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Inclusao Digital Polemica Contemporanea

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  • InclusAodigital

    polmica contempornea

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    ReitoraDora Leal Rosa

    Vice ReitorLuiz Rogrio Bastos Leal

    EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    DiretoraFlvia Goulart Mota Garcia Rosa

    CONSELHO EDITORIAL

    Alberto Brum Novaesngelo Szaniecki Perret Serpa

    Caiuby Alves da CostaCharbel Nin El-HaniCleise Furtado Mendes

    Dante Eustachio Lucchesi RamacciottiEvelina de Carvalho S HoiselJos Teixeira Cavalcante Filho

    Maria Vidal de Negreiros Camargo

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  • Maria Helena Silveira BonillaNelson De Luca Pretto

    organizadores

    EdufbaSalvador, 2011

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    polmica contempornea

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  • Direitos da edio impressa cedidos EDUFBA.CC - O contedo est licenciado pelo Creative Commons para uso No Comercial (by nc, 2.5).

    Essa licena permite que outros remixem, adaptem e criem obras derivadas sobre sua obra sendo vedado o uso com fins comerciais. As novas obras devem conter a meno aos autores e

    tambm no podem ser usadas para fins comerciais.

    Capa, Projeto Grfico e EditoraoRodrigo Oyarzbal Schlabitz

    RevisoIsadora Cal Oliveira

    NormalizaoSusane Barros

    EDUFBARua Baro de Jeremoabo, s/n, Campus de Ondina,

    40170-115, Salvador-BA, BrasilTel/fax: (71) 3283-6164

    www.edufba.ufba.br | [email protected]

    Editora filiada a

    Sistema de Bibliotecas UFBA

    Incluso digital : polmica contempornea / Maria Helena Silveira Bonilla, Nelson De LucaPretto, organizadores. - Salvador : EDUFBA, 2011. v. 2.188 p.

    ISBN 978-85-232-0840-0

    1. Incluso digital. 2. Internet na educao. 3. Tecnologia da informao. 4. Incluso social. 5. Polticas pblicas. I. Bonilla, Maria Helena Silveira. II. Pretto, Nelson De Luca.

    CDD - 303.4833

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  • Somos iguais em potncia e singularidades nos acontecimentos.

    Todos os acontecimentos vivenciados nesses 68 anos de vida forjaram o meu processo identitrio, instvel, catico e dis-sipativo e, assim, estou sempre sendo sem ser. Em qualquer momento da minha vivncia da tenso jogojogante-jogo-jogado estou sendo atravs dos acontecimentos, que se re-alizam na vivncia de contextos e no pensamento, que se expressa atravs das linguagens, que do sentido ao meu ser.

    [] sinto-me eterno em potncia e transitrio nos aconteci-mentos, ou seja, sou virtualmente eterno, sem princpio ou fim, e transitrio na realidade criada pela minha vivncia dos acontecimentos.

    Luiz Felippe Perret Serpa

    Rio de Janeiro, 1935 Salvador, 2003

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  • Sumrio

    ApreSentAo s 9maria Helena Silveira Bonilla e nelson De Luca pretto

    prefcio s 15Andr Lemos

    incLuSo DigitAL: s 23AmBiguiDADeS em curSo

    maria Helena Silveira Bonilla e paulo cezar Souza de oliveira

    pArA ALm DA incLuSo DigitAL: s 49poDer comunicAcionAL e novAS ASSimetriAS

    Srgio Amadeu da Silveira

    incLuSo DigitAL como fAtor De incLuSo SociAL s 61Lia ribeiro Dias

    DiretrizeS metoDoLgicAS utiLizADAS em AeS De incLuSo DigitAL s 91

    maria Helena Silveira Bonilla e Joseilda Sampaio de Souza

    novAS tecnoLogiAS e incLuSo DigitAL: s 109criAo De um moDeLo De AnLiSe

    Leonardo figueiredo costa

    AutonomiA, LiBerDADe e software Livre: s 127ALgumAS refLexeS

    Doriedson de Almeida e nicia cristina rocha riccio

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  • LeiturA e eScritA on-line s 145edvaldo Souza couto, marildes caldeira de oliveira e raquel maciel paulo dos Anjos

    tABuLeiro DigitAL: s 163umA experinciA De incLuSo DigitAL em AmBiente eDucAcionAL

    nelson De Luca pretto, Joseilda Sampaio de Souza e telma Brito rocha

    SoBre oS AutoreS s 183

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    ApreSentAo

    Este livro o segundo volume da coleo organizada pelo grupo de pesqui-sa Educao, Comunicao e Tecnologias (GEC), da Faculdade de Educao da Universidade Federal da Bahia (Faced/UFBA). O primeiro volume, Tecnologia e Novas Educaes, foi publicado em 2005, sempre pela EDUFBA, com artigos de autoria dos professores e pesquisadores do grupo e de outros colegas que integra-ram o mesmo ao longo de sua existncia, e tambm com professores convidados que, direta ou indiretamente, temos vnculos.

    Na apresentao daquele primeiro volume de uma srie de trs, que espe-ramos concluir no ano de 2012, relatvamos o nosso percurso desde a criao do GEC at aqueles dias, com o destaque para as aes que desenvolvemos na busca de compreender que as tecnologias digitais antes denominvamos de Novas Tecnologias da Informao e Comunicao empurram cotidianamente a educao para uma perspectiva plural, no mais centrada numa lgica nica de transmisso de informaes, com um vetor unidirecional, de cima para baixo. Por isso, l comeamos a desenvolver a ideia de educaes, nesse plural pleno, que estamos buscando defender.

    O volume 2, que estamos apresentando, tem como foco a temtica da inclu-so digital, por considerarmos este um tema polmico e por ser foco de polticas pblicas em todos os nveis da administrao pblica, bem como de aes de diversas instituies pblicas, privadas e do terceiro setor. Nosso envolvimento com essa temtica tem incio a partir do lanamento do Livro Verde da Sociedade da Informao no Brasil, em 2000, momento em que passamos a participar das discusses em torno do Programa, seja como integrante do GT Educao, um dos grupos de trabalho do programa, seja nas pesquisas e aes pblicas que realiza-mos ao longo do debate daquele programa de governo.

    nesse contexto que emerge na sociedade brasileira o tema da incluso digital, e o GEC, por sua histrica insero na pesquisa sobre as polticas pbli-

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    cas e os temas relacionados relao entre educao, comunicao e tecnologia, passa a atuar em duas novas frentes investigativas e ativistas: incluso digital e software livre.

    O envolvimento dos professores do grupo e a insero de mestrandos, dou-torandos e bolsistas de iniciao cientfica no mbito da pesquisa, do ensino e da extenso, em torno dessas temticas, fortalece o grupo e lhe d maior visibilidade em nvel nacional e internacional.

    Os artigos que compem este volume tm origem em nossas pesquisas, ou em pesquisas de outros colegas, interlocutores nossos ao longo do tempo, e pro-curam evidenciar a polmica que se institui em torno dos sentidos atribudos ao tema, bem como dos discursos e aes a ele relacionados.

    Pensamos ser fundamental refletir, como tantos outros vm fazendo ao lon-go dos ltimos anos, e buscar definir teoricamente, e de forma mais clara, o que entendemos por incluso digital e de que forma podemos atuar politicamente considerando essa perspectiva terica. Temos, nessa linha, feito um esforo para construir um sentido que explicite a possibilidade de os sujeitos sociais terem acesso e se apropriarem das tecnologias digitais como autores e produtores de ideias, conhecimentos, proposies e intervenes que provoquem efetivas trans-formaes em seu contexto de vida.

    Essa perspectiva no nova em nosso grupo. Nos idos dos primeiros anos da derradeira dcada do milnio passado, no momento em que se iniciava a im-plantao da rede internet em todo o mundo, tambm aqui na Bahia estivemos envolvidos com esse projeto, fazendo com que a UFBA, sob a liderana do rei-tor Felippe Serpa, estivesse presente de maneira contundente tanto no mbito nacional, com o envolvimento na implantao da Rede Nacional de Pesquisa (RNP), como, dentro do estado, numa forte e difcil articulao com o governo do Estado, atravs da Superintendncia de Apoio ao Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CADCT), rgo da Secretaria de Planejamento do Governo do estado da Bahia. O objetivo era ampliar o acesso internet, no s comunida-de acadmica, como foi o nascimento da internet, mas tambm s organizaes no governamentais, que atuavam fortalecendo os movimentos sociais, e, num segundo momento, para a iniciativa privada, ampliando com isso o acesso in-ternet a todo e qualquer cidado e buscando a democratizao dos usos sociais que ela possibilita.

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    Com esse movimento, comevamos a contribuir com a implantao das conexes internet das escolas pblicas, insistindo, desde aquele momento, que o importante era que essa conexo fortalecesse a produo local de culturas e conhecimentos. Ficou conhecida a nossa frase, quase mantra naquele momento: no precisamos da internet nas escolas e sim das escolas na internet, posio que defendemos ainda hoje. Com isso, queramos fazer frente ideia, muito co-mum poca, de que a internet poderia se constituir num importante veculo de acesso aos grandes repositrios internacionais, como o Museu do Louvre ou a Biblioteca do Congresso Americano. De fato, a internet era e ainda um impor-tante meio de acesso s mais variadas fontes de informao, mas, como defende-mos, isso tem que ser acompanhado de um fortalecimento da produo cultural e cientfica, de forma a possibilitar que esse dilogo entre o local e o universal ganhe uma dimenso igualitria e ampla, e que a escola insira-se nesse processo de forma autoral e ativista.

    Daquele momento para c, as tecnologias mudaram. Muito mudou na so-ciedade. A internet, de uma telinha preta com letrinhas verdes que para se colocar um acento em uma letra usava-se quase todos os dedos e um sem nmero de teclas! mudou para a web dos cliques, podendo ser acessada tambm atravs de dispositivos mveis, que lhe possibilitam estar lendo este livro em seu telefo-ne ou tablet. Em vista disso, a discusso sobre o significado de todo esse avano tecnolgico, bem como sobre as implicaes dele na sociedade, e em especial na educao, por demais necessria.

    Novos temas passaram a fazer parte da agenda do dia sobre o futuro da internet e, nem de longe, esse livro pretende esgot-los. Buscamos to somente contribuir para que a temtica da chamada incluso digital continue em pauta e, modestamente, esperamos contribuir com uma maior qualificao da discusso. Nesse sentido, os captulos deste livro partem de uma reflexo maior sobre o prprio sentido da incluso digital e o que isso representa em termos de incluso social, terminando com a apresentao de uma singela experincia, que temos muito apreo: os nossos Tabuleiros Digitais.

    O primeiro captulo do livro trata das ambiguidades em curso em torno da temtica da incluso digital e foi escrito como parte das pesquisas realizadas no interior do nosso grupo por Maria Helena Bonilla com o seu mestrando, poca, Paulo Cezar Souza de Oliveira.

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    Nosso permanente colaborador e importante ativista, o professor Srgio Amadeu da Silveira, tambm continua o assunto com as definies que cercam a temtica no contexto da cibercultura e da cidadania.

    Fruto do mestrado de Lia Ribeiro Dias, o captulo Incluso digital como fator de incluso social faz uma interessante reflexo sobre a relao das polticas de inclu-so digital e as possibilidades de incluso social por elas promovidas.

    Os dois prximos captulos trabalham em torno das questes metodolgicas associadas incluso digital. Em Diretrizes metodolgicas utilizadas em aes de inclu-so digital, mais uma vez Maria Helena Silveira Bonilla, agora com sua, poca, bolsista PIBIC Joseilda Sampaio de Souza, faz uma anlise dessas metodologias, e em Novas tecnologias e incluso digital: criao de um modelo de anlise, o professor da Faculdade de Comunicao da UFBA, Leonardo Costa, analisa de que maneira esto se dando as polticas de incluso digital e suas possibilidades analticas.

    Com o foco maior na temtica software livre, Doriedson de Almeida, pro-fessor da Universidade Federal do Oeste do Par, e Nicia Riccio, doutora em Educao e analista do Centro de Processamento de Dados da UFBA, promovem algumas reflexes em torno do tema Autonomia, liberdade e software livre: algumas reflexes.

    Uma das questes centrais das polticas de incluso digital, fortalecida pelo desenvolvimento de novos aparatos tecnolgicos para a leitura de textos os novos e-readers , a leitura e a escrita nesse universo online promovido pelas polticas pblicas de incluso digital. Esse o tema do captulo seguinte, de auto-ria do professor Edvaldo Souza Couto com as suas bolsistas de iniciao cientfica, fruto da pesquisa desenvolvida ao longo do ano de 2009.

    Por ltimo, um captulo dedicado a um projeto de interveno em anda-mento, idealizado e coordenado pelo grupo de pesquisa Educao, Comunicao e Tecnologia da Faced/UFBA: o projeto Tabuleiro Digital. Neste artigo, Nelson De Luca Pretto, Joseilda Sampaio de Souza e Telma Brito Rocha apresentam os projetos em andamento na Faced/UFBA e feita uma anlise especfica sobre o projeto dos Tabuleiros, presentes em Salvador e Irec, como parte das aes de GEC no fortalecimento da denominada cultura digital.

    Esperamos que o leitor possa navegar por essas reflexes e entrar no de-bate. Como temos feito em nossas ltimas publicaes, apostamos na livre circulao do conhecimento cientfico e, por isso, tambm este livro est licen-

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    ciado em Creative Commons de forma a possibilitar o seu pleno uso em todos os contextos. Contamos para isso com a correta poltica da Editora da UFBA, que desde 2010 vem adotando a prtica de repositrios, fazendo com que todo o seu mais recente catlogo esteja disponvel e acessvel, em termos de contedo, no Repositrio Institucional da UFBA.

    Boa leitura. Boas discusses.

    Maria Helena Silveira Bonilla e Nelson De Luca PrettoSalvador, abril de 2010.

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    prefcio

    Atualmente, a incluso digital est em plena discusso no Brasil com o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). O tema est presente em pol-ticas pblicas governamentais desde 1999, quando o governo lanou o Pro-grama Sociedade da Informao, pelo decreto 3.294 em 15 de dezembro, que culminou no Livro Verde em 2000. (TAKAHASHI, 2000) Depois, o pro-jeto Computadores para Todos (2005-2008) foi lanado tendo como objeti-vo reduzir os preos dos computadores para facilitar o acesso. (QUEIROZ, 2008) O primeiro projeto perdeu os rumos e foi descontinuado na prtica; o segundo perdeu relevncia j que o mercado se incumbiu de reduzir os preos. Agora o PNBL visa oferecer internet de alta velocidade a toda a populao a baixos custos, tendo como pressuposto a ideia de que o acesso internet confi-gura-se como um valor fundamental para o desenvolvimento social, econmico e cultural do pas.1

    O PNBL tentar reduzir o atraso brasileiro em relao aos pases centrais onde essa poltica foi implementada j h algum tempo. No entanto, o lobby das empresas de telecomunicao e das operadoras de internet que dominam o mercado no pas est colocando limites muito concretos ao sucesso do empreen-dimento. O custo sugerido pelo governo de R$ 35,00/m para uma velocidade de 1Mbps, mas a mesma vai diminuindo quando o consumo passa de 300Mb a 500Mb, a depender da operadora, fazendo com que o usurio tenha duas opes: ou pague mais, ou use a internet com velocidade reduzida. Ouvir msica, ver filmes ou vdeos, ou mesmo baixar e atualizar programas na mquina esto, nesse modelo, inviabilizados. Ou seja, o PNBL, se assim se constituir, ser um projeto que visa incluir, mas que na realidade exclui os j excludos, dando a eles um falso sentimento de incluso.

    1 http://www.mc.gov.br/plano-nacional-para-banda-larga

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    Como vemos, discutir incluso digital um assunto espinhoso, que nos obriga a discutir polticas que compreendam o acesso s novas Tecnologias de Informao e Comunicao (TIC) como elementos de incluso social em sentido amplo (economia poltica, mercado, hbitos sociais, profisses...). No livro Cidade Digital (LEMOS, 2007), apresentamos um modelo de anlise e de implementa-o de projetos de incluso digital. Ele parte do princpio de que a incluso digi-tal2 no alcanada apenas quando se d computadores ou acesso internet, mas quando o indivduo colocado em um processo mais amplo de exerccio pleno de sua cidadania. A incluso digital deve, consequentemente, ser pensada de forma complexa, a partir do enriquecimento de quatro capitais bsicos: social, cultural, intelectual e tcnico, como veremos a seguir. Esses capitais devem ser estimu-lados, no caso da incluso ao universo digital, pela educao de qualidade, pela facilidade de acesso aos computadores (e/ou similares) e rede mundial de com-putadores, pela gerao de empregos, ou seja, pela transformao das condies de existncia. Esse o sentido maior da incluso de um indivduo na sociedade e no apenas da incluso digital. Nesse sentindo, programas de incluso digital devem pensar a formao global do indivduo para a incluso social.

    No modelo proposto em 2007, falvamos de dois tipos de incluso: a es-pontnea e a induzida. A incluso espontnea uma insero compulsria dos indivduos na sociedade da informao. Nas metrpoles contemporneas, eles so obrigados a aprender e a lidar com sistemas informatizados de diversos tipos. O uso de cartes eletrnicos de dbito e crdito, de smart cards em nibus, a operao em mquinas bancrias, o envio de imposto de renda pela internet, a votao eletrnica em eleies, o acesso eletrnico a exames laboratoriais, o check in pela Web em viagens de avio, o uso de SMS e outros servios via telefone ce-lular, entre outros, so alguns exemplos bem conhecidos por ns brasileiros. J a incluso induzida aquela fruto de um trabalho educativo e de polticas pblicas que visam dar oportunidades a uma grande parcela da populao excluda do uso e dos benefcios da sociedade da informao. o que conhecemos por projetos de incluso digital.

    2 O modelo foi elaborado por mim em 2004 e 2005 (LEMOS, 2004) em conversas com Pierre Lvy em Ottawa, Canad, durante um encontro de pesquisa em que eu desenvolvia um modelo para pensar projetos de cidades digitais, incluindo a a questo da incluso digital. Desenvolvido em monografia de concluso de curso e depois no mestrado por Leonardo Costa, ambas sob minha orientao, o modelo foi adaptado para a discusso sobre incluso digital. Costa apresenta deta-lhes no captulo 5 deste livro.

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    Muitos dos que usam de forma compulsria essas tecnologias (como no caso da incluso espontnea) so, como diz o socilogo espanhol Manuel Castells (2002), interagidos e no interagentes, ou seja, eles utilizam de uma forma muito rudimentar os dispositivos e as redes eletrnicas e no sabem tirar proveito de todos os benefcios culturais, sociais e econmicos que eles oferecem. Estes so, por assim dizer, mais agidos pelo sistema do que agentes no sistema. Para os interagidos, os projetos de incluso digital devem ser induzidos e fortalecidos pela dimenso cidad e educacional.

    Esse o desafio, no apenas brasileiro, mas mundial. A incluso um pro-blema cultural e no apenas econmico ou cognitivo. Pases com uma populao financeiramente equilibrada enfrentam tambm problemas, seja de rejeio ou de desconhecimento das potencialidades das TIC, seja de faixa etria ou problemas de gnero, de imigrao ou outros. Assim, para os interagidos desses pases, programas de incluso digital so fundamentais para os tornarem interagentes. Certamente o problema da incluso digital no apenas econmico e no afeta apenas pases pobres e/ou em desenvolvimento.

    Propomos, no modelo de 2007, uma matriz de anlise de projetos de incluso digital que, na poca, nos ajudou a analisar projetos de incluso digital em Salvador e no Brasil. No entanto, acredito que ele serve, em seu sentido mais amplo, para pensar projetos nessa rea. A matriz tem como fundamento maior o princpio de que a incluso um processo amplo e complexo que deve partir da valorizao dos quatro capitais da inteligncia coletiva. (LVY, 1998) O capital social aquele que valoriza a dimenso identitria e comunitria, os laos sociais e a ao poltica. O capital cultural o que remete histria e aos bens simblicos de um grupo social, ao seu passado, s suas conquistas, sua arte. J o capital tcnico o da potncia da ao e da comunicao. ele que permite que um grupo social ou um indivduo possa agir sobre o mundo e se comunicar de forma livre e autnoma. O capital intelectual o da formao da pessoa, do crescimento intelectual in-dividual com a aprendizagem, a troca de saberes e o acmulo de experincias de primeiro e segundo grau. Incluir , assim, em qualquer rea e em todos os sentidos, possibilitar o crescimento dos quatro capitais. Incluir, na e para a sociedade da in-formao, significa usar as TIC como meios de expandir esses capitais.

    Hoje, novas questes emergem com os dispositivos mveis e portteis, as redes sem fio Wi-Fi ou as redes 3G da telefonia mvel. Estamos em uma era

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    da cultura da mobilidade (LEMOS, 2009) na qual os dispositivos mveis como celulares, smartphones, netbooks e tablets exigem uma ampliao do debate. Deve-se pensar como potencializar a mobilidade fsica a partir da mobilidade informacional e vice-versa. Fala-se agora de uma era do Ps-PC. Assim, depois da grande informtica e seus sistemas centralizados e manipulados por enge-nheiros e matemticos nas dcadas de 1940 e 1950, do PC (computador pesso-al) e da microinformtica das dcadas de 1970 e 1980, quando o computador passa a ser mais interativo, aberto e manipulado por todos a partir de interfaces grficas, surge, a partir da dcada de 1990, a internet como a infraestrutura principal do fim do sculo XX e comeo do XXI. Agora o PC d lugar ao que chamei de CC (computador conectado ou coletivo), no qual a computao em rede passa a ser o grande valor. (LEMOS, 2003) Alguns chamam essa era de ps-PC. (HAFF, 2001) Entramos, nessa primeira dcada do sculo XXI, na era da computao ubqua, mvel, hiperlocal, na era das mdias locativas (LEMOS, 2008) e da internet das coisas.3

    Pouco importa a denominao. O que interessa reconhecer o surgimento de novos formatos culturais e saber que eles precisam ser pensados em projetos de in-cluso digital. Esses se caracterizam pela possibilidade de no apenas consumir in-formao em deslocamento (o que fazemos ao ouvir rdio, ler um livro ou jornal nos transportes pblicos nibus, carros, barcos, avies), mas tambm de produzir e distribuir informao. Essa possibilidade ampliada com os dispositivos mveis e sis-temas acessveis como blogs, sites de redes sociais ou SMS via telefones celulares so hoje instrumentos importantes de luta poltica, de organizao e mobilizao social e de circulao livre de informao, como foi o caso dos recentes levantes populares no Egito, na Tunsia ou na Espanha. A incluso digital, ampliada aos dispositivos mveis, deve ser pensada tambm como uma questo de direito ao poltica e ser objeto de aes governamentais, como o governo mvel ou m-government, por exemplo. A era do CCM ou do Ps-PC deve ser pensada como aquela da emer-gncia de novos instrumentos de incluso digital que ampliam consideravelmente os quatro capitais, principalmente pela possibilidade de consumir, produzir e distri-buir informao e de manter vnculos sociais e contatos permanentes (ver KATZ; AAKHUS, 2002; LING; DONNER, 2009).

    3 http://www.theinternetofthings.eu

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    Se ler uma forma de incluso desde a Grcia antiga at o incio da era mo-derna; se entender o audiovisual (os mdia de massa) e saber ler as informaes que nos so despejadas diariamente por centros de informao uma necessidade para se incluir na sociedade industrial; ento, saber lidar com os novos disposi-tivos e as redes telemticas so hoje condies necessrias e imprescindveis para incluso social na sociedade da informao. Saber ler hoje entender, produzir e distribuir informaes sob os mais diversos formatos (texto, programas, sons, imagens...). As habilidades anteriores se mantm (saber ler, poder criticar os mass media), mas outras aparecem, como novas habilidades para produzir e distribuir contedo em uma sociedade cada vez mais mvel e global. Acho que mais do que dar acesso s tecnologias (uma condio tcnica imprescindvel e bsica para qualquer projeto de incluso digital), o desafio maior da incluso cidad cultura digital fazer com que os indivduos possam produzir contedos prprios e dis-tribu-los livremente, mantendo-se senhor dos seus dados pessoais, garantindo-se a privacidade e o anonimato. Tanto quanto o capital tcnico, os projetos de inclu-so digital devem fazer crescer os capitais social, intelectual e cultural. Deve-se ir alm dos fatos ou dos artefatos. A incluso pressupe autonomia, liberdade e crtica. Para tanto, no Brasil, algumas perguntas merecem ser respondidas para que possamos falar verdadeiramente de incluso digital:

    Como melhorar a formao e o uso das TIC e da internet em um sistema educacional sem estmulo aos professores, sem recursos e/ou infraestrutura adequados, corrodos pela corrupo generalizada presente em vrias reas do governo de forma crnica?;

    Como ampliar o acesso banda larga, tendo como base um plano para o pas (o atual PLNB) que pode vir a deixar os cidados refns das operadoras, com gargalos de conexo e preos ainda muito altos?

    Como incentivar o uso de sistemas abertos e a circulao livre do conheci-mento, sem repensar a lei do direito autoral (copyright) no pas, sem uma poltica cultural que perceba os desafios da cultura digital?;

    Como ampliar os incentivos ao uso de softwares de fonte aberta que possi-bilitem ao pas criar capacidade tcnica, criatividade e economia de recursos em pagamento de royalties para empresas de softwares proprietrios?

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    Na era do ps-PC, como ampliar o uso pleno dos telefones celulares, dos smartphones, dos tablets e das redes 3G e Wi-Fi, desenvolvendo uma ao mais pblica desses recursos, incentivando, inclusive, aes de m-gov.?;

    Como garantir a liberdade de expresso, o anonimato e a privacidade sem um Marco Civil consolidado e com leis que insistem em instituir um clima de vigilncia, de criminalizao e de controle da internet, como o PL 84/99, atualmente em tramitao na Cmara dos Deputados, e que, se aprovado, ir dificultar o desenvolvimento e punir usos legtimos da internet no pas?

    O livro Incluso Digital: polmica contempornea, organizado por Nelson Pret-to e Maria Helena Bonilla, vem oferecer ao leitor um excelente panorama sobre algumas dessas questes e sobre outras tantas polmicas nessa rea. Os autores oferecem um excelente leque de discusso que passa pela questo sobre as defi-nies de incluso e de excluso digital (textos de Bonilla e Souza de Oliveira; de Amadeu da Silveira e de Ribeiro Dias); sobre os modelos, as experincias e as metodologias de aes de incluso digital (textos de Pretto, de Souza e Rocha; de Bonilla e de Souza; e de Costa) e sobre a autonomia e as novas formas de leitura e de escrita (textos de Almeida e Riccio; e de Souza Couto, Caldeira de Oliveira e Paulo dos Anjos). O leitor tem em mos uma obra coletiva que visa polemizar em seu sentido mais nobre. No apenas para criar a polmica pela polmica, mas para suscitar aquela que busca ampliar os limites da viso e do pensamento. Precisamos disso para pensar a cultura digital. Precisamos de mais polmicas e mais confrontos de ideias. Esse o objetivo deste livro. Essa a vocao, por ex-celncia, da Universidade.

    Salvador, 03 de Agosto de 2011.

    Andr LemosProfessor Associado da Faculdade de Comunicao da UFBAPesquisador 1 do CNPq.

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    refernciAS

    CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. So Paulo: Paz & Terra, 2002.

    HAFF, Gordon. The PC isnt dead, but its still a post-PC era. CNET. 29 July 2011. Disponvel em:

    KATZ, James E.; AAKHUS, Mark (Ed.). Perpetual contact: Mobile communication, private talk, public performance. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2002.

    LEMOS, Andr. (Ed.). Cidade digital: portais, incluso e redes no Brasil. Salvador: Edufba, 2007.

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    Maria Helena Silveira BonillaPaulo Cezar Souza de Oliveira

    incLuSo DigitAL: AmBiguiDADeS em curSo

    A compreenso e problematizao do termo incluso digital tem impor-tncia crucial no contexto contemporneo, uma vez que tem se constitudo em pauta das polticas pblicas e objeto das aes de diferentes instituies ONG, universidades, empresas, escolas. Tanto pelos diferentes significados atribudos ao termo pelos diferentes atores sociais envolvidos, quanto pelas resultantes socio-culturais e polticas que emergem das aes e interaes relacionadas, a percepo dos sentidos construdos em torno da incluso digital torna-se fundamental.

    Numa anlise em nvel global, constata-se que o termo incluso digital en-tra em cena na dinmica social e poltica da implantao dos chamados Pro-gramas Sociedade da Informao, nos diversos pases, em especial naqueles que compem a Unio Europeia (UE). Diversos estudos sociais, polticos, culturais e econmicos sobre as transformaes que tm ocorrido na sociedade contempor-nea, em geral, tm enfatizado a difuso crescente das tecnologias da informao e comunicao, em escala mundial. Em muitos destes, so enfatizados e criticados os contextos polticos nos quais nascem as proposies destinadas a constituir, em escala mundial, uma Sociedade da Informao.

    O espao poltico-ideolgico das polticas de governo nacionais e interna-cionais para o desenvolvimento do que se convencionou denominar, portanto, Sociedade da Informao consolida-se na dcada de 90 do sculo passado. Na esteira desse movimento surgem os denominados Programas para a Sociedade da Informao, notadamente aqueles empreendidos pelos EUA, UE e Organis-

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    mos Internacionais, entre os quais a Unio das Naes Unidas (ONU) e a Unio dos Estados Americanos (OEA).

    O Brasil incorpora a nova pauta em sua agenda poltica no ano de 2000, quando lana o Livro Verde Sociedade da Informao no Brasil. (TAKAHASHI, 2000) justamente no mbito dessas iniciativas que se identificam as desigual-dades quanto ao acesso de grandes contingentes populacionais s Tecnologias da Informao e Comunicao (TIC). Tais desigualdades vm sendo denominadas genericamente como digital divide, gap digital, apartheid digital, infoexcluso, ou excluso digital, e tm justificado a formulao de numerosas polticas pblicas com a finalidade de minimiz-las.

    Considerando os possveis riscos dessa nova realidade social excludente, di-versos programas de governo, em vrios pases, so implementados com base em polticas pblicas compensatrias.1 Em geral, tais medidas propem a universa-lizao do acesso s tecnologias da informao e comunicao, sendo declaradas como aes de combate ao que se denomina por excluso digital. Essas medidas, em termos gerais, so conhecidas como programas ou projetos de incluso digital e vm sendo implementadas tanto pelo setor pblico, quanto pelo setor priva-do e organizaes do terceiro setor. Incluso digital vem sendo pauta poltica obrigatria em quase todos os governos e tema de estudos em diversas reas do conhecimento.

    O tema incluso digital tem assim suscitado diversas discusses. Os signi-ficados e objetivos atribudos ao termo tm motivado intensos debates na co-munidade acadmica. Treinar pessoas para o uso dos recursos tecnolgicos de comunicao digital seria incluso digital? Para alguns autores, tais iniciativas no seriam suficientes para incluir digitalmente. Democratizar o acesso a tais tecnologias seria, ento, incluir digitalmente? No h consensos para tais ques-tes. No entanto, em vista da relevncia do fenmeno social relacionado, torna-se necessrio que o problematizemos.

    Inicialmente, analisando os discursos comumente associados ao tema, podemos perceber, sem muita dificuldade, que o termo incluso digital tem relao direta com o seu antagnico excluso digital. O dualismo incluso/

    1 Polticas compensatrias compreendem o conjunto dos programas de assistncia social e servios especiais de preven-o, identificao e proteo jurdico-sociais direcionados para o contingente situado fora do alcance das polticas sociais bsicas. (BRASIL,1993)

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    excluso digital compe os principais sentidos atribudos aos referidos termos. Para minimizar ou combater a excluso das pessoas de uma dinmica social caracterizada pelo uso intensivo das tecnologias de base digital, empreende--se aes de incluso digital. Nos discursos e estudos tambm encontramos a associao aos termos excluso e incluso social. A anlise desses discursos nos conduz necessidade de compreenso crtica das apropriaes destes termos. Inicialmente, propomo-nos discutir o termo excluso social, para em seguida relacion-lo a incluso social. Depois, analisaremos os sentidos atribudos aos termos excluso e incluso digital, para ento situ-los frente s dinmicas so-ciais e polticas contemporneas.

    excLuSo e incLuSo SociAL

    A apropriao do termo excluso social pelas polticas pblicas tem sido uma prtica muito frequente no Brasil e em diversos pases. Alguns autores como Robert Castel (1997) consideram a apropriao poltica do termo bastante pro-blemtica. Mnica Ferreira (2002) discute o uso do termo excluso social nas polticas pblicas com base nas abordagens propostas por Castel (1997).

    O uso da noo de excluso, no mbito das polticas pblicas, permite a

    adeso polticas que tratam os problemas sociais como adendos, e tam-

    bm como fatalidades decorrente da hegemonia das leis econmicas e dos

    ditames do capital financeiro (fora dos quais se estaria excludo do mundo

    globalizado). Permite portanto tratar a excluso como 'resduo neces-

    srio', ainda que no desejvel, das necessrias leis do mercado e da com-

    petitividade do mundo globalizado. Efeitos mltiplos que podem ser

    mitigados atravs de mltiplas aes. (FERREIRA, 2002. p. 6)

    Por exemplo, em nossos estudos, percebemos que diversas aes desenvol-vidas no mbito de programas de incluso digital, e os discursos polticos que as afirmam, configuram declaradamente, e indubitavelmente, uma situao em que se acredita ser capaz de minimizar as mazelas sociais das comunidades que participam das atividades promovidas no mbito desses programas. No entanto, em geral, so programas e aes propostos de forma isolada, desarticulados das

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    demais polticas pblicas, e que no levam em considerao a complexidade dos processos vividos pelas comunidades. Ferreira (2002), ao analisar a apropriao do termo excluso pelas polticas pblicas, tambm argumenta que ele vem sen-do tratado de forma fragmentada e autnoma, sem articulao com os contextos de origem ou com as relaes e efeitos polticos associadas, esvaziando o conflito presente em torno de cada problemtica. Essa forma de abordagem desloca a ateno das tenses que se do no interior do processo de produo capitalista para a luta por polticas sociais compensatrias (RIBEIRO, 1999, p. 46), e tam-bm desloca o tratamento das questes sociais do campo da poltica e insere-os no campo da tcnica, requisitando apenas especialistas na rea para tratar de sua resoluo.

    Lidar com a excluso passa a ser uma questo de competncia, e as po-

    lticas, assim como as instituies que as executam, podem ser medidas

    por sua produtividade, medidas pela eficcia das suas aes. A excluso

    deixa de ser um problema poltico, e passa a ser uma questo de eficincia

    administrativa. Sai de cena a luta por direitos sociais, e entra em cena a

    capacitao tcnica. (FERREIRA, 2002. p. 6)

    Referindo-se origem da noo de excluso social, Lindomar Boneti (2005, p. 2) afirma que trata-se de uma viso funcionalista de caracterizar um contin-gente populacional que estaria fora, margem da sociedade, conforme expressou Ren Lenoir, considerado o criador dessa noo, no livro LExclus, publicado em 1974. Ou seja, para o autor, o termo tem origem num pressuposto de dualidade e elasticidade das relaes sociais. Nessa perspectiva, os excludos seriam todas as pessoas que estivessem fora do social, como os leprosos, os marginais, os doentes mentais. No entanto, hoje, num mundo de comunicao generalizada, ningum fica fora do social, pois continua se comunicando, interagindo e agin-do socialmente, a partir de qualquer lugar em que se situe, seja uma priso, seja uma clnica.

    Jos de Souza Martins (2003) argumenta que denominamos excluso o con-junto das dificuldades, dos problemas e dos modos precrios e marginais de par-ticipao social que tem origem com as transformaes econmicas. Para ele, esse um processo de incluso e no de excluso, ou seja,

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    o discurso corrente sobre excluso basicamente produto de um equvo-

    co, de uma fetichizao, a fetichizao conceitual da excluso, a excluso

    transformada numa palavra mgica que explicaria tudo. Rigorosamente

    falando, s os mortos so excludos, e nas nossas sociedades a completa

    excluso dos mortos no se d nem mesmo com a morte fsica; ela s

    se completa depois de lenta e complicada morte simblica. (MARTINS,

    2003, p. 27)

    Podemos ainda nos apoiar em Francisco de Oliveira (2003), ao analisar o desenvolvimento capitalista no Brasil, ps anos 1930, para fazer a crtica noo de excluso. O autor destaca que o novo modelo industrial institudo no pas, nessa poca, no rompe com o antigo modelo econmico agroexportador. Na realidade, h uma integrao campo/cidade, pois, dentre vrios outros fatores, o campo brasileiro que fornece o exrcito de reserva para a indstria, uma massa de trabalhadores que migra para a cidade e ali se mantm empobrecida. Destaca ainda que a legislao trabalhista brasileira, mais do que uma conquista dos trabalhadores, foi uma estratgia do capitalismo para manter a acumulao, uma vez que igualava reduzindo antes que incrementando o preo da fora de trabalho (OLIVEIRA, 2003, p. 38), o que era reforado pelo baixo custo dos alimentos fornecidos pela agricultura. Esse exrcito de reserva, pobre, passa ento a ocupar atividades informais, morar em favelas, reduzindo o custo mone-trio de sua prpria reproduo (2003, p. 130). Portanto, essa massa no pode ser considerada excluda, pois faz parte das estratgias de constituio do capitalis-mo, alimenta o processo a partir de dentro. Evidentemente que sua participao subordinada, muitas vezes at alienada, mas imprescindvel para a manuteno do sistema. Tambm para Marlene Ribeiro (1999, p. 46), a excluso est inclu-da na prpria dinmica do processo de produo capitalista.

    Tambm encontramos em alguns autores da escola francesa, como Robert Castel (2003) e Serge Paugam (1999), uma abordagem crtica do termo exclu-so social. De acordo com Castel (2003), excluso social relaciona-se no a uma categoria de anlise, mas a uma problemtica social que se constitui a partir da existncia de indivduos afastados de seus pertencimentos coletivos, vivenciando carncias ou desvantagens sociais: pobreza, falta de trabalho, sociabilidade restri-ta, condies precrias de moradia, entre outras.

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    De maneira geral, a noo de excluso ainda provoca controvrsias teri-cas nos estudos sociolgicos, e, em funo disso, a noo de incluso tambm apresenta srios complicadores. Como se trata de uma positivao de uma pro-blemtica social, a da excluso, mais um discurso que um conceito. Tambm implica o entendimento do social a partir de uma concepo dual do dentro e do fora (BONETI, 2001, p. 3), o que limita a anlise e bloqueia a percepo da complexidade dos processos. No entanto, essa concepo dual embasa a re-produo da ordem social e a transformao dos indivduos para adaptarem-se ou inserirem-se numa sociedade modelada a partir dos interesses econmicos. Logo, incluir significa inserir, introduzir, adaptar os indivduos a determinado modelo, a uma dada realidade pronta. Assim, o processo de incluso pressupe um Eu, hegemnico, um discurso nico do mundo (SANTOS, 2000), a cuja imagem o Outro, o diferente, o de fora (LINS, 1997), dever se transformar, sendo esse um processo individual, onde cada um deve buscar a insero por conta prpria. Como consequncia, aquele que no se insere nessa lgica, que no se transforma no Eu, excludo.

    O capitalismo na verdade desenraza e brutaliza a todos, exclui a todos. Na

    sociedade capitalista essa uma regra estruturante: todos ns, em vrios

    momentos de nossa vida, e de diferentes modos, dolorosos ou no, fomos

    desenraizados e excludos. prprio dessa lgica de excluso a incluso. A

    sociedade capitalista desenraza, exclui, para incluir, incluir de outro modo,

    segundo suas prprias regras, segundo sua prpria lgica. O problema est

    justamente nessa incluso. (MARTINS, 2003, p. 32)

    Ou seja, segundo Marlene Ribeiro (1999, p. 43), a luta pela incluso tambm uma luta para manter a sociedade que produz a excluso, implica, a aceitao da ordem que exclui. Inserir supe conceber os sujeitos passivos como peas de um jogo, designando a eles um papel de meros objetos, seres amorfos que aceitam a inexorabilidade de sua excluso (1999, p. 42), como se as pessoas no pensassem, no optassem, no se movimentassem, no reivindicassem, no formassem opinies e pudessem, assim, ser manobradas. Significa ento que a dinmica social no considerada como resultante das nossas aes, interaes e concepes, em relao e movimento. Portanto, relacionar incluir, inserir, ou ou-

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    tros verbos que guardem tais significados s polticas e aes de incluso, implica considerar que a sociedade composta por sujeitos inertes e passivos.

    As dificuldades encontradas no emprego dos termos incluso e excluso tm levado alguns autores a propor a substituio do termo excluso por outros mais adequados e menos contraditrios, tais como desfiliao social (CASTEL, 1998), desqualificao social (PAUGAM, 2003), apartao social (BUAR-QUE, 1994). Para Castel (1998), a excluso estanque ao denotar estados de privao. J o conceito de desfiliao procura valorizar os processos que geram aquela situao, designando um percurso, no s uma ruptura. Para Alba Zaluar (1997, p. 4), essa simples troca de nome importante na medida em que afilia-o remete a um processo, que envolve sujeitos ativos, e no lgica binria da classificao.

    O conceito de desfiliao prope uma abordagem coerente com a complexi-dade e dinmica da multifacetada realidade social contempornea. Diferente do tratamento superficial e paliativo que caracteriza as principais formulaes polti-cas e intervenes sociais em nosso pas, o conceito de desfiliao prope perceber os processos e sobretudo as causas dos graves problemas sociais que afetam as populaes em situaes de desvantagens sociais crnicas.

    A discusso conceitual da excluso social promovida por Robert Castel (1998) tambm analisada por Henrique Nardi (2002), que a amplia, abor-dando criticamente a mxima da incluso, em sua relao com a excluso. Para ele, excluso uma resposta preguiosa s dificuldades de problematizao e anlise dos processos sociais contemporneos, que expem vulnerabilidade uma grande parcela da populao.

    Podemos pensar com Castel e afirmar que o termo excluso no apro-

    priado, pois indivduos excludos no esto fora da sociedade, eles fazem

    parte da sociedade numa posio de regulao que permite a manuteno

    de uma determinada forma de dominao. Podemos tambm pensar que o

    termo incluso tampouco faz sentido se formos coerentes com este racio-

    cnio, uma vez que no se trata de incluir no sistema que exclui mas sim

    de transformar a estrutura e a dinmica sociais, portanto, no se discute a

    incluso mas sim a transformao. (NARDI, 2002, p. 5)

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    As anlises desses autores evidenciam inconsistncias tericas e polticas presentes na formulao dos sentidos atribudos aos termos excluso e incluso social. Seguindo essas argumentaes, se os indivduos excludos compem a so-ciedade, mesmo que na condio de regulao da manuteno de uma determi-nada forma de dominao, no possvel consider-los como estando fora da sociedade. A proposta formulada por Nardi (2002) escapar da falsa lgica da incluso numa sociedade excludente, apontando na direo de transformaes estruturais da sociedade. Essa pode ser uma linha de fuga terica e poltica neces-sria para compreendermos as dinmicas contemporneas e assim intervirmos de forma coerente e profunda na realidade social.

    excLuSo DigitAL

    Trazendo tais discusses para o contexto das polticas e aes do que se con-vencionou denominar por incluso digital, poderemos identificar a presena da mesma lgica dualista e funcionalista herdadas das formulaes relacionadas s noes de excluso e incluso social. A abordagem das questes relacionadas s desigualdades quanto ao acesso e uso das TIC parece seguir o mesmo caminho reducionista que relaciona a excluso social diretamente a uma nova forma de excluso, agora denominada digital.

    No documento oficial da poltica de cincia, inovao e tecnologia do Go-verno do Estado da Bahia, publicado pela Secretaria de Cincia, Tecnologia e Inovao (SECTI), em 2004, encontramos a associao entre excluso social e digital de forma bastante clara: Os elevados ndices de pobreza e desigualdade indicam que uma parte significativa da populao na Bahia no tem condies de acessar as tecnologias [...] Na verdade a excluso digital e a excluso social so fenmenos estreitamente associados. (BAHIA, 2004)

    Marie Anne Macadar e Nicolau Reinhard (2002, p.1) afirmam, por exem-plo, que no h dvida que a excluso digital aprofunda a excluso scio-eco-nmica. Srgio Amadeu da Silveira (2001, p. 18) refora essa abordagem expli-cando que a excluso digital impede que se reduza a excluso social, uma vez que as principais atividades econmicas, governamentais e boa parte da produo cultural da sociedade vo migrando para a rede".

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    Apesar de outros autores, como Edson Iizuka (2003), questionarem tais associaes, argumentando que ainda no temos pesquisas e estudos que as com-provem, o discurso em torno do termo excluso digital o principal argumento em favor da necessidade de se realizar uma ampla incluso dos indivduos na sociedade contempornea, a partir da universalizao do uso das tecnologias de base digital, e para justificar polticas e aes denominadas de incluso digital. Uma das principais constataes dos defensores da existncia da excluso digital relaciona-se com as dificuldades de acesso s TIC pelas parcelas da sociedade que j esto situadas margem das possibilidades de acesso aos demais bens de con-sumo. Silveira (2003, p. 29), por exemplo, afirma que o mercado no ir incluir na era da informao os extratos pobres e desprovidos de dinheiro.

    Portanto, compreender os sentidos e intenes que se articulam em torno do argumento excluso digital torna-se fundamental para que possamos aprofundar as discusses sobre o tema da incluso digital. O termo excluso digital tem ori-gem no final da dcada de 1980, a partir da introduo da informtica nos am-bientes de trabalho, e ganha fora na dcada de 1990, com a chegada da internet, o que provoca uma reestruturao nas instituies e nas relaes socioeconmi-cas. Apesar da origem datada, a noo de excluso digital to problemtica e inconsistente teoricamente como a de excluso social. Sawaia (1999) entende que a excluso digital uma noo ambgua e complexa, sendo construda a partir de um processo dialtico de incluso e excluso, semelhana da excluso social.

    Face a essa fragilidade, o que se destaca nos discursos a quantificao da excluso digital atravs de indicadores e estatsticas. A nfase nos aspectos quan-titativos, na viso de alguns autores, torna-se insuficiente para se aproximar dos componentes culturais, polticos e econmicos relacionados. Para Iizuka (2003, p. 55), h um foco demasiado no fato em si e pouca ateno ao processo e a dinmica que excluiu as pessoas e as organizaes no acesso e uso das novas tecnologias.

    Evidncias dessa abordagem puderam ser percebidas pela apropriao que a Secretaria de Cincia, Tecnologia e Inovao do Estado da Bahia, em 2004, fez dos dados divulgados pela Fundao Getlio Vargas, no Mapa da Excluso Digital (NERI, 2003). A pesquisa evidenciava que as taxas de acesso inter-net, no estado da Bahia, encontravam-se abaixo da mdia nacional, 8,31% da populao, e que o municpio mais excludo do pas era Amrica Dourado, na Bahia. Esses dados serviram de argumento e justificativa para a proposio

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    do Programa Identidade Digital,2 o qual buscava, atravs do uso das tecnolo-gias digitais, possibilitar o desenvolvimento humano e social nas mais distintas reas. (SECTI, 2004)

    Como os nmeros divulgados em pesquisas sobre o acesso s tecnologias so bastante impactantes, a expresso excluso digital aceita, em geral, como argumento central das polticas pblicas, as quais se caracterizam pela disponibi-lizao de espaos pblicos de acesso s tecnologias digitais e realizao de cursos e oficinas de introduo informtica. Promover uma iniciao dos sujeitos no uso das tecnologias no deixa de ser uma ao social vlida. No entanto, o que se discute o quanto tais abordagens contribuem para que os sujeitos se articulem ativamente nessas novas dinmicas sociais, atravs das tecnologias, para gerar as transformaes necessrias s suas demandas sociais, econmicas, culturais e po-lticas. Numa anlise poltica das questes relacionadas utilizao das TIC por grupos sociais menos favorecidos, Mark Warschauer (2006, p. 23) argumenta que o objetivo da utilizao da TIC com grupos marginalizados no a supera-o da excluso digital, mas a promoo de um processo de incluso social. Para realizar isso necessrio focalizar a transformao e no a tecnologia. Embora o referido autor adote em sua anlise o dualismo excluso/incluso, j criticado anteriormente, refuta a noo largamente aceita de excluso digital fundamen-tada na diviso binria entre os que acessam e os que no acessam as TIC. Essa formulao, segundo ele, insatisfatria para a promoo do desenvolvimento social. Defende, portanto, uma perspectiva social transformadora, propondo con-siderar os complexos aspectos sociais relacionados s questes das desigualdades no uso das TIC.

    A estrutura referente excluso digital proporciona um esquema insa-

    tisfatrio em relao utilizao da tecnologia para a promoo do de-

    senvolvimento social, pois enfatiza em excesso a importncia da presena

    fsica dos computadores e da conectividade, excluindo outros fatores que

    permitem o uso da TIC pelas pessoas para finalidades significativas [...] no existe diviso binria e fator nico predominante para a determinao

    da excluso digital. A TIC no existe como varivel externa, a ser introdu-

    2 Em 2007, com a mudana do governo do Estado da Bahia, o Programa Identidade Digital passou a denominar-se Pro-grama de Incluso Scio-Digital do Estado da Bahia - http://www.cidadaniadigital.ba.gov.br/

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    zida a partir do exterior, para provocar certas consequncias. Ao contrrio,

    est entrelaada de maneira complexa nos sistemas e nos processos sociais.

    (WARSCHAUER, 2006, p. 23)

    Portanto, podemos considerar que a consistncia terica e pertinncia prti-ca da inveno excluso digital faz parte da mesma dinmica de construo da noo de excluso social. Outras inconsistncias emergem quando relacionamos excluso digital com a noo de desfiliao proposta por Castel (1998). Para o autor, desfiliao refere-se perda dos suportes sociais que garantem o exerccio de direitos iguais em uma sociedade democrtica e o desengajamento material e simblico dos indivduos no lao social. So menos excludos do que abandona-dos, como se estivessem encalhados na margem, depois que a corrente das trocas produtivas se desviou deles. (1998, p. 32) Considerando tais pressupostos, os contingentes populacionais que nunca tiveram acesso s dinmicas sociais basea-das no uso das TIC no poderiam ser considerados excludos digitais, pois ainda no tiveram reconhecido o direito de acesso s mesmas; esto esquecidos, mar-gem dos processos de insero dessas tecnologias na sociedade.

    No entanto, a comunicao um direito humano bsico e, na sociedade contempornea, ela se efetiva atravs das tecnologias de informao e comuni-cao. Logo, o direito ao acesso s TIC e a liberdade de expresso e interao em rede passam, efetivamente, a compor o contexto da constituio da cidadania contempornea.

    incLuSo DigitAL

    Pelo que j foi discutido a respeito dos termos excluso e incluso social, ex-cluso digital, e considerando a denominada incluso digital como uma positiva-o da excluso digital, tal noo carrega tambm na sua origem inconsistncias, incongruncias, ambivalncias e ambiguidades.

    O termo incluso digital tem sido frequentemente utilizado, em especial pelas organizaes internacionais e pelo setor pblico, para compor um jargo apelativo nas abordagens polticas de carter geral e populista. Uma espcie de nova e mirabolante soluo para quase todos os entraves da sociedade contem-pornea: pobreza, desigualdade social, carncias educacionais, injustia social,

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    desemprego, violncia, criminalidade, entre outros. A definio de incluso digi-tal adotada pelo Programa Identidade Digital do Estado da Bahia, e mantida no atual Programa de Incluso Scio-Digital (2004), por exemplo, associa o termo aos seguintes significados:

    Possibilitar a apropriao da tecnologia e o desenvolvimento das pessoas

    nos mais diferentes aspectos; Estimular a gerao de emprego e renda; Pro-

    mover a melhoria da qualidade de vida das famlias; Proporcionar maior

    liberdade social; Incentivar a construo e manuteno de uma sociedade

    ativa, culta e empreendedora.

    A apropriao da tecnologia presente nessa formulao, e em muitas outras iniciativas de incluso digital, precisa ser compreendida. Analisando o sentido do termo, tal proposio significa afirmar que as pessoas das comunidades que frequentam os telecentros/infocentros estariam apoderando-se das tecnologias digitais, tornando-as prprias a eles. O verbo apropriar, de acordo com os signi-ficados atribudos pelo Dicionrio da Lngua Portuguesa Larousse Cultural, significa tornar prprio, adaptar, adequar, acomodar, atribuir, apoderar-se de algo.

    Para tanto, as pessoas das comunidades precisariam atuar com autonomia e independncia, o que no tem sido muito observado em tais realidades. Os mo-dos de gesto desses espaos revelam-se, em geral, contrrios a tal perspectiva, centralizando e impondo regras e normas de utilizao das tecnologias. Com isso, submetem os sujeitos a um uso passivo e limitado dos recursos das TIC, vincula-dos a uma obedincia s diretrizes impostas pelos projetos.

    Registros e declaraes que afirmam que as aes ditas de incluso digi-tal estimulam a gerao de emprego e renda, diante dos complexos problemas estruturais associados ao desemprego, so, no mnimo, simplistas e reducionis-tas. A principal justificativa relacionada a essa questo, formulada por gestores e monitores de telecentros/infocentros, e defendidas s vezes com veemncia pela maioria dos jovens que frequentam esses espaos, que as habilidades compro-vadas ou certificadas no uso dos aplicativos bsicos, exigidas pelo mercado de trabalho, melhoram as chances de conseguir emprego. Parece bvio, mas no se pode deixar de constatar que cada vez mais o mercado de trabalho est satura-do, que os entraves econmicos e produtivos esto inseridos no contexto, que as

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    exigncias de qualificao profissional so cada vez mais ampliadas e associadas ao nvel educacional dos sujeitos, e que a habilidade com as tecnologias digitais, que evoluem de forma vertiginosa, embora seja imprescindvel, apenas um dos requisitos exigidos.

    Existem outros significados associados ao termo incluso digital nos diversos projetos e programas pblicos, privados ou do terceiro setor. Alguns at so con-traditrios entre si. Em geral, existem variados focos, interpretaes e intenes que configuram uma realidade nebulosa, carregada de inconsistncias e ambi-guidades. Andr Lemos (2003) prope questionar os pressupostos, largamente aceitos, denominando-os de dogmas da incluso digital. Prope a discusso sobre o que se entende por Sociedade da Informao, incluso e excluso. Para o au-tor, incluir um dogma e reflete a ausncia de discusso, significando, na maioria dos casos, oferecer condies materiais de acesso s tecnologias, sem envolver processos cognitivos questionadores. Parte-se do princpio que assim a sociedade deve ser includa era da informao.

    O que ser essa Sociedade da Informao? Quem ser esse indivduo inclu-

    do? E o que ele far em posse dessas novas ferramentas? Pouco importa.

    Faz-se assim a felicidade de empresas, ONGs e tecnoutpicos que vo nos

    vender, sob essa ideologia, mais e mais brinquedinhos tecnolgicos. (LE-

    MOS, 2003, p. 1)

    Portanto, no se trata apenas de uma discusso terminolgica ou semn-tica sobre o termo incluso digital, mas sim de uma leitura social, associada s anlises dos interfaceamentos polticos entre os atores envolvidos, apreendendo seus sentidos de forma crtica e construtiva. Cabe analisar at que ponto aes de incluso digital potencializam interaes e possibilidades dos prprios sujeitos se engajarem nas atuais dinmicas sociotcnicas de forma ativa, participativa, propositiva e construtora de novas realidades sociais. J propusemos alguns ca-minhos possveis para escapar de uma lgica inclusiva ligada perspectiva eco-nomicista de que estar includo significa ser consumidor. Buscamos sempre a perspectiva de oportunizar condies para que os sujeitos sejam capazes de parti-cipar, questionar, produzir, decidir, transformar, tornando-se parte integrante da dinmica social, em todas as suas instncias. (BONILLA, 2005, p. 43)

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    Nelson Pretto (2001), ao referir-se s polticas pblicas para a incluso di-gital, defende iniciativas que realizem a incluso de cidados, no como meros consumidores, seja de produtos ou de informaes, mas como sujeitos plenos que participam do mundo contemporneo enquanto seres ticos, autnomos e com poder de deciso. Seria, portanto, necessrio avaliar se a realizao de cursos bsicos de informtica para a populao de baixa renda, ao em geral bastante comum entre os diversos projetos de incluso digital que proliferam no pas, es-tariam contribuindo de alguma forma com a formao de sujeitos autnomos e participativos.

    A discusso dos significados, sentidos, concepes, aes e formulaes pol-ticas da incluso digital traz diversas outras questes abordadas ainda superficial-mente e de forma incipiente (quando so abordadas!), tanto nos discursos quanto nos resultados obtidos em projetos e programas relacionados. Por exemplo, o modelo padro de disseminao dos centros pblicos de acesso s tecnologias digitais (telecentros ou infocentros) parece ser a principal estratgia para realizar a incluso digital, especialmente em pases como o Brasil, onde a maior parte da populao no dispe de recursos para a aquisio privada da tecnologia. Pa-recem ser aes significativas que mobilizam grandes investimentos e esforos, provocam movimentos e fluxos, mas os resultados e as consequncias ainda so pouco avaliadas, em especial quanto aos seus aspectos qualitativos, sociais e po-lticos. Sabemos, pela pesquisa TIC domiclios e usurios 2009 (CGI.br, 2010), que apenas 4% dos usurios de internet no Brasil utilizam os centros pblicos de acesso gratuito, enquanto 45% dos internautas utilizam os centros pblicos de acesso pago. Por que razo os centros pagos so muito mais procurados que os gratuitos? Seria pela maior liberdade de ao oferecida nos centros pagos e o excesso de controle nos centros gratuitos?

    Percebe-se em tais questionamentos a necessidade de refletirmos sobre o curso das polticas e aes que se intitulam de incluso digital. Alm das ambi-guidades e lacunas apontadas no nvel das concepes, podemos perceb-las tam-bm nos modos de gesto e operacionalizao dos projetos, os quais so definidos pelas concepes dos sujeitos envolvidos, uma vez que organizamos o mundo nossa volta de acordo com nossos valores, ideias e crenas.

    Atuar sobre essas problemticas o que temos feito na Faculdade de Educa-o da Universidade Federal da Bahia, atravs do Grupo de Pesquisa Educao,

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    Comunicao e Tecnologias, ao propor e desencadear dinmicas horizontais nos processos de formao de professores e de constituio da cultura digital, tendo a rede como dimenso estruturante de todos os processos. Em rede, e atravs de rede tecnolgicas, desencadeamos a constituio de comunidades de conheci-mento, ou seja, comunidades de interao, de aprendizagem e de produo co-laborativa do conhecimento, espaos em que as dinmicas fluem de dentro para fora, com a participao ativa e propositiva dos sujeitos envolvidos, sem imposi-es ou limites pr-estabelecidos. O coletivo criado exatamente na diversidade de opinies, onde se aprende a convivncia com a diferena a partir de uma tica do discurso sustentada na argumentao. (BONILLA; PRETTO, 2007, p. 83) Em nossas proposies, destacamos a nfase na infraestrutura para a conectivi-dade como condio necessria, mas no suficiente para a construo da cultura digital e a produo de conhecimentos requeridos pelas comunidades; ou seja, no bastam conexo e oferecimento de cursos de iniciao em informtica para a promoo da incluso digital.3

    Gilson Schwartz (2006, p. 2) tambm procura avanar propondo o con-ceito de emancipao digital como forma de potencializar os resultados obtidos pelos projetos tradicionais de incluso digital ou mesmo para redesenh-los. A crtica de Schwartz s polticas pblicas direcionadas incluso digital, im-plantadas pelo governo federal, revela os diversos equvocos conceituais e polti-cos que caracterizam as aes realizadas pelo poder pblico nessa rea. A eman-cipao digital, proposta pelo autor, objetiva organizar a produo e a demanda por bens e servios produzidos digitalmente pelas comunidades atendidas por programas de incluso digital. (SHWARTZ, 2006, p. 2)

    As perspectivas emancipatrias, como propostas por Gilson Shwartz (2006) e por Maria Helena Bonilla e Nelson Pretto (2007) buscam mudar o foco das polticas e aes, enfatizando a produo de contedo digital articulada com as culturas tradicional e digital, superando a dependncia das comunidades e es-timulando-as tomada de decises. Tal abordagem enfatiza a importncia da articulao das aes de incluso digital com as questes educacionais e culturais, e com a promoo da participao poltica do cidado, atravs das TIC.

    3 Trataremos desse tema no artigo Diretrizes metodolgicas utilizadas em aes de incluso digital disponvel no captulo 4 deste livro.

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    Em geral, observa-se que as questes culturais e educacionais esto presen-tes quando se discute incluso digital. No entanto, estas so questes tambm quase sempre abordadas de forma insuficiente.

    Um excludo digital tem trs grandes formas de ser excludo. Primeiro,

    no tem acesso rede de computadores. Segundo, tem acesso ao sistema

    de comunicao, mas com uma capacidade tcnica muito baixa. Terceiro,

    (para mim a mais importante forma de ser excludo e da que menos se

    fala) estar conectado rede e no saber qual o acesso usar, qual a informa-

    o buscar, como combinar uma informao com outra e como a utilizar

    para a vida. Esta a mais grave porque amplia, aprofunda a excluso mais

    sria de toda a Histria; a excluso da educao e da cultura porque o

    mundo digital se incrementa extraordinariamente. (CASTELLS, 2005)

    Como podemos perceber, a preocupao de Manuel Castells com a cul-tura e com a educao. Embora ainda no estando presente em sua discusso a perspectiva da produo de contedos, de autoria e co-autoria dos sujeitos no mundo digital, dimenso que efetivamente poderia ser significativa educacional e culturalmente para as comunidades, aponta para a necessidade de ir alm da perspectiva tcnica e do mero acesso. Marcos Palacios (2005, p. 2) tambm cri-tica as iniciativas de incluso digital que pouco abordam os aspetos educacionais e culturais, destacando as imbricaes entre alfabetizao, cultura hegemnica e incluso digital.

    Como estamos em uma sociedade de excluses, de extremas polarizaes,

    essa populao que excluda digitalmente, tambm excluda educacio-

    nalmente, e culturalmente. At no sentido da cultura que podemos cha-

    mar de hegemnica, das elites, ou escolar e acadmica [...] Ento, se voc d acesso a uma pessoa e ela semi-alfabetizada, tem grande dificuldade

    de leitura, no tem uma bagagem importante em termos de cultura oci-

    dental dessa cultura que move o capitalismo, essa pessoa vai fazer muito

    pouco tendo acesso a um computador.

    Palacios (2005), e outros que entendem ser a alfabetizao um pr-requisito para o uso das TIC, nos leva a refletir sobre a necessidade, ou no, de se estar

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    alfabetizado para interagir nos ambientes digitais. Evidentemente, quanto mais inserido nas dinmicas contemporneas, dentre elas os processos educativos, com mais rapidez os sujeitos se familiarizam e compreendem os processos digitais. No entanto, entendemos que hoje, com a convergncia de mdias, possvel que uma pessoa semialfabetizada possa produzir, interagir, desencadear dinmicas de produo de contedos nas mais diversas linguagens, inclusive potencializando seus processos de alfabetizao, em todas essas linguagens. A grande dificuldade se apresenta, na maioria dos casos, entre aqueles que se constituram numa cul-tura estritamente analgica, alfabetizados ou no, por no compreenderem, pelo menos no de imediato, a lgica digital. Alguns, frente ao desconhecido, a um ambiente inexistente em sua cultura de origem, podem sentir estranhamento e medo, necessitando de um longo processo de familiarizao e compreenso do contexto, ou seja, de um processo formativo para sentir-se confortvel nos am-bientes e na cultura digitais. Consideramos que existem diversas possibilidades em jogo na construo dinmica da cultura na contemporaneidade, e no um caminho nico.

    No entanto, observamos com frequncia, e outras pesquisas tambm apon-tam nessa direo (OLIVEIRA, 2007; BUZATO, 2007), que a articulao entre os projetos de incluso digital e a educao resume-se realizao de atividades escolares (pesquisas!) nos infocentros/telecentros. Isso parece ser uma possibili-dade bastante til aos estudantes. No entanto, continua a perspectiva do con-sumo de informaes e no se verificam articulaes entre as atividades realiza-das nesses espaos e as dinmicas pedaggicas desencadeadas nas escolas que esses jovens frequentam. Tambm, essa articulao no est proposta, prevista, ou estimulada pelas polticas pblicas. Na verdade, as prprias escolas pblicas enfrentam grandes dificuldades de ordem estrutural, pedaggica e tecnolgica. Poucos alunos tm acesso aos computadores em suas escolas e mais reduzido ainda o nmero de professores que propem atividades, de aprendizagem ou culturais, articuladas diretamente com as tecnologias da informao e comunica-o. Quando isto acontece, as TIC so utilizadas numa perspectiva instrumental, com cursinhos bsicos em torno de algum software, ou para fazer uma pesquisa na internet, que em nada muda as dinmicas j institudas pela escola e que h muito vm sendo criticadas.

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    necessrio perceber que os espaos tecnolgicos, nas escolas, configu-ram centros pblicos de acesso s TIC e, portanto, de constituio da cultura digital, alm da possibilidade de se constiturem efetivamente em espaos pe-daggicos com as tecnologias disponveis para a mobilizao das aprendizagens dos alunos. Ou seja, deveramos considerar tais espaos servindo a vrios pro-psitos, uma vez que se considera importante o imbricamento da escola com a vida, com a comunidade, com o trabalho, com a cultura, e uma vez que se constitui a escola em espao de insero dos jovens na cultura de seu tempo e o tempo contemporneo est marcado pelos processos digitais. (BONILLA, 2009, p. 186)

    Nos ltimos anos, os projetos governamentais para insero das TIC nas escolas vm trazendo como um dos objetivos principais a promoo da incluso digital, como o caso do Programa Um computador por aluno (UCA) e do Programa Nacional de Tecnologia Educacional (Proinfo). No entanto, segundo relatrio do Conselho de Altos Estudos e Avaliao Tecnolgica da Cmara dos Deputados (2008, p. 52), a

    incluso digital ora aparece como objetivo principal de programas de disse-

    minao das TICs nas escolas, ora como um subproduto da fluncia que as

    crianas ganham ao usar computador e Internet. A meta a qualidade do

    processo de ensino-aprendizagem, sendo o letramento digital decorrncia

    natural da utilizao frequente dessas tecnologias.

    Portanto, a cultura digital no est sendo considerada como parte integran-te dos processos pedaggicos e das aprendizagens dos alunos. Continua a desar-ticulao entre escola e sociedade e a supervalorizao da perspectiva conteudista da escola. (BONILLA, 2009, p. 186) Para os gestores pblicos, educao est em um plano de abordagem, e incluso digital em outro, totalmente diferente, inclusive com responsabilizao de secretarias e ministrios especficos, sem ar-ticulao entre eles. Da decorre, inclusive, a falta de poltica pblica para a in-cluso digital dos professores. Os cursos de formao de professores, na maioria das vezes, esto centrados no uso pedaggico dos computadores e da internet, um uso voltado quase exclusivamente para o trato das disciplinas e contedos

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    escolares, desconsiderando todos os processos de imerso e familiarizao desses professores nos ambientes e na cultura digitais.

    De acordo com Warschauer (2006, p. 21), para proporcionar o acesso sig-nificativo as novas tecnologias, o contedo, a lngua, o letramento, a educao e as estruturas comunitrias e institucionais devem todos ser levados em consi-derao. No entanto, observa-se que essa perspectiva parece estar ainda muito distante das atuais formulaes polticas e aes sociais direcionadas suposta ampliao do acesso s TIC pelas parcelas populacionais desfavorecidas.

    Como as grandes carncias sociais e educacionais concentram-se justamente nas parcelas populacionais mais pobres, o foco dos programas de incluso digital , ento, combater a pobreza de modo sustentvel. Combater a pobreza ento se constitui como um dos argumentos centrais na formulao das polticas pblicas, muitas delas de cunho assistencialista apenas, e passa a ser outra questo aborda-da ainda superficialmente nos estudos e aes de incluso digital.

    Para Simon Schwartzman (2004), as situaes de pobreza compem um conjunto complexo, que no possui causa ou tratamento simples. Segundo o au-tor, os estudos em torno do tema tm permitido entender as estratgias de sobre-vivncia dos pobres, a forma como os recursos pblicos e privados destinados soluo dos problemas da pobreza chegam efetivamente aos setores interessados, e as dificuldades de adoo de polticas pblicas que poderiam mudar as con-dies de vida dessas populaes, mas que muitas vezes no conseguem obter os resultados esperados, ou tem resultados negativos, mesmo quando existem recursos disponveis (2004, p. 97). E isso acontece porque faz parte do modelo econmico capitalista a gerao e manuteno da pobreza, e as polticas pblicas, com enfoque compensatrio, buscam apenas manter o equilbrio entre as foras em tenso, sem resolver efetivamente as questes sociais, e nem oferecendo os instrumentos formao, canais de comunicao necessrios aos sujeitos para buscarem a articulao e a reivindicao de seus direitos.

    Enquanto o filho do rico acessa todos os recursos disponveis em rede, a partir de casa, com equipamentos de udio e vdeo de ltima gerao, os filhos dos pobres acessam a partir da escola ou dos centros pblicos, onde as proibi-es so muito mais destacadas que as possibilidades de comunicao, acesso s informaes e produo oferecidas pelas redes. Portanto, concordamos com Pedro Demo (1998, p. 5), ao dizer que a pobreza uma questo poltica, ou seja,

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    o maior problema das populaes pobres no propriamente a fome, mas a falta de cidadania que os impede de se tornarem sujeitos de histria prpria, inclusive de ver que a fome imposta.

    E justamente o discurso da cidadania outro argumento forte sobre o qual as polticas pblicas de incluso digital se fundamentam, como foi evidenciado pelo Programa de Incluso Digital do Estado da Bahia:

    na chamada era do conhecimento, incluso digital uma questo bsica

    de cidadania; [...] as novas tecnologias da informao e comunicao so meios para promover a melhoria da qualidade de vida, garantir maior li-

    berdade social e possibilitar o exerccio de uma cidadania ativa e empreen-

    dedora. (SECTI, 2004, p. 87)

    O argumento cidadania passa a ser a justificativa para as aes polticas. E qual conceito de cidadania utilizado: qualidade de vida, liberdade social, em-preendedorismo? Diversos autores, entre os quais Celso Lafer (1988), Darcsio Corra (2002), Miguel Arroyo (2001), tm discutido e enfocado cidadania como conceito dinmico, que evolui segundo os diferentes contextos histricos. Arroyo (2001, p. 43), ao realizar uma anlise histrica do conceito na sociedade brasi-leira, assinala que precisamos redefinir a concepo de cidadania, recolocando as questes da cidadania em outros termos: a cidadania dos direitos sociais, dos direitos humanos, dos direitos bsicos do ser humano.

    Essa perspectiva de cidadania est associada efetividade dos direitos sociais e humanos atravs da construo participativa e dinmica do espao pblico. E espao pblico, segundo Lafer (1988, p. 219), no territrio, na acepo geogrfica de localizaes e delimitaes, mas antes de mais nada um concei-to jurdico e poltico [...] resulta da ao dos seus membros. Portanto, espao pblico condio essencial para a construo da cidadania e a efetivao dos direitos. Hannah Arendt (1988, p. 22) afirma que o processo de assero dos direitos humanos, enquanto inveno para a convivncia coletiva, exige um espa-o pblico, a que s se tem acesso por meio da cidadania. Tambm para Corra (2002, p. 221) o processo poltico de construo da cidadania tem por objetivo fundamental oportunizar o acesso igualitrio ao espao pblico como condio de existncia e sobrevivncia dos homens enquanto integrantes de uma comunidade

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    poltica. Com base nesses autores, portanto, a cidadania pode ser compreendida enquanto processo poltico construtivo e constitutivo da efetivao dos direitos sociais e humanos.

    A compreenso e vivncia do espao pblico compreendido como espao da reivindicao, construo e efetivao dos direitos humanos, como defendem Corra (2002) e Berwig (1997), ou como espaos de todos e no espaos do go-verno, como defendem Toro e Wernerck (1996, p. 16), torna-se, portanto, con-dio fundamental para o exerccio da cidadania. E o acesso igualitrio ao espao pblico, na abordagem de Corra (2002), vai alm da superao da pobreza e da desigualdade social atravs de medidas polticas compensatrias, como as obser-vadas em muitas formulaes polticas e projetos de incluso digital. Representa direitos humanos legitimados institucionalmente pelo Estado capitalista.

    Considerando que, atravs das TIC, diversos espaos e recursos informa-cionais e comunicacionais de base digital tm se consolidado nos ltimos anos, compondo um espao de comunicao dinmico e em constante expanso o ciberespao4 atravs do qual fluem processos sociais, econmicos, polticos, culturais e subjetivos, e considerando que o direito informao e comunicao compem os direitos humanos fundamentais, e que a cidadania se efetiva atravs da convivncia coletiva no espao pblico, pode-se admitir, ento, que o ciberes-pao tambm compe o espao pblico contemporneo e que o acesso aos meios comunicacionais constitudos pelas TIC compem o rol dos direitos humanos na sociedade contempornea.

    Dessa forma, podemos considerar que o acesso igualitrio s TIC e o uso pleno destas ultrapassa e amplia as propostas de incluso digital fundamenta-das predominantemente na superao da pobreza ou das desigualdades sociais. O uso pleno das TIC compe os direitos humanos, a cidadania e a dinmica de gerao de novos direitos, faz parte das condies contemporneas de auto--organizao, colaborao e dos processos horizontais que estruturam as bases para a constituio de uma nova organizao social.

    Essa tarefa social requer abordagens polticas transformadoras, articuladas e focadas em suas mltiplas dimenses. Pode-se admitir que a garantia e efetivao dos direitos humanos e as transformaes sociais a elas associadas se encontram

    4 Na acepo de Levy (1999, p. 17) o ciberespao [...] o novo meio de comunicao que surge da interconexo mundial dos computadores.

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    embrionariamente no cerne da construo da cidadania demandada pela con-temporaneidade.

    Esses novos exerccios e novas formas de cidadania, voltadas para a trans-

    formao da realidade social existente, devem configurar uma prtica de

    libertao humana que permita ao ser humano reconhecer-se como sujeito

    de direitos, participante da sociedade. (BERWIG, 1997, p. 10)

    Portanto, apesar do termo incluso digital possuir um amplo poder de comunicao, insuficiente para explicitar as potencialidades das TIC para a organizao dos sujeitos em torno de seus objetivos e para a transformao social. No entanto, na falta de um termo que melhor expresse as potencialidades das TIC e que tenha fora comunicacional, continuamos utilizando o popularizado incluso digital, sem deixar de explicitar suas ambiguidades, contradies e implicaes.

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  • s 49 s

    Srgio Amadeu da Silveira

    pArA ALm DA incLuSo DigitAL: poDer comunicAcionAL e novAS ASSimetriAS

    A emergncia da sociedade da informao recolocou o debate sobre o poten-cial das tecnologias para ampliar o desenvolvimento, reduzir os nveis de pobreza, aumentar a liberdade dos indivduos e aprimorar a democracia. Tecnofbicos, logo, buscaram mostrar o outro lado do processo, argumentando que as redes poderiam isolar as pessoas, esvaziar aes coletivas e