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PalavrasChave: Globalização; Ensino de Português; Estrangeirismos; Leitura; Escrita. O objetivo desta comunicação é apontar as implicações que o processo de globalização expressions borrowed from foreign languages. This false tension has to be undone by the very common lexical phenomenon, which has been intensified with the growth of contacts lei que está sendo discutido hoje no Brasil e que proíbe o uso de palavras estrangeiras em
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Implicações da Globalização para o Ensino de Português
Implications of globalization for the teaching of Portuguese
Luciano Amaral Oliveira
Universidade Estadual de Feira de Santana - Brasil
Resumo
O objetivo desta comunicação é apontar as implicações que o processo de globalização
acarreta para o ensino de português. Inicialmente, aborda-se a relação entre estrangeirismos e
identidade nacional, a qual se tornou falaciosamente tensa a partir de um controverso projeto de
lei que está sendo discutido hoje no Brasil e que proíbe o uso de palavras estrangeiras em
estabelecimentos comerciais. Essa falsa tensão precisa ser desfeita pelo professor de português
para ajudar seus alunos a entenderem um fenômeno lexical tão comum quanto o estrangeirismo,
intensificado com os contatos mais estreitos entre os países. Em seguida, as implicações da
globalização para o ensino de leitura e de escrita são reveladas, destacando-se a necessidade de
se adotar uma visão pragmática de língua para melhor ajudar os estudantes a desenvolverem a
sua competência de leitura e de escrita.
Palavras-Chave: Globalização; Ensino de Português; Estrangeirismos; Leitura; Escrita.
Abstract
This text aims at revealing the implications the process of globalization brings to the
teaching of Portuguese. Initially it deals with the relationship between the use of foreign words
and national identity. This relationship has become fallaciously tense because of a controversial
law bill which is discussed in Brazil today and which prohibits companies to use words and
expressions borrowed from foreign languages. This false tension has to be undone by the
Portuguese teacher in order to help his/her students to understand the use of foreign words, a
very common lexical phenomenon, which has been intensified with the growth of contacts
between nations. After that, the implications of globalization to the teaching of reading and of
writing are revealed, highlighting the need of adopting a pragmatic view of language to help
students develop their reading and writing competences.
Keywords: Globalization; Teaching of Portuguese; Use of Foreign Words; Reading; Writing.
Considerações Iniciais
Globalização é uma das palavras mais pronunciadas e escritas nestes primeiros anos
do século XXI. Tal freqüência de ocorrência se deve às importantes implicações que o
processo de globalização tem para o delineamento do mundo contemporâneo em
diversos aspectos, e.g. tecnológico, social, cultural, econômico, político e lingüístico.
O geógrafo Milton Santos (2001) nos lembra que a história se desenvolve
concomitantemente ao desenvolvimento das técnicas. Após a invenção da roda há cerca
de 6000 anos, as técnicas humanas impulsionaram a nossa história de maneira
irreversível: Gutenberg criou a prensa de tipos móveis por volta de 1450, abrindo o
caminho para a produção em massa de livros, jornais e revistas; a máquina a vapor,
inventada por Thomas Newcomen em 1705, e o tear mecânico, criado por Edward
Cartwright em 1785, possibilitaram o advento da revolução industrial, transformando
definitivamente a economia do mundo; o avião a jato e o computador contribuíram para
que o contato entre diversas culturas se intensificasse de maneira extraordinária. Não é
por acaso que Santos (2001, p. 25) afirma que, em nossa época, “o que é representativo
do sistema de técnicas atuais é a chegada da técnica da informação, por meio da
cibernética, da informática, da eletrônica”.
É por essa razão que se fala hoje da globalização como se a ela se atribuísse uma
onipresença quase mítica. Se há um problema na economia norte-americana, efeitos são
imediatamente sentidos nas bolsas de valores na Europa e na América Latina. Se um
terremoto ou um ciclone ocorre em um país da Oceania, isso é divulgado em tempo real
para a África e para a Ásia.
As informações circulam a uma velocidade muito alta. Entretanto, essa circulação
não se dá de forma democrática e neutra. O atual momento histórico é marcado pelo
papel despótico da informação, controlada por alguns Estados e por algumas empresas,
como lembra Santos (2001, p. 39):
Estamos diante de um novo ‘encantamento do mundo’, no qual o discurso e a
retórica são o princípio e o fim. Esse imperativo e essa onipresença da informação são
insidiosos, já que a informação atual tem dois rostos, um pelo qual ela busca instruir, e
um outro, pelo qual ela busca convencer.
Ora, se há algo estreitamente vinculado à informação, esse algo é a linguagem.
Obviamente, ela deve ser considerada em todas as suas formas: a linguagem de
máquina, as artes plásticas, as artes cênicas a língua falada e a língua escrita. Contudo, é
principalmente através dessas duas últimas que Estados e grandes empresas, por meio
dos políticos e das instituições representativas dos interesses das classes dominantes,
constroem seus discursos com a intenção de influenciar as pessoas a quem se dirigem.
Dada essa importância da língua escrita e da língua falada, este texto visa a
contribuir para a discussão acerca das implicações que a globalização tem para o ensino
do português. O assunto tratado aqui se insere no eixo temático “Educação e formação
de jovens e adultos”, dentro do quadro mais amplo proposto como tema geral da
conferência “Educando o cidadão global – globalização, educação e novos métodos de
governação”, organizada pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
Subjaz às considerações tecidas neste artigo o conceito interacional de língua,
segundo o qual uma língua não é vista como um mero conjunto de estruturas
gramaticais, mas como um instrumento de interação social. Concebida dessa forma, a
língua é usada no estabelecimento de encontros, no dizer de Oswald Ducrot (1977), nos
quais as pessoas passam a desempenhar papéis socialmente demarcados. Seguindo esse
conceito, o ensino do português deve objetivar preparar o aluno para saber interagir
lingüisticamente em situações de interação social variadas. Nesse sentido, precisa fazer
parte da prática pedagógica dos professores o ato de conscientizar os estudantes acerca
dos fenômenos sociais em que a língua está envolta dentro do processo de globalização.
Três desses fenômenos são objetos de considerações nesse artigo: os
estrangeirismos, a leitura e a escrita. Inicialmente, abordamos os estrangeirismos por
serem a evidência mais clara de que os povos de diferentes nações entram em contato
uns com os outros por meio dos idiomas usados em seus países. Embora sua ocorrência
seja natural a qualquer língua que entre em contato com outra por meio de seus
usuários, os estrangeirismos têm sido alvo de muita polêmica no Brasil nos últimos
anos. Explica-se: o Deputado Aldo Rebelo apresentou ao Congresso Nacional o Projeto
de Lei No 1676 de 1999 visando a regulamentar o uso de estrangeirismos para proteger e
defender a língua portuguesa. Rebelo coloca os estrangeirismos como elementos que
podem vir a descaracterizar o idioma nacional brasileiro. A posição equivocada do
deputado é analisada aqui sob a perspectiva da globalização, da construção da
identidade nacional e das lacunas lexicais.
Em seguida, o artigo aborda a leitura e a escrita por serem elementos que fazem
circular as informações e os discursos construídos na sociedade por meio dos diversos
gêneros textuais. Pelo fato de essa circulação não se dar de forma neutra, conforme
menciono acima ao citar Santos, os professores responsáveis pela educação de jovens e
adultos devem ajudá-los a conhecer os gêneros textuais mais freqüentes e a se tornarem
conscientes da realidade na qual estão inseridos. Dessa forma, os estudantes podem se
tornar cidadãos críticos e autônomos, como Paulo Freire (1996) sempre idealizou.
Estrangeirismos e Identidade Nacional
Estrangeirismo é o uso de palavras, expressões ou construções sintáticas oriundas de
uma língua estrangeira. Ele é um fenômeno lingüístico natural a qualquer língua falada
por um povo que se relaciona com outros povos que falam línguas diferentes. Ora, se os
estrangeirismos são fenômenos lingüísticos naturais, por que um político brasileiro se
deu ao trabalho de elaborar um projeto de lei para regulamentá-los?
A resposta para essa pergunta reside na questão da identidade nacional. Afinal, a
construção da identidade nacional passa pelo estabelecimento e pela legitimação de um
idioma que se possa identificar como nacional. Rebelo (2001, pp. 181-182) deixa isso
bem claro ao afirmar, na justificação do seu projeto de lei, que “um dos elementos mais
marcantes da nossa identidade nacional reside justamente no fato de termos um imenso
território com uma só língua” e que esse fato, que ele considera um “autêntico milagre
brasileiro”, está “hoje seriamente ameaçado”. Essa suposta ameaça, segundo Rebelo
(2001, p. 181), seria “uma verdadeira descaracterização da língua portuguesa, tal a
invasão indiscriminada e desnecessária de estrangeirismos”.
As palavras do deputado deixam transparecer que ele ignora completamente os fatos
lingüísticos. Em primeiro lugar, nenhum país tem uma só língua, como afirma Rebelo:
existe, é certo, um idioma nacional oficial no Brasil, mas isso não significa que ele seja
a única língua falada no país. No Brasil, não se fala um português só, pois há muitas
formas diferentes de se falar o português. Como lembra Rosa Virgínia Mattos e Silva
(1995, p. 11), em qualquer língua histórica, há uma necessidade social de unificação
lingüística por causa da realidade heterogênea da língua. Conseqüentemente, isso
significa que não há milagre algum no fato de existir um idioma nacional em face a
tantos dialetos.
Em segundo lugar, os estrangeirismos não representam nenhuma ameaça a um
idioma nacional. Ferdinand de Saussure (1999, p. 31), no começo do século XX, já
lembrava que os empréstimos não são fenômenos freqüentes na vida de uma língua e
afirmava que “o termo emprestado não é considerado mais como tal desde que seja
estudado no seio do sistema; ele existe somente por sua relação e oposição com as
palavras que lhe estão associadas, da mesma forma que qualquer outro signo
autóctone”.
Fazendo-se a ressalva de que os empréstimos se tornaram comuns nas áreas
tecnológicas, de conhecimento específico, com a intensificação do processo de
globalização, podemos afirmar que a posição de Saussure está correta. Quando uma
língua X toma um termo emprestado de uma língua Y, a esse termo são impostas as
características do sistema lingüístico de X, i.e. as regras fonotáticas e, eventualmente, as
regras ortográficas e morfológicas. Para evidenciarmos isso, basta que busquemos
exemplos no português. A palavra estresse, originária do anglicismo stress, sofreu
imediatamente as restrições fonotáticas do português brasileiro, que não permitem que o
som inicial de uma palavra seja /st/, como ocorre em inglês. Assim, os brasileiros
começaram a usar essa palavra acrescentando o som vocálico /i/ ao seu início e
culminaram por também acrescentar esse som ao seu final. Hoje, a palavra já está
totalmente integrada ao sistema lingüístico de português, do ponto de vista ortográfico,
(estresse) e do ponto de vista morfológico (já existem o verbo estressar e o adjetivo
estressante).
Esse exemplo serve para comentarmos a diferença que algumas pessoas fazem entre
estrangeirismos e empréstimos. O primeiro termo se refere às palavras tomadas
emprestadas de outras línguas e que ainda não sofreram mudanças ortográficas e
mantêm a mesma grafia que possuem na língua original. Assim, de acordo com essa
distinção, exemplos de estrangeirismos no português brasileiro são as palavras show,
sale, cooper, mouse, overbooking e check-in. Já as palavras estresse, blecaute,
hambúrguer, espaguete, deletar e aspirina são exemplos de empréstimos.
Na verdade, o empréstimo pode ser visto como o estágio final de incorporação do
estrangeirismo ao sistema da língua que o toma emprestado. Logo, stress seria um
estrangeirismo e estresse, um empréstimo. Entretanto, se lembrarmos as palavras de
Saussure acima e se observarmos que os falantes de uma língua impõem, de imediato,
as regras fonotáticas de sua língua aos estrangeirismos, podemos desconsiderar qualquer
diferença entre empréstimos e estrangeirismos.
Mas, resta esclarecermos uma coisa: por que uma língua toma de empréstimo termos
de outras línguas? Eles são tomados emprestados por duas razões lingüísticas, sendo
uma de natureza estrutural e outra de natureza pragmática: as lacunas lexicais e o estilo.
Em um outro trabalho (Oliveira, 2005), deixo claro que a maior motivação para a
presença de estrangeirismos em uma língua é a existência de lacunas lexicais, que são
fatos de natureza estrutural.
Ao contrário do que pensava o semanticista Jost Trier (citado por Ullmann, 1964), o
léxico de uma língua não é completamente recoberto pelas esferas conceituais, ou
esferas de significação, como também são chamadas: há lacunas no léxico. Isso
significa que, às vezes, inexistem palavras para expressar determinados conceitos,
significados, idéias.
As lacunas lexicais surgem com o desenvolvimento das técnicas nas diversas áreas
do conhecimento, o que tem sido muito comum com a globalização. Na área de
informática, por exemplo, muitos termos são de origem do inglês porque os Estados
Unidos são o país que lidera o mundo no que diz respeito às técnicas nessa área. Na área
de música, muitos termos usados no Brasil são de origem italiana. Isso se deve ao fato
de os músicos italianos terem influenciado a música mundial durante uma boa parte da
nossa história.
Quando há uma lacuna em seu léxico, a língua tem à sua disposição dois recursos: o
neologismo e o empréstimo. Às vezes, ela lança mão dos dois. É o que aconteceu
quando chegou ao Brasil um alimento feito com pão e uma salsicha dentro: criou-se o
termo cachorro-quente, que hoje convive com hot-dog, devidamente adequado às
imposições fonotáticas do português.
Pode acontecer a situação em que não há uma lacuna lexical, mas opta-se por um
termo oriundo de uma língua estrangeira por uma questão estilística. É o caso da famosa
expressão “sale – 50% off”, colocada em vitrines de lojas dirigidas às classes altas no
Brasil e que virou cavalo de batalha para pessoas que compartilham a visão equivocada
do Deputado Aldo Rebelo. A explicação para casos como esse reside na estilística: ao
usarem essa expressão em vez de liquidação ou bota fora, por exemplo, as lojas estão
deixando claro a que público se direcionam: as pessoas com mais probabilidades de
saberem inglês, ou seja, as que pertencem às classes A e B.
Percebe-se que os estrangeirismos não oferecem nenhum perigo à língua portuguesa.
Afinal, é o português que se apropria deles e os obriga a se submeterem às
características de seu sistema lingüístico. O contrário não acontece. Evidência disso é o
fato de nenhum brasileiro que não estuda sobre esse fenômeno se lembrar da origem
estrangeira de palavras como brinde, estilística, barraca, boliche, abordagem, futebol e
esporte.
O Deputado Aldo Rebelo (2001, p. 181) lembra que “uma das formas de dominação
de um povo sobre outro se dá pela imposição da língua”. Ele acredita que, “com a
marcha acelerada da globalização, o fenômeno parece estar se repetindo” no Brasil, mas
não de modo violento. Essa crença equivocada de Rebelo precisa ser levada à sala de
aula para que os professores de português abordem a questão dos estrangeirismos e o
papel da língua na construção da identidade nacional. Cabe aos professores de
português levar os alunos a perceberem que nossa identidade não está nem um pouco
ameaçada pela presença de estrangeirismos na nossa língua.
Finalizo esta seção lembrando as palavras do sociólogo Zygmunt Bauman (2005, p.
83), as quais nos lembram que a faca da identidade pode ser brandida na direção dos
mais fortes e dos mais fracos:
Pôde-se ver a faca da identidade brandida nas duas direções e cortando dos dois
lados nos períodos de “construção nacional”: em defesa de línguas, memórias, costumes
e hábitos locais, menores contra “os da capital”, que promoviam a homogeneidade e
exigiam uniformidade – assim como na “cruzada cultural” organizada pelos defensores
da unidade nacional.
De que lado corta a faca da identidade nacional brandida por Aldo Rebelo? Que os
professores de português levem seus alunos a refletirem sobre isso. A leitura e a escrita
são instrumentos à disposição dos estudantes para realizarem essa reflexão. É desses
dois fenômenos sociais que trata a próxima seção.
Leitura, Escrita e Globalização
Um dos símbolos do processo de globalização é a Internet. Ela facilitou
enormemente a comunicação, principalmente por meio do e-mail e de serviços de
comunicação em tempo real como as salas de bate-papo e programas de comunicação
como o Microsoft Service Network, popularmente conhecido como MSN. Ela trouxe
consigo o internetês, um conjunto de expressões comumente encontradas nas conversas
em salas de bate-papo e no MSN. Expressões como vc, blz, tb, kd, naum e aki são
exemplos de internetês.
No Brasil, o internetês tem sido alvo de debates entre professores de português
preocupados com a sua influência na produção textual dos estudantes. Alguns
professores temem que ele prejudique a capacidade redacional de jovens e adultos por
afetar os seus conhecimentos acerca da grafia das palavras.
Entretanto, se os professores pensarem na escrita e na leitura como atividades
pragmáticas, atividades que não têm um caráter exclusivamente lingüístico, eles
perceberão que o internetês não representa nenhuma ameaça para a produção escrita dos
estudantes. É possível, sim, que haja alguma interferência pontual da mesma forma que
a fala causa uma ou outra interferência na escrita. Mas isso não é nada anormal e deve
ser tratado na sala de aula de forma tranqüila. Afinal, assim como não se fala da mesma
forma que se escreve, também não se escreve e não se fala sempre da mesma forma em
todas as situações sociais. E isso deve ser informado e esclarecido aos estudantes para
que eles se conscientizem dos fatores que contribuem para a leitura e para a produção
textual.
A globalização contribui para aumentar a velocidade com que os discursos e as
informações circulam, e os jovens e adultos que estão sendo escolarizados precisam
aprender a lidar com esses discursos e com essas informações de maneira crítica. Por
isso, os professores precisam se lembrar de que a leitura e a escrita não são atividades
exclusivamente lingüísticas e que elas requerem, grosso modo, três tipos de
conhecimentos: lingüísticos, enciclopédicos e textuais.
A necessidade dos conhecimentos lingüísticos é óbvia. Sem se saber uma língua,
torna-se impossível ler ou escrever textos naquela língua. Entretanto, o que não é óbvio
para muitos professores de português no Brasil é a necessidade de se possuírem os
outros dois tipos de conhecimentos.
Como já afirmou o filósofo Arthur Schopenhauer (2005, p. 32), “a primeira regra do
bom estilo, que por si só já é quase suficiente, é a de ter algo a dizer” (grifos do autor).
“Ter algo a dizer” significa possuir conhecimentos enciclopédicos ou conhecimentos
prévios de mundo.
Muitas vezes, os estudantes têm dificuldades para entender ou para produzir textos
por não estarem familiarizados com os temas, ou seja, por não possuírem determinados
conhecimentos enciclopédicos. Contudo, há professores que acreditam que o problema
reside na falta de conhecimentos lingüísticos desses estudantes e os fazem praticar
exercícios voltados para a estrutura da língua. O resultado disso é que os estudantes não
superam as dificuldades que possuem para ler e, principalmente, para a escrever.
É exatamente por causa da importância dos conhecimentos enciclopédicos para a
leitura e para a escrita que os professores precisam estar informados sobre o papel dos
esquemas mentais na compreensão e na produção de textos. Como lembra Leonor
Lencastre (2003), a experiência, o conhecimento e os conceitos que os leitores trazem
para o ato da leitura são fatores determinantes para o processo de compreensão. Eu
acrescento que esses fatores também são determinantes para o processo de produção
textual.
Os conhecimentos enciclopédicos e os conhecimentos lingüísticos estão
estreitamente relacionados a dois elementos de textualidade, i.e. elementos que fazem
com que um texto seja um texto: a coerência e a coesão, respectivamente. A coerência
textual diz respeito à construção semântica do texto e é o resultado da interação entre
leitor e texto. A coesão textual é a sintaxe do texto, manifestação lingüística da
coerência.
Não entrarei em detalhes sobre esses dois elementos. Focarei a atenção nos cinco
elementos de textualidade relacionados aos usuários da língua e ao contexto de
produção e de recepção dos textos. Refiro-me aos elementos pragmáticos de
textualidade, propostos por Robert-Alain de Beaugrande e Wolfgang Ulrich Dressler
(1997): intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade e
intertextualidade.
A intencionalidade diz respeito às intenções do produtor textual. Todos os textos
produzidos têm um objetivo pré-estabelecido pelos seus autores e os estudantes
precisam ser alertados a respeito disso para ficarem conscientes de que as informações e
os discursos que circulam são neutros nem ingênuos. Nesse sentido, vale a pena repetir
aqui algumas palavras de Milton Santos (2001, p. 39) citadas nas Considerações Iniciais
deste artigo: “a informação atual tem dois rostos, um pelo qual ela busca instruir, e um
outro, pelo qual ela busca convencer”.
O convencimento objetivado por quem faz circular informações e discursos depende
fundamentalmente da atenção que os produtores textuais dão a quem se dirigem.
Depende de outro elemento de textualidade: a aceitabilidade, que diz respeito às
expectativas dos leitores. Não levar considerar o público-alvo pode levar o escritor a
não alcançar seus objetivos já que não poderá decidir a respeito de qual linguagem usar
(formal, informal, simples, rebuscada, direta, etc.) e nem sobre quais e quantas
informações deverá incluir e não incluir no texto.
Chaïn Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (1999, p. 22), ao refletirem sobre como
um orador pode ser bem-sucedido na sua argumentação, nos oferecem uma conclusão
que se alinha ao que foi escrito no parágrafo anterior com respeito à relação entre
intencionalidade e aceitabilidade:
A argumentação efetiva tem de conceber o auditório presumido tão próximo quanto
o possível da realidade. Uma imagem inadequada do auditório, resultante da ignorância
ou de um concurso imprevisto de circunstâncias, pode ter as mais desagradáveis
conseqüências.
Proximamente relacionada à intencionalidade e à aceitabilidade, a situacionalidade é
um elemento extremamente importante para a leitura e para a produção de textos.
Beaugrande e Dressler (1997) nos informam que esse elemento de textualidade diz
respeito às circunstâncias em que um texto é produzido e lido, as quais influenciam
profundamente o escritor e o leitor. Os alunos precisam estar cientes de que o ambiente
formado pelas pessoas, pelo local e pelo momento, ou seja, o contexto, no qual um texto
é produzido e lido desempenha um papel fundamental nos atos de produção e de
recepção textual.
Com a redução dos preços dos computadores ocasionada pelo aumento da produção
desses produtos, um número cada vez maior de pessoas passa a ter acesso a informações
por meio da Internet. Isso traz uma conseqüência interessante: o público leitor em
potencial dos textos publicados na grande rede mundial aumenta consideravelmente.
Entretanto, isso de nada muda a interferência desses três elementos de textualidade na
produção dos textos que são divulgados pela Internet: quem os redige continua tendo
objetivos específicos em mente e deve estar atento às expectativas de quem lerá seus
textos e onde os possíveis leitores estarão no ato da leitura; os leitores continuam
formando nichos específicos, com interesses bem delineados, os quais os levam a visitar
determinados sítios e não outros.
O quarto elemento pragmático de textualidade, a informatividade, segundo
Beaugrande e Dressler (1997, p. 201), diz respeito ao grau de novidade ou de
imprevisibilidade que um texto tem para seus receptores. Isso implica que um texto com
informações pouco previsíveis é mais informativo do que um texto com informações
previsíveis. Por essa razão, esses autores alertam para a necessidade de se manter um
nível equilibrado de informatividade no texto: não se deve colocar excessivas
informações previsíveis nem informações novas em excesso. Um texto com um bom
grau de informatividade deve informar o suficiente ao leitor, a menos que o escritor
deliberadamente não queira fazer isso, o que revela a relação próxima entre todos os
elementos de textualidade.
O último elemento de textualidade é a intertextualidade, que, de acordo ainda com
Beaugrande e Dressler (1997, p. 249), diz respeito à relação de dependência
estabelecida entre os processos de produção e de recepção de um texto determinado e o
conhecimento que os participantes da interação comunicativa têm de outros textos
anteriores a ele relacionados. Esse é um elemento interessante e que provoca uma
pergunta: o que será que nós falamos e escrevemos que é verdadeiramente de nossa
própria criação? O senso comum é o intertexto universal, sempre anterior e relacionado
a muitas das coisas que falamos e escrevemos.
Os estudantes precisam estar cientes do que é a intertextualidade para não correrem
o risco de realizarem plágio de forma desavisada. E isso é uma preocupação que devem
ter os professores de português no Brasil, pois, com o acesso cada vez maior à Internet,
muitos alunos fazem pesquisa da seguinte forma: buscam por textos sobre o tema
pesquisado, copia-os e cola-os, apresentando-os como de sua autoria. Nas
universidades, isso é feito de forma deliberada por alguns estudantes, mas no Ensino
Fundamental e no Ensino Médio falta aos alunos orientação por parte dos professores a
esse respeito.
Note-se que a informatividade e a intertextualidade nos remetem ao hipertexto, um
gênero textual resultante do processo de globalização que atingiu a indústria da
informação. O hipertexto é um texto-base que possui links que direcionam os leitores a
outros textos. Percebe-se que o hipertexto é uma analogia cibernética de uma mistura
feita com a informatividade e a intertextualidade: ao encontrarem informações novas no
texto, o leitor aciona um link que o remete a outro texto. Isso deve ser aproveitado pelos
professores de português para ajudar os alunos a entenderem a presença de textos
anteriores em qualquer texto que eles leiam ou produzam.
Esses cinco elementos pragmáticos de textualidade deixam claro que a leitura e a
escrita vão muito mais além dos elementos estritamente lingüísticos. Eles se unem aos
elementos semântico-lingüísticos, i.e. a coerência e a coesão, para fazerem circular
informações e discursos em formas concretas de textos, os chamados gêneros textuais.
Os professores de português precisam apresentar aos seus alunos o maior número
possível de gêneros textuais e alertá-los para a relação deles para com os elementos de
textualidade. Por exemplo, uma carta pessoal e uma carta de apresentação a uma
empresa exigem não apenas conteúdos distintos, mas também escolhas lexicais e
gramaticais adequadas para seus leitores. Além disso, os professores precisam ajudar os
estudantes a se tornarem conscientes de que cada gênero textual tem suas características
próprias e que não se escreve da mesma forma em todas as situações. Nesse sentido,
comparar textos escritos no MSN com reportagens jornalísticas e cartas de
apresentação, por exemplo, é um ótimo exercício para desenvolver a conscientização
dos estudantes acerca dessas questões.
A Internet fez surgir fenômenos lingüísticos interessantes como o internetês e novos
gêneros textuais como o hipertexto e os chats. Os professores de português precisam
lidar com esses fenômenos em sala de aula para esclarecer dois pontos. O primeiro é a
idéia de que o internetês vai atrapalhar a produção escrita dos estudantes. Basta que os
professores ajudem os estudantes a se conscientizarem de que o internetês é adequado
para as salas de bate-papo, os torpedos, alguns bilhetes e alguns e-mails, mas que é
inadequado para outras situações e gêneros textuais. O segundo ponto, estreitamente
relacionado com o primeiro, é o fato de que os gêneros produzidos fora da Internet
podem circular na Internet sem necessariamente perder suas características. Uma carta
de apresentação pode ser redigida no corpo de um e-mail mantendo todas suas
características formais e sua linguagem, por exemplo. Nesse caso, o e-mail funciona
como um suporte que veicula um texto, da mesma forma que é um jornal ou uma
revista.
Conclusões finais
Diante do exposto até aqui, fica claro que o processo de globalização produz
fenômenos que têm implicações diretas para o ensino de português. Afinal, é a
linguagem que não apenas faz interface entre as pessoas e as outras pessoas e o mundo,
mas também e principalmente constrói o mundo.
O processo de globalização intensificou as relações entre os povos por meio da
Internet, favorecendo as trocas lexicais entre as línguas. Conseqüentemente, os
empréstimos lingüísticos se tornaram mais freqüentes em áreas específicas de
conhecimento. Isso é um fenômeno que enriquece o léxico do português, contrariamente
ao que pensa o Deputado Aldo Rebelo, para quem os estrangeirismos representam uma
invasão colonialista que pode fazer desaparecer a língua portuguesa.
Vimos que as idéias do deputado revelam sua falta de informação no que diz
respeito aos fenômenos lingüísticos. Isso serve de alerta: os professores de português
precisam informar os jovens e adultos que vão à escola acerca dos estrangeirismos e da
posição equivocada do deputado para que eles percebam o fato de que as línguas variam
no tempo e no espaço, independentemente da vontade dos políticos ou qualquer outra
pessoa. O mito da homogeneidade lingüística precisa ser desconstruído na escola.
No que diz respeito à leitura e à escrita, vimos que o advento da Internet possibilitou
uma maior circulação de informações e de discursos, embora isso ainda não seja a regra
geral no Brasil devido à exclusão social de que é vítima a maior parte da população.
Essa exclusão não é só a digital, como alguns políticos querem fazer o povo brasileiro
acreditar, mas é uma exclusão em todos os níveis: habitacional, alimentar e educacional.
Por essa razão, os professores de português devem aproveitar tudo que a globalização
lhes oferece, i.e. a Internet e todos os fenômenos lingüísticos por ela provocados, para
ajudar os estudantes a se tornarem mais alertas e críticos com relação às informações e
aos discursos a que estão expostos.
O desenvolvimento da capacidade leitora e da capacidade redacional dos estudantes
nunca foi tão importante quanto nesses tempos de globalização, que nos bombardeia
com informações e discursos a todo o momento. A globalização é um fenômeno
irreversível. Portanto, resta aos professores e estudantes tirar dela o máximo de
benefícios que puderem.
Nota sobre o Autor
Luciano Amaral Oliveira é Professor Titular de Linguistica na Universidade Estadual
de Feira de Santana no Brasi. Doutorado em Letras e Linguistica pela Universidade
Federal da Bahia e autor do livro Manual de Semantica (Editora Vozes).
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