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IETZSCHE E SAINT-EXUPÉRY: O SUPER-HOMEM E O PEQUENO PRINCIPE REVELAM-SE NO SONHO E NA EMBRIAGUEZ (NIETZSCHE AND SAINT-EXUPÉRY THE SUPERMAN AND THE LITLLE REVfAL THEMSELVES IN DRfAMS AND IN DRUNKNESS) RESUMO o estudo aqui desenvolvido tem o objetivo de analisar a relação que, de alguma forma, se consubstancia na tragédia nietzsch eana entre o apolineo e o dionisiaco. Essa relação que se expressa, para Nietzsche, no espírito da música, é reencontrada lia constituição do sonho apolíneo e na embriaguez es- tética proposta pelas mutações teatrais dionisiacas que, dentre outras coisas, canta a poesia trágica e leva ao esquecimento o apolíneo. No Pequeno príncipe, de ntoine de Saint-Exupéry, encontramos uma apro- ximação constituída no sonho e na embriaguez, o que nos permite um diálogo no centenário da morte de Nietzsche e do nascimento de Saint-Exupéry. Palavras-Chaves: sonho; embriaguez; fanta- sia; ApoIo; Dioniso INTRODUÇÃO o ano de 1871 2 recebe um grande presente - a publicação do livro O Nascimento da tragédia no es- pírito da música. Escrito em um período de conflitos entre França e Alemanha, ou seja, em plena Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), o seu autor - Friedrich ietzsche - que se encontrava em algum recanto per- José GERARDO VASCONCELOS I dido dos Alpes e encantado com a literatura gre- ga, revela-se posteriormente um dos críticos mais severos do próprio livro, considerando-o ... ... mal escrito, pesado, penoso. fre- nético e confuso fias imagens, senti- mental, aqui e ali açucarado até o feminino, desigual no tempo [ritmo l, sem vontade de limpeza lógica, muito convencido e, por isso. eximin- do-se de dar demonstrações , des- confiando inclusive da conveniência do demonstrar, CO/1l0 livro para iniciant es, CO/1l0 "música" para aqueles que foram batizudosna mú- sica (Nietzsche, 1998, p. 15-16). Nietzsche contava 27 anos:' e parecia es- tar alheio aos problemas da Alemanha. Interes- sava-se pelo pensamento grego clássico e, nesse contexto, dava primaziaà tragédia. É aqui que encontramos um esboço de figuras importantes que posteriormente apareceriam na tragédia nietzscheana. Qual o lugar do apolíneo e do dionisíaco na tragédia grega? Qual a relação do sonho e da embriaguez no espírito da música? Tem esse estudo o objetivo de analisar a possível relação da tragédia nietzscheana com I Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará: Editor-Chefe da Revista Educação em Debate da Faculdade de Educação da UFC. Bacharel em Filosofia Política e Doutor em Sociologia - O dia 28 de janeiro de 1871 foi o marco da capitulação francesa diante das tropas alemãs na Guerra Franco-Prussiana. Ocorreria ainda neste mesmo ano, de 18 de março a 28 de maio, a insurreição da Comuna de Paris, quando os trabalhadores tomam a cidade de Paris e conquistam importantes vitórias, tais como igualar os seus integrantes com um salário de operário. transformar o exército em milícias populares, instituir o ensino laico, público e gratuito. além da democracia direta. em que lodos os cargos de direção deveriam ser eleitos e destituíveis a qualquer momento. o dia 4 de setembro do mesmo ano, ocorre a proclamação do que ficou conhecida como a 11IRepública. 3 Friedrich Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 em Rõcken, próximo a Leipzig. Em 1849, em razão do falecimento do pai, ua família muda-se para Nuremberg. Em 1858, com 14 anos, recebe uma bolsa de estudos para a famosa escola Pforta, que abrigou poetas famosos como Novalis e filósofos como Fichte. Parte para Universidade de Bonn. local onde se dedicou ao estudo da Teologia e Filosofia. Em 1867, com 23 anos, foi requisitado pelo serviço militar, o que rapidamente o desobrigou em razões de um acidente de montaria. Em seguida, vai para a cidade de Leipzig, onde se dedica à Filologia. Seus referidos estudos incluíam autores como Diógenes de Laércio, Hesíodo e Homero e resultaram em vários trabalhos, a partir dos quais foi nomeado, em 1869, professor de Filologia da Universidade de Basiléia. Contava 25 anos e permaneceu nesta localidade por mais 10 anos. EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA· ANO 22 •V 2• NQ 40· p. 7-15 • 2000 7

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IETZSCHE E SAINT-EXUPÉRY: O SUPER-HOMEM E O PEQUENOPRINCIPE REVELAM-SE NO SONHO E NA EMBRIAGUEZ(NIETZSCHE AND SAINT-EXUPÉRY THE SUPERMAN AND THE LITLLE REVfALTHEMSELVES IN DRfAMS AND IN DRUNKNESS)

RESUMO

o estudo aqui desenvolvido tem o objetivo deanalisar a relação que, de alguma forma, seconsubstancia na tragédia nietzsch eana entre oapolineo e o dionisiaco. Essa relação que se expressa,para Nietzsche, no espírito da música, é reencontradalia constituição do sonho apolíneo e na embriaguez es-tética proposta pelas mutações teatrais dionisiacas que,dentre outras coisas, canta a poesia trágica e leva aoesquecimento o apolíneo. No Pequeno príncipe, de

ntoine de Saint-Exupéry, encontramos uma apro-ximação constituída no sonho e na embriaguez, oque nos permite um diálogo no centenário da mortede Nietzsche e do nascimento de Saint-Exupéry.

Palavras-Chaves: sonho; embriaguez; fanta-sia; ApoIo; Dioniso

INTRODUÇÃO

o ano de 18712 recebe um grande presente - apublicação do livro O Nascimento da tragédia no es-pírito da música. Escrito em um período de conflitosentre França e Alemanha, ou seja, em plena GuerraFranco-Prussiana (1870-1871), o seu autor - Friedrich

ietzsche - que se encontrava em algum recanto per-

José GERARDO VASCONCELOS I

dido dos Alpes e encantado com a literatura gre-ga, revela-se posteriormente um dos críticos maisseveros do próprio livro, considerando-o ...

... mal escrito, pesado, penoso. fre-nético e confuso fias imagens, senti-mental, aqui e ali açucarado até ofeminino, desigual no tempo [ritmo l,sem vontade de limpeza lógica,muito convencido e, por isso. eximin-do-se de dar demonstrações , des-confiando inclusive da conveniência

do demonstrar, CO/1l0 livro parainiciant es, CO/1l0 "música" paraaqueles que foram batizudosna mú-sica (Nietzsche, 1998, p. 15-16).

Nietzsche contava 27 anos:' e parecia es-tar alheio aos problemas da Alemanha. Interes-sava-se pelo pensamento grego clássico e, nessecontexto, dava primaziaà tragédia. É aqui queencontramos um esboço de figuras importantesque posteriormente apareceriam na tragédianietzscheana. Qual o lugar do apolíneo e dodionisíaco na tragédia grega? Qual a relação dosonho e da embriaguez no espírito da música?

Tem esse estudo o objetivo de analisar apossível relação da tragédia nietzscheana com

I Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará: Editor-Chefeda Revista Educação em Debate da Faculdade de Educação da UFC. Bacharel em Filosofia Política e Doutor em Sociologia- O dia 28 de janeiro de 1871 foi o marco da capitulação francesa diante das tropas alemãs na Guerra Franco-Prussiana.Ocorreria ainda neste mesmo ano, de 18 de março a 28 de maio, a insurreição da Comuna de Paris, quando os trabalhadorestomam a cidade de Paris e conquistam importantes vitórias, tais como igualar os seus integrantes com um salário de operário.transformar o exército em milícias populares, instituir o ensino laico, público e gratuito. além da democracia direta. em quelodos os cargos de direção deveriam ser eleitos e destituíveis a qualquer momento. o dia 4 de setembro do mesmo ano,ocorre a proclamação do que ficou conhecida como a 11IRepública.3 Friedrich Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 em Rõcken, próximo a Leipzig. Em 1849, em razão do falecimento do pai,ua família muda-se para Nuremberg. Em 1858, com 14 anos, recebe uma bolsa de estudos para a famosa escola Pforta, que abrigou

poetas famosos como Novalis e filósofos como Fichte. Parte para Universidade de Bonn. local onde se dedicou ao estudo daTeologia e Filosofia. Em 1867, com 23 anos, foi requisitado pelo serviço militar, o que rapidamente o desobrigou em razões de umacidente de montaria. Em seguida, vai para a cidade de Leipzig, onde se dedica à Filologia. Seus referidos estudos incluíam autorescomo Diógenes de Laércio, Hesíodo e Homero e resultaram em vários trabalhos, a partir dos quais foi nomeado, em 1869, professorde Filologia da Universidade de Basiléia. Contava 25 anos e permaneceu nesta localidade por mais 10 anos.

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o o Pequeno príncipe de Antoine de Saint-Exupéry.A primeira relação possível é o ano de 1900. Um sé-culo nos separa deste ano marcado por muitos acon-tecimentos e, dentre tais, dois, pelo menos, merecemdestaque aqui neste trabalho. Neste ano, Nietzschemorreria em Weimar, profundamente debilitado poruma paralisia progressiva, provavelmente de origemsifilítica, com 56 anos incompletos. No mesmo ano,no dia 29 de junho nascia Saint-Exupery".

O ano de 1900 é marcado não só pelo últimoano do século XIX, mas representava uma grande en-sação de euforia na Europa. O êxito econômico e aidéia de progresso justificavam-se plenamente com asrevoluções técnicas que cohabitavam como os novosentidos advindos no limiar do século XX.

O que encontramos nessa tênue pas agem doséculo XIX para o século XX é a era do aço e da eletri-cidade. A energia limpa ilumina as grande cidades emcontraposição à "sujeira" deixada pelo carvão. A tele-grafia marcava outras possibilidade comunicativas.Somem-se a isso o motor de combustão interna e o dí-namo. O petróleo passa a ser utilizado como energia.Não se podem esquecer os inventos mais espetacularescomo o submarino, o automóvel e o cinema, além dasrotativas e da linotipo, que tomavam as publicações eos jornais mais baratos e capazes de atingir um grandepúblico. Estamos na era da cultura de massas. Vivemosna era da teoria dos quanta e da relatividade.

Para coroar essa passagem para o século XX,temos a inauguração do metrô de Paris (1900). O es-pírito moderno é aqui o marco civilizatório de um tem-po de progresso.

Todavia, não se poderia esperar que todo o pro-gresso pudesse ser interrompido. Não se poderia ima-ginar que os instrumentos tecnológicos fossemutilizados como armas de guerra. A Europa vive oprogresso tecnológico de um lado, mas, de outro, as-siste perplexa à aprovação dos créditos de guerra pelasocial-democracia alemã.

Dividiremos este trabalho em três partes: Na pri-meira, refletiremos sobre a história e o esquecimento emNietzsche a partir do sonho e da embriaguez contidos naOrigem da tragédia no espírito da música, articula-dos, principalmente, com o Assim falou Zaratustra.Em seguida, pensaremos o sonho, a embriaguez e o es-quecimento em O Pequeno príncipe, de Saint-Exupery.

APOlO E DIONISO: O SONHO EEMBRIAGUEZ COMO ELEMENTOSCONSTITUTIVOS DA lEMBRANÇA E DOESQUECIMENTO

Em O ascimento da tragédia no espírito damúsica, publicado em 1871 e traduzido por J.Guinsburg com o título O Nascimento da tragédiaou helenismo e pessimismo, Nietzsche argumenta queo contínuo de envolvimento da arte está ligado àduplicidade do apolineo e do dionisiaco

... entre arte do figurador plástico! Bildner]. a

apolínea e a arte não-figurada [unbildlichen]da música, a de Dionisio: ambos os impulsos,

tão diversos, caminham lado a lado, na maio-

ria das vezes em discórdia aberta e incitando-

se mutuamente a produções sempre novas, para

perpetuar nelas a luta daquela contraposição

sobre a qual a palavra comum "arte" lançava

apenas aparentemente a ponte; até que, por fim,

através de uma miraculoso ato metafisico da

"vontade" helênica, apareceram emparelhados

um com o outro, e nesse emparelhamento a obra

de arte dionisíaca quanto a apolinea ge raram a

tragédia ática (Nietzsche, 1998, p. 27).

Essa duplicidade é constituída na vontadeheJênica norteando o espírito da música. Todavia oque se pode reencontrar no sonho e na embriaguez?Como revisitar a fantasia constituindo um arcabouçode símbolos propulsores de instantes e acontecimen-tos silenciosos? É possível ver o invisível? Embriagaro mundo é necessariamente lançar a humanidade aoabismo ou trespassar a subjetividade humana na suaânsia de criação e passionalidade. É nesse caso queprocuraremos respostas inferindo a harmonia e oequilíbirio apolíneo, para, em seguida, fazer jorrar aembriaguez e suas paixões.

Apoio, o Deus da beleza, da harmoniaestética e do equilíbrio

Apelo" é a representação do equilíbrio e da har-monia. É saudado na mitologia por inúmeros atribu-

4 Embora não tenha escrito somente o livro O Pequeno príncipe, Saint-Exupery notabilizou-se pela façanha de vender mais de 8milhões de cópias e ter sua obra traduzida para mais de 150 idiomas. Era aviador profissional e, incluiu a aviação na sua fábula.Escrito no exílio, em New York, quando fugia da ocupação nazista em Paris no ano de 1939, o livro foi publicado em 1943, um anoantes do desfecho trágico de sua morte em decorrência do acidente aéreo ou suicídio, ocorrido em julho de 1944.5 De acordo com Brandão ( 1999, p. 85), o Apoio pôs-homérico vai progressivamente reunindo elementos diversos. de origemnórdica, asiática, egéia e sobretudo helênica e, neste último aspecto, conseguiu suplantar por completo Hélio. o Sol propriamentedi/o. Fundindo numa só pessoa e em seu mitologema, influências e funções tão diversificados, o deus de Delfos tomou-se uma figuramitica deveras complicada. São tantos os seus atributos, que se tem a impressão de que Apoio é um amálgama de várias divindades,sintetizando num só Deus um vasto complexo de oposições.

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_Deu da luz, Apoio é o brilho e a força do Sol.e no dia sete do mês délfico. Sua lira possuía

e cordas. Sua doutrina contém sete máximas. É ous da sétima porta, de acordo com as ilações de

- uilo.

Alto, bonito e majestoso, o deus da música eda poesia sefazia notar antes do mais por suasmechas negras, com reflexos azulados, "comoas pétalas do pensamento ". Muitos foram as-sim seus amores com ninfas e, por vezes, comsimples mortais (Brandão, 1999, p. 87).

Amou a ninfa náiade Dafne", filha do deus-rioPeneu. Com a ninfa Cirene, teve o semideus Aristeu

Também as musas não escaparam aos seusencantos. Com Talia foi pai dos Coribantes,demônios dos cortejos de Dionísio; comUrânia gerou o músico Lino e com Calíopeteve o músico, poeta e cantor insuperávelOrfeu. Seus amores com a ninfa Corônis, deque nascerá Asclépio(. ..). Com Marpessa.fi-lha de Eveno e noiva do grande herói Idas,o deus igualmente não foi feliz. Apoio a de-sejava, mas o noivo a raptou num carro ala-do, presente de Poseidon, levando-a paraMessena, sua pátria. Lá, o deus e o mais for-te e corajoso homem se defrontaram. Zeusinterveio, separou os dois contendores e con-cedeu àfilha de Eveno o privilégio de esco-lher aquele que desejasse. Masp essa,temendo que Apoio, eternamente jovem, aabandonasse na velhice, preferiu o mortalIdas. Com a filha de Príamo, Cassandra, ofracasso ainda foi mais acentuado(. ..). EmCôlofon. o deus amou a advinha Manto efê-Ia mãe do grande advinho Mopso(. ..). ComEvadne teve Íamo, ancestral da célebre fa-mília sacerdotal dos Iãmidas (Brandão, 1999,p. 87-88).

Para Nietzsche ( 1998, p. 28), o grandeplasmador apolíneo representa o mundo do sonho emcuja produção cada ser humano é um artista consu-mado. Nesse caso, a experiência onírica resplandeceem enlaces divinatórios que se consubstanciam noreino da luz e da fantasia

Apoio, na qualidade de deus dos poderesconfigurados, é ao mesmo tempo o deusdivinatório. Ele, segundo a raiz do nome o"resplandente ", a divindade da luz, reinatambém sob a bela aparência do mundo in-terio r da fantas ia.

Dionísio, O Deus da embriaguez, doêxtase e do entusiasmo

Dioniso? é trazido a nós pela representação daembriaguez. É a personificação do vinho. Inventor doteatro. Por isso está associado a Melpomene, a musada tragédia. Também por isso é o deus da transforma-ção (metamórphosis).

Dioniso se constitui na embriaguez através dareelaboração da divindade sem deus. É o deus perse-guido. Todavia,

...a perseguição a Dioniso, sob a perspecti-va mitica, faz parte de um rito iniciatório ecatártico: a purificação pela água. Este é umdos temas bem atestados em quase todas asculturas primitivas. O episódio da persegui-ção aparece em determinados momentos dasfestas e cerimônias a que o filho de Sêmelepresidia (Brandão, 1999, p. 115).

Sob a magia de Dioniso ou sob a influência dabeberagem narcótica, tal como Nietzsche afirma naOrigem da tragédia no espírito da música,

... todos os povos e homens primitivos falamem seus hinos, ou com a poderosa aproxi-

6 ApoIo, gracejando Eros em relação às suas flechas, motiva o filho de Afrodite a comprovar o venenoso poder de suas flechasamorosas. Contudo, Eros não só possuía o dom de causar amor ferindo com as pontiagudas flechas, mas, também, a repulsa. Issoocorre com Dafne que, flechada com a flecha da repulsa, vê ApoIo desesperado perseguir-lhe, picado com a flecha do amor. A ninfa

desespera e não corresponde aos desejos de ApoIo. Quando estava perto de ser alcançada pelo deus, pede ao pai que a ajude. Opedido foi atendido pelo deus-rio que a metamorfoseia em um loureiro, árvore predileta de Apoio.7 Segundo Brandão ( 1999, p. 117), viu-se que o deus do êxtase e do entusiasmo, até mais ou menos a década de 50, era consideradocomo uma divindade que chegara tardiamente à Hélade. Pois bem, a partir de 1952, as coisas se modificaram: é que a decifraçãode uma parte dos hieróglifos cretomicênicos por Michael Ventris, segundo se mostrou 110 Voi. I, p. 53, ou mais precisamente, adecifração da Linear b, consoante a classificação de Arthur Evans, demonstrou que o deus já estava presente na Hélade pelo menosdesde o século XIV ou XIlI ac, conforme atesta a tabela X de Pilos. Há de seperguntar porque um deus tão importante,já documentadono século XlV, só se manifesta, e deforma aparentementegrotesca, no século IX, e só a partir dosfins do século VIIa C. tem sua entradasolene na mitologia e na literatura? É quase certo que o adiado aparecimento de Dionísio e sua tardia explosão no mito e na literaturase deveram sobretudo a causas políticas (...). Dionisio é um deus humilde, um deus da vegetação, um deus dos campônios. Com seuêxtase e entusiasmo, ofilho de Sêmele era uma séria ameaça à polis aristocrática (Brandão, 1999, p. 117).

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mação da primavera a impregnar roda na-tureza de alegria, despertam aqueles trans-portes diotiisiacos, por cuja intensificação osubjetivo se esvauece em completo auto-es-quecimento (Nietzsche, 1998, p. 30)

A harmonia e a necessidade da medida eramexigidas nas configurações apolíneas. O dionsíacotrouxe a desrnesura e a desconfiguração. É necessárioultrapassar a aparência em busca de novos signo oumediações estéticas. É que a possibilidade da criaçãonão se inscreve no campo normativo.

o individuo, com todos os seus limites e me-didas, afundava aqui 110 auto-esquecimentodo estado dionisiaco e esquecia os preceitosapolineos. O de 'medido revelava-se COl1l0 averdade. a contradição. ()deleite nascido dasdores, falava por si desde o coração da naiu-reza. E foi assim que, etu toda pane onde odionisiaco penetrou. o apolineo foi suspensoe aniquilado ietzsche. 199 . p. 41 ).

É ne e campo que a pedagogia dioni. íaca . einterpõe ao norrnati o e transforma deus no artistaque, do palco da vida. reescreve e reinventa o mun-do. o Assim falou Zaratustra, ietzsche (1986,p. 58) afirma:

Eu acreditaria somente em um deus que SOIl-

besse dançar. E. qual/do vi o meu Diabo,achei-o sério e metódico, profundo, solene:era o espírito de gravidade (...). Não é comira que se mata. mas COI1/ riso. Ela. pois va-1/10S matar o espírito de gravidade!

A constituição da amizade é tematizada no As-sim falou Zaratustra (Nietzsche 1986, p. 72) da se-guinte forma: Se queres ler um amigo, devemosquerel: também, guerrear por ele; e, para guerre-ar; é preciso poder ser inimigo. Essa constituição daamizade infere a reelaboração de sentidos invisíveis,sentidos esses constituídos no campo de uma ambi-güidade e de uma segmentação atravessadas por flu-xos que se estendem em processos de fugas ou delinhas que migram para outros territórios. A amizadeintensiva soma-se e multiplica-se às rnultiplicidades derelações e constituições maquínicas da vida.

Para Deleuze (1996, p. 7), no Anti-Édipo, umamáquina-órgão está ligada a uma máquina-origem:uma emite o fluxo que a outra cortai. ..). É assim. quetodos somos bricoleurs, cada um com as suas peque-nas máquinas.

Um fluxo e um corte abalam o espaço da certe-za e iluminam as vielas do acaso. É a valorização doque outrora fora sem sentido. Um lugar que não temlugar, refeito ou desfeito na sua genealogia. É na em-briaguez dionisíaca que o inusitado pode sentar-se àmesa e celebrar, na ceia da história. os campos mina-do de vozes perdidas, vidas ausentes, mágoas que seforam e re enrimentos esquecidos. É na história queo principal da vida poderá acordar sem se retrair e serecon tiruir no grande teatro da história.

SONHO E EMBRIAGUEZ NO PE~UENOPRíNCIPE DE SAINT-EXUPERY

ece ário se faz revelar o sonho e a embria-guez como elementos constituidores de acasos e ris-co que dilaceram as entranhas e os sentidos linearesna hi tória. Para tal, recomporemos inicialmente odiálogo e a transrnutação do camelo, do leão e domenino. Em eguida, revelaremos a possibilidade dosonho e. finalmente, a integração da embriaguez nacon tituição da fantasia e do esquecimento.

O camelo, o leão e o menino ou asubmissão, a força e a inocência

Conforme anunciara Nietzsche (J 986), no li-vro I do Assim falou Zaratustra. principalmentequando se refere ao discurso de Zarutustra, encontra-mos elementos que nos possibilitam analisar a ino-cência e o esquecimento. Na fábula das trêsmetamorfoses há que se pensar os moti vos pelos quaiso espírito se torna camelo, e o camelo lei/o. e o leão.porfim, criança.

Os fardos. são lançados em demasia ao espíritoque quer ser livre e o peso da norma o impede de voar.Esse vôo é inviabilizado pelo peso da carga que im-põe ao seu carregador metas extremamente severas.Tem-se ainda o que há de mais pesado e que seconsubstancia na figura do herói: o peso datemporal idade que se desmancha nos prantos de si-lêncio ou numa estética da existência que fora transfi-gurada pela realidade.

O fardo passa a magoar o próprio orgulho. Re-vela, nas luzes que se acendem, o lado retraído da vidaou simplesmente os dissabores da fantasia queenaltecern os sentidos da imaginação. em campos exi-lados no nosso próprio locus de imanência.

O camelo. conforme fora construído na tragé-dia nietzscheana, recebe a carga e atravessa o longodeserto para o próprio deserto. Submisso, adestrado,chega até a se confundir com a própria carga que car-rega. Olha com os olhos da culpa e. nesse caso, deve

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ular qualquer fantasia ou possibilidade de emanei-ção. A sua autonomia é invertida pela carga que

carrega e passa, nesse momento, a ser um partícipe degar nenhum.

Entretanto, conforme assinala Nietzsche ( 1986,_44). no mais ermo dos desertos. dá-se a segundaetamorfose: ali o espírito torna-se leão, quer con-tistat; como presa, a sua liberdade e ser senhor emLI próprio deserto. É que o leão, na sua realeza, im-

- -se ao fardo e não se submeteria à carga de forma- pacífica.

O leão deseja lutar. Afinal de contas, ele é o rei. animais. Quer devorar o último senhor que, de

gora em diante, se torna o seu inimigo. Não temeu ,pois a sua glória seria alimentar-se com o corpo

ivino, mesmo que crucificado. Além disso, ele correem busca do dragão. Ele agora é absoluto em sua for-ça. As suas garras, movidas pela agilidade de umelino, impõem ao inimigo o fim da compaixão. Não

se pode, nesse caso, apresentar a culpa ao predadorue. no seu risco, sabe das suas possibilidades. Isso

pa 'a a ser encantador.Os valores transfiguram-se na sua transva-

loração. Na busca do dragão, é restabelecido novoalento aos dernolidores de normas. Devore as normase o homem viverá plenamente e, assim, poderá atébrincar. Restam então os novos valores? Nietzsche

1986, p. 44) afirmaria: Isso também o leão ainda nãopode fazer; mas criar para si a liberdade de novascriações.

Precisa-se do leão. Ele pode dizer não ao insti-ruído. Pode devorar as normas:

Conquistar o direito de criar valores - essaé a mais terrível conquista p({ra o espíritode suportação e de respeito. Constitui paraele. na verdade, um ato de rapina e a tare-fa de U/1/ animal raplnante (Nietzsche ,

1986, p. 44).

Diante de tanta demonstração de força e de au-tonomia, o que restaria fazer? Qual o lugar da crian-ça? A força do leão já não é bastante para seguir astrilhar da liberdade? Perguntaria Nietzsche (1986,p.44): Por que o rapace leão precisa ainda tornar-secriança') Nietzsche (1986, p. 44) responderia:: Ino-cência é a criança, e esquecimento; um novo começo,um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movi-mento inicial, um sagrado dizer "sim".

É que para o jogo da criação é preciso dizersim. São necessárias a transgressão e a paixão. É pre-ciso ser louco e, na loucura, ter a possibilidade de trans-formar o instituído. O Pequeno príncipe, de

Saint-Exupéry, oferece-nos esse presente onírico. Essafantasia que é capaz de falar a nossa alma e de ali-mentar o nosso espírito infantil.

o sonho pode sobreviver apesar darealidade

O sonho alerta os homens. Pode mover o seuencanto na sublime possibilidade de transcender o tem-po. O homem pode voar e saltar sobre o céu. Pode abar-car a tempestade e criar animais perigosos. Pode, acimade tudo, ver o invisível. Pode tornar-se qualquer coisaem qualquer lugar e obter qualquer resultado .

A capacidade de encantar-se com o inusitado étarefa que cabe ao ser humano. Não se pode bloquearo medo do complexo campo da realidade e o dialógicointuito de saber que se pode e se deve sonhar. Toda-via, para se entender essa possibilidacle, teríamos queousar reviver a inocência que cohabita nosso corpo enossa possibilidade de ser gente grande.

Nossas metas são marcadas pelo delírio da res-ponsabilidade imposta em códigos lúgubres e desen-cantados pelos atributos dos documentos e/ou pordisputas políticas e socio-econôrnicas. A simplici-dade do sonho pode consubstanciar, nas marcas datemporal idade, sentidos ou atributos polifônicos, ré-plicas mnemônicas recriadas, mimetismo acentuadodas dialogias transfiguradas, ressonâncias de instan-tes que se inscrevem na pauta diluída de umaracional idade atroz que insiste em deixar rastros dedissabores ou simplesmente a possibilidade de es-quecer a dor para continuar a lançar todas as pontespossíveis.

O sonho do invisível ou da invencibilidade doherói encontra um lugar nas representações do vôo ouno fato de cair do céu. Surge, nesse acaso do deserto,não somente o camelo ou o leão, mas a criança. Nessecaso, só a criança pode compreender o primeiro dese-nho feito a lápis de cor, com seis anos de idade, apóslonga reflexão, através da vontade de viver tomadapelo risco ou simplesmente pelos perigos de uma sel-va imaginária. Esse desenho que parecia um chapéupara os não entendidos, seres dotados de "racio-nalidade" e/ou "genialidade", era simplesmente umajibóia que acabara de engolir um enorme elefante. Sóa inocência poderia entender que, para além do visí-vel e do instituído, existe um mundo maravilhoso quenão se pode ver com os olhos, mas com as nossas pai-xões ou nossos desejos.

O mesmo aconteceria com o carneiro que LePetit Prince gostaria de levar ao seu planeta. Pois des-cera do céu ou do seu mundo em busca de sonho efantasia. Mas o seu mundo é muito pequeno. Quem

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sabe, é um quarto de apartamento que só abriga umapequena cama e uma estante, também minúsculos ...

O tal carneiro não consegue ser constituído nasua visibilidade. É necessário inventar um novo car-neiro e desenhá-lo no papel. No primeiro desenho, ocarneiro estava doente. Um ar transfigurado lhe caíapela triste face. É como se caminhasse para umabatedouro. Esse carneiro doente não esconde a suafragilidade e impotência. Ele passa a ser rejeitado pe-las necessidades de Le Petit Prince.

Nova tentativa se inscreve e toma lugar no pa-pel. Mais uma vez a recusa da ingenuidade assume olugar que busca no encanto um objetivo marcado pelafantasia. O carneiro transforma-se em bode. E, nessecaso, Le Petit Prince, ao perceber os chifres, recusa-se a aceitar um bode no lugar de seu carneirinho.

Outra tentativa recusa a gravura do carneiro. Ofato é que o seu semblente reflete o cansaço e o pesoda idade. O novo carneiro ofertado estava muito ve-lho para uma criança. O seu corpo não poderia se ha-bituar às peripécias infantis. Esse também não serve,é muito visível.

É, nesse caso, que o carneiro passa a encantar ainocência do menino-príncipe. O carneiro é desenha-do imaginariamente dentro de uma pequena caixa queapresenta alguns pequenos orifícios para possibilitara respiração. «Vê-se claramente» que o carneiro estáfeliz. Isso pode ser imaginado no seu semblente. Eis ocarneiro. É isso que se deseja. Todavia, ele só podeser captado pelo sentido do carneiro ou por necessi-dades da alma. É preciso ver o invisível, sentir oinexistente ou simplesmente dar vida ao sonho.

As possibilidades do diálogo entre Le Petit Princee o homem grande inscrevem na fantasia as marcascivilizatórias que impedem o outro de ser outro. O ho-mem promete uma corda e uma estaca para amarrar o car-neiro durante o dia. Isso parece assustar Le Petit Prince.

- Amarrar? Que idéia esquisita! .- Mas se tu não o amarras, ele vai-se embo-ra e se perdeE meu amigo deu uma nova risada:- Mas onde queres que ele vá?- Não sei ... Por aí. .. Andando sempre parafrente.Então o princepezinho observou, muitosério:- Não faz mal, é tão pequeno onde moro!E depois, talvez com um pouco de melanco-lia, acrescentou ainda:- Quando a gente anda sempre para frente,não pode mesmo ir longe (Saint-Exupéry,1997, p. 14-16).

Que idéia terrível ter que amarrar o outro, mes-mo que o outro seja um carneiro! Ir para frente oulançar pontes abre as fronteiras da temporalidade ousimplesmente fura as mônadas de Leibiniz, trespassaa dureza da unidade, partindo-a e cortando-a em váriospedaços, gerando o múltiplo e o diferente.

As pequenas coisas transbordam no cotidiano enas grandiosas intenções da humanidade. O grandenecessita submeter ou anular o fragmento. Isso podeocorrer inclusive com o tempo ou com a organizaçãoespacial. Os pequenos asteróides podem nem existir quecontinuarão existindo. O grandes planetas cadastradospela "genial idade" encobrem os pequenos asteróidesnumerados sem grandes rituais de descoberta. Mas opequeno ou precisamente o asteróide B 612 era um lu-gar de onde provinha Le Petit Prince. Parte em buscada amizade ou um lugar partilhado pela vida.

É possível esquecer um amigo? Tem-se na sau-dade o dilema da perda, da busca e da vontade. O es-quecimento é proposto ao homem que não consegueprolongar a dor. Entretanto, o esquecimento é marca-do pela lembrança, assim como a lembrança se cons-titui no esquecimento. Pode inclusive saber que o atode lembrar ou de narrar as lembranças possam escon-der as amarguras de dolorosas perdas.

Porque eu não gosto que leiam meu livro le-vianamente. Dá-me tanta tristeza narrar es-sas lembranças! faz já seis anos que meuamigo se foi com seu carneiro. Se tentodescrevê-lo aqui, é justamente porque não oquero esquecer. É triste esquecer um amigo(Saint-Exupéry, 1997, p. 18-19).

Um dia Le Petit Prince interrogara sobre as pre-ferências alimentares do carneirinho. Eles comembaobá ? Uma árvore enorme e poderosa é o baobá.Contudo, o baobá é pequeno antes de crescer e, alémdisso, é preciso lembrar que as sementes são invisí-veis. ELas dormem no segredo da terra até que umacisme em despertar. A relação entre o grande e o pe-queno, o feio e o belo, o quente e o frio, o bem e omal, a saúde e a doença, não pode ser inscrita emrelações binárias, dicotomizadas e antinôrnicas. Ascoisas e as pessoas simplesmente são diferentes.

O planeta do princepezinho estava infestado debaobás. Pelo tamanho do planeta, em comparação como tamanho do baobá, poderia acontecer a destruiçãodo pequeno planeta. Mas, por que viver em um plane-ta tão pequeno que não suporta o tamanho de umbaobá? O lugar pode repor outros caminhos e outrasréstias de felicidades que, mesmo efêmeras, são in-tensas nas sua configuração.

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o pequeno planeta pode ser um belo lugar parapôr-do-sol. E se fosse possível vê-lo mais deez por dia? Le Petit Prince afirma tê-lo

~!:t:!li5-ado 43 vezes em um mesmo dia. Isso pode tra-de felicidade ou, quem sabe, revelar o mo-

de enorme tristeza.lembrança e a impostura de acasos socor-

e pinhos que as pequenas coisas podem fa-_ A beleza de uma flor pode revelar o seuo ou marcas de espinhos, deixados para cau-a pequena dor e proporcionar a quem observaa possibilidade de combate e de guerra. A in-

idade de uma flor esconde a força do espinhoimperceptível.O carneiro pode devorar a semente de baobá e

êrn a flor. Todavia, a beleza da flor pode ser lem-ou esquecida. Temos que partir para nossos en-

o ou novas descobertas. Despedimo-nos em- propulsores de saudade e corremos em buscampo e encontramos o rei.

O rei necessita de súditos para impor atos deiência. O poder de mando do rei, no entanto, é

, ido junto ao inocente sentido que transborda noshos obscuros e retraídos da vida. A necessidade

iências pode aplainar a a vontade do rei.

- Majestade ... Eu vos peço perdão de ousarinterrogar-vos ...- Eu te ordeno que me interrogues, apres-sou-se o rei a declarar.- Majestade ... sobre quem é que reinais ?- Sobre tudo, respondeu o rei, com uma gran-de simplicidade- Sobre tudo? (Saint-Exupéry, 1997, p. 36).

O poder de mando é precedido da vontade deroea:ceT. A servidão pode ser voluntária. Ela susten-C!:3.CllOD[l.]·mação.Cria o rei dando-lhe sustentação. Mas

rerJocutor de Le Petit Prince estava amedron-g&;j1D curo um poderoso rato que cohabitava o seu pla-

livrar-se de tão poderoso inimigo, ordena a- Prince que extermine o animal. Entretanto, a

C'5s1~.ia ocorre abruptamente:

- Eu, respondeu o princepezinho, eu não gos-10 de condenar à morte, e acho que vou mes-mo embora.- ão, disse o rei.Mas o princepezinho, tendo acabado os pre-parativos, não quis afligir o velho monarca:- Se Vossa Majestade deseja ser prontamen-te obedecido, poderá dar-me uma ordem ra-zoável. Poderia ordenar-me, por exemplo,

que partisse em menos de um minuto. Pare-ce-me que as condições são favoráveis ...Como o rei não disse nada, o princepezinhohesitou um pouco ..depois suspirou e partiu.- Eu te faço meu embaixador, apressou-se orei em gritar.Tinha um ar de grande autoridade

- As pessoas grandes são muito esquisitas,pensava durante a viagem, o principezinho.(Saint-Exupéry, 1997, p. 40).].

O sonho em sua vaidade e sua força parece com-padecer-se com o resto do mundo. Constitui a sua vidano império de um iluminado mundo que se faz beloou toma-se belo pelo encontro que pode ser reveladoe ampliado na embriaguez.

A embriaguez move-se no esquecimento

No Ecce Homo, Nietzsche ( I983f, p. 372) afir-maria: quem quer desvencilhar-se de uma pressão in-suportável tem a necessidade de haxixe. Embriagar ecolorir a vida é tra~sportar o inusitado e o intempestivopara dentro da axiologia, fazendo escorrer por entre osdedos os fluxos que migram da vida efetiva e, ao mes-mo tempo, projetar na ressonância as suas luzes na gran-de luz instituída na magia dos códigos.

A brincadeira dionisíaca propulsora do êxtasehabita os lugares escusas e silenciosos ou revela, nolodo do pântano, os ritos de embriaguez causados pelasatisfação encantada da vida. O homem não pode sesubmeter ao instituído. Quão grande a necessidade desubverter o tempo e revelá-Ia uma criança extem-porânea! Como é intensa a magia de transpor todos oslimites e encontrar o belo e o sublime nas taças amar-gas ou nos famélicos e fétidos corpos massacradospelo tormento da cultura ou pela violência dos nobresdetentores dos sonhos!

A magia da embriaguez encontra-se atravessan-do uma corda sobre um abismo. o silêncio dessa imen-sidade, há o risco. Descobrir o risco e o acaso das lutas ésaltar pontes e interceptar as metas. Para Nietzsche, nasua tragédia moderna, o homem é uma corda estendidaentre o animal e o super-homem - uma corda sobre oabismo (Nietzsche, 1986, p. 31). É saber que a travessiaé perigosa, mas que o lugar do homem é o risco.

Correr riscos é ter a capacidade de transgredir,criar e, principalmente, apaixonar-se pelo desconhe-cido. É ter a capacidade de esquecer e, a partir da ino-cência, e só pela inocência, é que o homem podeencantar-se ou embriagar-se com a vida.

É esse instinto criador que fora afogado pe-las águas da razão. Diante disso, o mais razoável

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seria afogar a própria razão para que o homem pu-desse fluir nos seus encantos criadores. Esses fei-xes de ressonância estética que, principalmente, sãotransfigurados nas imposições da vida, podem fluirnas composições artísticas e nos fluxos que rom-pem com a binária oposição imposta à realidade. Aembriaguez soluça no seu encanto. Torna o mundodetentor de múltiplos sentidos. Torna o signopolifônico em sua constituição estética, estilísticaou semântica.

Saint-Exupéry (1997, p. 42), ao construir ospassos de Le Petit Prince, coloca-o frente à embria-guez. É então que o princepezinho mergulha em umaprofunda melancolia. É provável que seja tão intensaquanto a outra tristeza a que outrora fora submetido,ao ver e encantar-se com o pôr-do-sol. É que a melan-colia é um sentimento de pesar e desgosto. A melan-colia torna impotente e se aproxima do tédio. É umdesencanto em relação ao mundo que, sendo doloro-so, não pode impedir que a melancolia e o tédiotransmudem. Isso pode ocorrer através da dor ou dapaixão. Sendo extremamente próximas, a dor e a pai-xão também atravessam a corda que outrora fora atra-ve ada pela embriaguez e que se pode mover empequena trilhas ou labirintos que, teriuamente, sepa-ram a loucura da criação estética.

pe ar de i ermos de forma segmentarizada,o me mo egmento ão lrespassados por fluxos degrande inten idade. revelado no ri co da embraiguez.Contudo. é e embriaguez que mantém vi O' o. in -tintos humano . É tran mudando o rito e vivendo o

o d lut que e pode intuir no campo de ejanteque monta e de monta um ujeito.

Para aint-E upéry (1997. p. 42), o bêbado éon tiruído em tom de melancolia e vergonha. Funda

na dor o e quecimento promovido pela embriaguezde nudada nos campos de perplexidade que se recri-am na inocência.

o planeta seguinte era habitado por um bêba-do. Esta visita foi muito curta, mas mergulhouo principezinho tuuua profunda melancolia.- Que fazes aí? Perguntou ao bêbado, silen-ciosamente instalado diante de uma coleçãode garrafas vazias e unta coleção de garra·[as cheias.- Eu bebo, respondeu o bêbado. com ar lú-gubre.- Por que é qlte bebes? Perguntou-lhe oprincipezinho- Para esquecer. respondeu () beberrão.- Esquecer o quê? Indagou o principezinho,que já começava a sentir pena.

- Esquecer que eu tenho vergonha. confes-sou o bêbado, baixando {/ cabeça.- Vergonha de que? Investigou o princi-pezinho, que desejava sororrê-lo.- Vergonha de beber! Concluiu o beberrão.

encerrando-se definitivamente 110 seu silên-cio (Saint-Exupéry 1997. p. 42-43).

Aqui, Saint-Exupéry (1997, p. 42-43) analisa aembriaguez de forma extremamente normativa. Estáligada à vergonha e é capaz de promover a noção depena ou culpa no "infeliz" "beberrão". A embriaguezbáquica (ou dionisíaca) é a propulsora da criação es-tética. É o deus da transformação e revela-se no tea-tro. Penetra todos os lugares e está sempre emmovimento. É um deus que dança e canta. É um deusembriagado, erótico e fértil.

De 1lI1/. ponto de vista siuibolico. o deus damania e da orgia configura a ruptura dasinibições, das repressões l' dos recalques. Nafeliz expressão de Dafradas. Dionisio sim-boliza as forças obscuras que emergem doinconsciente, pois se trata de uma divindadeque preside à libertação provocadas pelaembriaguez, por todos asformas de embria-gue:, a que se apossa dos que bebem. a quese apodera das multidões arrastada pelofas-

cinio da dança e da música e até mesmo aembriaguez da loucura com que os deusespunem aqueles qlte lhes desprezatn o culto.Desse modo, Dioniso retrucaria asforças dedissolução da personalidade: a regressão àsforças caóticas e p nniordi ais da vida.provocadas pela orgia e a subniersào daconsciência no lI1.agl1lOdo inconsciente(Brandão, 1999. p. 140).

o combate à embriaguez é muito fluido e incon-sistente nas páginas que se sucedem no livro de Saint-Exupéry. Seguem o homem de negócios que só temtempo para o dinheiro; o acendedor que não pode des-cansar, pois o tempo fica cada vez menor; a organiza-ção do geógrafo e da própria terra: a flor que retomamas não é a única, e a raposa que invoca a responsabi-lidade e que nos brinda com a famosa frase: 7~1te tor-nas eternam.ente responsável por aqui/o que cativas(Saint-Exupéry 1997, p. 72). Não bastasse a responsa-bilidade com o outro, é aqui pedida a eternidade. Es-queçamos a eternidade e transformemos aresponsabilidade normativa em cuidados passionais quese intensificam nos liames de temporal idades marginais,mas que se constituem no respeito ao diferente.

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CLUSÃO

C minhar sem lugar é configurar-se em·i:II:p"JEr.1lidade- díspares. Recorrer ao invisível, no trá-......,.,n retorno, é erguer as setas pontiagudas contra um::J.:I;:nr-olnnadopassado constitu idor de verdades eter-

o que o silêncio não se pode mover entre as ân-ue e escoram no lamaçal circundante da

'--o••..•••.:'-3í "el Felicidade. Qual o lugar da harmonia, doe da beleza? Qual o intuito de se removem os

propulsores de invenção? Inventar é a grandeda humanidade e isso não seria possível sem o

~:mno de transgressão.A embriaguez ocupa um lugar que se inicia na

fe ração da autonomia criadora. Para isso, há quear contra a temporal idade disciplinada e nor-

~dl1M;a. cujo objetivo é furar os segmentos e os ins-marcados pelos ritos que só se tornam visíveis

_ ••••..••...ência apaixonada da criança. São nesses terri-- - confusos, lamacentos e trágicos - que se en-m povoados por sujeitos nômades. Só os maisdidos ganham visibilidade, tornando-se os olha-parentes outros olhares gestores de pequenos,

°m intensos fluxos de paixões embriagados pelostes presentes. É essa autonomia criadora que

ul iona os nossos ritos criadores e transgressoresaJores e da cultura. Há que se pensar na autono-do indivíduos que resistem aos intensos atosalizadores.

É que se faz razoável apropriar-se do vazio note de constituição dos sujeitos do presente. É ur-

= te que se acorde a criança escondida para que se pos-ver o outro lado do mundo. O encanto do silêncio é

itado no lugar onde outrora se escondera do institu-. Só no campo das paixões e da embriaguez estética é

e 'e pode revelar que o homem deixa viver os seusintos, apesar da razão, da moral e da religião.

O lugar do sonho não pode inviabi Iizar a possi-bilidade da criação. Esse é o lugar da embriaguez.Possíveis conexões só encontrarão um lugar na cordaque encontra, no risco, os fluxos necessários para olhara fina membrana que "separa" a loucura e a invenção .

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