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Sinais de cena 11. 2009 sete Editorial Maria Helena Serôdio Iluminar o palco Iluminar o palco Maria Helena Serôdio Foi para muitos de nós uma revelação admirável a primeira encenação que Augusto Boal assinou em Portugal, em 1977, ali na Avenida Alexandre Herculano (sede então da companhia portuguesa a Barraca): Barraca conta Tiradentes. Chegara a Portugal nos anos em que a ditadura no Brasil o obrigara ao exílio (desde 1971) e trazia consigo o saber e a arte que o Teatro Arena, de São Paulo, desenvolvera, em torno de Gianfrancesco Guarnieri e dele próprio, na segunda metade dos anos 60, com os musicais de inspiração brechtiana mas adequados à realidade histórica e artística do Brasil: Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes (1967). O nome de Boal e a sua obra (em cena e nos seus escritos) já eram conhecidos de alguns, mas esse foi o momento da sua revelação ao grande público português: propunha uma maneira inteligente de pensar e fazer teatro, aparentemente simples, mas de uma extraordinária força artística. Não foi, infelizmente, longa a sua estadia entre nós, mas tornou-se uma referência artística para muitos. Chegou-nos agora a notícia da sua morte, aos 78 anos de idade. No seu legado artístico deixa criações inesquecíveis, livros de trabalho e de memórias, e muitos ensinamentos práticos e teóricos que são seguidos em muitas partes do mundo. Criou e deu conteúdo – artístico e político – a projectos como o “teatro do oprimido”, o “teatro legislativo” e o “teatro invisível”, entre outros. E numa última intervenção pública – tão internacional como era já a sua vida e obra – deu forma à mensagem do Dia Mundial do Teatro que o Instituto de Teatro Internacional assegura anualmente e que lhe pertenceu, de pleno direito, em 2009. Nela enunciou, uma vez mais, partes de um credo que foi, com ele, uma activa fermentação teatral: “Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com as nossas mãos, entrando em cena no palco e na vida”. Para ele, e como sublinhava na sua mensagem, a verdade escondida, que é o teatro, permite mostrar o que é ainda o mundo para além das aparências: “opressores e oprimidos em todas as sociedades (…) o mundo injusto e cruel”. Como dizia ainda, “Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver, tão habituados estamos apenas a olhar”, porque o que “nos é familiar [se] torna invisível” enquanto que “fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida quotidiana”. E, apelando a uma maior consciência e intervenção cívica, Boal declarava na sua mensagem ao mundo: “actores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!”. E estes são tópicos de um pensar a que não falta actualidade flagrante. É nesse reconhecimento – ou reivindicação – de “iluminar o palco” do teatro e da vida que baseamos muito do trabalho desta nossa revista Sinais de cena, interpelando esse fazer artístico e procurando as suas razões e consequências. E, assim, neste número celebramos os que foram distinguidos pelo Prémio da Crítica 2008 e que pudemos reencontrar no belo Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal em sessão festiva em Março passado: foi, desta vez, João Brites, que se destacou no ano passado com a sua criação Saga – Ópera extravagante, entre outros dos seus trabalhos inventivos no seio d’O bando, cabendo, entretanto, as Menções especiais a Carla Galvão, Nuno Cardoso e Miguel Loureiro pelas suas inspiradas criações como intérpretes ou encenadores. A todos eles dedicamos o “Dossiê temático” deste número, explicando as razões do júri da APCT, enquanto a secção “Na primeira pessoa” nos traz a voz e a memória de Carmen Dolores, uma actriz que protagonizou momentos decisivos do teatro em Portugal, mas que se repartiu por outras artes (rádio, cinema e televisão) e por intervenções de alcance não só artístico, mas também social e cívico. À entrevista acrescentamos, em pré-publicação, um dos textos sobre o público que integra o seu segundo livro de memórias (que irá, a seu modo, prolongar o seu Retrato inacabado, de 1984). Entretanto, a questão da violência no teatro continua a ocupar a atenção nos “Estudos aplicados”, que recolhem mais três das comunicações que se apresentaram em Sófia, na Bulgária, no 24.º Congresso da Associação Internacional de Críticos de Teatro (que recordámos no número anterior com uma mais extensa lista de comunicações) e que nos falam dessa problemática no Japão, Bulgária e Argentina. Entre as “Notícias de fora” vêm contribuições que trazem até nós realidades artísticas de Wroclaw, na Polónia (mostradas no âmbito do Prémio Europa para o Teatro), de Goa (em inesperados diálogos interdisciplinares), de Praga (com o grupo Farm in the Cave), do Canadá (no encantamento de um teatro de pequenas coisas animadas) e ainda de outros lugares onde se desenham formas de vida e experiências de teatro (como Buenos Aires e Brasil, por exemplo). Se a secção “Em rede” nos fala das virtudes da Internet para servir a relação de companhias de teatro com os seus públicos, ou entre si – no trabalho que desenvolvem longe dos grandes centros urbanos –, é das razões da presença em palco que os “Passos em volta” nos advertem: falando de Warlikowski (um dos premiados do Prémio Europa para as Novas Realidades em 2008), bem como de espectáculos do Teatro da Cornucópia, do Teatro da Trindade e dos dois Teatros Nacionais no momento em que se apresentam com renovadas direcções: o Teatro Nacional D. Maria II,

Iluminar o palco - ULisboarepositorio.ul.pt/bitstream/10451/30812/1/12685-38305-1-SM.pdf · de Queiroz e o teatro, na reversibilidade que a conjunção autoriza, e que Sebastiana

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Sinais de cena 11. 2009 seteEditorialMaria Helena SerôdioIluminar o palco

Iluminar o palcoMaria Helena Serôdio

Foi para muitos de nós uma revelação admirável a primeiraencenação que Augusto Boal assinou em Portugal, em1977, ali na Avenida Alexandre Herculano (sede então dacompanhia portuguesa a Barraca): Barraca contaTiradentes. Chegara a Portugal nos anos em que a ditadurano Brasil o obrigara ao exílio (desde 1971) e trazia consigoo saber e a arte que o Teatro Arena, de São Paulo,desenvolvera, em torno de Gianfrancesco Guarnieri e delepróprio, na segunda metade dos anos 60, com os musicaisde inspiração brechtiana mas adequados à realidadehistórica e artística do Brasil: Arena conta Zumbi (1965)e Arena conta Tiradentes (1967).

O nome de Boal e a sua obra (em cena e nos seusescritos) já eram conhecidos de alguns, mas esse foi omomento da sua revelação ao grande público português:propunha uma maneira inteligente de pensar e fazer teatro,aparentemente simples, mas de uma extraordinária forçaartística. Não foi, infelizmente, longa a sua estadia entrenós, mas tornou-se uma referência artística para muitos.

Chegou-nos agora a notícia da sua morte, aos 78anos de idade. No seu legado artístico deixa criaçõesinesquecíveis, livros de trabalho e de memórias, e muitosensinamentos práticos e teóricos que são seguidos emmuitas partes do mundo. Criou e deu conteúdo – artísticoe político – a projectos como o “teatro do oprimido”, o“teatro legislativo” e o “teatro invisível”, entre outros.E numa última intervenção pública – tão internacionalcomo era já a sua vida e obra – deu forma à mensagemdo Dia Mundial do Teatro que o Instituto de TeatroInternacional assegura anualmente e que lhe pertenceu,de pleno direito, em 2009. Nela enunciou, uma vez mais,partes de um credo que foi, com ele, uma activafermentação teatral: “Temos a obrigação de inventar outromundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mascabe a nós construí-lo com as nossas mãos, entrando emcena no palco e na vida”. Para ele, e como sublinhava nasua mensagem, a verdade escondida, que é o teatro,permite mostrar o que é ainda o mundo para além dasaparências: “opressores e oprimidos em todas as sociedades(…) o mundo injusto e cruel”. Como dizia ainda, “Somostodos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquiloque nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver,tão habituados estamos apenas a olhar”, porque o que“nos é familiar [se] torna invisível” enquanto que “fazerteatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vidaquotidiana”. E, apelando a uma maior consciência eintervenção cívica, Boal declarava na sua mensagem aomundo: “actores somos todos nós, e cidadão não é aqueleque vive em sociedade: é aquele que a transforma!”. Eestes são tópicos de um pensar a que não falta actualidadeflagrante.

É nesse reconhecimento – ou reivindicação – de“iluminar o palco” do teatro e da vida que baseamos muitodo trabalho desta nossa revista Sinais de cena, interpelandoesse fazer artístico e procurando as suas razões econsequências. E, assim, neste número celebramos os queforam distinguidos pelo Prémio da Crítica 2008 e quepudemos reencontrar no belo Jardim de Inverno do SãoLuiz Teatro Municipal em sessão festiva em Março passado:foi, desta vez, João Brites, que se destacou no ano passadocom a sua criação Saga – Ópera extravagante, entre outrosdos seus trabalhos inventivos no seio d’O bando, cabendo,entretanto, as Menções especiais a Carla Galvão, NunoCardoso e Miguel Loureiro pelas suas inspiradas criaçõescomo intérpretes ou encenadores. A todos eles dedicamoso “Dossiê temático” deste número, explicando as razõesdo júri da APCT, enquanto a secção “Na primeira pessoa”nos traz a voz e a memória de Carmen Dolores, uma actrizque protagonizou momentos decisivos do teatro emPortugal, mas que se repartiu por outras artes (rádio,cinema e televisão) e por intervenções de alcance não sóartístico, mas também social e cívico. À entrevistaacrescentamos, em pré-publicação, um dos textos sobreo público que integra o seu segundo livro de memórias(que irá, a seu modo, prolongar o seu Retrato inacabado,de 1984).

Entretanto, a questão da violência no teatro continuaa ocupar a atenção nos “Estudos aplicados”, que recolhemmais três das comunicações que se apresentaram emSófia, na Bulgária, no 24.º Congresso da AssociaçãoInternacional de Críticos de Teatro (que recordámos nonúmero anterior com uma mais extensa lista decomunicações) e que nos falam dessa problemática noJapão, Bulgária e Argentina. Entre as “Notícias de fora”vêm contribuições que trazem até nós realidades artísticasde Wroclaw, na Polónia (mostradas no âmbito do PrémioEuropa para o Teatro), de Goa (em inesperados diálogosinterdisciplinares), de Praga (com o grupo Farm in theCave), do Canadá (no encantamento de um teatro depequenas coisas animadas) e ainda de outros lugares ondese desenham formas de vida e experiências de teatro(como Buenos Aires e Brasil, por exemplo).

Se a secção “Em rede” nos fala das virtudes da Internetpara servir a relação de companhias de teatro com os seuspúblicos, ou entre si – no trabalho que desenvolvem longedos grandes centros urbanos –, é das razões da presençaem palco que os “Passos em volta” nos advertem: falandode Warlikowski (um dos premiados do Prémio Europa paraas Novas Realidades em 2008), bem como de espectáculosdo Teatro da Cornucópia, do Teatro da Trindade e dos doisTeatros Nacionais no momento em que se apresentamcom renovadas direcções: o Teatro Nacional D. Maria II,

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Sinais de cena 11. 2009oito Este número Maria Helena Serôdio Iluminar o palco

com Diogo Infante como Director Artístico, e o TeatroNacional S. João, agora dirigido por Nuno Carinhas. E épara recordar alguns momentos importantes da passagemde Ricardo Pais pelo TNSJ, que agora deixa, que o“Portefólio” nos traz uma impressiva colecção de imagensde espectáculos na perspectiva fotográfica de João Tuna.

As “Leituras” integram uma incursão analítica aouniverso dramatúrgico de Hélia Correia, interrogam arelação entre o Teatro e a escola, recenseiam a publicaçãopelo Museu Berardo do roteiro de uma exposição sobre“teatro sem teatro” e, como ocorre sempre no mês deJunho, apresenta a lista das publicações de teatro saídasa lume em Portugal no ano passado. Completa-se avisitação das letras no “Arquivo solto”, com as reflexõesde Luiz Francisco Rebello a propósito da relação entre Eçade Queiroz e o teatro, na reversibilidade que a conjunção

autoriza, e que Sebastiana Fadda documenta na lista deespectáculos com que termina a secção.

Resta-nos agradecer não apenas aos colaboradores,que entusiasticamente se dispuseram a trabalhar paramais este número da revista, mas também ao TeatroNacional São João, pela publicidade que aqui se inclui, eao Instituto Camões, pelo efectivo apoio que nosprodigaliza. Mas um agradecimento muito especial vaitambém para todos os que tão generosamente nos apoiamem tudo o que vamos precisando, muito em particular:Sofia Patrão, do Museu Nacional do Teatro, Luís Santose Cristina Reis, do Teatro da Cornucópia, João Tuna, como seu trabalho no TNSJ, Jorge Salavisa e Cecília Folgado,do São Luiz Teatro Municipal, José Frade, enfim, a todosos que pacientemente vão respondendo às nossasconstantes – e contumazes – indagações e pedidos.

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Rui Pina Coelho,

Ana Pais, João Carneiro,

Maria Helena Serôdio

e Constança Carvalho

Homem.

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Miguel Loureiro.

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Carla Galvão.

João Brites.

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Nuno Cardoso.

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Fot. José Frade.