Upload
lambao
View
217
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1200301056I111'" I 11"I" I 1II" II 1/"" II 111I1I11I
OS CAMINHOS DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL (LRF):
INSTITUIÇÕES, IDÉIAS E INCREMENT ALISMO
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Orientador Dr. Fernando Luiz Abrucio
Profa. Dra. Maria Rita Loureiro Durand
Prof. Dr. Cláudio Gonçalves Couto
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGASESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO
CLAUDIA YUKARI ASAZU
OS CAMINHOS DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL (LRF):
INSTITUIÇÕES, IDÉIAS E INCREMENT ALISMO
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação da EAESP/FGV como requisito paraobtenção do título de mestre em AdministraçãoPública e Governo.Área de Concentração: Finanças Públicas
Fundação (;etuUo Vargas •Esc.oia de Administração ~ ~
~ rte Empreoas de SI" Paulo (~~BiblioteCA ~
(")
~~N<,C.DLO~
Orientação: Prof. Dr. Fernando Luiz Abrucio
1200301056
SÃO PAULO
2003
Escola de Administração deSEmpresas de São Paulo
Data N° de Chamad~
05 05 ~b.trS(&~._- To-;b~ A4q~c...
jOsçj.2003 'Qt .e .1-
AGRADECIMENTOS
Eu devo o presente trabalho, que conclui meu mestrado de três anos e um esforçoconcentrado de criação dissertativa de dois meses, a inúmeras pessoas, algumas das quaisgostaria de mencionar.
Em primeiro lugar, agradeço ao meu querido mestre, professor Fernando Luiz Abrucio.Entre análises sobre a última performance do Corinthians e sobre as medidas fiscaisadotadas nos últimos anos, este trabalho só foi possível com a sua preciosa orientação eseus inúmeros rabiscos nos primeiros trabalhos.
Em segundo, agradeço profundamente à EAESP!FGV e à CAPES, que me possibilitaram ofinanciamento de dois dos três anos desta empreitada. Aos funcionários da Biblioteca, quefreqüentei quase diariamente durante o mestrado, o meu especial agradecimento.
À professora Maria Rita Loureiro Durand e ao professor George Avelino, gostaria deexternar a minha mais profunda gratidão pelas aulas e pelo convívio fora delas. Aoprofessor Francisco Vignoli, agradeço pela atenção em compartilhar seus conhecimentossobre Finanças Públicas. A José Roberto Afonso agradeço pelo tempo dedicado emresponder ao meu questionário.
Aos colegas de mestrado e: de biblioteca, em especial Fátima, Eduardo, Dani, Hiro,Fernando e Elaine, a minha gratidão pela convivência, pela troca de idéias e pelo apoiomútuo na dor e na alegria de escrever uma dissertação.
À minha amiga Denise Delboni, agradeço pelos almoços, pelas conversas bastantesprodutivas e pela parceria nos papers.
Dedico este trabalho à minha família, que entre uma compreensão infinita e críticas umtanto amargas que só familiares conseguem fazer, nunca deixou de me apoiar nestes longostrês anos.
Por fim, a Yoshinori, Érica, Andrea, Kátia, Akemi e Agostina, um agradecimento carinhosopela paciência, pela amizade e por me fazerem sempre acreditar que no final tudo dá certo;se não deu, é porque não se chegou ao final.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO I
INSTITUIÇÕES E PROCESSO DECISÓRIO: LIMITES E POSSIBILIDADES 9
, 1. O processo político brasileiro: entre a fragmentação e a coesão 12
2. O papel das idéias e o decision-making como aprendizado 23
CAPÍTULO II
O PANO DE FUNDO FEDERATIVO: DO DESARRANJO AO
REORDENAMENTO 26
1. O choque da crise da dívida externa e o desajuste federativo 28
2. A virada no jogo federativo e a nova configuração de poder
2.1 Os antecedentes do Plano Real.. 37
2.2 O Plano Real, a centralização de poder da União e a fraqueza dos Estados 41
3. Ajuste fiscal pós-Real: incrementalismo e path dependence 56
CAPÍTULO III
A TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA DA LRF: INSTITUIÇÕES E IDÉIAS 65
1. A relação Executivo-Legislativo 68
2. A mídia e a LRF 83
3. A construção do consenso no Legislativo 86
4. Conclusão 91
CONSIDERAÇÕES FINAIS 92
BIBLIOGRAFIA 96
INTRODUÇÃO
"Política Literária"
o poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal
Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.
Carlos Drummond de Andrade
o tema ajuste fiscal incorporou-se à agenda política brasileira nos anos 90, tendo a
redução do déficit público, a partir de então, se tomado issue premente para- garantir a
estabilidade econômica. O presente trabalho constitui um esforço tentativo de análise do
ciclo de ajuste fiscal brasileiro desse período, com ênfase em um de seus pontos cruciais: a»>
Lei de Responsabilidade Fiscal.
Constitui objeto desta pesquisa o processo de aprovação da LRF e seus
antecedentes, um período compreendido entre 1993 e 2000. Seu objetivo é demonstrar que
o ciclo de mudanças na área fiscal, iniciado na era FHC, foi resultado 1) de profundas
mudanças na distribuição de poder e de recursos no plano federativo (em prol da União) a
partir de 1993/1994, 2) de path dependence e "incrementalismo", ou seja, de medidas que
foram gradualmente implementadas e que, a cada vez, limitavam a tomada de decisão
seguinte à idéia de ajuste e 3) de um processo de aprendizado social e político, ressaltando-
se o papel Idas idéias (HALL, 1993) e do acúmulo de experiência. Destaca-se neste trabalho
os dois últimos aspectos -a idéia de path dependence e de aprendizado político, sem
entretanto, esquecer a dimensão federativa da questão. Trata-se de um estudo que perpassa
pela análise dos atores políticos envolvidos, das arenas decisórias, da interação entre a,-
burocracia e a política e do papel das idéias.
2
A problemática que motivou esta pesquisa procurou responder à seguinte pergunta:
as mudanças na área fiscal decorreram de aprendizado? Se sim, como e, mais importante,
por que se sucedeu ele?
O período de 1982 a 1994 se caracteriza pelo grave desarranjo fiscal, tendo como
pano de fundo o esgotamento do modelo econômico até então vigente e o enfraquecimento
do governo federal sobretudo no plano das relações federativas. Em termos gerais, pode-se
afirmar que duas grandes crises marcam esse período: a crise da dívida externa na década
de 80, que veio à tona em 1982, com o corte quase integral do financiamento internacional
por parte dos bancos privados, e a crise da dívida interna, nos anos 90, resultante do
descontrole fiscal que havia se instaurado na década anterior e que se tomara mais patente
com o controle da inflação a partir de 1993. Ao mesmo tempo, falava-se também em crise
institucional: nenhum dos cinco planos de estabilização anteriores ao Real se mostrara
sustentável e insistia-se que as causas da ingovernabilidade se deviam à estrutura decisória
no país (MAINW ARING, 1993). O referendo realizado em 1993 para decidir sobre qual o
regime de governo a ser adotado -ou mantido- parecia ser o resultado dessa perspectiva
negativa a respeito das instituições políticas brasileiras.
Renegociadas as dívidas com os parceiros internacionais, a partir da década de 90 os
fluxos financeiros retomam ao país, gerando certa folga. Tratava-se de uma primeira
mudança nesse cenário. Deflagrava-se, por outro lado, a crise das dívidas estaduais,
resultantes do fim do mecanismo de float dos orçamentos, que mascarava, com a inflação, a
gravidade dos déficits e do excesso de comprometimento dos balanços com gastos não-
financeiros.
Nesse contexto, segundo o diagnóstico prevalecente à época, fazía-se urgente a
adoção de medidas de equacionamento dos problemas fiscais. O ano de 1993, com 'a
nomeação de Fernando Henrique Cardoso ao Ministério da Fazenda, marcou o início das
mudanças no âmbito fiscal.
O que impulsionou tais mudanças? Em primeiro lugar, a reviravolta do desarranjo
federativo. Assistiu-se, a partir desse período, ao fortalecimento das prerrogativas fiscais do
governo central em detrimento do enfraquecimento dos Estados. Respaldado pelo sucesso
do Plano Real, o poderio que a União chamava para si contrapunha-se ao "caos federativo"
3
que se instalava, num cenário em que os Estados anunciavam sua bancarrota: investimentos
eram paralisados, o pagamento dos salários de seus funcionários era adiado e greves se
sucediam. Tal situação conferiu ao presidente legitimidade para constituir-se como força
propulsora das mudanças que propunha e neutralizar o veto dos "barões".
Por outro lado, verificou-se a emergência de novas concepções a respeito das causas
inflacionárias (PIO, 2001). No plano fiscal, em particular, tomou-se consenso entre os
economistas que compunham a equipe que formulou o Plano Real a necessidade de
equacionar os problemas dessa área atacando o que era considerado sua raiz: a rigidez das
despesas com pessoal ativo e inativo, que apresentava déficits crescentes a níveis sem
precedentes. Era preciso também "pôr os pingos nos is" das relações fiscais entre a União e
os demais entes federados e criar lei que regulamentasse o art. 163 da CF, disciplinando as
finanças públicas no país. Ressalta-se também que o Plano Real, bem como as medidas
fiscais implementadas posteriormente, basearam-se em grande nos erros e acertos de planos
e ações anteriores, mostrando o resultado de um aprendizado, como procurarei mostrar
mais adiante.
°ajuste fiscal tomou-se, assim, núcleo duro da agenda política a partir de 1993, e o
reordenamento das relações federativas passou a ser um ponto central. Como se sabe,
mudanças na dinâmica fiscal impõem não apenas perdas concentradas e ganhos difusos em
termos, digamos, quantitativos, como aponta SHICK (1993), como também perdas
imediatas e ganhos de prazo longo e incerto, em termos temporais, dificultando sua
implementação. Implicam, em vista disso, o comprometimento de (ou a capacidade de fazer
comprometer) múltiplos atores do jogo federativo, estando qualquer tentativa de ajuste, do
contrário, fadada ao fracasso, como se verificou ao longo da década de 80. Reforça-se aqui
a idéia de que mudanças na área fiscal constituem basicamente uma questão federativa, e õs
resultados positivos obtidos nessa área no período analisado deveram-se, em grande parte, à
"virada" do jogo federativo em prol do Executivo federal. Vejamos.
As perspectivas políticas a partir de 1993 passavam a acenar positivamente para a
promoção das reformas. A despeito dos traços fragmentadores do decision-making no
Brasil resultante do sistema federativo que dificulta a tomada de decisões por parte do
Executivo, de-regras eleitorais que levam a um multipartidarismo exacerbado e predatório e
4
da estrutura política que incentiva o comportamento individual e auto-interessado dos
parlamentares (MAINWARING, 1993), a eficácia do Plano Real assegurou à gestão FHC,
pelo menos num primeiro momento, nível de coesão e coordenação sem precedentes na
história política nos 20 anos de redemocratização, consolidando bases para um
presidencialismo de coalizão "robusta". Tal se sucedeu pelo o apoio dos maiores partidos
no Congresso -PSDB, PMDB, PFL, PTB e PPB-, garantindo ainda uma esfera de
influência maior do Executivo sobre as mesas diretoras e o colégio de lideres no Congresso,
principallocus decisório no Legislativo (LIMONGI & FIGUEIREDO, 1998; LOURE1RO
& ABRUCIO, 2000).
° sucesso do Plano Real garantiu, ádemais, legitimidade ao presidente FHC e sua
equipe para levar a diante sua agenda, neutralizando eventuais vetos e moldando as
preferências dos diversos atores do jogo federativo, uma legitimidade que nenhum dos
presidentes civis anteriores havia conseguido assegurar por muito tempo.
Em 1994, a mensagem que encaminhou a MP que criou a URV definia o programa
de estabilização como um plano de três fases, contemplando o "estabelecimento em bases
permanentes do equilíbrio das contas do governo" como prioridade (Exposição de Motivos
n° 47 da MP n° 434/94). Inicialmente, medidas pontuais como a criação do Fundo Social de
Emergência (FSE), posteriormente denominado de FEF (Fundo de Estabilização Fiscal) e o
aumento de receitas provenientes de impostos e contribuições sociais não compartilhados
com Estados e Municípios deveriam sanear as contas no curto prazo. No longo prazo,
reformas de caráter estrutural (nas áreas Tributária, Previdenciária e Administrativa)
garantiriam as "bases permanentes" desse processo.
Tais iniciativas constituíam, em larga medida, uma contra-agenda da ordem fiscal
estabelecida pela Constituição de 1988. As mudanças nos regimes trabalhistas do setor
público e a expansão dos beneficios previdenciários, disposta na Carta Magna ao longo dos
quase 80 artigos relativos a essa matéria, resultaram em saldos negativos crescentes nas
contas públicas. Ademais, a descentralização fiscal cristalizada pela Constituição
incentivou comportamentos predatórios nas relações fiscais entre União e entes federados e
alimentaram um processo de endividamento irresponsável crescente (ABRUCIO & Costa,
1999), uma das distorções que medidas como a Emenda Constitucional n° 3, o Senado
5
(embora não muito bem sucedido, como veremos) e a criação de uma lei como a LRF
procuraram corrigir.
Mesmo estabelecidas as medidas de estabilização monetária em 93/94, porém, o
cenário fiscal ainda não era nada animador. Apesar do esforço de arrecadação e de
concentração dos recursos distribuídos, a melhora nos saldos fiscais não foi significativa,
principalmente por conta do aumento considerável das despesas rígidas, ou seja, gastos com
pessoal e previdência social e despesas vinculadas, que engessavam o orçamento federal,
gerando pressões sobre as contas fiscais.
Houve, por outro lado, avanços significativos a partir desse período. A principal
"torneira" de financiamento dos Estados -a emissão de títulos por parte de bancos estaduais
para cobrir seus rombos de caixa- foi fechada com o processo de saneamento dessas
instituições. A Emenda Constitucional n° 3 constitui um primeiro passo no sentido de
limitar o endividamento predatório dos entes subnacionais. A partir desse processo,
criaram-se bases para negociar contrapartidas fiscais dos Estados, que teriam, para
conseguirem renegociar suas dívidas com a União, que cumprir regras de ajuste nas contas.
A promulgação da Lei Camata, em 1995, buscou conter o avanço dos gastos com o
funcionalismo, impondo tetos de gastos com pessoal do Executivo nas três esferas da
federação. Na tentativa de reverter o déficit na balança comercial, foi aprovada em 1996, lei
desonerando a exportação de produtos semi-elaborados do ICMS, apesar das queixas dos
governadores contestando os mecanismos de compensação de perdas.
Por outro lado, fechava-se uma torneira e abria-se outra. A emissão de títulos e
autorizações de endividamento (feitas junto ao Senado) para pagamento de precatórios
passou a ser um mecanismo de financiamento disfarçado, o que somente veio a ser
controlado com maior rigor com as repercussões da CPI dos Precatórios (1996 a 1999).
No plano federativo, Estados, em especial São Paulo, Paraná e Bahia, governados
por partidos aliados ao presidente, acirravam a chamada guerra fiscal. Duas CPls -a do
Orçamento e a dos Precatórios- com grande destaque na mídia, apresentaram resultados
aquém dos esperados e subtraíam a legitimidade do Congresso, embora tenham contribuído
enormemente para dar visibilidade a esses problemas. A disputa entre o Judiciário, que
buscava garantir aos seus servidores aumentos, e o Executivo também tinha efeito danoso
6
sobre a imagem do primeiro, mas contava "pontos positivos" ao Executivo.
Responsabilidade fiscal parecia, nesse contexto, ter um forte apelo moral.
Entretanto, nem todas as iniciativas do Executivo federal lograram sucesso face à
nova realidade federativa. Apenas para fazer um contraponto analítico, a reforma da
Previdência, iniciada em 95, se processou de forma errática e só veio a ser aprovada três
anos e nove meses depois (lembrando que essa reforma, por alterar dispositivos
constitucionais, requeria 3/5 dos votos, quando a LRF, uma lei complementar, exige
50%+ 1), com o conteúdo original bastante modificado e sem conseguir atingir a principal
fonte dos déficits e das distorções, a Previdência Pública. É bem verdade que o governo foi
bem sucedido na desconstitucionalização de alguns dispositivos, o que permitiu, por
exemplo, recorrer à legislação ordinária para instituir a cobrança de contribuição dos
inativos (MELO, 2002). Entretanto, o esforço se revelou inútil, tendo em vista que a
medida foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal.
° processo que envolveu a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal seguiu um
caminho menos tortuoso. ° projeto iniciou-se em 1997, no BNDES, em conjunto com o
Ministério da Fazenda e o Banco Central, todos alinhados à idéia do ajuste fiscal. A
Emenda Constitucional n? 19, de junho de 1998, estipulou a apresentação desse projeto de
lei até dezembro desse ano. Ele foi inicialmente apresentado em forma de anteprojeto, já
com nome de "Lei de Responsabilidade Fiscal", inspirado no ''Fiscal Responsibility Act"
da Nova Zelândia no final de 98, sendo encaminhado ao Congresso em abril de 99, com
grande cobertura (favorável), principalmente dos jornais diários.
Ao contrário do que se verificou no processo de reforma da Previdência, por
exemplo, o Executivo pôde fazer amplo uso de seu poder de agenda (e utilizar o pedido de
formação de comissão especial e do pedido de urgência na Câmara) para agilizar -a
aprovação. Nas duas Casas legislativas, o projeto conseguiu votação expressiva: na
Câmara, obteve 385 votos a favor, 86 contra e 4 abstenções -eram necessários 257 votos-
e, no Senado, 60 votos a favor, 10 contra e 3 abstenções.
Promulgada, o Judiciário rejeitou liminarmente as Ações Diretas de
Inconstitucionalidade (ADIns) impetradas pelos partidos de oposição, mostrando-se
cauteloso com relação à matéria. Como colocou o presidente do STF, ministro Marco
..
7
Aurélio de Mello, o tribunal tem marchado com muita cautela com relação a essa lei, pois
percebe que ela é um avanço em termos de Administração Pública".
O que explica o comportamento diverso dos atores políticos?
A mudança nas relações federativas e na dinâmica da distribuição de poder e
recursos em favor da União, como se falou, tiveram peso decisivo. Mas não o explicam por
completo. Nesse sentido, atenta-se para o fato de que o processo decisório no caso da
aprovação da LRF foi resultado de um "social learning" (HALL, 1993), ou seja, de um
aprendizado gradual envolvendo os diferentes atores políticos no sentido de aceitar a idéia
de mudança.
HALL define social learning como uma tentativa deliberada de ajustar os objetivos
e instrumentais da política (palicy) em resposta às experiências passadas e novas
informações. Tendo como foco empírico as políticas macroeconômicas ocorridas na
Inglaterra entre 1970 e 1989, o autor estabelece três ordens de mudanças no processo de
aprendizado. A primeira ordem diz respeito a mudanças incrementais: pontuais,
pertencentes à rotina da administração pública. A segunda ordem de mudança se dá por
meio do desenvolvimento de novos instrumentais políticos que, por sua vez, abrem
caminho para ações estratégicas. Por fim, mudanças de terceira ordem, que representam a
mudança de paradigmas, de~loci decisórios, de aprendizado via tentativa e erro que
resultam de debates públicos que se tomam políticos (com efeitos eleitorais) e incorporam a
agenda política .
.A análise empírica do ciclo de ajustes fiscais que culminou com a aprovação da
LRF, grosso modo, mostra que se sucederam os três níveis de mudança, ressaltando-se
também o caráter incremental desse processo. O Plano Real, a Lei Camata, a CPI dos
Precatórios, a renegociação das dívidas dos Estados e a LRF enquadram-se nas três ordens
de mudanças, promovidas de forma incrementaI, tal como a sedimentação de "camadas
geológicas" (LOUREIRO & ABRUCIO, 2002).
Assim, busca-se mostrar neste trabalho que o sucesso do ciclo de mudanças na área
estritamente fiscal não resultou de reformas do tipo "once for alI", como se buscava nas
reformas Tributária e Previdenciária, mas de medidas gradualmente implementadas. As
idéias e o consenso em tomo delas, as mudanças de preferências dos diversos atores em
8
razão da distribuição de recursos e das "opiniões de legitimidade" têm igualmente papel
decisivo nesse processo. Não por outra razão o projeto da LRF passou por uma tramitação
rápida e com votação expressiva e tampouco vem sofrendo "interferências" por parte do
Judiciário.
Não se nega o peso das instituições nesse processo. Pelo contrário. As instituições
têm papel central nos processos decisórios. Mas busca-se aqui enxergá-las dentro de seu
contexto, sem esquecer que, sob os mesmos constrangimentos institucionais, verificam-se
diferentes resultados, preferências distintas, politicas diversas.
Este trabalho se divide em cinco partes, incluindo esta introdução. O Capítulo I
aborda sobre os efeitos das instituições sobre o decision-making político e as possibilidade
e as limitações analíticas das abordagens "puramente" institucionalistas. Procuro mostrar
que sim, as instituições impactam sobre o processo político, mas não bastam em si para
explicá-lo. No Capítulo TI, procura-se traçar o pano de fundo da crise fiscal da década de
90 e entendê-lo sob o ponto de vista político. Especial atenção é dada às mudanças no
arranjo federativo brasileiro (e suas causas) a partir desse periodo. Busco mostrar também,
nesse cenário, quais as medidas fiscais adotadas, que, posteriormente, pavimentaram o
caminho para a implementação de ajustes mais estruturais. o Capítulo TIl dedica-se à
tramitação da lei no Congresso. Por fim, o Capítulo IV fecha o trabalho.
9
Capítulo I
Instituições e processo decisório: limites e possibilidades
Que as instituições, entendidas como o conjunto de regras formais e informais do
jogo político, importam no decision-rnaking e na produção de políticas, pouco se questiona.
De fato, um consenso cristalizado em vasta literatura aponta que a estrutura de
constrangimentos e incentivos institucionais desempenha papel central na formatação das
políticas e molda as escolhas dos atores políticos.
Uma primeira ordem de análise procura demonstrar a força dos traços institucionais
básicos, as "macroinstituições", quais sejam, regime de governo, sistemas de governo e
sistema de partidos no processo político (MAINWARING, 1993; TSEBELIS, 1997;
WEAVER & ROCKMAN, 1993; SIllCK, 1993; ALESINA & PEROTTI,. 1999). A
conclusão a que chegam esses autores é que tais parâmetros geram sim distintos padrões da
interação de poderes, que se traduzem ou não em governabilidade ou na promoção de
mudanças de acordo com a agenda estabelecida. Em linhas gerais, o que se defende é que
quanto mais centralizado o arranjo institucional, maior é a possibilidade de mudança.
Assim, sistemas presidencialistas, federativos e multipartidários, embora altamente
"accountables", apresentariam as maiores dificuldades em termos de governabilidade .. O
caso brasileiro, ao qual se agrega a fragmentação e a indisciplina partidária, constituiria "o
pior dos mundos" em termos de eficiência, tendo um Executivo dinâmico buscando
promover mudanças e um Legislativo reacionário buscando barrá-las (MAINW ARING,
1993).
Se tal hipótese explica o processo político brasileiro compreendido entre o periodo
de 1985 e 1994, ela encontra limitações analíticas no período posterior a essa data. Como se
sabe, a balança do jogo político brasileiro, ainda que sob as mesmas regras previstas na
Constituição de 1988, passou a pesar mais sobre o Executivo, mais fortalecido e, assim,
mais eficiente. Houve, portanto, uma mudança na distribuição de recursos e de poder, em
prol da União, sem que tivesse ocorrido alterações nas macroinstituições.
10
Uma segunda geração busca então incorporar outras variáveis -a organização
interna do Legislativo é uma delas- na abordagem institucionalista. A premissa básica é
que a conjugação de presidencialismo, federalismo e multipartidarismo resulta em
fragmentação do poder decisório e ingovernabilidade somente se vistos isoladamente, de
forma «monolítica" (LIMONGI & FIGUEIREDO, 1998; SANTOS, 2002). ° que se
verificou no pós-1994, ao contrário do que poderiam prever as análises anteriores, é que
tais traços básicos não configuraram como obstáculos à governabilidade tendo em vista as
regras vigentes no processo decisório no interior do Legislativo, que constituem, digamos
«microinstituições". De fato, as variáveis apontadas pelos autores de primeira geração
sugerem a existência de traços fragmentadores no decision-making brasileiro, que são
contornados pelas prerrogativas que o Executivo dispõe para conseguir coordenar a ação do
Legislativo a seu favor.
Entretanto, essa abordagem igualmente esbarra em limitações analíticas. É fato que,
em larga medida, principalmente no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso,
entre 1994 e 1998, evidências empíricas apontam nessa direção. Um exemplo são as
edições e, mais importante, as reedições sucessivas de Medidas Provisórias, que sugerem
«delegação" de poderes por parte do Legislativo em prol do Executivo na consecução de
sua agenda econômica'. Por .outro lado, encontra limites para explicar, por exemplo, as
dificuldades enfrentadas pelo Executivo nas reformas Tributária e Previdenciária (MELO,
2002), para as quais as prerrogativas legislativas do Executivo ou a estrutura organizacional
do Legislativo que favorece o primeiro pouco importaram ou tiveram efeito.
Uma terceira ordem de análise reconhece as limitações da abordagem macro/micro
institucional e busca olhar não apenas para as variáveis propostas por ela, mas conjugá-las
com variáveis não-institucionais, seja aquelas específicas de cada arena decisória (MELO,
2002, ARRETCHE, 2002), seja contingenciais (LOUREIRO, 2002), seja não
convencionais, tal como o papel das idéias e das preferências dos atores (HALL, 1993;
ALMEIDA & MOYA, 1997; Azevedo & :rv.tELO,1997; LOUREIRO, 2001; LOUREIRO &
ABRUCIO, 2002).
I Durante o primeiro mandato de FHC, foram editadas 160 Medidas Provisórias e reeditadas 2449, das quaisapenas 82 foram convertidas em lei pelo Congresso.
Aqui, as instituições continuam importando e não são ignoradas. Mas assume-se que
elas, per si, não conseguem explicar os fenômenos políticos de forma satisfatória porque
existe, para além da análise estática das variáveis institucionais seja de nivel macro, seja de
micro, e dos resultado políticos, uma interação dinâmica entre as regras do jogo, o jogo em
si, seus resultados e os atores políticos, que foi pouco explorada pela abordagem
estritamente institucional. Nesse sentido, a dinâmica da distribuição de recursos e poder
entre os diferentes entes federativos é melhor captada aqui,
É um consenso, como se afirmou anteriormente, que as instituições formatam as
escolhas dos atores e o processo político. O arranjo institucional desempenha papel central
na configuração da polity, das politics e das policies. A força -e, por que não, a beleza- da
abordagem institucionalista reside em sua capacidade de identificar os possíveis
determinantes dessas escolhas, ou seja, mostrar quais os atores estão envolvidos, sob quais
regras estão eles sujeitos e por que, em vista disso, lançam mão de determinadas escolhas
em detrimento de outras. Em outras palavras, para usar uma expressão popular, a grande
possibilidade explorada por essa abordagem foi a de "dar nomes aos bois" do jogo político.
Entretanto, instituições não bastam em si, tampouco são fundamentos estáticos que
geram sempre resultados previsíveis, tal como ocorre nas ciências exatas, e aqui se encontra
os limites das análises meramente macro/micro institucionalistas. Ao contrário, são
dinâmicas e alteram-se de acordo com as condições contingenciais (condições políticas,
capacidade de coordenar as burocracias, etc) e com as estratégias adotadas pelos atores
políticos. Seu funcionamento varia, muitas vezes, de acordo com o issue area tratado. E,
um ponto particularmente relevante para este trabalho, são influenciadas em grande medida
pelas idéias e preferências dos atores políticos e pelo aprendizado.
Os atores políticos, diz HALL (1993), trabalham dentro de uma estrutura de idéias-e
padrões que determinam não apenas as metas a serem alcançadas, mas também quais os
instrumentos serão utilizados para resolverem os issues que eles julgam como mais
problemáticas. Essa estrutura constitui o paradigma político e tem peso determinante sobre
os rumos do processo político. Daí o seu papel decisivo, que o presente trabalho vai
procurar focar.
11
•
12
Em resumo, pode-se dizer que, sim, as instituições formatam o jogo político, mas
também se alteram e são formatadas por ele, numa relação dinâmica na qual, "policies
follow politics" e o contrário "politics follow policies" também ocorre, afetando,
particularmente no caso brasileiro, também a polity.
Ressalta-se aqui o trabalho de COUTO & ARANTES (2002). O processo político,
mostram os autores, apresenta três dimensões: a da normatividade constitucional (polity), a
dos embates e coalizões políticas (politics) e a da normatividade governamental (policy). A
primeira dimensão diz respeito às regras do jogo político. A segunda, ao jogo político em si
e a terceira, aos resultados do jogo político. As constituições, por conseguinte, fazem
referência à polity. Entretanto, a Constituição brasileira de 1988 promoveu a
constitucionalização de diversos dispositivos referentes à policy, engessando a capacidade
de promover alterações nessa dimensão. Exige do Executivo, assim, um esforço redobrado
de negociação e a adoção de estratégias mais bem elaboradas na dinâmica de distribuição
de recursos e poder, uma análise que escapa um pouco do escopo proposto pela abordagem
institucionalista de primeira e segunda ordem.
A seguir, procuro fazer um rápido overview da literatura, mostrando sua evolução
ao longo do tempo, baseando-me na leitura de PALERMO (2000) sobre o debate
institucionalista, ressaltando, ao final, a discussão sobre o papel das idéias e da mudança de
preferência dos atores em diferentes políticas.
o processo político brasileiro: entre a fragmentação e a coesão
A análise do processo de formulação e implementação de políticas sob a ótica
institucionalista, como se falou, tem sido objeto de intenso debate. O pressuposto básico
que permeia esse debate é que o desenho institucional influi sobre a capacidade de governo
e a efetividade das políticas públicas. Cada desenho apresenta vantagens e desvantagens,
gera riscos e oportunidades aos atores (WEA VER & ROCKMAN, 1993)
Entretanto, o consenso se esgota aqui. Grosso modo, a discussão, em especial no
que tange o processo político brasileiro, polariza-se entre aqueles que, olhando os
13
parâmetros básicos -WEA VER & ROCKMAN (1993) os categorizam em nível 1 e 2 de
instituições' - concluem que o decision-makíng brasileiro é fragmentado e, como tal, gera
ingovernabilidade ou, ao contrário, apresenta fortes traços de coesão o que não constitui
entrave algum para a governabilidade.
PALERMO (2000) divide o debate em quatro enfoques, partindo de quatro
diferentes premissas, quais sejam: 1) o poder decisório é disperso, gerando problemas de
governabilidade, 2) o poder decisório é concentrado e, por isso mesmo, gera
ingovernabilidade, 3) o poder decisório é concentrado, mas, ao contrário, permite a
governabilidade e, por fim, 4) o poder decisório é disperso, e a governabilidade é possível.
O primeiro enfoque parte dos parâmetros institucionais básicos e assume que há
dispersão do poder decisório e que geram, por conseguinte, problemas de governabilidade.
Sob essa ótica, o Brasil seria ingovernável -entendendo governabilidade como capacidade
de decidir e implementar mudanças- dado seu desenho institucional, uma combinação
entre presidencialismo e um sistema multipartidário fragmentado.
Tal desenho, sustenta MAlNWARING (1993) é "especialmente desfavorável à
emergência de um governo democrático eficaz", sendo que "a probabilidade de ocorrerem
impasses Executivo/Legislativo e paralisia decisória é particularmente alta", o que, tendo
como foco empírico o periodo compreendido entre 1985 e 1994, de fato parece ser
irrefutável.
Partindo também dos parâmetros básicos, TSEBELIS (1997) avalia a capacidade de
um governo mudar as políticas públicas introduzindo o conceito de veto players. De acordo
com esse autor, a estabilidade das políticas públicas (ou seja, incapacidade de alterar o
status quo) aumenta quando aumenta o número dos veto players. A conclusão a que chega
esse autor é que os sistemas presidencialistas (que têm múltiplos veto players institucionais)
apresentam forte tendência à estabilidade do processo de formulação de políticas, ou seja, à
2 WEAVER e ROCKMAN diferenciam três níveis de instituições. No nível 1, figura osistema de governo, no nível 2, o tipo de regime e, no nível 3, o modelo institucional amploe características institucionais secundárias como as condições políticas e metas dospolíticos, condições socioeconômicas e demográficas, escolhas políticas passadas ouherdadas.
14
ineficácia, sendo, de tal forma, muito semelhantes aos governos de coalizão nos sistemas
parlamentaristas (que têm múltiplos veto players partidários).
No caso brasileiro, aponta MAINWARlNG (1993), a situação de paralisia tende a se
exacerbar tendo em vista o caráter frouxo dos partidos. Trata-se de um contexto em que se
ampliam as possibilidades de o presidente se sentir forçado a passar por cima do
Congresso, a enfraquecer este e os partidos e a se envolver em outras práticas como, por
exemplo, a criação de agências executivas, distribuição de patronagem.
Análises setoriais também chegam a conclusões semelhantes quanto ao impacto das
instituições. Contrapondo a ascensão da social-democracia na Espanha ao do
conservadorismo na Inglaterra, ambos na década de 1980, BOIX (1998) procura
demonstrar que os partidos políticos têm papel-chave na tomada de decisão econômica. Em
linhas gerais, os primeiros defendem o aumento da produtividade via investimento em
capital humano e fixo, além do aumento dos impostos como forma de sustentar uma
política expansionista e voltada para uma melhor distribuição de renda (equality). Os
conservadores, por outro lado, defendem a redução dos impostos como forma de estímulo à
poupança e, conseqüentemente, ao investimento, priorizando o crescimento econômico.
Ambos, entretanto, face à emergência de crises financeiras, adotaram políticas fiscais
restritivas.
Particularmente sobre esse último aspecto, os processos de ajuste fiscal, objeto do
presente trabalho, ressaltam-se os trabalhos de SmCK (1993) e ALESINA & PEROTTI
(1999).
Tendo como foco empírico as políticas fiscais implementadas na década de 1980 na
Holanda, nos EUA e na Suécia, SmCK mostra que diferentes instituições políticas, em
especial referentes aos sistemas eleitorais e os regimes de governo, têm peso determinante
na coesão governamental, que, por sua vez, influencia a capacidade de o governo em
reduzir déficits. Como coloca o autor:
"...From a parliamentary perspective, lhe fusion of executive and
legislative powers offers several advantages for government
priority setting. (...) A presidentialist perspective, on the other hand,
15
suggests that the institutional advantages of a parliamentary system
in providing a centralized forum for priority setting and government
cohesion are likely to be largely illusory. (...) single-party majority
governments seem likely to have an advantage over coalitional and
minority governments. (...) Divided government clearly can reduce
elite cohesion and increase the likelihood that mutual vetoes will
lead to stalemate, exacerbating difficulties in priority setting that
are inherent in the separation of powers. (...) bicameralism and
federalism also affect government capabilities" (idem: 189-91)
Assim, nos EUA, durante toda a década de 80, a política foi pautada pela ausência
de coesão governamental resultante de conflitos entre um Executivo dominado pelo partido
Republicano e o Legislativo pelo partido Democrata e vice-versa. A Holanda
parlamentarista enfrentou situação semelhante, sem conseguir coordenar as ações no
interior da coalizão que sustentava o gabinete. Apenas na Suécia parlamentarista e
governada por partido majoritário se verificou sucesso em tal empreitada.
ALESINA & PEROTTI (1999) reforçam o argumento, mostrando que crescentes
déficits públicos resultam, em .grande parte, de decisões de ajuste fiscal que são adiadas ou
simplesmente não adotadas por governos fragmentados, tais como os governos
parlamentaristas de coalizão dos países da OCDE e o governo dividido norte-americano. A.
centralização ou não das "instituições orçamentárias" -normas relativas à elaboração e
implementação dos orçamentos- também exerce influência decisiva nos resultados fiscais.
Instituições hierarquizadas -aquelas que, por exemplo, atribuem amplas prerrogativas
fiscais ao primeiro-ministro ou ao ministro da Fazenda para vetar demandas orçamentáriàs
de outros ministérios em negociações intragovernamentais- tendem a ser mais eficazes na
implementação de restrições fiscais comparadas às instituições colegiadas, nas quais há
ênfase nas regras democráticas a cada estágio de formatação do orçamento. Há, por outro
lado, um trade-off entre esses dois tipos de instituições: a existência de instituições
hierarquizadas tendem de fato a ser mais bem sucedidas para evitar déficits significativos e
persistentes e implementar medidas de ajuste mais rapidamente. No entanto, a
16
accountability fica prejudicada, havendo ainda a possibilidade de gerar déficits para
favorecer grupos majoritários em detrimento dos grupos minoritários. As instituições
colegiadas, ao contrário, são altamente "accountables", mas pouco eficientes'.
O segundo enfoque tratado por PALERMO (2000), o de que o poder decisório é
concentrado e que, em razão disso, gera-se a ingovernabilidade, enfatiza a utilização de
expressivos poderes legislativos por parte do presidente da República, num jogo em que os
demais atores, ainda que tenham poder de veto, são excluídos. O uso recorrente de Medidas
Provisórias torna esse processo um instrumento ordinário de legislação, usurpando o poder
do Legislativo. Nesse contexto, cria-se um clima de conflito latente entre os dois Poderes -
"os excluídos servem ao presidente o prato frio da vingança'<-, o que, por sua vez, dificulta
a decisão e implementação das políticas. Trata-se, por outro lado, de enfoque pouco
debatido, que não é consistente com as evidências empíricas.
Assim, ambas as visões esbarram num problema analítico: não explicam o processo
político brasileiro do pós-1994. Dado que a estrutura institucional permanece a mesma
desde a Constituição de 1988, o que explicaria as mudanças no padrão de relações entre o
Executivo e o Legislativo, que possibilitaram a governabilidade e, mais especificamente, a
implementação de mudanças relativas ao ajustamento das contas públicas? Ainda que seja
fato que os poderes pró-ativos. do Executivo tenham sido recorrentemente utilizados, não se
estabeleceu uma relação conf1.itivacom o Legislativo, em especial no que tange às medidas
de caráter econômico. Além disso, a despeito desses traços fragmentadores, o Executivo foi
bem sucedido no encaminhamento do processo de ajuste fiscal.
Procurando preencher essa lacuna analítica, o terceiro e quarto enfoques partem do
princípio de que os atores institucionais não são dominados por uma pauta conflitiva. Pelo
contrário. Legislativo e Executivo -tendo este último como ator central- agem de fornia
coordenada, de forma que a imagem de um Executivo atuante lutando contra um
Legislativo reacionário não vinga. Não cabe falar, desta forma, em fragmentação, mas em
3 Argumentam os autores: " ...there is a trade-off between these two types of institutions: hierarchicalinstitutions are more likely to enforce fiscal restraint, avoid large and persistent deficits, and implement fiscaladjustments more promptly. On the other hand, they are less repsctful ofthe rights ofthe minority, and morelikely to gnerate budgets heavily tilted in favor ofthe interests ofthe majority. Collegial institutions have theopposite features" (idem: 17)
17
coesão. Os dois enfoques divergem quanto à forma como essa interação se processa: se, de
acordo com o terceiro enfoque, tendo o Executivo como "indutor" e "comandante" da
coordenação, ou se, pelo último enfoque, isso se dá por meio de negociações.
Defendendo que a governabilidade se obtém pela concentração do decision-making
na figura do presidente, LIMONGI & FIGUEIREDO atentam para os poderes legislativos
disponíveis ao Executivo (1997) e para as instituições que regulam o processo decisório no
Legislativo (1998).
O primeiro aspecto refere-se à prerrogativa do Executivo de editar Medidas
Provisórias, expediente recorrentemente utilizado para a implementação de medidas
econômicas no período democrático mais recente. Qual a natureza desse comportamento?
De acordo com os autores, essa prática constituiria uma delegação de poderes do
Legislativo ao Executivo (e não uma usurpação de poder), com ganhos para todos:
"...as MPs foram o principal instrumento de formulação de
políticas de estabilização e de medidas de natureza administrativa e
social complementares aos planos implementados. Estas políticas
podem redundar em ganhos generalizados, mas implicam custos
certos no presente, sobretudo para grupos especificos. Inflingem,
portanto, perdas certas no momento em que são implementadas,
sem ganhos no futuro. Por esta razão, parlamentares teriam
interesse em delegar função legislativa so Executivo nesta área de
política pública, uma vez que não apareceriam como responsáveis
diretos por medidas impopulares perante suas constituencies. Por
outro lado, se o plano fracassa, os parlamentares não podem ser
responsabilizados individualmente. Do ponto de vista institucional,
a delegação nessa área de política poderia interessar também, pois,
dado que procastinar eleva os custos do ajuste, o Legislativo não
apareceria como empecilho para tomadas de decisões que
poderiam beneficiar a todos. " (idem, 1997: 153)
18
Ademais, o que permite o Executivo dominar o processo legislativo é o poder de
agenda (capacidade de determinar quais propostas serão objeto de consideração do
Congresso e quando o serão), processada e votada por um Poder Legislativo organizado de
forma altamente centralizada em torno de regras que distribuem direitos parlamentares de
acordo com princípios partidários (idem, 1998). No interior deste quadro institucional, o
presidente dispõe de meios para "forçar" os palamentares à cooperação. Os parlamentares
não encontram um arcabouço institucional próprio para perseguir interesses particularistas.
Assim, sustentam LIMONGI & FIGUEIREDO, a melhor estratégia para a obtenção de
recursos visando retornos eleitorais é votar disciplinadamente.
Executivo centraliza o poder de agenda, influindo diretamente sobre os trabalhos
legislativos, minimizando os efeitos da separação dos poderes. Trata-se de um poder de
barganha assimétrico diante de legisladores individuais, garantido também pelo fato de que
a distribuição de recursos orçamentários é prerrogativa do Executivo, o que lhe garante
maior status para coordenar as ações e permitir o controle de agenda.
SANTOS (2002) aprofunda a análise da dinâmica dessa barganha assimétrica
atentando para o papel desempenhado pelos partidos dentro da Câmara de Deputados e
incorporando o conceito de "presidencialismo de coalizão racionalizado". A questão básica
diz respeito à lógica que orienta parlamentares e comissões a seguirem a orientação do
partido em detrimento da tomada de ações individuais, ao contrário do que acontecia no
regime democrático do pré-1964. Para o autor, a disciplina partidária é uma importante
estratégia para se proteger da ação monopólica do presidente. Os partidos, assim, agem
como entidades coletivas, coordenando ações na busca de aumentar o poder de barganha
frente ao presidente e tornando-as, em larga medida, mais previsíveis. Dai por que se dizer
em "racionalização".
Esse enfoque, porém, apresenta novos desafios analíticos. Se é, em grande medida,
verdade que o uso eficiente das regras internas do Legislativo vem garantindo o poderio do
presidente, não se pode ignorar que nem sempre tais regras funcionaram a favor do
Executivo, como mostra a análise das reformas Tributária e Previdenciária durante o
primeiro mandato de FHC feita por MELO (2002). A reforma Tributária malogrou, tendo
sido marcada pela "falta de paternidade" da proposta governista, um indicativo da falta de
19
coesão interburocrática, e pela hostilidade demonstrada pelo Legislativo ao projeto. A
reforma Previdenciária, por sua vez, destaca-se, tomando como referência a América
Latina, pelo seu processo errático e longo de discussão e encaminhamento das propostas,
também sendo alvo de hostilidades por parte dos parlamentares". É certo que, ao fim e ao
cabo, parte da proposta governista foi levada adiante pela via infraconstitucional (a Lei
Kandir e a desconstitucionalização da norma relativa à cobrança de contribuição
previdenciária por parte dos inativos são exemplos), mas, ainda assim, aquém da agenda
inicial. Além disso, a problemática anterior persiste: dado que as variáveis ressaltadas não
mudaram desde a Constituição de 88, o que explicaria a diferença de padrão político entre o
período de 1988-1994 e o pós-1994?
PALERMO (2000) aponta ainda outras lacunas analíticas. A disciplina partidária,
que vem garantindo ao Executivo um determinado grau de certeza quanto aos resultados
segundo alguns autores, é, na verdade, um indicador incompleto do comportamento
parlamentar. Não diz, como argumenta o autor, "quais as dificuldades dos líderes
[partidários) para ordenar sua tropa", tampouco mostra o quanto de fato os partidos
responderam disciplinadamente ao presidente - a "disciplina" pode ter sido uma resposta ao
líder partidário e não necessariamente ao chefe do Executivo.
Ademais, a prerrogativa legislativa do Executivo não abarca, por motivos político-
institucionais, toda e qualquer área temática, devendo algumas matérias necessariamente
passar pelo crivo do Congresso. Trata-se, por sinal, de um aspecto histórico no processo
político brasileiro. Questões, por exemplo, que afetam os diferentes atores da Federação -a
LRF é um exemplo - devem, para serem "legitimadas", ser avalizadas pelo Congresso. A
centralização de poderes em torno do Executivo Federal facilita sua proposição e trâmite
pelo Legislativo, mas não deixa de exigir o aval deste. Um agravante é que, como já se
assinalou, a Constituição de 1988 promoveu a constitucionalização de diversas normas
relativas às policies (COUTO, 2001), cerceando a mobilidade do Executivo de instituir
4 Na comissão temática que analisou o projeto de reforma Previdenciária, o cargo de relator ficou com odeputado Euler Ribeiro (pMDB-AM) e a presidência, com o deputado Jair Soares (PFL-RS). Ambosmanifestamente colocavam-se contra a proposta governista, favorecendo a obstrução dos trabalhos (MELO,2002)
20
mudanças. Alterar tais dispositivos constitucionais implica obter pelo menos 3/5 do apoio
congressual.
Daí a importância da capacidade de produção negociada de decisões, entrando no
quarto enfoque feito por PALERMO. ° poder decisório é disperso - ou seja, há uma
pluralidade de atores que podem concordar ou vetar as proposições do Executivo -, os
quais chegam a um entendimento pela via da negociação. Esse componente vem sendo
destacado em alguns estudos setoriais (ALMEIDA & MOYA, 1997; Azevedo & MELO,
1997; COUTO, 2001; LOUREIRO, 2001; MELO, 2002), que ressaltam, grosso modo, que
o papel do Congresso não vem sendo nem o de constituir obstáculo às políticas propostas
pelo Executivo, nem o de simplesmente submeter-se a este.
A análise de COUTO (2001) sobre a agenda constituinte do governo FHC é um
exemplo. Esse governo notabilizou-se, além do uso recorrente das reedições de MPs, pela
capacidade de encaminhar de forma bem-sucedida sua agenda constituinte. Nem tanto o
"decretismo desenfreado" e nem tanto as "negociações extenuantes visando à construção de
coalizões", ambas as situações coexistiram durante esse período
A delegação de poderes e a capacidade de induzir o Legislativo a uma "coordenação
forçada" tiveram implicações sobre a agenda constituinte. Como coloca o autor:
"A delegação mostrou-se útil aos dois poderes [Executivo e
Legislativo} não só por conferir maior eficácia decisória à
implementação das MPs editadas e reeditadas, mas também por
transbordar esse ganho de eficácia à agenda constitucional, que
ganhou mais espaço na pauta de negociações entre os dois poderes.
Se toda a legislação implementada e mantida por MPs tivesse de
ser também apreciada pelo Congresso, tornar-se-ia mais extensa
essa pauta e conseqüentemente, mais custosa e de encaminhamento
mais vagaroso. " (idem: 40)
21
Entretanto, a delegação não explica per si por que, por exemplo, conseguiram ser
aprovadas 16 emendas constitucionais no primeiro governo FHC, lembrando, sobretudo,
que sua aprovação demanda 3/5 dos votos do Congresso, em duas votações nas duas Casas.
Aqui, voltando ao enfoque defendido por PALERMO, entra a questão da
negociação. Enquanto no campo da policy há espaço para imposições -o papel de impor
cabe aos grupos majoritários- e se define o perde-ganha da política, no campo da polity
traçam-se limites para que tal não se transforme em uma "tirania da maioria". Trata-se de
uma garantia de que grupos minoritários terão voz no processo decisório. Por outro lado,
"quanto mais se aumentam essas garantias, mais se aguça o consociativismo do sistema,
reforçando a necessidade de negociação e elevando a possibilidade de veto a certas
iniciativas", o que, por sua vez, requer um grau maior de habilidade negociadora (COUTO,
2001).
Para conseguir levar adiante sua agenda reformista, FHC preCISOU alterar
dispositivos constitucionais. Valeu-se, para tanto, de sua capacidade de barganha e
negociação, num contexto, que procuro tratar nos capítulos seguintes, favorável ao
Executivo. Sob a bandeira da estabilização e na esteira do sucesso do Plano Real, pôde
fazer amplo uso de suas prerrogativas legislativas previstas na Constituição e aproveitar-se
da estrutura no interior do Legislativo que lhe garante certo poderio para promover as
mudanças que propôs. E o fez com grande sucesso, pelo menos na área econômica. Como
COUTO ilustra, das 16 emendas constitucionais aprovadas no primeiro governo de FHC,
nada menos que 13 referiam-se a essa temática. Apenas duas emendas (as de número 15 e
16, tratando, respectivamente, da criação de novos municípios e da reeleição para cargos no
Executivo) referiam-se especificamente à polity.
As privatizações e concessões do setor de telecomunicações, para citar um exemplo,
somente conseguiram tomar impulso com a aprovação da Emenda Constitucional n° 8, que
pavimentou o caminho para a criação das normas infra-constitucionais regulamentando esse
processo (COUTO, 2001).
No entanto, porquanto tenha sido relevante o peso das negociações em tais
mudanças, é também patente que o sucesso na empreitada reformista restringiu-se, no mais
das vezes, a alterações na área econômica, mais particularmente, de ajuste fiscal. Como
ressalta COUTO (idem), fica nítido nas reformas constitucionais o teor de política
econômica, as quais, por sua vez, permitiram, em nível infra-constitucional, adotar medidas
de correção dos desequilíbrios nas finanças públicas. Ressalte-se que a Emenda
Constitucional n? 19/98, que impõe novas regras para o funcionalismo e estipula um prazo
para que o Executivo apresente projeto de lei complementar regulamentando o art. 163 da
Constituição, constituiu um passo importante para apressar os trabalhos de elaboração e
encaminhamento do projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal5.
O que explica esse tratamento "privilegiado" para as questões econômicas?
O estudo de ALMEIDA & MOYA (1997) a propósito do programa de privatização,
oferece algumas pistas. De 1990 a 1996, o Legislativo foi responsável pela produção de 21
leis e 5 emendas constitucionais sobre a matéria, sendo a maioria inconteste de iniciativa do
Executivo -apenas uma lei, a de n° 8.987/95 (Lei das Concessões) teve origem no
Legislativo, de autoria do então senador Fernando Henrique Cardoso.
Para além das variáveis institucionais, no entanto, os autores chamam a atenção para
a distribuição de preferências no interior do Legislativo, que afetam o grau de coesão e
congruência deste com relação às propostas do Executivo.
Por meio de três surveys, ALMEIDA & MOY A mostram que, inegavelmente, o
Executivo constituiu a força .propulsora da política de privatização e que o Legislativo
atuou sobre uma pauta que não fora por ele definida. Entretanto, disso não se pode concluir
que o Legislativo foi omisso ou submisso. Pelo contrário. O arcabouço legal sofreu
alterações em seu trâmite e teve de ser negociado. E, acima de tudo, refletiu as preferências
dos atores legislativos do Congresso. Como apontam os autores, " ... desde 1991, pelo
menos, a retirado do Estado da produção de bens e oferta de serviços, diretamente, contava
com a simpatia de cerca de 70% do Congresso Nacional. Essa inclinação favorável 1privatização era maior ainda quando se tratava da siderurgia e da petroquímica, por sinal os
setores que encabeçavam a lista de empresas privatizáveis do Programa Nacional de
Desestatização" (idem: 126).
5 Prevê o art. 30 da EC n019/98: "O projeto de lei complementar que se refere o art. 163 da ConstituiçãoFederal será apresentado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional no prazo máximo de cento e oitentadias da promulgação desta Emenda."
22
23
Em síntese, a lição que se extrai é que a atuação do Legislativo na política em
questão derivou não simplesmente do arcabouço institucional à disposição do Executivo,
mas também da distribuição de preferência dos parlamentares, que se aproximavam da
agenda governista. Nesse sentido, ressalta-se o papel que as idéias desempenham na
formatação das políticas, uma variável pouco observada pelos autores institucionais mais
tradicionais.
É certo, por outro lado, que o caso das privatizações, diz respeito a uma questão que
implica ganhos concentrados e imediatos e perdas bastante difusas. Apenas a título
ilustrativo, vale lembrar que a partir da criação do arcabouço legal relativo a essa matéria,
foi obtida uma receita de US$ 78,6 bilhões e transferidas dívidas de US$ 14,8 bilhões entre
1995 e 20026. Questões que alteram a dinâmica das relações fiscais, como é o caso da LRF,
implicam, ao contrário, perdas concentradas e imediatas e ganhos difusos e de longo prazo.
Reforça-se, a contrario sensu, o peso que as idéias e o aprendizado, bem como a dinâmica
das relações federativas exercem sobre o processo político dessa arena.
o papel das idéias e o decision-making como aprendizado
Como nascem e como se implementam as políticas? É certo que a dimensão
institucional exerce influência decisiva no processo político. Por outro lado, é certo também
que sua capacidade explicativa se esgota diante do fato de que, sob as mesmas variáveis
institucionais, por vezes se verificam diferentes resultados políticos. As instituições, de tal
forma, constituem condições necessárias para formatar o decision-making, mas não
suficientes para explicá-las.
Alguns autores vêm focando, nesse contexto, o papel das idéias. Como assinalei
anteriormente, o estudo de HALL (1993) é um deles. Em sua visão, as idéias desempenham
papel central no processo de mudanças de paradigmas políticos, resultantes, por sua vez, de
um aprendizado social (sociallearning).
6 Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
J
24
Tal aprendizado se verifica quando ocorrem mudanças políticas como resultado do
processo de ajuste de metas e instrumentais políticos em resposta a experiências passadas e
novas informações. Ora, sustenta HALL, as transformações políticas ocorridas na Inglaterra
entre a década de 1970 e 80 -do paradigma keynesiano ao paradigma monetarista-
claramente resultaram desse processo.
Essa mudança de paradigma deve levar em conta três componentes: a mídia, as
pressões dos mercados financeiros em especial sobre a dívida pública e o câmbio e a
expansão das idéias econômicas para além do mercado financeiro e da mídia. De um lado, a
mídia, após a ascensão de Margaret Thatcher ao poder, "magnificou a importância da
doutrina monetarista" não apenas constituindo um espelho da opinião pública, mas
ampliando a visibilidade dos issues por ela escolhidos. De outro, a popularidade das
doutrinas monetaristas no meio financeiro influenciaram tanto o Banco da Inglaterra quanto
o governo a realizar ajustes ad hoc entre 1974 a 79. Por fim, a circulação das idéias
monetaristas para meios alheios à mídia ou à City criou uma espécie de "rede política"
(policy networky, incorporando outsiders no processo político.
Na mesma linha, Pio (2001) incorpora as idéias como variável independente no
processo de formulação, decisão e implementação em duas políticas econômicas: o Plano
Cruzado (1986) e o Plano Real (1993) e traz o conceito de redes políticas (political
networksy, "construídas a partir das ideais criadas, professadas e/ou compartilhadas pelos
economistas de fora do governo" e a partir das quais se definem quem irá assumir os cargos
mais importantes da burocracia.
Na análise dos dois planos, o autor ressalta que enquanto no primeiro pelas disputas
burocráticas no interior da equipe econômica sobre os instrumentos de política e conjunto
final de medidas corretivas, o segundo se notabilizou pelo baixo grau de conflito a partir do
momento em que FHC assumiu o cargo de Ministério da Fazenda, em 1993. Em grande
medida, destarte, o sucesso da estabilização econômica do periodo pós-1993 se deveu a um
"processo de emergência de uma nova compreensão acerca das causas da inflação no país",
que uniu os técnicos do Ministério da Fazenda em torno de uma única idéia.
A partir da chegada de FHC à presidência, esse ministério passa a centralizar as
decisões econômicas e controlar o comportamento dos demais ministérios, como mostram
25
LOUREIRO & ABRUCIO (1999). A formação do gabinete no Brasil, como se sabe, impõe
um dilema ao presidente: de um lado, faz-se necessário distribuir os cargos atendendo aos
partidos que sustentam a coalizão. De outro, é preciso encontrar meios de manter o controle
sobre a agenda. Esse dilema foi superado, durante o governo FHC, com o fortalecimento do
Ministério da Fazenda, que passou, ao ter a prerrogativa de estabelecer critérios de
liberação de recursos via Secretaria do Tesouro Nacional (STN), a controlar os demais
ministérios. Além disso, ainda que determinado cargo ministerial tivesse sido preenchido
por critérios políticos, uma boa escolha para as respectivas secretarias executivas garantiria
o entendimento intra e interburocrático.
Em suma, ainda que pouco exploradas pela literatura, as idéias têm peso decisivo
sobre a definição das políticas. Especificamente abordando a temática proposta por este
trabalho, LOUREIRO (2001) e LOUREIRO & ABRUCIO (2002) apontam o consenso em
tomo de idéias como ingrediente fundamental para o sucesso do ciclo de ajuste fiscal
promovido por FHC. É esse consenso que garantiu, em larga medida, a coesão
governamental', que permitiu levar adiante a agenda fiscal estipulada.
No entanto -e resgato aqui os objetivos a que se propõe este trabalho-, não há que
se falar no papel das idéias sem atentar para o contexto em que elas surgiram. As mudanças
de preferências dos diferentes atores políticos entre o período anterior e o posterior a
1993/1994 em razão das transformações na lógica de distribuição de recursos e de poder e
das opiniões de legitimidade (resultantes do sucesso do Plano Real) também têm peso
determinante. Como e, mais importante, por que se processaram tais mudanças é o que
procurarei demonstrar no capítulo seguinte.
7 Segundo LOUREIRO (2001), a coesão governamental depende não apenas dos arranjos institucionais, mastambém de fatores políticos contingentes, quais sejam: "o grau de liderança ou habilidade do governante nasnegociações entre os poderes legislativo e executivo ou dentro dos gabinetes parlamentares, a construção deconsensos entre as forças políticas e a coordenação político-administrativa no seio do aparato do governo"(idem: 77)
26
Capítulo 11
o pano de fundo federativo: do desarranjo ao reordenamento
"Todas as cidades pecam, menos
Brasília. Em Brasília, todos são
inocentes e todos são cúmplices"
Nelson Rodrigues
o período compreendido entre a cnse da dívida externa (1982) e o Plano Real
(1994), como assinalado, se caracteriza pelo profundo desarranjo das relações federativas,
decorrente da emergência de um novo modelo federativo na redemocratização: o
federalismo estadualista. Nesta nova dinâmica federativa, governadores -os ''Barões da
Federação"- passaram a atuar como forte veto player às políticas propostas de estabilização
monetária e fiscal dos três primeiros governos civis. A conjugação entre a grave crise
resultante do fechamento dos. canais de financiamento externos em 1982, a aceleração do
processo inflacionário e o federalismo de cunho estadualista instauraram um cenário de
ingovernabilidade nos dez primeiros anos de redemocratização, com um saldo de cinco
planos de estabilização fracassados, descontrole inflacionário, desgaste do Executivo
federal e endividamentos crescentes.
Tal quadro começou a dar os primeiros SInaIS de mudança em 1993, mais
precisamente a partir da nomeação de Fernando Henrique Cardoso ao Ministério da
Fazenda e da redistribuição dos poderes e de recursos no plano federativo.
Isso se deveu, em primeiro lugar, o sucesso do Plano Real, capitaneado pelo
ministro da Fazenda FHC, e das medidas que o antecederam. Além de garantir-lhe a vitória
na disputa pela presidência da República e assegurar a vitória de aliados nos três principais
Estados da Federação (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais), conferiu à equipe
econômica legitimidade para levar adiante uma agenda que governos anteriores não haviam
27
conseguido implementar. Em segundo, ao retorno do fluxo de recursos externos a partir de
1992, como reflexo da abertura econômica promovida ainda no governo Collor (1989-
1992), que garantiam fôlego financeiro ao Executivo federal tanto para equacionar a
questão da dívida externa como para conferir maior poder de fogo frente a uma eventual
crise monetária, o que também lhe assegurou condição de player principal no novo jogo
federativo.
Os "barões", ao contrário, perdiam espaço no cenário político. Débitos resultantes
de um década de descontrole fiscal ganhavam visibilidade com o fim da inflação e da
possibilidade de float, revelando a profundidade a crise fiscal. A federalização dos bancos
estaduais retirou dos governadores um importante instrumento de crédito e de repasse de
déficits estaduais à União. Gastos com pessoal em níveis fora de controle e crises nos
respectivos funcionalismos enfraqueciam ainda mais o poderio dos governadores.
Nesse contexto abre-se uma 'janela de oportunidade" para o reordenamento das
finanças públicas. O ajuste fiscal se torna núcleo duro da agenda FHC. Inicialmente, foram
adotadas medidas pontuais de centralização das prerrogativas financeiras, sendo o passo
inicial dado com a aprovação do Fundo Social de Emergência (FSE), em 1993. O aumento
das contribuições sociais, não compartilhadas com os entes subnacionais, e a instituição de
tributos igualmente não compartilhados como o lPMF (e, posteriormente, CPMF), também
sinalizavam a disposição do Executivo federal de resgatar o controle sobre as suas receitas.
Medidas de caráter estrutural, que impactam sobre as relações federativas, foram também
implementadas, dentre as quais destacam-se a Lei Camata, de 1995, a crescente limitação
da capacidade de endividamento dos Estados e a Lei de Responsabilidade Fiscal ...
O objetivo deste capítulo é analisar cada um desses períodos, não perdendo de vista
a importância da questão da distribuição de poderes e recursos entre os entes federativos ria
formatação das preferências dos atores políticos. Por óbvio, a "virada" do jogo federativo
no pós-1993 e a implementação das medidas de reforma do Estado que propunha o governo
FHC não se deram de forma contínua e nem sempre foram bem sucedidas. Houve
descontinuidades significativas, e o malogro das reformas Tributária e Previdenciária é
exemplo disso. Os contrangimentos e incentivos institucionais eram os mesmos, os atores
políticos eram os mesmos. Ainda assim, os resultados foram diferentes.
28
Daí por que se atentar também para o papel central das idéias e do aprendizado nas
preferências dos atores políticos no processo de ajuste fiscal recente. Enfatiza-se ainda o
caráter incrernental das mudanças.
O capítulo está dividido em três partes. Na primeira parte, busca-se traçar o pano de
fundo federativo no período compreendido entre 1982 e 1993. Na segunda parte, faz-se
uma análise do período pré e pós Real, dando ênfase a algumas das medidas econômicas de
cunho fiscal adotadas no período. Por fim, procura-se focar as medidas de ajuste estruturais
implementadas, que criaram condições para que a promulgação de uma norma como a
LRF.
I. O choque da crise da dívida externa e o desajuste federativo
A crise da dívida externa da década de 80 representou, grosso modo, a ruptura do-
modelo de crescimento que sustentara o "milagre econômico" dos anos 70, fortemente
calcado na captação de recursos externos no mercado privado, grande parte dos quais
contratados a taxas de juros flutuantes 1.
Esse modelo implicou grande vulnerabilidade do país a choques no mercado
internacional, como se verificou a partir de agosto 82, em vista das condições em que seus
bancos passaram a operar a partir do anúncio de moratória por parte do México (Baer,
1993), interrompendo o fluxo de recursos aos países latino-americanos. A reação dos
bancos estrangeiros à moratória mexicana representou o momento de explicitação da crise:
os recursos financeiros internacionais passaram de uma faixa de US$ 13 bilhões a US$ 14,5
bilhões anuais em 1981-1982 a um patamar insignificante em 1983, restringindo-se apenas
ao suficiente para evitar que país declarasse unilateralmente a moratória.
Face à interrupção do fluxo de financiamento, a estratégia adotada foi então utilizar
a desvalorização cambial como mecanismo de incentivar as exportações -a única
I Como aponta a autora, "na virada da década de 70 para a de 80, em torno de três quartos da dívida externabrasileira de médio e longo prazo estavam contratados a taxas de juros flutuantes, o que implicou um impactoforte e imediato da política de valorização do dólar praticada pelos Estados Unidos a partir de 1978. Em 1981-1982, os juros internacionais deram um salto de 5 a 7 pontos percentuais em termos reais" (idem: 75).
29
alternativa de geração de recursos em moeda forte- para promover o ajuste externo do
balanço de pagamentos. A estratégia logrou resultados favoráveis quando forte superávits
comerciais foram registrados, como em 84 e 88. Em 84, por exemplo, a melhoria das contas
externas resultante do superávit de US$ 13 bilhões alcançado nesse ano, permitiu realizar
todos os pagamentos atrasados, além de recompor o nível de reservas (Baer, idem).
Por outro lado, tal estratégia revelou-se perniciosa. Em primeiro lugar, porque a
desvalorização causou forte impacto sobre os detentores de débitos em moeda forte, em
especial no caso do Setor Produtivo Estatal (SPE). Em segundo, porque a fórmula para
substituir a restrição ao financiamento externo e cobrir o crescente passivo nas contas
públicas, a emissão de títulos, iniciou um círculo vicioso de endividamento, fazendo com
que "o setor público como um todo entrasse numa situação de Ponzi financeí: o
financiamento interno se fazia essencialmente através de títulos públicos, cujo custo era
elevado, com o que aumentavam os encargos financeiros e o Estado expandia seu
endividamento interno para cumprir com estes mesmos encargos" (idem: 114).
A tabela 1 mostra a evolução da divida líquida do setor público ao longo da década
de 80 até o início dos anos 90. Vê-se que, por conta das sucessivas desvalorizações, o
montante da dívida do setor passa de 32,8% do PIB para 55,8% em 1984.
2 Ponzi, como explica Giambiagi e Além (2000), era um financista de Boston da década de 1920, quecomprometia-se a pagar uma taxa de juros de 50% por depósitos de 45 dias. Decorrido o prazo, o pagamentoera realizado com o ingresso de novos recursos, captados da mesma forma. A idéia básica era sanar osproblemas de caixa contando com fllLXOS futuros. Em pouco tempo, porém, a divida acumulada fugiu aocontrole. Por analogia, Ponzi finance diz respeito a um tipo de financiamento calcado na "colocação de títulosque elevam a relação divida/PIB e que só têm demanda por oferecerem taxas de juros extremamente atraentes,que entretanto geram um círculo vicioso de novos aumento da divida e da taxa de juros" (idem: 151).
,
30
Tabela 1. Dívida líquida do setor público
%doPIB
ANO GOVERNO ESTADOS E EMPRESAS TOTAL INTERNA EXTERNACENTRAL MUNICÍPIOS ESTATAIS
1982 8,9 6,0 17,9 32,8 14,9 17,91983 19,0 6,5 26,0 51,5 18,4 33,11984 21,7 7,0 27,1 55,8 22,4 33,41985 18,9 7,1 26,6 52,6 21,7 28,81986 20,0 6,6 22,9 49,4 20,6 28,81987 20,4 7,9 22,0 50,3 19,3 31,01988 19,6 6,7 20,6 46,9 21,3 25,61989 19,9 5,9 14,4 40,2 21,7 18,51990 15,2 7,8 17,6 40,6 17,8 22,81991 12,7 7,2 18,0 37,9 13,9 24,01992 12,2 9,2 15,8 37,2 18,5 18,71993 9,7 9,3 14,0 33,0 18,6 14,5
Fonte: Banco Central
Havia outro agravante. Se de um lado o passivo era público, o superávit comercial
obtido era de natureza privada, obrigando o setor público a emitir moeda para pagar os
exportadores, o que gerava forte pressão inflacionária, num cenário em que era também
preciso manter as taxas de juros em níveis elevados para remunerar os títulos.
O Executivo federal não conseguia trazer propostas coerentes e coesas nas suas
diferentes esferas de negociação. No front externo, nenhum dos presidentes durante toda a
década de 80 mostrou-se capaz de articular uma estratégia de negociação junto aos credores
internacionais, mesmo em tempos, como no início do Plano Cruzado, em que havia espaço
para tal. No front interno, não logrou implementar medidas que resultassem em um efetivo
ajuste fiscal. A moratória da dívida, decretada em fevereiro de 87 -uma conjugação do
insucesso do Plano Cruzado, da perda de reservas internacionais, do descontrole
inflacionário e da falta de articulação entre os diversos atores políticos e incapacidade de
impor ajustes- ilustra bem essa situação, que marcou toda a década de 80 e os primeiros
anos da década de 90,
31
Sem ter mecanismos nem institucionais, nem políticos para eX1gIT o
comprometimento dos entes subnacionais em medidas de ajuste fiscal e articular bases
políticas de sustentação, cinco planos de estabilização -Cruzado, de 1986, Bresser, de
1987, Verão, de 1989, Collor I e Il, respectivamente de 1990 e 91- obtiveram sucesso
apenas inicial, fracassando em seguida. Aqui entra o componente político da questão e,
particularmente, destaca-se a importância da dinâmica da distribuição de poder e de
recursos entre os entes federativos.
Como se assinalou, um novo federalismo, de configuração estadualista, centrífuga e
predatória da federação brasileira, emergiu com a redemocratização e foi consolidada pela
Constituição de 1988 (ABRUCIO e Costa, 1998).
Como se formatou essa distribuição de poderes? Em pnmeiro lugar, com o
fortalecimento dos governadores, que, formando coalizões junto aos parlamentares federais,
constituíram-se em forte veto às mudanças que modificassem a estrutura de distribuição de
recursos. Isso não apenas serviu para ampliar o poder de negociação por uma maior fatia de
recursos, mas também no repasse, à União, dos déficits de seus respectivos Estados. Nesse
jogo, "a arma que os Estados tinham em cada negociação com o governo federal era a
promessa de apoio em determinados projetos no Legislativo, ou, então, o que também é
fundamental no jogo parlamentar, a promessa de não interferir, bloquear ou se articular
contra determinado projeto" (idem:47).
É nesse sentido, sustentam ABRUCIO e Costa, que se fala em jogo predatório entre
União e Estados: os governos subnacionais apropriam-se de recursos do governo federal e
repassam perdas, não assumindo os custos de suas decisões, oferecendo como moeda de
troca o apoio dos parlamentares de sua alçada no Congresso. Não por outra razão, os
bancos estaduais, cujas diretorias são escolhidas a dedo pelos governadores e portanto são
politicamente controladas pelos "barões", constituíram mecanismo de excelência desse
jogo, emitindo títulos para cobrir gastos ordinários, por exemplo, de pessoal.
A União, por outro lado, incentivava o comportamento permissivo ao sempre
socorrê-los. Nos programas de saneamento dos bancos estaduais em 83, 84, 85 e 87, o
32
governo federal injetou nada menos que US$ 33 bilhões] Em 94, em plena campanha
eleitoral, também foi prestado socorro de US$ 5 bilhões". Tratava-se de um socorro
proveniente do Banco Central, em geral sob forma de substituição de títulos "podres", ou
seja, sem valor de mercado, por títulos federais. Os papéis do Banespa em mãos do BC, por
exemplo, chegavam, em 1994, às vésperas da intervenção do banco, a R$ 5,5 bilhões.
Na relação dos Estados entre si, o jogo, por sua vez, é de competição não
cooperativa, que se revela sobretudo na ausência de instituições que pudessem ordenar o
jogo federativo interestadual, de modo a instituir um accountability intergovernamental. A
guerra fiscal, que se intensifica a partir de meados dos anos 90, é o exemplo mais apurado
desse jogo.
As sucessivas renegociações das dívidas estaduais tanto no governo Sarney quanto
no governo Collor pouco deram frutos nesse contexto. Como apontam ABRUCIO e
COUTO, "em todas as negociações de rolagem da dívida vistas até aquele momento, a
União teve a iniciativa, mas ou não conseguiu vencer a resistência das unidades estaduais,
ou quando aprovou um projeto de repactuação dos débitos, este não foi cumprido. (..) os
Estados burlam inclusive acordos e legislações por eles ratificadas. Em suma, no caso das
relações financeiras intergovernamentais no Brasil, os contratos federativos têm tido
pouquíssimo poder de vincular normas a todos os jogadores. E não há federalismo que
funcione democraticamente sem contratos e pactos fortes" (idem:44-45). Os autores
concluem que a rationale por trás disso reside tanto na facilidade de se obter créditos
quanto na crença, comprovada por vários jogos, de que haverá o socorro do governofederal.
Estados e Municípios apresentaram, ao longo do período analisado, crescimento
quase contínuo da dívida, aumentando o peso de suas dívidas sobre o montante total, o que
mostra que os esforços fiscais, em grande parte, se limitaram aos da União.
A Constituição de 1988, por sua vez, cristalizou as demandas descentralizadoras,
principalmente no que tange à distribuição dos recursos. Na verdade, trata-se de uma
3 Jornal do Brasil, 2/2/1996, apud ABRUCIO e Costa 1998" Folha de S.Paulo, 23/10/94
33
tendência já :finnada desde a década de 70, sendo constante a elevação dos percentuais do
IR e do 1PI destinados aos Fundos de Participação, como mostra a tabela abaixo:
Tabela 2 - Evolução do percentual do IR e do IPI destinados ao FPM e ao FPE
ANO DISPOSITIVO LEGAL FPlv! FPE
1976 Emenda Constitucional 5/75 6,0% 6,0%
1979/80 Idem 9,0% 9,0%
1981 Emenda Constitucional 10,0% 10,0%17/80
1984 Emenda Constitucional 13,5% 12,5%23/83
1985 Idem 16,0% 14,0%
1985/88* Emenda Constitucional 17,0% 14,0%27/85
1988 Constituição Federal 20,0% 18,0%
1993 Idem 22,5% 21,5%
Fonte: STN
Ives Gandra Martins (1988), ao comentar as novas disposições constitucionais à
época, faz uma análise bastante pertinente, que reproduzo abaixo.
"...Hoje [1988], a União detém um déficit público de 30% do seu
PIB, com as receitas e com as atribuições que tem. O que
acontecerá no futuro? ...A União perderá cinco impostos: os três
únicos, o Imposto sobre Transportes e o sobre comunicações. E,
dos principais impostos, o IPI e o IR, a União, que hoje transfere
para Estados e Municípios 33%, transferirá 47% (de imediato
38%). (..) Ora, se a União perde receitas, deveria em
contrapartida perder atribuições. Nossos constituintes assim
pensaram? Não. O Poder Legislativo Federal pela atual
34
I
Constituição será consideravelmente maior do que o atual Poder
Legislativo. Foram criados três novos Estados, passou a ter mais
senadores, representantes desses Estados. A União, portanto,
gastará mais com o Poder Legislativo. E o Poder Judiciário? A
União também gastará mais com o Poder Judiciário, não obstante
a outorga de independência financeira, porque serão criados novos
Tribunais. Os Tribunais Federais de Recursos regionais. O
Tribunal Superior de Justiça, já que o Tribunal Federal de
Recursos se transformará, será maior. (..) O Poder Executivo
ficará maior. A Previdência Social será maior. Ter-se-á um
Executivo com mais áreas de monopólio, com mais áreas de
reserva de mercado, com maiores áreas de intervenção no domínio
econômico. E ter-se-á, portanto, não uma descentralização de
atribuições, mas uma concentração de atribuições, apesar de perda
substancial de receita. " (idem: 4)
Cabe ainda mencionar um outro traço institucional distintivo da política brasileira,
que COUTO e Arantes (2902) chamam de "problema constitucional brasileiro": o
engessamento do policy-making em razão da constitucionalização de dispositivos referentes
à policy, implicando a necessidade de um modus operandi no plano legislativo mais
complexo para alterar o status quo.'
A agenda política, a partir de 1988, passou aSSIm a ser sempre uma agenda
constitucional, que, para utilizar os termos de Tsebelis (1997), apresenta forte tendência à
estabilidade das políticas, ou seja, ausência do potencial de mudança das politicas
existentes.
Nesse sentido, a construção de amplas maiorias -lembrando que são necessários 3/5
dos votos do Congresso, em dois turnos de votação-, passou a ser condição necessária
mínima para implementar políticas, o que, apontam com razão os autores, é "algo
especialmente difícil no contexto institucional de um Estado federativo e de um regime
35
presidencialista multipartidário como o brasileiro", e, acrescentamos, fortemente calcado
em interesses estadualistas e predatório nas relações com a União.
Com isso, ademais, incorporou-se ao plano do policy-making mais um veto player,
o Judiciário, na medida em que o Supremo Tribunal Federal (STF), o "guardião da
Constituição", passou a ser mais acionado para controlar a constitucionalidade de atos
normativos com caráter de policy, reduzindo ainda mais o raio de manobra do policy-
maker.
Configurava-se, de tal forma, "o pior dos mundos" em termos de govemabilidade,
alimentando um círculo vicioso de paralisia decisória: a cada plano de estabilização,
seguia-se um período em que o Executivo cercava-se de certo prestígio com o controle
temporário da inflação. Passada a fase de euforia, entretanto, a inflação voltava e o
Executivo perdia legitimidade e apoio político (que, vale lembrar, deve ser suficiente para
superar o "problema constitucional brasileiro"), sendo cerceado de qualquer possibilidade
de levar adiante sua agenda. Na tentativa de superar a paralisia e "renovar ânimos", novo
plano surgia, reiniciando o ciclo.
Nesse cenário pernicioso, a inflação galopante, que no início dos anos 90 chegava a
quatro dígitos, passou a ser, de 1990 a 1994, um importante instrumento de controle de
recursos para o Executivo federal, reprimindo as despesas orçadas, como aponta BACHA
(1994).
A inflação atuava de duas formas na redução do déficit orçamentário: em pnrneiro
lugar, ao emitir uma previsão inflacionária bem menor do que a inflação efetivamente
observada, reduzia-se o valor real das despesas executadas, mesmo sem controle do caixa.
Em segundo, por meio do controle do caixa, quando o Ministério da Fazenda adiava a
liberação das verbas orçamentárias, fazia com que o valor real dessas despesas fosse
adicionalmente reduzido pela inflação.
BACHA (idem) cita um estudo de PATINKlN (1993)5 sobre o processo de
estabilização fiscal em Israel, de 1985, no qual, sob o ponto de vista da teoria dos jogos, a
inflação foi utilizada como um mecanismo do ministério "economizador" para forçar os
5 PATINKIN, Don. (1993). "Israel's stabilization program of 1985, or some simple truths of monetarytheory", Joumal ofEconomic Perspectives 7(2): 103-28, 1993
36
ministérios "gastadores" a operarem dentro das regras do primeiro. A inflação, para o
Executivo israelense formado por uma coalizão partidária, constituía uma espécie de
"imposição de um imposto pelo ministro da Fazenda aos demais ministros do governo",
dado que a coalizão não garantia poder a esse ministro para forçar os demais ministérios a
cooperarem no esforço fiscal. A estratégia é, de tal sorte, aparentar aceitar as demandas e
posteriormente "financiar o déficit imprimindo dinheiro e deixando a inflação resultante
produzir a necessária redução nas despesas governamentais reais. Por implicar uma
redução linear, esse pode ser de fato o caminho de menor resistência para o ministro da
Fazenda" (idem: 10).
Isso se aplicou particularmente ao caso brasileiro. Os traços institucionais apontados
acima fazem com que, para garantir apoio político, o presidente precise lançar mão da
distribuição de cargos ministeriais. Isso, indicam LOUREIRO e ABRUCIO (1999), tem um
efeito paradoxal: se de um lado pode garantir a maioria parlamentar ao chefe do Executivo,
de outra, pode também comprometer sua capacidade de controlar a delegação de poderes.
Foi o que se verificou no governo Sarney, periodo no qual mais se verificou instabilidade
no Ministério da Fazenda, dada a heterogeneidade do grupo que o sustentava. O contrário
também ocorreu: o governo Collor também é marcado pela grande instabilidade, decorrente
de sua estratégia de buscar um governar "independentemente" do Congresso, que provou
não funcionar. Sem conseguir a "sintonia fina" necessária para superar o dilema entre a
patronagem e o controle de agenda na formação ministerial, a inflação parece mesmo ter
constitui do uma espécie de "payback" do ministério "economizador" -entenda-se, o
Minstério da Fazenda- aos demais ministérios, mais responsivos aos partidos do que ao
presidente, e entes subnacionais "gastadores".
Em grande parte, tamanha distorção decorreu da falta de transparência dás
instituições fiscais e do processo orçamentário. ALESINA e PEROTTI (1999) argumentam
que políticos têm poucos incentivos para criar orçamentos transparentes porque procuram
"confundir" tanto os eleitores menos racionais, como aqueles mais racionais, mas nem tão
bem informados, o que garante à engrenagem política a vantagem da assimetria de
informação. Uma estratégia recorrente é a superestimação das receitas de um lado e, de
BIBLIOTECA KARl A. BOEDECKER
37
outro, a subestimação das despesas, tática amplamente utilizada no Brasil, especialmente
em periodos de hiperinflação. Com um índice inflacionário que chegava, em 1992, a
1.157,95%, a população naturalmente perdia a noção dos preços relativos da economia".
O controle da inflação no periodo subsequente e mudanças no quadro federativo,
entretanto, começam a mudar grande parte do cenário aqui descrito, sobre o qual
discorremos a seguir.
11. A virada no jogo federativo e a nova configuração de poder
2.1 Os antecedentes do Plano Real
O desarranjo no plano das relações federativas começa a mudar a partir de 1993. Em
janeiro, Itamar reúne presidentes de 19 partidos, propondo um "pacto de governabilidade".
O presidente via-se num momento político favorável em decorrência dos desdobramentos
políticos que cercaram a renúncia de Collor, como diagnostica o senador Antônio Carlos
Magalhães, posicionando-se contra um eventual pacto: "Esse já é um governo de
entendimento. Todos os partidos já estão representados na composição do Ministério. Não
sei o que querem mais. Acho que não querem mais nem votação no Congresso"? De
qualquer forma, o "pacto" proposto surtiu efeito e conseguiu aprovar, em março, o primeiro
pacote de medidas de ajuste fiscal, dentre as quais o IP.MF (Imposto Provisório sobre
Movimentação Financeira) calculado em 0,25% do valor dos cheques emitidos até
6 É o que mostra a reportagem "Brasileiro perde noção de preço" (O Estado de São Paulo, 31/1/1993):" ...Quanto custa um Omega, o modelo mais luxuoso da General Motors? Vicente Paulo da Silva, oVicentinho, vai a Brasília terça-feira negociar com empresários um novo acordo do setor automotivo naCâmara Setorial, que pode influenciar muito os preços. O sindicalista arrisca uma resposta: "O Ômega custaCr$ 350 milhões". Passou longe. O preço de tabela é Cr$ 677 milhões. "Perdi totalmente a noção do valor dodinheiro", confessa Vicentinho. O mesmo mal acomete a outra ponta do setor produtivo. Empresário já nãosabem os preços de mais nada. O vice-presidente da Fiesp, Carlos Eduardo Uchoa Fagundes, acredita que umSantana, carro muito ao gosto do empresariado, custa Cr$ 200 milhões. Pela tabela, o modelo GLS 2000 duasportas sai por Cr$ 446 milhões. Por um litro de leite B ele acredita que pagaria Cr$ 2.500. "Acertei?",pergunta. Na verdade, o preço está por volta de Cr$ 6 mil..."
7 "Pacto divide PFL", O Estado de São Paulo, 2/1/1993
38
dezembro de 1994, constituiu o maior trunfo, gerando uma receita estimada em US$ 7,2
bilhões.
o front externo acenava para perspectivas mais positivas. Em 92, o país registrou
um superávit comercial recorde de US$ 15,6 bilhões, além de um ingresso de US$ 7
bilhões em investimentos e reinvestimentos estrangeiros, o maior volume de recursos
recebido desde a eclosão da crise em 1982. Com isso, diminuiu-se consideravelmente o
peso da dívida externa no montante total da dívida do setor público, como se pode ver na
tabela 1.
Os superávits comerciais sucessivos (em 1991, o resultado havia sido superavitário
em mais de US$ 10 bilhões), aliada à retomada do ingressos de recursos estrangeiros no
país reduziram o volume da dívida exterior, enquanto a dívida interna adquiria peso cada
vez maior sobre o montante total.
O cenário de instabilidade política no interior do governo começava a também ser
alterado. Itamar nomeava em março Fernando Henrique Cardoso para o cargo de ministro
da Fazenda, o quarto ministro em oito meses de mandato. Em junho, era decretado o corte
de três zeros na moeda, que passa a se chamar Cruzeiro Real, e anunciado o PAl (programa
de Ação Imediata), um conjunto de medidas preparatórias para a implementação da UR V e
do Plano Real.
O programa enfrentou menos obstáculos políticos e teve vários avanços em relação
aos planos anteriores. Em primeiro lugar, conseguiu capitalizar a grande visibilidade da CPI
que investigava o "esquema PC" para focar a questão orçamentária e a necessidade de
cortes nos gastos", levando adiante um programa de corte de gastos de US$ 6 bilhões já no
orçamento de 93 e a regulamentação do IP.MF, com aval do Congresso. Levantou também a
questão da recuperação de receitas tributárias com o combate à evasão fiscal, o fim da
8 Diz a exposição de motivos do PAI: "... Ninguém que tenha noção da realidade das finanças públicasacredita que será possível realizar a totalidade da despesa prevista no orçamento da União deste ano [1993].Essa é uma ficção que precisa ser abolida ... ( ..) Mas não basta o Executivo reprimir reprimir precariamenteo déficit orçamentário através do corte de despesas na boca do cofre do tesouro. Isso apenas adia despesas.Além disto, tem sido uma tremenda fonte de fisiologismo e corrupção na corrida pela liberação de verbas,fato aliás salientado no relatório final da CPf do Senado sobre a atuação do senhor Paulo César Farias no?overno Collor de ueu«:
As denúncias foram feitas por um ex-assessor de Orçamento da Câmara, inicialmente preso por suspeita deassassinato de sua mulher, em entrevista à Veja. A CPI apurou que o esquema envolvia uma rede de
39
inadimplência de Estados e Municípios em relação às dívidas com a União, o controle dos
bancos estaduais, o saneamento dos bancos federais e a privatização. Transcrevo abaixo o
diagnóstico do relacionamento da União com os Estados e Municípios e o receituário
sugerido:
"Para muita gente, governo, no Brasil, significa apenas
Governo Federal. Nada mais falso. Os governo estaduais e
municipais detém 45% da receita tributária disponível. Pagam uma
folha salarial três vezes maior que a da União e investem cinco
vezes mais. Devem em cruzeiros o equivalente a US$ 40 bilhões de
dólares à União e não vêm pagando. No período de setembro de
1991 a dezembro de 1992, deixaram de pagar à União mais de US$
2 bilhões ... Em relação a eles, o Governo Federal atuará com
flexibilidade, mas com determinação no sentido de: 1. Reduzir as
transferências não constitucionais de recursos do orçamento
federal; 2. regularizar os pagamentos da dívida vencida para com a
União; 3. impedir o retorno de Estados e Municípios ao
endividamento insolúvel. "
Em segundo, sua implementação se deu ao longo de um período de fraqueza
institucional do Congresso por conta das denúncias relativas aos desvios de verbas
orçamentárias envolvendo os chamados "Anões do Orçamento" e da grande visibilidade
que o tema ganhou na imprensa".
É bem verdade que grande parte das medidas era por demais ambiciosa para ser
adotada em meio ao clima político vigente e apenas conseguiu ser implementada após o
Plano Real e ao longo dos dois mandatos de FHC, ou seja, com a mudança do quadro
12 empreiteiras, 17 deputados e wn senador, que apresentavam emendas em troca de "caixinhas" de, emmédia, 3% do valor das obras. As audiências da CPI eram transmitidas com chamadas ao vivo pela televisão etiveram grande repercussão mesmo entre os estratos mais pobres da população, principalmente com odepoimento de um dos deputados acusados, que afirmou ter acumulado sua renda ganhando várias vezes naloteria.
40
federativo. No entanto, o PAI teve o mérito de ter formatado uma espécie de script fiscal,
que foi razoavelmente seguido durante os anos subsequentes.
Em dezembro, o governo lança o Plano FHC 2, no qual a FSE (Fundo Social de
Emergência), um fundo formado, entre outros, pela retenção de 15% da receita tributária da
União, pelo aumento da Contribuição Social sobre o Lucro e cobrança do PIS das
instituições financeiras e, originalmente, também pela retenção de 15% dos repasses
constitucionais pelo aumento de 5% dos impostos federais, era o carro-chefe. Tratava-se de
uma receita estimada em US$ 16 bilhões, a ser utilizada para financiar 20% das despesas
não-financeiras, já prevista na proposta de Orçamento da União de 1994, enviada ao
Congresso no final do ano de 93.
A aprovação da emenda da FSE enfrentou diversos obstáculos. Em primeiro lugar,
em virtude da forte rejeição dos congressistas ao novo aumento de impostos e ao bloqueio
dos repasses a Estados e Municípios, em ano eleitoral. As duas medidas eram desaprovadas
por 81,2% e 76,5% dos congressistas, respectivamente, segundo pesquisa apresentada pelo
jornal "O Estado de S.Paulo"lO. "Não temos nenhuma disposição em dar mais dinheiro para
o governo, porque o Estado gasta mal para burro", afirmava o deputado Delfim Netto
(então PPR-SP), mostrando a pouca disposição dos partidos em negociar!'.
O governo mobilizou-se para pôr a Emenda Constitucional da FSE em votação no
Congresso revisor (desta forma, seriam necessários apenas a maioria absoluta dos votos e
não os 3/5 dos votos), no que foi bem sucedido. A CPI do Orçamento, entretanto,
praticamente esvaziou o Congresso durante esse período, paralisando as atividades.
A tática do ministro FHC, então, foi a de radicalizar seu discurso, ameaçando deixar
o cargo caso a emenda não fosse aprovada. Em pronunciamento em rádio e TV, no dia
8/2/1994, FHC criticou a postura dos congressistas, afirmando que chegara "ao limite do
possível". "[Os congressistas] sabem pedir e reivindicar, mas fogem às suas
responsabilidades. (...) É preciso que decida e diga sim ou não, que não se omita, nem
deixe para depois. Se não estiver de acordo com o plano proposto, recuse-o, pois não
10 "Plano FHC2 corre riscos no congresso", O Estado de São Paulo, 12/12/199311 "Maiores partidos rejeitam Fundo Social", Folha de S.Paulo, 8/12/1993
41
faltará quem busque outros caminhos e formule alternativas. (...) O Brasil tem pressa e o
governo está pronto para agir", disse.
Na verdade, o ministro também tinha muita pressa. Candidato à presidência nas
eleições de outubro, seu prazo de desincompatibilização terminava em março, e o PAI e o
Plano Real seriam sua principal plataforma política, a qual não se concretizaria sem a
aprovação da proposta de orçamento que, por sua vez, dependia da FSE.
O Congresso aprovou a emenda ao final de fevereiro. Cinco pontos da proposta
original -a retenção de parcela dos fundos de participação de Estados (FPE) e Municípios
(FPM) , de parcela de ressarcimento do IPI (FPEX), e de parte dos fundos do Norte e
Nordeste (FNO e FNE), além da limitação de gastos com o funcionalismo aos mesmos
valores de 1993 e o aumento do IRPJ- caíram ao longo das negociações. A emenda final
teve votação expressiva, sendo aprovada por 402 votos a favor, 95 contra e 3 abstenções'".
Grande parte dessas medidas atingia diretamente recursos destinados a Estados e
foram retiradas por lobby dos governadores sobre suas bancadas parlamentares, o que
demonstra a força dos "barões" ainda nesse período.
Por outro lado, não se podia mais adiar a votação por muito tempo. A CPI do
Orçamento, observa MELO (2002), deixou o Congresso incapaz de contestar o governo a
questões relativas gasto público. "Beneficiando-se da fragilidade do Congresso para
oferecer resistência, o governo manejou estrategicamente a agenda da revisão,
convertendo-a virtualmente num pacote de pequenas mudanças na área fiscal. Decorre daí
que o Fundo Social de Emergência tenha se constituído na primeira emenda promulgada e
na única mudança significativa realizada na Constituição" (idem: 65).
O resultado também decorreu, em larga medida, da falta de alternativa frente a
ameaça de hiperinflação. Não havia outra proposta além daquela apresentada pela equipe
de FHC. Já fragilizado, o Congresso quis evitar ser responsabilizado pela inércia
institucional caso rejeitasse a proposta -é a tática do "blame avoidance"-, como mostra a
declaração do deputado mineiro Tarcísio Delgado, líder do PNIDB na Câmara à época: "O
governo deve estar se sentindo muito bem. Agora, cresce a responsabilidade do governo e
do ministro para tocar o plano econômico. Transferimos a bomba que estava em nossas
42
mãos para a mão de Fernando Henrique Cardoso. Não temos a ufania de achar que
aprovamos a melhor coisa do mundo. Fizemos o possível e o ministro deve desencadear a
implementação do plano. Ele fica fortalecido e não tem razões para deixar o cargo" 13 . A
aprovação da FSE foi o primeiro passo em direção à implementação da URVedo Plano
Real e suas repercussões políticas, que analisamos a seguir.
2.2. O Plano Real, a centralização de poder da União e a fraqueza dos Estados
A aprovação da emenda da FSE permitiu ao governo equilibrar em níveis mínimos
o orçamento de 1994. Estava assim cumprida o que a equipe econômica definia como a
primeira etapa do Plano Real. A tônica do plano -como já dito, a plataforma política do
candidato FHC à presidência- era a "estabilização sem choque, sem congelamento e sem
confisco", um resultado do aprendizado de tentativas (e erros) anteriores.
A próxima etapa seria a introdução de unidade de conta estável (uma espécie de pré-
moeda, chamada de Unidade Real de Valor, URV) e conversão dos contratos. Essa fase, a
principal novidade em relação aos planos precedentes, durou quatro meses e teve como
objetivo alinhar os preços relativos da economia. O governo atuou de maneira informal na
arbitragem das conversões -a capacidade de produzir decisões negociadas, para lembrar
Palermo (2000), é uma das condições para a governabilidade-, criando fórum não oficial
para estabelecer acordos, numa prática que ficou conhecida como "dallarização", um
trocadilho com o nome do principal responsável pela negociação de preços, José Milton
Dallari (BACHA, 1997).
Na Medida Provisória da URV, também foram incluídos mecanismos de proteção
aos salários, o que serviu para "convencer a Justiça do Trabalho a cooperar com O governo,
aceitando aplicar estritamente os termos da nova lei salarial, sem tentar, como de costume,
restabelecer o valor de pico dos salários a cada negociação anual" (idem)!", o que garantiu
também o apoio das centrais sindicais menos "radicais" ao plano.
12 "Cogresso aprova em segundo turno o FSE", Jornal do Brasil, 24/2/1 99413 "Repercussão", Folha de S.Paulo, 9/2/l99414 Um desses mecanismos previa "um aumento salarial, na data-base subseqüente de cada categoria, casoficase comprovado que, nos quatro meses de vigência da URV, o total dos salários convertidos em URV forainferior ao que teria sido pela lei salarial anterior. Como na maioria dos casos verificou-se uma diferença
43
No front externo, o governo conseguia, em abril, fechar um acordo de renegociação
da dívida externa no valor de US$ 52,9 bilhões (o débito totalizava US$ 134 bilhões),
liderado pelo então presidente do Banco Central, Pedro Malan. O acordo saiu mesmo sem o
aval do FMI (Fundo Monetário Internacional), tendo o pais se comprometido a oferecer, em
troca, garantias no valor de US$ 2,5 bilhões, tirado de suas reservas. Havia fôlego para tal:
desde 1992, o Brasil registrava ingresso de recursos da ordem de US$ 8,5 bilhões/ano, o
maior desde a crise de 1982. O cenário internacional também favorecia esse movimento: o
fluxo de investimentos no mundo todo, que somava US$ 50 bilhões em 1985, passava para
US$ 200 bilhões no início da década de 90, totalizando US$ 800 bilhões ao final dela':'. No
momento da conversão monetária da URV para o Real (30 de junho de 1994), as reservas
internacionais somavam US$ 41,1 bilhões, garantindo poder de fogo ao governo contra
eventuais ataques especulativos.
A conversão monetária, terceira e última fase do plano, derrubou de imediato os
índices de inflação para um dígito. A sobrevalorização da nova moeda, o Real, representou
um ganho real em termos salariais, aumentando o poder aquisitivo das camadas mais
pobres da população.
Isso garantiu à equipe econômica e ao principal mentor do plano, o candidato à
presidência Fernando Henrique Cardoso, grande prestígio político, que se traduziu nas
urnas: FHC obteve vitória em primeiro turno, com 54,3% dos votos. O ano de 94 também
se encerrava com um saldo positivo das medidas fiscais implementadas: um superávit
primário de 5,3% do PIB, apesar da perda do imposto inflacionário que, segundo dados do
Banco Central, produzia uma receita em torno de 2% a 2,5%.
Além do clima político favorável -pesquisa do Datafolha, realizada entre os dias 12
e 14 de dezembro, indicava que o índice de aprovação do Plano Real era de 79%- a eleição
presidencial desse ano teve ainda outra peculiaridade. Foi a primeira eleição "casada" com
as disputas para deputado federal e governador depois da redemocratização. O presidente
eleito teve, assim, ao contrário de pleitos anteriores, influência decisiva na formação da
Câmara. Além de respaldado pelo sucesso do Plano Real, FHC conseguiu em sua
positiva a favor da URV, este mecanismo não afetou o comportamento dos salários após a introdução doReal" (BACRA, idem).
44
campanha mobilizar o establishment político-partidário, em especial o PFL, com forte
. ascendência sobre os Estados nordestinos, contra o avanço de Lula, possibilitando a
formação de um bloco hegemônico no Congresso.
O mesmo ocorreu nos pleitos para os governos estaduais: aliados do presidente
foram eleitos nos cinco Estados mais importantes da Federação: São Paulo, Minas Gerais,
Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia (ABRUCIO, 1998).
Em suma, como mostra ABRUCIO (idem), a vitória de FHC foi marcada por um
contexto de:
a) eleição "casada" com as disputas pela Câmara e pelos governos estaduais, nas
quais o presidente eleito teve influência decisiva;
b) vitória de aliados nos principais Estados da Federação
c) cenário econômico favorável tanto no plano interno quanto no externo
É nesse contexto em que se fala em fortalecimento institucional do Executivo e
"delegação de poder" por parte do Congresso ao Executivo, o qual, fazendo bom uso dos
mecanismos institucionais pró-Executivo no interior do Legislativo, conseguiu não apenas
fazer valer a sua agenda (LDylONGI e FIGUEIREDO, 1998), mas também neutralizar a
ação dos "barões". Como vimos, o principal locus de barganha entre o presidente e os
governadores era o Legislativo -os parlamentares federais apoiavam ou não as iniciativas
do Executivo federal em consonância com as inclinações dos governadores. Isso passou a
mudar a partir das circunstâncias da vitória de FHC, principalmente porque o presidente
eleito teve influência decisiva na formação do Congresso.
ABRUCIO elenca ainda um quarto aspecto decisivo na mudança no pêndulo
federativo, que passo a discutir agora: a crise dos Estados.
O efeito imediato do controle da inflação foi o fim do float, ou seja, da prática que
permitia proteger a receita (impostos) da inflação, enquanto as despesas permaneciam em
termos nominais, cobrindo o "rombo" (efeito Oliveira-Tanzi às avessas ou efeito BACHA).
15 Dados da UNCTAD (2002)
45
o controle da inflação também desencadeou uma crise no sistema bancário, com o
fim dos ganhos inflacionários, que chegavam a representar 30% das receitas para a maioria
dos bancos privados. Bancos públicos, em especial os estaduais, por sua vez, tinham outro
agravante: os passivos acumulados com seus respectivos governos.
O uso político dos bancos estaduais constituía, como vimos, prática recorrente para
a obtenção de crédito fácil e repasse de déficits. Em São Paulo, por exemplo, os títulos
estaduais em mãos do Banespa, em 1994, eram equivalentes a R$ 9 bilhões, os quais não
tinham valor algum no mercado. Além disso, 90% dos ativos do Banco estavam
emprestados ao governo do Estado".
Em dezembro de 1994, o Banco Central intervém nos dois pnncipais bancos
estaduais, o Banespa (SP) e o Banerj (RJ), numa prévia do PROES (Programa de Redução
da Presença do Setor Público Estadual na Atividade Financeira Bancária ). "Em um caso
desses, ou é intervenção ou liquidação. Agora só tem um jeito, a superprofissionalização
dos bancos. Tirar toda a influência política dos bancos, inclusive do governador", disse o
ministro da Fazenda Ciro Gomes'", justificando a medida.
A intervenção ficou acertada para ocorrer antes da transição para o novo governo
para evitar atritos diretos entre FHC e os governadores de seu partido Mário Covas (SP) e
Marcello Alencar (RJ). Após. o anúncio do PROES, entretanto, todos os demais bancos
estaduais tiveram de aderir ao programa, que previa a federalização do banco para posterior
liquidação, privatização ou saneamento a cargo do governo do respectivo Estado, para obter
o socorro da União. Ao longo desse processo, de um total de 33 instituições, apenas oito
ficaram de fora do programa. O saneamento dos bancos estaduais custou à União um aporte
total de R$ 60 bilhões". Com isso, em novembro de 1997, os títulos estaduais em mãos do
Banco Central somavam R$ 42,3 bilhões.
A federalização dos bancos estaduais retirou dos ''barões'' outro importante
instrumento no manejo das políticas fiscais locais -o primeiro, como dissemos, foi a
inflação. No caso do saneamento dos bancos, entretanto, cabe ressaltar que a grande adesão
dos governadores ao PROES deveu-se antes ao custo fiscal - e político- que manter o
16 "Banco Central vai nomear direção do Banespa", Folha de S.Paulo, 26/11/199417 "Banco Central intervém no Banespa e Banerj", Folha de S.Paulo. 31112/1994
46
status quo (não federalizar) representaria ao seu governo. Explica-se. A política de juros
praticada a partir do governo FHC teve forte impacto sobre as dívidas estaduais em mãos
dos respectivos bancos. A título de exemplo, a dívida do Estado de São Paulo com o
Banespa, de R$ 9 bilhões em 94, passou para R$ 20 bilhões ao final de dois anos, o que
representava quase a metade do total da dívida desse Estado com a União (R$ 56 bilhões).
Assim, federalizar e repassar os custos à União se tornou a única alternativa viável aos
Estados. Nesse sentido, como apontam ABRUCIO e COSTA (1998), "a criação do PROES
nasceu não só do projeto de reestruturação do sistema financeiro estadual idealizado pelo
governo federal, mas também da pressão dos outros Estados para ter condições tão
favoráveis como a do governo paulista em sua negociação ..." (idem:84-85).
Recorrer à União passou a ser, assim, uma questão de sobrevivência, principalmente
em vista do descontrole das despesas não-financeiras.
Em 1995, os aumentos de salários dos funcionalismos estaduais concedidos ao
apagar das luzes das administrações passadas amarravam os orçamentos de praticamente
todos os principais Estados e Municípios. No Estado de São Paulo e em Santa Catarina, por
exemplo, os gastos com pessoal representavam 70% das receitas. No Rio Grande do Sul,
esse percentual chegava a 77% e, no Rio de Janeiro, ultrapassava 80%19. Atrasos no
pagamento dos servidores passaram a ser freqüentes, apesar do aumento da arrecadação do
ICMS de 1994 a 199720. Os Estados mais industrializados também começavam a alegar
perdas em razão do acirramento da guerra fiscal21.
Ancorado no sucesso do Plano Real -os patamares de aprovação ao plano se
mantiveram entre 79% e 69% até setembro de 1997, segundo o Datafolha22-, o governo
federal, por outro lado, consolidava legitimidade para levar adiante o núcleo duro de sua
agenda -o ajuste fiscal e as reformas Tributária, Previdenciária e Administrativa-, que se
contrapunha à fragilidade fiscal e ao enfraquecimento político dos Estados.
I~ "Socorro da União a bancos estaduais chega a R$ 60 bilhões", Folha de S.Paulo, 26/7/199919 "Estados mais ricos gastam dinheiro de impostos com salários de servidores", Gazeta Mercantil, 293/199520 "ICMS cresce 10,6% em São Paulo", Folha de S.Paul0, 5/1/1996; "Receita do ICMS de 97 só não supera ade 96". O Estado de São Paulo. 5/3/9821 "Sã~ Paulo perdeu R$ 1,9 bi'de ICMS em 94" O Estado de São Paulo, 24/7/9522 "Popularidade do Real mantém-se estável", Folha de S.Paulo, 16/3/1998. Esse percentual refere-se àsrespostas obtidas quando perguntados se o Real era considerado bom ao país.
47
A prorrogação do FSE, rebatizado de FEF (Fundo de Estabilização Fiscal) até junho
de 1997, é um exemplo disso'". Sem perspectivas de melhora imediata no quadro fiscal -o
aumento dos gastos com o funcionalismo federal era uma das fontes de pressão do
déficie4- o governo voltou a considerar a FSE medida prioritária. Buscou para tanto o
apoio dos governadores para aprová-la, firmando um "Pacto pelas reformas", acordado em
setembro de 1995, oferecendo em troca a renegociação das dívidas". Na mesma linha, o
governo central também se esforçou para aprovar a Emenda Constitucional n° 12, que
institui a CPMF (antigo IPMF).
A Lei Kandir é outro exemplo. A sobrevalorização do Real, combinada com a
liberação das importações e o aquecimento da demanda interna, havia provocado uma
brusca virada do saldo comercial a partir de novembro de 1994. De um superávit mensal
médio de US$ 1 bilhão, passou-se a um déficit de US$ 750 milhões por mês, entre
novembro de 1994 e março de 1995 (Simonsen, 1995), uma tendência que se agravaria ao
longo dos anos. Para desonerar as exportações, o governo propôs em 1996 uma lei,
posteriormente conhecida como Lei Kandir, prevendo a não incidência do ICMS -tributo
estadual que é principal fonte de receita no sistema tributário nacional- na compra de bens
de capital e nas exportações de semi-elaborados e produtos primários e compensação das
perdas dos Estados.
A tramitação envolveu longas negociações com os governadores e seus
parlamentares correligionários, em especial com a bancada paranaense -grande Estado
exportador dos produtos beneficiados-, em torno da fórmula de cálculo do valor de
compensação. O secretário da Fazenda de São Paulo, Yoshiaki Nakano, sintetizou a
insatisfação geral: "O projeto é bom para a economia de São Paulo, mas ruim para as
23 A proposta do governo era prorrogar o FSE até 1999, quando, segundo sua previsão, as reformas estariamconcluídas. O governo conseguiu aprovar somente uma prorrogação de um ano e meio. Nova prorrogação foienviada ao final de 96, sendo válida até 99. Em 98, foi enviada nova proposta, sendo a medida, desta vezrebatizada de DRU (Desvinculação das Receitas da União), válida até 2003.24 As despesas com pessoal da União, que somavam R'S 18,9 bilhões em 1987, passaram para R$ 44,7 bilhõesno início do governo FHC, por conta da expansão dos gastos previdenciários e das despesas do Judiciário e doLegislativo, de acordo com dados do jornal "O Estado de S.Paulo" ("Disparam gastos com pessoal no serviçopúblico", 25/511997). A reportagem mostra que "os tribunais federais contrataram 11.652 novos funcionáriosentre janeiro e novembro do ano passado. Foram 35 admissões por dia Nesse mesmo período, a Câmara e oSenado contrataram outras 4.645 pessoas. Foram 14 admissões por dia ".25 "Cardoso troca FSE por dividas", Gazeta Mercantil, 26/9/1995
AO'tO
finanças do Estado porque a compensação é insuficiente para cobrir as perdas".
Entretanto, apesar dos protestos dos Estados, o projeto foi aprovado pela Câmara por 303
votos a favor, 70 contra e 4 abstenções, depois de ter sido acertada, com os Estados, uma
antecipação de R$ 500 milhões relativo ao ressarcimento de perdas de 199726. Os Estados
exportadores dos produtos beneficiados, entretanto, sofreram perdas significativas na
receita do ICMS de 1996 a 1997, apesar de, no cômputo geral, grande parte dos Estados
terem apresentado ganhos significativos. No Rio Grande do Sul, registrou-se queda de
7,38% e no Rio de Janeiro, de 7,04%. O Paraná perdeu 6,5% e Minas Gerais teve queda de
3,75%, num periodo em que 14 outros Estados registravam crescimento real da arrecadação
por conta do crescimento de 3,4% do PIB27. São Paulo registrou no ano aumento de 1,7%
na receita do ICMS, mas anunciava perdas de R$ 850 milhões relativas à lei. A questão do
ressarcimento das perdas é ainda hoje um ponto de controvérsia entre União e Estados.
A despeito do bom desempenho da máquina arrecadatória dos Estados entre 1994 e
1997, porém, as crises dos funcionalismos estaduais se agravaram. A greve coordenada das
policias civil e militar em 12 Estados, em julho de 1997, trouxe à tona a profundidade do
problema. Na maioria dos Estados, os pagamentos do funcionalismo estavam atrasados há
vários meses, apesar de os governos terem demitido, de 94 a 97, cerca de 30 mil
funcionários e promovido prowamas de demissão voluntária. Em Alagoas, por exemplo, 17
mil dos 45,8 mil funcionários haviam aderido ao programa". A greve geral de julho, por
outro lado, forçou os governos a concederem aumentos, quando suas folhas de pessoal já
consumiam grande parte das receitas. Em Minas, os gastos com pessoal, que chegavam a
86% da receita do Estado antes da greve, chegavam a 92% com a concessão feita aos
grevistas. Apenas 7 Estados da Federação cumpriam as regras da Lei Camata, que
estipulou, em 1995, que os gastos com pessoal não deveriam exceder 60% da receita
líquida.
26 "Câmara aprova projeto do ICMS", Gazeta Mercantil, 28/8!l99627 "Receita do ICMS de 97 só não supera a de 96", O Estado de São Paulo, 5/3/9828 "Crise do Estado faz AL liderar demissões", 26/1 0/1997
49
Além disso, acirrava-se a competição não-cooperativa entre os Estados em razão da
guerra fiscal. Como mostram ABRUCIO e COUTO (1998), a guerra se iniciou no inicio
dos anos 90 por Espírito Santo, com a concessão de beneficios na importação de
mercadorias para estimular a utilização de seus portos, sendo tal iniciativa seguida pelos
demais Estados. As decisões do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária),
instância responsável pela resolução dos conflitos envolvendo questões tributárias passaram
a ser sumariamente desconsideradas.
Não houve tampouco iniciativas consistentes para reverter tal quadro. O governo
central, ao contrário, passou a alimentar esse processo, inclusive aceitando o repasse dos
custos dessa guerra, principalmente a partir de 1999. Uma das poucas medidas foi o projeto
original da Lei Kandir (1996), que previa mecanismos de fortalecimento do Confaz e inibia
a concessão de incentivos fiscais diferenciados por Estados, cuja inclusão fora negociada
pelo ministro do Planejamento à época, Antônio Kandir, com os secretários de Fazenda do
Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Entretanto, na
tramitação do Senado, ficou acertado que as cláusulas referentes a essa questão senam
retiradas por veto presidencial, atendendo aos governadores dos Estados menos
industrializados. A competição predatória continuava e se agravaria ainda mais ao longo do
tempo, enfraquecendo os laços interestaduais.
Vê-se, assim, que o jogo federativo mudou de figura a partir do governo FHC. Os
Estados não apenas perderam importantes prerrogativas fiscais (o uso dos bancos estaduais
e do float) como encontravam-se, por conta da política de juros praticada pelo governo
central e pela expansão dos gastos não-financeiros, em total bancarrota. Dependiam, assim,
dos recursos provenientes da União, em uma situação em que sua influência sobre os
parlamentares federais já não era tão forte como fora antes. Tampouco conseguiam articulàr
verticalmente estratégias coesas para fazer frente ao poderio crescente da União. Ao
contrário, brigavam entre si na concessão de beneficios fiscais cada vez maiores e de
retomo questionável.
O presidente, por outro lado, respaldado pelo sucesso de seu plano de estabilização
monetária, chamava para si um grau de legitimidade que outros não haviam conseguido,
inclusive para levar adiante propostas de alteração de dispositivos constitucionais
50
(mudanças, portanto, no nível da polity) e no jogo político (politics). Isso garantiu também
maior independência ao presidente na montagem de seu gabinete. FHC conseguiu estruturar
seu governo não apenas com base na distribuição de cargos a partidos importantes e, em
menor medida, a governadores aliados, mas sobretudo resguardando para a "quota do
presidente" ministérios e secretarias-executivas estratégicos, nos quais alocou pessoas de
sua estrita confiança e de alto nível técnico (LOUREIRO e ABRUClO, 1999).
A formação da equipe econômica e mais particularmente do Ministério da Fazenda,
como observam LOUREIRO e ABRUClO (idem), é um claro indicativo disso. Durante os
dois mandatos de FHC verificou-se forte centralidade das decisões econômicas em torno
desse ministério, alçado à condição de "órgão superior e controlador do gabinete". Tal
centralidade esteve associada "primeiro, a uma situação marcada pela escassez de recursos
e a necessidade constante de controlar as contas públicas .. (...) segundo, à importância do
plano de estabilização para o sucesso político do presidente; terceiro, aos laços de
confiança estabelecidos entre o presidente e a cúpula do MF, que se originam da gestão de
Fernando Henrique na Fazenda no governo Itamar; e, por fim ... à importância estratégica
que o Ministério da Fazenda teve como controlador dos outros órgãos cuja distribuição do
poder foi feita para garantir maioria parlamentar ..." (idem:85-86). Trata-se, neste último
caso, de um controle exercido. basicamente pelo poder de liberação e contingenciamento de
recursos da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), essencial para a implementação das
políticas dos ministérios e das demandas parlamentares.
O governo federal conseguiu ainda encaminhar uma agenda constituinte. O jogo
político brasileiro, como dissemos, enfrenta um "problema constitucional": o engessamento
do policy-making em razão da constitucionalização de dispositivos referentes à policy. O
efeito imediato disso é que se faz necessário, para implementar a agenda política,
implementar antes uma agenda constitucional, que, por sua vez, requer a formação de
amplas coalizões partidárias.
O governo FHC foi bem sucedido nessa agenda constitucional, como ressaltam
COUTO e Arantes (2002): "Ao longo de 14 anos de vigência da Constituição de 1988, 44
emendas constitucionais foram aprovadas, sendo 6 durante o já mencionado processo de
Revisão -as Emendas Constitucionais de Revisão- e outras 38 como Emendas
BIBLIOTECA KARL A, BOEDECI<ER
51
Constitucionais comuns. Destas últimas, 34 foram aprovadas somente durante o governoI
Fernando Henrique Cardoso (entre os anos de 1995 e 2002) tendo sido, na sua maior
parte, propostas de iniciativa do Poder Executivo e recaindo majoritariamente sobre
matérias que compunham uma agenda tipicamente governamental e não necessariamente
constitucional, no sentido mais rigoroso que essa expressão possa conter' (idem: 6).
No primeiro mandato, o governo procurou centrar esforços para aprovar mudanças
relativas à ordem econômica, aprovando um total de 13 emendas constitucionais, grande
parte dos quais tiveram algum tipo de efeito fiscal. O quadro abaixo elenca as ECs
aprovadas durante os dois mandatos de FHC, classificadas de acordo com seu teor.
Quadro 1 - Emendas Constitucionais e respectivo teor (1995 - 2002)
EMENDAS TEOR
6,7,8,9 elO
19,20,25,30,33
10,12, 17,21,27 e 37
Desregulamentação e desestatização da economia/efeitos:fiscais indiretosReforma do Estado/efeitos :fiscais estruturais
Propósitos :fiscais imediatos
15, 16, 22, 23, 24, 35 Caráter eminentemente político
11, 18, 14, 26, 28, 29, 31, 32, 34, Temas sociais e gerais/efeitos fiscais indiretos36,38FONTE: COUTO (2001), adaptado pela autora
As emendas a partir da EC n° 21, inclusive, foram aprovadas no segundo mandato
Dentre as medidas classificadas como de efeito fiscal estrutural, destacam-se a da
Reforma Administrativa (EC n? 19), que tramitou por exatos três anos e a da Previdência
(EC n° 20), que teve um longo trâmite de 46 meses. A EC n" 30, que regula a emissão de
precatórios, também entra nesse rol. Ao contrário, as prorrogações do Fundo Social de,Emergência (EC revisional n° 1, aprovada quando FHC era ministro da Fazenda do governo
Itamar) e seus sucessores (EC n° 10, quando foi rebatizada de Fundo de Estabilização Fiscal
e EC n° 17 e EC n? 27, quando passou a ser chamada de Desvinculação das Receitas da
/ União), além da instituição e prorrogações do IPMF (EC n° 3) e do CPMF (EC n° 12 e EC °21) configuram como medidas fiscais de impacto imediato e de caráter provisório (embora
52
venham sendo sucessivamente prorrogadas), que se sucederam às diversas cnses
internacionais.
A despeito da ênfase dada ao equacionamento do déficit fiscal e das medidas
implementadas, as contas apresentaram, a partir de 1994, uma rápida deterioração, exigindo
maior esforço de ajuste fiscal para a obtenção de superávits primários. A tabela 3 traz a
evolução no pós-Real da relação dívidaIPIB, que volta a partir de 1998 aos níveis do início
da década de 80.
Tabela 3. Dívida líquida do setor público - evolução pós-Real
%doPIB
ANO GOVERNO ESTADOS E EMPRESAS TOTAL INTERNA EXTERNA
CENTRAL MUNICÍPIOS ESTATAIS
1993 9,7 9,3 14,0 33,0 18,6 14,5
1994 12,5 9,7 6,9 29,2 20,7 8,4
1995 13,2 10,6 6,7 30,5 24,9 5,6
1996 15,9 11,5 5,9 33,3 29,4 3,9
1997 18,8 13,0 2,8 34,5 30,2 4,3
1998 25,3 14,3 2,9 42,6 36,0 6,6
1999/maio 30,6 15,5 3,5 49,6 38,8 10,8
Fonte: Banco Central
Grande parte da deterioração corresponde ao aumento das taxas de juros que se
sucederam às crises externas -do México, em 1995, da Ásia, em 1997 e da Rússia, em
1998. Como se sabe, o país é altamente dependente da atração de recursos externos para o
financiamento dos déficits de transações correntes. A dependência aos recursos externos foi
ainda maior até a crise deflagrada em 1999, dada a utilização da âncora cambial como
estratégia de estabilização monetária, estratégia essa abandonada em janeiro daquele ano. A
manutenção de altas taxas de juros, assim, exerceu e continua exercendo papel chave, e
atuou principalmente em resposta às sucessivas crises e à instabilidade econômica.
Como contrapartida do ingresso de reservas internacionais, por outro lado, o
governo emite títulos para "esterilizar" o efeito monetário da acumulação de reservas
53
internacionais (ou seja, a inflação), aumentando de forma brutal a dívida interna, como
mostra a tabela 3.
O impacto dos juros sobre um montante já considerável de estoque da dívida foi
impressionante. De janeiro de 1995, o início do mandato de FHC a maio de 2002, a dívida
líquida do setor público passou de R$ 153,2 bilhões (30,5% do PIB) para R$ 708 bilhões
(56% do PIB), um aumento de R$ 555,3 bilhões. Os gastos com juros nominais
corresponderam a R$ 506,5 bilhões. A desvalorização cambial, a partir de 1999, aumentou
a dívida em R$ 138,6 bilhões por conta do grande passivo atrelado à moeda forte. Por fim,
o reconhecimento de "esqueletos", muitos dos quais pertenciam aos Estados e foram
reconhecidos a partir de 1995, representou um acréscimo de R$ 103,2 bilhões". A tabela a
seguir ilustra o peso crescente dos juros na dívida e do esforço fiscal efetuado para manter a
relação dívidaIPIB em patamares "aceitáveis pelos credores".
Tabela 4. Evolução do superávit primário, juro e dívida líquida
(1995-2001)
%doPIB
ANO (DEZ.) SUPERAVIT JURO/PIB DJVJDA
PRIlvfÁRlOIPIB LÍQUlDAIPIB
1995 0,'36 7,5 30,5
1996 -0,09 5,8 33,3
1997 -1 5,1 34,5
1998 o 7,9 42,6
1999 3,3 13,8 49
2000 3,5 8 49
2001 3,75 10,7 53
-FONTE: Banco Central, apud NETTO, Delfim. "A independência do BancoCentraI", Folha de S.Paulo, 25/4/2002
De grosso modo, a dinâmica da dívida está intrinsecamente ligada ao resultado
primário, à taxa de juros real e taxa do crescimento do PIB real. Dessas três variáveis,
29 "Dívida do governo salta para 56% do PIB", Folha de São Paulo, 28/6/2002
54
entretanto, apenas o resultado primário é a mais controlável3o a longo prazo, tendo em vista
que a taxa de juros constitui um instrumento balizador da economia e o crescimento do PIB
é uma perspectiva incerta face à instabilidade e a política monetária adotada. Isso explicaria
o "esforço concentrado" do governo central na obtenção de superávits primários.
Sem entrar no mérito de se os custos do ajustamento fiscal proposto pelo governo
FHC se justificaram ou não, fato é que tal esforço exigiu o ordenamento da situação de
"moral hazard" que se encontrava as finanças subnacionais, que em algum momento
precisaria ser equacionada. O impacto dos juros sobre os passivos estaduais gerou uma
situação de insolvência desses entes, deixando os "barões" sem alternativa senão depender
dos já escassos recursos da União, num quadro em que já não era possível recorrer aos
antigos instrumentos de crédito e artificios inflacionários e tampouco ao mercado. Lembre-
se ainda que o Plano Real, mesmo depois de sucessivas crises e do aumento dos juros,
contava com a aprovação de 61% da população ao final de 1998, garantindo a FHC um
segundo mandato".
O sucesso do Plano Real constituiu, assim, uma "conjuntura critica", ou seja, um
ponto de inflexão a partir do qual a posição relativa dos atores, em temos de poder e
preferências, foi modificada a favor do da proposta de ajuste fiscal (LOUREIRO e
ABRUCIO, 2002). Entretanto, as mudanças não ocorreram com base em reformas do tipo
"once for all", Ao contrário, foram implementadas gradualmente e em base no aprendizado
resultante dos erros anteriores. E aqui incorpora-se a idéia de incrementalismo, que passo a
discutir em seguida.
30 BEVlLAQUA, Afonso. "Resultado primário e dinâmica da divida", Valor Econômico, 28/61200231 "Cresce pessimismo sobre economia" Folha de S.PauJo, 27/12/1998
55
3. Ajuste fiscal pós-Real: incrementalismo epath dependence
A busca do equilíbrio das finanças públicas tornou-se, como vimos, núcleo duro da
agenda dos anos FHC. Contrapondo-se às experiências anteriores de estabilização e
reforma fiscal, entretanto, essa agenda foi levada adiante de forma paulatina e gradual,
registrando avanços e recuos e envolvendo ainda negociações com os diversos atores
políticos. Foi pautada, assim, por uma lógica essencialmente incrementalista, que conseguiu
capitalizar a concentração de poder e de recursos com a capacidade negociativa e de
aprendizado.
Como ressaltam LOUREIRO e ABRUCIO (2002), o incrementalismo constitui uma
"contraposição analítica e normativa em relação à visão totalizadora de mudança, fundada
numa concepção tecnocrática e insulada". Trata-se, assim, de uma prática que procura
incluir um maior número de atores no decision-making e "estender no tempo o processo de
transformação", o que permite ao policy makers "aprender mais com os possíveis erros de
implementação e tomar as decisões mais responsivas e responsáveis". Cada medida
implementada, por outro lado, orienta as mudanças do patamar seguinte, estabelecendo-se,
de tal sorte, uma relação de path dependence.
A ênfase nas medidas .de ajuste fiscal e de ordenamento das finanças subnacionais
fica clara no PAI (Programa de Ação Imediata), que precedeu a implantação do Real, e nos
demais planos e programas lançados pelo governo FHC (URV, Real, pacote de 1995, de
1997 e de 1998). Destaca-se, dentre tais ações, três tipos de medidas:
1) as de efeito fiscal imediato e provisórias, que buscaram um equilíbrio inicial por
meio da melhoria da capacidade arrecadatória ou pela retenção de parcelas dos
repasses aos entes subnacionais;
2) as que procuraram limitar os diversos mecanismos de endividamento dos
Estados e Municípios;
3) as medidas de contenção e restrição do gasto público, em especial com o
funcionalismo.
56
o quadro abaixo enumera as principais medidas, classificando-as de acordo com seu
conteúdo.
Quadro 2. Medidas fiscais e respectivo conteúdo
Dispositivo legal Teor
EC 3, art. 2~ECs 10,12,17,21,27 e 37
EC 3, art. 5~' Lei 9496/97 (Lei da Divida); Res.
BC n° 2443/97; MP 1773/98; Res. Senado n o Limitações ao endividamento dos
78/98; EC 19, art. 30, EC n° 30/00, LRFlOO;Res. Estados e Municípios
Efeito fiscal imediato e "provisório"
Senado n 040/01
LC 82/95 (Lei Camata 1); EC 19, art. 21; EC Restrição aos gastos com
19/98; EC 20/98; LC 96/99 (Camata 2), LRF/OO Funcionalismo
Se de um lado é certo que uma boa parte das medidas fiscais foi implementada por
via da edição e reedições de Medidas Provisórias - o PROES é um exemplo disso-, por
outro, observa-se que parte significativa do processo teve necessariamente de passar pelo
crivo do Congresso, ou seja, demandou considerável capacidade de negociação por parte do
Executivo. Decerto que o poderio que o Executivo conseguiu chamar para si, possibilitando
o uso efetivo da engenharia institucional no interior do Legislativo (LIMONGI e
FIGUEIREDO, 1997), respondeu por uma parte considerável dos resultados da produção
legislativa.
O Legislativo atuou sobre uma pauta que não era de sua iniciativa, e parlamentares
eram muitas vezes chamados a decidir sobre issues que atentavam interesses federativos,
sendo pressionados por governadores e prefeitos correligionários. Entretanto, sua atuação
não foi resultado de "adesismo" à agenda governamental por força dos mecanismos
institucionais, mas refletiu uma tomada de posição dos congressistas em prol da idéia de
ajuste fiscal. Isso se deu, em grande parte, às, digamos, "microconjunções críticas", quais
sejam, as sucessivas crises e a ameaça da instabilidade que pairava. Prova disso é que
grande parte das medidas aprovadas constituiu uma resposta legislativa às crises.
57
Dentre as medidas de efeito fiscal imediato, como já falamos, está a instituição do
FSE (Emenda Revisional 1), que constituiu um dos instrumentos mais importantes para o
balanceamento das contas no ano de 1994, abrindo caminho para a implementação do Plano
Real, a grande "promessa" de combate ao fantasma da inflação.
O FSE foi, por outro lado, segundo argumenta BACHA (1994), um dos principais
articuladores do Plano Real, uma espécie de "demonstração de força" -além de permitir
equilibrar o orçamento ex ante, possibilitou mostrar que o governo central era capaz de
promover um ajuste sem depender do imposto inflacionário. Constituiu ainda um primeiro
passo na direção da centralização de poderes distributivos em tomo do Executivo, uma
tendência que vai se cristalizando à medida que os demais dispositivos foram sendo
aprovados.
O que estava previsto para ser provisório, entretanto, passou praticamente a ser
perene durante o governo FHC. O FSE foi prorrogado por três vezes (EC 10/96, EC 17/97,
e EC 27/00), sempre tendo como justificativa a iminência de crise -e, de fato, houve quatro
crises no período- e a ameaça de que, sem a aprovação desse dispositivo, o país iria à
bancarrota.
A instituição do IP.MF/CP.MF (EC 3, art. 2°) e suas prorrogações (EC 12 e EC 37,
art. 3°) constituem outro exemplo de perenização de instrumentos tidos como provisórios e
que se tomaram essenciais para "fechar o caixa". A adoção de um imposto "em cascata",
que onera bastante o setor produtivo, contrapunha-se à preocupação em incentivar o
aumento das exportações -a Lei Kandir (1996) é um claro sinal disso-, um dos paradoxos
que ênfase no ajuste fiscal também gerou. Por outro lado, garantiu ao governo uma receita
anual de em tomo de R$ 9 bilhões, o que, somado ao aumento das contribuições sociais, do
ICMS sobre combustíveis, energia elétrica e telecomunicações, além da majoração da
alíquota do IOF e da melhoria na fiscalização, asseguraram um crescimento constante da
receita tributária. Dados do BNDES mostram que a carga tributária, que era, em 1947, de
13,84% do PIB, passou a 21,2% em 1989 e chegou a 34% em 2001, a maior em 54 anos da
série histórica do IBGE32, o que contribuiu enormemente para o esforço fiscal.
32 "Termômetro fiscais da tributação e da descentralização - posição: novembro de 2002", BNDES, 2002
58
Fato é que esses instrumentos conseguiram garantir ao governo federal poder dej
fogo para levar adiante uma agenda fiscal tendo como prioridade o ordenamento das
relações federativas e a realização de um esforço fiscal geral voltado para a geração de
superávits primários.
Tal ordenamento se deu com o fechamento gradual das "torneirinhas" de crédito
fácil à disposição dos governadores e prefeitos, abertas com a conivência tanto do Senado,
que tem a prerrogativa constitucional. de autorizar o endividamento dos três níveis de
governo da Federação, quanto a do Banco Central, a quem cabe a análise técnica do pedido
de autorização de dívida.
Em primeiro lugar, proibiu-se, por meio da EC 3/93, em seu art. 5°, a emissão de
títulos da dívida pública estadual e municipal que não fosse para o refinanciamento do
principal e do serviço da dívida correspondente. A emissão desses papéis, adquiridos quase
integralmente pelos bancos dos respectivos Estados, como se viu, era a principal fonte de
crédito dos governadores. A partir dessa limitação, procurou-se criar condições 'para evitar
o inchaço ainda maior do rombo dos bancos estaduais, pavimentando caminho para sua
federalização nos moldes do PROES. A única ressalva feita dizia respeito à emissão de
títulos para pagamento dos precatórios judiciais.
Fechada essa "torneira:', a próxima etapa foi a de renegociar as dívidas estaduais e
criar condições para que os acordos fossem cumpridos, fortalecendo o "enforcement" do
dispositivo legal. As primeiras negociações começaram já em 1996, na CAE (Comissão de
Assuntos Econômicos) do Senado, envolvendo nove Estados, dentre os quais São Paulo
(que respondia por 54% do total da dívida), que apresentaram seus protocolos de intenção.
A proposta governista era de assumir um total de dívidas no valor, à época, de R$ 72,8
bilhões, a serem parceladas em 15 ou 30 anos, a juros anuais de 6% e correção pelo IGP-DI
-bem abaixo dos 20% cobrados pelo mercado.
Negociações de dívidas subnacionais não eram novidade nas relações federativas. A
primeira delas data de 1989 (Lei 7.976), pela qual se refinanciou a dívida externa dos
, Estados por 20 anos, com correção cambial mais a taxa "libor", além de um adicional de
13% a 16% ao ano. A segunda negociação (Lei 8.727/93) abarcou as dívidas relativas ao
FGTS, por um prazo de 20 anos, prorrogáveis por mais 1O, com limite de
59
comprometimento de 11% da receita líquida dos Estados'". Com a aprovação da Lei
9.496/97, porém, parte significativa do remanescente até então não negociado da dívida foi
levada à mesa de negociação.
A contrapartida dos Estados implicava um grande ônus. Era necessário, antes de
tudo, comprometer de 11,5% a 15% das receitas líquidas e cumprir metas de resultados
primários, de arrecadação de receitas próprias, de privatização, permissão ou concessão de
serviços públicos e de despesas com funcionalismo público. A lei reforçou ainda a
proibição de emissão de títulos prevista no art. 5° da EC 3, proibindo a colocação de novos
papéis da dívida enquanto a dívida financeira do Estado for superior à sua receita líquida
anual. Novos endividamentos, inclusive junto a organismos internacionais, só seriam
permitidos caso o ente estivesse cumprindo as metas previstas na lei.
Ainda assim, 25 Estados aderiram à negociação +apenas Tocantins e Amapá ficaram
de fora das renegociações no âmbito dessa lei-, a maioria dos quais logo após a sua
promulgação ou ao longo de 1998.
A questão do "enforcement" também foi enfatizada. O art. 3°, § 6° da lei prevê a
substituição dos encargos financeiros subsidiados pelo custo médio da captação da dívida
mobiliária federal, acrescido de um por cento ao ano, além da elevação de quatro pontos
percentuais do nivel de comprometimento da receita quando da não observância dos
compromissos. A previsão de garantias, vinculadas às receitas próprias dos Estados e aos
repasses constitucionais, também foi uma inovação (art. 4°), cuja execução foi de fato
levada a cabo contra Estados inadimplentes.
Em 99, os governadores recém-empossados passaram a questionar os .termos das
negociações, feitas pelas administrações anteriores. Os Estados viam-se em situação
financeira dramática. A crise econômica havia reduzido a receita do ICMS do ano anterior
e os gastos com pessoal avançavam, consumindo grande parte da receita líquida dos
Estados. Os fracos resultado das Reformas Administrativa, que não conseguiu derrubar de
imediato a questão da estabilidade do servidor público, o que facilitaria um corte maior do
funcionalismo, e Previdenciária, que pouco alterou a situação da previdência pública- não
abriram espaço para equacionar os principais gargalos das administrações públicas.
33 "Estados devem R$ 127 bilhões à União", Jornal do Brasil, 10/1/1999
60
A rejeição do acordo pelo governo de Minas Gerais, tendo à frente o governador
Itamar Franco (pMDB-MG) e o anúncio da moratória no início de janeiro de 99, entretanto,
foram "exemplarmente" punídos. As garantias -retenção dos repasses constitucionais a esse
Estado, como prevê a Lei da Dívida- foram executadas, com aval do Supremo Tribunal
Federal". Governadores que sinalizavam alinhar-se a Minas, como o caso do Rio de
Janeiro (Antony Garotinho, PDT-RJ), recuaram". Ainda que o peso da dívida renegociação
fosse grande, a situação dos Estados era de "ruim com a renegociação, pior sem ela", como
sintetizou o governador Mário Covas (pSDB-SP): "Quero ver qual é o governador que
prefere rolar sua divida no mercado financeiro... O que está parecendo é que eles estão
oscilando entre pagar e não pagar e não se trata disso... É óbvio que sai mais barato não
pagar, mas condições melhores do que as previstas nos acordos, são muito dificeist'",
defendendo os acordos. O governo paulista vinha cumprindo rigorosamente suas
obrigações com a União, embora internamente estivesse em uma "quase moratória",
atrasando os pagamentos aos fomecedores'".
Até 2001, todos os 27 Estados da Federação aderiram a algum tipo de renegociação,
seja pela Lei da Dívida, seja pela Medida Provisória 1.773/98, que abriu a possibilidade
para empréstimos destinados ao saneamento dos bancos estaduais exclusivamente para sua
privatização ou transformação em agência de fomento, ou ainda pela possibilidade de
empréstimos para o saneamento dos gastos com funcionalismo por meio da promoção de
PDVs. A dívida financiada chegou a R$ 197 bilhões": A renegociação, que envolveu
também, na etapa final, os Municípios, foi incentivada com a perspectiva de aprovação da
LRF, que proibiu qualquer tipo de renegociação depois de sua entrada em vigor.
O Senado assumiu na renegociação e no processo de controle do endividamento
papel de extrema relevância. Tendo a prerrogativa constitucional de autorizar os pedidos de
endividamento de todos os entes da Federação, seu controle constitui a mais importante
atividade legislativa exclusiva do Senado. Cerca de 80% das resoluções dessa Casa entre 89
34 "Governo bloqueia R$ 11,7 mi de repasses federais a Minas", Folha e S.Paulo, 12/1/199935 "Pedetista fala em não pagar", Folha de S.Paulo, 5/1/1999; "Garotinho afasta hipótese de aderir àmoratória", O Estado de São Paulo, 8/1/1999; "Depois do calote, o isolamento", O Globo, 10/1/199936 "Covas defende respeito a acordos com União", O Estado de São Paulo, 10/2/199937 "Governo atrasa pagamento de fornecedores", idem38 "Entre Estados e União débitos estão acertados", Gazeta Mercantil, 18/11200 I
61
a 99, envolveram autorização para endividamento ou repactuação de dívidas (LOUREIRO,
2001). LOUREIRO (idem) descreve o processo de autorização:
"...os governos interessados em emitir títulos ou estabelecer
contratos de créditos encaminham seus pleitos ao Banco Central,
que analisa cada caso e em seguida envia ao Senado parecer
conclusivo, recomendando ou não a autorização. Uma ez no
Senado, o parecer é recebido e discutido pela Comissão de
Assuntos Econômicos (CAE), composta por 27 senadores, que
aprova ou rejeita o pedido, enviando-o para a dcisão final do
plenário. Como todos os pareceres emitido pela Comissão são
sempre aprovados no plenário, a CAE acaba sendo o loeus
decisório central do processo de controle do endividamento público
no Brasil" (idem:54).
Entretanto, como a CPI dos Precatórios mostrou, muito dessa prerrogativa foi
flexibilizada no atendimento das demandas de governadores e prefeitos. O próprio relatório
da CPI, instaurada em novembro de 1996 e encerrada em julho do ano seguinte, constatou
que o desvio das verbas destinadas ao pagamento de precatórios, envolvendo os Estados de
Pernambuco, Alagoas e Santa Catarina, além dos Municípios de São Paulo, Campinas,
Osasco e Guarulhos, foi favorecida pela negligência do Senado e do Banco Central na
avaliação do processo de endividamento. O endividamento dos entes subnacionais para o
pagamento precatórios, vale ressaltar, era a única brecha permitida tanto na EC 3, art. 5°,
quanto na Lei da Dívida, que passaram a ser, pelo menos aos envolvidos, uma importante
fonte de crédito. A permissividade do Senado também se revela também nas 50 operações
de crédito aprovadas ao longo de 1997, totalizando R$ 11,7 bilhões, cuja maioria, como
mostra reportagem do jornal "O Estado de São Paulo", contrariou as normas do próprio
SenadoJ9.
39 "Senado amplia gastos de Estados em R$ 11,7 bi", 8/3/1998
62
Apesar de nenhum dos acusados pela CPI ter sido judicialmente processado", as
repercussões da CPI serviram para conter outra das "to meirinhas" de crédito dos Estados e
Municípios. Nesse sentido, a resolução 78/98 deu dois passos significativos, ampliando as
restrições quanto à emissão de títulos, à contratação de AROs e limitando, paradoxalmente
sua atuação, ao determinar ao Banco Central somente o encaminhamento dos pedidos de
endividamento de Estados devidamente em dia com as dívidas da União. A limitação das
AROs, em particular, veio a reforçar o controle antes feito pela Resolução do Banco
Central 2.443/97.
Por outro lado, pressões políticas em CIma do Senado ampliavam-se com o
agravamento da crise financeira dos Estados. Ao final de 1999, os acordos de renegociação,
por exemplo, estiveram a um passo de serem revistos pelo Senado, atendendo a um pedido
do Piauí. O Estado havia requerido a revisão do percentual de 13% de comprometimento de
sua receita líquida mediante um novo acordo com a União, o que abriria uma brecha para
que todos os demais Estados assim o fizessem. O pedido havia sido aprovado pela CAE e,
em plenário, obteve 28 votos contra e 28 votos a favor. Ele somente foi derrubado com o
voto de minerva do senador baiano Antônio Carlos Magalhães (PFL).
Além disso, os débitos relativos aos precatórios dos Municípios apontados pela CPI
foram incluídos nas rolagens elas dívidas municipais, com aval do próprio Senado, o que foi
duramente criticado pelos editoriais de jornais. O Jornal do Brasil sintetiza dessa forma:
cc .. A questão [dos precatórios} veio finalmente esta semana ao plenário do Senado e foi
agraciada com tratamento familiar: transformou-se em privilégio a ser pago com o
dinheiro do contribuinte. O lado moral foi arquivado e afalcatrua trocou de personalidade
graças à resolução autorizando a União a financiar o pagamento dos supostos precatórios
em dez anos. O prazo não faz diferença moral: a irregularidade é a mesma com outra
aparência, e agora premiada?":
Por outro lado, muito das medidas serviram de base e foram absorvidas pela Lei de
Responsabilidade Fiscal, promulgada em maio de 2000. Constituíram, assim, uma espécie
40 "Ninguém é punido quase 3 anos após CPI", Folha de S.Paulo, 19/3/200041 "Epitáfio do Escândalo", 25/6/1999. "O Estado de São Paulo" faz críticas semelhantes em seu editorial dodia 24/6/1999, "A patifaria consolidada".
63
de "prévia" da LRF. Outra medida de igual importância à formação da LRF diz respeito à
limitação dos gastos com o funcionalismo.
O limite dos gastos com pessoal está previsto no art. 169 da Constituição de 1988.
Entretanto, à falta de regulamentação até 1996, os Estados estabeleceram um limite médio
de 70% das receitas para o funcionalismo.
A regulamentação veio com a Lei Complementar 82/95, proposta pela deputada Rita
Camata (pMDB-ES) em 1989 e aprovada em 1991 pela Câmara. O projeto ainda demoraria
quatro anos para ser aprovado pelo Senado, sendo sancionado em março e 1995
A Lei Camata 1 previa um limite de até 60% da receita corrente líquida para as
despesas totais com pessoal ativo e inativo da administração direta e indireta da União e de
70% para Estados e Municípios. A lei entraria em vigor a partir de 1997, estabelecendo um
prazo de três anos para o enquadramento nos limites, sendo que, a cada exercício
financeiro, a redução deveria ser de um terço do excedente.
Entretanto, face à crise financeira dos Estados e aos aumentos concedidos por
governadores e prefeitos às vésperas de eleições, além do avanço constante dos gastos com
o Legislativo e o Judiciário, poucos foram os Estados que conseguiram, próximo ao prazo
final previsto pela lei, enquadrar -se aos limites.
Transcrevo abaixo o editorial do ''Estado de São Paulo", de 3/6/1999, descrevendo a
situação dos Estados:
" ... .Em dez Estados, o desequilíbrio era tão grande que os
servidores estavam com seus vencimentos em atraso: Minas,
Espírito Santo, Pernambuco, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul,
Piauí, Alagoas, Acre, Rondônia e Roraima, o desequilíbrio era tão
grande que os servidores estavam com seus vencimentos em atraso.
E atrasos de três, quatro meses, como no Espírito Santo, Santa
Catarina, Piauí e Rondônia. Em seis Estados, mais o Distrito
Federal, as despesas com pessoal chegaram a 75%, ou mais, da
receita líquida: Alagoas (78%), Distrito Federal (76%), Espírito
Santo (82%), Minas Gerais (80 %), Rio de Janeiro (79%), Rio
•.
64
Grande do Sul (77%) e Rondônia (80%). Estavam em dia com a lei
apenas três Estados: Ceará, Bahia e Maranhão ..".
Em maio de 1999, nova lei (96/99, a Lei Camata 2) é editada, concedendo prazo de
mais dois anos para o enquadramento. O novo dispositivo, reduziu o limite de gasto da
União para 50% e dos Estados e Municípios para 60%, mas, como apontou o mesmo
editorial, constituiu praticamente uma moratória.
Entretanto, continuou não sendo cumprida pela maioria dos Estados e Municípios.
O principal argumento dos governadores e prefeitos para o não cumprimento dizia respeito
ao aumento dos gastos com os demais poderes.
O mérito da lei, apesar de seu enforcement ter sido fraco, foi a de delimitar um
parâmetro para que os Executivos pudessem realizar cortes por insuficiência de recursos,
um parâmetro que não existia antes.
Serviu também para trazer à tona o fato de que o ajuste fiscal não poderia
concentrar-se apenas no esforço de um dos poderes. É nesse sentido que a LRF passou a
contemplar limites nos três Poderes, atendendo aos pleitos dos chefes dos Executivos.
É também nesse sentido que se argumenta que a LRF constituiu o resultado de uma
lógica incrementaI, incorporando uma série de aprendizados. Isso fica claro nos
antecedentes e na tramitação da lei, que discuto no próximo capítulo.
65
CAPÍTIJLom
A TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA DA LRF: INSTITUIÇÕES E IDÉIAS
Vimos no capítulo anterior que o ajuste fiscal implementado no periodo que
antecedeu o Plano Real e durante todo o governo FHC seguiu uma lógica diferente daquilo
que se pode imaginar de uma reforma em seu sentido totalizador. Ao contrário, trataram-se
de medidas restritivas do gasto e do endividamento gradualmente adotadas, tendo o projeto
de Lei Complementar n° 18, posteriormente denominado Lei de Responsabilidade Fiscal
(LRF), encerrado o ciclo de ajustes fiscais estruturais da Era FHC.
A lei foi aprovada na Câmara dos Deputados no dia 25/0112000, após uma
tramitação de um pouco mais de nove meses. De pronto, o que chama a atenção é a rapidez
no trâmite e a pouca modificação no seu sentido original. Tais características ganham mais
destaque levando-se que a LRF implica, de um lado, imposição de perdas concentradas a
certos atores (no caso, particularmente governadores e prefeitos), e de outro, obtenção de
beneficios difusos (no caso, para os cidadãos de modo geral, dados os ganhos econômicos e
sociais advindos de uma restrição orçamentária mais accountable nos planos imediato e
intertemporal). Mesmo considerando a maior dificuldade de se aprovar uma Emenda
Constitucional (EC), a Reforma Administrativa, por exemplo, passou 34 meses na Câmara,
num processo marcado por diversas descontinuidades e alterações na proposta original
(Melo, 2002).
A imensa quantidade de votos favoráveis ao projeto também constitui um traço
distintivo - 385 votos a favor, 86 contra e 4 abstenções. Novamente a título de comparaçã?,
ressalta-se o trabalho de JAIRO NICOLAU (2000), no qual se procura avaliar o grau de
apoio dos partidos às proposições do Executivo durante o primeiro mandato de FHC. Ao
longo desse período, os partidos governistas (pFLIPSDB/ P.MDB/ PPBIPTB) somaram, em
média, 396 cadeiras, o que possibilitaria a aprovação tranqüila de Emendas Constitucionais.
Todavia, os parlamentares situacionistas contribuíram na mediana com 318 votos durante
as tramitações das ECs, ou seja, pouco acima dos 308 (3/5) necessários para aprová-las. Na
66
aprovação da LRF, eram necessários 257 (50% + 1), mas a votação obtida garantiu uma
notável margem de 128 votos.
O resultado da tramitação da LRF se torna ainda mais significativo porque o
pêndulo político já não se mostrava tão favorável ao Executivo federal, como fora no
primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. O fato é que, encerrado o pleito de 1998
e com os efeitos negativos da crise cambial de janeiro de 1999 -algo agravado
posteriormente com o chamado "apagão", em 2001-, os partidos iniciaram tomadas de
posições antecipando as eleições seguintes, dificultando a manutenção da coalizão que
assegurava maioria no Congresso (RANULFO, 2002). O episódio envolvendo a definição
do salário mínimo e o alarde ao redor deste tema nos primeiros meses de 2000 ilustra bem a
alteração do humor dos congressistas (SANTOS, 2002).
Possíveis obstáculos à aprovação da LRF poderiam derivar também do plano
subnacional. O recrudescimento da disputa entre governadores da base aliada em tomo da
concessão de incentivos fiscais para atração de indústrias - a chamada guerra fiscal -, em
especial envolvendo os governadores Mário Covas (PSDB/SP), César Borges (PFLIBA) e
Jaime Lerner (pFL/PR), sinalizava uma crise política no plano interestadual. Some-se isso a
oposição e o lobby de prefeitos e os dos governantes dos 20 estados que não haviam
realizado ajustes fiscais nos: moldes, por exemplo, de São Paulo, os quais poderiam
pressionar os parlamentares durante o trâmite da matéria na Câmara e no Senado, num
momento em que os redutos políticos municipais se mobilizavam para a eleição de 2000.
A despeito destes fatores, vinha .se criando no Brasil, pelo menos desde da CPI do
Orçamento (1993), um clima de opinião pública favorável à responsabilidade fiscal. Foi um
processo igualmente paulatino e incremental, com amplo destaque na midia, tanto na escrita
-mais importante para os formadores de opinião- como na televisiva -que atinge ós
estratos mais pobres da população. Podem ser elencados neste processo, além do escândalo
dos "Anões do Orçamento" citado anteriormente, a grave crise financeira dos governos
estaduais, com a quebra de seus bancos e o atraso nos pagamentos a funcionários públicos e
fornecedores (1995-96); a CPI dos Precatórios (1996-99), que, mesmo não tendo
responsabilizado judicialmente nenhum dos atores participantes das operações, revelou,
como se assinalou, vários mecanismos perversos de utilização do dinheiro público e
67
apontava para a necessidade de maior controle dos governantes; as denúncias contra a
, Administração Celso Pitta em São Paulo, episódio conhecido como "máfia dos fiscais",
com grande repercussão nacional em horário nobre da TV Globo; a disputa entre os três
Poderes em tomo da fixação de tetos salariais, com o Legislativo e o Executivo sugerindo
R$ 10,8 mil e o Judiciário insistindo nos R$ 12,7 mil, briga esta que desgastava ainda mais
a imagem dos comandantes do poder público frente à população em geral.
Configurava-se, assim, uma espécie de "clamor público" pela criação de
mecanismos que exigissem dos administradores públicos maior responsabilidade no trato
da coisa pública, fato refletido nas notícias e editoriais veiculados à época e que também
ganhava eco nos discursos de parlamentares de diferentes clivagens. Nesse sentido, é
inegável que o termo "responsabilidade fiscal" per si ganhava um forte caráter político,
com sinalização positiva a quem o defendia.
A temática do ajuste fiscal, ademais, tem adquirido contornos suprapartidários, tal
como mostra BOIX (2000), ao analisar o processo de ajuste na Inglaterra da era Thatcher e
na Espanha de Felipe González. Com certa independência em relação à orientação política,
ajustar as finanças havia se tomado um consenso tanto entre conservadores ingleses como
entre partidários de esquerda espanhóis. Guardadas as devidas diferenças, esse processo de
formação de consenso e mudança de preferências dos atores políticos a favor da idéia do
ajuste fiscal também ocorria no Brasil, num processo incrementaI, tal como a formação,
fazendo paralelo a uma outra ciência, de "camadas geológicas" (LOUREIRO e ABRUCIO,
2002).
Não obstante esta situação maquiaveliana de fortuna favorável à LRF, sua
tramitação não dispensou os instrumentos de barganha política ou o uso da peculiar
engenharia institucional brasileira, que garante a predominância do Executivo no poder de
agenda. Pelo contrário. Uma análise mais atenta da trajetória do projeto no Legislativo
indica que o resultado favorável exigiu habilidade do governo para manobrar os
instrumentos de controle de agenda disponíveis no Congresso, particularmente a formação,
dentro da Câmara, de Comissão Especial, cujos membros são eleitos a dedo, e o
requerimento de urgência na votação, nas duas Casas. Ou seja, contaram aqui -e bastante-
as variáveis institucionais fortalecedoras do Executivo federal no processo decisório, que
68
foram habilmente utilizadas. Mas isso não seria suficiente sem a pressão de opinião, que
levou a uma alteração no cálculo e nas preferências dos agentes congressuais.
O amplo espaço destinado à matéria na mídia possibilitou reforçar a idéia da
necessidade do ajuste via a aprovação da LRF, embora a imprensa, mais do que produtora
dessa idéia, contribuía para a construção de um consenso que ultrapassava suas fronteiras.
Fato é, entretanto, que editoriais chegavam a ponto de categorizar, de forma quase
maniqueísta, os que eram contra a lei, notadamente o PT e o PSBIPC do B, como os "do
mal", enquanto aqueles que se posicionavam a favor eram tidos como os "do bem", o que
fortalecia sobremaneira a posição do Executivo, propositor da lei, frente à opinião pública.
Um olhar sobre os discursos parlamentares nas sessões que antecederam a votação
do projeto revela como estavam atentos à opinião pública, bem como aponta para uma
convergência de interesses de diversos partidos ao redor da idéia de "responsabilidade
fiscal".
Neste sentido, pode-se dizer que o resultado verificado no processo de aprovação da
LRF derivou da conjugação ótima entre o uso eficiente dos mecanismos institucionais pró-
Executivo existentes no âmbito do Legislativo (1), o clima de opinião expresso e reforçado
nos principais veículos de comunicação (2) e a formação de um consenso em tomo da
matéria entre os parlamentares. (3).
I. A relação Executivo-Legislativo
A aprovação da LRF pode ser entendida, primeiramente, pela dinâmica que orienta
as relações entre o Executivo e o Legislativo. A importância dos trabalhos legislativos nós
processos decisórios foi enfatizada inicialmente por FIGUEIREDO e LIMONGI (1997).
Segundo estes autores, longe de ser um obstáculo intrínseco, o Congresso Nacional vem
apresentando, em especial com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, comportamento
disciplinado e bastante previsível. Qual a rationale por trás desse comportamento, que
implica "delegação de poderes" por parte do Legislativo ao Executivo?
69
Uma primeira explicação recai sobre a prática de "blame avoidance" por parte do
Legislativo, em particular em se tratando de matéria relativa a questões econômicas. Face à
crise econômica ou à sua iminência, a estratégia adotada pelos parlamentares quando
chamados a decidir sobre políticas nessa área é alinhar-se ao Executivo. Evita-se, assim,
uma exposição desnecessária: votando favoravelmente, o congressista deixa de ser
responsabilizado por ter sido obstáculo a uma medida que poderia ter dado certo. Por outro
lado, fracassando o programa, cumpre-lhe o papel de dizer que o Executivo fora o
responsável único pelos erros. A partir daí, lança-se mão de plataformas políticas
diferenciadas com relação à oficial, de forma a dissociar-se dela - ou seja, "marcar
posição" -, prática recorrente entre os partidos da base em 1999, face às incertezas
decorrentes da desvalorização do real em janeiro daquele ano (AMORIM, 2001).
As edições e, mais importante, reedições sucessivas e recordes de medidas
provisórias durante praticamente todo os dois mandatos de FHC constituem o exemplo
mais apurado dessa prática, assegurando ao Executivo preponderância legislativa.
Uma segunda explicação atenta para a estrutura decisória no interior do Legislativo,
em particular na Câmara federal (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1998). Ainda que o voto de
cada parlamentar tenha igual peso, regras internas fazem com que a distribuição de funções
e prerrogativas seja desigual. variando de acordo com o porte do partido ao qual o
representante está vinculado. O Regimento Interno da Câmara, por outro lado, traz
prerrogativas que resguardam ao Executivo o poder de agenda. Contando com maioria na
Casa, garante-se ainda o controle do processo e do timing de votação.
Como se operam os processos decisórios nessa Casa e qual a dinâmica entre os dois
poderes?
A Câmara é composta por quatro órgãos: a Mesa, eleita no início do primeiro e do
terceiro ano de cada legislatura; o Colégio de Líderes, formado pelos líderes da maioria, da
minoria, dos blocos parlamentares e do governo; a Procuradoria Parlamentar, formada por
membros designados pelo presidente da Câmara; e, por fim, as Comissões. O processo
decisório se dá na Mesa, no Colégio de Líderes e nas Comissões.
Os dois primeiros órgãos constituem as instâncias preliminares de decisão. São os
responsáveis por definir a quem e a quantos de cada partido serão distribuídas as
70
prerrogativas parlamentares previstas no Regimento Interno. Já à Mesa Diretora, entidade
central dentro da Câmara, cabe a direção dos trabalhos legislativos durante as sessões e a
resolução de desentendimentos. Ou seja, a ela cumpre arbitrar as controvérsias emergentes
durante o Plenário. Os requerimentos de retirada de proposição da Ordem do Dia, por
exemplo, expediente comum dos partidos que querem obstruir votações, é encaminhado e
julgado pela Mesa. Dar continuidade ou não ao processo de votação, assim, depende do
interesse desta. Incumbe-lhe ainda, ouvido o Colégio de Líderes, a fixação do número de
deputados por partido ou bloco parlamentar em cada Comissão Permanente e a organização
da agenda com a previsão de proposições. O presidente da Mesa, proveniente do partido
majoritário, tem a prerrogativa de nomear Comissão Especial e distribuir as matérias às
Comissões Permanentes ou Especiais.
O Colégio de Líderes, por sua vez, constitui um órgão de assistência à Mesa. A ele,
amparado por um terço dos membros da Câmara, cabe encaminhar o pedido de urgência à
Mesa, a qual dispensa a maioria dos requisitos regimentais (art. 154, 11do RI). Aprovar o
requerimento de urgência, a ser feito por votação simbólica (ou seja, o presidente anuncia a
votação, e os deputados a favor permanecem sentados, promovendo-se então a contagem
dos votos), constitui uma das prerrogativas que asseguram ao Executivo com maioria na
Casa um resultado mais tranqüilo.
Se à Mesa e aos líderes cabe formatar por quem e como o jogo deve ser jogado,
cabe às Comissões definir seu conteúdo, apreciar as proposições e sobre eles deliberar, em
forma de parecer. A composição das Comissões também leva em conta a representação
proporcional dos partidos e dos blocos parlamentares.
Observa-se, então, pelas regras estipuladas pelo Regimento Interno, que o princípio
ordenador da distribuição dos direitos parlamentares é o partidário e concentra poderes ria
figura da Mesa e dos líderes, facilitando a coordenação e disciplinamento partidário.
Ademais, agir coordenadamente seguindo as orientações do partido traz vantagens
ao parlamentar considerado individualmente em negociações com o Executivo. Cada
congressista, sozinho, tem pequeno poder de barganha. Caso resolva posicionar-se contra o
Executivo para forçar uma negociação, precisa tomar sua ameaça crível, e para tanto adotar
71
uma ação articulada com os demais parlamentares (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999).
Nesta mesma linha, argumenta FABIANO SANTOS (2002):
"Organizados em partidos minimamente disciplinados, eles
[parlamentares} protegem-se da ação monopólica do presidente.
Isso, por sua vez, garante o fluxo de projetos no plenário da
Câmara e, em compensação, os legisladores recebem do Executivo
benefícios de patronagem a ser distribuídos em seus redutos
eleitorais. Nesse sentido, a adesão às proposições políticas do
partido é um bem público para a bancada como um todo, e esse
benefício somente pode ser alcançado se os parlamentares delegam
aos líderes uma parte considerável de seu controle sobre a pauta
legislativa com a finalidade de remover os problemas de
coordenação" (idem: 224).
Toda esta engrenagem partidária e de ação parlamentar, no entanto, sofre forte
influência dos poderes básicos do Executivo, a saber: cargos, liberação de verbas e atuação
junto às bases locais. De tal modo, as regras internas ao Congresso podem favorecer uma
lógica mais partidária, contanto que os "mecanismos governistas" façam o jogo funcionar
devidamente.
Por mais que haja instrumentos incentivadores do jogo governista, em issues de
extrema relevância como a Reforma da Previdência, a Câmara atuou como verdadeiro veto
player institucional, utilizando-se das mesmas regras para obstruir e modificar as propostas
do governo (MELO, 2002). Em outras palavras, a estrutura institucional contém grandes
incentivos à concentração de poder, nas mãos do Executivo e dos partidos situacionistas;
porém, o conteúdo da questão tem um peso considerável sobre o funcionamento do jogo.
Vejamos agora como a engenharia institucional operou durante o trâmite da Lei de
Responsabilidade Fiscal no Congresso.
O projeto de lei (PL), que regula o art. 163 e o art. 169 da Constituição, de iniciativa
do Executivo, chegou à Câmara federal no dia 13 de abril de 1999. Por determinação da
72
Mesa, presidida por Michel Temer (p.MDB-SP), o PL foi enviado para deliberação a quatro
Comissões Permanentes, sendo a de Finanças e Tributação encarregada da análise do
mérito e da "adequação financeira ou orçamentária da proposição", tendo seu parecer
caráter terminativo (art. 54 do RI). Foi criada, além disso, a Comissão Especial da Lei de
Responsabilidade Fiscal, atendendo ao art. 34 do Regimento Interno, que prevê a formação
de comissão especial quando a proposição versa sobre matéria de competência de mais de
três comissões, lembrando que a competência para definir a quantas e quais comissões
determinada matéria deve ser apreciada é prerrogativa do presidente da Mesa.
Toda proposição, antes da deliberação em plenário, deve passar pelas comissões de
mérito a que a matéria estiver vinculada, pela Comissão de Finanças e Tributação (CFT)
para análise do aspecto financeiro, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação
(CCJR) para exame de constitucionalidade, legalidade e técnica legislativa, todas
Comissões Permanentes, e pela Comissão Especial (CESP), instaurada ad hoc.
Uma semana depois de chegar à Câmara, entretanto, a proposta é retirada das
Comissões Permanentes por ato da própria presidência e passa exclusivamente à análise da
Comissão Especial, com prazo máximo de 40 sessões para apresentar parecer (o prazo de
trâmite ordinário).
A retirada das Comissões Permanentes foi o primeiro trunfo do governo. Na CESP,
a matéria deixaria de ser objeto de análise em três comissões e passaria a ser deliberada por
apenas uma delas, cujos membros são escolhidos criteriosamente pelo Colégio de Líderes,
diminuindo consideravelmente seu grau de exposição e possibilidade de emendas, o que de
fato se verificou aposteriori.
O segundo trunfo foi o de ter garantido a eleição de Joaquim Francisco (PFL-PE)
para a presidência da comissão e, a nomeação, por este, de um relator favorável à proposta
do governo. A relatoria, responsável pela elaboração do parecer, de caráter terminativo,
sobre a admissibilidade do projeto e a apresentação ou não de substitutivos, ficou a cargo
de Pedro Novais (P.MDB-MA), que havia sido presidente da comissão que analisou o
Fundo Social de Emergência na Câmara - outro processo em que o governo havia sido
vitorioso. Vale lembrar, novamente a título comparativo, que um dos revezes do trâmite da
73
reforma Previdenciária na Câmara se deu em razão da incapacidade do governo de
assegurar um presidente e um relator favoráveis à sua proposição (Melo, 2002).
O terceiro feito governista foi o de ter conseguido apressar os trabalhos da CESP,
cujo parecer foi concluído e votado em 27 sessões. Como já observou MARCUS MELO
(2002):
"( ...) interessa ao Executivo encerrar o mais rápido possível
os trabalhos em uma Comissão Especial, porque no plenário as
decisões são mais politizadas, e seu conteúdo substantivo pouco
discutido devido: a) ao número de atores envolvidos ser maior; b)
ao fato de que a Comissão (ao contrário do plenário, em geral,
reúne parlamentares com conhecimento especializado, que podem
divergir por razões técnicas de propostas do governo; c) ao fato de
que o tempo disponível para exame da matéria é menor,
considerando que o prazo máximo de 40 sessões' pode ser
encurtado" (idem: 161).
O início dos trabalhos, por outro lado, foi marcado por manifestações contrárias do
relator a pontos principais do projeto do governo. Em entrevista a "O Estado de São Paulo",
do dia 24 de julho de 19991, Novais afirmou que "a lei foi muito malfeita e, como está, será
dificil aprová-la. C.) Acredito que [o projeto, com 111 artigos] não fica na metade do que
tem aí".
o deputado considerou também, ainda de acordo com a reportagem, "exagero" do
Executivo federal a tentativa de enquadrar outros Poderes e outras esferas de governo à lei,
de engessar o Senado quanto à atribuição de fixar limites de endividamento e restringir -a
contabilização de restos a pagar, atacando pontos principais do projeto.
O relator também se mostrou contra a exclusão do Banco Central no que tange o
financiamento desse órgão pelo Tesouro e vice-versa, bem como a emissão de títulos
públicos pelo BC sem respeitar os limites previstos na lei. O "esquecimento" do BNDES,
com o não enquandramento do uso dos recursos do Fundo de Assistência ao Trabalhador
74
(FAT), e a exclusão do pagamento de juros também foram consideradas falhas. "A lei
f enquadra tudo e todo mundo, enquadra pequenos funcionários e prefeitos miseráveis, mas
permite que R$ 40 bilhões ou mais do orçamento sejam consumidos com o pagamento de
juros fique livre'", afirmou o deputado.
Notório era que, de fato, como coloca o relator: ''A proposta da LRF foi elaborada
com contribuições em separado do BNDES, do BC e do Ministério da Fazenda. Ao final, os
técnicos do Planejamento compilaram as sugestões. Mas cada um deles retirou limites
fiscais em suas áreas de atuação'",
O posicionamento do relator reproduzia pontos atacados por partidos de oposição:
"(:») É o caso de os Deputados se perguntarem: quem é o
responsável pelo grande desajuste fiscal da nossa economia? A
irresponsabilidade monetária dos gestores da nossa política
econômica, que levou, por exemplo, a um crescimento de US$ 103
bilhões na dívida no mês de janeiro, devido à mudança no câmbio,
não é considerada. Aliás, o Banco Central fica de fora da Lei de
Responsabilidade Fiscal. Estava explícita essa exclusão no
anteprojeto anterior. Na proposta atual, enviada para o Congresso,
está feita de forma sub-repticia. Explícitas ficam as exclusões do
BNDES, do BNB, do BASA.
(.) O .Senador Esperidião Amim faz uma lei, uma mudança
constitucional para fixar limites de gastos para o Poder Legislativo
municipal. A Lei de Responsabilidade Fiscal trata esse tema como
questão comum.
(.) Limitar gastos de forma apressada, apenas para agradar aos
americanos do FMl, é uma irresponsabilidade. Será que é
constitucional? Seria um assunto para ser tratado na Comissão de
J "Relator quer mudar Lei de Responsabilidade Fiscal", O Estado de São Paulo, 24/7/19992 idem3 "LRF deve limitar emissões de títulos públicos pelo BC", Gazeta Mercantil, 11/8/1999
75
Constituição e Justiça e de Redação. Mas não: vai a uma Comissão
Especial. É um projeto que todos discutem e defendem,
argumentando que deve haver responsáveis fiscais. Ninguém é
contra a responsabilidade fiscal. Mas isso não é responsabilidade
fiscal, caros Deputados. Isso é arrocho do acordo com o FMI. Isso
é a necessidade de gerar superávit primário para pagar a
irresponsabilidade monetária do Sr. Malan, do Sr. Pedro Parente,
do Sr. Arminio Fraga, que fazem com que o Brasil pague os
maiores juros reais do mundo." (Deputado Sérgio Miranda,
discurso, sessão ordinária de 15/4/99).
o PT também se posiciona na mesma linha, como mostra o discurso do deputado
João Fassarela (pT-MG), também titular da Comissão Especial da Lei de Responsabilidade
Fiscal:
"Na nossa avaliação, ela [a lei] se transforma até num elemento
fundamental para a implementação da política deste Governo. E
nisso ai discordamos profundamente do Governo. Na verdade, o
Governo quer que o ajuste empurrado à Nação, que obriga o
Governo Federal à obtenção de um enorme superávit primário
para que sobre dinheiro para os encargos da dívida; um ajuste feito
às custas da qualidade dos serviços públicos em todas as áreas -
saúde, educação, justiça -, seria obrigatório para todos os entes
federativos, a fim de atender aos compromissos que a União
assumiu com o Fundo Monetário Internacional, seja qual for o
sacrifício imposto à Nação. Para isso, o Governo viola a autonomia
dos Municípios e dos Estados e a independência dos Poderes
Judiciário e Legislativo. "(Discurso, sessão ordinária de 12/5/1999)
76
Da mesma forma, o TCU (Tribunal de Contas da União) se colocava
manifestadamente contrário ao projeto, afirmando, em parecer, que a proposta governista
continha inúmeras inconstitucionalidades e constituía uma intervenção gerencial e
financeira do governo federal nos demais entes federativos".
A reação do governo foi recuar e abrir o projeto para negociações, dispensando-lhe
tratamento prioritário após ter sido barrada, por decisão do STF, a cobrança dos inativos e o
aumento da alíquota dos servidores na ativa, medidas que gerariam uma receita prevista em
R$ 2,38 bilhões.
O parecer do relator, apresentado em 2/12/1999 à CESP, posicionou-se
favoravelmente à proposta do governo, recomendando, no mérito, aprovação com
substitutivo.
A versão inicial do substitutivo incorporou a proibição da emissão de títulos por
parte do BC dois anos após a entrada da LRF em vigor. Atendendo ao pleito dos
governadores para ampliar o escopo da Lei Camata e fixar tetos de gastos com pessoal para
os três Poderes - de forma a obrigar não apenas o Executivo ao ajuste fiscal -, o
substitutivo estendeu os limites, tendo como parâmetro a média de despesas com
funcionários de 1997 a 1999. Também atendendo a demandas dos governos locais,
estabeleceu ainda a redução ~do limite de comprometimento das receitas líquidas dos
estados no pagamento das dívidas renegociadas com a União de 13% para 10%, além de
incluir na rolagem das dívidas estaduais os contratos de pagamento de fornecedores
firmados até 1994. Estabeleceu ainda um "limite referencial" ao pagamento dos juros, a ser
prevista na LDO.
O governo mobilizou sua base dentro do P:MDB -o substitutivo foi primeiro
apresentado ao partido ao qual pertence o relator - para derrubar duas modificações: 'a
assunção de dívidas contratuais dos estados e a diminuição do comprometimento da receita
líquida no pagamento da dívida renegociada. Em troca, flexibilizou as penalidades ao não
cumprimento da lei, estipulando sanções apenas de ordem administrativa e retirando da lei
a previsão de reclusão dos administradores. O substitutivo conseguiu incluir a previsão de
"limite referencial" ao pagamento do serviço da dívida, que foi derrubada por veto
4 "TeU diz que lei de responsabilidade fere autonomia federativa", Gazeta Mercantil, 16/9/1999
77
presidencial posteriormente. Ainda assim, o governo considerou que "90% do parecer do
, relator está de acordo com as intenções do projeto original do governo'".
A votação do parecer do relator e do substitutivo, no dia 14 de dezembro, foi
aprovado na Comissão Especial com ampla margem - obteve 17 votos a favor e 5 contra-,
conseguindo derrubar todos os 82 destaques de votação em separado (DVS). O destaque é
um mecanismo que permite excluir as emendas e subemendas ou partes de um texto, que
apenas volta a integrar o texto original caso seja aprovado em votação específica, o que
acaba retardando o processo de votação. Constitui, assim, um dos instrumentos mais
utilizados pelos partidos e representantes que se colocam contrários à determinada
proposição.
Aprovado o parecer e o substitutivo, o projeto passana então à deliberação em
Plenário, prevista para ocorrer durante a convocação extraordinária da Câmara, entre os
dias 5 de janeiro e 14 de fevereiro.
Para apressar o encaminhamento, o governo novamente mostrou-se hábil no uso da
engenharia institucional legislativa: mobilizou desta vez sua bancada para aprovar um
requerimento de urgência, que dispensa a observância de todos os trâmites para o
encaminhamento do projeto à deliberação, de acordo com o art. 152 do RI. O requerimento,
para ser submetido à votação em plenário, deve ser apresentado, alternativamente, por dois
terços dos membros da Mesa, um terço dos membros da Câmara ou líderes que representem
esse número ou dois terços dos membros da comissão que opinar sobre o mérito da
proposição.
Reunindo os líderes do governo, PFL, PSDB, PTB, PPB e PMDB, conseguiu, no dia
18/01/2000, aprovar a urgência com maioria absoluta dos votos, instrumento que inclui
automaticamente a matéria na Ordem do Dia para discussão e votação imediata, e dispens-a
ainda o segundo turno de votação. A urgência traz ainda outra vantagem: limita o uso da
palavra ao autor, relator e a seis deputados, além de reduzir o tempo de fala previsto em
tramitação normal pela metade e permitir, aos líderes que representem a maioria absoluta, a
encerrar as discussões após a exposição dos deputados. Por fim, restringe a possibilidade de
5 "Relator cede e muda proposta de Lei Fiscal", O Estado de São Paulo; "Planalto cede à alteração naResponsabilidade Fiscal", Gazeta Mercantil, 9/12/1999
78
modificações, já que as proposições urgentes têm como regra receber apenas emendas de
comissão ou subscritas por um quinto dos deputados ou de líderes que representem esse
número (art. 120, II, § 4° do RI).
Contando com quorum elevado (486 deputados) por conta realização na mesma
época das votações da reforma do Judiciário, a idéia do governo era colocar o projeto em
votação no dia 20. Foram apresentadas ao substitutivo 124 emendas, das quais 23 foram
aprovadas integralmente e 7, parcialmente.
A votação, porém, foi adiada por objeções levantadas pelo líder do PFL, Inocêncio
de Oliveira, solicitando o adiamento da votação para o dia 25/01, sendo atendido pelo
presidente da Câmara, deputado Michel Temer. Depois de reunir-se com secretários
rnurucrpais de Fazenda e prefeitos correligionários (Luiz Paulo Conde, do Rio, Roberto
Magalhães, do Recife, Antônio Imbassahy, de Salvador e Cássio Taniguchi, de Curitiba), o
PFL decidiu requerer ao governo prazo maior -um período de transição de dois anos - para
a entrada em vigor da lei, anunciando que apresentaria DVS levantando esse ponto.
O governo contava com apoio informal do PDT. O PT, embora apresentado quase
caricaturalmente por editorial de "O Estado de São Paulo" como principal voz destoante ao
projeto", chegou a negociar com o governo apoio na votação. Não o obtendo, resolveu
apresentar substitutivo. A mais importante reivindicação do partido não era a questão dos
juros, como foi divulgada pela mídia, mas a proibição da renegociação das dívidas,
antevendo uma possível vitória de Marta Suplicy na corrida para a prefeitura de São Paulo.
Tal fato fica claro no discurso proferido por Aloizio Mercadante (PT/SP), pouco antes da
votação:
"(..) É evidente que o País precisa de uma lei de
responsabilidadefiscal - mais do que isso, precisamos dessa lei
com urgência, por estarmos em um ano eleitoral e, se não a
implementarmos agora, perderá um pouco seu sentido, sua
6 Diz o editorial: "(...) O contratempo [o adiamento da votação}, ao que parece, não ameaça a aprovação doprojeto, sobre cuja necessidade existe um consenso raras vezes registrado na política brasileira. A exceção,como sempre, é do PT, que vê em pontos do projeto o fantasma de sempre: 'O interesse do F1vfI, que quer agarantia de atendimento aos credores"'. "Lei que será marco na história", O Estado de São Paulo, 23/1/2000
79
eficácia. A bancada do PT vem trabalhando para viabilizar a
legislação e permitir que seja implantada.
No entanto, temos divergências de fundo em relação a
quatro artigos. Desde quinta-feira aguardamos reposta do Governo
para avaliar se a bancada marchará coesa no sentido de sustentar
esse projeto, que é muito melhor do que aquele anteriormente
apresentado pelo Governo ...
Nossa divergência está nos arts. 4~ 17, 31 e 35. Quais
são as divergências fundamentais? Em primeiro lugar, é o
tratamento dos juros. Todas as despesas públicas são
rigorosamente fiscalizadas por essa lei, inclusive reforçando
mecanismos já existentes na Resolução n° 78 do Senado Federal,
que trata das dívidas, ou na Lei Camata, que trata dos gastos com
pessoal. No entanto, os juros continuam sendo o objetivo
fundamental do esforço de ajuste fiscal.
(...) Em segundo lugar - e aí vem uma questão central -,
temos o problema da rolagem das dívidas. A lei estabelece que não
será possível mais refinanciamento de dívidas entre Estados e
Municípios e a União. Vamos pegar o exemplo de São Paulo, que
hoje comemora seu aniversário: o Prefeito Celso Pitta, quando era
Secretário da Fazenda de Paulo Maluf, assumiu uma dívida do
Município de R$ 1,95 bilhão, para um orçamento que era de R$ 4,5
bilhões, ou seja, a dívida era metade do orçamento. Oito anos
depois de Maluj e Pitta, a dívida está em R$ 12 bilhões, e o
orçamento da cidade é de R$ 6,5 bilhões. A dívida é o dobro do
orçamento. Agora, ele assinou um acordo que diz que a taxa de
juros de 9% cai para 6%; há um alívio, portanto, no estoque da
dívida. Só que no ano que vem o futuro Prefeito terá de pagar no
primeiro ano 20% do principal da dívida. Estamos falando de R$ 2
bilhões em um ano. Nem que venda o Pacaembu, o Anhembi, o
80
Ibirapuera, o Obelisco, será possível viabilizar esse serviço
irresponsável, esse contrato que foi assinado. E o que resta a São
Paulo? Se a lei for aprovada, não será possível repactuar e
refinanciar a dívida." (Discurso, sessão de 25/1/2000)
Nenhuma das reivindicações do partido foi atendida. No dia da votação, o
presidente Fernando Henrique Cardoso telefonou aos líderes orientando para que não se
fizesse concessões ao PT - ou seja, não votasse no substitutivo apresentado pelo partido -
ou aos prefeitos. Contando com ampla cobertura favorável da mídia, convocou a imprensa
para um pronunciamento de oito minutos, no qual ressaltou o fato de ter assumido mais de
R$ 100 bilhões em dívidas estaduais e municipais para sanear suas finanças, enfatizando
ainda que o esforço realizado pelo Executivo para conter gastos não era acompanhado com
o mesmo empenho pelos demais Poderes. O discurso presidencial incluiu ainda um apelo
maniqueísta:
''Aproveito a oportunidade para reiterar minha confiança
no Congresso. Tenho certeza de que aprovará a lei. E pedir que os
congressistas mostrem, pelo comparecimento maciço, que estão do
lado bom da sociedade, que é um lado que quer um país com menos
dívidas, um país que não tenha que pagar tantos juros, que não
tenha que fazer obras que, muitas vezes, são suntuárias e se iniciam
sem provisão de recursos",
Para garantir uma ampla margem de vitória, o Planalto mostrou também sua face
secular, negociando também o apoio da frente parlamentar do cooperativismo, que reúne
219 deputados e senadores, garantindo em troca que o Tesouro assumiria riscos de crédito
de R$ 800 milhões de novos empréstimos para sanear cooperativas".
7 "Eleições de torneiras fechadas", O Globo, 26/1/20008 "Lei de Responsabilidade Fiscal é aprovada", Gazeta Mercantil, 2611/2000
81
Outro grupo importante na votação era constituído pelos 150 deputados que eram
candidatos nas eleições daquele ano, como observa Gustavo Franco ("A revolução fiscal
apenas começou", O Estado de São Paulo, 13/2/2000). Apesar de a lei representar o
engessamento dos gastos aos futuros prefeitos, ela contém dois componentes de peso no
cálculo eleitoral. Primeiro, ela alivia os custos futuros, impedindo que os atuais prefeitos -
muitos deles adversários dos deputados-candidatos- deixassem "restos a pagar"
inexeqüíveis ao apagar das luzes. Segundo, constitui um grande ganho imediato dada à
ampla cobertura do tema pela imprensa, como se falou, servindo de plataforma eleitoral.
Colocada em votação em turno único, o governo conseguiu derrubar uma manobra
do PT para retirar da pauta da Ordem do Dia. Após a exposição de seis deputados, como
prevê o RI, mobilizou os líderes para encerrar as discussões e proceder à votação.
Foram apresentados, ao todo, 140 DVSs. O destaque, como mencionei
anteriormente, é um mecanismo que permite excluir as emendas e subemendas ou partes de
uma proposição, que apenas volta a integrar o texto original caso seja aprovado em votação
específica. Em Plenário, por outro lado, o uso de destaques é limitado, seguindo,
novamente, a lógica da proporcionalidade partidária. Para votação em separado de parte de
proposição, ele deve ser requerido por um décimo dos deputados (art. 161, I do RI). Se
apresentada por bancada de partido, ela obedece a seguinte proporcionalidade: de 5 a 24
deputados, um destaque; de 25 a 49 deputados, dois destaques; de 50 a 74 deputados, três
destaques; mais de 75 deputados, quatro destaques.
De qualquer forma, a votação de destaques atrasa o encaminhamento da matéria, o
que demanda uma negociação prévia entre os líderes para retirada dos DVSs. Na votação
da LRF, todos os 129 destaques apresentados pelos líderes aliados foram retirados, restando
apenas 11 a serem votados em outra sessão.
As bancadas do PT e do PSBIPC do B orientaram expressamente seus
correligionários a votarem contra o projeto, mas foram votos vencidos: ao final, o projeto
havia obtido 385 votos a favor, 86 contra e 4 abstenções, quando precisava de 257 votos a
favor para ser aprovada. O substitutivo apresentado pelo PT, além disso, foi derrubado.
A votação dos destaques restantes refletiu o clima favorável ao governo: apenas os
dois apresentados pelo governo - um para incluir no limite de despesas com pessoal os
82
gastos com serviços terceirizados e outro para retirar do texto a obrigatoriedade do
Legislativo examinar as contas do Executivo antes de entrar em recesso parlamentar-foram
aprovados.
No Senado, onde o governo contava com maioria absoluta, a tramitação prometia
ser tranqüila, como assegurava seu presidente, o senador Antônio Carlos Magalhães: ''Não
vou apoiar o pleito dos prefeitos. Sou a favor da entrada imediata da lei em vigor. É a lei da
moralização e não pode ser jogada de lado. Daqui para frente, quem fizer safadeza merece
punição'".
A matéria chegou à Casa no dia 3/2/2000. Como prevê o Regimento Interno do
Senado, foi encaminhada, por determinação de seu presidente, a apreciação do projeto pelas
Comissões de Constituição e Justiça (CCJ) e pela Comissão de Assuntos Econômicos
(CAE).
Na CCJ, a matéria foi aprovada em 2412, com uma única emenda de redação, ou
seja, que não alterava o conteúdo do projeto. Foram rejeitadas todas as demais emendas,
inclusive os pedidos de destaque para votação em separado. Na CAE, onde praticamente se
define se uma proposta será ou não aprovada - não há registros de matérias aprovadas na
CAE e posteriormente rejeitadas em plenário -, a relatoria ficou a cargo do senador
Jefferson Peres (PDT/AM), que, assumindo o cargo, acertou, em encontro com FHC, que
não apresentaria emendas alterando o conteúdo das proposições - caso em que o projeto
teria de retornar à Câmara -, de modo a apressar o trâmite.
Se durante o trâmite na Câmara os prefeitos haviam marcado sua posição, no
Senado foi a vez dos governadores. Em fevereiro de 2000, governadores de 20 Estados se
reuniram em Curitiba para a sa Conferência Nacional de Governadores. As reivindicações
eram centradas no aumento dos ressarcimentos relativos às perdas decorrentes da Lei
Kandir e na inclusão dos débitos referentes aos precatórios na renegociação das dívidas
estaduais com a União, tendo como moeda de troca o apoio ou não ao projeto de LRF que
tramitava no Senado. A idéia dos governadores era acionar suas bancadas no Senado para
barrar o andamento da tramitação e forçar uma negociação com o Executivo. Como
9 "Lei fiscal sem obstáculos", Jornal do Brasil, 31/ 1/2000
83
afirmava Espiridião Amin, governador de Santa Catarina (PPB), "Boi só sai do mato se
tiver mutuca"!".
A iniciativa dos governadores, entretanto, não vingou, em especial depois de o
presidente do Senado manifestar-se igualmente contra o pleito dos governadores. Na
verdade, em meio ao agravamento da crise decorrente da queda na arrecadação do ICMS,
do acirramento da guerra fiscal e das perdas dela decorrentes e ao engessamento dos
orçamentos estaduais por conta da renegociação das dívidas, posicionar-se contra a lei era a
"última cartada" possível dos governos estaduais, que provou não ter sido acertada. A
reação da mídia, criticando a postura dos governadores de "oportunista" e elogiando o
presidente da República, fortalecendo ainda mais a posição deste, fizeram os governadores
recuar.
o editorial de "O Globo", de 11/2/2000 (''Dizer não") registra esse fato: "...os
governadores voaram para Brasília ameaçando mobilizar suas bancadas no Senado contra
o projeto.: Mas o presidente manteve no Planalto a postura de Paritins... Sua
inflexibilidade encontrou sintonia na posição do senador Antônio Carlos Magalhães, que
anunciou aos governadores a aprovação do projeto sem mudanças. Os governadores
mudaram de tom: de ameaçadores passaram a reivindicantes. É a postura certa ...". Um dia
antes, "O Estado de São Paulo" também havia publicado editorial na mesma linha,
afirmando que "...Não poderia ser maior, portanto, o contraste entre a visão imediatista
dos governadores -embora reconheçam que a futura lei é "garantia do ajuste fiscal global
em nosso país"- e o descortino manifestado pelo presidente da República ao subordinar
tudo à mais rápida entrada em vigor da legislação ...".
Colocada em votação em 11 de abril no plenário, a proposta recebeu 13 emendas de
partidos de oposição. No entanto, afirmando que "o lobby dos prefeitos [que, sob 'o
comando da Confederação Nacional dos Municípios, reivindicavam a entrada em vigor da
lei após um período de transição] está fortíssimo"!', o senador antecipou a votação,
rejeitando todas as emendas. A vitória do governo se confirmou novamente com ampla
margem: 60 votos a favor, 10 contra e 3 abstenções.
10 "Governadores vão a FHC pedir aumento de repasses", Folha de S.Paulo, 5/21200011 "LRF é aprovada, mas deputados aliviam penas", Gazeta Mercantil, 12/412000
84
A tramitação da matéria contou com razoável destaque e forte apoio por parte da
midia. Ela era, ao mesmo tempo, criadora e refletora de um consenso em torno da idéia de
"responsabilidade fiscal", num processo de retroalimentação. Passo agora a avaliar a
atuação dos meios de comunicação nesse processo.
ll. A mídia e a LRF
Analisando o processo de formação da opinião pública sob um pnsma mais
filosófico, SARTORI (1994) ressalta a atuação central dos meios de comunicação. É certo,
sustenta este autor, que opiniões podem ser formadas pela atuação de formadores de
opinião - "entre 5% a 10% de um público que acompanha as questões públicas" -, ou pelo
"borbulhar" opiniões a partir das massas ou, por fim, ser geradas por elementos não-
informativos, como, por exemplo, a identificação com um grupo de interesse. SARTORI,
entretanto, não deixar de relegar papel de destaque à mídia: "o mundo é - para o público
em geral - a mensagem dos meios de comunicação".
HALL (1997) traz uma abordagem mais factual sobre o papel da mídia na mudança
do paradigma Keynesiano para o monetarista, ocorrida na Inglaterra a partir da década de
1970. Durante esse período, a imprensa britânica não apenas serviu como veículo de
transmissão de diferentes pontos de vista de economistas, mas "magnificou a importância
dada à doutrina monetarista e catapultou o pensamento monetarista na agenda pública". De
tal sorte, na visão de HALL, a imprensa constitui, ao mesmo tempo, um espelho da opinião
pública e uma espécie de lente de aumento para os issues que ela escolhe.
A mídia brasileira colocou-se, desde o primeiro momento, favorável à iniciativa do
governo de propor uma "lei de responsabilidade fiscal", dedicando razoável espaço para o
tema. Chama a atenção, entretanto, que o debate na mídia sobre a lei focava não o conteúdo
do projeto proposto pelo Executivo federal, mas a importância de uma lei que regulasse
com maior eficiência a "gastança de dinheiro público" promovida pelos governantes.
A análise da atuação dos veículos de comunicação que apresento a seguir é
resultado do acompanhamento de 6 jornais diários, dos quais três são paulistas (O Estado
85
de São Paulo, Folha de S.Paulo, Gazeta Mercantil), dois do Rio de Janeiro (O Globo e
Jornal do Brasil) e um de Brasília (Correio Brasiliense), pelo período de 15/4/1999, ou seja,
os primeiros dias após a chegada do projeto de lei à Câmara, até o dia 19/5/2000, ou seja,
os dias que precederam a aprovação da Lei dos Crimes Fiscais na Câmara, lei ordinária de
caráter penal que prevê as sanções às condutas que violem os dispositivos da LRF.
No período em tela, foram publicadas 137 inserções que expressamente faziam
referência à LRF, entre reportagens acerca do trâmite, editoriais, colunas assinadas por
colunistas fixos e por convidados, lembrando que a contagem não levou em conta
reportagens ou colunas iguais'".
A maior cobertura foi dada pelos jornais "O Estado de São Paulo" e pelo "Jornal do
Brasil", que foi o primeiro a tratar em editorial o tema, após o início do trâmite na Câmara.
O diagnóstico do jornal carioca sobre a situação financeira do país, que fazia eco em
todos os demais, era que o desarranjo fiscal resultava da "ineficácia dos mecanismos de
controle dos gastos nos três níveis da Federação", o que seria corrigida com a proposta
enviada pelo governo central ao Legislativo 13.
O espaço destinado aos críticos à lei foi quase nulo. Dentre as 137 reportagens,
editoriais e colunas contabilizados, apenas quatro traziam opiniões contrárias ao projeto
proposto".
É dificil avaliar em que medida a mídia influencia os trabalhos legislativos.
Entretanto, é bastante provável que a mídia tenha, para usar os termos de Hall,
"catapultado" a idéia de ajuste do governo na agenda pública, "magnificado" a importância
da LRF e, de certa forma, alterado as preferências de atores importantes.
Um exemplo disso é a mudança na atuação do relator do projeto de LRF na Câmara,
deputado Pedro Novais A postura crítica do relator com relação a alguns pontos do projeto
12 Jornais como o Correio Brasiliense compram, da Agência Folha ou da Agência Estado, matérias prontas,que são publicadas, em geral, sem alteração alguma. Alguns colunistas - fixos ou não - também publicam amesma coluna em mais de um jornal, e foram contabilizadas apenas uma vez.13 "Austeridade", Jornal do Brasil, 15/4/1999, editorial14 São eles: "TCU diz que lei de responsabilidade fiscal fere autonomia federativa", Gazeta Mercantil,16/9/1999; "Lei fiscal é criticada por diretor do BC", Jornal do Brasil, 11111/1999; "Irresponsabilidade",assinada pelo deputado Sérgio Miranda, O Globo, 30/1/2000; "Responsabilidade fiscal e social", assinadapelo governador do Paraná, Jaime Lerner, O Globo, 4/2/2000.
86
era acusada pelos jornais e apontada como causa do impasse na votação da LRFl5. As
alterações por ele propostas eram também criticadas. Em "O Globo" de 3/12/1999
(''Relator exclui previdência e inativos da lei Camata"), por exemplo, o jornal coloca que o
relator "mudou quatro pontos da lei por conta própria", desfigurando a lei. Dias depois, o
relator volta atrás, o que é registrado pelo Estadão como trunfo das lideranças governistas,
que conseguiram evitar que o deputado Pedro Novais modificasse o texto original".
Pouco do conteúdo da lei era debatido pela imprensa. Todos os 26 editoriais do
periodo mencionado procuraram vender a idéia de que a LRF era uma garantia de vida
financeira saudável'? e de que a credibilidade do pais estaria em jogo sem a aprovação da
lei'". O "Correio Brasiliense" resume dessa forma:
"Que sinal estaríamos enviando ao mundo - nós mesmos incluídos - ao rejeitarmos
uma proposta que pretende instituir no país a responsabilidade no trato com dinheiro
público? A de que aprovamos a irresponsabilidade, não menos que isso" 19.
Mesmo a ''Folha de S.Paulo", que procurava manter uma postura mais critica com
relação ao governo FHC, seguiu a mesma linha dos demais jornais, como mostra o editorial
de 13/412000:
"Parlamentares de oposição levantaram críticas à lei. Algumas delas de fato
parecem fazer sentido. Mas a fato de a legislação não ser perfeita não significa que não
deva ser adotada e, com o tempo, melhorada. O Brasil já não suporta mais ser corroído
pela gastança irresponsável epela corrupção desenfreada'i".
Por outro lado, se é verdade que a mídia exerceu papel decisivo nesse processo, não
se pode deixar de afirmar que existiu, no âmbito do Legislativo, razoável grau de consenso
em torno da idéia de ajuste promovida pelo Executivo. É o que passo a analisar a seguir.
15 "Impasse paralisa lei fiscal", Jornal do Brasil, 2/1111999; "Divergências devem atrasar votação da Lei deResponsabilidade Fiscal", O Estado de São Paulo, 131111999.16 "Responsabilidade Fiscal", O Estado de São Paulo, 6/12/199917 "Responsabilidade Fiscal, uma grande reforma, O Estado de São Paulo, 7/6/199918 "Medo da responsabilidade", Folha de S.Paulo, 8/8/199919 "Reformas abortadas", Nelson Torreão, Correio Brasiliense, 5/6/199920 "Freio à gastança", Folha de S.Paulo, 13/4/2000
87
ill. A construção do consenso no Legislativo
o processo de ajuste fiscal durante o pós-1994 foi integralmente de iniciativa do
Executivo, sendo também capitaneado por este. Vasta literatura procura mostrar a
supremacia do Executivo brasileiro frente ao Legislativo no que tange ao poder de
definição da agenda pública, embora tal poder não seja exclusividade do Executivo
brasileiro, como mostra TSEBELIS (1997)21
Prima facie, tal fato leva à conclusão de que o Legislativo atuou de forma passiva,
procurando não bloquear as iniciativas governamentais, deixando de lado sua prerrogativa
de veto player, constitucionalmente garantida.
Os fatos, entretanto, revelam o contrário. A agenda de mudanças foi sem dúvida
proposta pelo governo, mas não foi imposta a um Legislativo inoperante e passivo.
Desde o início dos anos 1990, como se procurou mostrar nos capítulos anteriories, o
Congresso vem apresentando uma significativa produção legal nesse sentido. Emendas
constitucionais visando restringir a capacidade de endividamento dos Estados ou ampliando
a margem de manobra financeira da União em detrimento a dos entes subnacionais foram
aprovadas, sendo um exemplo a EC n° 3, que (re)instituiu o IP!v1F(Imposto Provisório
sobre Movimentações Financeiras), tributo não repartido entre os entes subnacionais, e
limitou a emissão de títulos da dívida pública de Estados e Municípios='. Outro exemplo
são as resoluções do Senado (78, de 1998 e 40 e 41, de 2001), também procurando impor
limites ao endividamento dos governos estaduais. A aprovação das leis Camata 1 e 2,
ambas prevendo limites aos gastos com pessoal do Executivo, também apontam para uma
convergência de opiniões a respeito de como sanar os problemas financeiros do país.
21 TSEBELIS (1997) registra que "em mais de 50% de todos os países, os governos encaminham mais de 90%dos projetos de lei. Além disso, a probabilidade de que esses projetos sejam aprovados é muito alta: mais de60% passam com uma probabilidade superior a 0,9 e mais de 85% são aprovados com uma probabilidademaior do que 0,8" (idem: 34)22 A instituição do IPMF está prevista no art. 2° da EC n" 3/1993: "A União poderá instituir, nos termos de leicomplementar, com vigência até 31 de dezembro de 1994, imposto sobre movimentação ou transmissão devalores e de créditos e direito de natureza financeira". O limite ao endividamento está previsto no art. 5°: "Até31 de dezembro de 1999, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios somente poderão emitir títulos dadívida pública no montante necessários ao refinanciamento do principal devidamente atualizado de suasobrigações, representadas por essa espécíe de títulos, ressalvado o disposto no art. 33, parágrafo ÚIÚCO, do Atodas Disposições Constitucionais Transitórias [que exclui do limite o pagamento dos precatórios)".
88
LOUREIRO e ABRUCIO (2002) apontam como um dos motivos de sucesso do
ciclo de mudanças institucionais nas finanças públicas durante a Era FHC, concluída com a
aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, a formação de "uma cultura política de
responsabilidade fiscal" nos atores políticos e na opinião pública, decorrente não apenas ao
sucesso do Plano Real, mas da maior intolerância aos desvios da Administração Pública,
que haviam ganhado maior visibilidade com as CPIs do Orçamento e dos Precatórios.
Agrega-se a isso as pressões externas advindas das sucessivas crises internacionais, que
demandavam a tomada de medidas urgentes de ajuste.
Investigando a atuação do Congresso na política de privatização - que se inserem no
bojo das reformas econômicas do período FHC -, ALMEIDA e MOYA (1997) mostram
que a posição que o Legislativo adotou perante o tema teve influência marcante no desenho
da fisionomia que tal política veio a assumir. Durante o período de 1990 a 1996, o
Congresso foi responsável pela criação de 21 textos legais relacionados ao processo de
privatização. Por trás dessa produção, argumentam os autores, existiu uma distribuição de
preferências revelando uma atitude mais pragmática que ideológica a favor da política de
privatização. A privatização era "apresentada em termos pragmáticos em função da
incapacidade concreta e presente do Estado em continuar assegurando condições de
investimento e eficiência a suas empresas ...".
De forma semelhante, a temática do ajuste e da aprovação de textos legais a ela
referentes parece ter adquirido, ao longo da era FHC, um caráter mais pragmático e menos
ideológico-partidário, o que pode ter facilitado a convergência de partidos de diferentes
c1ivagens em tomo da idéia.
Uma análise dos discursos de parlamentares na Câmara, entre fevereiro de 1999 a
maio de 2000, totalizando 70 discursos, mostra claramente essa convergência e distribuição
de preferências a favor do projeto de LRF proposto pelo Executivo. Desse total, 49 foram
discursos de apoio ao projeto, , muitas vezes citando editoriais de jornais que faziam
referência à lei, de elogio pela aprovação e pela sua imediata implementação. Onze
discursos manifestaram-se contrários à lei, sendo a maiona deles dos dois
partidos/coligações que votaram contra o projeto do governo. Outros dez traziam sugestões
89
de aperfeiçoamento da lei, anúncios de emendas ou levantavam questões de ordem na
votação.
A percepção geral sobre a lei pela maioria dos parlamentares pode ser resumida na
fala do deputado Lael Vareia (Sessão Ordinária, 4/5/1999):
"(...) Se já estivesse em vigor a Lei de Responsabilidade
Fiscal, o panorama das contas públicas não teria sido o
responsável por alguns dos principais problemas que ora vimos
enfrentando. O conflito entre os Governos Federal e Estaduais não
teria curso, pelo simples e bom motivo de que a União estaria
proibida de refinanciar a dívida de outras Unidades da Federação.
Boa parte do problema nem existiria, pois a União teria sido
proibida de conceder empréstimos para que Estados e Municípios
pagassem folha de pessoal.
No caso dos Estados e Municípios, não teriam eles
escapado do controle das despesas com folha de pagamento de
pessoal, inclusive nas Assembléias Legislativas, Câmaras de
Vereadores e Judiciários Estaduais. A Lei de Responsabilidade
Fiscal fixa limites de gastos em todos os níveis e em todas as
esferas de governo. Aliás, a limitação dos gastos com o Legislativo
e o Judiciário é uma reivindicação da sociedade.
No final das contas, a regra é bastante simples: não se pode
gastar mais do que se arrecada; não se pode tomar empréstimo que
não possa ser pago. E quem romper essa regra será punido ..."
As criticas ficaram restritas aos partidos que manifestamente se colocaram contra o
projeto proposto pelo governo. Entretanto, vale lembrar que, concluídas as votações, o PT,
a maior bancada opositora, posicionou-se contra o pleito dos prefeitos de adiar a entrada em
vigor da lei, como mostra o discurso de Walter Pinheiro (PTIBA):
90
"...0 Partido dos Trabalhadores não pode, de forma alguma,
desapontar a expectativa da sociedade - ou melhor, ir na
contramão do voto de confiança que lhe foi dado pela população--,
posicionando-se a favor de mudanças na Lei de Responsabilidade
Fiscal.
Ontem, denunciei o caso do Prefeito de Mairi, que, ao
perder as eleições, adotou a postura de não pagar os salários dos
servidores e pouco se preocupa com o que acontecerá até o dia 31
de dezembro.
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, imaginem se a Lei de
Responsabilidade Fiscal for relaxada. Provavelmente, vários
prefeitos que perderam a eleição poderão adotar essa postura de
agora. Não há qualquer tipo de cobertura que obrigue uma conduta
séria. Portanto, não podemos marchar com esse pleito." (Sessão
Ordinária, 8/11/2000)
Tal grau de coesão no interior do Legislativo, para fazer um contraponto, não se
verificou em questões não diretamente relacionadas à temática do ajuste fiscal. Um
exemplo é o debate em tomo da fixação do salário mínimo, no início de 2000, que dividiu a
base aliada e uniu diferentes partidos contra o governo. Matéria de grande visibilidade
política, uma Comissão Especial foi formada na Câmara propondo salário de R$ 177, acima
do R$ 155 proposto pelo Executivo federal. Até então, a praxe legislativa havia sido
aprovar o valor proposto em Medida Provisória.
Mesmo afirmando que "Quem estiver votando contra está contra mim e fora do
governo" e liberando recursos para emendas parlamentares, FHC não conseguiu evitar
dissidências. Na Câmara, dos 375 deputados governistas, 61 votaram contra e 22 se
ausentaram. No Senado, 5 senadores governistas se colocaram contra o pleito presidencial.
Ainda assim, a MP obteve votação expressiva: 306 votos a favor e 184 contra. No
Senado, foram 48 votos a favor e 20 contra. O contra-ataque do governo aos dissidentes se
91
concretizou dias depois, com o anúncio de demissões no segundo escalão e advertências
para os partidários dissidentes do PSDB.
O episódio ilustra dois aspectos. Em primeiro lugar, mostra que a base aliada, atenta
à proximidade das eleições municipais em outubro de 2000, já dava claros sinais de
desgaste, ou seja, indicava que cooperar na arena decisória e competir na arena eleitoral
passara a ser insustentável. Segundo, que, em issues de grande visibilidade eleitoral, não há
"adesão" imediata dos parlamentares às propostas governistas, ainda que, como neste caso,
a proposição dos legisladores implique, indiretamente, em descontrole fiscal.
Por outro lado, reforça o argumento de que proposições diretamente relacionadas ao
ajuste fiscal, como no caso da LRF, adquiriram status supra-partidário. De tal sorte,
sofreram menos influência das rupturas políticas que ocorriam em 2000, facilitando a
formação de consenso. Ressalto, assim, novamente o papel das idéias.
IV. Conclusão
As variáveis institucionais contaram em grande medida no processo de apreciação
legislativa da LRF, como se procurou mostrar aqui. O uso hábil da engenharia institucional,
particularmente do pedido de formação de Comissão Especial e do pedido de urgência, foi
decisivo tanto na rapidez da tramitação, quanto na determinação de seu conteúdo no
Congresso. Contaram bastante, além disso, a capacidade negociativa do Executivo tanto
para evitar modificações significativas no conteúdo proposto pelo governo quanto para
neutralizar a ação de potenciais vetos, em especial a dos prefeitos e governadores.
Entretanto, não teria o governo obtido o resultado verificado sem a pressão da-
opinião e das mudanças de preferências dos atores congressuais, num processo em que a
rrúdia teve papel de destaque. Como se procurou ressaltar aqui, a mídia conferiu ao tema
grande visibilidade, tratando a LRF como uma espécie de "tábua de salvação" em meio aos
desvios da Administração Pública, que ganhavam destaque com a CPI do Orçamento, dos
Precatórios e outros "escândalos" locais.
A idéia de responsabilidade fiscal proposta pela lei foi "catapultada", para usar os
termos de Hall, tanto junto à população quanto aos parlamentares. O posicionamento
favorável dos meIOS de comunicação ao projeto proposto pelo governo e as criticas
dirigidas a seus opositores fazia eco nas preferências dos parlamentares, principalmente em
meio ao agravamento da crise financeira. A expressiva votação obtida pela lei nas duas
Casas legislativas demonstrou claramente essa preferência pela convergência em tomo da
idéia de ajuste fiscal, que não se verificou em outras matérias, sendo a tramitação do salário
mínimo no início de 2000 um contraponto significativo.
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fazendo. uma análise do. processo de ajuste fiscal no. Brasil pós-Real, procuramos
mostrar neste trabalho. que o. ciclo. de mudanças área fiscal, iniciado. na era FHC, resultou,
antes de tudo, de uma. série de profundas transformações no. plano. federativo. a partir de
1993/1994, as quais forarn fortemente calcadas pelo. sucesso. do. plano. de estabilização.
proposto pelo. Executivo. federal. Ancorado na legitimidade conferida pelo. Real, o. governo
central passou a empenhar-se na reconquista de seus poderes distributivos, num esforço. de
centralização. das prerrogativas fiscais.
Tal empreitada resultou em um reordenamento das relações federativas. De um
federalismo. de cunho. estadualista e centrífugo. marcado. pela ingovernabilidade, viu-se a
emergência de um novo modelo no. qual a União. voltava a ser figura central e de maior
peso. na balança federativa, permitindo. levar adiante uma agenda fiscal de caráter bastante
restritivo.
Essa agenda e a "virada?' federativa, por outro lado, não. se deram de forma abrupta
e autoritária. Pelo. contrário. Demandaram uma aplicação. gradual de medidas negociadas
com os diferentes atores da Federação. e o. aproveitamento do. aprendizado. decorrente dos
cinco planosde estabilização. anteriores ao.Real.
Nesse quadro, no. qual surgiram ainda novas concepções a respeito. das causas
inflacionárias, é que se tornou consenso a necessidade de equacionar os problemas fiscais
tendo. corno foco o. controle das despesas chamadas "rígidas" - particularmente os gastos
relativos a pessoal ativo. e inativo- e o. restabelecimento. de relações fiscais mais "sadias"
entre a União. e os demais entes federativos.
Verificou-se, assim, no. período estudado, a criação. de uma vasta produção legal no.
sentido. de restringir o. endividamento. e o. avanço. das despesas rígidas, além da ênfase no.
enforcement dos dispositivos legais. Dentre as medidas mais importantes, destacam-se a
Lei da Dívida, que permitiu a renegociação das dívidas dos entes subnacionais,
equacionando uma das principais anomalias fiscais no. plano. federativo, a Lei Camata 1 e 2,
um primeiro esforço. de controle das despesas corn o. funcionalismo e a Lei de
93
94
Responsabilidade Fiscal, que, incorporando o aprendizado adquirido ao longo dos sete anos
de ajuste, constitui uma das principais medidas de caráter estrutural desse ciclo de
ajustamento das contas públicas. Nesse sentido, constitui também um grande avanço
institucional.
Tais medidas foram implementadas sob o comando do Poder Executivo central.
Muitas foram adotadas por meio da edição e da reedição de Medidas Provisórias -o Plano
Real, por exemplo, foi regido por MPs por dois anos. Falou-se em "delegação de poderes"
do Legislativo em prol do Executivo na consecução da agenda econômica do governo FHC.
Passou-se a atentar para os mecanismos no interior do Legislativo que permitiam tanto essa
delegação de poderes quanto a o fortalecimento dos poderes do Executivo em detrimento
do enfraquecimento institucional do Legislativo.
Entretanto, muito da agenda fiscal da Era FHC passou pela apreciação do
Legislativo e refletiu não apenas o resultado de uma delegação, mas também uma tomada
de posição a favor do projeto de ajuste fiscaI proposta pelo Executivo. A votação
expressiva obtida na tramitação da LRF nas duas Casas do Legislativo, sobre uma pauta
que atendeu aos propósitos do governo, constitui um argumento irrefutável disso
As variáveis institucionais, por outro lado, tiveram peso decisivo nesse processo de
mudança. Dadas as limitações, oferecidas pela conjugação de presidencialismo, federalismo
e multipartidarismo, que pode levar a uma situação de ingovernabilidade, tal qual se
verificou nos primeiros oito anos de redemocratização, o Executivo precisa armar-se de
grande capacidade negociativa para levar adiante sua agenda. Necessita ainda fazê-lo não
de forma impositiva e buscando soluções totaIizadoras, mas, procurando sedimentá-las de
forma incrementaI. Esse foi, como procurei mostrar aqui, o padrão de implementação das
medidas de ajuste, que provou ser bem sucedido.
Grandes avanços se sucederam de tal modo. Fechadas as diversas "torneirinhas" de
crédito fácil de todos os entes da Federação, quais sejam, a inflação, a emissão
desmesurada de títulos, de precatórios e o endividamento com posterior repasse de custos,
passou-se a exigir, antes de tudo, maior responsabilidade no gasto dos escassos recursos e
maior comprometimento dos Estados e Municípios para obter empréstimos. A questão da
transparência do processo orçamentário, enfatizada na LRF, constituiu sem dúvida um
95
grande progresso se lembrarmos que, não faz muito tempo, uma inflação que chegava a
quatro dígitos mascarava déficits e incentivava um comportamento fiscal irresponsável por
parte dos administradores públicos.
A LRF trouxe ainda "externalidades" bastante positivas: ao exigir contrapartidas de
receitas ou corte de gastos para cada beneficio fiscal concedido, tirou dos Estados o
principal instrumento que alimentava a guerra fiscal. Como se sabe, durante praticamente
toda a década de 90, assistiu-se uma briga crescente entre os governos estaduais em torno
da concessão de beneficios fiscais para atrair indústrias, numa guerra de "todos contra todos
e a União a favor de alguns", que não apenas contrapôs Estados industrializados entre si,
mas também contra Estados menos desenvolvidos, a custos altíssimos.
Estendeu ainda o esforço pela busca do equilíbrio fiscal aos três Poderes. A Lei
Camata, como assinalamos, previa metas de gasto com o funcionalismo. Sem amparo legal
para promover cortes de gastos que afetassem outros Poderes, entretanto, no mais das vezes
o esforço de gasto concentrou-se no Executivo, um quadro que foi alterado com a LRF.
No entanto, há enormes desafios pela frente. A questão da Previdência ainda é um
issue premente face ao rápido envelhecimento populacional, à mudança na composição da
população contribuinte por conta do aumento da informalidade e do desemprego e das
distorções de muito dos dispositivos legais relativos a essa matéria.
Uma outra questão diz respeito à capacidade de adimplemento das obrigações
assumidas pelos Estados e Municípios nos acordos da dívida pactuados no âmbito da Lei da
Dívida. A renegociação logrou de um lado equacionar uma dos aspectos mais gritantes do
jogo predatório que marcava a relação entre Estados e a União do período pré-Real.
Entretanto, pairam dúvidas sobre a real capacidade dos entes subnacionais de levar adiante
o ajuste fiscal nos moldes acordados. Trata-se, para além de uma questão política (sem.
dúvida, muitas vezes o é) ou de enforcement, uma questão matemática: as receitas
tributárias vêm apresentando queda em razão da crise econômica, a capacidade de
endividamento, bastante restringida nos últimos anos, já está esgotada e os recursos de
privatização já foram, em sua grande maioria, utilizados.
Há de se lembrar também que a despeito de a receita tributária ter crescido de forma
constante -o percentual da carga tributária em relação ao PIB atingiu recorde histórico em
96
2001-, não há dúvida de que o contribuinte não tem obtido uma contrapartida do governo à
altura. O episódio do "apagão" revela uma face do que se poderia chamar de "miopia
fiscal" que orientou as políticas nos últimos anos. A deterioração dos serviços públicos, em
especial no que se refere à segurança pública, aliada à situação de caos fiscal dos Estados e
Municípios, aos quais cabe o fornecimento de serviços mais próximos ao cidadão também
levantam questionamentos sobre os custos do esforço fiscal.
Emerge também a questão da accountability. É certo que a LRF incorporou uma
série de dispositivos que enfocam o aspecto da transparência dos orçamentos e a criação de
mecanismos de responsabilização dos governantes. Entretanto, por trás do movimento de
ajuste fiscal, ficou clara a centralização das decisões fiscais em tomo de órgãos insulados,
em especial a STN, o que, paradoxalmente, contradiz-se à proposta de accontability.
Daí se reforça a importância da continuidade desse processo incremental que
marcou o ciclo de ajuste no periodo pós-Real. Várias camadas de medidas fiscais foram
sedimentadas ao longo desse processo. Mas o desafio é ainda grande.
97
BIBLIOGRAFIA
ABRUCIO, Fernando Luiz. ·Os barões da Federação: os governadores e a
redemocratização brasileira. São Paulo: Hucitec/Departamento de Ciência Politica da
USP, 1998.
___ ; COSTA, Valeriano Mendes Ferreira. Reforma do Estado e o contexto
federativo brasileiro. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 1998 (Série Pesquisas n. 12).
ALESINA, Alberto & PEROTTI, Roberto. Budget deficits and budget institutions.
In: POTERBA, James & HAGEN, Jürgen, Fiscal institutions andfiscal performance. The
University of Chicago Press, 1999
AMORIM NETO, Octavio. Marcando posição: uma explicação concisa para a
competição partidária sob o segundo governo de FHC. Conjuntura Política, n. 31,
outubro1200 1.
BACHA, Edmar Lisboa. O Fisco e a inflação: uma interpretação do caso brasileiro.
Revista de Economia Política, São Paulo, v. 14, n. 1, janeiro/março 1994.
___ o Plano Real: uma avaliação preliminar. Revista do BNDES, Rio de Janeiro,
voI. 2, n. 3, junho 1995.
BAER, Monica. O rumo perdido - a crise fiscal e financeira do Estado brasileiro.
São Paulo: Paz e Terra, 1993.
BNDES. Responsabilidade Fiscal. Rio de Janeiro: BNDES, 2a ed., abril 2001, CD-
ROM.
98
___ o O comportamento das despesas estaduais com pessoal após a Lei de
Responsabilidade Fiscal. Informe-se, Rio de Janeiro: BNDES/ AFE, n. 44, julho 2002.
BOIX, Carles. Political parties, growth and equality. Cambridge University Press,
1998.
BRASH, Donald. As extraordinárias reformas da Nova Zelândia. Rio de Janeiro:
Instituto Liberal, 2001.
CARVALHO, Carlos Eduardo. As finanças públicas no Plano Real. In:
CARNEIRO, Ricardo et aI. Gestão estatal no Brasil- armadilhas da estabilização 1995-
1998. São Paulo: Fundap, 2000.
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL - 1988
COUTO, Cláudio Gonçalves. O avesso do avesso - conjuntura e estrutura na
recente agenda política brasileira. São Paulo em Perspectiva, vol. 15, n. 4, 2001
__ -,o ARANTES, Rogério Bastos. "Constituição ou políticas públicas? - Uma
avaliação dos anos FHC', Mimeo., PUC-SP, 2002.
GIAMBIAGI, Fábio; ALÉM, Ana Cláudia. Finanças públicas: teoria e prática no
Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1999.
JORNAIS O Estado de São Paulo, Folha de S.Paulo, Gazeta Mercantil, Correio
Brasiliense, O Globo e Jornal do Brasil
99
LIMONGI, Fernando. & FIGUEIREDO, Argelina. Bases institucionais do
presidencialismo de coalizão. Lua Nova - Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 44,
1998.
___ o O Congresso e as Medidas Provisórias: abdicação ou delegação? Novos
Estudos, São Paulo, n. 47, marçol1997
LOUREIRO, Maria Rita. Instituições, politica e ajuste fiscal: o Brasil em
perspectiva comparada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, voI. 47, n. 16, 200l.
___ o O Senado no Brasil recente - politica e ajuste fiscal. São Paulo em
Perspectiva, voI. 15, n. 4,2001
ABRUCIO, Fernando Luiz. Politica e burocracia no presidencialismo
brasileiro: o papel do Ministério da Fazenda no primeiro governo Fernando Henrique
Cardoso. Revista Brasileira de Ciências Sociais, voI. 14, n. 41, outubro 1999.
___ o Incrementalismo, negociação e accountability: análise das reformas fiscais
no Brasil, Mimeo., FGV-SP, 2002.
MAINW ARING, Scott. Democracia Presidencialista Multipartidária: o caso do
Brasil. Lua Nova - Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 28/29, 1993
MARTINS, Ives Gandra; BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à constituição do
Brasil. São Paulo: Ed. Saraiva, 1988.
NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à Lei de
Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Ed. Saraiva, 2001.
100
MELO, Marcus André. Reformas constitucionais no Brasil- instituições políticas e
. processo decisório. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2002.
NICOLAU, Jairo. Disciplina partidária e base parlamentar na Câmara dos
Deputados no Primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998). Dados, Rio de
Janeiro, voI. 43, n. 4,2000.
PALERMO, Vicente. Como se governa o Brasil? ° debate sobre instituições
políticas e gestão de governo. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, voI. 43,
n.3, 2000.
RANULFO, Carlos. A crise anunciada. Conjuntura Política, n. 33, abri1l2002.
REGIMENTO INTERNO DA cÂMARA DOS DEPUTADOS
SANTOS, Fabiano. °nome do jogo. Conjuntura Política, n. 18, maio/2000.
___ o Partidos e co,missões no presidencialismo de coalizão. Dados - Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, voI. 45, n. 2, 2002.
SIMONSEN, Mario Henrique. Novos desafios da economia brasileira. In:
VELLOSO, João Paulo dos Reis (coord). O Real e o futuro da economia. Rio de Janeiro:
Ed. José Olympio, 1995.
SHICK, Allen. Governrnents versus budget deficits. In: WEAVER, K. &
ROCKMAN, B., Do intitutions matter? Government capabilities in lhe United States and
Abroad. Washington, D.e.: The Brookings Institution, 1993.
101
TSEBELIS, George. Processo decisório em sistemas políticos: veto .players no
.presidencialismo, parlamentarismo, multicameralismo e pluripartidarismo. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 12, n. 34, 1997.