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1 Obra: HOBBES, Thomas [1651]. Leviatã, ou a matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil . São Paulo: Martin Claret, 2009. (Coleção a obra-prima de cada autor - Série Ouro, nº 1) “Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado. (...) Para descrever a natureza deste homem artificial, examinarei: Primeiro, sua matéria, e seu artífice; ambos os quais são o homem. Segundo, como, e através de que convenções é feito; quais são os direitos e o justo poder ou autoridade de um soberano; e o que o preserva e o desagrega. Terceiro, o que é um Estado Cristão. Quarto, o que é o Reino das Trevas” (INTRODUÇÃO). Cada tópico desse plano geral corresponde a uma parte do livro. Essa resenha tratará apenas das duas primeiras partes: I – Do Homem e II – Do estado. Optou-se pela abordagem mais óbvia do Leviatã: começar pelo estado de natureza (estado de guerra de todos contra todos), passando então ao contrato que institui a um só tempo a paz e um Estado forte. O ESTADO DE NATUREZA “O Homem é o lobo do Homem” e “Guerra de todos contra todos” são as frases mais conhecidas de Hobbes, extraídas da obra Sobre o Cidadão. Ambas são fundamentais como síntese do que Hobbes pensa a respeito do estado natural em que vivem os homens, antes do seu ingresso no estado social. Hobbes parte do princípio de que todos os homens são iguais, e essa igualdade natural baseia-se no desejo universal de autopreservação. Com todos os homens são iguais em força e aptidões intelectuais, o recurso à violência generaliza-se, na guerra de todos contra todos. O estado natural exige uma saída com base no próprio instinto de preservação da vida, que é uma abertura para a violência, que o reitera, e ao mesmo tempo para a paz tática que promete a conservação da vida. “Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. (...) A competição pela riqueza, a honra, o mando e outros poderes leva à luta, à inimizade e à guerra, porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro.” (Cap. XI) “(...) os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros, e sim, pelo contrário, um enorme desprazer. (...) De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação.” (Cap. XIII) A concepção que Hobbes tem do estado de natureza distancia-o da maior parte dos filósofos políticos, que acreditam haver no homem uma disposição natural para viver em sociedade. Diferentemente de Aristóteles, para quem o homem é um animal social e está naturalmente incluído numa ordem ideal, para Hobbes os indivíduos entram em sociedade só quando a preservação da vida está ameaçada, ou seja, é um acordo artificial (Monteiro, 1979). Por isso Hobbes é considerado um dos primeiros pensadores a contrariar a tese de que a sociedade efetua a realização da natureza humana: em vez disso, entendendo que a vida em sociedade vai contra o cerne de nossa natureza (Ribeiro, 2006). “O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam ‘jus naturale’, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. (...) Consequentemente é um preceito ou regra geral da razão, que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra.” (Cap. XIV) O ESTADO CIVIL O instinto de conservação leva à busca da paz, levando os homens a estabelecer contratos entre si, que para Hobbes é “a transferência mútua de direitos”. Ou seja, para que a vida seja viável impõe-se uma sociedade civil, introduzindo o homem numa ordem moral. Nessa ordem moral é necessário que cada um “não faça aos outros o que não gostaria que fizesse a si” (a lei dos homens). Esse preceito não é derivado de um instinto natural, nem de um consentimento universal, mas da razão que procura os meios para a preservação do homem. “O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos que os leva a viver em Estados, é o cuidado com sua própria conservação e a garantia de uma vida mais feliz.” (Cap. XVII) Sendo o pacto social artificial e precário, não é suficiente para assegurar a paz. Só pode funcionar se cada homem submeter a sua própria vontade à vontade de um único homem ou a uma assembleia determinada, para exercer o poder e ser totalmente seguido pelos componentes do corpo social no que se refere aos problemas da paz em geral. O pacto social é estabelecido unicamente entre os membros do grupo que, entre si, concordam em renunciar a seu direito a tudo para entregá-lo a um soberano encarregado de promover a paz.

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Obra: HOBBES, Thomas [1651]. Leviatã, ou a matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2009. (Coleção a obra-prima de cada autor - Série Ouro, nº 1)

“Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado. (...) Para descrever a natureza deste homem artificial, examinarei: Primeiro, sua matéria, e seu artífice; ambos os quais são o homem. Segundo, como, e através de que convenções é feito; quais são os direitos e o justo poder ou autoridade de um soberano; e o que o preserva e o desagrega. Terceiro, o que é um Estado Cristão. Quarto, o que é o Reino das Trevas” (INTRODUÇÃO). Cada tópico desse plano geral corresponde a uma parte do livro. Essa resenha tratará apenas das duas primeiras partes: I – Do Homem e II – Do estado. Optou-se pela abordagem mais óbvia do Leviatã: começar pelo estado de natureza (estado de guerra de todos contra todos), passando então ao contrato que institui a um só tempo a paz e um Estado forte. O ESTADO DE NATUREZA “O Homem é o lobo do Homem” e “Guerra de todos contra todos” são as frases mais conhecidas de Hobbes, extraídas da

obra Sobre o Cidadão. Ambas são fundamentais como síntese do que Hobbes pensa a respeito do estado natural em que

vivem os homens, antes do seu ingresso no estado social. Hobbes parte do princípio de que todos os homens são iguais, e

essa igualdade natural baseia-se no desejo universal de autopreservação. Com todos os homens são iguais em força e

aptidões intelectuais, o recurso à violência generaliza-se, na guerra de todos contra todos. O estado natural exige uma

saída com base no próprio instinto de preservação da vida, que é uma abertura para a violência, que o reitera, e ao mesmo

tempo para a paz tática que promete a conservação da vida.

“Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. (...) A competição pela riqueza, a honra, o mando e outros poderes leva à luta, à inimizade e à guerra, porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro.” (Cap. XI) “(...) os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros, e sim, pelo contrário, um enorme desprazer. (...) De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação.” (Cap. XIII) A concepção que Hobbes tem do estado de natureza distancia-o da maior parte dos filósofos políticos, que acreditam haver

no homem uma disposição natural para viver em sociedade. Diferentemente de Aristóteles, para quem o homem é um

animal social e está naturalmente incluído numa ordem ideal, para Hobbes os indivíduos entram em sociedade só quando

a preservação da vida está ameaçada, ou seja, é um acordo artificial (Monteiro, 1979). Por isso Hobbes é considerado um

dos primeiros pensadores a contrariar a tese de que a sociedade efetua a realização da natureza humana: em vez disso,

entendendo que a vida em sociedade vai contra o cerne de nossa natureza (Ribeiro, 2006).

“O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam ‘jus naturale’, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. (...) Consequentemente é um preceito ou regra geral da razão, que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra.” (Cap. XIV) O ESTADO CIVIL O instinto de conservação leva à busca da paz, levando os homens a estabelecer contratos entre si, que para Hobbes é “a transferência mútua de direitos”. Ou seja, para que a vida seja viável impõe-se uma sociedade civil, introduzindo o homem numa ordem moral. Nessa ordem moral é necessário que cada um “não faça aos outros o que não gostaria que fizesse a si” (a lei dos homens). Esse preceito não é derivado de um instinto natural, nem de um consentimento universal, mas da razão que procura os meios para a preservação do homem. “O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos que os leva a viver em Estados, é o cuidado com sua própria conservação e a garantia de uma vida mais feliz.” (Cap. XVII) Sendo o pacto social artificial e precário, não é suficiente para assegurar a paz. Só pode funcionar se cada homem submeter a sua própria vontade à vontade de um único homem ou a uma assembleia determinada, para exercer o poder e ser totalmente seguido pelos componentes do corpo social no que se refere aos problemas da paz em geral. O pacto social é estabelecido unicamente entre os membros do grupo que, entre si, concordam em renunciar a seu direito a tudo para entregá-lo a um soberano encarregado de promover a paz.

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“(...) é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado (em latim, Civitas). É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. (...) A essência do Estado consiste nisso e pode assim ser definida: uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurara paz e a defesa comum.” (Cap. XVII) ABSOLUTISMO X DEMOCRACIA Para corresponder à finalidade de preservar a paz entre os homens, o poder do Estado, para Hobbes, deve ser exercido despoticamente. O soberano não precisa dar satisfações de sua gestão, sendo responsável apenas perante Deus, “sob pena de morte eterna”. O soberano é absoluto e a própria fonte legisladora. A obediência a ele deve ser total, a não ser que ele se torne impotente para assegurar a paz durável e prosperidade (“Os pactos sem espada não passam de palavras”). “Quando o representante é um só homem, o governo chama-se uma monarquia. Quando é uma assembléia de todos os que se uniram, é uma democracia, ou governo popular. Quando é uma assembléia apenas de uma parte, chama-se-lhe uma aristocracia. Não pode haver outras espécies de governo, porque o poder soberano inteiro (que já mostrei ser indivisível) tem que pertencer a um ou mais homens, ou a todos. (...) A diferença entre essas três espécies de governo não reside numa diferença de poder, mas numa diferença de conveniência, isto é, de capacidade para garantir a paz e a segurança do povo, fim para o qual foram instituídas.” (Cap. XIX) Hobbes reconhece a legitimidade de outros tipos de governo além da monarquia, o que não admite é que o governo seja misto ou temperado, como a monarquia constitucional. Pois a presença de vários detentores de poder derivam competições comprometedoras da paz. Embora admita a possibilidade da democracia, Hobbes tem preferência por um rei absoluto, mas ao mesmo tempo admite o pacto social. Nesse sentido, Hobbes é absolutista sem ser teólogo, o que o distingue de outros absolutistas de sua época, pois não deriva o absolutismo de um direito divino, mas do pacto social (Monteiro, 1979). PROPRIEDADE Hobbes acredita que a propriedade só existe no estado civil, e que é uma criação do Estado-Leviatã, logo, podemos dizer que no estado de natureza a questão da propriedade é inexistente. Por ser fruto do Estado, a propriedade pode ser suprimida por este. “E dado que a condição do homem (...) é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros.” (CAP. XIV) As teorias do homem e do Estado de Hobbes, inserem-se dentro de um processo histórico de lutas sociais e econômicas bem definido: os conflitos entre o poder real e o poder do parlamento, na Inglaterra do século XVII. Na realidade política em que vivia, o nosso autor optou pelo fortalecimento da monarquia. Mas a história preferiu a solução liberal de seu conterrâneo John Locke, que concebia a propriedade como um direito natural. Entretanto, sua obra teve impacto direto no pensamento liberal europeu, e ajudou a construir alguns postulados que persistem no mundo moderno: o direito dos indivíduos; a igualdade natural de todos os homens; o caráter natural da ordem politica; a ideia de que todo o poder legitimo deriva do consentimento do povo; a ideia liberal de que o homem pode fazer tudo aquilo que não esteja proibido por lei. BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR Chaui, Marilena. Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2003.

Limongi, Maria Isabel. Hobbes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002

Monteiro, João Paulo (Consultoria). Hobbes (1588-1679) Vida e Obra. In: HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, Materia, forma e poder de um estado eclesiastico e civil. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (p. V-XXIV)

Ribeiro, Renato Janine. Thomas Hobbes, ou: a paz contra o clero. In: Boron, Atilio A. (Org.). Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. CLACSO; DCP-FFLCH-USP. 2006. Disponivel em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolmpt/filopolmpt.pdf