal ou doméstica. Convertem-se as-sim o médico, o advogado, o sacerdo-te nos chamados confidentes necessá-rios. Via de conseqüência, ficam elesvinculados ao dever de guardar segre-do, honrando a função, ministério, ofí-cio ou profissão que exercem ecorrespondendo à confiança neles de-positada” (9).

Estão os profissionais da saúdepresos à guarda de tudo aquilo que seacha incluído na esfera da intimidadedo paciente e que lhes chega ao co-nhecimento mediante a observaçãoclínica e os exames subsidiários; opaciente lhes entrega certas informa-ções (ou lhes permite o acesso a elas)a fim de que possam desempenharsuas atividades com a diligência dese-jada. O objeto da proteção geradapelo instituto do segredo profissional ématéria que pertence, pois, ao pacien-te, não ao profissional da saúde.

Em anterior trabalho nosso, jásustentávamos que o sigilo que se pro-tege “é aquele que pertence ao paci-ente. Base da confiança que deve re-ger a relação profissional, é fundadonele que o paciente revela ao médico

Page 288: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

290

aspectos de sua privacidade essenci-ais ao perfeito equacionamento do pro-blema. Além daqueles que o própriopaciente expõe, através de sua ação,o médico toma conhecimento de ou-tros pormenores que pertencem exclu-sivamente ao âmbito do recato pesso-al. Se tais dados não fossem obtidospelo médico, certamente ele estaria im-pedido de exercer o seu mister. Toda-via, não tem o médico o direito de re-velar a outrem aquilo que sabe a res-peito de seu paciente, sob pena decomprometer irremediavelmente a qua-lidade da relação profissional” (4).

No ordenamento jurídico brasilei-ro, o sigilo profissional recebe prote-ção por meio de norma penal (regrado art.154, do Código Penal), punin-do-se com pena privativa de liberdadeou multa aquele que revelar, sem justacausa, segredo, de que tem ciência emrazão de função, ministério, ofício ouprofissão, e cuja revelação possa pro-duzir dano a outrem. Assim a preser-vação, pelo profissional da saúde, dosegredo que lhe é confiado pelo paci-ente será a regra, admitindo-se a que-bra do sigilo somente quando houverjusta causa (da qual trataremos maisadiante).

Além das conseqüências no cam-po penal, a violação da intimidadepode dar ensejo à busca, pelo prejudi-cado, da reparação judicial dos danosmateriais e morais eventualmente cau-sados pelo profissional da saúde querevele, sem justa causa, matéria pro-tegida pelo instituto do segredo.

Nesse diapasão seguem os códi-gos de ética dos profissionais da áreada saúde, estabelecendo, para os in-fratores das regras de proteção do si-gilo, sanções de caráter administrati-

vo, que geralmente variam da adver-tência reservada à cassação do regis-tro profissional (punições que devemser proporcionais, evidentemente, àgravidade da infração).

Como já se disse alhures, a AIDSnão trouxe, efetivamente, nenhumainovação para a abordagem sob o pon-to de vista ético da atividade dos pro-fissionais da saúde; acarretou, entre-tanto, importante revisão eaprofundamento de certos conceitos.

A eclosão dessa pandemia trou-xe à tona, por exemplo, a discussãoacerca da importância do combate aoschamados comportamentos de ris-co para redução da incidência da in-fecção; se esse fator de controle nãoera desconhecido no que tange aoenfoque preventivo de doenças, certa-mente adquiriu uma relevância nuncaantes conhecida no campo daepidemiologia, já que a letalidade daAIDS, associada à pequena eficáciados tratamentos então disponíveis paraas suas múltiplas manifestações, pu-nha em primeiro plano a prevenção dainfecção, vista como a única defesapossível à ação do HIV, agente causa-dor dessa moléstia.

A perplexidade em que mergulha-ram os profissionais da saúde com oadvento da AIDS, atingidos peladesconfortável sensação de impotên-cia em face desse novo desafio,ensejou discussões acerca da supostanecessidade de afrouxamento das re-gras de proteção do segredo profissio-nal, sob a premissa de que não maisfazia sentido a guarda de sigilo dianteda ameaça que a pandemia represen-tava para a humanidade.

Reações de verdadeiro pânico le-varam, por exemplo, administradores

Page 289: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

291

a exigir que funcionários de suas em-presas fossem submetidos, sem quesoubessem, a exames para detecção deanticorpos anti-HIV, cobrando dos pro-fissionais integrantes de seus departa-mentos médicos que os resultados lhesfossem diretamente comunicados; poroutro lado, houve quem defendesse aidentificação pública dos portadores doHIV, com o seu subseqüente isolamen-to compulsório, em campos de concen-tração ou ilhas em que viessem a serprivados de qualquer contato com pes-soas não infectadas...

O tratamento sereno dessas ques-tões permitiu, entretanto, o afastamen-to de idéias delirantes e propostasaçodadas do bojo das discussões denatureza ética. A infecção pelo HIVnão reduz em nada o respeito devidoà pessoa por ela atingida; sua digni-dade permanece intacta. Nem pode-ria ser diferente: infectados são, essen-cialmente, vítimas e como tais devemser tratados e protegidos pelos demaismembros da comunidade.

Não há motivo de ordem técnica,científica, jurídica ou moral que auto-rize o tratamento da intimidade pes-soal de modo diferente quando se estádiante de paciente infectado pelo HIV.Outras doenças infecciosas conheci-das há mais tempo pela medicina têmcaracterísticas epidemiológicas queguardam analogia com a AIDS; nempor isso houve ruptura do instituto dosegredo ante tais casos.

O sigilo profissional é, portanto,regra em relação a pacientes infectadospelo HIV, não exceção; não seria justocom tais pacientes impor-lhes mais umsofrimento, decorrente, em primeirolugar, dos preconceitos quefreqüentemente os estigmatizam e que

se relacionam à infecção pelo HIV e,em segundo lugar, de sua progressivamarginalização, conseqüência de umapostura obscurantista assumida porgrupos sociais que não aprenderam alidar com essa nova realidade.

Vale a pena analisar alguns tópi-cos que se relacionam ao conceito dejusta causa para o rompimento do se-gredo profissional.

Sob o ponto de vista jurídico, ajusta causa consiste num fator (ou con-junto de fatores) que retira o caráterilícito da quebra do sigilo pelo profis-sional que deveria, em tese, protegê-lo. Em outras palavras, havendo justacausa para rompimento do sigilo pro-fissional o profissional que o fizer nãocometerá crime, tampouco estará su-jeito (sempre em tese) a indenizar da-nos materiais ou morais decorrentesdessa ruptura.

Quanto ao aspecto ético da ques-tão, não é diverso o tratamento damatéria: não comete infração o pro-fissional que, fundado em justa causa,quebra o segredo de que é portador.Pode-se ir além: na ocorrência de jus-ta causa, o dever do profissional seráo rompimento do segredo (visto esserompimento não como um fim em simesmo, mas como meio para prote-ção de um bem de maior relevância).

Não será possível arrolar todas ashipóteses em que a justa causa possase configurar. Isso não nos impede,todavia, de examinar algumas situaçõesde ordem prática que se manifestam,com alguma freqüência, na atividade clí-nica dos profissionais da saúde.

A primeira delas diz respeito ànecessidade de notificação compulsó-ria dos casos de AIDS aos órgãos res-ponsáveis pelo controle epidemiológico

Page 290: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

292

da doença. Evidentemente, o propósi-to dessa medida é, em síntese, o reco-lhimento de dados sobre a evolução daincidência e da prevalência da infec-ção, o que permitirá um planejamentomais adequado das ações de saúdedestinadas, por um lado, a reduzir oimpacto da pandemia sobre as popu-lações (orientando as medidas de pre-venção) e, por outro, a racionalizar osrecursos para o tratamento adequadodos doentes.

Sobrepõe-se, nessas circunstân-cias, o interesse de toda a coletividadeà proteção da intimidade do paciente;se houver conflito entre esses dois bensjurídicos — bem-estar da sociedade eprivacidade do paciente — e um delestiver que ser sacrificado em favor dooutro, será preservado o de maior re-levância, que beneficia um númeroindeterminado de pessoas e tende aassegurar qualidade de vida para asgerações atuais e futuras. Em tais ca-sos, ao comunicar à autoridade sani-tária a ocorrência de um caso de noti-ficação compulsória, estará o profissio-nal, em conformidade com a ordemjurídica, agindo em estrito cumpri-mento do dever legal; a lei penalbrasileira, aliás, pune com pena pri-vativa de liberdade, além de multa, omédico que deixar de denunciar à au-toridade pública doença cuja notifica-ção é compulsória (regra do art.269 doCódigo Penal).

Registre-se que as autoridadessanitárias, por sua vez, estarão presasao dever de resguardar a intimidade dospacientes cujos dados os profissionaisda saúde lhes entregaram; o uso de taisinformações deve se restringir exclusi-vamente ao âmbito das ações de saú-de pública, sendo vedado o seu em-

prego para outras finalidades que nãoaquelas que dão fundamento ao cará-ter compulsório da notificação.

Outra situação com a qual os pro-fissionais da saúde podem se depararé aquela em que se configura a resis-tência do paciente a revelar, a seusparceiros sexuais, sua condição deinfectado. Essa situação assume con-tornos verdadeiramente dramáticosquando se tem em vista a insuficienteinformação levada à população acer-ca dos mecanismos de transmissão doHIV e dos meios para a prevenção dainfecção. Muitas vezes, a uma atitudede revolta dos pacientes (e até mesmoa um desejo indiscriminado de vingan-ça) — observável com freqüênciaquando eles tomam conhecimento dasua condição de infectados — se so-brepõe um sentimento de resignaçãoe de solidariedade para com seus par-ceiros sexuais que os leva a informá-los de seu estado, bem como a adotarcuidados de prevenção da transmissãodo vírus.

Infelizmente, nem sempre issoocorre; mesmo exaustivamente orien-tados pelos profissionais da saúdeque os atendem, alguns pacientes serecusam terminantemente a informarsua condição de infectados a seus par-ceiros sexuais e a adotar métodos pre-ventivos. Em tais situações, esgotadosos meios para que esses pacientes ajamcorretamente, será lícito que o profis-sional da saúde tome a iniciativa defornecer tais informações aos parcei-ros sexuais daqueles.

Nesse caso, o conflito se instalaentre a proteção da saúde — até mes-mo da vida — de uma pessoa e a pro-teção da intimidade de outra; inega-velmente, a proteção da vida e da saúde

Page 291: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

293

de uma pessoa deverá preponderarsobre o outro bem em jogo. Admite-seque, nessas circunstâncias, esteja oprofissional da saúde agindo, em tese,em legítima defesa de terceiro, hipó-tese que, do mesmo modo que o estri-to cumprimento do dever legal, excluia configuração do crime de violaçãodo segredo profissional, já que presen-te a justa causa.

Assinale-se que idênticas soluçõessão preconizadas pela Ética Clínicaquando se está diante de pacientesinfectados pelo HIV que se recusam ainformar sua condição às pessoas quecom eles, eventualmente, compartilhemseringas e agulhas no uso de drogasinjetáveis. Evidentemente, não se des-conhece a enorme dificuldade para queo contato do profissional da saúde comesses co-usuários possa ser estabe-lecido; tampouco se ignora que há fa-tores culturais próprios do meio de usu-ários de drogas injetáveis que dificul-tam bastante a aceitação de quaisquerinformações relativas à infecção; en-tretanto, o profissional da saúde deveorientar-se pela permanente expecta-tiva de que a informação, nesses ca-sos, possa salvar a vida e a saúde depessoas até então desavisadas.

Muitas vezes, parentes e amigosdos pacientes, freqüentemente movidospor natural aflição diante do estadoclínico destes, procuram o profissionalda saúde em busca de informaçõesrelativas ao diagnóstico; ainda que aproximidade familiar e afetiva dessaspessoas possa justificar tal iniciativa,há que se ter em mente que a proteçãoda intimidade se estende, também, àsrelações de parentesco e de estreitaamizade; não se admite, nessas cir-cunstâncias, que o segredo seja rom-

pido e o diagnóstico venha a ser reve-lado pelo profissional da saúde, a nãoser que o paciente consinta no forne-cimento da informação pedida (afinal,é ele o verdadeiro titular dessa in-formação e o único que pode deladispor).

Cabe consignar que a morte dopaciente não autoriza a divulgação,pelo profissional da saúde, do diagnós-tico de seu paciente, já que a proteçãoda imagem, da honra e da intimidadedo paciente subsiste mesmo depois doseu desaparecimento.

Essa dificuldade de proteção daintimidade da pessoa se torna sensi-velmente aumentada quando o paci-ente é figura de grande notoriedade,ocasião em que ocorre forte pressãode jornalistas em busca de informaçõessobre o seu estado de saúde, visando,freqüentemente, à obtenção da notíciade grande impacto sobre o público;muitas vezes, a luta pela informação éferoz e nem sempre respeita os limiteséticos e legais que devem ser observa-dos; cabe ao profissional da saúde,nesses casos, zelar para que a privaci-dade do paciente seja mantida intacta,levando à opinião pública apenas osesclarecimentos que esteja autorizadoa prestar.

Encerrando esta breve ordem deconsiderações, registre-se a necessida-de de se preservar, no âmbito das em-presas, as informações obtidas dos fun-cionários pelos profissionais dos depar-tamentos de saúde. Não há justificati-va para a realização indiscriminada detestes para a detecção de portadoresdo HIV nas empresas; tampouco seadmite que informações que violem aintimidade dos empregados sejamfornecidas por profissionais da saúde

Page 292: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

294

a seus patrões — a estes é devida, ape-nas, a informação acerca da aptidão,ou não, temporária ou permanente,para o desempenho de determinadaatividade, de funcionário submetido aexame pelo departamento de saúde.Também na empresa, a relação entreo profissional da saúde e o pacienteestá revestida pelo manto do segredoque tutela a intimidade da pessoa.

Referências

1. Aristóteles. A Ética. Tradução de CássioM. Fonseca. Rio de Janeiro: Tecnoprint,s.d.: 62.

2. Kant E. Fundamentos da metafísica doscostumes. Tradução de Lourival deQueiroz Henkel. Rio de Janeiro:Tecnoprint, s.d.: 25.

3. Kant E. Op.cit. s.d.: 78-91.

4. Conselho Regional de Medicina do Es-tado de São Paulo (Brasil). Pareceraprovado na 1.295ª Reunião Plenária,no dia 3 de maio de 1988. AIDS e éticamédica. Relatores: Antonio Ozório Lemede Barros, Guido Carlos Levi. Adotado,posteriormente, pelo Conselho Federalde Medicina (Brasil) como Parecer CFMnº 14/88, em 20 de maio de 1988.

5. Conselho Federal de Medicina (Brasil).Parecer CFM nº 11/92. AIDS e ética mé-dica. Relatores: Guido Carlos Levi,Gabriel Wolf Oselka.

6. Vide, nesse sentido, Conselho Federalde Medicina (Brasil). Resolução CFM nº1.359, de 11 de novembro de 1992.Normativa o atendimento profissional apacientes portadores do vírus daimunodeficiência humana (HIV). In:Conselho Federal de Medicina (Brasil).Resoluções normativas, separatas.Brasília: CFM, 1994. Proíbe a partici-pação de médicos, sob quaisquer pre-textos, em procedimentos de triagemsorológica nos exames admissionais deempregados.

7. Cupis A. Os direitos da personalidade.Tradução de Adriano Vera Jardim eAntonio Miguel Caeiro. Lisboa: Morais,1961: 129.

8. Cupis A. Op.cit. 1961: 147-64.

9. Costa PJ Jr. Comentários ao CódigoPenal: parte especial. 2ªed.atual.ampl..São Paulo: Saraiva, 1989. v.2: 122.

Page 293: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

295

Parte V - Posfácio

Conforme foi dito no capítulointrodutório deste livro, é impressionan-te o volume da produção científica ede novas informações sobre bioéticaprovenientes dos quatro cantos domundo, principalmente nesta últimadécada. Dentro de todo este contexto,extremamente variado no que se refe-re aos temas privilegiados pelos dife-rentes pesquisadores e estudiosos daárea, dois assuntos têm merecido, maisrecentemente, uma atenção especial ecertamente continuarão compondo noinício do século XXI a pauta básica daspreocupações dos governos dos dife-rentes países e das comissões científi-cas dos congressos bioéticos interna-cionais.

Apesar de algumas situaçõesbioéticas persistentes como o aborto ea eutanásia continuarem dividindo oplaneta com posições opostas e apa-rentemente inconciliáveis, e em quepese a fecundação assistida terocupado os principais espaços damídia na década passada no que serefere às situações emergentes, dois as-suntos passaram a receber atenções

Sérgio Ibiapina Ferreira Costa Volnei GarrafaGabriel Oselka

A Bioética no Século XXI

redobradas dentro do contexto histó-rico atual – apesar de uma delas seroriginária das épocas bíblicas e a ou-tra mais recente. Esses assuntos são,respectivamente, a saúde pública e co-letiva, pelo lado dos velhos problemasque – se o atual estado de coisas per-manecer inalterado – não serão resol-vidos tão cedo de modo satisfatóriopela inteligência humana; e a engenha-ria genética (incluindo o ProjetoGenoma Humano), pelo lado das “no-vidades”(1).

Um tema persistente: saúdepública e eqüidade

Em recente número do IAB News,publicação periódica da InternationalAssociation of Bioethics (IAB), o edi-torial assinado por seu atual presiden-te, Alastair Campbell, estampa a preo-cupação e o compromisso da entida-de com a proposta de uma Nova Polí-tica Global de Saúde Para o NovoMilênio sugerida recentemente

Page 294: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

296

pela Organização Mundial da Saúde(OMS) e referendada por outros impor-tantes organismos internacionais (2).Essa proposta, no entanto, não é nova.Em 1978, na cidade de Alma Ata, naantiga União Soviética, a OMS já ha-via proposto com grande repercussãomundial seu programa de “Saúde ParaTodos no Ano 2000”. Como se sabe,este slogan utópico não somente este-ve longe de ser cumprido como as dis-tâncias entre os cidadãos necessitadosdo mundo e aqueles que acumulambens exagerados e desnecessários au-mentaram significativamente nestecurto espaço de tempo.

Hoje, a distância entre os excluí-dos e os incluídos na sociedade deconsumo mundial – tanto quantitativaquanto qualitativamente – é parado-xalmente maior que há vinte anosatrás. Enquanto os japoneses, porexemplo, apresentam uma expectativade vida de quase 80 anos, em algunspaíses africanos como Serra Leoa ouBurkina Fasso a média mal alcança os40. Um brasileiro pobre nascido na pe-riferia de Recife, cidade situada na ári-da e sofrida região Nordeste do país, viveaproximadamente 15 anos menos queum pobre nascido na mesma situaçãona periferia de Curitiba ou Porto Alegre,no Sul beneficiado pelas chuvas e pelanatureza. As contradições brasileiras,além de internas, como acima referido,são também gritantes no que se refereàs comparações no âmbito externo: ape-sar de termos alcançado o 8º maior PIB(Produto Interno Bruto) mundial, comíndice superior a 800 bilhões de dólares/ano, continuamos a amargar uma 42ªposição tanto no que se refere aos índi-ces de analfabetismo como de expecta-tiva de vida ao nascer.

O usufruto democrático dos be-nefícios decorrentes do desenvolvimen-to científico e tecnológico, portanto, estámuito longe de ser alcançado. Esta é adura e crua realidade: quem tem po-der de compra vive mais, quem é po-bre vive menos. E a vida, em muitasinstâncias, passa a ser um negócio:rentável para alguns, principalmentepara os proprietários de companhiasinternacionais seguradoras de saúde;e inalcançável para uma multidão deexcluídos sociais que não têm condi-ções de acesso às novas descobertas eseus decorrentes benefícios.

“A igualdade é a conseqüênciadesejada da eqüidade, sendo esta oponto de partida para aquela. Ou seja,é somente através do reconhecimentodas diferenças e das necessidades dossujeitos sociais que se pode alcançara igualdade. A igualdade não é maisum ponto de partida ideológico quetendia a anular as diferenças. A igual-dade é o ponto de chegada da justiçasocial, referencial dos direitos huma-nos e onde o próximo passo é o reco-nhecimento da cidadania” (3).

“A eqüidade é, então, a base éti-ca que deve guiar o processo decisórioda alocação de recursos”, sua distri-buição e controle. É somente atravésda eqüidade, associada à ética da res-ponsabilidade (individual e pública) eao princípio da justiça no seu amplosentido, que os povos conseguirão tor-nar realidade o direito à saúde. “A eqüi-dade, ou seja, o reconhecimento denecessidades diferentes, de sujeitostambém diferentes, para atingir direi-tos iguais, é o caminho da ética práti-ca em face da realização dos direitoshumanos universais, entre eles o dodireito à vida, representado neste

Page 295: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

297

contexto pela possibilidade de acessoà saúde” (3). A eqüidade é a referên-cia que permite resolver parte razoáveldas distorções na distribuição da saú-de, ao aumentar as possibilidades devida de importantes parcelas da popu-lação.

A diferença da proposta da OMSno contexto de 1998, comparativamen-te àquela de Alma Ata, é que nestaoportunidade, procurando ir além doslogan e das boas intenções, saiu, emconjunto com outras organizaçõescongêneres de âmbito mundial, em bus-ca de apoio concreto na tentativa deconstrução de uma nova ética para otema, utilizando como referência o al-cance da eqüidade. Em outras pala-vras, no recente encontro a OMS reto-mou com vigor o conceito de eqüida-de e esta passou a constituir-se na pa-lavra-chave em saúde para o final desteséculo e início do próximo. E isso épromissor, sem dúvida, não somentepara o campo da saúde, especifica-mente, como para o aprimoramentodos direitos humanos e ampliação dacidadania de uma forma maisabrangente e solidária, além da buscade uma “igualdade real” que, certamen-te, se refletirá futuramente nos quadrossanitários.

Um tema emergenteengenharia genética, benefíciose distorções

Diferentemente de Baudrillard (4),que entende que neste século aconte-ceu uma verdadeira banalização docorpo humano, interpretamos os últi-mos cem anos como aqueles que trou-

xeram as transformações mais signifi-cativas no sentido da melhoria de qua-lidade para a vida humana. Apesar dasinjustiças sociais e de todas as distorçõesapontadas no tópico anterior, a expec-tativa de vida aumentou significativa-mente, os direitos das mulheres estãosendo crescentemente mais considera-dos e respeitados, a saúde dos traba-lhadores passou a ser vista com maisatenção, e as descobertas científicas,apesar dos altos custos, trazem maioresperança a pessoas, famílias e povos.

Uma das questões-chave para abioética, com relação às novidadesbiotecnocientíficas, diz respeito à suaaplicação: a qual pode trazer benefíciosextraordinários, bem como acarretar da-nos insuportáveis. Tanto a engenhariagenérica como o tema do ProjetoGenoma Humano, que tomamos comoreferência neste capítulo final, podem seranalisados sob estes dois prismas.

Apesar da ausência esperada dosEstados Unidos da América (EUA),um conjunto de mais de 80 países –com o apoio da UNESCO – firmou em12 de novembro de 1997 a Declara-ção Universal do Genoma Humano edos Direitos Humanos (5), onde, parao tema que ora discutimos, alguns ar-tigos merecem ser pinçados. O artigo5º, por exemplo, diz que nos casos de“pesquisas, tratamento ou diagnósti-co que afetem o genoma (...) é obriga-tório o consentimento prévio, livre e es-clarecido da pessoa envolvida”, alémde que “será respeitado o direito decada indivíduo de decidir se será ounão informado dos resultados de seusexames genéticos e das conseqüênci-as resultantes”. O artigo 6º cita, ain-da, que: “Ninguém será sujeito à dis-criminação baseada em características

Page 296: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

298

genéticas que vise infringir ou exerçao efeito de infringir os direitos huma-nos, as liberdades fundamentais ou adignidade humana”. Apesar do temaser tão novo e dos testes genéticos te-rem sido introduzidos com segurançaapenas recentemente, os dois artigosacima citados já vêm sendo freqüen-temente desrespeitados em variadassituações, em diferentes países.

Não por acaso, a IAB estabeleceu“Informação genética: aquisição, aces-so e controle” como tema oficial de suareunião de diretoria, realizada naUniversity of Central Lancashire, emPreston, na Inglaterra, entre 5 e 7 dedezembro de 1997. Nessa reunião, asduas principais conferências tiveramtítulos interrogativos e provocatórios:“Nós somos capazes de aprender daeugenia?” e “ Os testes pré-natais sãodiscriminatórios com relação aos defi-cientes?” (6). Enfim, toda esta já lon-ga introdução é para reforçar nossaconvicção de que os testes e os diag-nósticos preditivos em genética guar-dam relação direta com as liberdadesindividuais e coletivas, com os direi-tos humanos, com a cidadania e coma própria saúde pública.

Na verdade, o domínio de técni-cas relacionadas com o melhor conhe-cimento do DNA passou a possibilitaro diagnóstico pré-natal de problemasgenéticos e a identificação dos porta-dores de genes de risco, ou seja, genessadios mas que podem dar origem acrianças com alguma doença genéti-ca. Se, por um lado, esses exames outestes preditivos permitem oaconselhamento a casais que devidoa antecedentes familiares ou indivi-duais correm o risco de gerar uma cri-ança deficiente, por outro criam uma

série de questionamentos éticos, des-de a indicação de um aborto até umafutura limitação de um cidadão na suaatividade laboral. Algumas doençasrelacionadas com certas mutações ge-néticas, como a betatalassemia (umaforma de anemia hereditária que incideem certas populações mediterrâneas),a anemia falciforme (que por longo tem-po causou problemas em Cuba) ou adoença de Tay-Sachs (que causa gra-ves distúrbios neurológicos entre judeusda América do Norte e Israel) sãoexemplos positivos de como testesconfiáveis, simples e baratos podemtrazer resultados positivos. O que nãose pode é generalizar, seja no que serefere a testes de aplicação individualou coletiva, seja no período pré-natalou na idade adulta.

O perigo que ronda todo este con-texto é a transformação de um “riscogenético” na própria doença, alteran-do perigosamente o conceito de “nor-mal” e de “patológico”, tão bem já es-clarecido por Ganguilhem, com suasconseqüências indesejáveis de todaordem, especialmente sociais. A mai-oria das chamadas “doenças genéti-cas” são conhecidas por terem partede suas causas relacionadas com omeio ambiente, desde cânceres e dia-betes até afecções cardíacas e anemi-as. De modo geral, o termo “doençagenética” vem se constituindo nosmeios médicos internacionais, nosúltimos anos, numa escolha que su-perestima o fator genético e subestimaas implicações dependentes do meioambiente. Afora algumas poucas do-enças em que o gene, isoladamente,desenvolve a patologia de modoinexorável (como no caso da doençaou coréia de Huntington), são raras as

Page 297: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

299

situações onde não ocorra umainteração entre os genes e o meio am-biente. Trata-se, portanto, além deuma análise adequada do que seja ounão “normalidade”, também de umadecisão com relação a “valores”. Oaprofundamento e melhor interpreta-ção de questões como esta exigemcada vez mais a atenção da bioética.

Um livro publicado nos EUA so-bre pontos de vista opostos em bioéticatrata exatamente das dificuldades aci-ma apontadas. Em um dos capítulos,Catherine Hayes, diretora de uma en-tidade norte-americana que congregafamílias que possuem membros porta-dores da doença de Huntington, defen-de ferrenhamente os benefícios indivi-duais e familiares dos testes preditivos(7). Sua base argumentativa inspira-se no alívio que os exames geram na-quelas pessoas que recebem resultadosnegativos e na possibilidade de aque-les que tenham um resultado positivovirem a organizar os anos que lhes res-tam, e mesmo assim com a esperançada descoberta providencial de uma te-rapêutica salvadora. A doença deHuntington se desenvolve insidiosa-mente entre os 30 e os 50 anos de ida-de, levando o paciente à morte após10-15 anos do diagnóstico, com dege-neração crescente dos tecidos cere-brais – que leva à demência.

Uma posição oposta a esta é de-fendida no capítulo seguinte da mes-ma obra pela procuradora TheresaMorelli, cujo pai teve um diagnósticoda doença de Huntington (8). Emboraela não apresentasse nenhum sintomada doença e sequer tivesse realizadoexames preditivos, seu nome foi auto-maticamente incluído na “lista negra”das companhias norte-americanas de

seguro-saúde como possível portado-ra do problema. O diagnóstico do seupai foi estampado na capa do seu pron-tuário, no banco de dados nacional dascompanhias seguradoras, sediado emBoston, alijando-a da possibilidade deacesso a qualquer tipo de seguro-saú-de. Este incidente levou a sra. Morellia contactar entidades de Direitos Hu-manos, denunciando com vigor a uti-lização discriminatória dos testes ge-néticos pelos empregadores e compa-nhias seguradoras.

Em 1996, o pesquisador ChristianMunthe publicou através do Centro dePesquisas Éticas de Gotemburgo, uminteressante estudo intitulado “Raízesmorais dos testes pré-natais”, que tra-ta do desenvolvimento histórico dotema na Suécia (9). O autor baseia suaanálise em três perspectivas: a primei-ra, que ele chama de “visão oficial”, aperspectiva típica abraçada pelos mé-dicos especialistas, na qual o diagnós-tico pré-natal é a base para oaconselhamento genético; esta pers-pectiva não dá espaço à coerção (nosentido da definição de um possívelaborto, por exemplo), pressões ou ma-nipulação, caracterizando-se pelo res-peito à autonomia da paciente. A se-gunda perspectiva é chamada de“meta preventiva” e tem como propó-sito prevenir o nascimento de criançascom defeitos genéticos sendo, portan-to, muito controvertida dos pontos devista filosófico e moral. A terceira pers-pectiva, denominada “motivos econô-micos”, analisa os testes pré-natais apartir da ótica da redução de custosque significa para a sociedade evitarcrianças com desordens genéticas. Oque mais chamou a atenção do au-tor, que desenvolveu sua pesquisa a

Page 298: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

300

partir da análise de 64 artigos publi-cados por estudiosos suecos do assun-to entre os anos 1969/77, foi que “osaspectos éticos não constituíram pre-ocupação freqüente nas apresentaçõesdos especialistas”, demonstrando opouco interesse por este viés da ques-tão, mesmo num país freqüentementecitado como exemplo em questões dedireitos humanos.

Lucien Sfez é um cientista socialfrancês que teve sua principal obratraduzida no Brasil em 1995: o livrochamado “A saúde perfeita – crítica deuma nova utopia”(10). Para ele, asmudanças genéticas possíveis – vege-tais, animais e humanas – alteraram otranscurso da história. A história, quetinha uma narrativa longa, foi substi-tuída por pequenas narrativas curtas,fragmentadas. Estamos, portanto, lon-ge do “fim da história” desenhado porFrancis Fukuyama. A engenharia ge-nética nos devolve uma nova história.Reinventa e renova a história. O peri-go, no entanto, reside no fato de a téc-nica vir a dominar o mundo, a socie-dade, a natureza, sem mediação cien-tífica e sem conflitos sociais.

Nesse sentido, um exemploparadigmático é exatamente aquele douso cada dia maior dos testes genéti-cos na vida quotidiana das pessoas.Questões como o aborto passam a sercolocadas não somente nos casos demal-formações, mas também de ano-malias cromossômicas. Para os adul-tos surge a questão da notificação dodefeito (ou “doença”) genética. A no-tificação deve ser feita somente ao in-divíduo portador de genes “ruins”, outambém à sua mulher, aos seus filhos,irmãos e demais parentes? Principal-mente nos EUA, as conseqüências

resultantes são da maior seriedade so-cial, pois empregadores e empresas se-guradoras, como já foi dito, e tambémescolas e mesmo cortes de justiça, bus-cam respostas de alta eficácia, comcustos mais baixos e menores riscos.Para tanto, utilizam cada vez mais atécnica dos testes.

Desta forma, os testes preditivospassam a ir além dos procedimentosmédicos, criando verdadeiras catego-rias sociais, empurrando o indivíduopara quadros estatísticos. Os proble-mas sociais são reduzidos às suas di-mensões biológicas. As doenças men-tais, a homossexualidade, o gênio vio-lento ou o próprio sucesso no trabalhosão atribuídos à genética. As dificul-dades escolares – antes explicadas pe-las desigualdades culturais ounutricionais – são hoje imputadas adesordens psíquicas de origem genéti-ca, excluindo quase que completamenteos fatores sociais com elas relaciona-dos. Após testes pré-natais, companhi-as seguradoras ameaçam não cobriras despesas médicas de uma criançacuja mãe teria sido alertada que umdia esta criança seria vítima de umproblema genético. Entre números, es-tatísticas e exames, os empregadoresjá valem-se de testes para previsõesorçamentárias a longo prazo. O indi-víduo-cidadão passa a ser descon-siderado e criam-se “categorias de in-divíduos”, os pacientes/coletivos danova medicina (10). Mesmo na ausên-cia de sintomas, o risco genético éendeusado como a própria doença.Assim, já existem registros de recusaspara a concessão de empregos em talou qual casos, para a obtenção de car-teira de motorista ou para inscrição noseguro-saúde, como dito anteriormente.

Page 299: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

301

Considerações finais

Apesar de toda a forte argumen-tação acima exposta com relação aalguns abusos relacionados à utiliza-ção dos testes preditivos em genéticahumana, não é nossa intenção assu-mir posições fechadas mas, sim, alertarpara os perigos do endeusamento datécnica e da radicalização irracionaldo seu uso.

Assim, faz-se necessário que se-jam estabelecidas normas e compor-tamentos moralmente aceitáveis e pra-ticamente úteis, os quais requerem tan-to o confronto quanto a convergênciadas várias tendências e exigências. Ouseja, tornam necessário o exercício datolerância e da pluralidade. A tolerân-cia deve ser total, se entendida comorespeito aos pensamentos e opiniõesalheias, mas o mesmo não pode se afir-mar acerca dos atos que muitas vezesas acompanham. A intolerância e aunilateralidade, porém, são fenômenosfreqüentes tanto nos comportamentosquotidianos quanto nas atitudes emrelação aos problemas de limites quesurgiram mais recentemente e que cres-cem todos os dias (11).

Um ponto que ainda merece des-taque diz respeito à possibilidade desurgirem propostas de proibições comrelação às pesquisas e práticas cientí-ficas. Nesse sentido, é indispensávelque as regras e leis que dispõem sobreo desenvolvimento científico etecnológico sejam cuidadosamente ela-boradas. Conforme já foi dito em ca-pítulo anterior, existe um núcleo dequestões que precisam ser recondu-zidas dentro de regras de caráter mo-ral, e não sancionadas juridicamente;

e outro no qual estas questões devamser mais rigidamente sancionadas e,portanto, codificadas. O primeiro as-pecto se refere ao pluralismo, à tole-rância e à solidariedade, prevalecen-do a idéia de legitimidade. O segundodiz respeito à responsabilidade e à jus-tiça, onde prevalece a idéia de legali-dade (12).

Ao encerrarmos este livro deve-mos dizer que o controle social sobrequalquer atividade de interesse públi-co e coletivo a ser desenvolvida é sem-pre uma meta democrática. Nem sem-pre ele é fácil de ser exercido. No casoda saúde pública, da eqüidade, daengenharia genética e do projetogenoma humano, entre outros te-mas da problemática bioética, apluriparticipação é indispensávelpara a garantia do processo. O con-trole social – através do pluralismoparticipativo – deverá prevenir o difí-cil problema de um progresso científi-co e tecnológico que submeta o cida-dão a novas formas de escravidão, àexclusão social, aos altos custos de téc-nicas fantásticas porém inacessíveis àmaioria populacional.

Referências bibliográficas

1. Garrafa V. O diagnóstico preditivo dedoenças genéticas e a ética. Conferên-cia; Encontro Internacional Sobre Éticae Genética. Rio de Janeiro, InstitutoFernandes Filgueira/Fundação OswaldoCruz; novembro 1997, 8 p. (mimeo).

2. Campbell A. The president’s column.IAB News, 6:1-2, 1997.

Page 300: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

302

3. Garrafa V, Oselka G, Diniz D. Saúdepública, bioética e eqüidade. Bioética(CFM), 5(1):27-33, 1997.

4. Baudrillard J. A transparência do mal:ensaio sobre os fenômenos extremos.Campinas, Papirus, 2a. ed., 1995, 185 p.

5. UNESCO. Declaração Universal doGenoma Humano e dos Direitos Huma-nos. Folha de São paulo, 15/11/1997,p. 18.

6. Conference Announcement. IAB News,6:10, 1997.

7. Hayes C V. Genetic testing can aid thoseat risk of genetic disease. In: Bener D ,Leone, B. (org.), Biomedical ethics:opposing viewpoints. Greennhagen, SanDiego, USA, 1994, pp. 281-286.

8. Morelli T.“Genetic testing will lead todiscrimination. In: Bener D., Leone B.(org.), Biomedical ethics: opposingviewpoints. Greennhagen, San Diego,USA, 1994, pp. 287-292.

9. Munthe C. The moral roots of prenataldiagnosis. Ethical aspects of the earlyintroduction and presentation ofprenatal diagnosis in Sweden.Gothenburg, Centre for Research Ethics,1996, 88 pp.

10.Sfez L. A saúde perfeita - crítica de umanova utopia. São Paulo, Ed. Loyola,1996, 402 p.

11.Berlinguer G , Garrafa V. O mercadohumano - estudo bioético da compra evenda de partes do corpo. Brasília, Edi-tora UnB, 1996, 212 p.

12.Lecaldano E. Assise Internazionale diBioetica, Roma, 28-30/05/1992; notaspreparatórias ao Encontro, cujo conteú-do completo foi publicado porRODOTÀ, S. (org.). Questioni dibioetica. Roma-Bari, Sagittari-Laterza,1993, 443 p.

Page 301: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

303

Aborto 17,125-13, 295AIDS 102

anomalia fetal 126,136anencefalia 126autonomia 126-127, 132, 133autonomia x heteronomia 132-136dor do feto 128enfoque legal 108enfoque moral 108estatística Latino-americana 129estatística mundial 129estatística no Brasil 129estatística nos Estados Unidos 129e estupro 136eugênico 126legislação comparada 129-131limite gestacional 127,136na Rússia 136medicina legal 261-262religião 104saúde da mãe 126,136seletivo ou racista 126, 127status do feto 134teoria da potencialidade do feto 134-135terapêutico 126tipos 126-128voluntário 126

ABTO – Associação Brasileira de Transplante de Órgãos 162Adorno, T 36AIDS 17, 278, 285-294

confidencialidade 279, 289-293consentimento 287-289exame pré-admissional 291

Albert, Michel 212

Índice Remissivo

Page 302: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

304

Almeida, Marcos de 17Alma-Ata, Declaração 35, 297Alocação de recursos para saúde 91,92Aristóteles 20, 27, 39, 41, 49, 72, 101, 219, 236, 285Arquivo médico 269Associação Internacional de Bioética 295Associação Americana dos Hospitais 56Associação Brasileira de Transplante de Órgãos 160Auditoria 275Autonomia 15,16, 26, 35, 41, 49, 53-70, 83, 88, 90, 92, 94, 161,164, 270, 273

aborto 126-127, 132, 133código de ética médica 58,60competência 59,88conceito 57e consentimento 63,65,67eutanásia 184erro médico 250fundamentos 58-60história 57e justiça 73limites 60mistanásia 181órgãos –transplante e doação 161x paternalismo 49,61-62paciente terminal 177pesquisa em seres humanos 195, 196projeto genoma humano 141relação médico-paciente 61,63

Autonomia reprodutiva da gestante 126, 127Autorização para uso de imagem 280Avanços Científicos 99-110

controle social 107, 113, 301direitos humanos 232-234distanásia 189justiça 107limites éticos 99-110,113e religião 104uso indevido 233

Avanços tecnológicos 56, 91, 139e bioética 99-110controle social 107, 108, 301declaração da ONU 233direitos humanos 232-234distanásia 172, 187

Page 303: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

305

eutanásia 173justiça 107limites éticos 99-110e religião 104uso indevido 233-234

Azevedo, Eliane S. 17Bacon, Francis 89Banco Mundial 71Baudrillard, J 297Barchiofontaine, Christian de Paul 16Barros, Antonio Ozório Leme de 17Beauchamp, T 15, 41, 45, 47, 49, 81, 84-85, 94Beecher, HK 195Belmont Report 44, 82-85Beneficência 15, 16, 35, 45, 37-51, 83, 88

Belmont Report 82-85benevolência 42Brasil 41característica 42-43conceito 42consentimento 68emergência 68eutanásia 184limites 45-48mistanásia 177x não-maleficência 47,85órgãos – transplante e doação 163x paternalismo 48,62pesquisa em seres humanos 196relação médico-paciente 46

Bentham, Jeremy 42,78,89Berlingüer, G 71Bernard, Jeam 39,42Bill of Rights 56Biodiversidade 218, 225, 227Bioética

América Latina 81, 91-94e avanço científico 102e avanço tecnológico 56e biossegurança 218, 222-229casuística 86e ciência 99-110conceito 16, 87, 262das virtudes 86

Page 304: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

306

do cuidado 86do direito natural 86do modelo contratualista 86Estados Unidos 81,88-91Europa 81,88-91filosófica 95principialismo 82-98projeto genoma humano 139-156relação médico-paciente 56,57religioso 95revista 79e saúde 79,97teológica 95

Biossegurança 17, 217-230e bioética 222-229x biotecnologias 219-222conceito 222-223diretrizes 223

Biotecnociência 100, 219, 221, 223x biotecnologia 220-221riscos 218surgimento 220

Biotecnologia 139, 220, 221x biotecnociência 220-221

Bodino, Jean 73Brenner, Sidney 140Burris, S 211Butler, Joseph 42Cabau, A 114Campbell, Alastair 16, 95, 100, 295Carta dos direitos do paciente 56Casals, JME 103Católicas pelo Direito de Decidir 132Chauí, M 59Childress, James F. 15, 41, 45, 47, 81, 84-85, 94CIOMS ver Council for International Organization of Medical SciencesCINAEM 246Clonagem 100, 107, 134, 154, 221, 224, 226Clotet, Joaquim 16, 223Código de ética médica 60, 62, 176, 253, 278Códigos de ética profissional 40,68,93,101,270Código de Hamurabi 207Código de Manu 207Código de Nuremberg 33, 195

Page 305: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

307

Código penal 40, 61, 64, 270Cohen, Cláudio 17Comissão Americana de Credenciamento de Hospitais 56Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico ver CINAEMComissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) 17, 198, 202Comitê de Bioética 276Comitê de Ética em pesquisa 198-202Comitê Internacional de Bioética da UNESCO 144, 233Conferência de Asilomar (1975) 223Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) 128CONEP ver Comissão Nacional de Ética em PesquisaConfidencialidade 17, 269-284

adolescente 272AIDS 278auditoria 275, 277cessação de 273-277conceito 271-272crianças 272, 278-279demonstrações médicas 280-281medicina preditiva 282notificação compulsória 274, 275, 291, 292pacientes psiquiátricos 279-280pesquisa em seres humanos 196, 197, 276, 281projeto genoma humano 141, 153prontuário 277-278publicações científicas 276quebra de 275-276relação médico-paciente 269Tarasoff, caso 276

Conte, August 212Conselho Federal de Medicina 17, 79, 116, 195, 278, 287Conselhos de Medicina – atuação 243-244Conselho Nacional de Saúde 196Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas ver Council for International Organizations of Medical SciencesConsentimento 33, 63-69, 83, 88

América Latina 91Brasil 64código de ética médica 68elementos essenciais 69emergência 68erro médico 250

Page 306: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

308

esclarecido 16, 53-70, 164, 166eutanásia 177formulário 66, 69informado 64 (ver também consentimento esclarecido)mistanásia 177órgãos – transplante e doação 161, 164padrões de informação 65projeto genoma humano 141, 143, 153pronto-socorro 68renovável 67Salgo x Liland Stanford Jr, caso 64Schloendorff x society of New York hospital, caso 64Slater x baker & staplenton, caso 63

Contextualismo 16Contratualismo 16Controle da natalidade 129Cortina, Adela 102Costa, Paulo José, Jr 289Costa, Sérgio Ibiapina Ferreira 15Council for International Organizations of Medical Sciences 195Cranston, M 232Criopreservação de gametas 120-121Culver,CM 59, 61Cupis, Adriano de 289Dallari, Dalmo de Abreu 17Dallari, Sueli Gandolfi 17Daniels, Norman 78Darwin, C 219Declaração de Alma-Ata 35Declaração de Helsinque 34, 195, 199Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) 56Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793) 56Declaração dos Direitos do Paciente 56Declaração de Ixtapa 98Declaração sobre a utilização do progresso científico e tecnológico no interesse da paz e em benefício da humanidade (ONU) 233Declaração Universal dos Direitos do Homem 56, 231, 239, 241, 272, 274Declaração Universal do Genoma Humano 144, 152-156, 297Dejour, C 206Demonstrações médicas – confidencialidade 278, 280Descartes 26Desenvolvimento científico ver Avanços científicosDesenvolvimento tecnológico ver Avanços tecnológicosDeserto moral 71

Page 307: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

309

Determinismo neurogenético 148Dewey, John 89Diagnóstico genético in vitro 121Diagnóstico pré-natal 298-299Diagnóstico pré-sintomático 145, 148Dickens, C 208Diniz, Débora 17Direito de recusar tratamento 59Direitos humanos 17, 34, 55, 73, 107, 217

avanços científicos 232-234avanços tecnológicos 232-234e bioética 232-234biossegurança 225declarações dos direitos fundamentais 56engenharia genética 225, 227, 234eutanásia 238evolução 55-56globalização 238histórico 235-240pesquisa em seres humanos 240projeto genoma humano 143, 154, 155relação médico-paciente 54-55revolução francesa 237São Tomás de Aquino 236-237século XX 239-240suicídio assistido 238vida, valor 231-232, 235-236

Direitos individuais 77Direitos do paciente 55-56, 67Diretrizes Internacionais para pesquisa biomédica em seres humanos 195Distanásia 17, 172, 174, 186-189 (ver também Eutanásia)Distribuição de recursos para a saúde 100DNA 139, 141, 219, 221, 223, 258Doação de órgãos ver Órgãos – transplante e doaçãoDoação de espermatozóides ver Doação de gametasDoação de gametas 117-119Doação de óvulos ver Doação de gametasDoença de notificação compulsória 275Doença gênica – previsibilidade 149, 298Doença poligênica – previsibilidade 144, 145, 146, 149Drane, James 89,91Dumas, André 112Ecoética 41Embriões

Page 308: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

310

pesquisa em 120transferência 119-120

Encíclica Evangelium Vitae 104, 182Enciclopédia of Bioethics 87Engels, Friedrich 75Engelhardt, Tristam 86Engenharia genética 100, 218, 223, 221, 295, 297, 300

conceito 220e direitos humanos 225, 227

Erro médico 17, 243-256ato médico, avaliação 248-249causas 245, 247-248CINAEM 246conceito 244-245condições de trabalho 250, 251conselhos de medicina 246consentimento 250culpa 252dever de abstenção de abuso 253-254dever de informação 249-251dever de vigilância 252-253erro de técnica 252histórico 245mídia 245-247mistanásia 176-180omissão de socorro 252prontuário 251relação médico-paciente 247, 248, 247-248, 255responsabilidade 249, 254

Espinoza 74Ética 23-25, 89, 90

aplicada 32,41,85aristotélica 101clínica 17conflito de valores 19-23deontológica 40especificidade da 23filosófica 19-36fundamentos 25-28kantiana 34médica 54, 89, 90x moral 101-103normativa 40, 43, 85objetiva 89

Page 309: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

311

prática 39, 40, 41principialista norteamericana 82em saúde 16, 19-36, 41teológica 90teórica 39,41utilitarista 59

Eutanásia 17, 134, 171-192, 180-186, 295na América Latina 175ato do médico 183, 184autonomia 184avanços tecnológicos 187beneficência 184compaixão 182conceito 183, 186declaração da 189e Direito 186distanásia 172, 174, 186-189Encíclico Evangelium Vitae 104, 182ética médica 181justiça (princípio) 184mistanásia 172-180ortotanásia 172, 174, 190-191paciente terminal 172, 173, 185, 189paradigmas 174religião 104social 172, 174teologia moral 181, 182, 186

Eutanásia social ver MistanásiaExclusão social 91,100Experimentação em seres humanos ver Pesquisa em seres humanosFecundação assistida ver Reprodução assistidaFecundidade 114Feto

aborto 126, 136dor 128diagnóstico genético in vitro 121diagnóstico pré-natal 298, 299órgãos – transplante e doação 162status 132, 134teoria da potencialidade do 134-135

Filosofia moral 42,90Filosofia política 72Finnis, John 86Fletcher, Joseph 102

Page 310: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

312

Fortes, Paulo Antônio de Carvalho 16França, Genival Veloso 17Francisconi, Carlos Fernando 17Franco Júnior, José Gonçalves 17Frankena, Williank 43, 47Freitas, Corina Bontempo D. 17Freitas, João 202Fried, Charles 78Fronesis 49Habbermas, J. 213Harris, J. 135Hayes, Catherine 299Hewlett, S. 65Hipócrates 39,113

juramento 53HIV ver AIDSHobbes, Thomas 42Hossne, William Saad 17Hottois, G. 47Hugo ver Organização do genoma humanoHume, David 42Hungria, Nelson 275Hutcheson, Francis 42IEG – Interrupção eugênica da gestação ver AbortoIluminismo 27Imperícia 176, 244, 252Imprudência 176, 244Informed consent ver consentimentoInseminação artificial ver Reprodução assistidaInstituto Alan Guttemacher 129International Association of Bioethics ver Associação Internacional de BioéticaInternational Guidelines for Ethical Review of Epidemiological studies 196ISG – Interrupção seletiva da gestação ver AbortoITG – Interrupção terapêutica da gestação ver AbortoIVG – Interrupção voluntária da gestação ver AbortoJoão Paulo II, Papa 104Jonas, Hans 40, 99, 103, 220Jonsen, Albert R. 83,85Justiça

e autonomia 73e bioética 15,16,41,71-80,83,84,88e distribuição de recursos 71eutanásia 184justiça sanitária 78

Page 311: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

313

justiça social 78pesquisa em seres humanos 196Platão 72projeto genoma humano 141regime socialista 75relação médico-paciente 73saúde pública 71, 210, 213, 295, 297

Kant, I 27, 36, 39, 40, 59, 285Kipper, Délio José 16Konrad, MS 62Last, JM 206Lecaldano, Eugenio 102Leibniz 20Lenoir, Noelle 199Lepargneur, Hubert 87Levi, Guido Carlos 17Ligneau, P 208Locke, John 73, 75Lorscheider, Ivo (Dom) 112Macrobioética 95Mãe de aluguel ver Gravidez de substituiçãoMarnetti, J.A. 92Manipulação da vida 103-105, 108Mapeamento do Genoma humano 140Martin, Leonard 17Marx, Karl 75Medicina legal

aborto 261-262e Bioética 257-268ciências biológicas 259-260cirurgias transexuais 265, 266clonagem 264conceito 259crime 263reprodução assistida 263, 264

Medicina preditiva 17, 144-151, 298conduta 149-151confidencialidade 153, 154controle social 301consentimento 153, 154diagnóstico pré-sintomático 145, 148direitos humanos 154, 156discriminação 150, 153doença monogênica 144, 145

Page 312: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

314

doença poligênica 144, 145, 146, 149efeitos 147-149indústria farmacêutica 150pesquisa em seres humanos 154planos de saúde 148, 150regulamentação 150testes 144, 149teste admissional 150triagem populacional 146

Medicina do trabalho 150, 288, 293, 294Meio ambiente 99Mendel, G. 219Mensagem Genética 140Metaética 43Microbioética 95Mídia 108, 245-247Mill, John Stuart 59, 89, 133Mistanásia ver EutanásiaMoore, George Edward 39Moral 28-31

cristã 25-26e ética 101-103grega 26médica 54

Morelli, Theresa 299Mori, M. 136Morte digna ver OrtotonásiaMorte encefálica 161, 275

conceito 158, 164-165confirmação 160órgãos – transplante e doação 165-166pesquisa em seres humanos 197

Mulheraborto 125-138direitos humanos 239reprodução assistida 111-124

Muñoz, Daniel Romero 16Munthe, Christian 299Não-maleficência 15, 16, 47-48, 84, 88, 282

x beneficência 47, 85confidencialidade 282emergência 68eutanásia 184órgãos – transplante e doação 163

Page 313: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

315

x paternalismo 62pesquisa em seres humanos 196

Naturalismo 16Nazismo 33, 34, 195Negligência 177, 244Nietzche, Friedrich 49Nozick, Robert 77Omissão de informação 270Omissão de socorro 68, 175, 177, 254Organismo geneticamente modificado 218, 227Organização do Genoma Humano – HUGO 142Órgãos – transplante e doação

aspectos éticos 159, 160autonomia 159, 160, 162beneficência 161Brasil 160, 161código de ética médica 159comercialização de órgãos 161, 163-164consentimento 159, 162direito comparado 161, 162doação de órgãos 41doação de tecidos 158doação intervivos 159, 161doação post-mortem 162doação presumida 158, 159, 165-166eutanásia 182fetos anencéfalos como doadores 162-163histórico 157-158legislação 158-162menores como doadores 162, 163morte encefálica 158, 164não-maleficência 161órgãos de origem animal 161princípios fundamentais sobre transplante (OMS-1991) 161prisioneiros como doadores 162projeto genoma humano 161publicidade 158, 161sistema de saúde 160

Ortotanásia 172, 174, 192-193 (ver também Eutanásia)Oselka, Gabriel 15Paciente psiquiátrico 279-280Paciente terminal 176

autonomia 177código de ética médica 176, 177, 178

Page 314: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

316

eutanásia 189Parize, Regina Ribeiro 17Parizeau, MH 47Patenteamento do genoma humano 143, 144Paternalismo 48-49, 93

x autonomia 49, 61-62x beneficência 48Brasil 49código de ética médica 62conceito 61x não-maleficência 62na relação médico-paciente 48, 56teoria kantiana 49

Pedrosa Neto, Antônio Henrique 17Pellegrino, Edmund 45, 86, 95Pena de morte 175-176Pena, Sérgio Danilo 17Percival, Thomas 271Pesquisa em seres humanos 17, 33, 39, 44, 82, 193-204, 275, 281, 283

autonomia 195, 196beneficência 196Comissão Nacional de Ética em Pesquisa 202comitê de ética em 197, 198-202confidencialidade 196, 197consentimento 195, 196direitos humanos 241embriões 120erro médico 254eutanásia 176histórico 193-196justiça 196morte encefálica 197normatização no Brasil 196-198, 200, 201,202normatização internacional 195placebo 197, 202, 203privacidade 196, 197projeto genoma humano 143, 154remuneração por 196risco e benefícios 197vulnerabilidade 203

Pessini, Léo 16Phronesis 87 (Ver também Fronesis)PGH ver Projeto Genoma HumanoPinotti, José Aristodeno 79

Page 315: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

317

Pio XII 112Pitt, JB 165Placebo

pesquisa em seres humanos 197, 202, 203Planos de saúde 148, 150Platão 54,72Pluralismo 106Popper, KR 227Potter, VR 17, 96Principialismo ver BioéticaPrivacidade ver ConfidencialidadePrivilégio terapêutico 61Profissional de saúde

autonomia 50beneficência 50não-maleficência 50

Progresso tecnológico 40Projeto Genoma Humano 17, 100, 139-156, 163

e bioética 141-142Brasil 140-141controle social 295, 301, 303Estados Unidos 141, 142interesses econômicos 142organização do genoma humano 142, 143patenteamento 143, 144pesquisa em seres humanos 143, 154prazo 140princípios éticos 141-142programas genômicos 142propriedade industrial 144órgãos - transplante e doação 161

Prolongamento da vida ver DistanásiaProntuário 269

acesso 269, 272, 277-278sistema informatizado 272

Prudência 49Publicidade médica 276Rawls, John 77, 89, 213Rahman, Anika 129Ratzinger, Joseph 112Recursos para área da saúde 71Relação médico-paciente 41, 48, 53, 56, 61, 62-63, 93, 260

AIDS 285-294autonomia 53-70,

Page 316: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

318

autoritarismo médico 63consentimento 53, 286confidencialidade 186direitos humanos 55-57ética clínica 286erro médico 247-248eutanásia 179informação ao paciente 65justiça 73paternalismo 48, 56, 61, 62projeto genoma humano 150

Relatório Belmot 44,45,81,82-85,94 (ver também Belmot Report)Renouvier, C 212Reprodução assistida 17, 111-124, 221, 295

adoção 115Brasil, no 116, 122catolicismo 111-113controle social 115criopreservação de gametas 120-121diagnóstico genético in vitro 121doação de gametas 112Estados Unidos 122fertilização heteróloga 115fertilização in vitro 115gravidez de substituição 123histórico 114homossexuais 116infertilidade 114inseminação artificial 112, 115Itália 115-116, 122mulher 114na menopausa 116Normatização 116protestantismo 112Reino Unido 122solteiros 116transferência de embriões 119-120

Revolução biológica 219Rifkin, J 227Rose, S 148Ross, William David 43, 84Santo Agostinho 25São Antônio de Florença 73São Tomás de Aquino 72, 73, 236

Page 317: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

319

Saúde 91, 92 (inclui saúde pública)aborto 128autonomia 210avanços científicos 209avanços tecnológicos 209e bioética 205-216Brasil 78-79conceito 35, 190, 205-206e desenvolvimento econômico 210desvalorização 210direito a 207dos três “is” 79e Estado 206-209, 211-214eutanásia 175-180e globalização 212-213justiça 71-80, 100, 210, 213postura ecológica 210revolução francesa 211revolução industrial 207, 209socialismo 208

Schramm, FR 17, 100, 234Segre, Marco 17Segredo 270 (Ver também Confidencialidade)Senarclens, M 114Seppilli, A 206Ser humano, valor 39Séve, Lucien 102Sfez, Lucien 300Sgreccia, E 86Shaftesburry 42Sieghart, P 206Sigilo 270 (Ver também Confidencialidade)Singer, Peter 41, 60, 133Siqueira, José Eduardo 16Silva, Franklin Leopoldo 16, 19, 48Silva, Nei Moreira da 17Sistema Nacional de Transplante 161Sistema de Saúde 93

órgãos - transplante e doação 162Slippery Slope 220, 224Spinsanti, S 86Tarasoff, caos 276Tecnociência 218Tecnologia médica ver Avanços tecnológicosTelemedicina 282

Page 318: Iniciação a Bioética - Livro Inteiro[1]

320

Teoria moral kantiana 49Termo de consentimento 68Termo de compromisso para uso de dados 278Testes preditivos ver Medicina PreditivaTeste genéticos 298Tettamanzi, D 86Thomasma, David 45, 86, 95Thomson, JJ 133Tichtchenko, P 136Tolerância 106, 107Toulmin, Stephen 86, 90Tratado tecnológico ético 40Transplante ver Órgãos – transplante e doaçãoTriagem genética 146, 147Veatch, Robert 78, 86, 165Warnock, Mary 107Watson, JD 219Winkler, Daniel 93, 200Yudin, B 136