“I UUU SHHH Gritos Sexo e Metamorfose Entre Os Matis - Erikson - Mana 2000

Embed Size (px)

Citation preview

  • O tratamento comparativo de dados etnogrficos provenientes das re a smelansia e amaznica parte de uma tradio acadmica to invetera-da quanto prestigiosa. Em diferentes graus, todos os grandes debates te-ricos que agitaram o americanismo tropical ao longo do sculo XX e n c o n-t r aram a matria para reflexo, a princpio sob um ngulo puramentedifusionista (Mtraux 1927; Rivet 1928; Riley et alii 1971), depois, gradual-mente, sob uma tica cada vez mais conceitual, medida que o compara-tivismo se libertava de uma concepo literal demais para se intere s s a rpela dimenso nocional dos fenmenos abordados. Dentre os camposexplorados por essa via transpacfica, citemos os grandes debates sobre asp rotenas (Chagnon 1980), as questes do xamanismo comparado (Desco-la e Lory 1982) ou, mais re c e n tem ente, as temticas da troca, do dom e dan a t u reza do vnculo social (Hugh-Jones s.d.). conhecida, alm disso, ainfluncia decisiva de idias de origem melansia (Barnes 1962) sobre arenovao dos estudos de parentesco sul-americanos. Para se convencerdisto basta consultar os textos reunidos por Overing-Kaplan (1977).

    Se h um objeto de reflexo em torno do qual amazonistas e ocea-nistas podem encontrar-se, este o das flautas, das mscaras e dos cultosa elas associados, com todas as implicaes que tais temas podem ters o b re a anlise das relaes entre os gneros. Como j salientava Quinn(1977:215): Um complexo distintivo de costumes, rotulado de antago-nismo sexual, tem sido h muito reconhecido como tpico de duas regiesamplamente separadas do mundo: a Amaznia brasileira e as terras altasda Nova Guin. Um importante simpsio, Amazonia and M e l an esia: Gen-der and Anthropological Comparaison, props re c e n t em e nte um b a l a n op rovisrio da questo (We n n e r- G ren Foundation for Anthro p o l o g i c a lR e s e a rch 1996). As poucas pginas que se seguem no tm, com cert e z a ,a ambio de revisar todo esse volumoso dossi, recentemente re a b e rt o ,para a rea amaznica, por Chaumeil (1997) e Baer (s.d.). De modo mais

    I, UUU, SHHH:GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE

    OS MATIS (AMAZNIA BRASILEIRA)*

    Philippe Erikson

    MANA 6(2):37-64, 2000

  • modesto, proponho-me a trazer luz alguns materiais etnogrficos quepodem contribuir para o debate. Tais dados provm dos Matis, sociedadedo oeste amaznico de lngua pano, com pouco menos de 250 pessoas,pacificada no final dos anos 70, que se dedica caa e horticultura ejunto qual desenvolvi pesquisa durante quinze meses, em vrias visitasfeitas em 1984-86, 1988, 1996 e 1998.

    Alm de uma reflexo sobre o tema da ritualizao do antagonismosexual, este texto apresenta um estudo do que se poderia chamar de omonossilabismo perf o rmtico dos Matis. Aps uma breve apre s e n t a ode seus aerofones, pro c u ro analisar o pequeno re p e rtrio de sons, ouantes de gritos (i, u e s h), usados pelos Matis em certos contextosrituais, esperando mostrar que formam um sistema. Ve remos que taisgritos s podem ser interpretados com eficcia em referncia comple-m e nt ar id ade dos sexos e luz da transformabilidade generalizada quec a ra cteriza as cosmologias e as teorias ontolgicas amerndias. No tra-jeto, e s p ero que os dados aqui apresentados se mostrem teis no qua-d ro dos debates mais recentes sobre o animismo e o perspectivismoamaznicos (Arhem 1996; Descola 1992; Lima 1996, Rivire 1994;Vi v e i ros de Castro 1 9 9 6 ) .

    Esboo de uma teoria da organologia matis: t rompetes, mscaras e sexos

    Se os Matis tm mscaras que so mantidas escondidas das mulhere s(pelo menos daquelas que no chegaram menopausa), eles no pos-suem nada que possa, propriamente falando, evocar um culto das flau-tas sagradas, ou antes, para empregar uma linguagem mais concre t atanto do ponto de vista antropolgico quanto organolgico, os Matis notm culto centrado em torno de aerofones percebidos como vetores depotncias antagnicas a tudo o que toca a feminilidade. Existe, sim, umi n s t rumento, um trompete chamado m a s n, que est estreitamente asso-ciado s mscaras: ele utilizado, explicitamente, para convidar as ms-caras-espritos para visitar os humanos e outrora se danava com eles,como outros danam com suas clarinetas sagradas. Um jovem matis, semdvida mais imaginativo que a mdia, confeccionou um prottipo dem a s n que resume perfeitamente essa conjuno: ele modelou um ins-t rumento com um nariz, uma boca e uma arcada de sobrancelha que evo-ca o mais c l ar am e nte possvel as mscaras que re p resentam os espritosancestrais mariwin.

    I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S3 8

  • E n t retanto, diferentemente do que ocorre com as mscaras, esforoalgum feito para dissimular os m a s n do olhar feminino. Na verd a d e ,as mulheres no apenas podem ver os trompetes, como se relata at mes-mo que apenas h alguns anos elas tocavam estes instrumentos, em par-ticular quando os homens em expedio de caa demoravam a voltar.Com isso mostravam para eles seu desejo de comer carne1. preciso, por-tanto, acrescentar os Matis na lista, relativamente restrita, das etnias ama-znicas que sugerem uma exceo forte proibio pan-americana se-gundo a qual as mulheres no devem tocar aerofones, a no ser para sig-nificar o caos (Beaudet 1997:150-154). As mulheres matis teriam at mes-mo tido uma verso especificamente feminina do instrumento. Soube dis-to no dia em que, ao ver um m a s n com inmeras protuberncias (orn a-mentos em relevo sobre o contorno de sua parte mais abaulada), ouvi dealgum que se tratava de uma tentativa, realizada provavelmente poralguma mulher nostlgica, de re p roduzir essa variante hoje fora de uso.Meu informante explicou, ento, que os ornamentos que caracterizavamo objeto eram seus s h um a, ou seja, seus seios. Intrigado, peguei empre s-tado esse m a s n atpico para mostr-lo a uma sbia da aldeia, que pen-deu para uma explicao inversa: as protuberncias re p re s e n t a v a m ,segundo ela, os shui do instrumento, ou seja, seus pnis!

    De um ponto de vista subjetivo, dada sua semelhana com tetas, af o rma dos ornamentos parece reforar mais a primeira do que a segundainterpretao. Assim que fiz tal observao minha informante, ela inter-rompeu de pronto o debate dizendo que, de todo modo, se tratava doschu do objeto, ou seja, dos seus ornamentos-possesso2. Talvez ela esti-vesse tentando me dizer aquilo que como bom etnlogo eu j deveriasaber: que, segundo a perspectiva adotada, o simbolismo inerente a umobjeto ritual pode flutuar. Nesse caso, fica-se ainda menos surpreso coma pluralidade das interpretaes quando se considera o fato de os instru-mentos associados aos espritos ancestrais re p re s e n t a rem, no mais dasvezes, os poderes sexuais caractersticos do sexo oposto daquele que ostoca. Pnis das mulheres tornados mnstruos dos homens, poder- s e - i adizer para resumir clssicos amazonistas, tais como Murphy e Murphy(1974) e Hugh-Jones (1979). , portanto, bem lgico que tais instru m e n-tos sejam providos de grande nmero de seios quando considerados porum homem e de superabundncia de atributos viris quando consideradospor uma mulher. A nica particularidade, no caso matis, a de encontraressa construo quiasmtica em sincronia, quando, alhures, o contro l edos instrumentos sagrados geralmente feito em detrimento do outrosexo, e no em conjuno com ele. O controle simblico, por interm d i o

    I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 3 9

  • do aerofone, dos poderes genesacos do sexo oposto apresenta-se, nor-malmente, na forma de monoplio cuidadosamente conservado e arr a n-cado com muito custo de seus antigos detentores. V-se mal, aqui, comoo m a s n poderia re p resentar um instrumento de dominao de um sexos o b re o outro, j que parece que os dois podem (ao menos potencialmen-te) det-lo de forma simultnea.

    Por mais espantosa que seja, de uma perspectiva comparativa, essasituao de fraca concorrncia e de simetria entre os sexos, ela nada temde surpreendente no contexto da etnografia matis. Isso se deve, por umlado, natureza epicena de seu ritual onde meninos e meninas so ini-ciados simultaneamente de modo idntico , e, por outro, ao papel par-ticular que desempenha a o dimorfismo, aparentemente encenado menospelo que re p resenta em si do que como suporte no qual se encarn a r i a moposies de natureza essencialmente sociolgicas. Os Matis pare c e mter neutralizado o antagonismo de gnero para nele re i n t roduzir o querestava de seu sistema de metades (Erikson 1996).

    Embora evoque, em muitos aspectos, o complexo das flautas rituais,o m a s n matis se distingue, portanto, pela fraca carga de antagonismosexual de que parece investido. Pode-se, alis, salientar que em sua pr-pria forma, o masn n o e x ibe muito o aspecto flico to fre q e n t e m e n t esalientado pelos verd a d e i ros instrumentos sagrados. Ele composto, claro, por um tubo oco de dimetro razovel, mas este se encaixa em umacaixa de ressonncia em forma de cabaa, em argila. Os Matis no fariam,p rovavelmente, de outra maneira se quisessem ter fabricado um instru-mento que evocasse a conjuno dos dois objetos respectivamente emble-mticos das condies masculina e feminina: a zarabatana e a marm i t a3.Alm disso, diferentemente das flautas e das clarinetas flicas dasetnias vizinhas, os trompetes matis so transversos: so tocados com oi n s t rumento segurado lateralmente, e alm do mais em posio sentada.O contraste total com os mais longos trompetes barasana, que so toca-dos com movimentos bruscos, o instrumento mantido diante de si, sacu-dido em um vaivm dos mais explcitos (Hugh-Jones 1979:137).

    O fato de que um instrumento musical manifeste uma certa ambiva-lncia sexual nada tem de extraordinrio em um contexto amaznico.Uma iconicidade comparvel quela que emana dos m a s n existe, porexemplo, nas trombetas k u l i rr in a , dos Wakuenai, constitudas de tubosde palmeiras masculinas [amarrados em] cavernosos re s s o n a d o res emf o rma de tero, de modo a faz-los expressar simbolicamente um concei-to de ambissexualidade (Hill s.d.:29). A matraca dos Warao do delta doOrinoco igualmente descrita como um instrumento que conjuga um eixo

    I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S4 0

  • flico e uma cabaa uterina (Wi l b e rt 1985:155). Do mesmo modo, Fausto(1997:288) descreve o basto de dana w a r at o a , dos Parakan, comosimultaneamente pnis e tero. Entretanto, tais instrumentos pare c e mser de outra classe que aqueles cuja morfologia sugere mais claramentea associao com a masculinidade, e que constituem a maioria daquelescuja viso proibida s mulheres. Vejamos o que diz Hugh-Jones (1979:160): os instrumentos H e so antes de tudo um smbolo masculino (comlimitadas associaes femininas) e enquanto tal se ope cabaa de cerade abelha, que um smbolo essencialmente feminino (outra vez, comlimitadas associaes masculinas).

    Beaudet (1997:48) tem certamente razo em escrever que: os aero-fones aparecem com freqncia ligados, na Amaznia, a uma re p re s e n-tao mtica da virilidade e definio ritual dos sexos. A despeito desua relao evidente com as mascaradas proibidas s mulheres e no obs-tante a presena igualmente evidente da questo do gnero nos discur-sos a eles re f e rentes, os m a s n matis esto, no entanto, longe de se con-f o rmar a esse esquema. Tudo parecia predestin-los insero na cate-goria flautas sagradas, mas, de fato, tudo se passa como se eles esti-vessem paradoxalmente mais prximos da matraca do que do aero f o n e4.Em compensao, um grito monossilbico especificamente masculino,i, merece ser abordado dessa tica da expresso ritual do antagonismoe n t re os sexos. Ve remos, com efeito, que esse grito parece explicit am e n-te destinado a afastar as mulheres, em contextos que, na falta de um ter-mo mais adequado, sero qualificados de msticos. O paralelo com asflautas sagradas , alm disso, reforado pela existncia de um grito sim-trico (u u u ) proferido pelas mulheres, que parecem responder aos h o m e n scom uma defasagem temporal, exatamente como as mulheres do Xinguretomam em seus cantos, s vezes depois de muitos anos, as melodiaso u t rora tocadas pelas flautas masculinas (Monod-Becquelin 1987).

    I : ou como virar jaguar e afastar as mulheres com uma nica slaba

    S e m p re proferido por homens, o i matis empregado toda vez que set r ata de assinalar que acabam de sofrer uma transformao temporria(geralmente em jaguar) e que seria, portanto, muito perigoso, e at mes-mo mortal, algum cru z a r-lhes o caminho, ou antes, o olhar. Quando oshomens matis pro f e rem seu grito, isto indica s mulheres que elas devemf e c h a r-se com as crianas na casa comunal e, de preferncia, vedar em

    I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 4 1

  • seguida todas as entradas. Escondido atrs das paredes, o auditrio podeento ouvir, mas no deve de modo algum ver alguma coisa. O paralelocom o que acontece alhures no momento do aparecimento de tro m p e t e s ,flautas ou clarinetas sagradas patente: nos dois casos, tem-se um gru p ode homens que afirma ter relaes co-substanciais com o no-humano,emitindo uma mensagem sonora destinada a um pblico feminino quedeve, sob pena de sanes severas, fechar os olhos. Tem-se, nos doiscasos, uma dissociao entre os cdigos visual e acstico que vem salien-tar uma disjuno entre os grupos masculino e feminino, permitindo aomesmo tempo uma certa forma de comunicao5. Nos dois casos, oshomens no podem exibir a expresso mais acabada de sua virilidade (la manipulao de aerofones, aqui a transformao em felino) a no serao abrigo do olhar das mulheres.

    H, entretanto, algumas diferenas notveis entre os dados matis eaqueles que provm de sociedades onde a existncia de trompetes sagra-dos se manifesta mais claramente. Tais diferenas resultam, essencial-mente, da pouca nfase dada ao antagonismo sexual em um contextotodavia claramente marcado com o selo do dimorfismo. Os temas, asso-ciados, da dominao masculina e da impureza feminina esto aquiausentes, em total contraste com o que descrevem autores como Gourlay(1975), Godelier (1982) ou Herdt (1982), para a Melansia, ou autore scomo Murphy (1959), Gregor (1990) ou Jackson (1992), para a Amaznia.E n t re os Matis, as mulheres raramente so excludas de maneira siste-mtica em virtude de consideraes que repousam puramente sobre afisiologia. Quando h excluso, menos o corpo das mulheres que o prin-cpio de feminilidade que se mantm afastado. Pode-se notar, alis, quee n t re os Matis, tanto o grupo masculino (aquele em que os homensexclamam i) quanto o feminino (aquele dos enclausurados) podemser, em certa medida, mistos.

    Com efeito, exceo da caa ritual que precede a cerimnia deimposio de tatuagens (da qual devem part i c i p a r, imperativamente,todos os meninos aps o desmame), a incluso em um ou outro dos doisg rupos no depende mecanicamente do gnero de cada um. Um homempode ficar na aldeia enquanto os outros se transformam em jaguar, com acondio de permanecer todo o tempo com as mulheres. Do mesmo modo,algumas mulheres podem estar presentes quando os homens gritam i ;elas devem, ento, simplesmente acompanh-los ao longo de todo o seupriplo, at que voltem ao estado normal, a fim de evitar que seus cami-nhos e, portanto, seus olhares possam cru z a r-se. Ao contrrio do q u ese passa com as mscaras, que os homens matis escondem das mulhere s

    I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S4 2

  • e das crianas quando no esto em uso, no h aqui nenhuma art i m a-nha, no sentido de que se trataria de dissimular um segredo qualquers m u l h eres. Todo mundo est persuadido de que quando os homens gri-tam i, algo extraordinrio se realizou. A proibio visa, antes, pro t e g e runs e outros do que ocultar o que quer que seja. Longe de pesar exclusi-vamente sobre o sexo feminino, como a ameaa de violao coletiva quese v e r if ica em outros lugares (McCallum 1994), a sano aqui diz re s p e i t oa todas as partes concernidas. Em caso de contraveno, dizem, tanto umhomem quanto uma mulher poderiam sofrer as conseqncias nefastas d oincidente, cujas modalidades so, alis, bem frouxas. Afirma-se, simples-m e nte, que algum poderia morre r. Aqui, ainda, encontramos um elemen-to de simetria entre os sexos, relativamente atpico nesses contextos.

    difcil saber se o grito serve para induzir transmutao, ou se elese contenta em assinal-la s mulheres para garantir que elas estejambem escondidas. Se investigaes ulteriores confirmassem que o gritoinduz metamorfose, estaramos diante de um caso bem interessante deato ritual que seria, a um s tempo, causa imediata e causa ltima de suaconseqncia: a ocultao das mulheres. I seria, com efeito, causa ime-diata como grito de aviso, mas, simultaneamente, causa ltima como ope-rador da metamorfose que obriga as mulheres a se esconder. Seja comof o r, mesmo se fosse confirmado que o grito serve unicamente para pre v e-n i r, no ficaramos menos impressionados com sua extrema sobriedade.Esse simples vocalise constitui o nico vestgio visvel (ou antes aud-vel), a nica manifestao concreta de uma operao mstica das maisintrigantes, ard o rosamente debatida em um frum sul-americanistarecente onde as hipteses perspectivistas de Vi v e i ros de Castro (1996)causaram alvoroo. O que poderia ser imaginado como eminentementeespetacular homens que se transformam em jaguares no implicanem tomada de alucingenos, nem pinturas corporais sofisticadas, nemrevestimento com ornamentos marcados pela semntica felina, nem pos-tura, atitude, maneira ou comportamento particularmente evocativos. Umsimples monosslabo, reiterado em intervalos re g u l a res durante um tem-po relativamente curto (alguns minutos apenas), prosseguindo seu cami-nho tranqilamente: a isto se reduzem as metamorfoses matis. What ana n t i - c l i m a x ! exclamou um diretor de cinema exasperado com o carterto pouco fotognico de uma cena que os Matis s com muito esforo (ea preos altos) o tinham autorizado a filmar

    , por assim dizer, impossvel, para um observador externo, saber oque se deve realmente ouvir quando as pessoas dizem que se transfor-maram em jaguares. A observao participante, no caso, pouco ajuda.

    I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 4 3

  • Por mais que se tenha sido felinizado, o enigma permanece inteiro, eno de grande consolo saber que vrias geraes de etnlogos se per-guntaram por que os Boro ro so araras (Journet 1997). Entretanto, sefalam pouco durante o prprio ritual, os Matis tecem a posteriori a l g u n scomentrios que tm seu interesse. Com efeito, eles dizem de bom gra-do que o grito que acabaram de dar tem um significado bem pre c i s o .Traduzido na linguagem dos humanos i i i significaria: voucomer tripas. Certos informantes precisam at mesmo que a significa-o literal seria: Sou um jaguar, vou comer tripas de guariba. Duasexplicaes suplementares me foram propostas: a de que os jaguare seram, na verdade, consumidores de tripas cruas e a de que eles tinhamo hbito de se deliciar com aquelas que os caadores, aps ter esvazia-do suas presas para lev-las para casa, abandonavam na floresta. Dis-curso eminentemente ambguo, pois d a entender que os homens seidentificam com o jaguar, sem por isso deixar de se distinguir dos feli-nos. Comer tripas o que fazem os jaguares e proclamar que se vaifazer o mesmo significa, portanto, imit-los. (Em matria de pre d a oesse no , alis, o pior exemplo a ser seguido.) Entretanto, sugerir,simultaneamente, que as tripas em questo foram deixadas por caado-res humanos o mesmo que, no sem uma certa fatuidade antro p o c n-trica, relegar os animais a uma posio subordinada. Portanto, tudo sepassa como se, depois de terem, em um primeiro momento, se apro p r i a-do das qualidades felinas desejadas, aqueles se colocassem, em umsegundo momento, em posio to dominante que os jaguares ficariamreduzidos a catar re s t o s !

    Ao dizer i i i os homens falam jaguar, claro, mas seu dis-curso joga evidentemente com ambigidades, oscilando, constantemen-te, entre a plena assuno da posio de enunciador (falar como jaguar)e o discurso relatado (fazer os jaguares falarem). Em outras palavras, osa t o res rituais assimilam-se sem se fundir, absorvem felinidade, mas sempor isso nela se perd e r. Longe de se metamorfosear de modo total e irre-versvel, eles s se transformam temporariamente e, por certo, parc i a l-mente. Notemos, aqui, a prudncia que se deve ter com esse gnero dedado etnogrfico para no se fazer uma interpretao por demais literaldo perspectivismo amerndio. A transformao em jaguar , com cert e-za, levada muito a srio: receia-se, realmente, o que aconteceria sealgum fosse visto nesse estado. A dimenso metafrica da metamorf o s eno est, porm, ausente, como mostra a segunda explicao, na qualalgum se projeta para o futuro no como jaguar, e sim como caadorhumano cujos produtos derivados atraem os jaguares. Uma difere n a

    I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S4 4

  • p a rece, assim, claramente estabelecida entre os jaguares reais (de bomgrado desvalorizados) e os jaguares-qualidades, tomados como modelos.Os Matis igualam-se aos jaguares para melhor rivalizar com eles naquiloem que so exmios. No h necessidade alguma, por isso, de re n u n c i a r sua prpria identidade. Descola (1986:125) dizia mais ou menos a mes-ma coisa ao afirmar que o animismo dos Achuar no os impedia, de modoalgum, de colocar barreiras bem estanques entre as espcies, fundadassobre as diferenas de atitude na comunicao.

    As circunstncias nas quais os homens pro f e rem o famoso grito sobem variadas. A situao paradigmtica consiste, entretanto, na part i d aou re t o rno de uma expedio destinada a obter o cip de curare. Asm u l h e res e as crianas tendo sido prevenidas, todos se renem na casacomunal. Os homens podem, ento, sair um por um, por uma mesma por-ta, como fumaa que escapasse por um pequeno orifcio, me foi dito. Apsalguns metros, eles do seus gritos, i i i , cada um por si, sem levarem conta as emisses sonoras dos outros que podem ou no se sobre p o rs suas. Segue-se uma expedio durante a qual proibida qualqueringesto de alimento ou de bebida e depois da qual, tendo escondido oscips em um canto da floresta ou da roa na periferia da aldeia, se pode,enfim, ir para casa e se alimentar. nesse momento que os homens avi-sam seu re t o rno, reiterando seus gritos, e mais uma vez eles no devemser vistos de modo algum enquanto dura o trajeto que os leva para casa.S podem ser vistos sem perigo depois de entrarem na casa comunal, devolta a seu ponto de partida e a seu estado inicial.

    Os caadores passam alguns dias aps a caada cozinhando seuc u r a re em pequenos abrigos afastados da aldeia. Teoricamente, elesdevem ficar apartados de suas esposas, o que no nada surpre e n d e n-te em um contexto amaznico, onde as mulheres so, com fre q n c i a ,excludas do processo de preparao dos venenos de caa (Lvi-Strauss1964:280). Scazzocchio (1979) relata que entre os Lamistas, at mes-mos as mulheres xams se vem proibidas de preparar o curare, embo-ra se trate de um ingrediente importante de suas prticas xamnicas.E n t retanto, entre os Matis, a proibio parece longe de ser considera-da de modo to literal. As infraes norma de excluso das mulhe-res so mesmo bastante freqentes, pois as esposas no hesitam, seseu caminho as leva naquela direo, em parar no refgio dos caa-d o res, ou mesmo em ir at l deliberadamente, se tm, por exemplo,alguma mensagem para transmitir. Os Matis resolvem essa contradi-o pelo vis de um jargo de caa cujas frmulas cifradas perm i t e mocultar a presena das mulheres, designando-as no mais como c h i-

    I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 4 5

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S4 6

    r ab o (mulheres) e sim como t u ruru (anuros), e referindo-se a seus rgos genitais no mais como k w (sexo feminino) e sim como s i a(pimenta) etc. Assim, pode-se excluir simbolicamente as mulheres deum processo que lhes proibido, tolerando, ao mesmo tempo, sua p re-s e na fsica no lugar. Com um pragmatismo notvel, os caadores con-tentam-se, enquanto dura o cozimento do veneno, em excluir as mulhe-res de seu vocabulrio. Eles as ignoram lexicalmente, continuando afalar com elas.

    Em compensao, uma vez terminado o cozimento, na ocasio dopequeno ritual que marca a volta do veneno fresco aldeia, trata-se dere d obrar as precaues. D-se um jeito, portanto, para que se e n c l a us u -rem na casa comunal todos aqueles que no participaram do cozimento(ou seja, as mulheres e as crianas, como tambm, eventualmente, oshomens que no teriam tomado parte no trabalho). As condies esto,ento, reunidas para proceder ao ritual de fechamento do cozimento, nocurso do qual os homens saem de seu abrigo, cada um munido de seuveneno, imitando a agonia de suas futuras presas, se arrastando de modolamentvel pelo cho e gemendo como se uma dor terrvel perc o rre s s esua coluna vertebral. Eles se levantam em seguida e exclamam org u l h o-samente i i i . Este grito deve, a um s tempo, significar que elest rocam seu estatuto de presa pelo de predador (depois de ter imitado acaa, eles se apresentam como jaguares) e prevenir os outros, que fica-ram na aldeia, de orelha em p, que eles devem redobrar a prudncia ese fechar na casa comunal6.

    As ocasies no curso das quais os Matis imitam o jaguar gritando iso hoje coletivas e relativamente raras. Dizem, entretanto, que, no pas-sado, os caadores de mais prestgio, ou, pelo menos, com mais podere smsticos (concretizados em uma substncia que os Matis chamam de sho),davam sistematicamente esse grito quando voltavam individualmente dacaa. Todos deviam, ento, desviar o olhar. Dizem, tambm e voltare ia falar disto , que, naquele tempo, as mulheres proferiam outro grito,u, em resposta ao dos homens. Elas vinham, em seguida, levar a caapara seu lugar, evitando, entretanto, olhar os caadores no rosto.

    Todas as circunstncias aqui evocadas se davam em um contexto cine-gtico e implicavam uma transformao do caador em jaguar, ou, aomenos, uma afinidade cmplice com o pre d a d o r. I p a recia ser, antes detudo, o grito do jaguar7. Convm, no entanto, notar que o mesmo grito,com as mesmas conseqncias (ocultao das mulheres e risco de mort eem caso de olhares cruzados), proferido tambm quando os homens sedirigem para a aldeia para ali danar fantasiados de um animal qualquer.

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 4 7

    Q u a ndo eles vm, por exemplo, cobertos de lama, imitando a capivara,devem avisar para que ningum olhe para eles enquanto esto chegan-do. Qualquer transgresso a esta interdio leva, supostamente, s mes-mas conseqncias desastrosas provocadas por um olhar cruzado comum caador felinizado que volta com sua carga de veneno. Algum pode-ria morre r. Por conseguinte, assim que ouvem o grito estridente queanuncia a aproximao iminente daquilo em que os homens se transfor-maram, as mulheres correm para se refugiar na casa comunal, onde espe-ram os danarinos que chegam pouco depois. Comeam, ento, comba-tes de carter claramente ertico, que evocam seus equivalentes shara-nahua, que tanto deram o que falar (Siskind 1973; Menget 1984). Ascapivaras, por exemplo, mexem com as moas, cobrindo-as de lama,encorajadas por mulheres mais velhas, que, pontuando seu discurso coma interjeio monossilbica feminina u, parecem dirigir a ao pormeio de um discurso claramente estereotipado, destinado a encenarverbalmente as prticas masculinas, por sua vez mudas (no que concer-ne linguagem articulada, pois os homens fantasiados de espritos ouanimais esto sempre re s m u n g a n d o ) .

    U U U : grito das mulheres e indutor ritual

    Esse papel privilegiado das mulheres maduras, ditas m a c h o, mere c emaior ateno. Com efeito, as mulheres na menopausa so, entre osMatis, as intermedirias privilegiadas entre o mundo dos espritos e o doshomens, ou, para ser mais preciso, entre o mundo dos Matis que ficaramna aldeia e o dos seres que supostamente os visitam: animais que vmd a n a r, espritos ancestrais m a r iw i n chamados para socializar as crianas,ou, ainda, espritos associais m a ru chamados para afastar a chuva. Sos e m p re elas que os convocam, escandindo seu discurso com um u u u u u(a nota pode ser mantida por mais de 4 ou 5 segundos). A rarefao con-tempornea de certos rituais , alis, s vezes, imputada s mulhere s ,acusadas de negligenciar sua funo indutora. Os homens s danariampouco porque as mulheres no mais os encorajariam com a voz. Esse papelmediador que as m a c h o ocupam nada tem de surpreendente, dada a viri-lizao caracterstica de sua faixa etria, como tambm a sua inegvelproximidade com o mundo do invisvel (o termo tsusi remete tanto idiade velhice como de esprito). Mais notvel, em compensao, a re l a-o, a um s tempo de oposio e de complementaridade, que parece uniras duas interjeies monossilbicas, o u feminino e o i masculino.

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S4 8

    No plano semntico, que u u u seja o correspondente de i deduz-se do fato de ser apresentado como a resposta que as mulheres dirigiam,antigamente, ao grito dos caadores transformados em jaguares. Va l etambm lembrar que mesmo que no se apresente como resposta ins-tantnea a um grito masculino, u u u antecipa ou acompanha a chega-da dos homens transformados (em jaguares, em capivaras ou em m a r i-w i n), transform a es que foram elas prprias, como se sabe, anuncia-das pela outra interjeio monossilbica. No plano fontico, pode-severificar que nossos dois cmplices se opem como vogais, re s p e c t i v a-mente, anterior alongada e posterior arredondada. Alm disso, no quetoca sua realizao, pode-se notar que u uma nota prol o n g a d a ,enquanto i evoca, claramente, mais o s t a cc at o: o contnuo ope-se aquiao descontnuo. Acrescentemos, enfim, que o grito feminino se inseres e m p re em um discurso de grande densidade semntica, enquanto oi enunciado, em geral, de modo bem seco. Se o grito masculinono basta a si mesmo, o grito feminino pontua, por seu lado, monlogoscerimoniais, dos quais alguns exemplos esto transcritos no Anexo. A olaconismo dos homens responde a exuberncia vocal das mulhere s .Pode-se ver que u u u faz claramente eco a i, os dois gritos manten-do uma relao estreita caracterizada por uma sbia dosagem de sime-tria e contraponto.

    Resta o mais importante, a saber, que as circunstncias nas quais sep ro f e rem as interjeies monossilbicas matis, sejam elas masculinas oufemininas, apresentam todas um perfil similar: o das situaes em que ossexos esto necessariamente disjuntos, a exibio sonora de um acompa-nhando-se da ocultao visual do outro. Como mostra claramente o qua-d ro a seguir, grita-se quase sempre na ausncia (real ou fingida) dos repre-sentantes do outro sexo. Quando so os homens que gritam, vimos queas mulheres se precipitam para a casa comunal para ali se re f u g i a rem, oque poderia ser assimilado a uma maneira de se mascarar8. Mas notamosque os homens esto igualmente ocultos (pois mascarados) cada vez queso as mulheres a gritar. Quando estas chamam os m a r iw i n, , no maisdas vezes, na ausncia dos homens, ao menos daqueles dentre eles quep a rtiram para se mascarar na floresta. Quando elas gritam para pre v e n i ros caadores da, por assim dizer, chegada dos animais, seus companhei-ros esto tambm ausentes, e por motivos bvios: so eles que esto fan-tasiados de capivaras, de porcos-do-mato etc. Enfim, quando as mulhe-res respondiam aos caadores antes de ir buscar suas presas, provvel quetal temtica da transformao/disjuno fosse igualmente operatria: hm e t a m o rfose na medida em que um caador fortemente carregado de

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 4 9

    e n e rgia mstica s h o p a rticipa, ipso facto, da felinidade (Erikson no pre l o ) ;e h disjuno dada a obrigao de evitar o cruzamento dos olhares.

    Quadro de distribuio dos gritos

    Ocasies Grito proferido Reao do sexo oposto

    Partida em busca de curare iiii Escondidas na casa

    Volta da busca de curare iiii Escondidas na casa

    Fim do cozimento de curare iiii Escondidas na casa

    Chegada dos danarinos iiii Escondidas na casa

    Volta de um caador iiii Resposta de longe: (no passado) uuuuu

    Chegada da caa uuuuu Desvio do olhar(no passado)

    P e rf o rm a n c e dos danarinos uuuuu E s c o nd idos por uma fantasia

    Apelo dos mariwin uuuuu Escondidos sob mscaras

    Apelo aos maru uuuuu (no pertinente)

    Apelo aos defuntos shhhh (no pertinente)

    Resta explicar a quarta circunstncia na qual as mulheres pro f e re mseu grito: quando chamam um esprito conhecido como m a ru, a fim delhe pedir para afastar a chuva. O m a ru, avatar local da figura pan-ama-znica do c u rup ir a, um esprito invisvel, desprovido de nus, que devee n c a rnar a anttese dos principais valores matis, e responsvel pelosd e s a p a recimentos na floresta. Quando a tempestade ameaa, as mulhe-res o invocam para que desvie os cmulos-nimbos de seu caminho, comofaz quando induz os humanos a se perd e rem na floresta. Embora pontua-do igualmente por um u u u estridente, tal ocorrncia difere, apare n t e-mente, das outras, j que ningum parece fantasiar-se de m a ru n omomento em que se recita a litania. Note-se, entretanto, que, devido intemprie, os homens se acham, no mais das vezes, fechados (ou aomenos abrigados) na casa comunal, no momento em que uma velha desa-fia sozinha o mau tempo na esperana de remedi-lo. Note-se tambm, es o b retudo, que a transformao de homens em m a ru est longe de seapresentar como uma eventualidade absurda.

    Com efeito, embora os m a ru e n c a rnem o associal, eles no dei-xam de ter uma certa utilidade, devido ao prprio benefcio que se podetirar de suas caractersticas pouco recomendveis. Os caadores, alis,transformam-se sistematicamente em maru quando caam com arco e fle-

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S5 0

    cha, como se transformam tambm em jaguares quando caam com azarabatana (Erikson no prelo). Nesse sentido, as transformaes em marue em jaguar parecem ter lgicas no mnimo comparveis, mesmo se uma mais valorizada do que a outra. Sabendo, alm disso, que o m a ru s ea p resenta, em muitos aspectos, como o simtrico inverso do m a r iw i n(Erikson 1992) e que ele figura, alm disso, entre os seres imitados duran-te as danas rituais, no de surpreender v-lo entre aqueles que asm u l h e res evocam uivando. No est ele presente, mesmo que em filigra-na, sob todos os discursos cinegticos, cosmolgicos ou core o g r f i c o s que as interjeies monossilbicas vm pontuar? Se nada acontece dolado dos homens quando uma mulher idosa se esfora para afastar a chu-va, se no h nada para se ver, talvez seja unicamente porque os m a ruso, por definio, invisveis. Pode-se, entretanto, postular que uma trans-f o rmao visual afeta ento os homens, mesmo se ela no encenada,como no momento das mascaradas (mariwin) e das danas (capivara, por-co-do-mato), e mesmo se eles no se gabam tanto como quando se trans-formam em jaguares.

    Para fortalecer tal hiptese, pode-se, alis, salientar que a invocaoinversa (apresentada no Anexo), aquela que em vez de afastar a tempes-tade serve para pedir aos defuntos que faam chover, no ritmada poru u u, como se poderia esperar, mas, antes, pela terceira interjeiomonossilbica presente no re p e rtrio matis: s h h h, chiado contnuo uti-lizado tanto pelos homens quanto pelas mulheres toda vez que recitam oequivalente local dos a n e n t j i v a ro (Taylor 1983). Vejamos de que manei-ra tal anomalia fortalece a associao que tentamos estabelecer entre ametamorfose masculina e o uivo feminino.

    As invocaes chiadas aparecem em uma grande variedade de con-textos: para fazer as plantas cre s c e rem, no momento da podagem, paraaliviar as dores de barriga, depois de uma refeio copiosa, ou, ainda,quando se aplica plantas medicinais nos olhos dos cachorros ou quandose chicoteia os bebs com larvas a fim de prevenir a diarria. No entanto,com exceo, precisamente, daquele dirigido aos defuntos, tais re c i t a t i-vos nunca tm destinatrio explcito. Alm disso, as invocaes com chia-dos so, em geral, muito curtas e funcionam segundo o princpio da enu-merao de atributos que se tenta insuflar por metonmia ao objeto aoqual se dirige, o que no de modo algum o caso no discurso endere a-do aos mortos. O aparecimento de s h h h na invocao para pedir- s echuva , portanto, inesperado. Ele se explica, provavelmente, pelo fatode que as mulheres se dirigem nessa ocasio a seus parentes mortos. Pois,se verdade que os homens se metamorfoseiam, mesmo que virt u a l m e n-

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 5 1

    te, naquilo a que se dirige o discurso das velhas, a reticncia em uivarnessa circunstncia facilmente compreensvel. O recurso ao s h h h ,interjeio que se poderia qualificar de neutra, , provavelmente, umeufemismo. Trata-se, simplesmente, de encontrar um substituto pudicoao uuu que o contexto probe.

    C o n c l u s o

    Ao fim desta incurso ao universo dos operadores monossilbicos matis, foroso constatar a relativa trivialidade dessa encenao do antagonis-mo sexual e da fluidez ontolgica. Estes temas clssicos no campo amaz-nico exibem aqui, certamente, uma configurao original, mas a partir dee l e m entos cujas variantes so encontradas de um extremo a outro das ter-ras baixas sul-americanas. A nica originalidade, no caso matis, prov m ,sem dvida, do carter atenuado e da economia de meios com que essestemas se desenvolvem. De ce rto modo, um simples grito basta para pro d u-zir o que se poderia chamar de um efeito flauta sagrada, sem que sejanecessrio guard a r, ciumentamente, um segredo, aterrorizar (ou fingir ater-rorizar) as mulheres, fabricar mscaras e instrumentos complexos, pre p a-rar rituais sofisticados etc. Um simples monosslabo vale por tudo isso.

    De modo similar, ficamos surpresos com o extremo minimalismo quecaracteriza a excluso das mulheres de tudo o que constitui, aos olhosdos Matis, o fundamento ltimo dos poderes viris. O laxismo com oqual se tolera a presena de mulheres em praticamente todas as etapasde preparao do curare consiste em uma prova flagrante disso, assimcomo a existncia de uma verso feminina do m a s n. Pareceria, tambm,que as mscaras de m a r iw i n so mantidas escondidas das mulhere smenos em funo de seu sexo do que do vnculo consubstancial que asune s crianas. O fato de as mulheres pontuarem seus apelos aos m a r i-w i n com o u u u que re s e rvam, de outro modo, para circunstncias emque seus companheiros sofreram uma metamorfose, no significariaanunciar da forma mais aberta possvel que elas so menos estpidas doque parecem? Na mesma ordem de idias, pode-se salientar a tolernciaao sangue menstrual de que do provas os homens matis, bastante excep-cional no contexto amaznico. H, claro, como em toda parte, uma cren-a bastante forte na incompatibilidade entre a menstruao e a caa. Masas mulheres no so por isso submetidas recluso peridica e as man-chas de sangue que cobrem, s vezes, o cho das casas comuns no pare-cem inquietar part i c u l a rmente os homens. Salientemos, por fim, que as

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S5 2

    m u l h e res matis chegam at mesmo a, em certa medida, participar fisica-mente da metamorfose em jaguar que afeta seus caadores quando estese m p regam a zarabatana. Quando, a exemplo de seus parentes matses(Romanoff 1984), acompanham os homens na caa, elas podem, com efei-to, ornar o peito com motivos salpicados, destinados explicitamente a evo-car os felinos.

    evidente que os temas do antagonismo sexual e do perigo de polui-o inerente condio feminina s se manifestam, nos Matis, de form ae x t remamente atenuada. Todos os ingredientes da vulgata americanista,inclusive naquilo que a aproxima dos temas oceanistas, esto a pre s e n-tes, mas apenas como que para serem melhor ridicularizados. Longe deenfraquecer a constatao de compatibilidade entre os materiais mel a-n sios e amaznicos colocada na introduo, esse fato, a meu ver, pedeantes uma concluso positiva. Os dados matis parecem, com efeito, for-talecer a hiptese formulada por Fausto (1997:143), segundo a qual ograu de excluso das mulheres (dos rituais ou das casas dos homens)seria, por assim dizer, pro p o rcional ao grau de sedentarismo de umadada populao.

    Os Matis no foram certamente, como os Parakan estudados porFausto, cindidos em dois grupos, dos quais um teria intensificado seugrau de sedentariedade enquanto o outro optava por uma estratgia demaior mobilidade (at renunciar agricultura); o primeiro vendo se exa-cerbar a tenso entre os sexos, o segundo experimentando, ao contrrio,um aumento das taxas de participao das mulheres na vida poltica ecerimonial. Os Matis cabem, entretanto, no esquema proposto por Faus-to, na medida em que seu igualitarismo sexual parece acompanhar-se deuma reao diante da presso da frente pioneira que consistiu, pre c i s a-mente, em uma estratgia de mobilidade. Antes do contato, os Matis dis-persavam suas roas em vrios pontos do territrio e passavam um tem-po enorme em expedies diversas. Ora, parece evidente que esse modode vida, que valeu a seus ancestrais mayoruna a designao de g i t an o sde la selva (ciganos da flore s t a )9, traduz uma atitude sob muitos aspec-tos simtrica e inversa quela dos povos hipersedentrios do Alto-Xingue do noroeste amaznico, conhecidos por sua estrita obedincia ao prin-cpio de excluso das mulheres.

    Seria sem dvida contraproducente levar muito a srio tal oposioe n t re insulares misginos e itinerantes feministas. Quando se tratade analisar os rituais de antagonismo sexual, essa tica tem entretanto omrito de incitar a privilegiar os fatores polticos e histricos, e no are c o rrer a explicaes baseadas em algum improvvel e t h o s e t e rno dos

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 5 3

    povos em questo. Mais do que criao de tipologias sociais, tais dadosconvidam antes ao inventrio das circunstncias contingentes que per-mitem ou no a atualizao de um culto das flautas potencialmente oni-p resente em todo o campo amerndio. Se o procedimento se mostrassefrutuoso para a rea amaznica, s restaria aos oceanistas test-lo na reamelansia. Talvez se pudesse, assim, equilibrar um pouco, no que toca antropologia, o balano das contas das trocas transpacficas.

    Recebido em 9 de dezembro de 1999

    Traduo: Elosa Arajo

    Philippe Erikson mestre de conferncias na Universidade de Paris X-Nan-t e rre e membro do Laboratrio de Etnologia e de Sociologia Comparativa(UMR 7535). Trabalha com os Matis desde 1985 e com os Chacobo da Ama-znia boliviana desde 1991. Sua obra mais recente, editada em colaboraocom A. Monod Becquelin, Les Rituels du Dialogue: Promenades Etnolin-guistiques en Te rres Amrindiennes ( N a n t e rre: Socit dEthnologie). E-mail:

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S5 4

    A n e x o

    Alguns exemplos do discurso uivado das mulheres

    Por ocasio da vinda dos danarinos imitando capivaras

    uuuuu uuuuu

    awar bw waka tsaburash muitas delas rolaram no rio

    papibo os meninos

    uuu uuu

    baku darimpa waka tsirburash muitas pequenas (capivaras) pulamna gua

    shita benon, trinte bnn non para ter dentes, para ter zarabatanas, sek cho Menabo venham flechar, rfos

    papibo Menabo baku darimpa os meninos, os rfos, muitos dostsirburan samrek pequenos esto ali na ribanceira

    n diranek serokwek cho venham aqui atirar neles

    n diranek trinte bnnon sek venham aqui atirar flechas neles para fazer suas zarabatanas

    uuuu uuuu

    mapwa a esto as capivaras

    Comentrio: Os dentes das capivaras so utilizados para fazer a mira das zaraba-tanas. Aqui, a porta-voz do grupo das mulheres idosas dirige-se no aos animais,e sim aos rfos. A aluso escapa-nos. Os informantes interrogados sobre esseponto se contentaram em evocar o grande nmero de rfos presentes na aldeia,devido s mortes consecutivas s epidemias ps-contato. Talvez, tambm, fossep reciso considerar que o estatuto de rfo caracterizado pelo desapare c i m e n t odos pais, que , precisamente, o que acontece (temporariamente, verdade) nomomento da mascarada...

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 5 5

    Por ocasio da vinda dos danarinos imitando porcos-do-mato

    uuuuu uuuuu

    N chawa choek a esto os porcos-do-mato que chegam

    papiboooo meninoooos

    nukin tsinkwin paburush eles esto triturando nossos restos demkmwek bananeiras

    nukin ma akkunkin chawa os porcos-do-mato vieram destruir choek nossas roas

    chawa kwanash nukin tshkn os porcos-do-mato foram embora, mkemwash kwanash eles vm agora triturar a entrada de

    nossa casa comunal

    chawa choek chawa munkek os porcos-do-mato esto chegando, os porcos-do-mato rosnam

    uuuuuu uuuuuu

    Comentrio: Temos aqui algo de muito similar ao caso precedente. Fingindo igno-rar que ela que chega rosnando, a narradora chama os homens para vir pro t e-ger a casa comunal e as roas em torno. Nota-se a pro g resso da narrativa queevoca animais que esto, a princpio, bem longe, e depois bem perto da casa.

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S5 6

    Para fazer os mariwin virem

    uuuuuu uuuuuu

    papibo krnek kwesek cho os garotos na idade de andar, venhamariwin chicote-los, mariwin

    min tawarin bakwbo kwerenek seus filhos tawari, aqueles que kit mariwin andam, mariwin

    min tawarin bakwbo isek cho venha ver seus filhos tawari, mariwinmariwin

    chikeshketbo kwestowek cho, aqueles que so preguiosos, venha

    mariwin chicote-los, mariwin

    uuuuuu uuuuuu

    papibo kwrenketbo kwsto os garotos que andam, venha kwes cho chicote-los

    min tawarin bakwbo seus filhos tawari, aqueles que chikeshkitbo so preguiosos

    kwestokek cho, mariwin digo, venha chicote-los, mariwin

    bakubo kwrenek os meninos que andam

    min tawarin bo bakw kwesek seus filhos moda tawari, venha cho,mariwin chicote-los, mariwin

    mariwin, min tawarin bakw mariwin, seus filhos tawari venha kwisek cho chicote-los

    nukun champi kwrenek ket minha filha, aquela que anda agora

    Tumen kwrenek Tuman kwisek , Tuman sabe andar, venha chicotearcho, mariwin Tuman, mariwin

    Tuman, n tsatket Tuman Tuman, a Tuman sentada aqui

    [...] []

    abio shurapa tatsi kateash ao p das rvores de abio venha sekwarek chota esper-los

    abio shu daka perokonon eles comem abio antes que estejammaduros

    dawan dawankitbo kwisek cho aqueles que sobem nas rvores venhachicote-los

    abio perokokin piskiri pekin aqueles que comem abio e piskiri kaketbo ainda verdes

    piskiri tawek weta venha esper-los ao p das rvores depiskiri (ing)

    [] []

    uuuuuu uuuuuu

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 5 7

    Comentrio: Diferentemente dos dois precedentes, o trecho do discurso acimareproduzido ocorre na ausncia do ser ou seres invocados, que podem ou no che-gar pouco depois. Trata-se de chamar os mariwin para que eles venham castigaras crianas, enumerando as razes pelas quais sua presena requerida. Oshomens, por seu lado, chamam os mariwin tocando o trompete masn, ou por meiode um canto cuja execuo re s e rvada (sob pena de picada de cobra) ao homemmais idoso da aldeia. Os m a r i w i n no batem nas crianas que sabem andar, con-tentando-se em acariciar os ps dos outros para incit-los a faz-lo. Nos dias quep recederam essa gravao, as crianas tinham efetivamente se excedido no con-sumo de frutas verdes. Assim sendo, de maneira muito caracterstica, a sano aelas destinada no foi apresentada como castigo, mas antes como uma medidap rofiltica: nos disseram que as crianas corriam o risco de morrer se lhes deixas-sem comer indiscriminadamente qualquer coisa

    Ta w a r i o termo de quase-parentesco que os m a r i w i n utilizam para falar dosMatis vivos, em particular das crianas (tawarin bakw = jovens tawari). Podera-mos glos-lo como algum de quem se bem prximo, que se parece muito comvoc, que lhe muito querido, mas que no diretamente aparentado a voc.

    Para incitar o maru a afastar a chuva

    uuuuuuuuu uuuuuuuuu

    n chasha kwanek maru venha desmatar por aqui, maru

    nn chasha kwanek desmate nessa direo

    nn chasha kanek kek chota maru venha desmatar por ali, dizem, maru

    nn chasha kek chota dizem venha desmatar por ali

    andi chota venha

    nru por ali

    Comentrio: As rv o res abatidas pelos m a ru, considerados responsveis pelasc l a reiras naturais na floresta, ocultam as trilhas existentes, de modo que as pes-soas perdem seu caminho. Quando o vento sopra forte, pedem-lhes para fazer omesmo com as nuvens, afastando-as do caminho celeste que, de outro modo, aslevaria direto para a aldeia.

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S5 8

    Exemplo de discurso chiado

    shh nesnon chota we shh, chuva, venha para eu me banhar

    shh chikesh shignon chota we shh, chuva, venha lavar a preguia

    eobi nesek eu tomo banho

    nukun duruk peshtokin chota venha molhar meus pequenos raminhos

    shh turemen chota we shh, venha logo, chuva

    shh turemen chota we shh, venha logo, chuva

    shh eobi nesek shh, eu tomo banho

    shh eobi nesek shh, eu tomo banho

    awat tekachish shignon chota we venha lavar o pescoo da anta

    awat tekachish shignon tureme venha logo lavar o pescoo da antachota we

    chikesh chignon chota venha lavar a preguia

    chikesh chignon chota venha lavar a preguia

    chikesh chignon chota venha lavar a preguia

    [] []

    Comentrio: Esse monlogo cerimonial parece explicitamente endereado chuva(w e) enquanto tal, j que se a interpela diretamente. Dizem, entretanto, que o dis-curso se dirige, na verdade, a parentes defuntos, que supostamente enviam a chuvaa fim de lavar seus parentes ainda vivos. Esse discurso evoca o precedente, dirigidoao m a ru, ao menos pela complementaridade evidente de sua temtica. A apro x i m a-o resulta, igualmente, de um certo nmero de figuras retricas comuns, em part i-cular as aluses aos rgos genitais femininos que encontramos tanto no chamadoao m a ru quanto no chamado aos mortos (embora eles no figurem nos trechos apre-sentados). O pescoo de anta, que dito causar preguia, proibido a todos, menoss pessoas idosas. Outros pedaos de carne (em particular de tucano, de guariba ede capivara) so tambm invocados. Sobre a relao entre chuva, morte e pre g u i a ,ver Erikson (1996:286-290).

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 5 9

    N o t a s

    * Uma verso preliminar deste texto foi apresentada na Universit Libre deB ruxelles, em outubro de 1999, por ocasio de um seminrio amazonista org a n i z a-da por Anne-Marie Losonczy no mbito do convnio CNRS/FNRS. Ficam aqui meusa g radecimentos a ela, assim como a Patrick Menget, Auro re Monod-Becquelin, Jean-Michel Beaudet, Carlos Fausto e ao parecerista annimo da revista M a n a, que le r a me comentaram verses anteriores deste artigo. Verso francesa do mesm o a p a re c e r em uma obra em homenagem pstuma a Henri Lavonds, a ser publicada pela Soci-t dEthnologie de Nanterre, sob a direo de Alain Babadzan.

    1 Reconheo a um dos ingredientes essenciais do mito xinguano: pre c i s a-mente porque seus homens demoram demais a voltar da pesca para casa que asm u l h e res Yamorikuma so levadas a se apoderar das flautas sagradas (Monod-Becquelin 1987; Franchetto 1996). Nesse mito v-se os homens se transform a re mem porcos-do-mato e as mulheres deixarem de respeitar as proibies habituais.No final do mito, elas comeam a tocar flautas j a k u i e a comer carne de mamfe-ros terrestres.

    2 A noo de c h u remete a bens preciosos, inclusive os ornamentos corporais,que se considera manter um vnculo bem estreito com seus possuidores. A nooope-se de m i sh n ib o, as pequenas coisas , ou seja, as possesses menore s .

    3 Se Clastres (1966) tivesse trabalhado com os Matis e no com os Ach(Guayaki), seu famoso artigo o arco e o cesto poderia ter por ttulo a zarabata-na e a marmita. O lado marmita dos m a s n no precisa de comentrios, pelosimples fato de serem modelados em argila, s vezes, at mesmo por mulhere s .Quanto ao paralelo com as zarabatanas, ele reforado pela idia adiantadapor alguns Matis , segundo a qual antes de terem verdadeiras zarabatanas, seusancestrais utilizavam, guisa de zarabatanas, pequenos troncos de C e c rop i a s p . :os mesmos que so utilizados hoje para os tubos de masn.

    4 preciso, sem dvida, aproximar essa feminilizao parcial do m a s n d ofato de que a funo de induo do ritual constitui antes de tudo apangio dasm u l h e res, como veremos ao abordar o estudo dos gritos. Ora, o que tocar m a s nseno desencadear um ritual? Do ponto de vista da diviso sexual das tare f a srituais, convidar os espritos parece antes caber s mulheres: so elas que, com avoz, os chamam de modo mais explcito e com mais freqncia (ver infra). Existe, claro, um canto masculino destinado a chamar os m a r iw i n, mas que s ouvidoraramente e por motivos bvios: ele s deve ser proferido por algum que nocace (seno uma cobra poderia pic-lo), ou seja, por algum cuja virilidade umpouco atenuada

    5 O procedimento bastante difundido pelo mundo, provavelmente, dentreoutras razes, por causa do forte potencial ertico que dele se pode extrair. Basta,

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S6 0

    para se convencer disto, ler as pginas consagradas por Malek Chebel (1995) dialtica do vu e do youlement (grito festivo feminino) no universo magrebino.

    6 Essa anlise contradiz, ou antes, corrige, a interpretao dessa etapa doritual apresentada em Erikson (1996, cap. 11).

    7 Patrick Menget (comunicao pessoal), ao escutar a gravao dos gritosmasculinos matis, ficou impressionado com sua semelhana objetiva com os ru g i-dos dos verdadeiros jaguares.

    8 A aproximao pode parecer ousada. Se considerarmos apenas o aspectovisual, existe, claro, uma diferena entre dissimular uma coisa para mostrar outra(se esconder atrs de uma mscara para exibir sua metamorfose) e o fato de secobrir de terra atrs de uma parede, enclausurado em uma casa. Entretanto, comosalientou com muita propriedade Pollock (1996), a mscara amaznica no con-c e rne apenas viso. Ela serve tambm para travestir a voz, ocultando a origemda fonte sonora. O xam shipibo, ouvido sem ser visto sob seu mosquiteiro opaco(Levy 1988), ou o xam marubo, que com sua voz de falsete faz os espritos fala-rem fechado na obscuridade total de uma casa comunal hermeticamente selada( o b s e rvao pessoal), utilizam-se, tanto um como o outro, dessa modalidade bemp a rticular do mascaramento, alis bastante conhecida dos africanistas (Jespers1995). So fatos dessa ordem que me parecem justificar a aproximao entreenclausuramento na casa e dissimulao atrs de uma mscara.

    9 O nomadismo constante dos Barbudos e dos Mayoruna, que so os ances-trais dos Matis, dos Matses e dos Korubo contemporneos (entre outros), umleitmotiv das crnicas jesutas e franciscanas do sculo XVI ao XIX. (Sobre a etno-histria mayoruna, pode-se consultar Erikson 1994:31-47.) Assinalemos, alis, quea hiptese de um declnio da participao das mulheres nas atividades masculi-nas, medida que uma sociedade perde mobilidade, fortalecida pelo exemplodos Cashinahua do Peru. Barbara Keifenheim (comunicao pessoal) assinala,com efeito, que foi precisamente desde que foram sedentarizadas sob a influnciamissionria nos anos 50 que as mulheres desse grupo deixaram de tomar a aya-huasca, estando tal prtica intimamente ligada, no plano simblico, aos desloca-mentos na floresta.

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 6 1

    Referncias bibliogrficas

    A R H E M, Kaj. 1996. The Cosmic FoodWeb. Human-Nature Relatednessin the Northwest Amazon. In: P.Descola e G. Plsson (eds.), N a t u reand Society, Anthropological Per-s p e c t i v e s. London: Routledge. pp.1 8 5 - 2 0 4 .

    B A E R, Gebhardt. s.d. Masques, Esprits,Femmes et Yu rupari. Rflexions surun Thme Sud-Amricain (Pro uOriental, Brsil Central, Nord - O u e s tAmazonien). (Texto apresentado noseminrio de antropologia ameri-canista, Maison des Sciences deLHomme, maro de 1998.)

    B A R N E S, John A. 1962. African Mod-els in the New Guinea Highlands.Man, 2:5-9.

    B E A U D E T, Jean-Michel. 1997. S o u ff l e sdAmazonie, les Orc h e s t re Tu l e d e sWa y p i. Nanterre: Societ dEth-n o l o g i e .

    C H A G N O N, Napoleon. 1980. HighlandNew Guinea Models in the SouthAmerican Lowlands. In: R. Hames(ed.), Studies in Hunting and Fish-ing in the Neotro p i c s. (Working Pa-pers on South American Indians, 2.)Bennington, Vt.: Bennington Col-lege. pp. 111-130.

    CHAUMEIL, Jean-Pierre. 1997. Les Os,les Fltes, les Morts. Mmoire etTraitement Funraire en Amazo-nie. J o u rnal de la Socit des Am-ricanistes, tomo 83:83-110.

    CHEBEL, Malek. 1995[1988]. LEsprit deSrail. Mythes et Pratiques Sexuelsau Maghreb. Paris: Payot.

    C L A S T R E S, Pierre. 1966. L A rc et lePanier. LHomme, VI(2):13-31.

    D E S C O L A, Philippe. 1986. La NatureDomestique, Symbolisme et Praxisdans lcologie des Achuar. Paris:

    ditions de la Maison des Sciencesde lHomme.

    _ _ _ . 1992. Societies of Nature and theN a t u re of Society. In: A. Kuper(ed.), Conceptualizing Society. Lon-don/New York: Routledge. pp. 107-126.

    _ _ _ e L O RY, Jean-Luc. 1982. Les Guer-riers de lInvisible. Sociologie C o m-parative de lAgression Chama-nique en Papouaisie Nouvelle-Guine (Baruya) et en Haute-Ama-zonie (Achuar). L E t h n o g r a p h i e,87-88(2-3):85-111.

    E R I K S O N, Philippe. 1992. Poils et Bar-bes en Amazonie Indigne: Lgen-des et Ralits. Annales de la Fon-dation Fyssen, 7:83-91.

    _ _ _ . 1994. Los Matses/Matis. In: F.Santos e F. Barclay (eds.), Gua Etno-grfica de la Alta Amazona ( v o l . I I ) .Quito/Lima: F L A C S O / I F E A. pp. 1-127.

    _ _ _ . 1996. La Griffe des Aeux. Mar-quage du Corps et Dmarq u a g e sEthniques chez les Matis dAma-z o n i e. Paris/Louvain: Peeters. (Tr a -duo espanhola: El Sello de los An-tepasados. Marcado del Cuerpo yD e m a rcacin tnica entre los Matisde la Amazona. Lima/Quito: Insti-tut Franais dtudes Andines/AbyaYa l a . )

    _ _ _ . no prelo. Myth and Material Cul-t u re. Matis Blowguns, Palm Tre e sand Ancestor Spirits. In: N. White-head e L. Rival (eds.), Festschrift forPeter Rivire. Oxford: Oxford Univer-sity Press.

    FA U S T O, Carlos. 1997. A Dialtica daP redao e Familiarizao entre osParakan da Amaznia Oriental: Poruma Teoria da Guerra Amerndia.Tese de Doutorado, P P G A S / M N / U F R J .

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S6 2

    F R A N C H E T T O, Bruna. 1996. Wo m e namong the Kuikuru. Estudos Femi-nistas, 4(1):225-239.

    G O D E L I E R, Maurice. 1982. La Pro d u c-tion des Grands Hommes. Pouvoiret Domination chez les Baruya deNouvelle-Guine. Paris: Fayard.

    G O U R L AY, Ken. 1975. Sound Pro d u c-ing Instruments in Traditional Soci-ety: A Study of Esoteric Instru-ments and their Role in Male-Fe-male Relations. New Guinea Re-s e a rch Bulletin, 66. Port More s b y /C a n b e rra: Australian National Uni-versity Press.

    G R E G O R, Thomas. 1990. Male Domi-nance and Sexual Coercion. In: J.W. Stigler et alii ( o rgs.), C u l t u r a lP s y c h o l o g y. Essays on ComparativeHuman Development. Cambridge:Cambridge University Press. pp.4 7 7 - 4 9 5 .

    H E R D T, Gilbert (ed.). 1982. Rituals ofManhood. Male Initiation in PapuaN e w - G u i n e a. Berkeley: Universityof California Press.

    H I L L, Jonathan. s.d. The Varieties ofF e rtility Cultism in Amazonia: ACloser Look at Gender Symbolism inN o rt h w e s t e rn Amazonia. (We n n e r-G ren Foundation for Anthro p o l o g i-cal Research, Symposium, no 1 2 1 ,Amazonia and Melanesia: Genderand Anthropological Comparaison.Spain, Hotel Mijas, 1996).

    H U G H - J O N E S, Stephen. 1979. The P a l m sand the Pleiads. Initiation and Cos-mology in the Nort h - West Amazo-n i a. Cambridge: Cambridge Univer-sity Pre s s .

    _ _ _ . s.d. Echange et Construction So-ciale des Sexes: Thmes M l a n -siens dans un Contexte Amazoni-en. (Srie de trs conferncias apre-sentadas na cole des Hautes tu-des en Sciences Sociales, novembrode 1997.)

    J A C K S O N, Jean. 1992. The Meaningand Message of Symbolic SexualViolence in Tukanoan Ritual. A n-thropological Quarterly, 65(1):1-18.

    J E S P E R S, Philippe. 1995. Le Masque etla Parole; Analyse dun Masque A u d i t i f de la Socit Initiatiquedu Komo Minyanka, Mali. In: L.de Heusch (ed.), O b j e t s - S i g n e sd A f r i q u e. Te rv u re n : S n o e c k - D u c a-ju & Zoon.

    J O U R N E T, Nicolas. 1997. Les Boro ro sSont-ils des Araras?. Sciences Hu-maines, 71:46.

    L V I - S T R A U S S, Claude. 1964. M y t h o l ogi-ques: Le Cru et le Cuit. Paris: Plon.

    LEVY, Daniel. 1988. Histrionics in Cul-t u re. In: R. Randolph et alii ( e d s . ) ,Dialectics and Gender, Anthro p o-logical Appro a c h e s. Boulder/Lon-don, Westview Press. pp. 91-135.

    L I M A, Tnia Stolze. 1996. Os Dois eseu Mltiplo: Reflexes sobre oPerspectivismo em uma Cosmolo-gia Tupi. Mana, 2(2):21-47.

    M C C A L L U M, Cecilia. 1994. Ritual andthe Origin of Sexuality in the AltoXingu. In: P. Harvey e P. Gow(eds.), Sex and Violence, Issues inR e p resentation and Experience.London/New York: Routledge. pp.90-114.

    M E N G E T, Patrick. 1984. Delights andDanger: Notes on Sexuality in theU p p e r-Xingu. In: K. Kensinger(ed.), Sexual Ideologies in LowlandSouth America. (Working Papers onSouth American Indians, 5.) Ben-nington, Vt.: Bennington College.pp. 4-11.

    M T R A U X, Alfred. 1927. Le Bton deRythme, Contribution ltude de laDistribution Gographique des l-ments de Culture dOrigine Mla-nsienne en Amrique du Sud.J o u rnal de la Socit des Amrican-i s t e s, XIX.

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S 6 3

    M O N O D - B E C Q U E L I N, Auro re. 1987.Les Femmes Sont un Bien Exc e l-lent. Vision des Hommes, tre desFemmes dans le Haut-Xingu.A n t h ropologie et Socits, 11(1):1 2 1 - 1 3 6 .

    M U R P H Y, Robert. 1959. Social Stru c-t u re and Sex Antagonism. S o u t h-w e s t e rn Journal of Anthro p o l o g y,15(2):89-98.

    M U R P H Y, Yolanda e M U R P H Y, Robert .1974. Women of the Fore s t. NewYork: Columbia University Press.

    O V E R I N G - K A P L A N, Joanna (ed.).1977. Social Time and SocialSpace in Lowland South Ameri-can Societies. Actes du XLIICongrs International des Amri-c a n i s t e s, II:7-394, Paris: Socitdes Amricanistes.

    P O L L O C K, Donald. 1996. Masks andthe Semiotics of Identity. J o u rn a lof the Royal Anthropological Insti-tute (N.S.), 1:581-597.

    Q U I N N, Naomi. 1977. Anthro p o l o g i-cal Studies on Wo m e n s Status.Annual Review of Anthro p o l o g y,6 : 1 8 1 - 2 2 5 .

    R I L E Y, C. et alii. 1971. Man across theSea. Problems of Pre - C o l u m b i a nC o n t a c t s. Austin: University of Te -xas Pre s s .

    R I V E T, Paul. 1928. Relations Commer-ciales Prcolombiennes entre lOc-anie et lAmrique. In: W. Koppers( o rg.), Festschrift en Hommage auP. W. Schmidt. Vienne: Mechitha-r i s t e n - c o n g re g a t i o n s - b u c d r. pp.5 8 3 - 6 0 9 .

    R I V I R E, Peter. 1994. W Y S N W Y G i nAmazonia. J o u rnal of the Anthro-pological Society of Oxford, 25(3):255-262.

    R O M A N O F F, Steve. 1984. Women asHunters among the Matses of theP e ruvian Amazon. Human Ecolo-gy, XI(3):339-342.

    S C A Z Z O C C H I O, Franoise. 1979. Cu-rare Kills, Cures and Binds: Changeand Persistence of Indian Trade inResponse to the Contact Situationin Nort h w e s t e rn Montaa. C a m-bridge Anthropology, 4(3):30-57.

    S I S K I N D, Janet. 1973. Tropical Fore s tHunters and the Economy of Sex.In: D. Gross (ed.), Peoples and Cul-t u res of South America. New Yo r k :Doubleday. pp. 226-240.

    TAY L O R, Anne-Christine. 1983. Jiva-roan Magical Songs: Achuar Anentof Connubial Love. A m e r i n d i a, 8:8 7 - 1 2 7 .

    VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996.Os Pronomes Cosmolgicos e oPerspectivismo Amerndio. M a n a,2(2):115-144. (Traduo em ingls:Cosmological Deixis and Amerin-dian Perspectivism, J o u rnal of theRoyal Anthropological Institute,4:469-488, 1997.)

    WENNER-GREN FOUNDATION FOR AN-

    THROPOLOGICAL RESEARCH. 1 9 9 6 .Symposium no 121, Amazonia andMelanesia: Gender and Anthro p o-logical Comparaison. Spain, HotelMijas.

    W I L B E RT, Johannes. 1985. The Houseof the Swallow-Tailed Kite: Wa r a oMyth and the Art of Thinking in Im-ages. In: G. Orton (ed.), A n i m a lMyths and Metaphors in SouthA m e r i c a. Salt Lake City: Universityof Utah Press. pp. 145-182.

  • I, UUU, SHHH: GRITOS, SEXOS E METAMORFOSES ENTRE OS MAT I S6 4

    R e s u m o

    Por meio de dados etnogrficos pro v e-nientes dos Matis, grupo de lngua pa-no, este artigo tematiza a ritualizaodo antagonismo sexual na Amaznia.Em part i c u l a r, analisa-se o pequeno re-p e rtrio de sons ou gritos que homens em u l h e res utilizam em certos contextosrituais, argumentando que eles form a mum sistema que deve ser interpretado luz da complementaridade sexual e dat r a n s f o rmabilidade generalizada quecaracterizam as cosmologias amern-dias. Pretende-se ademais contribuirpara o debate, re c e n t emente re a v i v a-do, entre americanistas e o c e a n i s t a s ,que tm no complexo das flautas, ms-caras e cultos a elas associados um focoprivilegiado de interesse.

    A b s t r a c t

    This article is concerned with the ritual-ization of sexual antagonism in Amazo-nia through an analysis of ethnographicdata from the Matis, a Panoan-speak-ing group. More specifically, it analyzesthe small re p e rt o i re of sounds andshouts which men and women use inc e rtain ritual contexts, arguing that t h e yf o rm a system which should be inter-p reted in light of the sexual comple-mentarity and generalized transform a-bility which is characteristic of A m e -rindian cosmologies. Finally, it hopes tocontribute to the recently revisited de-bates among Americanists and Ocea-nists, who find in flute complexes, masksand the cults with which they are a s s o c i-ated, a common theme.