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Instituto Politcnico de Portalegre
Escola Superior de Educao de Portalegre
IDENTIDADE E ALTERIDADE:
A LITERATURA INFANTIL COMO
OPORTUNIDADE DE ABORDAGEM AOS
VALORES NA EDUCAO PR-ESCOLAR
Relatrio Final - Prtica e Interveno Supervisionada
Mestrado em Educao Pr-Escolar
Ana Filipa Mendes Ferreira
Orientadora: Professora Doutora Teresa Mendes
Maro de 2013
2
Instituto Politcnico de Portalegre
Escola Superior de Educao de Portalegre
IDENTIDADE E ALTERIDADE:
A LITERATURA INFANTIL COMO OPORTUNIDADE DE
ABORDAGEM AOS VALORES NA EDUCAO PR-ESCOLAR
Relatrio Final - Prtica e Interveno Supervisionada
Mestrado em Educao Pr-Escolar
Ana Filipa Mendes Ferreira
Orientadora: Professora Doutora Teresa Mendes
Maro de 2013
3
Um dia, o meu av perguntou-me quais eram
as coisas mais belas do mundo, e eu no soube
o que dizer.
Pensei que podia ser o pr do sol ou o mar
(). Ele sorriu e perguntou-me outra vez se
no havia de ser a amizade, o amor, a
honestidade e a generosidade, o ser-se fiel,
educado, o ter-se respeito por cada pessoa e
cada coisa.
Perguntou-me se o mais belo do mundo no
seria fazer-se o que se sabe e pode para que a
vida de todos seja melhor. ()
Valter Hugo Me, 2010
4
RESUMO
A nossa sociedade vem enfrentando com alguma dificuldade a emergncia dos
paradigmas sociais, econmicos e culturais perante os quais a globalizao nos colocou.
Ao longo deste processo to complexo, os valores que geriam a nossa forma de ser e de
viver, connosco prprios, com os outros e com a sociedade, perderam a sua nitidez, o
que gerou uma dificuldade crescente em percebermos como orientar as nossas condutas.
Perante este perigoso panorama, urge a necessidade de as nossas escolas assumirem
a sua responsabilidade fundamental de formar cidados esclarecidos, ativos e
responsveis. essencial que, desde o Jardim de Infncia, as crianas sejam
incentivadas a refletir sobre os seus modos de agir, sobre si prprias, sobre o outro,
sobre as relaes que se estabelecem entre os dois. S um ambiente rico em
experincias que coloquem a criana perante a dvida e a necessidade de refletir, mas
que a ajudem simultaneamente a encontrar uma resposta (em que a liberdade necessria
seja, no entanto, sempre assegurada), pode conduzir a um desenvolvimento pleno, em
que a identidade e a alteridade se formem com clareza e harmonia, assegurando ao
indivduo a integridade necessria para viver numa sociedade que o coloca
permanentemente perante a mudana, perante a novidade, e tantas vezes, e cada vez
mais, perante a dificuldade.
Particularmente no Jardim de Infncia, a Literatura Infantil assume-se, pela sua
riqueza esttica e literria, mas tambm pela relao to singular e to estreita que se
forma entre a criana e o livro, como um meio de excelncia para a abordagem e a
reflexo sobre os valores.
Palavras-chave: Educao Pr-Escolar; Literatura Infantil; Valores.
5
ABSTRACT
Our society has been struggling with the emergence of social, economic and
cultural paradigms which globalization has brought. During this complex process, the
values which defined our way of being and living, with ourselves, with each other and
in society, have lost clarity, and this has created a growing difficulty on figuring out
how to behave.
In face of this dangerous scenario, there is a great need for our schools to take on
the responsibility of educating enlightened, active and responsible citizens. It is
essential that, as early as Kindergarten, children are encouraged to think about their
ways of behaving, about their selves, about others, about the relation between the two.
Only an environment enriched with experiences that put the child face to face with
doubt and with the need to think, but that also helps him to find an answer (where free
will is always to be respected), may lead to a full development. Identity and alterity will
then be formed with clarity and harmony, assuring the integrity that the individual will
need to live in a society that constantly makes him face change, novelty, and, so many
times, and constantly more so, difficulty.
Particularly in Kindergarten, Childrens Literature becomes an exceptional means to
discuss and think about values, not only because of its aesthetical and literary richness,
but also because of the close and unique relationship formed between the child and the
book.
Key-words: Preschool Education; Childrens Literature; Values.
6
AGRADECIMENTOS
Tantos foram os momentos difceis em que toda a esperana e coragem pareceram
abandonar-me Em cada um desses momentos, foi nestas pessoas que encontrei a
fora e a confiana necessrias para continuar, sem abdicar, nem pelo mais breve
segundo, da certeza de que nada menos do que o melhor de mim era aceitvel neste
percurso.
Para comear, Professora Teresa Mendes, orientadora deste Relatrio, mas
tambm amiga, cuja sabedoria me guiou incessantemente. Algum que confiou no meu
trabalho no raras vezes at mais do que eu, e que, com as suas palavras doces, sempre
me fez acreditar que este dia haveria de chegar e nos haveramos de orgulhar muito do
produto final de tanto trabalho e tanta dedicao.
Depois, Professora Ana Soares, que embora no tenha participado diretamente
na elaborao deste Relatrio, foi uma inspirao permanente e uma professora sempre
disponvel durante a criao e aplicao das atividades que constituem este projeto, mas,
mais at do que isso, foi pela sua mo que descobri a magia da Literatura Infantil.
Tambm Professora Amlia Marcho, cuja boa vontade e incrvel dedicao me
permitiram ultrapassar algumas dificuldades que facilmente se teriam constitudo como
impedimentos a tantas conquistas futuras; e a todos os Professores deste curso, pelo
altrusmo com que nos deram tudo de si e olharam por ns em cada passo deste
caminho.
Ainda amiga com quem partilhei cada momento, a Jlia, com quem criei uma
relao de confiana inabalvel ao longo do trabalho com o grupo de crianas,
construda com base numa disponibilidade total e num apoio constante, e cujo resultado
acabaria por ser uma amizade verdadeira, que ficar para a vida. Tambm amiga Ana
L., por tantos bons momentos partilhados.
Por ltimo, e por me terem recebido na sua sala com o maior afeto e bondade, s
Crianas (tantos momentos felizes, tanto para ensinar aos adultos) e Educadora
Titular, que me mostraram verdadeiramente o valor da infncia e a importncia desta
profisso to exigente mas to bela, que, agora mais do que nunca, ambiciono com
todas as foras.
7
E depois daqueles que me acompanharam de forma mais direta nesta etapa do meu
percurso acadmico, que se revelou, mais do que isso, determinante no curso da minha
vida, no posso deixar de agradecer queles que estiveram incondicionalmente a meu
lado nos bastidores.
Em primeiro lugar, e porque sem a sua existncia talvez nunca tivesse nascido em
mim esta chama, minha mana Lara, a menina mais bonita e especial deste mundo,
cujos olhos negros brilham como se abrigassem um sol de vero e aquecem o meu
corao mesmo nas noites mais frias.
Em segundo, quele que foi o companheiro de todas as horas, o meu futuro marido,
Miguel, rochedo que me suportou sempre que os vendavais agitavam a minha
confiana, farol que iluminou o meu corao quando, nas horas mais escuras, se sentia
perdido, e abrigo onde, depois de cada dia de luta, cheio de vitrias e de derrotas, me
refugiei e me alimentei de coragem para continuar.
Em terceiro, ao meu pai e amigo Paulo, que nunca duvidou da minha capacidade
para atingir todos os meus desejos, e me vem acompanhando, orgulhosamente, enquanto
conquisto cada um deles, neste longo caminho para a felicidade.
Sem o apoio de cada um de vs, no teria sido possvel chegar at aqui.
OBRIGADA a todos.
8
SIGLAS E ABREVIATURAS
DGIDC Direo Geral de Inovao e de Desenvolvimento Curricular
DQP Desenvolvendo a Qualidade em Parcerias
ECERS-R Escala de Avaliao do Ambiente em Educao de Infncia Edio
Revista
Ed. E. Educadora Estagiria
EEL Effective Early Learning
ESEP Escola Superior de Educao de Portalegre
LGP Lngua Gestual Portuguesa
MAEPE Metas de Aprendizagem - Educao Pr-Escolar
MEM Movimento Escola Moderna
NEE Necessidades Educativas Especiais
OCEPE Orientaes Curriculares para a Educao Pr-Escolar
OCS Observao e Cooperao Supervisionada
ONU Organizao das Naes Unidas
PIS Prtica e Interveno Supervisionada
S.d. Sem data
S.p. Sem pgina
9
NDICE GERAL
INTRODUO .................................................................................................... 11
PARTE I ENQUADRAMENTO TERICO.................................................... 14
CAPTULO I OS VALORES NA SOCIEDADE E NA ESCOLA: QUE
CIDADOS QUEREMOS FORMAR? ............................................................... 15
1. Sociedade, Valores e Educao para a cidadania na (e desde a) Educao Pr-
Escolar ................................................................................................................... 15
2. Os valores nas Orientaes Oficiais para a Educao Pr-Escolar ....................... 20
3. A promoo de valores na Educao Pr-Escolar: o papel do Educador .............. 27
CAPTULO II A LITERATURA INFANTIL COMO OPORTUNIDADE DE
ABORDAGEM AOS VALORES ........................................................................ 32
1. Especificidade da Literatura Infantil e seu contributo para o desenvolvimento da
criana .................................................................................................................... 32
1.1. Relao texto-imagem no livro para crianas: a educao esttico-literria ...... 38
2. A Literatura Infantil como oportunidade de abordagem aos valores: o papel do
educador como mediador da leitura ........................................................................ 42
PARTE II PROJETO DE INVESTIGAO-AO ...................................... 48
CAPTULO I PERCURSO E CONTEXTO..................................................... 49
1. Percurso ............................................................................................................. 49
1.1 A opo por uma metodologia de permanente reflexo: a Investigao-Ao .... 49
1.1.1. Ponto de partida ............................................................................................ 50
1.1.2. Coligir .......................................................................................................... 52
1.1.3. Interpretar ..................................................................................................... 56
2. Contexto ............................................................................................................. 57
2.1. Estabelecimento educativo onde decorreu a ao ............................................. 57
2.1.1. Caracterizao da sala de atividades .............................................................. 59
2.2. Constituio e caracterizao do grupo de crianas .......................................... 64
CAPTULO II AO EM CONTEXTO ......................................................... 67
1. Descrio, fundamentao e reflexo da Prtica e Interveno Supervisionada ... 67
2. Descrio, fundamentao e reflexo do projeto de Investigao-Ao ............... 72
2.1. Atividades propostas no mbito do Projeto de Investigao-Ao .................... 73
10
2.1.1. Atividade 1 A Lagarta que Rugia, de Michael Lawrence ............................ 74
2.1.2. Atividade 2 O Ponto, de Peter Reynolds .................................................... 76
2.1.3. Atividade 3 Pequeno Azul e Pequeno Amarelo, de Leo Lionni ................... 77
2.1.4. Atividade 4 Corao de Me, de Bernardo Carvalho e Isabel M. Martins .. 79
2.1.5. Atividade 5 Ainda Nada?, de Christian Voltz ............................................. 81
2.1.6. Atividade 6 Coragem, Pequena Semente!................................................... 83
2.1.7. Atividade 7 Grisela, de Anke de Vries e Willemien Min ............................ 85
2.1.8. Atividade 8 Nadadorzinho, de Leo Lionni.................................................. 87
2.1.9. Atividade 9 Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak ......................... 91
2.1.10. Atividade 10 Reunio ............................................................................... 93
2.1.11. Atividade 11 Avs, de Chema Heras e Rosa Osuna .................................. 99
2.2. Reflexo Final do Projeto de Investigao-Ao ............................................ 100
CONCLUSO .................................................................................................... 101
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................ 103
ANEXOS ............................................................................................................. 108
ANEXO 1 Resultado da Aplicao da Subescala Linguagem-Raciocnio da
ECERS-R ............................................................................................................. 109
ANEXO 2 Fotografias do estabelecimento educativo e da sala de atividades ..... 110
ANEXO 3 Inqurito realizado Educadora ....................................................... 112
ANEXO 4 Produes das crianas no mbito da Atividade 2 ............................ 119
ANEXO 5 Fuso Pequeno Azul e Pequeno Amarelo ...................................... 121
ANEXO 6 Ilustraes criadas para a leitura da obra Corao de Me ............... 122
ANEXO 7 Produes das crianas no mbito da Atividade 4 ............................ 123
ANEXO 8 Texto Coragem, Pequena Semente! ................................................. 124
ANEXO 9 Produes das crianas no mbito da Atividade 7 ............................ 127
ANEXO 10 Guio de orientao do grupo para atividade de relaxamento ......... 128
ANEXO 11 Fotos atividade de expresso dramtica (Atividade 9) .................... 129
ANEXO 12 - Produes das crianas no mbito da Atividade 9 ........................... 130
NDICE DE QUADROS
Quadro 1 ................................................................................................................ 64
Quadro 2 ................................................................................................................ 73
11
INTRODUO
O presente relatrio pretende revelar, de uma forma abrangente e devidamente
fundamentada, todo o trabalho realizado durante a Prtica e Interveno Supervisionada,
numa sala de Pr-Escolar da rede pblica da cidade de Portalegre, no mbito do
Mestrado em Educao Pr-Escolar da Escola Superior de Educao de Portalegre.
Como no poderia deixar de ser, este trabalho evidencia igualmente, e de forma quase
indistinta, o percurso realizado no 1. Semestre, no mbito da unidade curricular de
Observao e Cooperao Supervisionada.
Naturalmente, a nfase ser colocada no projeto integrador selecionado e
desenvolvido durante a PIS, Identidade e Alteridade A Literatura Infantil como
Oportunidade de Abordagem aos Valores na Educao Pr-Escolar. A escolha do tema
foi feita de uma forma muito natural, uma vez que a necessidade de o abordar emergiu
espontaneamente.
No que diz respeito aos valores, e mais particularmente aos que se relacionam com
a formao da identidade e para a alteridade, foi atravs da observao das interaes
entre as crianas e com os adultos que se evidenciou o facto de algumas apresentarem
dfices potencialmente graves de autoestima e autoconfiana. Isto manifestava-se, por
exemplo, ao se recusarem a realizar determinada atividade, por exemplo, de desenho,
por afirmarem no saber desenhar. Tambm em situaes em que era pedida uma
opinio a qualquer respeito, algumas crianas hesitavam em se manifestar por receio das
reaes dos colegas, acabando por seguir cegamente as opes de outros. Assim, pude
facilmente perceber, na altura, que as crianas em questo enfrentavam dificuldades ao
nvel da construo e expresso da sua identidade. Por outro lado, observei situaes em
que as crianas revelavam dificuldades em lidar com a alteridade, desrespeitando os
colegas, fazendo comentrios depreciativos face diferena, recusando-se a partilhar e a
colaborar, etc.
Embora no se observassem de todo casos extremos, era um facto que as situaes
acima referidas poderiam constituir um entrave ao desejvel desenvolvimento pleno e
harmonioso das crianas. Pude observar que na relao da educadora com as mesmas
transpareciam os valores pessoais e sociais universais, e esta fazia frequentemente
comentrios de valorizao das conquistas pessoais, de incentivo, assim como de
12
repreenso perante atitudes reveladoras de valores socialmente indesejveis. No entanto,
escasseavam as atividades que convidassem a uma abordagem explcita e consequente
reflexo sobre os valores, sobre os modos de ver e de viver o mundo, sobre as formas de
agir.
Uma vez que a temtica das atitudes e valores se insere na rea de Formao
Pessoal e Social, uma rea absolutamente transversal, integradora e abrangente,
emergia, agora, a necessidade de encontrar uma estratgia pedaggica facilitadora da
abordagem que se pretendia realizar, que permitisse uma relao de plena interligao
com a temtica, mas que no se constitusse unicamente como um meio para chegar a
um fim, ou seja, que valesse por si s, contribuindo para o desenvolvimento das
crianas.
A literatura infantil acabou por se apresentar como a resposta bvia a esta
necessidade. Existiam na sala rotinas relacionadas com a leitura, assim com um espao
dedicado ao livro, onde as crianas podiam explor-lo livremente. No entanto, isto
parecia no ser suficiente, uma vez que as crianas se mostravam ainda sedentas de
contacto com o livro, manifestando um interesse e curiosidade inabalveis quando
tinham contacto com novas obras. Por outro lado, quando a educadora dinamizava
momentos de leitura, as crianas mostravam-se verdadeiramente entusiasmadas e
pediam a oportunidade de intervir, de fazer comentrios, de dar as suas opinies. No
entanto, era prtica da educadora limitar esses comentrios, permitindo-os unicamente
no final, e em nmero reduzido, at porque era habitual realizar a leitura antes do
almoo, numa altura em que a disponibilidade temporal era muito reduzida.
Compreendi, assim, que uma seleo cuidada e responsvel de obras de qualidade,
que abordassem de uma forma subtil os valores, e integradas em momentos de leitura
dirios (no mnimo) e sem barreiras temporais, em que as crianas fossem incentivadas
a participar, a manifestar-se, a partilhar opinies, poderia ser uma oportunidade singular
e cheia de potencialidades pedaggicas. Isto no significa, de forma alguma, que se
pretendesse desrespeitar a magia do momento de leitura, com interrupes abruptas
para comentar. Significa, isso sim, manter regras de participao, nomeadamente de
saber ouvir e saber esperar pela sua vez, salvaguardando sempre, no entanto, que todas
as opinies seriam consideradas e bem-vindas, desde que justificadas. No fundo, o que
13
se pretendia era dar voz s crianas, valorizando as suas opinies, as suas vivncias, a
sua identidade singular, em desenvolvimento.
Identificado, ento, o tema integrador que orientaria o projeto, este foi desenvolvido
numa metodologia de Investigao-Ao, que exigiu um processo constante de
planificao-ao-reflexo, baseado numa observao atenta. Procurei desenvolver uma
prtica responsvel, responsiva, reflexiva, que no perdesse de vista que a noo mais
fundamental para quem trabalha com crianas num contexto educativo , justamente,
centrar a sua ao e a sua intencionalidade na criana, e que tal se evidenciar atravs
do seu bem-estar emocional, da sua plena integrao no grupo, do respeito e valorizao
das suas potencialidades e da sua identidade nica, assim como da sua to singular
condio de crianas.
Em termos estruturais, o presente relatrio organiza-se em duas partes, dedicando-
se a primeira a um Enquadramento Terico do tema selecionado, e a segunda
Apresentao do Projeto de Investigao-Ao.
Na primeira parte, realizada uma abordagem terica s temticas em questo,
procurando-se, dessa forma, fundamentar as opes prticas ao nvel da abordagem aos
valores atravs da literatura infantil. Assim, esta organiza-se em dois captulos distintos
mas interligados e co-dependentes, intitulando-se o primeiro Os Valores na Sociedade e
na Escola: Que Cidados Queremos Formar? e o segundo A Literatura Infantil como
Oportunidade de Abordagem aos Valores.
A segunda parte foca-se mais particularmente, por um lado, na apresentao do
Percurso e Contexto, com uma fundamentao das opes metodolgicas, alm de uma
caracterizao do estabelecimento, e mais particularmente da sala, em que se desenrolou
a ao, assim como do grupo de crianas, e por outro, na Ao em Contexto, com uma
descrio, fundamentao e reflexo sobre a PIS, e mais particularmente uma
apresentao reflexiva das atividades propostas no mbito do mesmo (incluindo as
contribuies das crianas, claramente reveladoras dos seus progressos, das suas
conquistas, do seu desenvolvimento enquanto crianas e enquanto futuros cidados).
Por fim, apresentada a Concluso, e, naturalmente, a Bibliografia em que se
alicerou o presente relatrio.
14
PARTE I ENQUADRAMENTO TERICO
___________________________________________________
15
CAPTULO I OS VALORES NA SOCIEDADE E NA ESCOLA: QUE
CIDADOS QUEREMOS FORMAR?
1. Sociedade, Valores e Educao para a cidadania na (e desde a) Educao
Pr-Escolar
Vivemos num mundo em constante transformao. O que ontem era, hoje j no
, e amanh certamente voltar a alterar-se. As sociedades enfrentam importantes
mudanas polticas, tecnolgicas, cientficas, culturais, econmicas e sociais, que nos
envolvem num clima de insegurana, na medida em que se torna impossvel
compreender inteiramente uma ordem global to instvel (Giddens, 2000: 19). Nada
certo, nada garantido.
De acordo com Anthony Giddens (2000: 18), o processo de globalizao que vive a
atual sociedade traduz-se na transmisso constante de imagens por todo o mundo,
colocando todas as pessoas, todas as culturas, todas as comunidades em contacto
permanente com outras pessoas, com outras culturas e com outras comunidades, e que,
embora possam partilhar entre si aspetos que as aproximem, possuem tambm
necessariamente formas de pensar e de viver muito distintas.
Alain Torraine (1997) defende que a cultura de massa leva a que s vivamos
juntos na medida em que fazemos os mesmos gestos e utilizamos os mesmos objetos,
mas sem sermos capazes de comunicar entre ns, para alm dos signos da
modernidade. (Torraine, 1997: 14). Segundo o autor, a globalizao, nos moldes em
que se tem processado, no conduz ao surgimento de uma desejvel e verdadeira
sociedade mundial, pois tal s seria possvel atravs da fuso das vrias pequenas
sociedades que constituem o nosso mundo. Mas esta fuso no passa de uma utopia,
pelo menos enquanto continuarmos a assistir, isso sim, a uma perda crescente dos traos
culturais e dos sistemas de valores que costumavam governar as nossas pequenas
comunidades, assegurando a sua manuteno (Torraine, 1997: 14).
De facto, as prprias instituies que antes vamos como responsveis pela
veiculao da cultura e dos valores, como a famlia, a escola e at a igreja, vm
perdendo o seu poder, medida que o seu espao vai sendo invadido por mensagens
que chegam de todo o lado, e que nos colocam perante dilemas constantes, levando-nos
ao ponto de colocarmos em questo essas mesmas instituies, anteriormente
16
inquestionveis. Torraine chega a afirmar, neste seguimento, que a fronteira entre o
normal e o patolgico, o permitido e o proibido, perde a nitidez (1997: 13).
Esta descaracterizao das comunidades em que nos costumvamos sentir
integrados conduz, necessariamente, a uma descaracterizao de ns mesmos. De
acordo com Torraine, Isto faz pesar sobre ns uma dificuldade crescente de definir a
nossa personalidade que, com efeito, perde irremediavelmente toda a unidade medida
que deixa de ser um conjunto coerente de papis sociais. (1997: 18).
O autor defende que, embora vivamos por um lado mais juntos, resultado da
aproximao que nos traz a globalizao, em geral, e os meios de comunicao, em
particular, nos encontramos simultaneamente mais afastados, mais sozinhos, e menos
capazes de comunicar, pelo menos na verdadeira essncia da comunicao.
Por outro lado, Valente Pires (2007) afirma que a sociedade atual se caracteriza
por uma fugacidade que se manifesta na forma como vivemos o dia a dia, como
encaramos o futuro, como tratamos os prprios objetos, mas inclusivamente nas
relaes interpessoais, cada vez mais efmeras e superficiais. A prpria famlia vtima
desta fragilidade, e os laos familiares mostram-se instveis e enfraquecidos,
quebrando-se primeira dificuldade. A autora defende que o homem atual est a
perder a sua capacidade de vincular-se, o que dificulta a integrao social e o sentido
de pertena a uma comunidade (Pires, 2007: 77). De acordo com a mesma:
O homem moderno tem algo de nmada espiritual e afetivo. Muda de
ideologias, de princpios, de valores como muda de emprego, de amigos, ou
de marido/mulher. Vagueia pelo mundo sem criar razes. Tornou-se incapaz
de construir vnculos por onde se possa alimentar e que o prendam ao solo da realidade. (2007: 97)
No assumindo um discurso to radical, Rosa (1998) defende que a identidade do
indivduo se inscreve no espao/tempo de uma comunidade e de um mundo que lhe so
igualmente constitutivos (Rosa, cit. por Pires, 2007: 99). Trata-se de se sentir inserido
num espao, num grupo, e este sentimento de pertena, segundo o autor, baseia-se
acima de tudo nos valores estabelecidos e partilhados pelos membros da comunidade,
valores estes que so a base da identidade dessa mesma comunidade. Pode deduzir-se,
assim, que ao perder a capacidade de se enraizar numa sociedade, numa comunidade,
17
numa cultura, o Homem perde simultaneamente os alicerces em que basearia a
construo da sua prpria identidade.
Face a esta to ntida crise de valores, que se manifesta em todas as reas da nossa
sociedade e coloca em risco a felicidade das geraes atuais, mas mais ainda das
futuras, seria de esperar uma interveno urgente por parte da escola na educao para
(a recuperao d) os valores, no mbito do seu to fundamental papel de
responsabilidade na educao das crianas e jovens. Amlia Marcho (2011) enquadra
com clareza esta urgncia, descrevendo-a da seguinte forma:
A necessidade do sistema educativo se adaptar s novas realidades
nacionais, enquadradas tambm num quadro internacional de globalizao e
motivadas pela diversidade cultural, pela complexidade tecnolgica, pelas
incertezas e instabilidades sociais, econmicas e at cientficas e polticas indiscutvel e aceite unanimemente. Por tal facto, recai sobre os sistemas
educativos e sobre as escolas e os professores, em particular, a rdua tarefa
de regenerao da vida econmica e cultural, da ressuscitao de valores e sentidos morais (). (Marcho, 2011: 86)
O sistema educativo deve, portanto, ser permevel mudana e adaptar-se s novas
realidades sociais, culturais, econmicas, atendendo individualidade de cada criana e
naturalmente ao contexto em que cada uma se insere. A interveno pedaggica dos
educadores e dos professores deve portanto privilegiar e colocar no centro do processo
educativo a criana, e implicar naturalmente as famlias, atravs de um dilogo
frequente e construtivo que permita compreender a criana no seu todo. S atravs dessa
interao permanente se podero delinear estratgias comuns que permitam educar a
criana para os valores e para a cidadania, favorecendo assim a sua integrao plena
numa sociedade em constante mudana e ajudando-a a construir e consolidar a sua
personalidade.
Ramiro Marques (2003) recupera, a este propsito, as palavras de Sousa acerca
da importncia dos valores no equilbrio da personalidade (Sousa, cit. por Marques,
2003: 15). Neste aspeto, parece consensual que a personalidade do ser em crescimento
se vai formando e definindo gradualmente atravs das experincias do quotidiano, das
ilaes que a criana espontaneamente delas vai retirando, mas tambm, naturalmente,
atravs da partilha de opinies com as outras crianas e com os adultos que com ela
interagem. Educar para os valores morais, sociais e democrticos , pois, uma tarefa
rdua, no dizer de Amlia Marcho, mas o educador e as famlias no se podero
18
demitir dessa misso e dessa responsabilidade. Obviamente no se trata de impor
modelos de conduta nem de formatar o pensamento da criana, mas sim de ajud-la a
refletir por si, sobre si prpria e sobre a sua relao com os outros, partindo das suas
vivncias ou criando, em contexto educativo, situaes que suscitem um dilogo
significativo e enriquecedor para a criana e para o grupo. Educar para os valores ,
pois, uma tarefa que se reveste de questes muito sensveis, ocupando uma em
particular um papel de destaque: que valores abordar?
Como j foi referido, uma das caractersticas mais proeminentes da sociedade
contempornea a proximidade irreal entre pessoas que, coabitando num mesmo
espao mundial cada vez mais prximo e aberto, se afastam, por outro lado, em funo
de uma heterogeneidade de valores que a sua crescente incapacidade de comunicar faz
parecer abismal. Ao mesmo tempo, os valores confundem-se e tornam-se difceis de
distinguir, conduzindo a uma crescente dificuldade em orientar as condutas. Por outro
lado, durante demasiado tempo a escola seguiu um modelo tradicional de educao que
se limitava a impor ideologicamente os valores que se coadunavam com as polticas
vigentes, numa cultura fechada e conservadora (Simes, 1986), que no tinha
minimamente em conta as opinies e preferncias das crianas nem a sua identidade.
Felizmente, os tempos mudaram tambm a esse nvel, pelo que a autora entendia, j
na dcada de 80, que era fundamental que as escolas assumissem o objetivo de formar
cidados sensveis e profundamente responsveis, que conhecessem os seus direitos e as
suas responsabilidades, e que compreendessem que, para exigir dos outros, era
necessrio exigir acima de tudo de si prprios. Mais de duas dcadas volvidas,
indiscutvel que esta ideia se mantm atual, e na presente conjuntura cresce a
necessidade de as nossas escolas a assumirem como um dos alicerces da educao.
Mas como faz-lo? Helena Marchand (s.d.) defende que possvel identificar um
pequeno nmero de valores que constitua uma base tica comum, sendo estes aqueles
em que se alicera a Declarao Universal dos Direitos do Homem (Organizao das
Naes Unidas, 1948), e que podemos resumir nos seguintes pontos:
1. Fraternidade e solidariedade;
2. Igualdade;
3. Justia;
4. Segurana;
19
5. Tolerncia e respeito pelo outro;
6. Liberdade.
A autora defende ainda que:
Se para alguns, a defesa de princpios morais universais parece pr em
questo o respeito pelas diferentes culturas, minorias ticas e religiosas,
possvel, e legtimo, advogar-se, tal como alguns autores o fazem (), que tais princpios universais, pelo contrrio, esto na base do respeito e da
tolerncia pela diferena cultural, tnica e religiosa. (s.d: 5)
Podemos ento assumir que existe uma necessidade urgente de as nossas escolas (e
tambm, obviamente, os nossos jardins de infncia) se envolverem de uma forma mais
clara e mais ativa na educao para os valores, que pode basear-se na referida base
tica comum mas que s poder resultar verdadeiramente na formao de cidados
ativos e responsveis se acontecer num ambiente de liberdade, e recusando
terminantemente a ideia de imposio, ou seja, atravs de uma abordagem que permita e
fomente a criatividade, o esprito crtico, a comunicao e o debate, e acima de tudo o
respeito, de forma que cada um descubra de uma forma livre e harmoniosa aquilo que
valoriza. At porque, como afirma Bruno Bettelheim (1998: 12):
A criana precisa de ideias sobre como pr a casa interior em ordem e, nessa base, conseguir dar sentido sua vida. Precisa [] de uma educao
moral em que com subtileza apenas se lhe transmitam as vantagens de um
comportamento moral, no atravs de conceitos ticos abstratos mas atravs do que parece palpavelmente acertado e portanto com sentido para a
criana.
Ser de reforar que, ao contrrio do que muitos podero pensar, a educao para os
valores e para a cidadania deve iniciar-se o mais cedo possvel. Em casa, mesmo sem se
aperceberem disso, as famlias contribuem muitas vezes desde cedo para o
desenvolvimento de atitudes como a partilha (por exemplo dos brinquedos com o irmo
ou com um amigo), o respeito (quando a criana revela qualquer atitude de desrespeito
para com a me ou o pai), a entreajuda (ajudar o irmo a arrumar o quarto), a
solidariedade (incentivando a criana a oferecer alguns dos seus brinquedos a uma
instituio de solidariedade social) entre tantas outras que surgem naturalmente no dia a
dia. Ora, o jardim de infncia, que fornece uma teia de contactos e relaes to
diversificada, acaba por se constituir como um meio ainda mais propcio educao
para os valores, uma vez que o quotidiano absolutamente recheado de oportunidades
20
passveis de serem exploradas numa perspetiva de abordagem e reflexo sobre os
diferentes modos de agir perante ns prprios, perante os outros e perante a sociedade.
2. Os valores nas Orientaes Oficiais para a Educao Pr-Escolar
A importncia da educao para os valores claramente reconhecida pelas
Orientaes Curriculares para a Educao Pr-Escolar (ME, 1997), que se enquadram
e fundamentam na Lei-Quadro da Educao Pr-Escolar, de 10 de Fevereiro de 1997.
Esta valorizao apresenta-se, desde logo, no princpio-geral estabelecido pela Lei-
Quadro, que defende o favorecimento da formao e o desenvolvimento equilibrado da
criana, tendo em vista a sua plena insero na sociedade como ser autnomo, livre e
solidrio. (Lei 5/97 de 10 de Fevereiro). Ora, precisamente, a autonomia, a liberdade e
a solidariedade so valores fundamentais para a formao da criana, que lhe permitiro
uma integrao eficaz na sociedade, se entretanto os diversos contextos educativos em
que se insere (a famlia, o jardim de infncia e mais tarde a Escola) contriburem para a
formao da sua identidade, para a aceitao de si e para a valorizao do outro, com
base no respeito e na tolerncia. Por outro lado, de destacar a igualdade de
oportunidades que deve caracterizar a educao pr-escolar, constituindo-se como um
meio que possibilite e fomente na criana e no grupo a aprendizagem da vida em
sociedade, em que todos so iguais (sendo, no entanto, diferentes).
Alis, Amlia Marcho (2012) refora precisamente essa ideia estipulada pela Lei-
Quadro da Educao Pr-Escolar (Lei 5/97 de 10 de Fevereiro), ao sublinhar que ()
a educao pr-escolar deve promover na criana: o desenvolvimento pessoal e social
numa perspectiva de educao para a cidadania; o desenvolvimento global
individualizado; a socializao e a aprendizagem de atitudes atravs da relao e da
compreenso do mundo (Marcho, 2012: 36).
Tambm os objetivos pedaggicos decorrentes desse princpio-geral enunciado pela
Lei-Quadro destacam a importncia dos valores na educao pr-escolar,
nomeadamente ao nvel dos valores democrticos, numa dupla perspetiva de incluso e
de educao para a cidadania. Em estreita articulao com a Lei-Quadro da Educao
Pr-Escolar, as OCEPE destacam igualmente a participao, a justia, a
responsabilizao, a cooperao (ME, 1997: 54), que conduzem necessariamente a
um maior sentido de responsabilidade, de respeito pelo outro e pelas diferenas
21
individuais, sobretudo se o educador promover um ambiente favorvel s interaes e
ao dilogo com e entre as crianas.
A noo de educao para todos norteia, pois, as Orientaes Curriculares para a
Educao Pr-Escolar, assumindo-se o respeito pela diferena, a incluso e a resposta
s necessidades individuais como pilares de uma escola inclusiva, em que as crianas
diferentes so includas no grupo e beneficiam das mesmas oportunidades educativas,
o que, s por si, se assume como uma possibilidade riqussima ao nvel da educao
para os valores, uma vez que as crianas so incentivadas diariamente a lidar de uma
forma positiva e valorativa com a diferena, desenvolvendo naturalmente sentimentos e
atitudes de unio, de colaborao e de solidariedade (ME, 1997: 19). O conceito de
escola inclusiva, apresentada neste documento como aquela que procura dar resposta a
todas e a cada uma das crianas, atravs de uma pedagogia diferenciada, centrada na
cooperao, que inclua todas as crianas, aceite as diferenas, apoie a aprendizagem,
responda s necessidades individuais (ME, 1997: 19), pressupe igualmente uma
educao para a diversidade aos nveis sexual, cultural, social e tnico, em que a
igualdade de oportunidades seja sempre uma prioridade e at mesmo um princpio
orientador, em que haja lugar para as diferentes maneiras de ser, de aprender, de saber e
de fazer, sempre dentro do respeito e da valorizao do outro.
As Orientaes Curriculares atribuem ao educador um papel fundamental neste
processo, essencialmente no que diz respeito forma como se relaciona com as crianas
e ao tipo de relacionamento que promove entre as mesmas. Cabe ao educador
proporcionar condies para uma formao saudvel e coesa do grupo, em que as
crianas usufruam de oportunidades diversificadas de conhecimento do outro, de
ateno s suas caractersticas e necessidades e, principalmente, de respeito e
valorizao das mesmas, num ambiente de dilogo, de confiana e de tolerncia. Uma
participao ativa de cada criana dentro do grupo, em que todos sejam chamados a
realizar tarefas, a fazer escolhas (identificando, assim, necessariamente critrios que as
fundamentem), a tomar decises e a justific-las, tudo isto em nome do bem coletivo,
constitui uma oportunidade valiosa de experienciar a vida democrtica, sendo da
responsabilidade do educador organizar e fomentar com frequncia este tipo de
experincias, tornando-as inclusivamente rotineiras no dia a dia da sala de atividades.
22
Estas vivncias democrticas desenvolvem no grupo valores fundamentais,
como a participao, a cooperao, a justia ou a responsabilizao, determinantes na
vida em sociedade. Ao mesmo tempo, e ao atribuir criana a responsabilidade de
fazer escolhas, de formar e partilhar opinies, de desempenhar tarefas autnomas, no
fundo ao depositar confiana nas suas capacidades, o educador no s contribui para a
formao do esprito crtico, base da educao para a cidadania, como fomenta o
desenvolvimento, por um lado, da autonomia, e por outro, da autoconfiana e da
autoestima, at porque, de acordo com as Orientaes Curriculares para a Educao
Pr-Escolar (1997), a educao pr-escolar deve promover a autoestima e
autoconfiana de cada criana, incentivando-a a reconhecer as suas capacidades e
progressos (ME, 1997: 18).
Os valores assumem um papel ainda mais vincado na rea de Formao Pessoal e
Social, que as Orientaes Curriculares consideram transversal, por se cruzar, no
fundo, com todas as componentes curriculares previstas para a educao pr-escolar.
Esta rea apresentada com os objetivos de favorecer a aquisio do esprito crtico e a
interiorizao de valores espirituais, estticos, morais e cvicos. Deste modo, pretende--
se promover [nas crianas] atitudes e valores que lhes permitam tornarem-se cidados
conscientes e solidrios, capacitando-os para a resoluo dos problemas da vida (ME,
1997: 51).
A rea de Formao Pessoal e Social fundamenta-se, por um lado, na tradio
socializadora da educao pr-escolar em Portugal, e por outro, na perspetiva de que o
ser humano se constri em interao social, sendo influenciado e influenciando o meio
que o rodeia (ME, 1997: 51). Assim, atravs da interao social que a criana
encontra e constri referncias que lhe permitam orientar a sua ao e formar a sua
identidade, muito particularmente ao compreender a distino entre o certo e o errado e
ao interiorizar os direitos e deveres que norteiam a relao consigo mesma e com os
outros.
As Orientaes Curriculares para a Educao Pr-Escolar destacam, assim, o
papel desta rea no desenvolvimento da identidade da criana, e que se prende, acima
de tudo, com o reconhecimento e a valorizao das caractersticas individuais prprias e
com a compreenso e respeito pelas caractersticas do outro, incluindo, naturalmente, as
suas limitaes e potencialidades. Ao sentir-se integrada num grupo de pares, a criana
23
aprende a respeitar e valorizar o papel e os contributos individuais de cada um dentro
desse grupo, o que contribui, dia a dia, para a construo do eu, apoiada sempre e muito
fortemente na interao com o outro.
Apesar de a famlia ser indiscutivelmente o contexto socializador de excelncia nos
primeiros anos de vida da criana, a educao pr-escolar assume-se como um contexto
mais alargado e diversificado, que lhe permitir interagir com outros adultos e crianas
fora do seu contexto familiar, o que fomentar a tolerncia e a aceitao e valorizao
da diferena. Desta forma, a criana vai usufruindo de oportunidades ricas e frequentes
de tomar conscincia de si e do outro, o que garante educao pr-escolar, e muito
particularmente ao educador, um papel da maior relevncia na educao para os valores.
A Lei-Quadro da Educao Pr-Escolar destaca precisamente o papel da educao
pr-escolar como complementar da ao educativa da famlia, com a qual deve
estabelecer estreita relao (Lei 5/97 de 10 de Fevereiro). Partindo desta noo, as
OCEPE referem a necessidade de assegurar uma articulao permanente entre jardim de
infncia e famlias, em que o contexto familiar, social e cultural de origem seja
verdadeiramente tido em conta, e possa constituir uma base, um ponto de partida,
assumindo-se, deste modo, a educao pr-escolar como mediadora entre as culturas
de origem das crianas e a cultura de que tero de se apropriar para terem uma
aprendizagem com sucesso (ME, 1997: 22).
Por ltimo, as OCEPE sublinham que a rea de Formao Pessoal e Social deve
contribuir para a formao e desenvolvimento de valores estticos, muito relacionados
com a organizao do ambiente educativo. Por isso, acentuam a importncia de que o
ambiente educativo da sala e da instituio equipamentos, materiais, decorao
corresponda a critrios estticos que favoream a educao do gosto (ME, 1997: 55).
Para alm disso, a educao esttica surgir naturalmente ao permitir criana o
contacto com diferentes formas de expresso artstica, que sero meios de educao da
sensibilidade (ME, 1997: 55). As Orientaes Curriculares referem ainda que a
educao esttica tambm se fomenta pelo contacto com o meio envolvente, com a
natureza e com a cultura, na medida em que esse contacto permitir () s crianas
apreciar a beleza em diferentes contextos e situaes (ME, 1997: 55).
De entre as diferentes formas de expresso artstica com as quais as crianas devem
contactar, o livro institui-se como um objeto fundamental no desenvolvimento da
24
sensibilidade esttica e na descoberta do prazer da leitura. Com efeito, uma das mais
importantes funes do cdigo escrito, de acordo com as OCEPE, dar prazer e
desenvolver a sensibilidade esttica, partilhar sentimentos e emoes, sonhos e
fantasias (ME, 1997: 70), e neste mbito os livros possuem um papel insubstituvel.
nos livros, escolhidos com base numa anlise seletiva e fundamentada em critrios de
qualidade ao nvel da esttica literria e plstica, que o educador encontra igualmente
oportunidades ricas e diversificadas de abordar os valores fundamentais formao e
desenvolvimento da criana, para l das vivncias quotidianas da sala de atividades.
Nessa medida, o livro pode revelar-se um precioso recurso pedaggico para o
educador, como veremos mais adiante, por permitir, alm da educao esttico-literria
e do desenvolvimento de comportamentos emergentes de literacia, abordagens
transversais s vrias reas curriculares e aos mais diversos temas da vida quotidiana, de
forma integradora e obviamente no numa perspetiva escolarizada. Atravs dos livros, e
muito particularmente no caso dos livros inseridos no paradigma da literatura infantil, a
criana descobre outros mundos possveis, desenvolve a sua capacidade imaginativa,
retira ilaes e constri sentidos de acordo com as suas experincias de vida. Para alm
disso, quando devidamente estimulada pelo educador, a criana adota uma atitude
reflexiva sobre os textos que ouve ler, que fundamentar a construo de um quadro de
valores que a ajudar a construir a sua identidade e a relacionar-se com os outros com
base na tolerncia e na aceitao da diferena.
As conversas mantidas em grupo a propsito dos livros (e a partir deles)
contribuem para a formao do pensamento crtico e para a conscincia cvica das
crianas, ao mesmo tempo que as auxiliam a desenvolver a sua expresso oral e
naturalmente a sua competncia comunicativa. neste ambiente educativo rico em
interaes verbais construtivas, em que as opinies das crianas so tidas em conta e
valorizadas, que se proporcionam aprendizagens significativas e se promove o
desenvolvimento cognitivo, lingustico, psicoemotivo e relacional do ser em
crescimento.
A este propsito, as Metas de Aprendizagem - Pr-Escolar (ME, 2009), que
derivam e se fundamentam nas OCEPE (complementando-as) definem o conjunto de
aprendizagens que desejvel terem sido realizadas pelas crianas no final dessa etapa
educacional, ou seja, antes da entrada no 1. ciclo do ensino bsico, e que, portanto,
25
constituiro as bases dos novos conhecimentos a desenvolver da em diante. Com a
enunciao destas metas, pretende-se contribuir para esclarecer e explicitar as
condies favorveis para o sucesso escolar indicadas nas Orientaes Curriculares
para a Educao Pr-Escolar, facultando um referencial comum que ser til aos
educadores de infncia para planearem processos, estratgias e modos de progresso de
forma a que todas as crianas possam ter realizado essas aprendizagens antes de
entrarem para o 1. ciclo (ME, 2009: 3). Por outro lado, estas metas podero
igualmente constituir uma orientao para os pais e outros adultos envolvidos na
educao da criana, possibilitando-lhes conhecer melhor os objetivos e contedos da
educao pr-escolar, e inclusivamente contribuir de forma esclarecida, informada e
comprometida para as aprendizagens da decorrentes, nomeadamente em situaes
informais do quotidiano, que, por surgirem com naturalidade, podero assumir-se at
como mais significativas para a criana (por exemplo, ao discutir que atividade realizar
no fim de semana, e tendo conscincia da importncia de fomentar as aprendizagens
relacionadas com a vida democrtica, os pais podero incluir a criana na discusso,
valorizando a sua opinio e incentivando-a a fundament-la).
As metas de aprendizagem definidas para a rea de Formao Pessoal e Social
apontam, pois, para um processo em construo, que est intimamente relacionado
com o tipo e a qualidade de experincia de vida em grupo que so proporcionados no
jardim de infncia (ME, 2009: 3), ficando assim clara a importncia do papel do
educador como impulsionador, orientador e at modelo ou exemplo, pois a forma como
as crianas se vo relacionar entre si ser um espelho da forma como este se relaciona
com cada criana e com o grupo. Tambm a abordagem feita aos diversos contedos,
no s nesta rea, mas tendo em conta a sua transversalidade e o seu potencial de
articulao, com todas as outras, ser fundamental, at porque todas as ocasies so
pertinentes para a formao da criana enquanto pessoa e enquanto ser social, num
processo em construo, gradual mas que se pretende constante.
As metas finais definidas para a rea de Formao Pessoal e Social dividem-se em
cinco domnios:
Identidade/Autoestima;
Independncia/Autonomia;
Cooperao;
26
Convivncia Democrtica/Cidadania;
Solidariedade/Respeito pela Diferena.
Analisando os diversos domnios, e mais particularmente as metas que os
constituem, facilmente sobressaem noes que nos remetem para valores fundamentais,
nomeadamente o sentimento positivo de identidade, baseado na autoestima e na
valorizao das caractersticas individuais; o sentimento de pertena a diferentes grupos
e de unio; a confiana; a responsabilidade, o empenho e a noo de compromisso; a
procura e crescente conquista da autonomia; a capacidade de escolha e de deciso
fundamentadas; o esprito crtico; a perseverana; a partilha e a solidariedade; o respeito
e valorizao do outro; a cooperao; o dilogo; etc.
Foi nas orientaes definidas por estes dois documentos, OCEPE e Metas de
Aprendizagem Pr-Escolar, e muito especificamente no que concerne s reas de
Formao Pessoal e Social e tambm de Expresso e Comunicao, que se baseou todo
o projeto de abordagem aos valores aplicado durante a Prtica e Interveno
Supervisionada. Como j havia sido referido, e como o comprovam as orientaes
oficiais para a educao pr-escolar, o jardim de infncia constitui-se como um meio de
excelncia para a educao para os valores e para a cidadania, cabendo ao educador a
responsabilidade de gerir as oportunidades que vo espontaneamente brotando do solo
to frtil que o quotidiano da sala de atividades, mas tambm de criar ele prprio,
intencionalmente, um espao de reflexo e de partilha em que todos, educador includo,
devem expressar as suas opinies e manifestar-se face s situaes observadas e
vivenciadas no contexto educativo, ou fora dele, e tambm, naturalmente, a partir dos
comportamentos adotados pelas personagens das histrias lidas ou contadas1.
Para j, importa perceber de que modo o educador pode e deve promover
genericamente os valores no contexto da sua prtica educativa, atendendo ao perfil
especfico do desempenho profissional do educador de infncia, legalmente consagrado,
e aos contributos tericos de alguns autores de referncia no domnio das pedagogias
participativas.
1 Voltaremos a esta questo no captulo dois deste relatrio.
27
3. A promoo de valores na Educao Pr-Escolar: o papel do Educador
O Decreto-Lei n. 241/2001, de 30 de Agosto, aprova os perfis especficos de
desempenho profissional do educador de infncia e do professor do 1. ciclo do ensino
bsico.
No que diz respeito ao perfil do educador de infncia, este documento destaca um
conjunto de deveres e responsabilidades a ter em conta pelo mesmo no desempenho das
suas funes profissionais, entre os quais possvel identificar alguns que se prendem
com a educao para os valores, ainda que no lhe seja feita uma meno clara.
No mbito da observao, planificao e avaliao, previsto que o educador
planifique em funo das necessidades de cada criana, em particular, mas tambm do
grupo, em geral, o que reflete claramente uma perspetiva de escola inclusiva. O
educador dever observar atentamente cada criana nos variados contextos e situaes
do dia a dia da sala de atividades, assegurando uma avaliao e planificao eficazes e
centradas na diversidade do seu grupo. Por outro lado, e ainda neste ponto, destacada a
importncia de ter em conta os conhecimentos que as crianas j possuem e que podero
estar intimamente relacionados com o contexto social e cultural de onde provm, o que
remete para a valorizao da diversidade tnica e sociocultural, mas tambm para o
respeito pelas diferentes experincias de vida das crianas e atendendo ao seu nvel de
maturao cognitivo e psicoemotivo.
A este respeito destaca Gabriela Portugal (2009) a importncia de o educador ser
centrado na criana, ou seja, o educador deve possuir a capacidade para reconhecer e
compreender a diversidade (Portugal, 2009: 12), quer cultural, quer do nvel de
desenvolvimento em que cada criana se encontra, quer inclusivamente da experincia
de vida que a marca e influencia, tanto positiva como negativamente. Trata-se de
possuir tambm a capacidade para aceder perspetiva da criana (Portugal, 2009: 12),
tendo sempre em ateno que a sua forma de ver, de percecionar e de viver o mundo e a
realidade no a mesma do adulto, e que ir ao encontro do mundo da criana exige uma
sensibilidade especial. O educador deve ainda possuir capacidade para articular e
integrar num espao de vida coletivo () a diversidade de interesses e necessidades
(Portugal, 2009: 12), o que exige uma ateno e entrega permanentes na busca do
equilbrio entre os interesses da criana e aquilo que o adulto, de acordo com o currculo
e com a sua experincia e sensibilidade, considera essencial. Ainda na perspetiva de
28
Gabriela Portugal, o educador deve possuir a () capacidade para (re)construir
continuadamente o seu conhecimento sobre as crianas e sobre como aprendem
(Portugal, 2009: 12), atravs de uma preocupao constante em adequar e melhorar o
seu desempenho, que deve ser claramente apoiado na teoria, o que pressupe um
processo de aprendizagem incessante (Portugal, 2009: 12). Esta atitude educativa
permitir um envolvimento afetivo e de confiana com o grupo em geral, e com cada
criana em particular, sendo que, como defende a autora, Um educador aceder ao
significado e motivaes da criana, quando for capaz de estabelecer contacto com a
criana, ganhar a sua confiana, fazendo com que esta queira partilhar os seus
sentimentos, experincias e opinies. (Portugal, 2009: 13).
Ora, justamente no mbito da relao e da ao educativa, e de acordo com o Perfil
Especfico de Desempenho Profissional do Educador de Infncia, caber ao educador
nortear a sua relao com as crianas por um permanente incentivo ao desenvolvimento
da autonomia, que necessariamente se relacionar com valores como a confiana, a
responsabilidade e a autoestima, muito importantes na formao da identidade. No que
diz respeito ao incentivo da autonomia, o educador dever, desde logo, atribuir uma
ateno especial no que toca disposio e organizao dos materiais na sala de aula,
garantindo que as crianas conseguem autonomamente aceder aos materiais e realizar
atividades por iniciativa prpria. Por outro lado, dar s crianas a oportunidade de
proporem e desenvolverem projetos da sua autoria (embora o educador esteja sempre
disponvel para ajudar), que podero ter sido inspirados por um programa visto na TV,
por um livro ou revista, por um irmo, ou simplesmente por uma atividade ou
personagem admirada, assim como implic-las diretamente e de forma responsvel nas
rotinas dirias (uma criana desempenha por um dia um conjunto de responsabilidades,
como regar as plantas, fazer a chamada dos colegas, etc.), so formas de atribuir
responsabilidades s crianas, tornando-as progressivamente mais autnomas.
Tambm o fomento da cooperao solidria entre as crianas e a integrao plena
de todas no grupo pressupem a interiorizao de valores como a colaborao, o
respeito e valorizao do outro, a igualdade e a solidariedade, que se constituem como a
base da socializao e da vivncia democrtica. Tais valores devero ser abordados
numa perspetiva de educao para a cidadania, essencial para a formao da criana
como membro integrante de uma sociedade, desejavelmente ativo e responsvel. Os
valores democrticos podem surgir naturalmente, atravs de hbitos e regras como
29
esperar pela sua vez de falar, saber escutar, expor e justificar as suas opinies, respeitar
as opinies diferentes, entre outras, ou atravs de estratgias propostas pelo educador na
sua prtica pedaggica, como, por exemplo, a realizao de reunies para tomar
decises em grupo. Deste modo, segundo Portugal (2009: 14):
() uma prtica pedaggica adequada () inclui um acompanhamento por
parte de um educador responsivo, que apoia, informa, modela, explica, questiona, canaliza o interesse da criana para objetivos socialmente
desejveis, mas que no domina o pensamento da criana nem interfere na
sua liberdade de escolha, promovendo a sua autonomia, criatividade e empreendedorismo.
Um educador responsivo um educador atento e empenhado. O empenhamento (ou
ausncia do mesmo) do educador pode condicionar ou fomentar o desenvolvimento da
criana, pois, como assinala Carl Rogers (cit. por Bertram & Pascal, 2009: 136), [as
crianas] aprendem mais e comportam-se melhor em presena de nveis elevados de
compreenso, de interesse e de autenticidade do que quando estes se manifestam em
baixos nveis. Rogers identificou inclusivamente algumas das qualidades que devem
transparecer na atitude do educador e que facilitam a aprendizagem, nomeadamente a
sinceridade e autenticidade na relao com a criana; a aceitao e valorizao da
identidade do ser em crescimento e das suas opinies; e a compreenso emptica, que
pressupe a capacidade do educador para se colocar no lugar da criana, procurando
olhar as situaes do seu ponto de vista (cit. por Bertram & Pascal, 2009: 136).
Indiretamente, ao caracterizar a sua conduta por este conjunto de qualidades, o
educador est a transmiti-las igualmente s crianas, pois como sabido, na relao
com o outro que aprendemos muitas vezes a gerir as nossas prprias atitudes e a formar
os nossos prprios valores. Um educador sincero, autntico, que aceita e valoriza o
outro, que confia nele e o compreende, vai influenciar muito positivamente o
desenvolvimento das crianas, ao mostrar-lhes a importncia de serem elas prprias
autnticas e nicas; ao demonstrar-lhes que a vida em grupo ou em sociedade
enriquecida pela diversidade que proporciona, e que por isso h que valorizar aquele
que diferente de ns; ao incentiv-las, com a sua confiana, a avanarem, a fazerem
conquistas, a crescerem, a serem autnomas; e a mostrar-lhes que ser compreendido
exige que se compreenda tambm, para se poder viver socialmente num clima saudvel,
de partilha e harmonia.
30
Outro ponto fundamental a afetividade. Numa sociedade em que as relaes
enfraquecem e se tornam cada vez mais virtuais, por um lado, e menos seguras e
estveis, por outro, os afetos so frequentes vezes negligenciados. Ora, os afetos so
uma das bases da vida. Com efeito, como sabemos, os vnculos afetivos, o amor, a
amizade, as relaes familiares harmoniosas e tranquilas, so fatores determinantes da
felicidade individual e do bem-estar comum. A criana necessita de se sentir amada e de
ser incentivada a mostrar o seu amor. S assim encontrar um ambiente seguro para
crescer e desenvolver-se em plenitude e alegria, sem medo de arriscar, de ir mais alm,
pois compreende que qualquer eventual erro seu no coloca em risco o amor e o apoio
daqueles que a rodeiam. O educador deve, portanto, possuir a sensibilidade necessria
para perceber e acudir s necessidades afetivas das suas crianas, mostrando-lhes a sua
disponibilidade absoluta para responder s suas inquietaes e inseguranas, e
garantindo-lhes um espao de paz, de respeito, de carinho, de segurana, de confiana,
onde as emoes podem e devem ser vividas, e onde as crianas se podero sentir
vontade para expressarem livremente as suas opinies, as suas formas de pensar, sem
receio de serem criticadas. Desta forma se potencia o desenvolvimento do pensamento
crtico e divergente, tal como afirma Amlia Marcho (2011: 133):
No mundo atual, em que a globalizao o cenrio enquadrador dos
movimentos culturais, histricos e polticos, potencia-se a necessidade da pessoa usar o pensamento independente, por oposio ao pensamento linear,
dado que o primeiro permite a reflexo e o sentido crtico diante das
diferentes fontes de informao e, mais facilmente, permite reconhecer a
validade e a preciso dos dados com que a pessoa se confronta. ainda neste contexto que emerge e se elcita a utilizao do pensamento divergente.
Cabe ento ao educador criar oportunidades para mobilizar o pensamento crtico
das crianas, por um lado no que diz respeito s competncias a desenvolver ao nvel
das aprendizagens formais, mas por outro, e que aquele que mais nos interessa neste
ponto, numa perspetiva de fomentar o esprito crtico, interessado e curioso da criana,
que no se satisfaz com respostas vazias, que quer descobrir sempre mais e perceber o
funcionamento do mundo que a rodeia. O educador deve, pois, incentivar as suas
crianas a pensar sempre mais alm, a questionar, a procurar, e muito particularmente a
refletir. Pensar criticamente, como afirma Marcho, relaciona-se muito diretamente com
o conceito de pensamento divergente, por oposio ao pensamento convergente, que
caracterizou durante muitos anos a educao em Portugal, orientando os alunos para o
seguimento cego de ideias e formas de agir definidas superiormente como as corretas,
31
sem oferecer ou sequer possibilitar qualquer espcie de fuga s mesmas. Atualmente, e
muito particularmente tendo em conta a heterogeneidade que caracteriza o mundo
contemporneo, essencial educar as nossas crianas para pensarem por si, para no
seguirem pensamentos formatados, para fugirem ao esteretipo, para formarem a sua
identidade essencialmente na valorizao da diferena, na criatividade, na confiana, na
autonomia, na busca da verdade e da justia. S aqueles que possurem a capacidade de
pensar por si conseguiro formar construtivamente a sua identidade, pois orientaro os
seus modos de agir com base numa reflexo aprofundada e constante sobre aquilo que
consideram correto e que valorizam efetivamente.
No seguimento desta ideia, no podemos deixar de referir novamente a importncia
da educao esttica. Indo, no fundo, ao encontro do que o esprito crtico, a educao
esttica fomenta, justamente, a sensibilidade ao que belo, ao que novo, diferente e
criativo, por oposio ao que banal e vazio, ao que no nos desafia, ao que no nos
fora a ultrapassar constantemente os nossos limites. O educador deve, ento, ser ele
prprio sensvel esteticamente, e transmiti-lo s suas crianas atravs da seleo de
materiais esteticamente atrativos, interessantes e que motivem as crianas a ver muito
alm das primeiras impresses, mas tambm ao propor atividades que fomentem a
observao atenta, a formao e partilha de opinies fundamentadas, com vista
discusso rica e produtiva. As crianas interessam-se naturalmente pelo que novo, e
saber aproveitar esse interesse canalizando-o para materiais e experincias de qualidade
superior uma competncia que exige uma criatividade e sensibilidade muito
particulares, que o educador, mais do que ningum, deve possuir.
A literatura infantil, e em particular os lbuns para a primeira infncia, podem
revelar-se um recurso pedaggico precioso para o educador empenhado em contribuir
para a formao do gosto e da sensibilidade artstica das crianas que tem sua
responsabilidade e uma excelente oportunidade de abordar no s os valores estticos,
mas tambm os morais, sociais e democrticos. o que tenciono demonstrar em
seguida.
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CAPTULO II A LITERATURA INFANTIL COMO OPORTUNIDADE DE
ABORDAGEM AOS VALORES
1. Especificidade da Literatura Infantil e seu contributo para o desenvolvimento da criana
A literatura infantil tem vindo, nas ltimas dcadas, a assumir-se como um
subsistema literrio perfeitamente autnomo e legitimado pela teoria e pela crtica
literrias, sendo hoje consensual que se trata de um objeto de estudo de enorme
potencial, sujeito a abordagens crticas e a estudos cientficos e acadmicos que tm
permitido o reconhecimento da sua especificidade e da sua qualidade esttico-literria.
Os prprios educadores, professores, psiclogos e outros agentes educativos tm
vindo a reconhecer a relevncia da literatura especialmente dirigida aos mais novos para
o desenvolvimento global infantil, nomeadamente pela capacidade de assim se permitir
alargar a imaginao da criana (pr)leitora, de desenvolver o seu pensamento
divergente e a sua sensibilidade artstica e, naturalmente, a sua competncia leitora, ou
seja, a sua capacidade de extrair sentidos plurais dos textos que l ou ouve ler e alargar
o seu modo de ver o mundo e de nele se integrar, reconhecendo-se assim criana o seu
papel dinmico, ativo e interpretativo no que respeita ao ato de ler (ou ouvir ler) desde
tenra idade.
Longe vai, portanto, o tempo em que a criana era vista como uma mera miniatura
do adulto, sem que as suas caractersticas particulares, em termos de desenvolvimento
psicoemotivo e cognitivo, fossem minimamente reconhecidas ou consideradas.
Atualmente reconhecida criana a sua singularidade, primeiramente expressa na
Declarao Universal dos Direitos do Homem (Organizao das Naes Unidas, 1948),
que lhe atribui os mesmos direitos e liberdades do adulto, reconhecendo-lhe, no entanto,
o direito extraordinrio de receber proteo e assistncia especiais que lhe garantam,
nomeadamente atravs do direito educao, um desenvolvimento harmonioso.
Posteriormente, em 1959, este reconhecimento foi aprofundado pela Declarao dos
Direitos da Criana, que visa, em primeiro lugar, o direito a uma infncia feliz e ao
gozo, para bem da criana e da sociedade (Organizao das Naes Unidas, 1959). Na
verdade, como se pode no princpio 2. da Declarao dos Direitos da Criana:
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A criana gozar de uma proteo especial e beneficiar de oportunidades e
servios dispensados pela lei e outros meios, para que possa desenvolver-se
fsica, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudvel e normal, assim como em condies de liberdade e dignidade. (ONU, 1959)
Sendo a criana um ser em crescimento, natural, portanto, que possua algumas
limitaes culturais, vivenciais e outras decorrentes da fase de desenvolvimento em
que se encontra, mas tais limitaes so hoje em dia entendidas como naturais e como
fazendo parte do processo de desenvolvimento infantil, reconhecendo-se criana os
seus direitos e a sua singularidade. Aceite esta especificidade condicionante da criana
(que resulta do estdio de desenvolvimento psicoemotivo e intelectual em que esta se
encontra a priori, como nos demonstrou a Psicologia do Desenvolvimento,
nomeadamente atravs dos estudos de Piaget, Vigotsky e seus seguidores), seria, pois,
natural, que a literatura infantil se impusesse gradativamente como um territrio
artstico que valorizasse o Ser criana e que atendesse s diferentes fases do seu
desenvolvimento intelectivo, da sua maturidade socioafetiva e, naturalmente, dos seus
diferentes nveis de desempenho da leitura. E, na realidade, a produo literria para os
mais novos acompanhou a tendncia de valorizao da criana e inundou nos ltimos
anos o mercado editorial de obras de grande qualidade que se direcionam para os pr-
leitores, para os leitores iniciais, para os leitores medianos e para os leitores
autnomos2.
Aqui chegados, importa ento clarificar o que os especialistas nesta rea entendem
por literatura infantil e perceber qual a sua especificidade.
Na sua Teoria de la Literatura Infantil, uma obra incontornvel no quadro da teoria
literria neste domnio especfico, Juan Cervera (1992) apresentou uma definio que,
volvidos mais de vinte anos, continua a ser uma das mais concisas do fenmeno literrio
denominado literatura infantil. De acordo, pois, com o autor, a literatura infantil
toda a produo que tem como veculo a palavra com um toque artstico ou criativo e
como destinatrio extratextual as crianas (Cervera, 1992: 11), semelhana do que j
haviam assumido autores como Vtor Aguiar e Silva, em 1981, quando postulou que a
literatura infantil a literatura que tem como destinatrio extratextual as crianas
2 Esta classificao tem na sua base uma proposta elaborada pela equipa de investigadores e de crticos literrios que integraram o projeto casadaleitura.org, e que subdivide os leitores tendo em conta o seu grau de proficincia na leitura, proposta que vem substituir a classificao dos leitores (e dos livros supostamente que lhe seriam destinados) por faixas etrias, pois, como sabemos, duas crianas com a mesma idade tm diferentes nveis de desenvolvimento
da leitura, diferentes interesses e vivncias que no podero ser descurados no momento da seleo dos livros.
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(Silva, 1981: 11) ou Marisa Bortolussi, para quem a literatura para crianas a obra
artstica destinada a um pblico infantil (Bortolussi, 1985: 2).
Nestas definies de literatura infantil (ou literatura para crianas) sobressaem dois
critrios fundamentais: a dimenso artstica do texto e o pblico-alvo infantil.
Naturalmente que os interesses de leitura por parte das crianas devero ser tidos em
conta ( o prprio Cervera quem o defende (Cervera, 1984: 15)), mas no so os
interesses ou os gostos da criana que atribuem aos textos a sua literariedade. O
educador/professor deve estar por isso consciente que muitos dos livros apreciados pela
criana no possuem qualidade esttico-literria, apesar de tal no implicar, obviamente,
que se desvalorize as preferncias da criana. Pelo contrrio, at porque ela encontra
nos livros uma resposta s suas necessidades ntimas e afetivas (Cervera, 1992: 14), essa
relao afetiva com o livro no pode ser menosprezada; mas imprescindvel dar
criana alternativas de qualidade para que desenvolva a sua sensibilidade esttica e v
apurando o gosto.
Mesquita (1999), embora no se afaste desta noo, e destaque igualmente o papel
da literatura infantil na resposta s necessidades da criana, considera que a sua
finalidade primria promover na criana o gosto pela beleza da palavra, o deleite pela
criao de mundos de fico (Mesquita, 1999: 3), e assim alargar o capital lexical da
criana, promover a sua educao literria e estimular a sua entrada no mundo da
imaginao. Na verdade, o autor defende que a literatura infantil, como toda a obra de
arte, exerce influncia sobre o indivduo, neste caso a criana, contribuindo para a
formao do pensamento e apresentando-lhe representaes do real a partir de modelos
alternativos que contribuem para a sua construo pessoal e do mundo:
A literatura procura pr perante os olhos da criana alguns fragmentos de vida, do mundo, da sociedade, do ambiente imediato ou longnquo, da
realidade exequvel ou inalcanvel, mediante um sistema de representaes,
quase sempre com uma chamada fantasia. (Mesquita, 1999: 3).
Na sua reivindicao pela autenticidade artstica da literatura infantil, Mesquita
considerava, j em 1999, que seria fundamental, em primeiro lugar, revalorizar o
discurso literrio, abandonando de uma vez por todas os infantilismos e adotando um
discurso que permitisse identificar a literatura infantil como verdadeira literatura, sem
restries. Por outro lado, o autor destacava a necessidade de oferecer criana o
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contacto com obras abertas, assim designadas por Umberto Eco, que pela sua estrutura
possibilitadora de leituras mltiplas, asseguram ao leitor maior liberdade, na medida em
que lhe permitem intervir, diretamente, na reconstruo da sntese lingustica proposta
pelo sujeito-emissor (Mesquita, 1999: 5).
Tambm Juan Cervera destacava, em 1992, este aspeto, analisando-o do ponto de
vista da linguagem, e distinguindo, assim, a linguagem artstica da linguagem utilitria.
De acordo com o autor, enquanto a linguagem utilitria se caracteriza pela clareza,
procurando evitar ao mximo equvocos de forma a garantir uma compreenso
unilateral por parte de todos os recetores, a linguagem artstica aquela que, pela sua
ambivalncia e plurissignificao, favorece a diversidade de interpretaes, o que
possibilita a incluso do recetor no processo de (re)criao.
Esta uma nova forma de ver o texto, que torna a criana (pr)leitora numa
instncia constitutiva do texto artstico (Mesquita, 1999: 6), reconhecendo-a como,
mais do que destinatria passiva, uma recetora ativa, que no s recebe como interage e
atua sobre a obra, produzindo novos significados com base na sua criatividade e na sua
imaginao, preenchendo os vazios discursivos propositadamente deixados em aberto,
como defendeu Umberto Eco (1962). Essa perspetiva de Mesquita (e de tantos outros
seguidores da teoria de cooperao textual preconizada por Eco) visvel no seguinte
excerto: No texto literrio, se que literrio, sempre existe uma parte no escrita,
isto , espaos por resolver que estimulam a ao do leitor. (Mesquita, 1999: 7).
Deste modo, para que a criana possa efetivamente participar e apropriar-se do
texto, fundamental, em primeiro lugar, a sua cumplicidade para com a leitura. O texto
literrio para crianas faz parte, portanto, de um circuito comunicativo que se inicia no
emissor (o escritor) e que chega ao recetor infantil pela escrita literria, cabendo
criana a tarefa de lhe dar continuidade e de se apropriar do que leu (ou do que ouviu
ler). Se certo que a capacidade intelectiva da criana e a sua viso do mundo ainda
diferem das do adulto, por motivos bvios, no se pode, contudo, pensar que a
linguagem que lhe dirigida deva ser simplista ou infantilizante, at porque, como
defende Fraga de Azevedo, o discurso para crianas deve centrar-se na riqueza da
densidade semntica da linguagem literria (Azevedo, 2004: 6), pois s o contacto com
textos literrios de qualidade permitir o desenvolvimento da competncia literria dos
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mais novos. Mas naturalmente importante que seja uma linguagem percetvel e
apelativa para a criana, garantindo o seu envolvimento e cooperao.
Assim se compreende que o contacto precoce e sistemtico da criana com o livro
de qualidade uma mais-valia no seu processo formativo a vrios nveis. Para alm de
surpreender e de provocar deslumbramento, de alargar o capital lexical e estimular a sua
compreenso leitora, a literatura infantil permite criana, pela mediao da
ficcionalidade e da construo de mundos possveis, alternativos ao real, a compreenso
da realidade que a rodeia e um posicionamento crtico e judicativo face a essa mesma
realidade e face aos seus prprios modos de agir e de pensar. Atravs do livro, a criana
vai realizando avanos e conquistas no processo de (auto) conhecimento, de conexo e
de insero no mundo e na sociedade, mas tambm no seu universo emocional e
cognitivo (Veloso, 2005: 5). Alis, defende o autor:
() [a criana] um ser para quem a fico corresponde natural
necessidade de compreender o mundo. O que as histrias contam criana
permite um estilhaar de paredes de vidro que a limitam, levando-a a
penetrar num mundo que quer conquistar, mas tambm lanam luz em zonas obscuras do seu ntimo, clarificando dvidas, desfazendo medos,
construindo, enfim, uma identidade. (Veloso, 2005: 3)
Na realidade, pela sua (j referida) inexperincia de vida, a criana tem muitas
vezes dificuldade em identificar e compreender os seus sentimentos, emoes e
necessidades mais ntimos. Por isso, procura no livro momentos ldicos associados
descoberta do seu mundo interior e do mundo envolvente; ela quer crescer, mas pede-
nos segurana e afeto. (Veloso, 2005: 10). A literatura infantil tem a capacidade de ir
ao encontro desse mundo interior e de colocar sobre ele uma luz que permita criana a
tranquilidade e segurana de que necessita para um desenvolvimento harmonioso,
nomeadamente ao nvel da formao da sua identidade, mas tambm no que diz respeito
sua relao com a alteridade e com o mundo que a rodeia.
Deste modo, as histrias, lidas ou contadas, permitem criana a entrada no
mundo ficcional mas tambm uma compreenso do mundo circundante, na medida em
que confrontada com situaes vividas pelas personagens, assim como com os seus
diversos modos de atuao e com a forma como estes se refletem tanto nas prprias
personagens, como naqueles que as rodeiam. Ao projetar-se nessas personagens, que
vivem por vezes dramas pessoais ou enfrentam situaes de dvida ou conflito, a
criana aprende por si, ou atravs da mediao do adulto, que a vida nem sempre
37
linear e que os problemas com que se deparam as personagens (e porventura ela prpria)
podero ser resolvidos, o que apazigua medos e inseguranas prprios do estdio de
desenvolvimento em que as crianas em idade pr-escolar se encontram.
Assim, as histrias tm um papel decisivo na construo da identidade e na relao
com a alteridade, indo ao encontro dos receios e angstias das crianas. Se certo que
as histrias tradicionais maravilhosas vincavam sobremaneira a polarizao das
personagens (boas ou ms, inocentes ou malficas), facilitando o desejo de identificao
das crianas com as personagens cuja conduta era a considerada mais correta
(Bettelheim, 1998), a literatura infantil contempornea (e em particular os lbuns)
mais subtil na abordagem aos valores. A criana ter de retirar ilaes a partir de
histrias que, partida, no pretendem moralizar, mas sim ajudar o pblico infantil a
desenvolver o seu esprito crtico e reflexivo, e, naturalmente, o seu pensamento
divergente, pelas mltiplas possibilidades interpretativas que texto e imagem oferecem
ao (pr)leitor. o caso dos lbuns narrativos que fazem parte do projeto de
investigao-ao que implementei em contexto de Prtica e Interveno
Supervisionada, de que falarei mais adiante livros de grande beleza plstica e literria
mas que veiculam subtilmente valores, implicando a criana no ato da leitura na medida
em que, intuitivamente ou pela mediao do adulto, poder interpretar (e pronunciar-se
sobre) as mensagens veiculadas pelos livros e os valores que lhes esto implcitos3.
Naturalmente que, para alm da leitura, tambm a atividade de contar histrias
decisiva para o desenvolvimento global e harmonioso da criana. Ler e contar histrias
so, portanto, duas atividades que devem ser constantemente includas no plano de
atividades semanal de qualquer educador de infncia, concedendo-se particular destaque
Hora do Conto4 (uma rotina existente na sala onde foi realizada a PIS, mas que, por
explorar mais a leitura do que o conto, era designada como Hora da Leitura ou Hora
do Livro). Alis, Rui Marques Veloso refere-se influncia que o ato de ler e contar
histrias exerce sobre a criana, funcionando (tambm) como um banho lingustico
(Veloso, 2005: 5), tal como defendia Aguiar e Silva, em 1981, quando, referindo-se ao
3 Mas para alm deste contributo na compreenso do mundo e de si prprias, tambm de realar o papel do livro e das histrias no desenvolvimento da linguagem, nomeadamente por permitirem alargar o capital lexical da criana e a construo de frases progressivamente mais complexas, tal como preconizado quer pelas OCEPE quer pelas Metas de Aprendizagem. 4 Ftima Albuquerque reflete na sua Hora do Conto (2000) sobre a arte de contar histrias na escola e no jardim de infncia, destacando a magia e o encanto com que as crianas so envolvidas nesses momentos, mas que igualmente contribuem para o fomento e desenvolvimento do dilogo permanente entre crianas e com o adulto, e ainda para o
desenvolvimento articulado de variadssimas atividades pedaggicas.
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livro infantil, o perspetivava como um complexo e subtil laboratrio lingustico, na
medida em que ajuda a criana a conhecer a lngua materna, os seus mecanismos
sintticos, semnticos e pragmticos, e isso significa poder modelizar de forma mais
consciente e livre o mundo (Aguiar e Silva, 1981: 14).
Desta forma, o livro pode e deve acompanhar a criana desde tenra idade,
devendo estar ao lado do bibero, como afirma Rui Marques Veloso (2001: 3), por
um lado atravs da leitura realizada pelos pais e educadores (mediadores), que devem
promover um envolvimento significativo da criana com o universo lingustico, esttico
e literrio temperado por cargas afetivas permanentes (Veloso, 2001. 3); e, por outro,
ao colocarem ao inteiro dispor da criana o objeto-livro, fomentando a sua manipulao
e espontnea explorao por parte da criana.
No fundo, h que deixar que o livro fornea criana momentos de prazer, seja
atravs do simples toque e manipulao, do seu folhear, seja atravs da observao mais
ou menos atenta das ilustraes, o que lhe permitir fazer previses sobre a histria e
construir a sua prpria narrativa (em grande medida atravs da narrativa visual),
procedendo assim a criana a uma leitura do livro mesmo antes de saber ler. Nessa
medida, o dilogo intersemitico entre texto e imagem, devido complementaridade
entre as duas linguagens artsticas, facilita esse processo de deslumbramento e de
adeso ao livro, por parte da criana, ao mesmo tempo que promove a educao
esttico-literria e a compreenso da leitura, como procurarei demonstrar no subcaptulo
seguinte.
1.1. Relao texto-imagem no livro para crianas: a educao esttico-literria
A relao texto imagem nos livros para crianas tem sido nos ltimos anos alvo
de interesse e estudo por parte de numerosos autores5 que parecem reconhecer
ilustrao e forma como se relaciona com o texto verbal uma complexidade e
originalidade dignas de uma investigao mais aprofundada. Em simultneo, vimos
assistindo ao surgimento crescente no panorama editorial de obras que, justamente, se
apresentam na forma de uma simbiose entre o discurso literrio e o discurso pictrico,
em que se estabelece um dialogismo entre uma escrita necessariamente literria e
narrativa e um conjunto de formas visuais artsticas, duas componentes que, em
5 Destacam-se, entre outros, os nomes de Perry Nodelman (1988), Lawrence Sipe (1998), Maria Nikolajeva & Carole
Scott (2001) e Peter Hunt (2005).
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consonncia, produzem significao, promovendo um processo de comunicao
particular (Silva, 2006: 2): os lbuns.
De uma forma muito genrica, poderia justificar-se a importncia das ilustraes
numa qualquer obra de literatura infantil com o simples facto de, como afirma Sara Reis
da Silva, se assumirem como Fator promotor de (des)gosto em face do objeto-livro
(Silva, 2006: 1). De facto, inegvel o impacto das ilustraes no leitor infantil, e tanto
assim que, no raras vezes, assistimos a momentos de leitura dos mais pequenos que,
com a maior ateno e interesse, mas sem conhecerem o cdigo escrito, folheiam um
livro lendo o que transmitem as imagens que povoam as suas pginas, e conseguindo
facilmente resumir o livro, dizer quais as suas personagens, quais as peripcias pelas
quais vo passando, quais as emoes que vo experienciando, etc. Esta motivao inata
da criana confirmada por Teresa Mergulho, que destaca que a criana procede, de
forma natural, espontnea e intuitiva, mesmo sem a interveno de um adulto mediador,
explorao das imagens de um livro que lhe especialmente destinado (ou no).
(Mergulho, 2008b: 50).
Mas, quando aliadas ao discurso verbal, o papel das ilustraes assume uma
importncia maior, revelando-se estas determinantes ao nvel da perceo, na
descodificao e na concretizao dos sentidos explcitos e implcitos do discurso
verbal (Silva, 2006: 1). Na verdade, a noo de lbum pressupe efetivamente uma
relao de complementaridade entre os dois discursos, verbal e pictrico, em que se
estabelece um dilogo intersemitico entre dois modos de representao e de
significao da realidade (Mergulho, 2008a: 1). A singularidade do lbum6 reside,
alis, nesta relao de interdependncia, que resulta no facto de s ser possvel
compreender verdadeiramente a histria atravs da leitura dos dois discursos que a
contam, e que Perry Nodelman clarifica da seguinte forma: Uma vez que as palavras e
as imagens se definem e amplificam mutuamente, nenhuma to limitada ou ind