4
985 Impactes de parques eólicos no património geomorfológico: o caso da Serra da Cabreira Aeolian park impacts on geomorphological heritage: the example of Cabreira Mountain (NW Portugal) Paula Silva 1a , Joana Rodrigues 1b , Manuela Catana 1c & Paulo Pereira 2d 1 - Mestrandas em Património Geológico e Geoconservação - Universidade do Minho. 2 - Centro de Ciências da Terra - Universidade do Minho, 4710-057 Braga. a - [email protected]; b - [email protected]; c - [email protected]; d - [email protected] SUMÁRIO A pseudoestratificação e lajes graníticas no maciço culminante da Serra da Cabreira constituem um importante património geomorfológico, que tem desaparecido rapidamente nos últimos anos devido à sua exploração descontrolada. A recente implementação de um empreendimento eólico nesse sector da serra veio aumentar a vulnerabilidade e degradação daquele património. Neste trabalho enfatiza-se a necessidade urgente da sua protecção, evidenciando-se a habitual desconsideração da geodiversidade e da geoconservação neste tipo de empreendimentos. Palavras-chave: património geomorfológico; Serra da Cabreira; parque eólico; impacte ambiental; geoconservação. SUMMARY Cabreira Mountain peak (1262 meters high, NW Portugal) is characterized by granite pseusobedding and a flagstone covering in the higher tops and slopes, which constitute an important geomorphological heritage. The exploitation of the blocks in the last decades and the recent implementation of a aeolian towers project led to their damage and destruction. This paper claims attention to the need of this natural heritage protection and shows how geodiversity and geoconservation are not considered in this type of projects in Portugal. Key-words: Geomorphological heritage; Cabreira Mountain; wind park; environmental impact; Geoconservation. 1. Introdução De um modo global e comparativamente à bioconservação, a conservação da geodiversidade tem sido menosprezada [1]. Em Portugal, o património natural abiótico é tratado de modo pontual e sem uma adequada estratégia nacional. A legislação não é a mais apropriada e a maioria dos responsáveis pela conservação da natureza e pelo ordenamento do território não estão sensíveis para a geoconservação [2]. Os aproveitamentos eólicos para produção de energia eléctrica têm vindo a ser encarados pelas políticas públicas como uma forte aposta, sem grande impacte ambiental e recorrendo a energia renovável. No entanto, a maioria dos parques eólicos criados e em implementação localizam-se em áreas serranas, por norma caracterizadas por uma paisagem natural de elevado valor estético. Em muitos casos, locais com excepcional valor geológico e geomorfológico são menosprezados e a sua preservação é comprometida, mesmo quando existem estudos de impacte ambiental. Apresenta-se o caso da Serra da Cabreira (Vieira do Minho), onde foi implementado recentemente um parque eólico com onze aerogeradores, na linha de cumeada do seu maciço principal.

Impactes de parques eólicos no património geomorfológico ... · 986 2. Património geomorfológico da Serra da Cabreira Localizada no noroeste de Portugal, a Serra da Cabreira

Embed Size (px)

Citation preview

985

Impactes de parques eólicos no património geomorfológico:

o caso da Serra da Cabreira

Aeolian park impacts on geomorphological heritage:

the example of Cabreira Mountain (NW Portugal)

Paula Silva1a, Joana Rodrigues1b, Manuela Catana1c & Paulo Pereira2d

1 - Mestrandas em Património Geológico e Geoconservação - Universidade do Minho.

2 - Centro de Ciências da Terra - Universidade do Minho, 4710-057 Braga.

a - [email protected]; b - [email protected]; c - [email protected]; d - [email protected]

SUMÁRIO A pseudoestratificação e lajes graníticas no maciço culminante da Serra da Cabreira constituem um importante património geomorfológico, que tem desaparecido rapidamente nos últimos anos devido à sua exploração descontrolada. A recente implementação de um empreendimento eólico nesse sector da serra veio aumentar a vulnerabilidade e degradação daquele património. Neste trabalho enfatiza-se a necessidade urgente da sua protecção, evidenciando-se a habitual desconsideração da geodiversidade e da geoconservação neste tipo de empreendimentos. Palavras-chave: património geomorfológico; Serra da Cabreira; parque eólico; impacte ambiental; geoconservação.

SUMMARY Cabreira Mountain peak (1262 meters high, NW Portugal) is characterized by granite pseusobedding and a flagstone covering in the higher tops and slopes, which constitute an important geomorphological heritage. The exploitation of the blocks in the last decades and the recent implementation of a aeolian towers project led to their damage and destruction. This paper claims attention to the need of this natural heritage protection and shows how geodiversity and geoconservation are not considered in this type of projects in Portugal. Key-words: Geomorphological heritage; Cabreira Mountain; wind park; environmental impact; Geoconservation.

1. Introdução De um modo global e comparativamente à bioconservação, a conservação da geodiversidade tem sido menosprezada [1]. Em Portugal, o património natural abiótico é tratado de modo pontual e sem uma adequada estratégia nacional. A legislação não é a mais apropriada e a maioria dos responsáveis pela conservação da natureza e pelo ordenamento do território não estão sensíveis para a geoconservação [2]. Os aproveitamentos eólicos para produção de energia eléctrica têm vindo a ser encarados pelas políticas públicas como uma forte aposta, sem grande impacte ambiental e recorrendo a energia

renovável. No entanto, a maioria dos parques eólicos criados e em implementação localizam-se em áreas serranas, por norma caracterizadas por uma paisagem natural de elevado valor estético. Em muitos casos, locais com excepcional valor geológico e geomorfológico são menosprezados e a sua preservação é comprometida, mesmo quando existem estudos de impacte ambiental. Apresenta-se o caso da Serra da Cabreira (Vieira do Minho), onde foi implementado recentemente um parque eólico com onze aerogeradores, na linha de cumeada do seu maciço principal.

986

2. Património geomorfológico da Serra da Cabreira Localizada no noroeste de Portugal, a Serra da Cabreira faz parte do conjunto montanhoso que delimita o Minho da região transmontana. É uma montanha granítica, com a altitude máxima de 1262 metros, no seu maciço culminante, também conhecido por Talefe. Aí, o modelado granítico distingue-se do existente noutras áreas da serra e na vizinha Serra do Gerês, onde afloram diferentes granitos. Caracteriza-se principalmente pela intensa fracturação sub-horizontal do granito, ocorrendo originais afloramentos com pseudoestratificação (Fig. 1), paralela ao nível topográfico, quer nos topos aplanados, quer nas vertentes [3].

Fig.1: Bloco granítico no sector do Toco, com pseudoestratificação paralela ao plano de vertente. Abundam à superfície lajes graníticas nos topos aplanados Talefe, Chã de Lousas e Toco e das suas vertentes acima dos 1000 metros de altitude (Fig. 2). Estas lajes, resultantes do desmantelamento dos afloramentos graníticos pseudoestratificados, são localmente denominadas de “lousas”, pelo seu aspecto laminado e alongado. Ainda no maciço culminante, nas vertentes voltadas a nordeste e a este, observam-se depósitos associados à última glaciação, que ocorreu neste sector da serra [4].

Fig.2: Cobertura com lajes graníticas da vertente ocidental da Chã de Lousas.

As primeiras referências à singularidade geomorfológica da Serra da Cabreira surgem no início do século XX, numa monografia sobre o concelho de Vieira do Minho [5]. Mais tarde, Suzanne Daveau e Nicole Devy-Vareta lançaram as bases do estudo geomorfológico do maciço culminante da Serra [4, 6], o qual foi retomado recentemente [3, 7, 8, 9, 10]. A morfologia deste sector da serra tem vindo a ser interpretada como resultado da acção gelo/degelo (periglaciarismo) do período glaciário e pós-glaciário würmiano. Por outro lado, considera-se determinante a conjugação de factores endógenos, exógenos e de posição geográfica. Trabalhos anteriores consideraram os blocos pseudoestratificados e lajes da Cabreira como património geomorfológico de relevância nacional [11, 12]. Foi agora realizado um inventário dos locais de interesse geomorfológico da Serra da Cabreira, pertencentes ao concelho de Vieira do Minho. Na caracterização dos locais foi utilizado o formulário proposto pela ProGEO-Portugal e um modelo de quantificação que se baseia em critérios que visam o estabelecimento do valor intrínseco do geossítio (A), do seu uso potencial (B) e da necessidade de protecção (C) [2, 13]. A quantificação aplicada permitiu uma ordenação dos geossítios estabelecendo prioridades relativamente à necessidade de conservação (Tab. 1). Tab.1: Quantificação dos locais de interesse geomorfológico da Serra da Cabreira.

Geomorfossítio Total (A+B+C)

Q = (A+B+C)/3

Moreia dos Gaviões 68 22,7 Ponte da Misarela 71 23,7 Ovo da Rainha 69 23 Miradouro para o Talefe 62 20,7 Talefe-Chã de Lousas-Toco 74 24,7 Depósito do Soutinho 70 23,3

Foi quantificado com maior relevância o geomorfossítio Talefe - Chã de Lousas - Toco. Este local reveste-se de elevado interesse científico, mas também de elevada vulnerabilidade, carecendo, portanto, de intervenção urgente. Por outro lado, as boas acessibilidade e visibilidade permitem uma utilização didáctica generalizada do local, não só dos elementos geomorfológicos referidos anteriormente, como também dos litológicos, tectónicos, biológicos e arqueológicos. 3. Parque eólico da Cabreira O empreendimento eólico da Serra da Cabreira localiza-se nas freguesias de Ruivães, Anjos e Vilarchão, do concelho de Vieira do Minho. Entrou em funcionamento em 2004, com onze aerogeradores em torres de cerca de 40 metros de altura (Fig. 3), pertencentes às empresas EOLENEG

987

S.A. (Grupo SIIF Énergies) e ENERMINHO - Empreendimentos Eólicos, S.A. Além dos aerogeradores existe um posto de transformação associado a cada um deles, redes eléctricas, acessos e plataformas de trabalho e ainda uma subestação e edifício de comando.

Fig.3: Aerogeradores do Parque Eólico da Serra da Cabreira, na Chã de Lousas. De acordo com a empresa responsável pelo empreendimento, não foi efectuado um Estudo de Impacte Ambiental, uma vez que, segundo a legislação de Avaliação de Impacte Ambiental, a reduzida dimensão do empreendimento (menos de vinte aerogeradores) não obrigava à sua realização. Foi antes elaborado um Estudo de Avaliação de Incidências Ambientais [14] devido ao empreendimento se localizar em área de Reserva Ecológica Nacional. Ainda que os aspectos geológicos e geomorfológicos, deste sector da serra, sejam os elementos que maior destaque têm na paisagem, são menosprezados, relativamente aos ecológicos, arqueológicos e arquitectónicos. Num parecer incluído no estudo, é feita referência à possibilidade de alteração da riqueza patrimonial e paisagística da serra, alertando para o facto de vir a ser comprometida a conservação da cobertura de lajes na Chã de Lousas [15]. É também sugerido, no relatório de avaliação da componente Património Construído - Arqueológico e Arquitectónico inserido no estudo, o estabelecimento de um programa de minimização do impacte da obra sobre “a superfície tardiglaciar localizada no caminho de acesso às torres e na Chã de Lousas, com um geólogo especialista, sobretudo durante a fase de construção”. De acordo com os responsáveis, foi feito um reconhecimento no terreno, por um especialista, previamente à execução da obra e, face às condições existentes à data e às intervenções previstas, foi considerado não haver necessidade de desenvolver um programa específico para a protecção da Chã de Lousas.

De um modo geral, o estudo concluiu que o impacto ambiental provocado pelo empreendimento eólico seria relativamente pequeno e poderia ser minimizado com a sinalização prévia de todos os elementos patrimoniais identificados, no sentido de não os danificar. 4. Impactes no património geomorfológico Sem entrar na discussão quanto às consequências negativas na paisagem geral do maciço culminante da Serra da Cabreira, é principalmente ao nível da danificação e destruição local das geoformas que o empreendimento eólico provoca impacte negativo e irreversível. Na origem destes danos esteve a construção de suportes para os aerogeradores bem como dos caminhos de comunicação entre todos os elementos do parque (Fig. 4).

Fig.4: Abertura de caminhos de acesso às torres, removendo a cobertura de lajes graníticas, na Chã de Lousas. Alguns dos emblemáticos afloramentos (Fig. 5) foram danificados, removidos e mesmo soterrados com as obras de construção dos caminhos de acesso às torres.

Fig.5: Afloramento de granito pseudoestratificado no Toco, actualmente soterrado devido às obras do parque eólico. As “lousas” da Serra da Cabreira têm sido alvo de uma descontrolada exploração pela população local, nas últimas décadas, para diversos usos. Esta exploração vinha sendo minimizada pela difícil

988

acessibilidade aos pontos mais elevados da serra. Com o parque eólico, a construção de melhores acessos contribuiu igualmente para aumentar a delapidação deste património geomorfológico. Conclusões Nem sempre os postulados ecologistas que defendem as energias alternativas são os melhores aliados da geoconservação. Para além de comprometer o valor estético de áreas serranas, as infra-estruturas criadas para suportar estes equipamentos podem danificar ou mesmo destruir o património geológico. O caso do empreendimento eólico da Serra da Cabreira é um exemplo de desconsideração pela geodiversidade e pela geoconservação, numa área onde os valores naturais de maior importância são precisamente os elementos geomorfológicos. O pouco destaque dado a estas geoformas no estudo ambiental elaborado previamente demonstra a típica falta de sensibilização para a geoconservação por parte das equipas habilitadas para o efeito. De igual forma, apesar da existência de pareceres técnicos sobre a necessidade de cuidados especiais para a salvaguarda das lajes graníticas, no maciço culminante da Serra da Cabreira, os responsáveis pelo empreendimento consideraram não haver necessidade dessa protecção. A falta de sensibilidade e a desconsideração pelos pareceres técnicos resultaram numa forte e irreversível degradação do património geomorfológico da Serra da Cabreira. Contudo, é importante referir que todo este processo se desenrolou dentro dos parâmetros legais. Na verdade, a não obrigatoriedade da realização de estudos de impacte ambiental em empreendimentos desta natureza dificulta a tomada de medidas de geoconservação. Sendo esses estudos uma ferramenta fundamental nas políticas de conservação da natureza, é incompreensível que apenas empreendimentos eólicos com mais de 20 aerogeradores sejam a eles obrigados, sobretudo pelas suas dimensões e pelas infra-estruturas necessárias à sua implementação.

Referências Bibliográficas [1] Gray M. (2004) Geodiversity. Valuing and conserving abiotic nature. Wiley, 412 pp., Peterborough.

[2] Brilha (2005) Património Geológico e Geoconservação. A Conservação da Natureza na sua vertente Geológica. Palimage Editores, 190 pp., Viseu.

[3] Pereira P., Pereira D.I. & Rodrigues L. (2006) Pseudoestratificação granítica na Serra da Cabreira: geoformas com influência climática e estrutural. Publicações da APGeom, Vol. 3, Coimbra (em publicação).

[4] Daveau, S. & Devy-Vareta, N. (1985) Gélifraction, Nivation et Glaciation d’Abri de la Serra da Cabreira. Actas da 1.ª Reunião do Quaternário Ibérico, Vol. 1, Lisboa, pp. 75-84.

[5] Vieira J.A. (1923) Vieira do Minho: Notícia Histórica e Descriptiva. Ed. Hospital João da Torre, 482 pp., Vieira do Minho.

[6] Daveau, S. (1977) Um exemplo de aplicação da teledetecção à investigação geográfica. A glaciação quaternária das montanhas do Noroeste de Portugal, Finisterra, XII, 23, Lisboa, pp. 156-159.

[7] Pereira, P. (2000) Aspectos geomorfológicos da vertente norte do maciço culminante da Serra da Cabreira. Relatório de Seminário da Licenciatura em Geografia e Planeamento, Universidade do Minho, 112 pp., Guimarães.

[8] Pereira, P. & Gonçalves, A. B. (2001) Vestiges of the quaternary glaciation in Cabreira mountain (northern Portugal). Estudos do Quaternário, 4, Associação Portuguesa para o Estudo do Quaternário, Lisboa, pp. 61-68.

[9] Rodrigues, L. (2004) Caracterização geológica do sector v.g. Talefe da Serra da Cabreira, com vista à discussão do periglaciarismo nesta região e apresentação de uma proposta de trilho interpretado. Relatório de Estágio da Licenciatura em Geologia - Ramo Recursos e Planeamento, Departamento de Ciências da Terra, Universidade do Minho, 76 pp., Braga.

[10] Pereira D.I., Pereira P. & Rodrigues L. (2004) Geomorfologia periglaciária da Serra da Cabreira. Percurso com interesse e valor geológico. Texto-Guia da excursão integrada nas II Jornadas BioGeo, Universidade do Minho, 21 pp., Braga.

[11] Pereira D.I., Pereira P., Alves M.I.C. & Brilha J. (2004) Geomorphological frameworks in Portugal - a contribution for the characterization of the geological heritage. 32nd International Geological Congress abstracts, Scientific Sessions, Part 1, Firenze, pp. 142.

[12] Pereira D.I., Pereira P., Alves M.I.C. & Brilha J. (2006) Inventariação temática do património geomorfológico português. Publicações da APGeom, Vol. 3, Coimbra (em publicação).

[13] Cendrero A. (2000) Patrimonio Geológico; diagnóstico, clasificación y valoración. In Jornadas sobre Patrimonio Geológico y Desarrollo Sostenible, Ministerio de Medio Ambiente, Serie Monografías, pp. 23-37.

[14] Rodrigues A. (Coord.) (1998) Aproveitamento Eólico da Serra da Cabreira: Avaliação de Impacte Ambiental: Estudo de Avaliação de Incidências Ambientais, ProSistemas, Consultores de Engenharia, S.A, Maio de 1998, 52 pp.

[15] Devy-Vareta, N. (1997) Parecer sobre a instalação de um parque eólico nas cumeadas da Serra da Cabreira, Instituto de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 6 de Agosto, 3 pp.