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URI-UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES. PRÓ-REITORIA DE ENSINO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS DE FREDERICO WESTEPHALEN CURSO DE FILOSOFIA IDEOLOGIA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA MARCIO LUIS MARANGON Frederico Westphalen, Novembro de 2008.

Ideologia - uma análise histórica

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Monografia de Graduação em Filosofia

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URI-UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS

MISSÕES.

PRÓ-REITORIA DE ENSINO

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS

CAMPUS DE FREDERICO WESTEPHALEN

CURSO DE FILOSOFIA

IDEOLOGIA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA

MARCIO LUIS MARANGON

Frederico Westphalen, Novembro de 2008.

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MARCIO LUIS MARANGON

IDEOLOGIA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA

Monografia desenvolvida no Curso de Filosofia,

Departamento de Ciências Humanas da URI-Campus de

Frederico Westphalen, apresentado como requisito

parcial para avaliação da disciplina de Monografia B.

Professor: Claudionei Vicente Cassol

Frederico Westphalen, Novembro de 2008.

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DEDICATÓRIA

Ao meu pai, Olívio, exemplo de determinação, perseverança e comprometimento social e

familiar. A minha mãe, Maria, transparência de ternura, bondade e dedicação, ambos, o melhor

exemplo que um filho pode carregar. Se hoje tenho esta oportunidade é por mérito deles.

Obrigado!

A Eliane, voz confortante nos momentos de dificuldade e ombro amigo que alimenta

minha vontade de viver e seguir em frente, companheira de sonho e de esperança de um amanhã

melhor, que esteve sempre ao meu lado me apoiando em minhas decisões.

A todos os companheiros que lutam dia-a-dia por um futuro melhor, superando as mais

diversas dificuldades, lutando contra um sistema excludente, em prol do sonho de ver o mundo

melhor, mais igual e mais fraterno, onde todos possam ter oportunidades, indiferente de cor,

credo ou classe social. A todos esses, fica o desejo de que a esperança vença o medo, para que

possamos ser operários na construção e concretização desta utopia, pois como diz Marx : “ De

nada valem as idéias sem homens para pô-las em prática”.

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AGRADECIMENTOS

Ao orientador Claudionei V. Cassol, pelo apoio fundamental, e pela dedicação.

Ao corpo docente do curso de Filosofia da Universidade Regional Integrada.

Aos meus colegas de curso da universidade, irmãos de luta e de perseverança, com os quais

caminhei na trajetória deste trabalho.

Aos meus amigos e familiares pelo apoio e ajuda.

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IDENTIFICAÇÃO

Instituição de Ensino/Unidade

URI- Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões

Campus de Frederico Westphalen

Direção do Campus

Diretor Geral: César Luis Pinheiro

Diretora Acadêmica: Edite Maria Sudbrack

Diretor Administrativo: Nestor H. de Cesaro

Departamento/Curso

Departamento de Ciências Humanas – Coordenadora: Silvia Regina Canan

Curso de Filosofia – Coordenador: Claudir Miguel Zuchi

Disciplina:

Monografia B

Orientador (a):

Prof. Claudionei V. Cassol

Orientando:

Marcio Luis Marangon

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RESUMO

O presente trabalho baseia-se nas relações dos seres humanos e suas atitudes para com o mundo e

para com os outros seres humanos, fruto inicial de uma observação sobre o comportamento dos

membros de grupos de pastorais e movimentos sociais, bem como de envolvidos com programas

sociais do governo, e aprofundado por pesquisas bibliográficas e consultas de obras pessoais, sob

a orientação do Prof. Claudionei V. Cassol. O trabalho parte da análise da etimologia da palavra

ideologia, fazendo um resgate das concepções ideológicas desde os primórdios pensamentos

surgidos na Grécia antiga e seus pontos influenciadores, e anda pela história, percorrendo

algumas épocas e alguns autores que marcam evoluções em conceitos e influências da ideologia.

Não deixa de fazer também uma análise mais aprofundada sobre a abrangência da ideologia na

atualidade, observando pontos centrais da sociedade como: família, educação, política, moral,

economia, meios de comunicação e educação. Partindo daí busca apontar alternativas à ideologia,

indicando caminhos que possam servir de parâmetros para a construção de uma consciência

crítica capaz de perceber o que há de errado com a sociedade, e capaz de partir em busca do

encontro da transformação que traga o bem viver ao ser humano. A conclusão demonstrará a

complexidade e abrangência do tema em suas várias interpretações que pode suscitar,

dificultando a distinção onde até que ponto se analisa a ideologia e até que ponto se deixa

influenciar por ela, mas firmando-se no trabalho, demonstrará que há possibilidade de mudança,

basta saber se realmente queremos esta mudança.

Palavras-chave: Ideologia – Alienação – Status Quo - Utopia

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 08

1 IDEOLOGIA: CONCEITOS E RELAÇÕES ................................................................... 09

1.1 Marx e a ideologia .............................................................................................................. 13

1.2 Durkheim e a ideologia nos fatos sociais............................................................................ 18

1.3 Gramsci ............................................................................................................................... 20

1.4 A distinção entre ideologia e utopia ................................................................................... 23

1.5 A ideologia na história ........................................................................................................ 28

1.5.1 A religião como expressão da ideologia na história ........................................................ 31

1.5.2 A ideologia no mundo moderno ...................................................................................... 32

2 STATUS QUO E O PODER DA IDEOLOGIA ................................................................ 36

2.1 A ideologia da moral........................................................................................................... 39

2.2 A ideologia e a religião ....................................................................................................... 42

2.3 A ideologia da família......................................................................................................... 44

2.4 O cavalo de tróia chamado: comunicação .......................................................................... 47

2.5 Educação e ideologia .......................................................................................................... 50

2.6 Âmbito econômico .............................................................................................................. 52

3 ALTERNATIVAS A IDEOLOGIA ................................................................................... 56

3.1 É preciso conhecer-se ......................................................................................................... 59

3.2 A educação como saída ....................................................................................................... 61

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3.3 O papel da utopia ................................................................................................................ 63

3.4 A importância dos movimentos sociais .............................................................................. 64

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 68

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 71

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INTRODUÇÃO

O que é este poder invisível que delimita o ser humano? O que é esta força que ora atua

como ciência que contempla a formação das idéias e a compreende, ora se torna um processo de

formação social, carregando em si uma história e ajudando a construir história humana, e ao

mesmo tempo pode tornar-se uma forma de coação social e /ou alienação, levando o ser humano

a estagnação de pensamento e a exclusão da dialética crítica dentre os processos vitais,

ocasionando os extremos, tanto do radicalismo, quanto da aceitação total e completa do “suporte”

que as correntes sóciopolíticos, ou socioeconômicas oferecem sobre o disfarce de “tendências

sociais.”

Por mais que se queira esconder ou negar, a disparidade, a injustiça e a desigualdade

social são, de certa forma, reflexo da ascensão de uma minoria que comanda as principais vias de

acesso do homem a suas questões vitais: alimentícia, vestuário, comunicações, moradia,

transportes e, enfim, nos mais diversos setores. Isso só ocorre porque há uma aceitação, uma

alienação coletiva que tem como origem a ideologia. Ai nos vem o problema a ser entendido:

Como a ideologia se transforma em processo de formação de idéias erradas e influencia de modo

negativo a sociedade?

Nos diz Guareschi (1994, P.15) “a ideologia, devido a nossas limitações humanas e

históricas, está presente em todos nós. Somos impregnados pelas ideologias...”. E elas estão

situadas na política, quando política se torna somente sinônimo de siglas partidárias, ou

politicagens vãs e ineficientes; na escola, quando esta se torna um simples instrumento de

repetição e assimilação de conhecimento; na ética e moral, quando poucos são os privilegiados;

na religião, quando esta passa a ser um processo de alienação fazendo da esperança um modo de

estagnação da criticidade necessária, e até mesmo na família, quando a família passa a ser vista

somente como forma de construção financeira e ascensão individual perante a sociedade.

Contanto, a compreensão dos efeitos da ideologia, essencial na formação de um ser

humano critico, somente pode ocorrer com uma análise histórica que nos faça perceber o que

causa a “adaptação” ao suporte social, fazendo uma revolução no nosso modo de pensar e

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suscitando uma transmutação de um modo positivo para um modo dialético, capaz de produzir

formas de analisar as ideologias vigentes e se opor a elas quando necessário.

Assim o objetivo do nosso trabalho é estudar o sistema ideológico, sua história e

contribuições, bem como as artimanhas de influência e coação social para suscitar alternativas

frente ao poder hegemônico, e de modo mais específico analisar as várias formas de interpretar

ideologia, demonstrar como a ideologia se torna processo de coação social, analisar a

manipulação ideológica nos âmbitos políticos, sociais e econômicos e apresentar alternativas para

a emancipação humana e autonomia individual (alternativas à ideologia).

O caminho para concretizar este trabalho passou pela identificação do problema com

clareza e precisão que não se desvela de pronto, mas se dá ao longo do caminhar metódico e da

perquirição de sua manifestação, analisando o mesmo, procurando levantar questionamentos

possíveis e apontar alternativas para a obtenção de algumas conclusões.

Em seguida, decidindo a melhor maneira de intervir no problema e suscitá-lo também em

outros espaços, iniciou-se o planejamento da ação e a forma de execução. Para levá-lo a

discussão, desenvolveu-se a pesquisa bibliográfica, tendo como objetivo o aprofundamento do

tema e o levantamento da sua dimensão a fim de delimitá-lo para melhor aproveitamento.

Percebemos, nesta fase, a necessidade de dialogar com alguns autores indispensáveis em se

tratando de ideologia, e dividir a análise em três capítulos, onde no primeiro descreveu a

ideologia em seus conceitos e relações, trazendo considerações históricas desde os gregos até a

fase contemporânea, demonstrando as oposições e diferenciações, tendo como luz para o

embasamento autores como Marx, Dürkheim e Gramsci.

No segundo capítulo aprofundou-se o poder da ideologia, tanto no modo socioeconômico,

quanto no meio político, fazendo uma análise de seus meios difusores, suas influências e suas

conseqüências, utilizando como parâmetro pensamentos de autores como Engels, Nietzsche e

Guareschi, que contribuíram para a construção de um terceiro capítulo que procurou suscitar

alternativas à ideologia, contribuindo também para a avaliação do tema e dos resultados obtidos.

Nesse aspecto concebemos e apresentamos “ Uma análise à ideologia”. Esperamos contribuir na

discussão sobre a ideologia, honrando assim o papel da filosofia de servir de luz para a

construção do senso crítico, sempre almejando um amanha melhor para todos.

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1 IDEOLOGIA: CONCEITOS E RELAÇÕES

Em um mundo acelerado, onde muito se faz sem mesmo precisar de contato físico (seja

através da Internet ou qualquer outro meio de comunicação, ou de acesso), o trabalho está sendo

substituído por máquinas, a única coisa que permanece com real importância é o pensamento

humano que tudo produz, ou projeta, inclusive das máquinas que o substituem. Assim em uma

época em que apertar um botão pode causar uma impensável catástrofe é essencial perceber e

entender o que influência o homem em seus pensamentos e em suas decisões.

Dentre outras coisas, a ideologia se destaca e, como poder invisível, parece se espalhar

pelos diversos âmbitos sociais e influenciar a todos, no modo de pensar, agir e se relacionar.

Guareschi (1994, p.15) nos diria que “a ideologia, devido nossas limitações humanas e históricas,

está presentes em todos nós. Somos impregnados pelas ideologias...”.

Analisando sua construção etimológica, o termo “ideologia” vem do grego ideo (aquilo

que já se tinha visto antes) e legein (dizer), assim definimos ideologia, em sua etimologia como:

dizer aquilo que já tinha visto antes, ou sobre um olhar mais crítico e já voltado para a realidade,

como o que nos faz analisar as coisas através daquilo que trazemos conosco. Por exemplo, se

entrevistarmos três profissionais, um padre, um cientista e um sociólogo, sobre o tema “células-

tronco”, cada um deles terá uma análise diferente em relação ao mesmo tema, análise essa

moldada através da experiência de cada um, e poderão chegar a conclusões diferentes sobre tal

tema, fruto daquilo que suas áreas de conhecimento já desenvolveram e produziram a respeito.

Ao que tudo indica o termo “ideologia” surgiu em 1976, sendo utilizado em uma palestra

pelo filósofo francês Destutt de Tracy, sob representação do estudo das idéias em suas origens,

relações, características e leis. Atualmente, como explica Francois Chatelet, também filósofo

francês, expandiu-se em um sistema de idéias, imagens, princípios e representações, referindo-se

à organização, e tem por finalidade regular relações de indivíduos - entre eles, com o mundo e

com suas crenças.1

1 Informações retiradas da obra de João Batista Libâneo. Ideologia e Cidadania. São Paulo, SP: Moderna, 1995.

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De forma escrita o termo aparece primeiramente na França após a Revolução Francesa,

mais precisamente em 1801, na obra de Destutt de Tracy2, denominada, Eléments d’Idéologie

(Elementos de Ideologia). Tracy, juntamente com seus companheiros Cabanis, De Gerando e

Volney, elaborou uma teoria sobre as relações responsáveis pela formação de nossas idéias,

utilizando-se de métodos de observação, influenciados pela cultura materialista3.

A teoria ganhou importância tal que os ideólogos chegaram a ser partidários de Napoleão

Bonaparte no golpe de 18 Brumário, sendo que vários adeptos foram nomeados senadores ou

tribunos. Porém, insatisfeitos criticaram e foram criticados. Napoleão atingido pelas críticas

contra-atacou dizendo que todas as desgraças que afligiam a França deveriam ser atribuídas à

ideologia, pois a teoria ideológica buscava as causas primeiras em vez de adaptar as leis dos

povos ao que dizia o coração e as lições da história. O pensamento crítico dos ideólogos que a

princípio era anti-teológico, antimetafísico e antimonárquico, passou a ser visto, após estes

acontecimentos, como “metafísica tenebrosa” e como ignorante perante o realismo político da

época sob o ponto de vista dos ideólogos Alemães que preferiam, para suas críticas, utilizar-se do

mesmo discurso e pensamento de Bonaparte. Diziam ser a ideologia um sistema desconhecedor

da relação idéia/realidade.

Foi com Comte (1798-1857) que a palavra voltou a se aproximar de seu sentido natural,

porém, com dois significados. O primeiro, como estudo da formação das idéias a partir da

observação dos fatos; o segundo como conjunto de idéias de uma época. Desse modo, a

observação do conjunto das idéias passa a explicar a totalidade dos fenômenos naturais em cada

fase do espírito humano e ideologia torna-se a teoria do conhecimento da formação das idéias,

importante para o ser humano positivista, cujo lema era: “saber para prever, prever para prover”

(CHAUÍ, 2004, p.29). Torna-se importante no sentido de que, recolhendo as opiniões, podia

organizar e sistematizar as mesmas corrigindo-as quando necessário, eliminando todo o elemento

religioso e metafísico existente e dando a todas as opiniões algo de conhecimento científico,

antecedendo as ações.

Essa nova fase da ideologia traz consigo três conseqüências discutidas por Chauí (2004):

2 As informações repassadas sobre Destutt de Tracy foram retiradas de CHAUÍ, Marilena. O que é Ideologia. São

Paulo: Brasiliense, 2004. 3 Na época os materialistas admitiam apenas causas naturais físicas, tanto para idéias como para ações humanas, e só

aceitavam conhecimentos científicos baseados na observação e na experimentação.

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1) Estabelece entre a teoria e a prática uma relação de mando e de obediência, onde a

prática deveria obedecer às idéias que vinham da teoria, analisadas pelo conhecimento científico.

2) Deixa de ver a origem real das idéias, mas se foca na organização sistemática e

hierárquica das idéias.

3) Concebe a prática como meio de aplicar os princípios vindos da teoria.

Chauí (2004, p.108) em sua obra “O que é Ideologia” tenta resumir todo esse percurso de

construção do termo “ideologia” dizendo:

A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e

valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da

sociedade, o que devem pensar e como devem pensar, oq eu devem valorizar e como

devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como

devem fazer. Ela é, portanto, um corpo aplicativo (representações) e prático (normas,

regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos

membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as

diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da

sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a

função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e fornecer aos membros

das sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais

identificadores de todos e para todos, como por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a

Igualdade, a Nação, ou o estado.

A partir de Chauí, Aranha (1993) em sua obra “Filosofando: Introdução a Filosofia”

apresenta algumas características básicas da ideologia:

a) Ensina a pensar normas que nos ensinam a agir;

b) Determina relações que adaptam os indivíduos as tarefas determinadas ou pré-fixadas

pela sociedade;

c) Camufla conflitos sociais e diferenças de classe;

d) Assegura coesão e a aceitação da ordem;

Dessa forma, a ideologia mantém a dominação de uma classe sobre outras conservando

uma realidade invertida onde o produto é mais importante que o produtor, se caracterizando pela

naturalização das situações e pela universalização dos valores - onde os valores de uma classe (na

maioria das vezes a dominante) são estendidos às demais classes causando um “aparecer social4”

e lacunas de ocultamento5 -, formando a realidade social, ou uma capacidade ilusória ao alcance

da realidade social.

4 Processo social que aparece para a consciência direta dos homens, no caso da ideologia pode significar uma ilusão.

5 Ocultar a manipulação do real.

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Guareschi (1992), dentro as várias dimensões que, segundo ele, podem ser enfocadas na

compreensão do termo6, prefere analisar a ideologia e sua atuação sobre uma concepção estática,

constituída por crenças, valores e normas, de pessoas e coletividades, e sobre uma dimensão

dinâmica, como produção, reprodução e transformação de experiências vitais, construindo

aspectos conscientes da subjetividade, isso porque a ideologia em sua compreensão,

[...] é o próprio estudo de sua constituição; há uma re-flexão automática quando se

estuda ideologia: estuda-se a ela , com ela. Pois a ideologia, como tentaremos mostrar

melhor mais tarde, é o próprio estudo de nossa consciência, de um lado, isto é, de quem

somos, porque somos o que somos, por que pensamos o que pensamos; de outro lado, é

o exame de nossa prática, como nos constituímos, como mudamos (ou não mudamos) e

porque mudamos. (GUARESCHI, 2002, p.172).

A pergunta que fica em meio as análises é: por que a ideologia se torna tão influente em

nossos dias? Para tentar compreender esta questão, e ao mesmo tempo, sabendo da grande teia de

relações pela qual a ideologia se constrói e se mantém (construindo uma multiplicidade de

conceitos e influências), e evitar cairmos também nós em uma visão ideológica ao desenvolver

está análise, utilizaremos a ótica de diversos autores sobre o tema. Pretendemos assim aprofundar

o tema e esclarecer questões norteadoras para sua compreensão.

1.1 Marx e a ideologia

Constantemente somos levados a ligar a palavra ideologia à figura de Marx (1818–1883).

O que não é um erro. Temos na figura de Marx uma das mais expressivas concepções sobre

ideologia, dado o grande aprofundamento da análise à que submeteu a palavra ideologia e seu

significado. Porém, antes de analisar seu pensamento, é importante ressaltar que a análise a

respeito de ideologia na ótica de Marx é uma dentre outras muitas constituídas ao longo da

história. Conquanto, falar em ideologia é sempre atual, visto que a história da humanidade está

em constante construção e transformação, sendo influenciada diretamente por concepções

ideológicas, e o pensamento de Marx carregado por seus seguidores e admiradores também se

solidifica como atual.

Sua análise, sobre ideologia, conservava o significado napoleônico.

6 Para Guareschi o conceito “ideologia” é um dos conceitos mais “complexos, equívocos e escorregadios”.

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[...] Marx conservará o pensamento napoleônico do termo: o ideólogo é aquele que

inverte as relações entre as idéias e o real. Assim, a ideologia, que inicialmente

designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das idéias calcadas sobre o

próprio real, passa a designar , daí por diante, um sistema de idéias condenadas a

desconhecer sua relação real com a realidade (CHAUÍ, 2004. P. 28).

Essa compreensão “napoleônica” concede uma visão de ideologia como sistema de idéias

erradas, representações distorcidas da realidade, levando a questionar o construído , suscitando a

necessidade de “...adentrar a história dos homens, já que quase toda a ideologia se reduz a uma

concepção distorcida desta história ou a uma abstração total dela. A Ideologia mesmo é só um

dos aspectos desta história”. (FERNANDES, 1984. p.184).

Outro importante ponto a ressaltar antes de adentrar em seu pensamento é que, embora

faça uma análise geral e aprofundada sobre ideologia, sua análise se volta mais para a realidade

alemã, como evidencia a obra “A ideologia alemã”. Bem como, mesmo criticando Hegel (1770-

1831), muito das fontes que escolhe para discutir ideologia provêm de Hegel. Chauí (2004), por

este motivo prefere começar a análise do pensamento de Marx sobre a ideologia, descrevendo

aquilo em que o pensamento hegeliano contribui para a análise marxista de ideologia.

De Hegel, então, Marx traz o conceito de dialética (o qual aperfeiçoa), as diferenças entre

o aparecer social e o ser social (que o ajudará na demonstração da mais-valia), a afirmação de que

a realidade é histórica e por isso realiza reflexão (reflexão necessária para compreender as

relações sociais, as classes sociais e a divisão do trabalho) e, também, o conceito de alienação.

Marx realizará grandes modificações nas concepções hegelianas, mas a partir dos

impulsos hegelianos vai chegar à conclusão de que a ideologia surge “no instante em que a

divisão do trabalho separa trabalho material de trabalho intelectual” (CHAUÍ, 2004, p.57). Essa

divisão do trabalho determina e é determinada pelas forças produtivas, que por sua vez formam a

consciência. Assim a consciência representa - por ser ligada a forças produtivas - a realidade

percebida através da experiência. Sendo a experiência invertida no momento em que a

importância do trabalho manual se torna menor que o trabalho intelectual (invertendo a

importância da causa e da origem, onde a causa se torna o motor propulsor e não mais a origem

ou quem origina), a consciência como consciência de mundo, em conseqüência deste processo, se

torna alienação, sendo que representará o alienus (o outro: chefe, deus...), ou a falsa concepção de

que algo maior esteja governando as forças de trabalho.

15

A alienação, portanto, se dá, no pensamento de Marx, quando o objeto, fruto do trabalho,

ganha importância maior que aquele que o produz, ou seja, quando o objeto parece ser produzido

não por uma necessidade humana, mas como algo que surge do nada e precisa ser produzido

independentemente de sua real utilização.

A forma inicial da consciência é, portanto, alienação, pois os homens não se percebem

como produtores da sociedade, transformadores da natureza e inventores da religião,

mas julgam que há o alienus, um Outro (deus, natureza, chefes) que definiu e decidiu

suas vidas e a forma social em que vivem. (CHAUÍ, 2004, p.62).

A alienação é muito importante para a percepção ideológica de Marx e ele vai demonstrar

ao analisar a relação e a sua influência entre os indivíduos, quando diz que

O poder social, isto é, a força multiplicada de produção que surge através da cooperação

entre os indivíduos condicionada na divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos, e

isto porque a cooperação mesma não é voluntária mas natural, não como o seu poder

próprio, unido, mas como um poder alheio situado fora deles, do qual não sabem nem

de onde e nem pra onde que portanto não podem mais dominar, que ao contrário

percorre um seqüência peculiar de fases e de estágios de desenvolvimento independentes

da vontade e da marcha dos homens, até mesmo dirigindo esta vontade a esta marcha

(MARX, 1984, p.200).

A ideologia aparece a partir de então, como uma contradição entre as idéias e as

realidades sociais, como o afastamento das concepções e o equívoco das mesmas, por se

tornarem independente das condições materiais e as suas construções. Se os homens não

conseguem compreender suas forças de trabalho, não conseguem dominá-las e ficam alheios às

construções sociais. É como se a ideologia os colocasse em um “suporte”, transformando-os em

um “rebanho” a ser dominado e isso ocorre, como explica Marx (2006, p. 44), porque “pode-se

distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo o que se queira. No

entanto, eles próprios começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus

meios de existência...”, se esses meios se tornam alheios aos homens podemos chegar àquilo que

chamaríamos de “ideal de rebanho”.

Sendo os homens em suas produções de idéias diretamente vinculados à atividade

material, e condicionados pelas forças produtivas, a partir do momento em que essas relações de

produções se invertem, tudo se inverte no social.

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A consciência nunca pode ser outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens é o

seu processo da vida real. E se, em toda a ideologia, a humanidade em suas relações

aparecem de ponta-cabeça, como ocorre em uma câmara escura, tal fenômeno resulta de

seu processo histórico de vida, da mesma maneira pela qual a inversão dos objetos na

retina não decorre de seu processo de vida diretamente físico (MARX, 2006, p.51).

Em “A Ideologia Alemã”, Marx reforça que a ideologia em sua história surge porque

antes de qualquer coisa o ser humano precisa desenvolver suas condições para viver e seu

primeiro fato histórico é a produção de meios que supram suas necessidades. Suprindo suas

necessidades, os próprios instrumentos que servem para suprir suas necessidades primeiras vão

produzir novas necessidades. Satisfazendo, através de seu ato histórico, suas necessidades, o ser

humano se vê na possibilidade de suprir outras necessidades que possam surgir e, então, tende a

renovar-se, pensar em sua manutenção e reprodução de sua espécie. A reprodução conduzirá o

ser humano a dois novos parâmetros: a relação natural entre homem e mulher, pais e filhos e a

relação social, gerada pelo aumento populacional. Ou seja, desde o principio os homens acabam

por possuir uma dependência material que desenvolvem entre si, baseados em suas necessidades

e em seus meios de produção (instrumentos para suprir suas necessidades).

A partir daqui surge à necessidade da linguagem, demonstrando que a incompletude

impulsiona o homem para o intercâmbio. Diz Marx (2006, p.51): “...a linguagem é tão antiga

quanto a consciência – a linguagem é a consciência real...”, pois até o surgimento da linguagem

existia uma consciência da natureza e da interdependência limitada, como ser de “rebanho”, a

consciência era puramente animal..

A consciência da necessidade das relações vai iniciar no homem a consciência de que ele

se diferencia dos demais animais e vive em sociedade. Marx chama isso de consciência gregária e

vê aí o inicio da evolução do pensamento e da evolução dos modos de produção: “... e o homem

distingue-se do carneiro exclusivamente porque nele a consciência toma o lugar do instinto, seu

instinto é consciente” (MARX, 2006, p. 57). O aperfeiçoamento desta consciência gregária (visto

que o aumento populacional gera aumento das necessidades principalmente do crescimento da

produção: vai exigir a divisão de tarefas) dá origem à divisão do trabalho.

Até esse ponto a sociedade organizava-se em função de atender suas necessidades, por

isso Marx (2006, p.57) destaca que “a divisão do trabalho só vai efetivamente se tornar divisão a

partir do momento em que surge uma divisão entre o trabalho material e o trabalho espiritual”. A

divisão do trabalho material e espiritual começa a diferenciar os indivíduos e a ação do homem

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torna-se estranha para ele mesmo. Torna-se estranha no momento em que a divisão do trabalho

dá a contradição entre o interesse individual e o interesse coletivo dos indivíduos que mantém

intercâmbio entre si. Essa contradição se dá no coletivo a partir do momento em que as atividades

deixam de ser voluntárias e passam a ser naturais - visto que dentro do coletivo o ser humano

tende a tomar atitudes necessárias para a melhor vivência do grupo e para a manutenção dos

meios de vida do grupo. Vendo-se subjugado é dominado em vez de dominar, para suprir suas

necessidades e as necessidades do coletivo. Os interesses individuais e coletivos com o tempo

também entram em choque, fazendo-se necessário o Estado para controlar, regular e intervir,

quando necessário, tendo como parâmetro o ilusório interesse geral, ou seja o processo da

alienação é como bola de neve que toma proporções inimagináveis até o fim.

Marx em suas análises dizia que o maior exemplo de divisão determinava-se pela

separação campo-cidade, em que uma das formas de demonstrar como o homem havia sido

dominado pela ideologia era a percepção da divisão de classes, da “gula” pela propriedade

privada, e pela ilusão do “ter”, que parte da necessidade de acumulação, fazendo com que o

trabalho perca toda a aparência de atividade humana e somente conserve a vida sufocando-a pelo

desejo de posse. “Chegamos atualmente, pois, até o ponto em que os indivíduos precisam

apropriar-se da totalidade existente de forças produtivas, não só para alcançar a atividade

enquanto manifestação de si, mas simplesmente para assegurar sua existência” (MARX, 2006,

P.103).

E continua dizendo que

Todo o processo foi, assim, concebido como processo de auto-alienação “do homem”, e

isso se deu fundamentalmente porque o individuo médio da etapa posterior sempre foi

substituído pelo individuo da etapa anterior, atribuindo-se, ao mesmo tempo, a este

ultimo, a consciência posterior. Por essa inversão, que desde o começo fez abstração das

coisas concretas, foi possível converter toda a história em um processo de

desenvolvimento da consciência (MARX, 2006. P.105).

Demonstra, desse modo, que o principal fator ideológico está na consciência ou na sua

alienação. Ressalta que os pensamentos da classe dominante de cada época se tornam o

pensamento dominante com uma aceitação quase natural. A partir do momento que os homens

aceitam a sua dominação como expressão de algo exterior a seu poder de decisão e de

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intervenção, aceitam que as classes dominantes, que têm essa percepção, possam determinar a

distribuição de pensamentos de sua época e conseqüentemente, determinar cada época.

É interessante perceber que no pensamento de Marx, qualquer reflexo ideológico não é,

de forma alguma, autônomo e ampliando a discussão, nada é autônomo. Tudo tem uma relação,

perpassa pela intervenção do homem. “...não tem história, não tem desenvolvimento, mas

desenvolvendo a sua produção material e o seu intercâmbio material os homens mudam, com esta

sua realidade afetiva, também o seu pensamento e os produtos de seu pensamento...”

(MARX,1984, p.200), sendo, portanto, passíveis de mudança .

Podemos dizer, então, que em Marx, o termo “ideologia” vai encontrar um sentido crítico

como uma forma de ilusão, de ocultamento da verdade, de alienação que causa no homem o

efeito de aceitação de sua dominação.

1.2 Durkheim e a ideologia nos fatos sociais

Para entender a ideologia em Durkheim (1858-1917) precisamos esclarecer a sua

compreensão de fato social. Essa categoria dürkheimniana consiste “...em maneiras de agir, de

pensar e de sentir exteriores ao individuo e dotadas de um poder coercivo em virtude do qual se

lhe impõem” (DÜRKHEIM, 2006, p.33). E em outras palavras, são regras (jurídicas ou morais),

sistemas financeiros, dogmas religiosos, ou qualquer outro tipo de comportamento ao qual somos

condicionados pelo poder de coerção, dado que se tentarmos violá-las, elas reagem. Mas é

importante entender também que não se realizam por si só, precisam dos homens, de agentes

sociais.

Os modos de pensar que ocasionam os fatos sociais ocasionam também o que Durkheim

chama de “idola” - “fantasmas” que desfiguram os verdadeiros aspectos das coisas, e como as

noções que temos estão sempre mais próximas a nós do que as realidades, nós confundimos os

“idola” com as próprias coisas e chegamos a preferir analisar nossas noções (idolas) ao invés de

nossas realidades, o que acaba ocasionando uma análise ideológica.

Ideológica, porque estando mais próximas a nós - embora não substituam as coisas reais -

dão a impressão de “harmonia” com o mundo, visto que, embora de forma irreal desempenhe o

mesmo papel das coisas reais. Esse meio “imaginário” não oferece qualquer resistência ao

espírito, mas como um véu, vai se colocando entre nós e as coisas e nos dominando na mesma

19

proporção em que cremos, até porque, dentro de sua irrealidade dá o ar de possibilidades

ilimitadas, como se não pudéssemos ser refreados por nada e precisássemos simplesmente

respeitar aquilo que está em nossos desejos.

É assim que as organizações sociais - em qualquer âmbito (familiar, contratual, etc.) -

aparecem como simples desenvolvimento das idéias, e esses fatos de dominação social parecem

não ser reais, pois tendo o ar de algo ilimitado, ultrapassa até mesmo os laços de consciência e dá

a impressão de surgir do vazio, e a seqüência desta forma de pensamento, a repetição deste modo

de pensar imaginário dá aos fatos sociais autoridade. Não podemos deixar de pensar em sua

existência. Todas as vezes que aceitamos uma organização social e passamos a conviver com ela

vamos sendo coagidos por sua influência e elas resistem a nós quando tentamos nos libertar.

Não podemos deixar de ver como real aquilo que se opõe a nós. A imaginação de aspectos

gerais faz perceber-nos junto a eles, nos domina. Segundo Durkheim (2006, p.42), “...não é

possível o homem viver no meio das coisas sem fazer delas idéias segundo as quais o seu

comportamento é regulado”.

Fazendo uso das palavras de Comte (1798-1857), para Durkheim (2006, p. 45) as

sociedades “...são sociedades particulares que nascem, se desenvolvem e morrem

independentemente umas das outras”. Cada povo que entra tem suas próprias individualidades.

Assim a sucessão dessas sociedades vai estar sempre em um sentido divergente. E complementa

sua análise utilizando a contribuição do estudo do pensamento de Spencer (1820-1903), dizendo

que as sociedades só existem quando a “justaposição se junta à cooperação”, porque a

humanidade tende a preferir uma cooperação livre a uma cooperação imposta.

Por este motivo Durkheim (2006, p. 51) afirma que “os fenômenos sociais são coisas e

devem ser tratados como tal”. Eles nos conduzem a erros na interpretação da sociedade como fica

claro no que diz respeito à interpretação da moral e das ciências econômicas vigentes:

O que nos é dado não é a idéia que os homens tem do valor, pois ela é inacessível; são

os valores que se trocam realmente no decurso das relações econômicas. Não é uma ou

outra concepção do ideal moral; é o conjunto das regras que determinam efetivamente o

comportamento. Não é a idéia do útil ou da riqueza; é todo o pormenor da organização

econômica. É possível que a vida social seja apenas o desenvolvimento de certas noções;

mas, mesmo que assim aconteça essas noções não são dadas imediatamente. Logo não

as podemos atingir diretamente, mas só mediante a realidade fenomenal que as exprime.

Não sabemos a priori quais as idéias que estão nas origens das diversas correntes entre

as quais se divide a vida social, nem sequer se existem; só depois de as ter seguido até as

fontes saberemos de onde provêm” (DURKHEIM, 2006, p.51-52).

20

Tratar os fenômenos sociais como “coisas” ajuda a estudá-los, facilita a percepção fora

das representações. O caráter convencional nunca deve ser presumido diz Durkheim, assim

veremos os fatos de modo arbitrário, como são, não podendo ser modificados pela simples

decisão de vontade. Os fatos sociais tem como “prioridade” sua própria manutenção. Nem

sempre podem ser vencidos visto que não são produtos da nossa vontade e são como moldes aos

quais sentimos a necessidade seguir.

Vemos, portanto, que em Durkheim tratar dos fenômenos sociais como coisas é

demonstrar a necessidade que temos de assim analisar todos os fatos sociais (que nos “alienam”,

nos coagem a ir contra nossa própria natureza como forma de alienação) aos quais estamos

vinculados. De uma forma ou outra precisamos nos libertar dessas amarras que fazem-nos agir

contra nós mesmos. É preciso fugir dessa realidade, dessa tradição social à qual estamos

inseridos.

1.3 Gramsci

Temos em Gramsci (1891-1937), principalmente nos “Cadernos do Cárcere”, conceitos

fundamentais da ideologia, um pouco diferente da tradição marxista de “falsa consciência”, mas

mais aproximado com algo que se objetiva na realidade social e histórica, tendo “um peso

decisivo na organização da vida social se tornando força material quando ganha a consciência das

massas” (SIMIONATTO, 1999. P. 73).

Para Gramsci (1997, p.73), “... as ideologias não são ilusões e aparências: são uma

realidade objetiva e operante (mas não são as molas da história), eis tudo. Não são as ideologias

que criam a realidade social, mas é a realidade social, na sua estrutura produtiva, que cria as

ideologias...”.

Para Simionatto (1999), Gramsci reconhece que Marx está certo ao afirmar que as

ideologias se expressam pelos comportamentos sociais, derivando de movimentos estruturais e se

apresentando como permanentes, tanto nas práticas como nas idéias, chegando a assumir uma

certa solidez se levada em conta como forma de crenças que vêm a “suprir” necessidades

estruturais e que acabam influenciando diretamente sobre a vida humana. Nessa concepção,

diferenciará entre ideologias pequenas – grupos de breve duração e breve interferência – e as que

podem encaminhar processos maiores através de grupos e classes sociais, que são as ideologias

orgânicas, “necessárias” a algumas estruturas, quando trabalham organizando e conscientizando

21

as massas de suas posições, possibilitando a elas uma certa “consciência de luta”, diferente das

arbitrárias, que somente criam ações restritas.

A ideologia em Gramsci se aproxima do marxismo quando a ideologia orgânica se

equipara a uma filosofia da práxis, pois “assim que a ideologia pode ser definida como uma visão

de mundo com normas de conduta correspondentes, se encontra em todos os níveis sociais:

econômico, político, científico, artístico, etc., em todas as manifestações de vida individuais e

coletivas” (SIMIONATTO,1999, P.76); e se torna um esforço de recuperar a teoria social de

Marx como filosofia da práxis - filosofia integral e original, caminho novo que renova até mesmo

o modo de conceber a filosofia.

Em sua análise da atuação ideológica, Gramsci vê que é no senso comum onde ela atua

mais forte, como dominante, pois, o senso comum não é capaz de entender e resistir à ideologia,

mas sim se deixa influenciar e assim: “É, portanto, no terreno ideológico que se produzem e se

mantêm, em função da divisão da sociedade em classes antagônicas, as resistências aos impulsos

de unificação da consciência humana” (SIMIONATTO, 1999, p.79). O senso comum se torna

assim à causa da exploração, visto que se direcionam a má passividade influenciada pela classe

dominante detentora de instrumentos hegemônicos, inclusive o Estado e os poderes econômicos,

podendo controlar a produção e a distribuição de bens além de organizar as idéias. O senso

comum não consegue assimilar a incoerência real, não podendo assim interpretar uma nova

concepção.

Pelas palavras de Simionatto (1999, p.81), “[...] a ideologia apresenta-se, pois, no

pensamento gramsciano, como uma relação orgânica entre o pensado e o vivido, entre o

conhecimento e a ação” e assume um novo sentido quando entende que uma determinada relação

hegemônica pode, simplesmente, ser rompida por um novo bloco histórico. Gramsci supera a

visão marxista quando demonstra que a classe hegemônica não significa necessariamente ser a

classe dominante, como acontece na cultura.

No eixo entre o pensar e o viver, Gramsci chamará a atenção para um contraste: em

alguns casos existe uma manifestação de mundo através do pensar, mas quando esta é fraca, toma

emprestado de outro grupo uma concepção do agir. Esse fato desencadeia a necessidade de

desenvolver uma concepção de mundo mais coerente e não da destruição do senso comum, pelo

contrário, o senso comum, o mesmo que se deixa influenciar ideologicamente, pode ser o ponto

de partida e o ponto de chegada de uma vontade coletiva, de um novo pensar critico.

22

Já para Staccone (1993, p.78) a ideologia em Gramsci é uma concepção de mundo, é um

modo de compreensão de mundo que os homens desenvolvem e superam historicamente:

Assim, a ideologia, longe de ser falsa consciência ou ilusão, é a realidade gnoseológica

dos homens de uma determinada sociedade num período histórico dado. Daí o terceiro

elemento que concorre para completar o conceito gramsciano de ideologia: ela constitui a

referência implícita ou explícita de todo “agir” humano. Se, e quando, a ideologia torna-

se “religião” e “fé”, produz atividades práticas, move as montanhas”.

Dessa forma pode se constituir como super-estrutura da sociedade, como consciência do

universo de relações ou das contradições sociais e orientar vontades de ação. Por isso, como

afirma Gramsci,

Para a filosofia da práxis, as ideologias não são de modo algum arbitrárias, elas são fatos

históricos reais que devem ser combatidos e denunciados em sua natureza de

instrumentos de domínio, não por razões de moralidade etc., mas precisamente por

razões de luta política: para tornar os governados intelectualmente independentes dos

governantes, para destruir uma hegemonia e criar outra, como momento necessário a

inversão da práxis” (STACCONE, 1993, P.79).

Staccone (1993, p.80) diz que, para Gramsci, a importância da história das ideologias se

faz quando a relações vividas, em sua mistura de consciências, geram forças psicológicas e

podem organizar as massas, embora haja prevalência de alguns elementos culturais e ideológicos

sobre os outros. Isso ocorre porque o senso comum permite a assimilação, daí vem à distinção

entre o senso comum e a filosofia, essa última se faz como ordem intelectual, representando o

mais alto nível da racionalidade.

Hall (1980) na obra “Da Ideologia”, apresenta características básicas da ideologia em

Gramsci. Para ele, as ideologias em Gramsci, são concepções de vida, essência do próprio ser

humano, não são verdadeiras ou falsas, mas coerentes, em menor ou maior grau, e sua

preocupação com o senso comum vai diferenciar sua visão da visão marxista econômica

ideológica. Diz ele, que a ideologia em Gramsci,

[...] não “é um “ardil” imposto pela classe dominante a fim de iludir eternamente os

trabalhadores e desse modo impedir a classe de cumprir seu papel histórico

(supostamente) predestinado. As ideologias têm com base realidades materiais e são elas

próprias forças materiais [...] a ideologia é vista principalmente como o cimento que

aglutina a estrutura...” por isso “...o senso comum e a experiência prática podem e

devem ser trabalhados. (HALL, 1980, p. 118)

23

1.4 A distinção entre ideologia e utopia

A ideologia em Mannheim (1893-1947) aparece como visão social de mundo,

interpretando e significando pensamentos, ações e mudanças sociais de uma determinada época.

Para isso começa diferenciando ideologia – para melhor análise e compreensão – em ideologia

particular, à qual delimita-se apenas a parte do pensamento, mais em uma área de análise

psicológica como uma psicologia de interesses e, ideologia total, que compreende conceitos do

coletivo, do conjunto, sem motivações individuais.

Mannheim também diferencia, ou isola, a concepção de ideologia do pensamento

marxista, ressaltando ser este pensamento apenas uma interpretação, dentre muitas que se referem

ao tema. Este ponto que a principio parece comum, fará diferença no pensamento de Mannheim

quanto ao seu entendimento da etimologia da palavra e de sua compreensão. Também não se

prende muito a concepção histórica. Descreve ideologia particular como um erro conceptual

distorcido e defeituoso e mostra o caminho que ela percorre para chegar à ideologia total,

passando do domínio simples das idéias, ao domínio social, total. Essas concepções passam por

uma filosofia da consciência, onde o homem que percebe, forma uma unidade para o mundo

abrindo seu pensamento a um pensamento de classe, e desencadia no domínio da classe sobre a

consciência em si, e o que era consciência em si tornou-se consciência de classe e seguidamente

ideologia de classe. E, segundo ele “desde então, o mundo enquanto “mundo” somente existe

com referencia a mente que conhece, e a atividade mental do sujeito determina a forma pela qual

o mundo aparece. Isto constitui, de fato, a concepção total embrionária de ideologia...”

(MANNHEIM, 1968, p.92)

Mannheim não deixará de citar os ideólogos e a interpretação de Napoleão a qual,

segundo ele, foi a responsável por gerar o problema implícito no termo ideologia: o que é o real?7

Outro ponto a ser destacado no pensamento de Mannheim é a passagem da teoria da

ideologia a sociologia do conhecimento. Essa necessidade surge a partir do momento da

percepção de que não há somente uma concepção de mundo, ou entendimento do mesmo, ou uma

só posição. “...chegamos atualmente ao ponto em que podemos observar com clareza que

existem diferenças nos modos de pensamento, não apenas em períodos históricos diferentes, mas

7 Não aprofundaremos estas análises porque estarão sendo aprofundadas em outros momentos, então aqui somente

nos deteremos a colocar o porque Mannheim chegou a distinção de ideologia e utopia.

24

também em culturas diferentes...” (MANNHEIM, 1968, p. 108). Essa formulação é genérica

porque o estudo da ideologia precisa estar livre de qualquer influência em sua interpretação. “... a

tarefa de um estudo da ideologia, que tenta ser livre de juízos de valor, consiste em compreender

a limitação de cada ponto-de-vista individual e o intercurso entre estas atitudes distintas no

processo social total...”(MANNHEIM,1968, p. 107). Para facilitar o trabalho utiliza o significado

das palavras, que podem trazer em suas etimologias explicações necessárias. “A palavra nos liga

ao todo da história e, ao mesmo tempo, espelha a totalidade do presente.” (MANNHEIM,1968,

p.109).

Assim chegamos segundo Mannheim a um estudo em termos de concepção total e

genérica de ideologia em um sentido não-valorativo, ou seja, dado que o mundo está em

constante transformação não necessitamos encontrar uma verdade última, mas sim, aprender a

pensar a dinâmica da estrutura da realidade histórica, até mesmo de valores construídos,

relacionando os elementos componentes do conhecimento parcial e nunca se apegando ao

absoluto “atual”: nossa incerteza é que exatamente nos leva bem mais perto da realidade.

Porém para que isso aconteça precisamos carregar alguns valores que para nós são

fundamentais a compreensão. De grosso modo a análise não valorativa só excluirá idéias com as

quais não nos identificarmos, e passaremos a uma concepção valorativa dada a impossibilidade

da neutralidade quando se trata deste tipo de análise. É implícito como Mannheim nos diz: “...um

tal método de diagnosticar uma época, embora possa iniciar-se não-valorativamente , não

permanecerá desta forma por longo tempo. Seremos eventualmente forçados a assumir uma

posição valorativa.”( MANNHEIM,1968, p. 119).

O processo dialético que faz a passagem da concepção não-valorativa a uma concepção

valorativa mostra um outro problema na construção do pensamento e na formação da concepção

de ideologia: a “falsa consciência”. A falsa consciência, segundo Mannheim, obstrui a

compreensão de uma realidade que é o resultado de uma constante reorganização dos processos

mentais que compõem os mundos em que vivemos. Por isso para a compreensão do processo

dialético é preciso determinar as idéias válidas em cada situação. As idéias erradas podem ser

distinguidas quando aplicadas em situações práticas impedem o homem a adaptar-se ao período

histórico, como menciona: “...Uma teoria será portanto errada se, em uma dada situação prática,

usar conceitos e categorias que, utilizados, impediriam o homem de se adaptar àquele estágio

histórico...” (MANNHEIM,1968, p. 121)

25

Essa breve análise do pensamento de Mannheim (1968) serve para nos direcionar e

adentrar na compreensão daquilo que traz sobre a procura da realidade através da distinção entre

ideologia e utopia, pois para Mannheim “somente quando estivermos completamente conscientes

do âmbito limitado de cada ponto de vista, estaremos no caminho da almejada compreensão do

todo”. (MANNHEIM,1968, p. 131)

Com isso tenta demonstrar que a análise da ideologia e da utopia soma-se na ciência

empírica - que às vezes deixa de relevar alguns problemas cruciais ao entendimento do

andamento social. Mannheim coloca em nota de rodapé de sua obra “Ideologia e Utopia”

(MANNHEIM,1968, p. 124), que o objetivo de seu pensamento é indagar possibilidades e

necessidades e criar meios adequados de compreensão e domínio das formas de existência e

pensamento em constante mudança, dessa forma coloca a diferenciação entre ideologia e utopia,

o que não somente coloca como auxilio no entendimento das relações sociais, mas também como

auxílio na construção de alternativas.

Mas como distinguiremos ideologia e utopia?

Para Mannheim (1968), qualquer idéia que não caiba na ordem em curso, ou que não se

adequou com a realidade, é transcendente ou irreal, e estas são a maioria. As idéias reais são

muito raras segundo ele. Nossos pensamentos individuais na maioria das vezes não se encaixam

com o todo, é visão de apenas uma parte e não abarca o conjunto humano, assim é irreal, ou

transcende a algo ilusório, transcende a situação.

Em uma palavra, todas as idéias que não caibam na ordem em curso são

“situacionalmente transcendentes” ou irreais. As idéias que correspondem a ordem de

facto, concretamente existente, são designadas como “adequadas” e situacionalmente

congruentes. Estas são relativamente raras, e somente um estado de espírito que tenha

sido totalmente esclarecido sociologicamente opera com idéias e motivos

situacionalmente congruentes. Em contrate com as idéias adequadas e congruentes,

existem duas categorias principais de idéias que transcendem a situação – as ideologias e

as utopias (MANNHEIM,1968, p. 218).

Assim distinção que faz entre ideologia e utopia é simples, mas profunda e necessária, e

as coloca em extremidades opostas. Enquanto a ideologia transcende o âmbito existencial

pretendendo controlar as idéias e interesses da situação, a utopia faz o contrário, tende a por fim

na ordem existente, tende romper as amarras do pensamento dominante. Por isso “utopia” é que

nega a ordem social dominante (“topia”, do grego “topos”). Em outras palavras, enquanto a

26

ideologia remete a uma realidade fora do alcance da mudança, utopia consegue demonstrar

possibilidades à ordem existente.

Poderíamos resumir a diferença entre essas duas categorias: ideologia e utopia, em

Mannheim (1968), desta forma:

a) Ideologia – idéias transcendentes que jamais conseguem realizar seus

conteúdos pretendidos. O que pode fazer é levar a uma ilusão (como do amor

fraterno cristão em uma sociedade de servidão e escravidão), ou ocultar

percepções.

b) Utopia – as idéias também transcendem, porém, através da contra-atividade,

levam à transformação da realidade de acordo com concepções próprias. A

ressalva a fazer é que diversos são os grupos sociais que possuem suas utopias,

e nem todas chegarão a se concretizar, por isso, podemos também chegar a uma

definição de utopia, visto por alguns conjuntos ou grupos sociais, como algo

irrealizável. Para Mannheim, contudo, a utopia é irrealizável tão só na óptica da

ordem social vigente ou daqueles que a aceitam.

É interessante perceber que a utopia surge como uma forma dialética de análise e

transformação social. Ela surge do “topos” (ordem social vigente), se desenvolve sobre o não

realizado, causa das necessidades vigentes e fazendo a transformação, transforma-se no novo

“topos”. A abertura para o desenvolvimento da utopia é a abertura para a dialética constante e

para a constante transformação social, visando sempre suprir as necessidades sociais, bem como a

abertura para o eterno questionar, mesmo de todo e qualquer pensamento produzido, em

conseqüência, diz Mannheim, podemos prever que o historiador irá criticar nossa definição de

utopia, mas vale sempre ressaltar que a utopia ou sua renovação somente surge por influência de

algum problema importante para o coletivo, e o próprio problema leva a buscar uma solução não

encontrada na situação vigente. Mesmo que surja a partir de um indivíduo é essencial perceber

que este individuo forma sua mentalidade com relação a estrutura social que o influencia, ou na

qual convive8.

8 As idéias expostas até aqui sobre a distinção entre ideologia e utopia sob o pensamento de Mannheim, foram

retiradas de sua obra “Ideologia e Utopia” (ZAHAR, 1968).

27

Para aprofundar mais a distinção é importante perceber que um dos traços que devem

caracterizar o ser humano é a liberdade que ele se reserva de se opor a situações decepcionantes,

defeituosas e contraditórias. É assim que Coelho9 (1985) designa que a utopia é a vontade de

superar limites da realidade, como projeção de um futuro a partir do que existe no presente e

pode ser transformado.

Em sua obra “O que é Utopia” (COELHO, 1985, p.17) afirma que utopia : “... É aquela

que, até hoje pelo menos, sempre esteve presente nas sociedades humanas, apresentando-se como

elemento de impulso das invenções, das descobertas, mas, também, das revoluções...”. Ou seja,

ela pode partir do individual, mas nutre-se pelos fatores da tendência social e guia-se pelas

possibilidades de um amanhã diferente, se torna uma nova visão, antecipação de algo que pode

ocorrer ante a realidade existente. Diferente da ideologia que domina a vontade do homem, a

utopia trabalha com a vontade do homem, através da vontade do homem.

A utopia é uma necessidade e um direito. Direito de pensar em uma forma de construir

alternativas que satisfaçam as necessidades, sempre de forma constante e dialética. Do mesmo

modo como sempre existiu, sempre continuará existindo, assim como entende Coelho (1985,

p.12) ao afirmar que se fosse de outra forma, significaria o aniquilamento da capacidade

protagonista do homem, e o fim do próprio homem, por isso é uma obrigação do ser humano para

com ele mesmo. Desde sempre e em toda a parte, concluiu e reafirma:

A imaginação utópica é, assim, inerente ao homem; sua presença nas sociedades

históricas, uma constante. Não se trata, portanto, de um componente da estrutura

psíquica do homem cuja existência e aparecimento tenham sido provocados por

circunstâncias desta ou daquela época, por características insatisfatórias das sociedades

deste momento ou de uma ou outra ocasião do passado. Não: esteve sempre presente,

pelo menos, como se disse, sob a forma de uma excedente utópico, uma vez que o

realizado nunca está a altura do projeto humano; e, por descuido estiver, de imediato

surge um complemento ou suplemento por realizar.

Para finalizar a análise sobre utopia uso as palavras de Mannheim (1968, p.285), quando

destaca a importância que tem o pensamento utópico para a construção da sociedade:

[...]Entretanto, para o nosso propósito analítico mais restrito, que podemos designar

como uma história sociológica dos modos de pensamento, torna-se claro que as

mudanças mais importantes da estrutura intelectual da época que ocupamos devem ser

9 José Teixeira Coelho Netto, nascido em 1994, atualmente é professor da USP e autor de mais de 30 obras sobre

temas variados.

28

compreendidas a luz das transformações do elemento utópico. É possível, portanto, que

no futuro, em um momento em que nunca haja nada de novo, em que tudo esteja

terminado, sendo cada momento uma repetição do passado, venha a existir uma

condição em que o pensamento seja completamente despido de quaisquer elementos

ideológicos e utópicos. Mas a completa eliminação dos elementos transcendentes à

realidade, em nosso mundo, nos levaria a uma “constatação de fato” que significaria, em

ultima análise, a decomposição da vontade humana.

1.5 A ideologia na história10

Como em todo o processo de análise é sempre essencial retornarmos a origem, ou pelo

menos tentar compreender como as coisas evoluem ao decorrer da história e, de certa forma,

entender como a própria história evolui, já que se consolida como um marco da evolução humana

e da construção ideológica, como mostra Chauí (2004, p.23).

A história não é sucessão de fatos no tempo, não é progresso de idéias, mas o modo

como homens determinados criam os meios e as formas de sua existência social,

reproduzem ou transformam essa existência social que é econômica, política e cultural

(...). Nessa perspectiva, a história é o real, e o real é o movimento incessante pelo qual

os homens em condições que nem sempre foram escolhidas por eles, instauram um

modo de sociabilidade e procuram fixá-lo em instituições determinados (família,

condições de trabalho, relações políticas, instituições religiosas, tipos de educação,

formas de arte, transmissão de costumes, língua etc.). além de fixar seu modo de

sociabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem idéias ou

representações determinadas, os homens produzem idéias ou representações pelas quais

procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com

a natureza e com o sobrenatural. Em sociedades divididas em classes (e também em

castas), nas quais umas das classes explora e domina as outras, essas explicações ou

essas idéias e representações serão produzidas e difundidas pela classe dominante para

legitimar e assegurar seu poder econômico, social e político. Por este motivo, essas

idéias ou representações tenderão a esconder dos homens o modo real como suas

relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração

econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade social chama-se

ideologia.

A ideologia, portanto, anda junto com a história e se faz presente em toda a história, tanto

que já era discutida desde a cultura grega e romana. Se olharmos, por exemplo, a luta pelo poder

entre os príncipes vamos perceber proximidade com a atualidade. Guareschi (1992. p.170)

quando cita Bacon procura demonstrar essa relação histórica da ideologia ao estudar as quatro

classes de ídolos:

10

Neste ponto nos focaremos na questão ideológica nas relações gregas e romanas, na idade média e no mundo

moderno.

29

[...] os da caverna: nossas idiossincracias, caráter; da tribo: superstições, paixões; da

praça: as inter-relações humanas, principalmente através da linguagem; e os ídolos do

teatro: a transmissão das tradições e doutrinas dogmáticas e autoritárias, através do

teatro, que seriam, hoje, os Meios de Comunicação Social.

Mas se tratando de ideologia podemos começar analisando a cultura grega e caminhando

em direção a atualidade. Como Chauí (2004, p.11) vamos partir do exemplo do questionamento

sobre o “movimento” entre os gregos, que vai desencadear, em uma de suas formas, na teoria das

quatro causas de Aristóteles, as quais não possuem o mesmo valor, a “práxis” (ética e política), já

se torna superior a “poésis” (o trabalho).

No que se refere à ideologia na cultura grega, a “polis” (surgida da desestruturação das

comunidades), foi dominada por uma elite local (os eupátrias), que cuidavam da administração e

subjugavam a população preservando um caráter aristocrático, onde poucos exerciam a

democracia (em sua etimologia - demos= povo, cracia = poder – o povo no poder). De Esparta

podemos destacar a Oligarquia (oligo = poucos, arquia = governo) sua separação social de vida e

de repartição restrita e a subjugação do casamento (simples forma para reprodução e manutenção

dos contingentes militares), obrigatório depois dos 30 anos de idade, também não deixa de ter um

caracter ideológico. Não poderíamos deixar de citar de Atenas, a escravidão e a falsa democracia,

onde somente os homens livres e aí nascidos eram considerados cidadãos. Mulheres, escravos e

estrangeiros, não tinham direitos políticos, ou seja, de 320 mil habitantes (aproximadamente),

apenas 40 mil decidiam sobre a cidade11

.

Podemos dizer que Platão, em sua dualidade: corpo e mente, possa contribuir para uma

ideologia de distinções, privilegiando os “iluminados” do saber. Podemos citar a grande

contribuição dos mitos quanto à aceitação desse processo de manutenção e construção ideológica

da idade antiga. O mito aliás ganha forte destaque no que diz respeito a difusão, e talvez, de certa

forma ao surgimento da ideologia.

O mito segundo Aranha (1993) tem como critério de adesão a crença e não a evidência

racional. O mito é, portanto, uma intuição compreensiva da realidade. Uma forma espontânea de

o homem situar-se no mundo. Em sua ação, por exemplo, o primitivo, ao descrever a realidade, o

fazia de forma sobrenatural, coerente com a maneira mágica pela qual tentava agir sobre o

11

As informações históricas colocadas neste texto foram retiradas da obra de Cláudio Vicentino “ História: Memória

viva: da pré-história a idade média”, 1998. p. 68-77.

30

mundo. No mundo primitivo tudo acontecia de forma “sagrada” (ocasionando mitos que

tentavam explicar as manifestações naturais do homem), e o que ocorria era uma imitação do

exemplo dos deuses, repetindo nos ritos e afazeres as suas ações. Como todo o real era

interpretado pelo mito, e isso era de forma comunitária, ou seja, todos interpretavam desta forma

usando esses fatos e métodos, o homem acabava afastando a percepção de si e de sua

potencialidade.

O pensamento grego tinha por base a razão humana, mas essa razão humana era

comandada pelos mitos e seus deuses, habitantes do monte Olimpo que comandavam o destino

dos humanos12

. É claro que exatamente na Grécia muito do pensamento reflexivo a respeito do

homem foi desenvolvido ou iniciado, mas a questão a ser levantada é se esse pensamento não se

deixou influenciar pelos mitos. Essa duvida se reforça quando analisamos, amparados pela

citação usada por Aranha retirado do livro “O sagrado e o Profano” de Mircea Eliade:

[...] quando acaba de nascer, a criança só dispõe de uma existência física, não é ainda

reconhecida pela família nem recebida pela comunidade. São os ritos que se efetuam

emidiatamente após o parto que conferem ao recém-nascido o estatuto de “vivo”

propriamente dito; é somente graças a estes ritos que ele fica integrado na comunidade

dos vivos. (ARANHA,1993, p.56)

percebemos desse modo que o ser humano é influenciado diretamente em sua vida pelas

tradições que o cercam e o constroem, pelo menos até que possa desenvolver uma interpretação e

uma consciência crítica própria, até lá cultura e suas tradições constroem o ser humano arrastando

consigo todas as ideologias e os pensamentos pré-defindos.

O mito acompanha, vem junto com as tradições, se ramifica e se consolida em espaços

como a religião, que passou de um politeísmo - caracterizado primeiramente por deuses

momentâneos e evoluindo para deuses identificados com determinadas funções sociais e naturais

– até chegar ao monoteísmo, a religião com deus pessoal capaz de interagir com seus “crentes” e

até mesmo sofrer com eles. Podemos encontrar seus traços não só em forma de religião, mas

também em contos populares, no folclore e nas comemorações de nascimento e aniversário que,

mesmo de forma disfarçada, lembram os mitos de passagem.

12

Idem a nota 1.

31

1.5.1 A religião como expressão da ideologia na história

A religião, por sua vez, foi a responsável pela manutenção e difusão da ideologia na Idade

Média. Vicentino (1998, p.124) pontua que o cristianismo misturou-se aos valores culturais

locais, com uma forte dosagem de espiritualidade, principalmente entre os Bizantinos que

desenvolveram um cristianismo diferente do ocidental, dando origem aos levantes populares e a

calorosas discussões teleológicas. Outro povo que se destaca é a civilização árabe em seu

politeísmo que acabou transformando-se com a criação do Islão. Obra do pensamento de Maomé,

que se tornou “rotulado” na atualidade pelo seu extremismo que em nome da “guerra santa”

esconde uma tentativa de expansão do Islã e assegurar dominação utilizam-se da religiosidade

através dos escritos de Maomé, estes, que dão poder absoluto aos seus seguidores.

Podemos perceber que a principal característica da Idade Média foi a questão religiosa, ou

o teocentrismo13

. A igreja católica é uma das vitrines dessa época. Se dizendo intermediaria entre

Deus e os homens, ganhou grande poder e influenciou na vida cultural de toda a Idade Média. O

cristianismo, como ficou conhecido, tornou-se a religião oficial do império romano a partir de

391 d.c, no governo de Teodósio, e ampliou sua força e seu poder aliando-se aos povos

“invasores”, principalmente aos bárbaros, como eram conhecidos os povos que moravam além

das fronteiras romanas e as ultrapassavam em busca de terras férteis fugindo da seca asiática. A

base cristã “zelava” tanto pela “vida espiritual”, quanto pela “vida material” exercendo grande

influência em alguns casos e forte domínio em outros. Domínio que, embora enfraquecesse com

o tempo, foi assegurado a peso de lutas e sangue, tanto pelas cruzadas, meios de expansão e

domínio religioso, como pela inquisição, meio de punição visando a coação pelo medo.

Todo esse pensamento que aqui se encontra exposto pode a primeiro olhar parece

estranho, talvez, por estarmos acostumados a respeitar e seguir dogmas impostos pela cultura de

nossos pais e de grande parte da sociedade. Também pelas escolas, grande meio difusor da

cultura cristã e de seu domínio. Para analisar essa temática, poderíamos fazer uma simples

pesquisa com todos os educandos na disciplina de Ensino Religioso. Porém, não é nosso objetivo

adentrar nessa discussão, preferindo que seja tema para futuro trabalho.

Por ora vamos focar a influência que a religião exerceu durante a Idade Média tomando

por parâmetro “História - memória viva: da pré-história a idade media” (2005), obra de Cláudio

13

Concepção medieval de Deus como centro de todas as coisas.

32

Vicentino. Nos coloca que ele o teocentrismo como principal característica da cultura medieval,

deu às religiões, em especial a católica, o poder de orientar a vida do homem medieval. Não só no

modo de pensar, mas na cultura em geral, que se impregnou de religiosidade, seja no campo

científico, na arquitetura, no desenvolvimento musical e até mesmo na educação. Não queremos

fazer descaso às obras humanitárias da igreja, nem mesmo generalizar, mas chamar a atenção

para o poder de uma ideologia guiada por uma forma de mitologia. Na Idade Média, a religião e

neste ponto tem seus méritos, preservou muito do mundo antigo( principalmente através das

cópias dos livros que garantiam as bibliotecas e as transmissões dos conhecimentos, mesmo que

muitas vezes se manipulava o conhecimento). Mas essa preservação aconteceu também naquilo

que mencionamos como “herança aristotélica” da teoria das quatro causas.

Sob a interpretação teológica a teoria das quatro causas consolida-se no aspecto da

distinção onde a causa final é superior à eficiente, fazendo as relações: “Deus” é a causa final; os

servos, a causa eficiente. Assim como os “cidadãos” gregos, superiores aos escravos e os

senhores feudais da Idade Média e seus servos. Essa interpretação conduzirá no plano social “...o

trabalho aparece como elemento secundário ou inferior, a fabricação sendo menos importante que

seu fim. A causa eficiente é um simples meio ou instrumento para a satisfação da vontade ou

desejo de um outro, o usuário do produto do trabalho” (Chauí (2004, p.12s).

A ideologia dominante da idade moderna, se apropria dessa característica, continua:

[...] quando, porem, não percebe a raiz histórica de suas idéias e imagina que elas serão

verdadeiras para todos os tempos e todos os lugares, corre o risco de estar,

simplesmente, produzindo uma ideologia. De fato, uma dos traços fundamentais da

ideologia consiste, justamente, em tomar as idéias como independentes da realidade

histórica e social, quando na verdade é essa a realidade que torna compreensíveis as

idéias elaboradas e a capacidade ou não que elas possuem para explicar a realidade que

as provocou. (CHAUÍ, 2004, p.13)

1.5.2 A ideologia no mundo moderno

O mundo moderno, contudo, trará outra perspectiva de ideologia. Livre do mundo

teológico, já que a ciência começa a tomar espaço da religião e o faz nas relações de

conhecimento embora a sociedade ainda traga as influências da religião - como mostramos pela

33

teoria das quatro causas - mas o que vai desenhar a ideologia é a relação do homem com seu

trabalho. A alienação social e a subjugação do homem através da coação.

Na verdade por trás de uma idéia de modernidade a caminho do “primeiro mundo”,

encontramos uma ideologia dominadora, avassaladora, que traz consigo o extermínio de vidas, de

culturas e de povos, bem como, a exploração de trabalho e de riquezas dos povos nativos -

lembrando que quando falamos de nativos incluímos os povos latinos, africanos, asiáticos e todos

os outros retirados de seus habitats naturais ou explorados em seus próprios habitats em nome da

“civilização” e do “desenvolvimento”. Vicentino (2005, p.140) utiliza as palavras da historiadora

G. Himmelfarb para resumir o que se esconde por trás da história moderna:

Até mesmo as mais impressionantes descobertas científicas podem ser usadas da

maneira mais grotesca; que uma política social generosa pode criar tantos problemas

quanto soluciona; que até mesmo os mais benignos governos sucumbem ao peso morto

da burocracia, enquanto os menos benignos mostram-se criativos e nas invenções de

novos e horrendos modos de tirania; que as paixões religiosas se exacerbam num mundo

crescente secular, as paixões nacionais, num mundo fatalmente interdependente; que os

paises mais avançados e poderosos podem tornar-se reféns de um bando de terroristas

primitivos; que nossos mais amados princípios – liberdade, igualdade, fraternidade,

justiça, mesmo paz – foram pervertidos e degradados de maneira nem sonhadas por

nossos antepassados. A cada passo somos confrontados por nossas promessas quebradas,

esperanças fornecidas, dilemas irreconciliáveis, boas intenções que se desviaram,

escolhas entre males, um mundo a beira do desastre – tudo isso já virou clichê mas é

verdadeiro demais e parece desmentir a idéia de progresso.

O “progresso” humano do mundo moderno merece análise especial no que diz respeito

àquilo que vários autores chamam de “a máquina do mundo newtoniana”. A dominação dos

povos foi somente um “pontapé”, uma leve amostra do que traria a ideologia sob o disfarce de

transformação científica. A passagem da ciência ecológica para uma ciência antiecológica, ou

seja, a mudança do modo de ver o mundo – de um modo orgânico para um modo não orgânico –

representou não só uma mudança de pensamento, mas o inicio da transformação de entendimento

do cosmos todo.

Desde que a terra deixou de ser o centro do universo e o homem deixou de estar a serviço

do mundo, para o mundo ficar a serviço do homem, este que antes era filho do “divino”, criação

do “Deus”, resolveu ser o próprio Deus. Não que os avanços científicos iniciados na época de

Nicolau Copérnico (1473-1543), não tenham contribuído para a humanidade. O que ocorre é que,

desde as descobertas de Galileu Galilei (1564-1642) e a introdução da “medição” das coisas das

quantidades, perdemos o valor por aquilo que é vital.

34

Quando elevamos e confiamos em nossas induções como nos métodos de Bacon (1561-

1626), elevamos demais a subjetividade e corremos o risco de ver a ciência como um instrumento

para dominar e controlar a natureza, além de estabelecer uma uniformização nas análises,

subestimando algo indispensável: as individualidades. A natureza somente como extensão e

movimento, se torna passiva de intervenção, cujos elementos, se podem desmontar, medir,

reduzir e relacioná-los sobre a forma de leis. Ver as coisas como mero objeto de manipulação

leva a crer em um conhecimento “certo”, como em Descartes (1596-1650), e esquecer de nossas

limitações e de nosso conhecimento relativo, bem como da influência e dos interesses individuais

no que se refere às interpretações de mundo. O método de Descartes fizeram o homem subir até a

lua, talvez, porém, não tenha conseguido fazer ele voltar.

As atitudes generalizadas e a fragmentação do “humano”, através do engrandecimento e

da “adoração” da teoria causou o abandono do real, do ser. Passamos a ser tratados como

“máquinas” quase perfeitas, propícias a tarefas manipuladas e direcionadas. Dominamos a

natureza e esquecemos do sentido, dos sentimentos, esquecemos que somos também natureza e

que fazemos parte deste todo dominado.

Bobagem seria por a culpa em Newton por ter sintetizado Copérnico, Kepler, Bacon,

Galileu, Descartes e outros. Sua uniformização e “numeração” das coisas dando o mundo como

“uma máquina perfeita” e, possivelmente, com chances de ser determinada e totalmente

manipulada, traduziu a tentativa de vários outros cientistas e da humanidade em geral, em sua

ganância de dominar e manipular. A partir daí somente retirou-se o pouco de “divino” que ainda

existia e deixou no mundo um vácuo espiritual. Depois disso tudo virou “ciência” e o homem,

seja pelo evolucionismo, seja pela entropia, passou a ver-se como objeto de pesquisa.

Se na idade média e nas culturas gregas a liberdade humana era limitada pelos mitos, na

“era moderna” vai ser limitada pelo próprio homem e por suas próprias ações ideológicas. O

“corpo máquina” de Descartes se torna dependente da causa final, evolução da teoria das quatro

causas (reduzindo de quatro para duas: eficiente e final), como lembra Chauí (2004, p.16): “O

homem livre é, portanto, um ser universal (sempre existiu e sempre existirá) que se caracteriza

pela união de um corpo mecânico e de uma vontade finalista”. A liberdade transforma-se em

liberdade ideológica e o homem agrega valor a si mesmo a partir do poder econômico que

consegue adquirir ou possuir.

35

Quando o produto final se torna o mais importante, surge a divisão social. Aqueles que

possuem o poder determinam qual produto deve ser produzido, sua quantidade e seu valor,

enquanto os trabalhadores vendem sua liberdade e sua mão-de-obra na expectativa de conseguir

chegar à obtenção do poder aquisitivo que lhes dará poder de compra para usufruir de benefícios

e produtos que eles mesmos produzem.

A era do “progresso” do “homem máquina” se tornou a era da escravidão, onde o homem,

escravo de suas próprias invenções, moderniza seus mitos, cria novos deuses, priva-se daquilo

que ele próprio produz e, acima de tudo, tem que arcar com as conseqüências de todas as medidas

prejudiciais.

No mundo contemporâneo, inúmeros são os enfoques teóricos que podemos tomar para

tratar a ideologia e seus meios de difusão e influência. Podemos enfocar desde a relação

política/ideologia ou economia/ideologia. Mas, para fazer isso precisaremos enfocar todas as

visões que fazem a “armadura” ideológica e nossa coação e alienação. Vamos trabalhar essas

questões no decorrer do segundo capítulo.

36

2 STATUS QUO E O PODER DA IDEOLOGIA

A discussão histórica exposta no primeiro capítulo demonstrou que ao falar de ideologia

não estamos falando de assunto pouco estudado ou mencionado. Ao contrário, é preciso

consciência de que estamos falando e discutindo temática relevante. O assunto é amplo e

complexo que se torna desafiador até mesmo imaginar se seria melhor analisar e buscar seu

entendimento ou criticar algumas de suas formas de existência.

Sob esta perspectiva, usaremos três definições básicas que podem ser sintetizadas pelas

visões utilizadas por Guareschi (2004, p.19) em sua obra “Sociologia Crítica: Alternativas de

mudanças”:

a) O estudo das idéias (sentido etimológico);b) Conjunto de idéias, valores, maneira de

sentir e pensar de pessoas e grupos (sentido positivo);c) Idéias erradas, incompletas,

distorcidas, falsas sobre fatos e a realidade (sentido crítico, ou negativo).

A ideologia entendida e percebida em sua visão histórica das idéias pode fazer-se como

análise errônea, tendo presente que a história é limitada, relativa e condicionada por tradições e

influências sociais predominantes dentro de cada época que compõe a história. Cada visão, em

cada época, expressa uma dimensão de sociedade, ficando quase impossível entendê-las de forma

unificada.

Neste capitulo trabalharemos a definição de ideologia como idéias erradas, incompletas,

distorcidas, falsas sobre fatos e a realidade. Surge, então, o grande questionamento: nossos

pensamentos são realmente nossos? De que serve realmente a ideologia? Para analisar o

conhecimento ou para transmitir e indicar pensamentos e representações sejam elas normas, leis,

regras sistemáticas ou não, que influenciam os membros da sociedade em seus modos de pensar e

agir?

Querendo ou não estamos impregnados pela ideologia. Ela está em nossas regras, em

nossas ações, em nosso modo de pensar. Aqueles que aceitam este processo rejeitam qualquer

afirmação contra seus meios; os contrários se vêem delimitados em suas finalidades e ações.

37

Quando a ideologia se torna uma distorção das idéias, palavras como: exploração, terceiro

mundo, desemprego e outras do gênero, passam despercebidas, e sua dominação se torna

completa. Assim, a grande jogada do “fim” da luta entre capitalismo e socialismo ou qualquer

outra alternativa de vida em sociedade, esconde grande armadilha: a ideologia dominante tem

todos os meios para persuadir, manipular e esconder sua dominação usando a justificativa de ser

a única alternativa viável. Por isso Mészáros (2004, p.59) confirma:

Compreensivelmente, a ideologia dominante tem uma grande vantagem na determinação

de que pode ser considerado um critério legítimo de avaliação do conflito, já que

controla efetivamente as instituições culturais e políticas da sociedade. Pode usar e

abusar abertamente da linguagem, pois o risco de ser publicamente desmascarada é

pequeno, tanto por causa da relação de forças existentes quanto o sistema de dois pesos e

duas medidas aplicado as questões debatidas pelos defensores da ordem estabelecida.

Uma ideologia, quando se transforma em status quo dispõe de várias vantagens que são

determinantes para sua manutenção. Instaurada a dominação, expressa no status quo, não

necessita mais comprovar suas “falácias”, ou seja, a fé que recebe pelo direcionamento às coisas,

lhe dá o direito de conduzir, de forma indiscutível, e atacar àqueles que tentam resistir a sua

dominação14

.

Mesmo que o poder dominante não satisfaça as necessidades gerais da população,

consegue difundir a impressão (ilusão) que a situação é apenas transitória e passível de ajuste, e

assim, tudo acaba por se adequar ao status quo em prol da esperança de um “futuro melhor”. Não

é em vão que Nietzsche (2006) diz ser a esperança o pior dos sentimentos que o ser humano pode

ter15

. Ela neutraliza o sentido de potência. Na relação ideologia e status quo, a esperança traz a

neutralidade do censo crítico, do dialético, do consciente. Instaura-se então uma idéia positivista

de que a vez de todos está para chegar, basta estar preparado para adequar-se ao que pede a idéia

do “mundo de todos para todos”.

Mészáros (2004, p.65) esclarece que o poder da ideologia não pode ser subestimado,

dizendo:

14

É o caso, por exemplo, da grande discussão gerada sobre a terra como centro do universo, onde vários pensadores

dobraram seus joelhos perante os dogmas da igreja durante longo período. Dito de outra forma: aquele que está no

poder tem o poder de dizer o que é e o que não é verdadeiro, a menos que de alguma forma muito clara haja prova

em contrário.b 15

Nietzsche em sua obra “ Humano, demasiado humano”b critica a esperança idealizada pela religião, pois , segundo

ele ela retira o desejo de transformação e leva as pessoas a passividade.

38

Na verdade, a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal-

orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e

sustentada. Como tal, não pode ser superada nas sociedades de classe. Sua persistência

se deve ao fato de ela ser constituída objetivamente (e constantemente reconstituída)

como consciência prática inevitável das sociedades de classe, relacionada com a

articulação de conjuntos de valores e estratégias rivais que tentam controlar o

metabolismo social em todos os seus principais aspectos. Os interesses sociais que se

desenvolveram ao longo da história e se entrelaçam conflituosamente manifestam-se, no

plano da consciência social, na grande diversidade de discursos ideológicos

relativamente autônomos (mas, é claro, de modo algum independentes), que exercem

forte influência sobre os processos materiais mais tangíveis do metabolismo social.

O poder da ideologia manifesta, na transmissão através de meios sócio-políticos,

econômicos e culturais, a idéia de igualdade de oportunidades, suscitando a concorrência na

busca do “mérito”. Essa concorrência provocada aumenta ainda mais a divisão de classes onde

quem dita as regras do jogo é o status quo, bem como mantém seus “guardas influenciadores”16

na desorientação daqueles que pensam atravessá-lo.

A sociedade de classes se faz ideologicamente influenciada – e sua manutenção é

essencial ao status quo, visto que a luta entre si desvia o foco do objetivo principal. Constrói-se

então, uma luta ideológica onde o principal objetivo não é transcender ao status quo, formando

uma nova alternativa, mas simplesmente mudar de posição dentro da mesma estrutura. Para fugir

desta ideologia é preciso demonstrar uma práxis que sirva de modo convincente como alternativa:

... é visto que as ideologias estão – de modo direto ou indireto, mas sempre – mescladas

com a política, operando dentro dos limites do estado, que institucionalmente regula e

controla o metabolismo social como um todo (enquanto o estado existir), as ideologias

críticas e as formas de “contraconsciência” não podem deixar de ser parciais e

unilateralmente negativas em sua autodefinição, a menos que possa oferecer uma

alternativa hegemônica viável as práticas predominantes nessa formação estatal, em

todos os planos da vida social (MÉSZÁROS, 2004, p.234).

Se por um primeiro olhar parece fácil descobrir uma saída, é preciso analisar que mesmo

sob a indignação gritante daqueles que sofrem as injustiças, não surgem teorias ou instituições

revolucionárias capazes de unificar um pensamento ideal contra a ordem dominante. A sociedade

dividida em classes dificulta o surgimento de um pensamento homogêneo eficaz. Em

conseqüência o levante social que tenta intervir no status quo se torna imediatismo, pois não tem

um ponto abrangente que retenha ou aumente sua importância, enquanto a ideologia dominante

(status quo) possuindo todos os pontos de acesso, todas as mediações – e aí está seu poder –

16

Meios que a ideologia usa para se manter e se propagar.

39

consegue controlar e dinamizar o movimento histórico fazendo com que seus opositores se

enfraqueçam:

Em outras palavras, a maior desvantagem de todas as formas radicais de

contraconsciência socialista consiste na imensa dificuldade de assegurar pontos de

contatos viáveis com as forças sociais de negação disponíveis, incorporando

inteiramente as exigências objetivas das ultimas sem abandonar sua própria orientação

temporal global que percebe a necessária superação de muitas dessas exigências

imediatamente dadas – que são, em suas implicações gerais, freqüentemente muito

problemáticas. (MÉSZÁROS, 2004, p.237).

Sem as mediações, os levantes contra o status quo se tornam simplesmente tendências

(visto sobre o ponto de vista de sua imediaticidade e particularidade que atingem), em

contraposição o status quo se mantém e manipula através dessas mediações. As mediações são

instrumentos que se constituem como base da sociedade moderna e, quando estudadas,

demonstram sua verdadeira identidade como meio de alienação. Passamos a estudar alguns

desses instrumentos.

2.1 A ideologia da Moral

Em toda a história faltou a idéia de que há algo problemático com a moral. Pois toda a

moral transformou-se em tirania contra a natureza humana e contra a própria razão porque a

moral se fez fruto de longa coação posta em prática através da submissão humana às leis

arbitrárias. Pode-se questionar: de que modo inventou o homem apreciações como “o bem e o

mal”? Tem valor em si mesmas? Foram favoráveis ao desenvolvimento humano? Indicam

plenitude ou degeneração da vida?

Segundo Nietzsche (2007), necessitamos de uma crítica de valores morais, e, antes de

tudo, devem-se discutir os valores do valores. Por isso é necessário conhecer as condições e os

ambientes em que nasceram, se desenvolveram e se deformaram os valores.

A teoria da origem do conceito e do sentido de bom, procura e fixa a origem do conceito

de “bom” num lugar em que não está. A palavra que exprime o juízo “bom” não emanou

daqueles a quem se prodigalizou a “bondade”. Foram os homens “nobres”, os poderosos de cada

época, que julgaram e fixaram a si e a seu agir o juízo de “bom”, em oposição a tudo o que, para

eles, era baixo, mesquinho, comum e plebeu.

40

Por exemplo, se pegarmos a palavra “bom” em todas as línguas, ela deriva de uma mesma

transformação conceitual. Em toda a parte “nobre”, “aristocrático”, no sentido de ordem social, é

o conceito fundamental, a partir do qual se desenvolve necessariamente “bom” no sentido de

“que possui uma alma de natureza elevada”, de que “possui uma alma privilegiada”, e,

paralelamente “comum”, “baixo”, “plebeu” entra no conceito de “mau”.

O exemplo mais eloqüente dessa ultima transformação é a palavra alemã sclecht (mau),

que é idêntica à palavra schlicht (simples); compare-se schlechtweg (simplesmente) e

schlechterdings (absolutamente), e que em sua origem designava homem simples, comum.

Podemos somar ainda outros exemplos: a palavra kakós (mau) como em deilós (miserável) -que

designa o plebeu por oposição ao agathós (bom) - denota a covardia, e indica talvez uma pista da

direção em que deveria se procurar a etimologia de agathós, palavra que poderia ser interpretada

de diversas maneiras. O termo latino malus (mau) - que podemos relacionar com o grego melas,

“negro” - pode designar o homem plebeu de cor morena e de cabelos pretos. O termo latino

bonus (bom) como “o guerreiro”: uma vez que possa fazer remontar bonus à sua forma antiga de

duonus (compare-se bellum=duellum=duem-lum, que parece conter também esse duonus). Bonus

seria o homem da discórdia (duo – dois), o guerreiro: nota-se o que, na Roma antiga, constituía a

bondade de um homem. A palavra alemã gut (bom) não significa göttlich (divino), o homem de

origem divina? E seria sinônimo de Goth, designativo de um povo (mas originalmente da

nobreza).

Porém, para Nietzsche (1997), com os judeus acontece a inversão de valores morais, isto

é, tomaram satisfação de seus inimigos e dominadores por meio de uma vingança espiritual. Com

os judeus começa a sublevação dos escravos na moral, sublevação que já tem mais de dois mil

anos de história, pois todas as coisas de longa duração são difíceis de ver, de captar com um olhar

abrangente. Assim a redenção do ser humano está no melhor caminho possível, tudo se judaíza,

se cristianiza e se pleibeiza a olhos vistos. Necessitando sempre de estímulos externos, como

mera reação.

Somos conduzidos a aceitar que cultura significa domesticar o ser humano para fazer dele

“um animal pacato e civilizado”, devendo ser verdadeiros instrumentos para isso os instintos de

reação e ressentimento, pois assim, o homem fica com medo de si próprio, perdendo o amor e o

respeito por ele mesmo, cansando do próprio homem. Até mesmo aquilo que fazia manter a

ordem psíquica: o esquecimento foi vencido por algo chamado “memória”, que trata de uma

41

vontade ativa onde guardarmos impressões: continuidade no querer de uma “memória da

vontade” sem que esta longa cadeia de querer se rompa. O próprio homem se fez calculável,

regular, necessário, até em sua própria representação de si, para chegar deste modo a poder, como

faz um ser que promete, estabelecer-se como garantia de si mesmo como futuro.

É justamente o que constitui a origem da responsabilidade. Educar ao “homem animal”

para torná-lo necessário, uniforme, semelhante entre os semelhantes e calculável. O verdadeiro

trabalho do homem sobre si mesmo encontra sua justificação pela moralidade dos costumes e

pela camisa de força social, de modo que o homem chegou a ser realmente calculável. Seu

critério de medida do valor é considerado o outro a partir de si mesmo. Surge, de maneira

ieológica, o sentimento de orgulho e superioridade de uns sobre os outros e, da mesma forma, o

ser como detentor do poder institui o preço, valores e a relação fundamental entre credor e

devedor. Disso apropriou-se a sociedade e estabeleceu-se como reguladora de relações, de modo

que o ser contrai um compromisso e uma obrigação para com o coletivo e este, por sua vez, cria o

castigo como forma de manter a ordem e sua dominação.

À medida que aumenta, em uma comunidade o poder, e diminui a consciência individual,

o direito penal se transforma em privilégios para poucos. Disso se segue que não há justo nem

injusto senão a partir do momento da instauração das leis. Falar de justo e injusto em si não tem

sentido, por que uma infração, uma violação, uma aniquilação não pode ser justa em si, uma vez

que a vida procede essencialmente por infração. Por isso o castigo tem o objetivo de despertar no

“culpado” o sentimento de culpa, revelando nele a má consciência. Assim o castigo doma o

homem, porém não o torna melhor.

A má consciência, e a profunda doença, na qual o homem tendo ter caído sobre a pressão

mais radical de todas as modificações que viveu, de maneira geral, viu-se prisioneiro da

sociedade reduzido à sua consciência, a seu órgão mais fraco e mais exposto ao ridículo. À

medida que a exteriorização do homem foi inibida, as formidáveis barreiras que a sociedade

construiu para se defender contra os antigos instintos do homem selvagem, livre e vagabundo, se

voltara contra ele. Assim surgiu a má consciência. O sofrimento suscitado no homem pelo

homem, por ele mesmo, conseqüência de uma ruptura violenta com o passado animal, deu ao

mundo um elemento novo e cujo fim certamente não pode ser previsto ainda, contudo o Estado

conseguiu apropriar-se desses desleixos e momentos e não só abrandou o sofrimento como

modelou o homem conforme seu desejo.

42

A moral, neste sentido, se torna um modo de distorção das idéias e de construção humana,

mas também, um instrumento de repressão e domesticação. Serve tanto para legitimar como para

coagir de maneira suave (através da resignação que a moral causa no ser humano): como de

maneira violenta (usando a força quando necessário).

2.2 A ideologia e a religião

Quando menciono a religião quero deixar claro que não pretendo anular a ação da

instituição. A religião como o religare dos povos, aquela instituição que une e organiza as

comunidades, as reúne em comunhão de vida e de esforços em prol da construção de uma

sociedade mais justa, se faz necessária. Porém, quando utiliza-se deste mesmo espaço para,

através de dogmas mitológicos, alienar as comunidades e as explorar, utilizando seus adeptos

para seu crescimento e manutenção, sem duvida, temos um instrumento ideológico tão perigoso

quanto a outros conhecidos.

Não há duvida que o homem é o animal mais doente. As duas piores pestes que nos

ameaçam são: o desgosto profundo do homem e a profunda compaixão pelo homem. Quando não

consegue entender a si mesmo, o homem fica perdido e se vê tomando atitudes errôneas que se

voltam contra si, entrando em colapso com seu próprio ser e ficando a mercê da subjugação,

desde que ela possa lhe mostrar um caminho a seguir.

Este ideal tem sua origem no instinto de proteção e de salvação própria à uma vida em

degenerescência, e que por todos os meios procura conservar-se. Nele, domina o ressentimento

instintivo de vontade de poder insatisfeito, que gostaria de dominar a própria vida.

As religiões, ao apropriarem-se dessa situação, e através de mitos conduzirem os homens

em prol de seus anseios, constroem uma ideologia massificadora, pois não somente dominam de

fora para dentro, do social para o psicológoco, como também de dentro para fora, do psicológico

para o social, pois apropriam-se dos medos mais profundos do ser humano e utilizam seus

“deuses”, com uma marca de gênio, para se “sacrificar” pelas faltas que os homens pensam

cometer, exigindo em troca obediência e servidão.

O “guia religioso” é como um salvador do rebanho doente, e a dominação sobre aqueles

que sofrem constitui seu reino. Ele muda a direção do ressentimento. Interessante é lembrar que o

estado de pecado no homem não é fato, senão apenas a interpretação de um fato, de um mal estar

43

fisiológico, considerado sobre o ponto de vista religioso e moral. O fato de que alguém se sinta

“culpado”, “pecador”, não prova que na realidade o seja, como o fato de alguém sentir-se bem

não prova que na realidade esteja bem.

Podemos classificar a religião como um grande tesouro de meios de consolo

extremamente engenhosos, pelos quais deveria utilizar estimulantes que podem vencer, por

algum tempo pelo menos, a profunda depressão. Pode-se dizer que em geral, todas as religiões

têm por objetivo principal combater uma epidemia do cansaço. Os meios postos em prática pelos

representantes religiosos: a repressão do sentimento da vida, a atividade maquinal, a pequena

alegria, sobretudo, a alegria do “amor ao próximo”, a organização sob forma de rebanho, o

despertar de sentimento de poder da comunidade em decorrência daquele do desgosto do

individuo por si próprio, é abafado pelo prazer que lhe proporciona o desenvolvimento da

comunidade. A libertinagem do sentimento é um dos meios inocentes utilizados na luta contra o

desprazer.

Desarticular a alma humana e imergi-la no medo, questionando a matilha de cães

selvagens que habitam no homem e libertar ora um, ora outro, sempre com o mesmo objetivo,

despertar o homem da tristeza, tem sempre uma justificativa religiosa. A principal estratégia é

explorar, em seu benefício, o sentimento de culpabilidade: o pecado (reinterpretação religiosa da

má consciência animal ou moral), fazendo procurar em si mesmo, para que aceite o sofrimento

como castigo. A sistematização extremamente engenhosa, extremamente desprovida de

escrúpulos, provoca a libertinagem de sentimentos, não admitindo outra interpretação e não se

sujeitando a nenhum poder.

A religião apropriou-se das condições mitológicas para, através da representação dos

deuses humanos, fazer entidade que conduz a felicidade. Porém, além de levar uma esperança

que delimita o ser humano e lhe tira a “potência”, esconde uma grande formação econômica

muito influente na sociedade que ajuda a regular e, de certa forma, a conduzir a sociedade na

construção política e de leis. A religião, através de suas artimanhas dominadoras se faz como

poder paralelo ao Estado, se mostrando como uma forma de status quo independente e

inquestionável meio de difusão ideológica.

44

2.3 A ideologia da Família

Compreendemos “família” utilizando primeiro o estudo da idéia grupal do que nos vem à

mente quando pronunciamos a palavra.

Socialmente falando, família representa:

a) um grupo social primário que influencia e é influenciado por outras pessoas e

instituições;

b) um grupo de pessoas, ou um número de grupos domésticos ligados por descendência

(demonstrada ou estipulada) a partir de um ancestral comum, matrimonio ou adoção;

c) uma entidade capaz de manter os membros moralmente, materialmente e

reciprocamente durante uma vida e durante as gerações17

;

Em sentido etimológico, segundo o que nos relata Friedrich Engels sobre os estudos de

Morgam a respeito da evolução das famílias, a palavra “família” vem do termo latino “famulus”,

que significa escravo doméstico, de modo que através desse sentido família quer dizer nada mais,

nada menos que “um conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem”, ou seja, temos

nossa primeira contradição a respeito do romantismo que envolve todo o afeto familiar que se

desenvolveu pelo decorrer da história. Para Duvall e Miller18

, a família tem certas funções que a

constituem como família e que dão importância a estes laços. Entre eles podemos citar afeto,

segurança, aceitação pessoal, estabilidade, socialização, continuação da cultura do sentimento do

“correto”, demonstrando que a relação familiar representa um jogo de interesses e necessidades

pessoais para o crescimento e manutenção da vida, levando a questão da terceira forma de ver a

ideologia familiar, como uma idéia distorcida e incompleta.

Aqui se desenvolve a base da dominação ideológica. A família segundo Guareschi (2005)

é responsável pela transmissão dos costumes e pela manutenção dos mesmos, servindo para

preparar elementos para a manutenção e andamento do sistema vigente, além de perpetuar dentro

de si dois pontos horrendos: 1) a questão do critério de idade, onde os mais velhos dentro da

família são os que mais sabem, dando a entender que suas ideologias são as válidas e as que

devem ser seguidas; 2) o critério de gênero, onde os homens são os que comandam, enquanto a

17

Informações retiradas dos site eletrônico WIKIPÉDIA (07 DE Outubro de 2008, 14:38 Hs) 18

Informações retiradas dos site eletrônico WIKIPÉDIA (07 DE Outubro de 2008, 14:38 Hs)

45

mulheres servem. Para o autor, somos formados dentro de relações de dominação e a família é

aliada nesse sentido, tornando-se alvo fácil para o sistema econômico vigente.

Antes, vamos compreender porque a família como aqui está é nada mais que uma farsa

capitalista, criada e mantida simplesmente por intenções econômicas. Quem nos mostra esse

processo de modo simples e claro é Friedrich Engels em sua obra “A origem da família, da

propriedade privada e do Estado” (2005).

Na obra, Engels faz um resgate da origem da família monogâmica vigente os povos

atuais. Baseando-se nos estudos do americano Morgan, que revolucionou o entendimento da

questão familiar, estudando de perto o andamento das tribos indígenas americanas percebeu que a

família é um princípio ativo, que evolui junto com a evolução social. O estudo da história

primitiva revela situações de poligamia e poliandria ao mesmo tempo. O círculo de relações era

muito maior e muito mais aberto e foi estreitando-se pouco a pouco até chegar ao que chamamos

hoje de monogamia.

Vamos iniciar está análise a partir da família pré-monogâmica que consiste, em outras

palavras, no limite entre o estado selvagem e a barbárie. Torna-se a família característica da

barbárie, como o casamento grupal é do estado selvagem e a monogamia é da “civilização”. O

estado da barbárie consiste por sua vez no marco de referência da transformação social. Aqui

começa a se valorizar a domesticação dos animais e a criação dos mesmos que com o passar dos

tempos significa pequenas riquezas no que se refere à garantia de alimentação e significa também

a necessidade de melhor organização e administração, visto que precisava locais adequados para

a produção e manutenção dos alimentos, principalmente alimentos que provinham da procriação

dos rebanhos.

Todo o trabalho social feito pelas famílias, de organização e administração dos bens e das

riquezas suscitava uma pergunta: a quem pertenciam as riquezas? As famílias as administravam,

mas em seus fins legítimos ainda pertenciam às “gens”, ou seja, para os grupos tribais que se

formavam pela junção das famílias, pois mesmo sob forma pré-monogâmica as tribos não se

dissiparam. Isso acontecia porque de acordo com as tradições das famílias pré-históricas, onde o

casamento era grupal, o direito materno ainda prevalecia enquanto o trabalho ou o fruto dele

pertencia aos homens. Quando o patriarca da família morria todos os bens da família passavam a

pertencer e eram divididos entre os membros da “gens”, enquanto seus próprios filhos corriam o

risco de ficar sem nada.

46

Tendo em vista que as riquezas aumentavam, conferindo aos homens mais

responsabilidades e importância no seio das famílias, surgiu à idéia de valer-se da vantagem de

modificar a transmissão das riquezas diretamente para os filhos, para que esses não corressem o

risco de ficar sem bens. Para essa viabilização, no entanto, era preciso que o direito sobre os

filhos passasse da mãe para o pai. Assim passou o direito hereditário materno para o direito

hereditário paterno e as riquezas estavam garantidas aos filhos. Para assegurar a fidelidade da

mulher e a paternidade dos filhos, a mulher é submetida incondicionalmente ao poder do homem.

Tem início, assim, o novo estágio de transição entre a família de direito materno e a monogamia

do mundo moderno.

Entendendo isso, a monogamia conhecida e estabelecida até os dias de hoje, respeitada

como forma mais correta de “vida em grupo”, não provém do amor eterno jurado perante

sacerdotes seja lá de qual for à religião, mas é fruto da necessidade da paternidade como fonte de

acesso de futuros herdeiros. Não é, portanto, fruto do amor sexual individual, mas constitui-se

como a primeira forma de família que observa as condições econômicas e não naturais. É o

triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum, a proclamação da guerra entre os

sexos, a subjugação do sexo feminino pelo sexo masculino. Como diz Marx19

, “...a primeira

divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação de filhos.”

Podemos também citar aqui como sendo o inicio da oposição e opressão de classes, tanto pelo

inicio da opressão da mulher, como pelo inicio das negociações e contratos de casamentos e o

começo da prostituição tanto feminina, como masculina. Seria injusto dizer que o homem tem

amante e mulher se prostitui, já que os dois são formas de prostituição ou de adultério.

Os gregos chegaram a proclamar abertamente que o objetivo da monogamia era o

domínio do homem sobre a família e a procriação de herdeiros garantidos, fora isso o casamento

era um peso, um dever a cumprir para com os deuses, com o estado e com os antepassados.

Em resumo da história do que chamamos de família, há três formas de casamentos, que

correspondem às três formas da evolução humana. No estado selvagem temos casamento grupal,

na barbárie temos a pré-monogamia, e na civilização a monogamia, a prostituição e o adultério, a

escravização doméstica das mulheres, a dominação e os privilégios do homem.

19

As informações e citações de Marx contidas nesta página foram retiradas da obra de Engels “ A origem da família,

da propriedade privada e do estado” (São Paulo: Escala, 2005).

47

A família é uma forma perigosa de alienação e distorção ideológica, escondendo anos de

subjugação feminina, de manutenção e transmissão da ordem vigente e dos costumes.

2.4 O cavalo de tróia chamado “comunicação”

Já existem máquinas que substituem a força de trabalho do ser humano. Existem meios de

transportes que agilizam todo o processo dos meios de produção. O universo das coisas e de seus

“habitantes-fregueses” anda cada vem mais veloz. Talvez diversas outras máquinas venham

revolucionar ainda mais toda a forma de vida no planeta terra. Porém, em meio a tantas

revoluções não descobriram, e dificilmente será descoberto, algo que substitua a presença do ser

humano. A artificialidade lucra abusadamente, mas, mesmo assim não contempla a solução do

problema que se arrasta e se demonstra cada vez maior, representado pelo aumento de suicídios,

depressão, crimes bárbaros, etc... Enfim, o ser humano está a beira do caos da falta de

relacionamento e a beira de sua própria desvalorização.

O ser humano não foi feito pra viver só. “Anjos de uma asa só”, “metade de coração”, seja

como queiramos chamar sabemos da necessidade do afeto, do diálogo, da companhia. Sozinho, o

ser humano não consegue mais conviver nem com ele mesmo. Um grande exemplo é a parcela

considerável da sociedade que não consegue mais conviver com seus próprios pensamentos.

Percebemos isso há alguns meses quando em uma atividade com uma turma de educandos de

ensino médio resolvemos perguntar quantos conviviam em silêncio pelo menos uma vez por dia.

Surpreendeu-nos não ver nenhuma mão levantada. Apenas leves sorrisos de confirmação:

ninguém convivia com o silêncio. Outro espanto, quando mudamos a pergunta: com quem

conversavam? A grande maioria não conversava a não ser na escola. Em casa a maioria preferia a

televisão, o rádio ou as duas coisas ao mesmo tempo, ou faziam alguma outra atividade com a

companhia de um desses meios de comunicação.

Nas grandes metrópoles, e até mesmo em cidades de médio porte, temos uma grande

invasão da internet, símbolo do isolamento humano. Hoje se faz tudo pela Internet: noticias,

compras, pesquisas, relacionamentos, etc. Chegamos então a um dos mais fortes pontos de “meio

difusor” da ideologia no mundo contemporâneo: os meios de comunicação.

Eis um grande veículo ideológico: os meios de comunicação, devido a grande aceleração

do mundo em que vivemos, dando pouca alternativa para o desenvolvimento da criticidade, gera

48

uma assimilação, quase imediata, daquilo que se ouve ou vê e tem enorme poder de influência na

sociedade. Começando pela música, já pré-selecionada nas gravadoras, repetidas diariamente e

massivamente, de modo que os “ouvintes” assimilem suas letras do mesmo modo como ocorre

com o “ABC” na escola ou, quem sabe, de forma mais dinâmica e ritmada. Mas esse é somente

um exemplo do “bombardeio” de informações imprecisas, manipuladas e manipuladoras que

surgem todos os dias pelos meios de comunicação.

Os meios de comunicação produzem a realidade, quando de fato os comentários diários

em bares, restaurantes e outros estabelecimentos são sobre algo noticiado, e quando não noticiado

passa despercebido para aqueles que não presenciaram o fato. Assim, a comunicação nunca é

neutra, mas construindo a realidade carrega a dimensão valorativa que deseja. Quando nas mãos

dos detentores do poder, define “espaços” e a realidade a ser percebida através de seus conteúdos.

Em uma reflexão mais aprofundada podemos citar o que Guareschi (2004, p.145)

menciona em sua obra Sociologia Crítica: “...são os meios de comunicação, que não são nossos,

ou não transmitem nossas coisas, que descaracterizam e roubam nossa cultura. Está se repetindo

entre nós a velha história do cavalo de tróia.”

O cavalo de tróia aqui representa um “arco íris” de informações manipuladas, novelas que

condicionam, propagandas que influenciam o consumismo através de “mensagens subliminares”

ou da exploração de certas reações psíquicas do ser humano, incutindo uma idéia de “status

social” necessário. Muitas vezes se tornam até mais “necessários” que a própria alimentação.

Os meios de comunicação, como o próprio nome menciona, são meios para agilizar a

comunicação entre as pessoas, mas o que mais parece é a velha brincadeira do “telefone sem fio”

onde em fileira sussurrávamos na escola uma frase qualquer, passando por cada um até que o

ultimo procurasse repetir a frase que o primeiro da fila havia dito, normalmente não dava certo,

mas nos divertíamos. Com as notícias é quase a mesma coisa. Normalmente aquele que a recebe

por último não a recebe da maneira que realmente aconteceu. A diferença é que em vez de frases

aleatórias se tratam de notícias que podem gerar grandes repercussões, e em vez de trocadilhos

sem querer na transmissão das frases, existem manipulações claras.

A quem interessam essas distorções? A todos que precisam esconder realidades no

mínimo questionáveis. Exemplo disso é a grande repercussão que teve o assassinato de uma

menina de classe média, não que seja natural esses acontecimentos e, de maneira alguma,

devemos deixar de nos indignar com as atrocidades humanas, mas, por outro lado, ao mesmo

49

tempo talvez, várias meninas e meninos estavam morrendo de fome, de frio, de descaso, em

nosso próprio país. Enfim, por vários dias foram ao ar coberturas completas e “exclusivas” sobre

o caso. Ao mesmo tempo, sem repercussão, alguns projetos importantes foram votados na

assembléia, muitos deles sem o conhecimento da população. É o caso do uso das células-tronco.

Será que todos sabem como foi o desfecho da votação?

Além das noticias, outras várias artimanhas são usadas para disfarçar a realidade social e

esconder o desastre que a ideologia dominante causa no meio social. As novelas conseguem

mostrar uma “favela montada” com a possibilidade de ascensão dos moradores através do

envolvimento político, mas não conseguem ou não querem mostrar durante os 365 dias anuais a

situação revoltante e assustadora dos marginalizados moradores das costas dos morros paulistas,

cariocas, gaúchos, ou de qualquer outro estado, que rezam evitando chuva forte causadora de

desmoronamento, que leve embora o pouco que tem.

A pão e circo, no entanto, vamos vivendo e esperando, sentados ou em pé, atônicos, o

desfecho do suspense da novela que já está em seu ultimo capitulo. O bandido, causador de todo

o mal social, pelos próximos meses carregará a culpa de todos os problemas sociais e o bom

moço irá saborear aquele lindo falso e treinado beijo, várias vezes repetido porque precisa

demonstrar que tudo no seu final acaba bem, por mais que as contas se acumulem na porta da

geladeira.

A televisão cria a cultura, nós copiamos. Usamos roupas que o ator usa, o colar que a atriz

usa, falamos como o personagem fala. Não conversamos, não interagimos com nossa família em

nossa própria casa, apenas assistimos e fazemos propaganda gratuita carregando em nossas costas

e peitos marcas desconhecidas. Precisamos entender que nossa cultura está se dissolvendo. Mas

quem precisa de uma cultura própria quando se tem uma ‘cultura universal’, ‘uma tribo20

universal?.É sarcástico perceber como estamos dominados, sem identidade e sem reação perante

aquilo que nossos olhos pensam ser verdadeiro.

Hoje é impossível não reconhecer como somos manipulados. É ridículo dizer que não

aceitamos manipulação alguma. A propaganda se faz valer na hora de ir ao mercado comprar

“bombril”, “omo”, ou no bar na hora de comprar “coca-cola”, na loja na hora de comprar “lee”,

“olympikus”. Está em toda a parte. A repetição diária com dinâmicas de transmissão da

informação do produto com a constante repetição que é própria para uma assimilação imediata e

20

Tribo universal é uma expressão popular que representa o fim das diversidades culturais.

50

duradoura. Os meios de comunicação massacram a cultura, descaracterizam a sociedade, para,

através de informações e propagandas, manipular, persuadir e alienar, em prol da minoria

mantenedora do status quo.

2.5 Educação e ideologia

Poderíamos nos perguntar o por que discutir ideologia na educação, do mesmo modo, nos

questionar sobre tendências ideológicas sociais, esportivas ou quaisquer outras. A resposta seria

coerente: é necessário nos conhecermos.

Acima de tudo o professor é um líder, aquele que torna-se exemplo e tem influência direta

na formação do ser humano, até por estar presente na formação crítica e identificadora do ser

humano. Podemos dizer que o professor é o principal responsável por formar profissionais dentro

da sociedade, seja ele médico, juiz, torneiro mecânico, político ou jogador de futebol. Todos

passam pelas mãos do professor, ou de diversos professores e de cada um lembram ou carregam

algum método. Esses métodos não surgem do nada. Eles fazem parte de tendências e ideologias

carregadas pelas tradições e/ou construídas pela necessidade social vigente naquela determinada

época e são de extrema influência na formação da atitude dos lideres.

Falo de líderes, pois a liderança em si faz compreender melhor o que fazem as tendências.

Os grupos sociais em geral seguem aquilo que seus líderes optam, até porque, lideranças são

pessoas escolhidas para representar os grupos, sempre tendo em vista o pensamento que melhor

se adequou às necessidades maiores do grupo. Neste sentido um líder é crucial dentro dos grupos,

pois ajuda a criar a identidade nos indivíduos. Ele só se mantém nos grupos se consegue dar

conta das necessidades dos mesmos, adaptando-se sempre às novas necessidades.

Como já mencionamos, o professor se encaixa como um líder social por estar presente no

cotidiano dos indivíduos em formação-crítica-individual. E, se para uma liderança, é importante

estar sempre adaptando-se às necessidades do grupo para manter-se como líder, o professor, não

passa por este processo. Ele é um líder quase que por “imposição”, através do compromisso

assumido de receber conhecimento e diploma por parte dos alunos. Junto com os diplomas,

subjaz toda trajetória de tendências vividas e aplicadas. Carrega em si toda coerção social que

experimentou e precisou adaptar-se. Enfim, traz consigo uma formação pessoal que influenciará

em seu jeito de ser líder, tanto em sua família como em seus atos sociais, incluindo a formação de

51

seus alunos. Este modo de ser líder pode não se adequar às necessidades de seus alunos e seu

ensino pode não ser eficaz, inibindo os alunos de desenvolver suas habilidades.

É necessário fazer uma distinção entre educação e ensino. Educação vem de educere,

“tirar para fora”, fazendo lembrar a maiêutica socrática que valoriza aquilo que cada um traz de

melhor em si. Ensino é a imposição. Ensinar é um modo de impor formas e tendências, é pré-

moldar os alunos para aquilo que a sociedade precisa. Uma escola nesses moldes adota uma

pedagogia liberal, que forma-se em base desta mesma sociedade, sustentando a idéia de que sua

função é preparar indivíduos para o desempenho de funções sociais de acordo com as aptidões

individuais. Por isso, os indivíduos precisam aprender a se adaptar aos valores e normas vigentes

na sociedade de classes através do desenvolvimento individual, conquanto embora difunda a idéia

de igualdade de oportunidades, não leva em conta a desigualdade de condições.

A exposição verbal na forma de verdades a serem absorvidas, prepara o aluno através da

apresentação, associação, generalização e aplicação, visando disciplinar a mente e formar hábitos.

A criança é equiparada aos adultos em termos de assimilação, fazendo a coação através da

aprendizagem receptiva e mecânica que visa a respostas semelhantes mesmo com situações

novas. Traz a escola como modeladora do comportamento humano, através de técnicas

especificas para organizar o processo de aquisição de habilidades, atitudes e conhecimentos

específicos, úteis e necessários para que os indivíduos se integrem na máquina do sistema social

global. A escola articula-se diretamente como sistema produtivo visando produzir indivíduos

“competentes” para assumir as funções que a sociedade precisa.

A relação educação e ideologia é bem descrita no texto de Guareschi (2004, p.105):

A quem interessa tal teoria? Interessa a quem quer um homem repetidor , reprodutor do

que lhe é transmitido. Se formos examinar o mundo do trabalho no modo da produção

capitalista, veremos que o tipo de homem necessário ao bom desempenho duma fábrica ou

empresa é um trabalhador que faça as coisas com eficiência e rapidez. Fazer bem e rápido:

eis tudo. Não precisa pensar, não precisa decidir, não precisa planejar. Apenas executar.

Aliás, quanto menos pensar, melhor. É nesse sentido que aos poucos se vai substituindo o

homem robô, pois o homem não passa mesmo dum robô, dum autômato.

É preciso formar uma educação dialogal, espelhada em uma pedagogia pensada por

pessoas como Nietzsche, Montaigne, Freire, Tião Rocha, entre outros. O pensamento freireano

(1996) em “Pedagogia da autonomia” nos diz que pela especificidade humana temos que

reconhecer que a educação é ideologia e que a ideologia tem a ver diretamente com a ocultação

52

da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para penumbrar a realidade, ao mesmo tempo, que

nos torna “míopes”.

Mais sério ainda é a possibilidade que temos de docilmente aceitar o que vemos e

ouvimos. No fundo a ideologia tem um poder de persuasão indiscutível. O discurso ideológico no

ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das

coisas dos acontecimentos. Para se resguardar das artimanhas da ideologia não podemos, nem

devemos, nos fechar aos outros e, nos enclausurar no ciclo das nossas verdades.

2.6 Âmbito econômico

A ideologia no âmbito econômico é a mais difícil de ser percebida. Não que ela seja tão

bem disfarçada pelos aparelhos ideológicos de dominação, mas porque quando falamos de

economia, falamos daquilo que põe o alimento em nossas mesas. Nossa sobrevivência. Falamos,

então, da influência decisiva que nosso instinto exerce sobre o problema. Temos que perceber

também que se, por um lado, na história os aparelhos ideológicos não escondem a dominação que

exercem sobre a economia, por outro, nos distanciam do entendimento do que estamos falando, e

então, ao discutirmos economia parece que estamos falando de uma “ciência” que está muito

além de nosso alcance.

A grande artimanha da ideologia e seus aparelhos reprodutores é não nos deixar perceber

que a organização de nossas casas não está sendo feita por nós, para esses fins. O que nos é dado

sobre economia, são cansativas teorias, todas elas com linguagens técnicas, poucas com alguma

explicação fácil e convincente. Não entendemos que todo o processo econômico do nosso mundo

se dá por modos e relações de produção.

A palavra economia provém do grego oikos (casa) e nomos (costumes, leis), normas da

casa, leis da casa. Entendemos “casa”, não como um pequeno conjunto de quatro paredes, mas

como um complexo de biosfera que abriga o conjunto de seres vivos que se interelacionam.

Atualmente, devido à evolução da sociedade, economia ampliou seus conceitos e passou a

administrar, ou a estudar, posiveis soluções para adequar as necessidades ilimitadas dos seres

humanos e os recursos limitados.

A economia define-se por estudar a produção, o consumo e a distribuição de bens e

serviços. Galbraith (1980, p. 2) diz que

53

[...] entender o funcionamento da Economia é entender a maior parte da nossa vida. A

maioria de nós passa os anos meditando sobre a relação entre o dinheiro que ganhamos e

p dinheiro de que precisamos, ficando nossos pensamentos em suspenso, por assim

dizer, entre um e outro. A economia ocupa-se com o que ganhamos e com o que

podemos conseguir com isso. Portanto, uma compreensão da Economia é uma

compreensão da principal preocupação da vida.

Visto sobre este aspecto a economia é de grande apreço e utilidade para a sociedade. A

grande pergunta que se faz é por que ela não consegue solucionar o problema da oferta e da

procura, ou não consegue suprir as necessidades da população. Várias são as tentativas e, muitas

delas, parecem viáveis. Trazemos como exemplo, o aumento da produção de alimentos no que se

refere ao combate da fome. Eis onde a ideologia se adentra. Tanto as necessidades ilimitadas

quanto a má distribuição de bens, ou mau aproveitamento dos mesmos (verdadeiras causas da

fome no mundo), são problemas ideológicos que geram discórdias até mesmo entre os

economistas, como explica Galbrainth (1980, p.3):

Há um interesse pessoal, algo que todos reconhecemos e geralmente somos demasiados

gentis para mencionar. Um economista que trabalha num banco de Nova York

dificilmente tira um conclusão que fira os interesses do banco, tais como são

compreendidos por seus patrões. A sua aprovação publica é o que obtém a aprovação

deles [...] Muitos economistas avaliam suas verdades pelo aplauso que elas suscitam;

adaptam suas atitudes talvez inconscientemente, ao que suas platéias consideram

respeitável.

O problema que se faz presente aqui é que as teorias individuais condicionadas

desenvolvem teorias de modos de produção, que são meios essenciais para conseguir o essencial

para sobreviver e caracterizar uma sociedade. Estas interpretações que se desenvolvem ao longo

da história mudam as características dos modos de vida da sociedade, e isso fica evidente em uma

análise da construção histórica das formas de administrar os recursos com a vivencia social e

familiar. Guareschi (2004, p.44) afirma:

Se você examinar agora a história de todas as sociedades, vai perceber que isso é assim

mesmo: a maneira como se conseguem as coisas para sobreviver dá a característica

básica a uma formação social. Até o tipo de família sofre esta influência. No Brasil da

“Casa Grande de Senzala”, onde os escravos conseguiam tudo para sobreviver, podiam

existir tipos de famílias patriarcais, isto é, grupo de cinco, dez famílias numa casa só.

Havia um dono só, o filho mais velho, e os outros iam se colocando ao redor da casa

grande. Hoje em dia as coisas já são um pouco diferentes. A maneira como se

conseguem as coisas para sobreviver mudou. Vivemos numa sociedade industrializada,

onde cada pessoa que trabalha recebe seus salário individual. As famílias foram, então,

54

se reduzindo, se tornando mínimas, celulares: homem mulher e o menor número de

filhos possível.

Demonstramos, portanto, que “toda a sociedade, formação social, modo de produção,

como também qualquer ação, revela, quando analisada com cuidado e sutileza, uma concepção de

ser humano” (GUARESCHI, 2004, p.65). Essas concepções determinam as relações sociais e a

relação social dominante é o que produz o mundo em classes. O que vai determinar essas relações

não é somente a renda, a educação ou a cultura, mas a posição que cada um ocupa na produção.

Essas posições são basicamente duas: o capital e o trabalho.

Os modos de produção que geram a alienação do homem, retiram do homem sua

capacidade de intervenção e de análise social. Eis um poder ideológico. O rumo econômico

quando nas mãos de poucos é um forte instrumento de dominação, pois, aquele que possui os

modos de produção pode construir a coação social daqueles que o servem. Aquele que somente

possui o trabalho a oferecer se vê dominado e desarticulado, mas alienado prefere a subjugação

do que a organização para a mudança. Quando o instinto de sobrevivência fala mais alto do que a

consciência critica, possibilidade de análises mais aprofundadas, a fragmentação se torna marco

referencial dominador através da economia, e esta dominação se arrasta para outros âmbitos

sociais.

[...] todo o empresário fabril descobre que quanto mais subdividir as tarefas de seus

operários e quanto mais mãos puder empregar em atividades separadas, tanto mais suas

despesas diminuem e seus lucros aumentam [...]. as nações de homens de negócios

parecem compor-se de pessoas que , excetuado seu negócio particular, são ignorantes de

todas as questões humanas. [...] Muitos ofícios mecânicos, na verdade, não exigem

capacidade, realizam-se melhor sob uma total supressão de sentimento e razão, e a

ignorância é a mãe da industria, assim como da superstição. A reflexão e a imaginação

são sujeitas ao erro; mas o hábito de mover a mão, ou o pé, é independente de ambas.

Por isso, as fábricas prosperam mais quando a mente é menos consultada, e quando o

trabalho de oficina pode , sem nenhum grande esforça do imaginação, ser considerada

como uma máquina, cujos componentes são homens. (MÉSZÁROS: 2004, p.120)

Contribui para a dependência (boa para o governo, pois, através do assistencialismo

garante uma manutenção do poder através da “bondade”), a defasagem educacional. Aliás, não

somente pra o governo como também para os próprios empresários.

Um dos primeiros requisitos para que o homem seja adequado para lidar com lingotes de

ferro como ocupação regula é que ele seja tão estúpido e calmo que mais se assemelhe a

um bovino, em sua constituição mental, do que a qualquer outro tipo. O homem

55

mentalmente alerta e inteligente é por isso mesmo inteiramente inadequado para o que

seria, em sua posição, a opressiva monotonia de um trabalho dessa categoria. Por

conseguinte, o trabalhador mais adequado para lidar com lingotes de ferro é incapaz de

compreender a ciência real da realização desse tipo de trabalho. É tão estúpido que a

palavra “porcentagem” não tem significado para ele, e, portanto, deve ser treinado pó

um homem mais inteligente do que ele no hábito de trabalhar de acordo com as leis

desta ciência para poder ser bem-sucedido. (MÉSZÁROS, 2004, p.119)

A grande questão ideológica esconde-se por trás da idéia positivista de oportunidade a

todos. O analfabetismo econômico que não deixa distinguir a relação de domínio através dos

modos de produção, dá margens para que se conviva com esta expectativa. Enquanto não

obtivermos uma educação que ensine as distinções necessárias sobre a economia, teremos no

âmbito econômico um dos principais modos de dividir a sociedade e manter o status quo.

56

3 ALTERNATIVAS À IDEOLOGIA

Um grande desafio no que se refere a analisar as condições da sociedade é construir

alternativas. Não são raras as análises sobre os mais diversos problemas sociais, mas poucas

dessas análises chegam a uma maturidade suficiente para esboçar, ou ao menos tentar esboçar

uma alternativa, até porque as vezes se torna muito mais fácil apenas fazer a critica. Apresentar

alternativas é estar a beira de receber criticas e de ser questionado, porém, não apresentar

alternativas, por mais que possam ser contestadas, é negar a possibilidade de potência do mundo,

negar o próprio mundo como potência de possibilidades capazes de gerar alternativas para os

problemas criados.

È claro que pensar em um mundo de possibilidades e relações, instiga a percepção, porque

a participação no mundo não se faz somente por habitá-lo, nem por “ter parte nele”. Participar do

mundo quer dizer tomar e assumir a parte no cuidado do mundo. O cuidado do mundo começa

por nos percebermos como seres condicionados e subjugados em nossa sociedade, privados de

nosso espaço e de nossa liberdade; começa pelo “meu quintal” e, também, pelo entendimento que

o “meu quintal” é a extensão de algum outro “quintal”. Ou seja, nossa vida é a extensão de outra

vida, a complementação de outra vida. Por isso, pensar em mundo de possibilidades e relações

obriga uma percepção de nossa relevância e da significação do “outro”, extensão de nosso ser

como somos extensão de outros seres, independente de credos ou classes sociais.

Não há como deixar de perceber a realidade social: a humilhação e o descaso com o ser

humano. Estamos deixando de perceber o ser humano, de nos ver como seres humanos, como

gente. Estamos nos percebendo como “super-homens”, os quais não necessitam de mais nada,

nem de mais ninguém. Tudo está parecendo mero objeto para uso em benefício próprio.

Esquecemos de nossas relações Freire (1996) diz que “...onde há vida, há inacabamento...”. Onde

há vida, precisa ter relação, haver complementação. Porém, ao contrário do que podemos pensar,

essa idéia de necessidade, de relação, não tira o mérito do homem, pelo contrário, aumenta a

importância e nos faz ir além. Freire, na mesma obra, ainda nos diz: “Gosto de ser gente porque,

inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas, consciente do meu inacabamento sei que posso

57

ir mais além dele”. Gostar de ser gente, de ser humano, inacabado, não é algo terrível, mas

maravilhoso. Perceber que o mundo é um círculo de relações não diminui nossa importância;

demonstra que nossa presença de mundo é insubstituível. Precisamos atualizar a idéia materialista

de que ninguém é insubstituível. Precisamos resgatar o sentimento e o sentido da vida,

desmistificado a supervalorização do material.

A deteriorização dos valores se torna evidente quando medimos a importância da vida

humana através da comparação de sua “produtividade”, principalmente quando comparamos esta

“produtividade” com a força de trabalho de um emaranhado de parafusos e pedaços de metal,

vazios de qualquer sentimento e de qualquer relação. A partir do momento que nossa importância

é medida somente pela nossa “produção”, e não questionamos para que e/ou para quem se produz

e quais as conseqüências disso, corremos o serio risco do esquecimento, de nos perdermos no

vazio do mundo. “Maquinas de produção” podem ser facilmente substituídas, mas o ser humano

com seu afeto, único e diferente em cada ser, com seu cuidado para com o mundo e para com o

outro, para o qual produz - mesmo sem saber se poderá consumir - é insubstituível.

É mister a necessidade de transformar nossa consciência vivida em consciência

compreendida. Precisamos transcender nossa compreensão vital e instintiva de mundo e, como

diz Freire (1996), nos libertar do “suporte”. O suporte é a nostalgia à qual nos acostumamos,

espécie de vida “maquinal”, para ser mais compreensível. Precisamos, portanto, dar um passo

para além do mundo e entender o mundo como uma gigantesca bola, onde tudo é conjunto. Como

astronautas, vendo o mundo de cima, temos que nos perceber como seres-no-mundo e questionar

nossas atitudes para com este mundo. Resgatar o ser humano questionador que procura entender

o mundo e, principalmente, a si próprio.

Para Paiva (2002), compreender e significar não seria uma dificuldade. O homem, segundo

ele, “é peregrino em busca do ser” e “assaltado permanentemente pela transcendência, decide-se

desde muito cedo, por romper as pobres referências do cotidiano, para prosseguir o caminho da

verdade”. Portanto, este homem precisa ser resgatado. Pois, dessa forma, pode perceber-se como

ser de possibilidades e responsabilidades e conseguirá chegar até a verdade.

Resgatar o sentido próprio do ser humano, da dignidade humana, é resgatar o cuidado da

vida, nos diz Boff (1999, p. 84). “Não busquemos o caminho da cura fora do ser humano. O

“ethos” está no próprio ser humano (...) ele precisa voltar-se sobre si mesmo e redescobrir sua

essência...”. Em outras palavras, resgatar o ser humano é “parir” de dentro dele mesmo suas

58

verdades e seus sentidos. Tão importante quanto compreender o mundo exterior, é compreender o

mundo interior, pois em um mundo de relações, de possibilidades, necessário se faz a percepção

da importância de nossa participação: “o cuidado faz surgir o ser humano complexo, sensível,

solidário, cordial e conectado com tudo e com todos no universo”, nos diz.

Cuidar daquilo que o completa, é o digno despertar do homem. Surge, portanto, a

importância do “despertar”, a importância do “conhece-te a ti mesmo”, a importância da

compreensão de que as possibilidades só se concretizam através das relações e essas relações só

existirão se tivermos a responsabilidade de cuidar da vida, mas da vida de tudo e de todos.

Do mesmo modo que trazemos a capacidade de construir, trazemos a capacidade de

destruir. Precisamos urgentemente despertar para o ciclo de relações errôneas e pensar em

transformar nosso modo de ser e de viver. Está na hora de nos compreendermos como o outro de

alguém, como um ser de responsabilidades.

Nas palavras do filósofo Sêneca (2006)21

, acumulamos nossa vida dissipando-a, pois

estamos tanto na expectativa de um amanhã melhor que esquecemos de viver hoje, e de nada nos

vale construir algo que teremos que colocar mais esforço ainda para manter. Não temos uma vida

tão curta, diz ele, mas a desperdiçamos tanto, que ela parece, ao seu final, curta demais.

Participar do mundo não é tão fácil como parece, como já mencionado, pois participar não

quer dizer simplesmente fazer parte, ou ter parte, mas tomar parte e fazer acontecer a partir de

minha própria experiência. Fica fácil estar no mundo quando todos (desde o mais conceituado

doutor ao mais simples cidadão), têm sua voz e sua vez dentro da sociedade e possam contribuir

para a melhoria do mundo. Precisamos romper os “pré-conceitos”, analisar os pensamentos e as

opiniões que nos conduzem, desmascarar as ideologias reinantes e criar novos conceitos, evoluir,

não em prol dos interesses próprios, mas em prol do todo, do conjunto.

A percepção é o primeiro passo. Como no mito da caverna22

, onde dolorosa é a percepção

da realidade, é importante o retorno para dentro da caverna. Precisamos entender a dolorosa

situação do ser humano, e dentro de nós mesmos, dentro do próprio “eu”, de nossa própria

“caverna” interior, concertar os equívocos, remediar. Não basta perceber e aceitar a realidade. A

omissão do questionamento nos leva a aceitação. Temos o dever de refletir, entendendo e

compreendendo nossa realidade para transformá-la e superar nossas ideologias.

21

Filósfofo, dramaturgo, político e escritor , Lúcio Anneo Sêneca (4 a.C?-65 d.C). Foi um dos expoentes intelectuais

de Roma no inicio da Era Cristã. 22

Referência ao mito da caverna de descrita pelo filósofo Platão em sua obra A Republica.

59

3.1 É preciso conhecer-se

Um dos grandes desafios que se ergue ao analisarmos a questão ideológica é que

chegamos a um grande impasse no decorrer desta análise: Afinal, se estamos impregnados pela

ideologia, e ela está em toda a parte, há como fugir dela? Há alternativas à ideologia?

A resposta é sim, mas o caminho é lento e tortuoso. Podemos fugir dela com uma

revolução social que quebre as amarras das ideologias dominantes através de meios como os

movimentos sociais, mas quem sabe desta maneira podemos apenas substituir uma ideologia por

outra, ou, embora seja mais complicado, podemos encontrar dentro do próprio homem uma

resposta quer vise à libertação de seus pensamentos errôneos e construa uma vida plena.

O importante seria atuar das duas maneiras. A própria ideologia, como estudo das idéias

(utilizada em seu sentido original), pode servir de amparo para uma contra-ideologia. Não pode

ocorrer, no que se trata de pensar alternativa, é deixar com que ela alternativa se torne uma nova

ideologia. Não é a inversão ou alternância de ideologias que procuramos, mas sim alternativas

para libertarmo-nos dela.

Por isso, para que possamos formar alternativas viáveis e de acordo, precisamos entender

que a construção ideológica se faz de fora para dentro no ser humano. Não há fato social ou

ideologia que exista sem se presentificar pelas condições e aplicabilidades do ser humano. É ele

que compõe todo e qualquer sistema ou estrutura social, suporte da construção e da sobrevivência

humana. Portanto, o caminho da compreensão e saída da ideologia deve ser inversa. Não é de

fora para dentro, mas de dentro para fora, passando pela compreensão própria e pela

compreensão da realidade de modo que possa impedir a alienação continua e dar espaços para

uma utopia construtora.

Em sua formação a ideologia avança do sentido social ao sentido psicológico. Antes de

formar sua consciência, o homem é influenciado por estruturas externas, o que o faz se

desconhecer em sua natureza, como menciona Vidor (1996, p.50) “...primeiro o ser humano se

faz segundo a cultura que aprende, identificando-se ao primeiro modelo que é proposto”. É assim,

por exemplo, que a mãe, primeiro laço forte do ser humano, pode repassar ao filho aquilo que

assimilou, estruturando a garantia do social já dado. É o conhece-te a ti mesmo socrático que

ganha espaço nesta compreensão necessária, pois se a sociedade convive com a desordem é

60

porque o ser humano, não compreendendo a própria natureza, compromete sua vida e

conseqüentemente a vida social.

A solução da desordem externa quer esta seja social ou ambiental, passa por uma revisão

da consciência humana, porque, se o homem desconhece a si mesmo e desconhece as

leis impressas em seu coração e por fim se rende a convicção de que é um mistério

inconsciente pra si mesmo, não há como reencontrar o ponto de apoio onde assentar a

alavanca que irá remover os destroços que impedem o nascimento do homem novo[...]

(VIDOR, 1996, p.52)

É importante perceber que a alienação é causa da ideologia. A alienação, retirando o

homem de si próprio e de suas potencialidades, abre espaço para a distorção ideológica que,

alienando o homem epistemologicamente, se amplia em diversas áreas (visto que as outras áreas

são extensões da alienação epistemológica - tudo passa pelo epistemológico). Em outras palavras,

quando somos levados a uma alienação epistemológica, vivemos condicionados a construções

alheias. Do mesmo modo que, como filhos, necessitamos das nossas mães, pela alienação

continuamos necessitando de outras “mães”. “A tendência é apoiar-se em outrem: no afeto alheio,

na opinião alheia, na sugestão ou autoridades alheias, na lei ou no governo, etc. São formas que

refazem a díade mãe-filho”. (VIDOR, 1996, p.63).

Sobre essa forma de dependência, a evolução deixa de ser construída e as ideologias se

mantêm, visto que a razão depois de alienada, espalha a desordem para todas as áreas de atuação,

como menciona Vidor (1996, p.69) “...nada acontece no corpo que antes não tenha acontecido na

mente”. A alienação pode ser comparada à atuação de um “monitor de deflexão” (conceito da

psicologia23

) que antecipa e interfere em nossas percepções deformando-as. Essa deformação se

identifica no inconsciente humano e interfere no mundo real impedindo o homem de conhecê-lo

realmente.

O entendimento da gênese da alienação através do estudo de sua atuação na psiqué

humana leva-nos a entender que, enquanto não nos descobrirmos em nossas próprias

necessidades e limitações, dificilmente poderemos nos perceber ideologicamente influenciados.

Se não compreendermos o que é próprio de nós mesmos, vamos continuar desvirtuados e

escravos da alienação. Alienação essa que nos impedirá de construir alternativas realmente

viáveis para superação da ideologia como distorção de idéias que impedem um convívio próprio

23

“O Monitor é uma estrutura não vital, mas que simbiotiza com a vida e entra em ação sincrônica à sinergia

vital[...]. O monitor interfere se antecipando e defletindo o reflexo egoceptivo, ele fixa o programa e o torna

prioritário.” (VIDOR:1996, p.74)

61

e devido a todos. A primeira luta para a superação da ideologia deve ser dentro de nós mesmos,

em nossas reformas internas, que nos levam a perceber erros pessoais e os erros da sociedade:

Para reencontrar o critério científico é indispensável primeiro resgatar a percepção

integral das informações organísmicas, recompor as antenas de nosso radar organísmico

[...] corrigir os erros de consciência, ampliar a própria percepção consciente e reintegrar

na compreensão todo o conjunto de informações dadas pelo organismo, porque este

caminho reconduz ao reencontro do próprio projeto original humano, a contatar a

própria identidade em sua natureza específica. (VIDOR: 1996, p.77).

3.2 A educação como saída

A formação docente, ao lado da reflexão sobre a prática educativo-progressista em favor

da autonomia do ser dos educandos demonstra que formar é muito mais do que puramente treinar

o educando no desempenho de destrezas. É colocar o ser humano como mais que um ser no

mundo, como uma presença de mundo. A reflexão crítica sobre esta prática se torna uma

exigência da relação teoria/prática sem a qual a teoria pode ir virando simples transmissão de

conhecimento e a prática, ativismo.

A educação deve resgatar a compreensão do homem e da mulher como seres históricos,

onde “quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser

formado” (FREIRE,1996, p.23). Neste sentido é preciso, na arte de ensinar, uma rigorosidade

metódica. O educador não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade

crítica do educando. Deve fazer parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos

como também ensinar a pensar certo, para que ao ser produzido, o conhecimento novo, supere o

já existente e fique aberto para ser ultrapassado por outro amanhã.

Nesse contexto a educação deve entrar com uma reflexão crítica sobre a prática, trazendo

um “pensar dialético” entre o pensar e o fazer: “...é pensando a prática de hoje ou de ontem que

se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário a reflexão crítica, tem

de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática” (FREIRE,1996, p.39). Quanto

mais o educando conseguir se perceber dentro de uma realidade dominada e pré-direcionada,

mais fácil assimila a capacidade de mudança, assim, uma das tarefas mais importantes da

educação deve ser proporcionar a experiência profunda de assumir-se como sujeito capaz de

reconhecer-se como objeto, ou ser dominado e condicionado.

62

Freire (1996, p.76) diz: “O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa,

inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono. Meu papel no

mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito

de ocorrências”. Se quisermos pensar em uma transformação do mundo devemos pensar em uma

forma de denunciar a situação desumanizante e refletir sobre sua superação. É a partir do saber

fundamental de que mudar é difícil, mas não é impossível, que devemos pensar a ação

pedagógica. Os educadores devem também ter a certeza de que é possível mudar e devem

desafiar, considerando os saberes construídos pelas experiências e expandindo para uma

consciência maior que fomente os grupos populares.

“O professor não pode ser neutro, sua prática exige definição. Uma tomada de posição.

Decisão. Ruptura” (FREIRE,1996, p.102). A educação não pode se reduzir ao ensino de

conteúdos. Se a educação é a chave das transformações sociais pode ser também reprodutora de

ideologia dominante.

Impõe-se ao professor conseguir provocar o educando no sentido que prepare ou refine sua

curiosidade, com vistas a que produza sua própria inteligência a partir daquilo que tem. É

necessário escutar o educando em sua incompetência provisória e aprender a falar com ele,

respeitar sua “leitura de mundo” e, deste ponto em diante, pode fazer com que o educando vá

assumindo o papel de sujeito na produção (e não apenas o de recebedor) de sua inteligência de

mundo, como uma arvore que absorve os nutrientes e produz seus frutos e sementes, assim

também o educando deve desenvolver a capacidade de absorver o conhecimento produzido e as

experiências vividas para produzir seu pensamento crítico e libertador que possa contribuir

também com a libertação de outras mentes.

A questão é construir uma formação ao lado de uma reflexão sobre a prática, em favor da

autonomia do ser dos educandos, percebendo que a educação também pode ser ideologia e por

isso, demonstrar que formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho

de destrezas, é também uma maneira de resgatar uma ética universal do ser humano, que coloque

o ser humano como mais que um ser no mundo, mais que uma simples presença no mundo, mas

como sujeito da história, único em suas características e indispensável em sua contribuição pra

com o mundo.

63

3.3 O papel da utopia

“Quando o sol bater na janela do seu quarto, lembra e vê, que o caminho é um só. Até

bem pouco tempo atrás poderíamos mudar o mundo... quem roubou nossa coragem?” Assim diz a

letra da musica “Quando o sol bater na janela do teu quarto”, da banda Legião Urbana, cujo líder

era o cantor Renato Russo (1960-1996).

Poderíamos mudar o mundo. Por que não o fazemos? Percebemos os problemas, mas não

temos a coragem necessária para a mudança. A percepção dos problemas deve ser somente o

primeiro passo, a primeira peça dialética capaz de construir um futuro melhor. Reconhecer-se em

seu aspecto errôneo e receber uma educação libertadora deve ser o pontapé inicial para a

construção de uma utopia que traga a esperança de transformação. Não a esperança ascética

critica por Nietzsche, aquela que tira a expectativa do ser humano e que leva ao comodismo, mas

a esperança libertadora que não deixe o ser humano se cansar de sua busca em prol de um mundo

melhor para se viver. Esta deve ser incessante.

A utopia é o impulso necessário para a dialética. O u-topos (negação da ordem vigente),

constrói uma análise a partir da realidade projetando o novo. Melhor do que na atualidade,

porém, não fechando-se em si mesmo (se assim fosse se tornaria ideologia), mas evoluindo a

cada passo e ajudando a desmascarar a ideologia dominante.

Neste aspecto reside a mais essencial diferença entre estes dois tipos de transcendência à

realidade: enquanto o declínio da ideologia representa uma crise apenas para certos

extratos, e a objetividade que nasce do desmascaramento das ideologias sempre assume

a forma de um auto-esclarecimento para a sociedade como um todo, a completa

desaparição do elemento utópico do pensamento e da ação dos humanos significariam

que a natureza e o desenvolvimento humanos iriam assumir um caráter totalmente novo.

A desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático em que o próprio homem

se transforma em coisa. Iríamos, então, nos defrontar com o maior paradoxo imaginável,

ou seja, o do homem que, tendo alcançado o mais alto grau de domínio racional da

existência, se vê deixado sem nenhum ideal, tornando-se um mero produto de impulsos.

Assim ao término de um logo e tortuoso, mas heróico desenvolvimento, justamente no

mais elevado estágio de consciência, quando a história vai deixando de ser um destino

cego, e se tornando cada vez mais uma criação do próprio homem, o homem perderia,

com o abandono das utopias, a vontade de plasmar a história e, com ela, a capacidade de

compreendê-la. (MANNHEIM, 1968, p.285).

O principal papel que a utopia pode fazer é fomentar expectativas de superação dentro dos

movimentos sociais ou das individualidades capacitando-as a ação. É claro que precisamos ter em

mente que a utopia, para acontecer, precisa ser pensada e projetada pelos indivíduos. Não pode

64

fazer sua parte se os indivíduos não se permitirem espaços de construção, de análise e de auto-

conhecimento. A utopia pode ser um complemento dentro de um processo de construção ou

reconstrução do ser humano que almeja um futuro melhor. Assim como Thomas Morus (1478-

1535) pensou sua “utopia”, uma sociedade menos injusta, como que em um grito de protesto,

também os indivíduos devem pensar a utopia como a “verdade do amanhã”, ou seja, algo que

estará ao nosso alcance.

3.4 A importância dos movimentos sociais

Após analisarmos a ideologia e seus meios de ação e pensarmos algumas perspectivas de

mudança, podemos pensar que a solução possa estar logo em nossa frente. Porém, sob um olhar

mais crítico, percebemos que até o momento não temos nenhuma ação prática que possa servir de

alternativa a situação dominante. A educação em primeira análise, é possibilidade de

entendimento ontopsicológico que pode suscitar uma utopia; a própria utopia pode fomentar uma

ação. Qual seria essa ação? Existiria uma alternativa à ideologia?

Dirá Durkheim (2006), que para suscitar alternativas à realidade ideológica precisaremos

recorrer a algumas regras principais, para não cair em erros antigos, já que estamos sempre

propensos a menosprezar seus sinais e características.

A primeira dessas regras é que devemos nos afastar das pré-noções. Assim como fez

Descartes, devemos duvidar das idéias anteriores. É preciso se libertar de fases e evidências as

quais estamos habituados quase que de forma tirânica. A segunda regra é estar desde o primeiro

passo ligado à realidade e estudar grupos de fenômenos previamente definidos, com

características semelhantes que lhes sejam comuns e incluir todos que correspondam a essas

características na mesma investigação, incluindo “coisas” que achamos já estarem definidas,

como: família, estado, propriedade, etc... Embora estejamos acostumados a ouvir essas

definições não quer dizer que estejam devidamente analisadas. Não podemos correr o risco de

apresentar noções comuns, pré-determinados pelas influências. A terceira regra compreende que

qualquer exploração de fatos sociais deve estar isolada de manifestações individuais

influenciadas por hábitos coletivos com formas definidas.

Para Chauí (2004, p. 118), “Quem e o que pode desmantelar a ideologia? Somente uma

prática política nascida dos explorados e dominados e dirigida por eles próprios”. É a atitude

65

revolucionária que surge como uma alternativa de transformação. Uma maneira dessas

alternativas serem postas em prática são os movimentos sociais, formas de organização coletivas

capazes de concretizar as utopias individuais. Para Houtart (2007, p.424), os movimentos sociais

São os frutos de contradições que se globalizaram [...], são mais que uma simples

revolta [...], mais que um grupo de interesses [...], mais que uma iniciativa com

autonomia do estado [...]. os movimentos sociais nascem da percepção de objetivos com

metas de ação, mas para existirem no tempo precisam de um processo de

institucionalização. Criam-se papéis indispensáveis para a sua reprodução social. Assim

nasce uma permanente dialética.

Porém, para que os movimentos sociais se realizem de forma coerente devem ter

capacidade critica interna e saber captar os desafios gerais ou específicos em cada movimento

(estar cientes que são vários movimentos e cada um representará uma utopia), além de

estabelecer um vínculo entre eles. É preciso compreender que o andamento dos movimentos

sociais exige uma consciência coletiva sustentável, com as análises apropriadas voltadas a

realidade, que possam estabelecer estratégias para a superação do almejado sempre com uma

ética benéfica a todos e que compartilham o espaço do projeto, questão indispensável para a

reconstrução coletiva e individual.

A ética (ethos) deve ter como critério de verdade a própria prática social. É ai que vai

ficar comprovado se a utopia está sendo usada, ou não, de forma realmente cabível e se é

realmente reflexo utópico ou se é mais um reflexo ideológico. Todo movimento social que visa à

renovação, a superação das influências ideológicas, deve entender que a teoria se faz luz na

prática e está unida a ela, aliás, não pode conviver sem aquilo que serve de parâmetro para sua

construção: a prática que transforma a realidade. Diz Tse-Tung (2001, p.23) que “o conhecimento

desligado da prática é inconcebível”. E complementa, “a questão mais importante não é

compreender as leis do mundo objetivo e poder, por isso, explicá-lo, mas sim utilizar o

conhecimento dessas leis para transformar ativamente o mundo”. Até porque é pela prática que os

movimentos sociais devem “descobrir as verdades, e igualmente pela prática, confirmá-las e

desenvolvê-las” (TSÉ-TUNG, 2001, p.36). Em um processo infinito como prática do pensamento

utópico, sempre aprofundando através da dialética, sem cessar.

Para que isso aconteça é necessário que os movimentos sociais preparem-se com

instrumentos viáveis. Por isso a importância das estratégias que ajudarão a verificar se o objetivo

da transformação vislumbrada está sendo alcançado. Tse-Tung (2001, p. 29) afirma que “para

66

resolver completamente esta questão, é necessário a partir do conhecimento racional, regressar à

prática social, aplicar a teoria na prática e verificar se ela pode conduzir ao objetivo fixado”.

Aprofundando a necessidade da ação como decorrência natural dos movimentos de

libertação, afirma Bogo24

(2005, p.6): “...não basta dizer que sabemos, é preciso saber se o que

sabemos é suficiente para nos levar onde queremos chegar”. Desta forma, métodos e objetivos

devem estar alinhados, para que possam adaptar-se de forma consciente ao movimento que as

coisas proporcionam. Aqui se faz importante ressaltar o peso da educação de qualidade que possa

proporcionar elementos de autocompreensão. É fundamental compreender no que o povo acredita

e porque ele acredita.

Na realidade há que se reconhecer a dificuldade de construir um movimento social

qualificado. É preciso pensar o coletivo, a partir das individualidades. É preciso chegar a um

mesmo ponto de vista, sem perder a visão do todo. É preciso saber que o movimento social é

feito por homens e, portanto, suscetível de erros.

Um verdadeiro movimento social deve perceber suas condições históricas e saber medir

suas forças de sustentação, porque “...cada ato é resultado de um movimento complexo que já se

iniciou há muito tempo e tende a continuar a reproduzir-se em diferentes formas”. (BOGO, 2005.

p.25).

Entender a sociedade e levá-la a perfeição deve ser um objetivo dos movimentos sociais.

Saber de onde viemos e para onde vamos e se estamos realmente preparados para este desafio de

acabar com tudo aquilo que nos delimita e condiciona é o nosso desafio. Mas, como Freire (2001,

p.35) diz é “...impossível viver sem sonhos”. E eles podem ser viabilizados pelo esforço coletivo

através de um processo “maiêutico” que conduz o ser humano, desde de sua reeducação, até a

ação da transformação social.

Nesse sentido, pode-se dizer com Staccone (1993, p. 115), que

[...] a construção de uma nova liberdade, sem privilégios e sem desigualdades, pode nos

mover para destruir a velha liberdade. Práxis esta sem subterfúgios e sem aventuras, pois

a construção da nova liberdade processa-se dentro das velhas estruturas, que serão

derrubadas na medida em que a experiência prática do novo for conquistando as mentes

e as vontades, tornando-se uma nova cultura, que fundamenta uma hegemonia e uma

nova organização da sociedade.

24

As informações e citações do pensamento de Ademar Bogo foram retiradas da obra “Método de trabalho

e organização popular” ( São Paulo: Editora Peres, 2005), organizado pelo MST.

67

É difícil dizer se estaremos em condições de acabar com as ideologias, e se podemos viver

sem elas, mas que pelo menos possamos trabalhar para devolver a ideologia o seu sentido

original, de estudo das idéias, de comportamentos de conjuntos, para que ela sirva não para privar

o ser humano de sua liberdade e de sua vida, mas para enaltecê-la e guiá-la para o bem viver.

68

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que é ideologia? Ao final deste trabalho podemos perceber quão complexa é esta

questão. Mais que uma simples palavra, “ideologia”, pode atingir vários sentidos, suscitar várias

interpretações e dificultar um entendimento correto e definitivo de definição. Pode ser o estudo

das idéias, conjunto de idéias, valores, maneira de sentir e pensar de pessoas e grupos ou um

conjunto de idéias erradas, sobre fatos e a realidade, pode ser como fatos sociais, como em

Durkheim, ou causa da alienação, como em Marx. Não em vão alguns autores, como Guareschi

(1992) dizem que o conceito “ideologia” é um dos conceitos mais “complexos, equívocos e

escorregadios” que se pode ter.

Porém, independente de definição sabemos que ela existiu no decorrer da história,

influenciando pensamentos e pensadores, governos, religiões, constituindo-se como auxiliar da

manutenção do poder como meio alienante, ou como forma de expressão para se chegar ao poder,

como o fez Constantino.

O certo é que a ideologia cresce em importância no mundo contemporâneo devido a

grande aceleração que se destaca. Guareschi (1992, p.171) vai dizer:

...há inúmeros enfoques teóricos que dão diferentes significações e funções ao conceito

de ideologia, sem falar das fortes conotações, políticas e valorativas, que o conceito

carrega em si. Questões sociológicas, psicossociais, epistemológicas, até mesmo

filosóficas, bastante complexas, estão ligadas a realidade da ideologia. Por isso é

relativamente difícil querer tratar esse assunto de uma maneira clara e inteligível.

O que marca a ideologia na atualidade é seu predomínio e instauração no seio da

sociedade. Estamos quase incapacitados (digo quase, pois do mesmo modo que ela vem pode ser

destituída) de nos perceber, ideologicamente influenciados. Naturalização, universalização,

palavras comuns e expressões bonitas de se pronunciar escondem uma concepção de dominação

universal que ainda consegue passar uma idéia de bem estar através da “tribo universal”.

Estamos alienados, e assim, coagidos a aceitar uma sociedade pré-moldada sob a idéia de

civilização, de progresso e de evolução. A idéia de liberdade, igualdade e fraternidade, ainda não

69

chegou para muitos povos que sofrem diariamente os horrores das guerras civis e militares,

enquanto, paises (como EUA) e suas indústrias bélicas lucram milhões na produção e utilização

de armas, tanto de guerra terrestre como de destruição em massa, em nome de uma guerra “anti-

terror”, que tráz em si uma luta política de dominação e interesses econômicos.

O mundo está longe de ser “igual”. Quando um só país possui grande parte da riqueza

mundial e uma só grande empresa é capaz de deter riquezas capazes de sustentar um pais em

condições de miséria, o mundo está longe de ser livre. Ocorrência perceptível na

contemporaneidade, onde todos estão em busca de algo que, talvez, ninguém saiba o que é; onde

até mesmo a família tem uma visão capitalista de lucro, de construção pessoal.

A banalização de tudo o que é humano e a super-valorização do artificial, seja alimento,

roupa, meios de produção, estética ou reprodução, e a falta de reação demonstram que nosso

pensamento não anda muito de acordo com nosso próprios instintos de sobrevivência. A má

utilização e aproveitamento de tudo o que é natural e também daquilo que é artificial, demonstra

que nossa idéia não está realmente de acordo com aquilo que realmente precisamos.

A ideologia está “estampada”, em sentido real da palavra “estampa”, nas etiquetas, nas

vitrines, em nossas roupas e calçados, em nossos automóveis e até mesmo em nossos animais.

Coisas banais e sem necessidade ganham a maior importância, enquanto o homem, aquele que

tudo produz, e que a tudo deveria ter acesso, virou seu próprio “escravo”, privado de sua própria

produção, de sua própria capacidade de decidir, de partilhar, de participar.

Vivenciados e defendidos, bem como difundidos, tanto pelos meios de comunicação,

tanto por meios que deveriam servir de parâmetros de alerta como a educação – hoje processo de

formação de instrumentos de mão-de-obra barata e qualificada, condicionada e dominada – os

meios ideológicos dominantes servem ao status quo, como meio escudo para sua manutenção.

Talvez o que falta é um sentido etimológico de ideologia, ou seja, falta uma análise de todas as

idéias e ideais.

Porém, embora vejamos todo esse processo se desenvolver ao nosso redor não podemos

perceber a esperança, nem a coragem de sonhar. Precisamos sim, reconhecer nossas alienações,

despertar nossas utopias, e desenvolver uma consciência crítica capaz de discutir o valor dos

valores”. Discutir o valor dos valores significa estar sempre à procura da essência dos problemas,

do inicio. Significa o combate ao mal em seu principio, em suas causas, pois como diz Staccone

(1993. p. 115),

70

[...] a construção de uma nova liberdade, sem privilégios e sem desigualdades, pode nos

mover para destruir a velha liberdade. Práxis esta sem subterfúgios e sem aventuras, pois

a construção da nova liberdade processa-se dentro das velhas estruturas, que serão

derrubadas na medida em que a experiência prática do novo for conquistando as mentes

e as vontades, tornando-se uma nova cultura, que fundamenta uma hegemonia e uma

nova organização da sociedade.

Discutamos então, não só os valores, mas as nossas capacidades e as nossas atitudes, a fim

de acordar em nós o senso crítico necessário. Discutamos o nosso próprio valor a fim de

deixarmos de ser simplesmente “fantoches” sociais, a fim de deixarmos de preferir o nada

simplesmente por não preferirmos nada. Temos que preferir. Preferir a vida. Preferir a construção

da história. Temos que preferir ser e fazer a historia.

“ De nada valem as idéias sem homens para pô-las em prática”. (Marx)

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