IAmorim O Registro

Embed Size (px)

DESCRIPTION

artigo

Citation preview

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    1/15

    XXVIII Encontro Anual da ANPOCS 2004

    Seminrio Temtico 15:

    Memria, patrimnio e sociedade: desafios contemporneos

    O registro de manifestaes culturais tradicionais ou:uma aventura pelos novos caminhos das polticas pblicas brasileiras.

    Lara Santos de Amorim

    Professora do Departamento de

    Antropologia da Universidade de Braslia.

    Agosto/2004

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    2/15

    2

    A Aventura antropolgica na arena poltica da sociedade global

    Publicaes1sobre a mais recente poltica brasileira de proteo dos bens culturais e

    do patrimnio intangvel nos revela um novo campo de atuao profissional doantroplogo, onde novos conceitos como referncias culturais tradicionais, iventrio

    registro, INRC, entre outros,apresentam-se como verdadeiros instrumentos tcnicos-

    cientficos de pesquisa capazes de garantir legitimidade a determinadas identidades

    culturais.

    A motivao para a elaborao deste artigo surgiu de um perodo de contato com

    alguns dos instrumentos de delimitao e identificao do que viria a ser esse novo

    conceito: o patrimnio imaterial ou intangvel. Mesmo sem ter tido a oportunidade de

    implement-lo, tive a chance de elaborar um projeto que pleiteava a abertura de um

    inventrio de referncias culturais tradicionais na regio do nordeste goiano, mais

    especificamente onde est localizado o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros o

    qual hoje considerado tambm patrimnio natural da humanidade.

    A experincia de elaborao e tentativa de implementao de um projeto de

    inventrio de referncias culturais tradicionais em uma regio que tem explorado

    intensamente o ecoturismo, revelou-me inesperados e aventurosos caminhos da poltica

    pblica que regulamenta o patrimnio imaterial no Brasil. No incio de 2003, um grupo

    de produtores culturais me procurou para elaborar um projeto de Patrimnio Imaterial

    com o objetivo de dar continuidade poltica de valorizao da cultura tradicional local,

    que j vinha acontecendo a partir de um festival de danas e msicas tradicionais

    realizado no povoado de So Jorge, na Chapada dos Veadeiros, h pelo menos trs anos.

    O projeto de inventrio significava para este grupo de produtores a consolidao de um

    trabalho de valorizao da cultura tradicional da regio, eles sabiam que implement-lo

    agregaria ainda mais valor ao trabalho cultural que vinham fazendo no povoado.

    E de fato, assim que o projeto do inventrio foi elaborado, foi apresentado como

    uma segunda etapa do evento cultural que j era realizado e imediatamente agregou

    mais valor ao festival, pois conseguiu da Petrobrs, com a chancela do Ministrio da

    1Ver:O Registro do Patrimnio Imaterial, Dossi de atividades da Comisso e do Grupo de Trabalho doPatrimnio Imaterial.Braslia: Iphan, 1. ed. 2000 e 2. Ed. 2003. Revista Tempo Brasileiro, Rio deJaneiro, n.147, out.-dez.,2001. Teixeira JGLC. Et al (orgs.) Patrimnio Imaterial, Performance Culturale (re)tradicionalizao. Braslia ICS/Unb: TRANSE/Unb, 2004.

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    3/15

    3

    Cultura, uma alta quantia para financiar a edio daquele ano (2003). Durante os dez

    dias de realizao do festival, todos falavam no inventrio: a imprensa, os jornalistas, a

    classe poltica e os produtores do evento. A rede Globo de televiso gravou um

    documentrio de 30 minutos de durao sobre o festival e deu especial destaque ao

    projeto do patrimnio imaterial. Mas diante de todo aquele entusiasmo, uma nicapergunta me mobilizava: quem sabia, de fato, o que seria este inventrio, afinal? No

    seria exagerado dizer que, naquele contexto especfico, todos os segmentos tinham

    interesse no inventrio, mas os nicos que estavam realmente comprometidos com o

    inventrio enquanto um instrumento tcnico de pesquisa eram os antroplogos

    envolvidos. E, vale lembrar, ainda estvamos estudando o INRC Inventrio Nacional

    de Referncias Culturais e nos preparando para um treinamento com tcnicos do

    IPHAN sobre o instrumento de registro elaborado pelo antroplogo Antnio Augusto

    Arantes. A equipe estava ainda em formao e aprendendo a identificar como

    poderamos realizar um trabalho etnogrfico traduzido em forma de uma poltica

    pblica de valorizao de manifestaes culturais tradicionais to dinmicas e vivas

    como a sussa, a catira, a folia, a caada da rainha ou o congo.

    Depois de terminado o festival de culturas tradicionais da Chapada, ficou claro

    para mim que os produtores culturais envolvidos no processo tinham uma idia muito

    vaga do que seria um Inventrio de Patrimnio Imaterial, e no o entendiam exatamente

    como um instrumento tcnico-cientfico de pesquisa servio da comunidade local. Isso

    no seria um problema concreto, se no fosse o fato de que o Inventrio seria

    implementado com recursos financeiros captados em nome de uma associao que

    produzia um festival de cultura tradicional. Assim, os produtores culturais seriam os

    principais responsveis pela gesto dos recursos que iriam financiar uma poltica

    pblica de patrimnio imaterial. E os antroplogos estariam, conseqentemente, sujeitos

    aos interesses de uma outra categoria profissional, no possuindo, portanto, nenhuma

    autonomia para atuar em nome da tcnica etnogrfica e da preservao da identidade

    cultural tradicional.

    Descrevo a experincia acima com o intuito de compartilhar com outros

    profissionais uma situao, que na minha opinio, ilustra um conflito de interesses.

    Mesmo que o projeto no tenha sido implementado pois o processo de captao de

    recursos se complicou , as disputas ali travadas devem ser entendidas como disputas

    que se estabelecem eu uma arena poltica, uma situao na qual a atuao do

    antroplogo deve ser entendida como pertencendo ordem de disputa por poder

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    4/15

    4

    simblico. Mas porqu poder, devemos nos perguntar? Porque necessrio assumir que

    o antroplogo (e tambm o arquelogo, o historiador, o gegrafo, entre outros

    profissionais) defender interesses que, muitas vezes, o produtor cultural, o profissional

    da arte e da comunicao, ou as lideranas polticas e religiosas locais no tero

    interesse em defender. Entendo que, neste caso, o profissional das cincias sociais ehumanas disputa com outras categorias profissionais sentidos e significados que

    costumam ser apropriados pelos diferentes sujeitos de acordo com seus interesses em

    jogo.

    No caso descrito acima, entendo que um antroplogo no deveria jamais ser

    confundido com a instituio na qual atua. Seu compromisso tico e profissional deve

    ser com seu referencial terico e tcnico, pois esta seria a nica forma de sua atuao

    em um campo de mltiplas disputas de sentido tornar-se fortalecida. E esta, na minha

    opinio, seria a nica forma do antroplogo e de outros profissionais da rea das

    cincias humanas e sociais respaldarem demandas de diferente natureza daquela dos

    simples interesses polticos e comerciais que envolvem os bens culturais na atual

    sociedade global.

    Entendo, portanto, que devem ser delimitados aqui, claramente, os campos de

    disputa de sentido. O atuao do antroplogo deve ser aquela que reconhece a noo de

    direitos de um determinado grupo social, capaz de mediar diferentes interesses em

    disputa. Mas para que tal mediao seja possvel, necessrio que o antroplogo entre

    na disputa no como indivduo, mas como um profissional capaz de representar um

    referencial terico e tcnico, prprio do campo da disciplina que advoga. Para isso, suas

    demandas devem estar respaldadas no prprio processo que regulamenta a poltica

    pblica.

    Se reconhecermos que foi a partir da regulamentao de uma poltica de

    identificao e homologao de terras tradicionais que diversas etnias indgenas

    puderam ser preservadas no Brasil, no caso da cultura imaterial, o processo se complica,

    quando observamos que a produo cultural uma rea de atuao profissional onde

    vrios outros grupos e interesses sociais se misturam.

    Em plena consolidao dos processos de produo de culturas hbridas

    associados transnacionalizao e concentrao geral do capital, a autonomia dos

    campos culturais no se dissolve nas leis globais do capitalismo, mas se subordina a elas

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    5/15

    5

    com laos inditos.2Segundo Canclini, na produo de bens culturais no cinema, nos

    discos, no rdio, na televiso e no vdeo, os empresrios adquirem um papel mais

    decisivo que qualquer outro mediador esteticamente especializado (crtico, historiador

    da arte) e tomam decises fundamentais sobre o que deve ou no deve ser produzido e

    transmitido; as posies destes intermedirios privilegiados so adotadas dando maiorpeso ao benefcio econmico e subordinando os valores estticos ao que eles

    interpretam como tendncia de mercado (...) 3.

    A disputa por interesses econmicos em detrimento de valores estticos que

    ocorre na produo da cultura contempornea descrita por Canclini anloga quela

    que ocorre no contexto de uma celebrao tradicional que est sujeita interesses

    diversos daqueles que defendem a perpetuao de valores culturais tradicionais. Mesmo

    reconhecendo a dinmica dos processos culturais, isto , admitindo que a produo da

    cultura ocorre num campo de disputa de sentidos com diferentes setores sociais

    envolvidos, ainda assim, no se pode negar que os interesses e tendncias dos mercados

    transnacionais afetam, atualmente, at mesmo as culturas tradicionais mais esquecidas.

    Portanto, todos os tipos de manifestaes consideradas folclricas e tradicionais

    pertencem hoje a um campo cultural de acirrada disputa simblica. As diferentes

    representaes de identidade, sejam elas nacionais, locais, ou regionais esto a procura

    de smbolos culturais ainda no saturados ou que indicam originalidade. Assim, as

    disputas simblicas que garantem identidade extrapolam o campo cultural e passam a

    acontecer tambm no campo econmico e poltico.

    Espao Pblico e Prticas Sociais de Produo Cultural

    Bourdieu (1993) introduziu no campo terico da sociologia os conceitos de habitus

    e de campo, negando tanto o objetivismo reducionista de algumas abordagens

    sociolgicas e estruturalistas quanto o subjetivismo das abordagens que explicam a

    produo dos bens culturais a partir de estruturas universais e, portanto, sem

    especificidade histrica, tais como tradies filosficas neo-kantianas ou a chamada

    fenomenologia social. Na abordagem de Bourdieu, o agente, ou seja, aquele que o

    2Canclini,N.G. Cultura hbridas, So Paulo: Edusp, 1997:52.3Idem, p. 62.

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    6/15

    6

    operador prtico das construes do objeto, opera a partir de princpios estruturas

    estruturantes e estruturadas organizadores de prticas e representaes que podem

    estar pragmaticamente adaptados aos resultados que busca sem que, entretanto, tenha

    conscincia dos fins a serem alcanados ou capacidade expressa das operaes

    necessrias para obter determinados fins.O agente de Bourdieu no seria um autmato a obedecer leis coletivamente

    orquestradas, mas aquele agente dotado de um senso prtico (sens pratique)que reage

    em situaes especficas de maneiras quase nunca calculadas, mas dentro de um

    processo onde comportamentos e valores foram internalizados no processo de

    socializao e na vivncia da prtica. Essa ao prtica do agente/ indivduo acontece

    dentro de um campo especfico de ao (field). O conceito de campo dinmico e

    procura situar o contexto concreto da ao. Cada agente ocupa determinada posio em

    um determinado campo e as relaes ali estabelecidas so tambm baseadas na

    competio por controle dos interesses e recursos que so especficos daquele campo.

    Os campos so, portanto, variados e devem ser compreendidos a partir de sua prpria

    disposio interna.

    A partir desta proposta metodolgica, Bourdieu estabelece os conceitos de capital

    simblico e capital cultural, com a inteno de distingu-los claramente da noo de

    capital econmico. O primeiro relacionado ao grau de prestgio acumulado e

    consagrao que determinado campo confere ao agente e o segundo s formas de

    conhecimento cultural e competncias dos agentes.

    Embora essas diferentes formas de capital possam ser convertidos mutuamente

    sob certas circunstncias, eles no so redutveis uns aos outros, pois o campo (field)

    um universo social com as suas prprias leis de funcionamento. Isso explica, segundo

    Bourdieu, porque a posse de capital econmicono necessariamente implica a posse de

    capital cultural ou simblico e vice-versa. Assim, para Bourdieu, no basta

    compreender determinado bem cultural a partir da anlise isolada de seu prprio campo,

    mas torna-se necessrio considerar a produo e os produtores dessa forma cultural, em

    termos de suas estratgiase trajetrias, sempre a partir do habitusindividual e coletivo

    dessa produo. Por fim, alm da posio objetiva dos agentes dentro de determinado

    campo, tambm deve-se analisar a posio do campo estudado dentro do amplo campo

    de poder.

    A preocupao de Bourdieu com a condio social da produo, a circulao e o

    consumo de bens simblicos, demonstra a sua definitiva percepo de como a relao

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    7/15

    7

    entre os diferentes campos denuncia relaes de poder onde so disputadas e afirmadas,

    de forma desigual e hierarquizada, diferentes expresses culturais. A legitimidade e

    reconhecimento, bem como a produo e manuteno de determinado objeto ou valor

    cultural, s pode se dar dentro desta rede que interliga os diferentes campos, sem

    esquecer, entretanto, que o princpio de legitimidade do campo de poder (field of power)costuma estar baseado no poder do capital econmico ou do capital poltico.

    No entanto, Bourdieu afirma que h campos de produo mais restritos que,

    mantendo uma autonomia relativa e gradativa dofield of power,se opem ao campo de

    large-escale subordinado s demandas do capital econmico. A autonomia de

    determinados campos acontece porque o campo se estrutura de tal forma que os agentes

    se sujeitam s demandas internas de seu prprio campo. Alguns autores acreditam ser o

    folclore uma das raras prticas culturais que estaria fora do campo de poder, admitindo-

    se, entretanto, que o campo cultural est, em geral, intimamente relacionado ao campo

    de poder (onde o capital econmico e poltico dominam). As produes culturais

    consideradas clssicas (ou o que se costuma chamar de alta cultura) estariam

    subordinadas ao campo de poder, mas manteriam relativa autonomia em relao s

    determinaes polticas e econmicas do campo dominante por estarem baseadas em

    interesses especficos, mais ligados ao capital simblico, acadmico ou cultural de seu

    campo (Bourdieu, 1993:15).

    O campo de large-escale, por sua vez, compreenderia a cultura de massa e

    determinadas formas de cultura popular, tais como cinema, rdio, televiso, fotografia,

    indstria fonogrfica, alguns gneros literrios, etc. Sustentadas por uma ampla e

    complexa indstria cultural, todas essas formas culturais estariam subordinadas ao

    capital econmico e embora sejam menos suscetveis experimentaes formais, esto

    sempre se renovando s custas dos campos mais restritos e menos subordinados ao

    capital econmico.

    Minha inteno no mbito deste artigo, indicar como uma cultura tradicional

    como a Folia do Divino Esprito Santo tambm est sujeita s amplas negociaes de

    sentido que fazem parte da dinmica dos processos culturais da sociedade

    contempornea. A partir da minha etnografia sobre a Folia da Roa na cidade de

    Formosa GO, exemplificarei, a seguir, alguns dos indcios deste tipo de dinmica que

    encontramos na produo e organizao de uma festividade religiosa como a Folia do

    Divino Esprito Santo.

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    8/15

    8

    A dinmica da tradio entre a comunidade de folies de Formosa -GO

    Quando analisadas a partir da conceitualizao proposta por Bourdieu, as folias sediferenciam entre si no que diz respeito a sua ligao com o campo de poder. Os folies

    expressam essa diferena por meio do conceito de tradio, sendo que alguns discursos

    destacam que a tradio mais enraizada seria justamente aquela que estaria menos

    subordinada ao campo de poder. Assim, de acordo com o discurso de alguns folies,

    parece-me que a folia tal como era no tempo que passou e no como no tempo

    presente est mais prxima do que se entende porfolia tradicional.

    Avanando nessa direo, pode-se afirmar que o campo de produo cultural da

    folia est o mais prximo possvel do que se define como folclore, pois a folia se

    manifesta como uma festa, um rito, um emaranhado de crenas, expresses estticas,

    performances, rezas e promessas que s fazem sentido, quando vislumbramos a tradio

    cultural a que pertencem. Em um primeiro momento, o tecido cultural que se manifesta

    atravs dos ritos encenados pela comunidade de folies da Folia da Roa da localidade

    de Formosa no parece ter relao imediata com um universo cultural onde o campo de

    poder dominante. Com isso quero dizer que um observador forasteiro pode participar

    de uma folia do Divino, ouvir o sapateado dos danarinos de catira at o sol raiar, comer

    a comida caseira nos pousos, acompanhar os longos cantos litrgicos, se divertir com os

    jocosos versos da moda-de-viola e, ao final, chegar a acreditar com profunda convico,

    que testemunhou uma manifestao folclrica to extica quanto desinteressada da

    interao com o campo de poder.

    Mas um segundo olhar, mais apurado, pode desfazer esta convico. Depois de

    uma convivncia mais contnua com a mesma comunidade, quando voltamos a

    participar do rito no ano seguinte, e nesse retorno, sempre caloroso e amigvel,

    reconhecemos nas mesmas faces, as mesmas expresses de alegria ou de angstia; nos

    mesmos ritos, os mesmos sentidos antes interpretados, as mesmas estruturas rituais

    antes identificadas, os mesmos acordes antes entoados. Encontramos tambm as

    novidades: a morte de um, o nascimento de outro, os conflitos, os interesses, a ascenso

    de um folio na hierarquia interna do rito, as fofocas, outras interpretaes bblicas

    extremamente elaboradas presentes nos versos, enfim, toda a dinmica de relaes e

    significados que fazem parte de uma comunidade ritual de pessoas.

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    9/15

    9

    J nesse primeiro retorno comunidade ritual, aquela primeira impresso de campo,

    o primeiro registro visual de uma expresso folclrica aparentemente imune relao

    com o campo de poder, comea a diminuir. Alm da aproximao ao contexto mais

    afetivo do grupo de folies, h tambm uma expectativa do grupo em relao presena

    do antroplogo entre eles. Uma das formas de demonstrar comunidade que percebi talexpectativa foi traduzida no ato de presente-los com fotos que havia feito na ltima

    visita festa. Mas sempre ficava desconcertada quando me perguntavam se as imagens

    em vdeo que eu havia captado iriam ser veiculadas na televiso.

    A Folia da Roa de Formosa que acompanhei desde 1998, era a folia perene do

    Divino que acontecia todos os anos na regio rural do municpio de Formosa,

    comeando sempre oito dias antes do dia de Pentecostes, e terminando em um domingo,

    cinqenta dias depois da Pscoa. Segundo os guiasde folia que entrevistei, a tradio de

    girarfolia acontece na regio h pelo menos meio sculo. Nos ltimos 25 anos, as folias

    perenes tanto da cidade como da roa, tm sido organizadas sistematicamente pelos

    devotos mais antigos. cada ano, um festeiro sorteado para ser o folio responsvel

    pela organizao da Folia da Roa. O giroacontece nas fazendas localizadas na regio

    do Vo do Paran, onde se encontra a conhecida e imponente cachoeira do rio Itiquira.

    Em 1960, essa mesma Folia da Roa foi proibida pelo clero local, o qual manteve a

    proibio durante um perodo de 15 anos. Este fato parece comprovar que apesar das

    folias serem tradicionais na regio, seu carter profano chegou a ameaar sua

    continuidade junto comunidade local.

    Com o passar do tempo, depois de dois anos acompanhando a Folia da Roa em

    Formosa uma pela metade e outra do comeo ao fim descobri surpresa que aquela

    manifestao que vinha definindo como tradicional no era, segundo o depoimento de

    alguns integrantes da comunidade, to tradicional assim. Em maio de 1999, durante o

    segundo giro que acompanhei na Folia da Roa de Formosa, fui convidada a participar

    de uma folia de tradio de verdade, que se realizaria em julho do mesmo ano na

    localidade de Santa Leocdia, localizada na margem esquerda do rio Paran. Segundo

    alguns depoimentos, a Folia de Santa Leocdia era uma folia mais parecida com as

    folias da roa tal como essas aconteciam no passado. Tratava-se de uma folia menor, de

    pequeno porte, onde a maioria dos participantes se conhecia. Diziam os mais velhos,

    que antigamente quem giravafolia carregava sua prpria tralhano lombo do cavalo e

    levava consigo o que podia carregar durante todo o giro. Era, de fato, o que ocorria na

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    10/15

    10

    Folia de Santa Leocdia: no havia nem caminho, nem nibus, para o transporte dos

    folies, de modo que s participavam da folia aqueles que tinham seu prprio cavalo.

    Como no poderia deixar de ser, s depois de iniciado o giro da Folia de Santa

    Leocdia em 15 de julho de 1999, entendi porque esta folia era considerada - por alguns

    integrantes da comunidade de folies de Formosa - mais tradicional do que aqueladenominada oficialmente tradicional. A Folia de Santa Leocdia revelou-se tambm

    para mim, uma folia diferente, menos na estrutura do rito do que na forma de produo

    da festa, mais especificamente no tocante ao grau de ligao com o campo de poder.

    Apesar de pertencerem mesma comunidade de devotos do Divino que

    participavam da Folia da Roa oficial da localidade de Formosa, o grupo de folies que

    percorreu o cerrado de Santa Leocdia, durante os dias secos de julho, era mais coeso e

    menos numeroso e seus organizadores menos atentos para o impacto visual da festa

    sobre os moradores e visitantes. A Folia da Roa oficial de Formosa, apresenta um

    volume maior de pessoas e um controle social do grupo mais acentuado, o que sugere

    uma relao mais estreita com o campo de poder. A equipe responsvel pela produo e

    organizao desta folia era composta por integrantes de uma famlia tradicional da

    regio, pequenos proprietrios de terra e com bom acesso ao capital simblico e

    intelectual da cidade. Ligados Igreja local, com trnsito entre as elites polticas e

    econmicas locais, os organizadores da Folia da Roa oficial de Formosa, no

    poupavam esforos para tornar a festa um grande acontecimento folclrico da cidade.

    Esse objetivo explicava porque a festa que conheci pela primeira vez fazia questo de

    reunir e atrair o maior nmero possvel de folies, explicando, tambm, porque eram

    necessrios nibus e caminhes cedidos pela prefeitura e cavalos emprestados por

    fazendeiros da regio para que o volume da tropa fosse grande a ponto de causar o

    impacto visual que eu mesma senti ao presenciar a festa pela primeira vez.

    Tradicionalmente, as folias realizam-se na ocasio em que o fiel decide pagar

    um voto de promessa divindade, o que pode ocorrer em datas diversas que variam

    entre pentecostes at mais ou menos final de setembro. Essa so as folias de promessa,

    uma vez que so realizadas com o objetivo nico de pagar a promessa do fiel. De outra

    forma, as folias perenes e anuais acontecem a partir de sorteios organizados pela

    comunidade local, geralmente associada ao clero da regio, repetindo sua programao

    a cada ano consecutivo. No caso da Folia de Santa Leocdia, Joo Taboca, o folio

    escolhido para organizar a festa daquele ano, havia sido sorteado. Ele almejava torn-la

    anual, uma vez que esta estava sendo realizada atravs de sorteio, em seu segundo ano

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    11/15

    11

    consecutivo. Notava-se, entretanto, que o organizador no contava com a estrutura e o

    aparato de produo do outro grupo que organizava a grande Folia da Roa de Formosa.

    O mesmo chegou a confessar-me que no era alfabetizado, deixando transparecer certo

    constrangimento quanto ao fato.

    Diante disso, entendo que a folia tem ganhado algum prestgio e relativa visibilidadeno mbito das novas narrativas e representaes culturais, cada vez mais atreladas

    modernizao, que vem atingindo cidades do interior ou do entorno goiano, tal como o

    caso de Formosa. Esse processo gera, paradoxalmente, uma disputa entre os diferentes

    grupos de folies da regio pelo statusde folia mais tradicional da cidade.

    O relato etnogrfico acima quer levar o leitor a compreender que existem, dentro do

    amplo espectro significativo que define hoje tradio e folclore, gradaes do que vem a

    ser uma tradio. Assim, o folclore revela-se no contexto da pesquisa empreendida, uma

    prtica cultural dinmica que parece estar entrando em contato cada vez mais acelerado

    com o campo de poderdefinido por Bourdieu.

    O Programa Nacional do Patrimnio Imaterial

    Voltemos portanto s aes que pretendem regulamentar uma poltica pblica de

    Patrimnio Imaterial no Brasil.

    A elaborao do Inventrio Nacional de Referncias Culturais - INRC pelo

    IPHAN, a partir do projeto piloto do antroplogo Antnio Augusto Arantes o Museu

    Aberto do Descobrimento significou um grande avano na direo da implementao

    de uma poltica nacional que pretende efetivar a responsabilidade do Estado na

    valorizao e legitimao de celebraes, formas de expresso, saberes e lugares

    significativos para a formao das identidades sociais no Brasil.

    De acordo com Arantes4, embora desde 1960, instituies como o IPHAN e o

    Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular j trabalhassem no sentido de valorizar o

    patrimnio cultural brasileiro (a cultura acumulada por geraes passadas, disponvel

    hoje como recurso), era necessrio fortalecer o aspecto de polticas culturais,

    inscrevendo no texto constitucional a responsabilidade do Estado em relao a uma face

    4Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 147:129/139, out.-dez., 2001.

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    12/15

    12

    menos visvel da cultura, ento denominada imaterial. Nesse sentido, o Decreto 3551,

    de 4 de agosto de 2000, criou o Registro do Patrimnio Imaterial e instituiu o Programa

    Nacional do Patrimnio Imaterial, dando um passo fundamental para que se

    consolidasse a responsabilidade do Estado no sentido de resguardar e estimular as

    celebraes, formas de expresso, saberes e lugaressignificativos para a manutenodas diferentes identidades sociais no Brasil. Assim, ao lado dos bens materiais de

    pedra e cal os bens de natureza imaterial passaram a ter reconhecimento legtimo por

    parte do Estado brasileiro.

    A atual poltica do IPHAN tem procurado estabelecer uma dinmica entre o

    meio acadmico e os profissionais da poltica pblica do patrimnio, acreditando numa

    interface entre tcnica e ao efetiva do Estado e nesse contexto que se insere a

    disputa de ordem poltica a qual me refiro neste artigo.

    Abre-se uma perspectiva para a investigao etnogrfica de referncias culturais

    tradicionais encontradas em determinado lugar e territrio que pode contribuir para

    delimitar e fortalecer a identidade contempornea de determinado grupo social. O

    inventrio de um conjunto de prticas que delimitam uma cultura tradicional como a

    folia, por exemplo, poder criar formas de aprofundar o conhecimento e a memria que

    esses brasileiros tm sobre si mesmos, fortalecendo sua auto-estima e garantindo

    legitimidade a quem pratica e perpetua essas tradies.

    Desde que o Programa do Patrimnio Imaterial foi criado, as experincias de

    inventrio e registro do patrimnio imaterial so ainda poucas e recentes. O trabalho de

    Dominique Gallois sobre os padres e composies que ilustram o sistema grfico

    kusiwa, a pintura corporal dos Wajpi, foi o primeiro a ser registrado como Bem

    Cultural de Natureza Imaterial. O ofcio das paneleiras de Goiabeiras Velha, em Vitria,

    E.S., que inclui a tradicional panela preta fabricada pelas mulheres paneleiras, foi

    registrado como Bem Cultural de Natureza Imaterial a partir da aplicao do INRC,

    com a superviso do IPHAN. H ainda, em processo conclusivo de registro, a Festa do

    Crio de Nazar e os vrios inventrios de cermica, viola-de-cocho, Bumba meu Boi,

    acaraj, entre outros, implementados pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura

    Popular CNFCP.

    Poucos trabalhos acadmicos tm sido publicados no sentido de ampliar uma

    reflexo sobre o tema. Na Universidade de Braslia, uma dissertao de mestrado

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    13/15

    13

    acabou de ser defendida este ano e faz uma reflexo preliminar sobre o tema do

    Patrimnio Imaterial a primeira tese da UnB sobre o assunto5.

    O fato que, com exceo do sistema grfico dos Wajpi, os inventrios que

    foram e esto sendo implementados atualmente contam com a surpeviso do IPHAN e

    do CNFCP, instituies que representam o Estado brasileiro. E uma poltica pblica depatrimnio imaterial com envergadura nacional no poder ser implementada sem

    contar com a parceria de associaes da sociedade civil e agncias estatais. Entretanto,

    quando este processo de parceria for instalado, o antroplogo, ao assumir o papel do

    profissional que dever coordenar um Inventrio, estar certamente diante de uma arena

    de disputa poltica por recursos e interesses que deveriam estar bem equacionados e

    respaldados pela prpria poltica do Patrimnio Imaterial. Caso contrrio, os difceis e

    tortuosos caminhos dos recursos pblicos e dos interesses polticos locais e

    institucionais podero comprometer um trabalho de pesquisa que tem como principal

    objetivo a legitimao e a perpetuao de culturas e tradies e de suas respectivas

    comunidades.

    Concluso

    Ao apresentar uma situao de disputa por recursos e sentidos que envolvem um

    Projeto de Patrimnio Imaterial, procurei problematizar a arena poltica na qual esta

    sendo desenvolvida a mais recente poltica do Patrimnio Imaterial o mesmo pode ser

    dito sobre outras polticas ligadas proteo do conhecimento tradicional e da

    propriedade intelectual na sociedade brasileira. Ao situarmos o papel do antroplogo

    como um mediador de interesses numa arena poltica, assumimos que este novo e frtil

    campo de trabalho que se abre para as pesquisas antropolgicas envolve culturas

    dinmicas e instrumentos de pesquisa que devero ser negociados num arranjo em

    contnua construo e (des)construo.

    Lembro, portanto, a seguinte afirmao de Eric Wolf sobre a natureza da cultura:

    5Garcia, MVC. De O Belo e o Velho ao Mosaico do intangvel. Aspectos de uma potica e de algumaspolticas de patrimnio. Dissertao de Mestrado, DAN/UnB, 2004.

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    14/15

    14

    ... sociedades e culturas no devem ser vistas como dados,integrados por alguma essncia interna, mola mestreorganizacional ou plano mestre. Os conjuntos culturais econjuntos de conjuntos esto continuamente em construo,desconstruo e reconstruo, sob o impacto de mltiplos

    processos que operam sobre amplos campos de conexes

    culturais e sociais.6

    Reconhecendo a cultura como uma acomodao de partes distintas ou como

    um arranjo mais ou menos funcional, devemos nos preparar para o desafio de

    negociar os sentidos culturais em rpido processo de transformao e apropriao

    simblica com mais conscincia de que esta uma negociao poltica de sentidos e

    que, por isso mesmo, os divergentes interesses (nem sempre sero divergentes) dos

    diferentes agentes deste processo devem ser identificados e enfrentados com coerncia e

    transparncia.

    6 Antropologia e Poder/ Wolf Eric. Feldman-Bianco B. e Ribeiro, GL.(orgs.) Braslia: Editora

  • 5/23/2018 IAmorim O Registro

    15/15

    15

    BIBLIOGRAFIA:

    BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Miriam vila, Eliana Reis, Glucia

    Gonalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

    BOURDIEU, Pierre. The field of cultural production. New York: Columbia

    University Press,1993.

    BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simblicas. Srie estudos. Trad. Srgio

    Miceli. So Paulo: Perspectiva, 1998.

    CANCLINI, Nstor Garcia. Culturas hbridas, So Paulo: Edusp, 1997.

    GARCIA, MVC. De O Belo e o Velho ao mosaico do intangvel. Aspectos de uma

    potica e de algumas polticas de patrimnio. Dissertao de Mestrado, DAN/UnB,

    2004.

    HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da

    Silva, Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

    PATRIMNIO IMATERIAL. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,

    147:129/139, out.-dez., 2001.

    REGISTRO DO PATRIMNIO IMATERIAL, Dossi de atividades da Comisso e

    do Grupo de Trabalho do Patrimnio Imaterial.Braslia: Iphan, 1. ed. 2000 e 2. Ed.

    2003.

    TEIXEIRA, JGLC. Et.al. (orgs). Patrimnio Imaterial, Performance Cultural e(re)tradicionalizao. Braslia ICS/Unb: TRANSE/Unb, 2004.

    Universidade de Braslia: So Paulo: Editora Oficial do Estado de So Paulo: Editora Unicamp, 2003.