Histórias de Familia 7 - Aventuras No Campo

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AVENTURAS NO CAMPOEnid BlytonColeco A Aventura - 15Publicaes D. QuixoteDigitalizao e ArranjoAgostinho CostaEste livro foi digitalizado paraser lido por Deficientes VisuaisO "Abrigo Verde" a grande e velha casa da av foi-se transformando. Num jardim zoolgico, num orfanato para animais desamparados ou doentes. Primeiro um co, depois um gato, mais um pnei, e Francisco, Clara e Alexandre, l estavam para os acolher. Mas nem tudo eram facilidades: o pai, ferido na guerra, amarrado a uma cadeira de rodas; a me, sempre animosa, mas cheia de trabalho; como superar as dificuldades que sempre surgiam. E a av que no queria vender a velha casa.Porm, os acontecimentos sucedem-se:Meio a rir, meio a chorar, a pequena famlia entrou em casa. Como era acolhedor esse lar! Como estava transformado o Sr. Marshall! Alexandre nunca o vira naquele aspecto, e fitava-o como a uma apario.- Quem diria! - murmurou a me das crianas. - Oh, pensar em todos os acontecimentos que se desenrolaram este ano!E a nova casa era agora a "Campainha Branca".FICHA:Ttulo: Aventuras no Campo.Autor: Enid Blyton.Coleco: A Aventura, n.o 15. 1954, Darrell Waters, Ltd.Ttulo original: The Children at Green Meadows(publicado inicialmente por Lutterworth Press, 1954).Primeira edio: Agosto de 1986.Todos os direitos reservados por:Publicaes Dom Quixote, Lda.,Rua Luciano Cordeiro, 119, 1098 Lisboa Codex,Portugal.Composio, impresso e acabamento:Tipografia Guerra, Viseu,em Agosto de 1986.Distribuio: Diglivro,Rua do Atade, Ptio do Pimenta, 28,Lisboa,e Movilivro, Rua do Bonfim, 98, r/c.Porto.AVENTURAS NO CAMPONotas: Neste livro a paginao inferior.ndiceCaptulo I - O ABRIGO VERDE .................... 5Captulo II - DUAS BRIGAS IMPREVISTAS .... .... 23Captulo III - AINDA O MESMO RAPAZ ............ 40Captulo IV - UM SEGREDO EMOCIONANTE .......... 58Captulo V - UM POUCO DE SORTE ................ 77Captulo VI - RELMPAGO, O PNEI .............. 95Captulo VII - AS FRIAS DA PSCOA ........... 122Captulo VIII - O SEGREDO DA AV ............. 141Captulo IX - UM NOVO HSPEDE... E UM SUSTO .. 161Captulo X - PARABNS, FRANCISCO ............. 180Captulo XI - O MAIS BELO PRESENTE DE NATAL .. 199Captulo I - O ABRIGO VERDE.- Me! Minha me! Onde est? - bradou Francisco. - Venha depressa, por favor. Descobri, no jardim, a primeira campainha branca.A enxugar as mos numa toalha, a me surgiu porta das traseiras:- Oh, Francisco! Era preciso chamares-me no momento em que eu estava to atarefada a lavar a loua?- Pois claro, minha me - disse o rapaz. - Alm disso estaria sempre igualmente ocupada em qualquer ocasio em que a chamasse. Quem me dera que no tivesse tanto trabalho! espantoso no ter sequer tempo para contemplar uma campainha branca! Olhe, ali est ela!A me olhou para o cho e viu a pequenina flor com sua gentil cabecinha inclinada, meio oculta em emaranhado tufo de ervas, num recanto do jardim. Baixou-se e acariciou-a suavemente.- Eu tinha a certeza!-exclamou Francisco.-Eu sabia que a me faria isso. Traz sorte tocar a primeira campainha branca que se v no ano novo, no verdade?5- o que diz a voz do povo, Francisco - disse a me a sorrir. - E Deus sabe quanto necessitaramos de um pouco de sorte!Com o filho enlaado, olhou em redor, para o extenso jardim. - No estou ocupada em demasia para privar-me de dar um passeio, a ver se h mais novidades - afirmou. - o dia de So Valentim. No ouves o cantar das aves? At o estorninho se treina, l no cimo da chamin; nunca lhe disseram que no sabe cantar!Francisco estava radiante por ter consigo a me por alguns minutos e lembrou-se do tempo em que ela estava sempre disposta a passear pelo jardim, a distrair-se, a semear, a podar... Quando ela ria amide e parecia jovem e feliz. Agora a situao era muito diferente e s excepcionalmente conseguia a companhia da me durante alguns minutos.- O aafro est a despontar - observou ela.- E repara: acol espreita uma violeta, alm naquele recanto, na base do muro. Vamos ver se h j primaveras no declive do comeo do jardim.No havia. Era demasiado cedo. A me de Francisco sentou-se no valado e, sombra dos prateados vidoeiros, ficou silenciosa. O filho olhou-a e tocou-lhe suavemente.- Em que est a pensar?- Estou a recordar-me do que era, h anos, este mesmo jardim - declarou a me. - Como era belo, Francisco! Tu tinhas uns seis anos... deves lembrar-te tambm.6- Sim. A relva aparada, os canteiros mondados e com muitas flores - murmurou o rapaz. - A casa era tambm diferente, minha me. E metade das salas no estavam fechadas, como agora. A me no andava sempre to afadigada e...Deteve-se ao ver lgrimas assomarem aos olhos da me.- Porque estamos agora to pobres? - perguntou.- Porque no contratamos um jardineiro? Qual o motivo por que no temos uma empregada? por causa do pai?- Sim em parte - respondeu a me. - O teu pai foi gravemente ferido, na guerra, como sabes, e, como j no pode trabalhar, ns temos muito pouco dinheiro para nos podermos manter. A tua av cedeu-nos esta moradia quando nos casmos. Eu fiquei contente porque vivi aqui em rapariga. Conheo todos os recantos desta casa.- Bem, mas porque no a devolvemos avozinha e no vamos viver para outra mais pequena? - interrogou Francisco.Ento olhou em redor, para o velho jardim, to seu conhecido, e de sbito mudou de ideias:- No, No; retiro o que disse. Eu no era capaz de abandonar o Abrigo Verde! o nosso lar.- Sinto o mesmo - confirmou a me. - Mas as circunstncias agravam-se tanto que suponho que teremos de partir em breve, Francisco, a menos que consegussemos vender a casa! Est porm em to mau estado que ningum a pretender.7E demasiado grande. Alm disso a av no quer ouvir falar em vend-la. Na verdade, no encontro soluo.Ladeando o velho muro, percorreram todo o jardim. No muito distante erguia-se enorme construo- um grande bloco, com muitos andares. Perto, um outro estava quase concludo.- No h muitos anos, tudo isto era campo- continuou a me de Francisco. - Eis porque a esta casa se chamou Abrigo Verde. Quando foi edificada tudo quanto dela se avistava eram campos verdes, que se estendiam at quelas distantes colinas. Actualmente os campos transformaram-se em habitaes - repara naqueles blocos, por andares!- Bem; isso significa que mais crianas viro viver para a vila - deduziu Francisco. - Ser para ns uma distraco. Suponho que, mais tarde, ela ser uma cidade. Haver mais lojas e um novo edifcio dos correios.A me apressou o passo, de sbito recordada dos seus afazeres. Afagou o filho e tranquilizou-o:- No te preocupes. Estes problemas so para serem resolvidos pelos adultos. Nem sei porque te disse tanto. Sinto-me confusa. Desejo continuar a viver aqui no Abrigo Verde, que tanto amo, mas no nesta azfama e inquietude, com tanto trabalho que mal tenho tempo para te dar ateno e aos teus irmos.- Alm disso a avzinha no consente na venda da casa. E ns teremos de conformar-nos! - concluiu Francisco. - Eu gostaria de cuidar do jardim! Mas ele to grande... Sou um escoteiro,8bem sabe; pretendo ajudar em tudo quanto me seja possvel. E a Clara e o Alexandre tambm querem!- Meus queridos! - murmurou a me. - Mas no sobrecarreguei com pesadas cargas frgeis ombros. Vai perguntar ao pai se precisa de alguma coisa. Vs? J te pedi ajuda!A me afastou-se lentamente. Francisco observava-a. Parecia triste e agora era raro ver o seu alegre sorriso. Se eu fosse mais velho, pensou... Leva-se tanto tempo a crescer! No sei ganhar dinheiro... Tudo quanto sei engraxar sapatos, fazer recados e coisas semelhantes. Qualquer escoteiro capaz do mesmo. Eu realmente quereria poder ajudar.Mas sabia que no podia. Os adultos teriam de resolver sozinhos os seus prprios problemas.Foi em busca do pai. Fcil tarefa, porque ele permanecia sempre na sua cadeira de rodas e nunca se distanciava muito.- Deseja alguma coisa, meu pai? - perguntou Francisco. - Como vo as suas costas?- Na mesma - respondeu o pai. - Podes ir ajudar a tua me, Francisco? horrvel ter de estar aqui sentado a ouvi-la labutar todo o dia! Sinto-me um intil! Vai ajud-la.- Ela mandou-me perguntar se o pai desejava alguma coisa - informou o rapaz, a sorrir. - Quando volta c o mdico? Parece-lhe que o novo tratamento dar resultado?- Nenhum. Estou convencido de que nada mais h a fazer - respondeu o pai. - Oh, se fosses mais velho!9A tua me tem demasiada carga sobre os ombros.- H pouco pensei precisamente o mesmo - afirmou o rapaz. - A me esteve a conversar comigo e disse-me algumas coisas. Eu no quereria deixar o Abrigo Verde, mas penso que devemos faz-lo, por causa da me. Tanto trabalho mata-a! demasiado! De facto, verdade que a avozinha no quer vender a casa?- No; no quer - retorquiu o pai em voz breve. - E agora, que veio viver connosco, parece que, mais que nunca, ama esta velha e quase desmoronada casa. Mas no falemos mais deste assunto, que me desagradvel.Nesse momento a me de Francisco chamou-o e o rapaz acorreu. Que dilema! No descortinava uma soluo! A av no era fcil de convencer. Pessoa muito susceptvel, autoritria e severa, os seus trs netos receavam-na, e, no entanto, quantas vezes ela sabia ser inesperadamente afvel!No trio, l fora, soou o rudo de ps em corrida. Abriu-se a porta das traseiras e entraram Clara e Alexandre. A rapariga, de nove anos, estava alta para a idade. Tinha olhos sorridentes e cabelo encaracolado. Alexandre, de sete, pequeno e sisudo, raramente ria, mas quando o fazia era sempre surpreendente, porque o seu riso, sonoro e repentino, fazia toda a gente rir tambm.- J estamos de volta, minha me! - gritou Clara.-Estivemos numa bonita festa, com as Brownies.- 10 -- E eu estive numa reunio - afirmou Alexandre. - Eu era o mais pequeno, mas no o mais fraco. No lhes digo quem se portou pior.- Ests morto por diz-lo - volveu a irm. - No sejas linguareiro, Alexandre, e alm disso ns j sabemos. Me, h alguma coisa para comer? No consigo aguentar-me at hora do almo H sculos que tomei o pequeno almoo!Uma senhora idosa entrou na cozinha. Tilintava, ao andar, devido s vrias correntes que usava: a dourada, que lhe rodeava a cintura, onde se prendia um relgio de ouro, junto do cinto; um cordo de prata, com medalho, pendente do pescoo, e em cada pulso pulseiras ornadas de pequenos berloques!- Ouo-a sempre antes de ver a avozinha - disse Clara. - Faz lembrar o cavalo do carvoeiro.- 11 -- A Clara acha muito bonito o som do chocalho do cavalo do carvoeiro - explicou Alexandre. - Eu tambm acho. E gostaria tambm de chocalhar quando ando. Penso que...- Basta - cortou a av e virou-se para a filha, a me das crianas:- No me admiro que no estejas ainda despachada! Vi-te a passear no jardim com o Francisco. Porque no acabas primeiramente o que tens para fazer? Ento, tarde, poderias ter tempo para descansar.Em seguida agarrou num pano e numa lata de cera e ps-se a encerar, com vigor, a moblia. Era mesmo prprio da av: primeiro ralhava e, logo depois, procurava auxiliar no que podia.As trs crianas apressaram-se a sair. Estavam certas de que se ali ficassem a av encontraria algo de censurvel para lhes dizer!Francisco, no patamar superior, abriu a porta que dava acesso a uma sala, quase vazia, mas com um recesso na janela.- Venham! - convidou o rapaz. - Vamos sentar-nos aqui, a comer biscoitos, a fingir que estamos de novo no nosso grande quarto de brincar.Aquela fora outrora uma sala de jogos, mas, como muitas outras, a moblia havia sido retirada e vendida e o quarto ficara vazio e desabitado. Todavia, as crianas iam frequentemente para l e sentavam-se no recesso da janela.- 12 -- A gente sente-se aqui to bem, nesta sala! - observou Clara, mordiscando o biscoito. - um quarto alegre, apesar de agora no ter mveis. Por vezes penso que se lembra ainda de todas as velhas bonecas, ursinhos e comboios da avozinha e dos irmos.- E os da nossa me e os dos tios e tias...- E os nossos brinquedos tambm, quando esta era a nossa sala - recordou Francisco. - Tu j no te lembras, Alexandre. Eras ainda muito pequeno.- Olhem aquele enorme prdio - apontou Clara chegando janela. - Est acabado e tem j inquilinos, porque avisto duas crianas num dos andares. estranho vermos agora aqueles grandes prdios onde dantes s existiam campos. Oh, bem, agora no creio que isso tenha muito a ver connosco.Mas Clara enganava-se...As trs crianas do Abrigo Verde tinham muito em que se ocupar. Aps as aulas, na escola, executavam uma infinidade de tarefas. At Alexandre colaborava.A me nunca, por mais cansada que se sentisse, importunava os filhos. Mas a av, sim! Interrogava-os constantemente, para saber se haviam feito o que lhes incumbia, quando o faziam e porque no estava feito.Francisco e Alexandre eram pacientes, mas Clara irritava-se e, exaltada, interpelava com frequncia sua me:- Mezinha! A av disse que eu no penso na me s porque ontem me esqueci de dar corda aos relgios!- 13 -Mas eu sou muito sua amiga e a av no devia dizer aquilo!- Oh, minha querida, no tiveste menos ateno para com a avozinha, no verdade? - costumava a me dizer. - Sua linguagem talvez rude, mas tem excelente corao. Eu sei que s minha amiga e isso que interessa, no ?- Com certeza - respondia Clara, a sorrir, abraada me.Porm, no dia seguinte, contrariada por bruscas palavras da av, de novo se impacientava.- No acredito que a av goste de algum de ns - declarou um dia Alexandre, peremptoriamente. - Ralha com todos, incluindo os nossos pais. H unicamente algum a quem ela ama demasiado para lhe ralhar.- Quem ? - quis saber Clara, surpreendida.- Ser o Dr. Miles? A av gosta dele porque tem esperana em que cure o nosso pai.- No. Refiro-me ao Sr. Negro - explicou o rapaz, e todos irromperam em gargalhadas.O Sr. Negro era um gato da av, um enorme bichano, com grandes olhos dourados, cauda magnfica e plo espesso, suave como seda. Tinha a cor negra do carvo. Em pequenino chamavam-lhe Negrito, mas ao crescer ficara to imponente e solene que a av entendeu que no mais poderia design-lo por nome to vulgar.E assim, devido ao majestoso porte, decidiu cham-lo Monarca. Mas ele no respondia porqu, em absoluto,- 14 -ignorava tal nome. Ento algum da famlia gritou-lhe: Sr. Negro! e tudo se recomps. Talvez ao bichano ecoasse quase parecido a Negrito.Era o gato da av, que o amava extremosamente. E Negrito adorava-a. Dormia sempre num cesto, no quarto da av. Gato muito acarinhado, as trs crianas brincavam bastante com ele, porque todas eram amigas de animais. s vezes tinham saudades do Tambor, um belo grand danois que em tempos havia pertencido av. Ao longo do dia, durante anos, ouvia-se o som das grandes patas no cho. No dizer de Clara sabia-se sempre onde estava o Tambor. Um barulhento!- Era to bonito! - proferiu Clara, recordando.- Era do meu tamanho, mas tinha a mansido de um gatinho.- Os gatinhos nem sempre so mansos - objectou Alexandre, que gostava de ser exacto. - O Sr. Negro arranhou-me quando era pequeno.- Lembras-te de uma vez o Tambor acenar com o rabo para cumprimentar uma visita, o que fez cair um prato com bolos que estava numa mesinha? - perguntou Francisco.Alexandre teve uma das suas sbitas exploses de riso.- Quem me dera ter visto isso! - exclamou. - Para onde foi o Tambor? No me recordo. E porque no nos deixam falar nele diante da avozinha?- Bem... custava muito dinheiro sustentar um co daqueles - explicou Francisco. - Muitas centenas de escudos por ano.- 16 -Portanto, um dia a av decidiu que no podamos mant-lo connosco por mais tempo.- Oh!-fez Alexandre, gravemente. - Que aconteceu ao Tambor?- Vendeu-se - informou Francisco. - Era um co muito valioso e rendeu bastante dinheiro, alm do que se economizava com a sua alimentao. Mas a av gostava muito do Tambor, mais ainda do que do Sr. Negro.- Ela chorou? - perguntou Alexandre, com aspecto muito srio.- Durante dois dias-confirmou Francisco.-No conseguia deixar de o fazer. E disse-nos que no a aborrecssemos, seno iria para junto do Tambor. Tu j no te lembras, Alexandre.- A avozinha ama muito os animais - lembrou Clara. - Contou-nos uma vez que tinha dzias deles quando era pequena. Era feliz. O Sr. Negro no realmente nosso.- No; da avozinha - afirmou Alexandre. - Eu queria ter animais que fossem completamente nossos. Gostaria de ter um coelho. E alguns ratos brancos. E muitas galinhas. Um macaco tambm e, talvez, um ursozinho.- Eu quereria ces - acrescentou Francisco. - Muitos ces! E cachorros e gatos.- Eu gosto de aves - observou Clara, por seu turno. - Pombos que voassem pelo jardim... Ainda existe um velho pombal meio desmantelado num canto do jardim, no verdade? Oxal a av volte um dia a alojar pombos ali.- 17 -Ela teve tambm um cavalo chamado Trevo.- Se ns fssemos ricos poderamos possuir centos de animais - interrompeu Alexandre. - Prefiro-os aos brinquedos. Tm vida e do-nos amizade. Gosto muito dos meus brinquedos, mas nunca tenho verdadeira certeza de eles me estimarem...- s vezes - observou Clara, de sbito, olhando pelo canto do olho para Francisco -, s vezes penso que devias ter um co s teu, Francisco!- Mas no tenho - cortou o irmo, em voz breve, e, com enorme surpresa de Alexandre, ps-se muito vermelho e baixou o rosto.- Tu coraste! -declarou o mais novo. - Ests a esconder-nos qualquer coisa! Fazes-te sempre encarnado nessas ocasies. E eu. tambm.- Vamo-nos embora - props Francisco e ergueu-se. - J comi o meu bolo.- 18 -Saiu. Os irmos ouviram-no descer os degraus da escada.Alexandre fitou a irm:- Que querias dizer quando afirmaste que o Francisco deveria ter um co? No o tem, no verdade?- - concordou Clara. - Mas escuta, Alexandre, esta coisa estranha: quando o Francisco julga que est sozinho e que ningum o observa, ergue a mo e diz: Vem c, Slto. Busca. Exactamente assim. Como se um co estivesse presente.Alexandre ps-se a pensar.- Ele finge que tem um co - disse por fim. - Sei que tem tremendos desejos de possu-lo. E eu tambm. Quando o viste fazer isso?- Oh, muitas vezes - foi a resposta da irm. - Por exemplo, quando estou escondida na sebe do jardim e o Francisco por ali passa a conversar com o seu co. H dias arremessou para longe uma bola e depois disse: Busca, Salto! Muito bem! Excelente co. Depois baixou-se e acariciou o ar!- No vou contar a algum o que sei acerca desse co-decidiu Alexandre.-Se o Francisco no quisesse guardar segredo tinha-nos falado nele. Parece-te que leva o co para o quarto, para que durma a seus ps?- No sei - respondeu Clara. - Tu dormes no mesmo quarto. Podes ficar alerta para saberes.- Estou sempre a dormir quando o Francisco se deita - respondeu o irmo. - Sempre. Mesmo que me esforce por ficar acordado, no consigo. E, alm disso,- 19 -no quero devassar o segredo do Francisco. Nem tu, Clara, compreendes?- Hs-de perder o costume de me indicares o que devo ou no fazer! - repontou a rapariga. - Um fedelho do teu tamanho! Estou arrependida de te ter falado neste assunto. Claro que no falarei nele ao Francisco, a menos que ele me mace por qualquer motivo e, nesse caso, ma-lo-ei tambm com o Salto!- Isso seria mesquinho da tua parte! - censurou Alexandre enquanto a irm se encaminhava para a porta.Clara fechou-a com rudo. Alexandre encolheu os ombros. Estava acostumado queles ligeiros arrebatamentos. Logo que se encontrassem, a irm teria esquecido e mostrar-se-ia sorridente como de costume.Ficou Alexandre a pensar no hipottico co. Pobre Francisco! Quanto desejaria ter um co para que inventasse o imaginrio! Como a av, amava fervorosamente os animais. Quando via algum co, acariciava-o e falava-lhe com carinho. Atirava migalhas aos pssaros que debicavam no jardim. Se um gato o avistava, para ele corria. O cavalo do carro do leiteiro apressava o passo ao ouvir a voz do Francisco! E, quando fomos ao Jardim Zoolgico e o Francisco chamou os macacos, eles suspenderam o que estavam a fazer e foram encostar-se grade, recordou Alexandre. Puseram os braos de fora e estenderam-lhe as mos, apesar de ele no ter comida para lhes dar. E guincharam baixinho, como a dizer que eram seus amigos.- 20 -A porta abriu-se e a av entrou.- Alexandre! Que ests aqui a fazer sozinho?- Estou a pensar - proferiu o rapaz.- Pensas demasiado! - replicou a av. - Ests sempre com ar excessivamente srio. No conveniente meteres-te aqui, com aspecto de luntico.- No sou luntico - discordou Alexandre. - Que ser luntico?- Oh, no sejas tolo, Alexandre! - retorquiu a av. - Desce e v se podes deitar mo seja ao que for.- Pois aqui a tem! - exclamou o neto imediatamente, pondo a mo direita na da av. - Posso ajud-la nalguma coisa? Talvez deixe de estar to irritada!A av olhou para a pequenina mo que tinha entre a sua e repentinamente comeou a rir. Estreitou-a.- s uma calamidade!-disse. - No, por favor no me perguntes o que ser calamidade. uma coisa muito agradvel quando me refiro a ti. Agora vamos apanhar batatas, sim? A cesta est quase vazia.- Eu vou sozinho. No se preocupe, minha av - ofereceu-se Alexandre. - Levarei a p.Dirigiu-se aos velhos estbulos anexos ao Abrigo Verde. Ainda l se encontravam as dependncias dos cavalos, a casa dos arreios, agora destinada a arrecadao. Era sempre excitante, para o rapaz, passar por entre as velharias empilhadas aos cantos ou em prateleiras.Ento olhava em redor, como se ouvisse o patear de cascos. Julgaria Francisco possuir tambm um cavalo invisvel que se encontrasse na estrebaria?- 21 -Por cima das manjedouras pequenas chapas de lato, esverdeadas pelo tempo, tinham ainda gravados os nomes dos seus hspedes de outrora.Malhado. Lindo nome para um cavalo, pensava Alexandre. Galope, Benjamim, Capito. Nolhe soavam bem. Havia de falar neles av. Talvez ela os tivesse conhecido.- Alexandre! Eu julgava que estavas a apanhar batatas!Por Deus! Era a voz da av. Alexandre agarrou no sacho e precipitou-se para o jardim. Inclinou-se para o canteiro das batatas e ps-se a recolh-las ardorosamente. Gostava desse trabalho. Os pssaros cantavam loucamente em redor e o sol, quente, bafejava-lhe a nuca. Alexandre arredondou a boca e tentou um assobio, proeza, que, por sua vergonha, no tivera ainda sucesso.Por entre os lbios o desejado som veio, de sbito, com grande espanto do rapaz. Tentou de novo. Silvou imediatamente mais um assobio, sonoro, como que de um melro. Alexandre corou de prazer. Conseguira finalmente! o meu dia de sorte, pensou. De repente consegui assobiar! Agora j no sou o nico do grupo que o no sabe fazer!E, a assobiar em tom alto e desafinado, Alexandre desenterrou, em grande velocidade, meia fileira de batatas. Quem podia adivinhar que um assobio era de tanta ajuda em trabalho rduo?- 22 -Captulo II - DUAS BRIGAS IMPREVISTAS.O ms de Fevereiro cedeu a vez ao de Maro. Vieram os ventos, que faziam estremecer as rvores nos terrenos do Abrigo Verde e varriam do cu as aves.Os dias decorriam muito calmamente e nada de extraordinrio havia acontecido, alm da muito inesperada briga em que Sr. Negro se envolvera com dois outros gatos.Aconteceu em certa noite. Todos - excepto Alexandre - haviam sido despertados por grande alarido de guinchos e rebolio, mesmo junto das janelas. Toda a gente saltara da cama, com o corao aos pulos. Oh, que se passaria? Apenas dois gatos, que, no jardim, lutavam como se quisessem despedaar-se mutuamente.O pai das crianas lamentou-se:- Oh, se eu pudesse correr at janela, atirava-lhes um balde de gua! Fazerem escarcu tamanho a meio da noite. Se o Sr. Negro, amanh lhe direi o que penso a seu respeito.Mas o Sr. Negro estava inocente. Como de costume, dormia em seu cesto, no quarto da av. Quando ouviu o barulho acordou imediatamente. Saltara, parecendo duplicar de estatura,- 23 -cauda avolumada at s propores da melhor gola de peles...Sr. Negro sentia-se furioso. Que fariam, no jardim, gatos intrusos?Saltou do cesto, transps o parapeito da janela, que ficara aberta, para uma rvore prxima e logo se atirou para cima dos dois belicosos inimigos. Devia ter-se-lhes assemelhado a tiro de canho!A av no tardou a surgir janela, gritando: Sr. Negro! Sr. Negro! Pra com isso! Oh, vo mat-lo! Tenho de acabar com aquela briga! e eis a av, de roupo, em descida acelerada pelas escadas, disposta a salvar o seu precioso gato. Mas antes que ela, ou Francisco, pudessem atingir o local- 24 -- Francisco acorrera simultaneamente - os gatos encolheram-se de encontro parede, perseguidos por um extremamente irritado Sr. Negro, que esbracejava e agitava como furiosa manivela, estendidas as perigosas garras. O barulho diminuiu distncia e a av sentou-se, de repente, no poial da porta.- Oh, meu Deus! Que susto! Oh, Francisco, para onde foram eles? Que acontecer ao Sr. Negro? Vai ficar feito em pedaos!- No se preocupe, minha av. Ele h-de vir, todo inchado de prospia, contar-lhe a maneira como afugentou dois gatos intrometidos! - disse o rapaz, esforando-se por tranquilizar a av, que no pde deixar de sorrir.- Ajuda-me a subir a escada, meu filho. Um ligeiro susto faz-me lembrar como estou velha!Nessa noite o Sr. Negro no regressou e na manh seguinte a av estava muito fatigada.- No consegui dormir em toda a noite - confessou.- Onde estar o Sr. Negro?!Clara acotovelou Alexandre.- No recomeces agora com o teu assobio - preveniu. - A avozinha deve estar muito mal humorada.Alexandre retribuiu a cotovelada, mas com muito mais energia.- No te preocupes com o meu assobio - replicou. - muito novo e, portanto, tenho de pratic-lo. Avozinha, posso ir procurar o Sr. Negro?Mas o Sr. Negro, com grande alvio para toda a gente, apareceu hora do almoo. A av estivera, de facto,- 25 -muito mal humorada e a filha previa que Clara no tardaria a impacientar-se. O Sr. Negro, a saracotear-se, viera pela relva at junto da famlia, que acabara a refeio. Quem primeiro o avistou foi o pai das crianas.- A temos o nosso Negro - anunciou. - Parece que todo o mundo seu. Vem muito satisfeito consigo prprio. Eis o regresso do heri!A av soltou uma pequena gargalhada e ergueu-se imediatamente. Correu para a janela e abriu-a.Sr. Negro! Ests bem?O felino nem se dignou olh-la. Sentou-se na relva, alou uma das pernas e comeou a lamb-la conscienciosamente.- Est a exibir-se! - observou Clara. - Vou buscar-lho, minha av.Mas, tal como se tivesse ouvido as palavras da rapariguinha, o sr. Negro ergueu-se e correu para a janela. Em menos de um minuto estava nos braos da av, que exclamava:Sr. Negro! Tens uma orelha ferida! Oh, meu querido!- Reparem: traz uma grande esfoladela na cauda! - Oh, porque te intrometeste naquele combate, sr. Negro? - Onde est a tintura de iodo?O pai das crianas comeou a protestar, como sempre fazia quando a av cometia qualquer exagero a respeito do gato:- A anim-lo como se ele fosse um beb! Sinceramente, desagrada-me ver a maneira como trata esse bicho!- 26 - de esperar que se tenha ferido, dado que andou bulha! Ele no se importa, pois no? A av ripostou imediatamente.- Tu no tens amor aos animais. Creio at que no gostas deles.- Engana-se - replicou o genro. - Mas no concordo com exageros, eis tudo. Bem sabe quanto eu estimava o Tambor.Seguiu-se um silncio. Tambor, o antigo grand danois da av, nunca era mencionado por algum.- Sim - concordou ela. - Bem o sei. No entanto, insisto em afirmar que no tens a...- Tem, sim senhora! - interrompeu Clara, que acorria sempre em apoio do pai quando a av o atacava. A av embirrava, por vezes, com toda a gente... - Sim, sim, sim, o pai...- Clara! - interveio a me. - Vai buscar a tintura, por favor. Imediatamente!Sr. Negro apreciava que lhe dedicassem afagos e ateno. Ps-se a resfolegar. Parecia uma mquina.- um manhoso! - segredou o pai a Clara, que concordou:- Sim, mas um manhoso simptico.A aventura do Sr. Negro foi o acontecimento mais sensacional ocorrido naquelas semanas tranquilas, em que os narcisos precoces substituram o aafro e as primaveras comearam a despontar na ravina. Francisco prosseguia com sua cisma e Salto, o co invisvel, acompanhava-o a todo o momento.- 27 -Clara, ensinada pela av, iniciara a aprendizagem de fazer malha, mas a av era uma professora exigente, a aluna excessivamente impaciente e deste modo nada de concreto resultava.A grande distraco de Alexandre era o seu assobio, que treinava com assiduidade quase entontecendo toda a gente. O rapaz, decepcionado por pensar que a famlia no partilhava idntico regozijo por to sensacional proeza, decidiu ir ensaiar para os estbulos. Ali assobiava a seu contento, tentando modelar alguma melodia - mas no era bem sucedido.Depois, um dia, algo extraordinrio aconteceu. Passou-se com Francisco ao regressar de uma reunio de escoteiros. Salto acompanhava-o, como sempre. Ningum passava na estrada e o rapaz resolveu adestrar o companheiro, para que lhe obedecesse quando lhe assobiasse.Trazia consigo o apito de escoteiro e soprou-o. Depois acenou para Salto, que supunha a um quilmetro de distncia. O co obedeceu imediatamente ao ouvir o assobio.Excelente Salto!, louvou Francisco. Muito bem! Experimentemos outra vez. Mas agora vais parar quando eu levantar a mo. Assim!Era-lhe to real esse co que, no momento, Francisco supunha ver-lhe a cauda oscilante e a lngua pendida. Quase o ouvia caminhar! As suposies podem s vezes tornar-se muito, muito verdadeiras.Vai para onde estavas, Salto!, ordenou o rapaz. E quando eu assobiar tens de vir a correr,- 28 -mas vais parar quando eu levantar a mo. E conservar-te-s imvel. Agora!Assobiou com fora e, passados dois segundos, ergueu o brao.ptimo!, elogiou. Excelente co! Agora vem para junto de mim. Deves caminhar com a cabea rente aos meus calcanhares.Francisco podia quase sentir-lhe o hmido focinho quando se disps a atravessar novamente a estrada. De sbito ouviu algo que o sobressaltou: uma sonora gargalhada trocista.- Ah! Ah! s maluco! A falar com um co que no existe!Francisco olhou em redor, mas no viu quem quer que fosse. Depois ouviu um rudo muito prximo. Uma pessoa escorregava por uma rvore at saltar, do ramo mais baixo, para o cho. Era um rapaz sujo e desmazelado, de treze anos de idade, um pouco mais alto que Francisco. Tinha o cabelo emaranhado, ondeado, castanho-escuro. A boca franzia-se-lhe num sorriso de escrnio.Francisco no sabia que dizer. Acerca de Salto, o co que inventara, no podia fazer confidncia, sobretudo quele moo. Calou-se, portanto, e afastou-se.O rapaz meteu os dedos por entre os lbios e emitiu to estridente e penetrante assobio que Francisco se assustou.Salto! Eh! Slto!, chamava o rapaz, tentando imitar a voz de Francisco. Excelente co! Vem c! Muito bem! Pe a cabea rente aos meus calcanhares!- 29 -Francisco ficou mudo. Entretanto, o outro inclinou-se e fingiu acariciar um co. Depois avanou na direco de Francisco, olhando para o cho, como se um co o acompanhasse.ptimo!, disse. Perfeito!- Cala-te!-ordenou Francisco que, repentina e insistentemente comeava a impacientar-se.- Ah! Ah! - troou o intruso. - Ele agora o meu co! Nunca mais ir para ti! Vou lev-lo para a minha casa, para junto do meu outro co, que precisa de companhia!-Eu disse que te calasses - repetiu Francisco, sentindo que os punhos se lhe cerravam instintivamente.- Tu s um escoteiro. Os escoteiros no devem lutar. Que pena, mas que pena! - prosseguiu o exasperante rapaz.- 30 -- Porque no arranjas um co verdadeiro, em vez de um idiota co a fingir? s parvo!Francisco permanecia calado. Estava agora to irritado que no conseguia articular palavra.- Tenho um co que uma maravilha - acrescentou o outro rapaz. - Havias de v-lo. ... bem, uma espcie de spaniel, mas um co de verdade, no como o teu estpido Salto. Pff!m c, Salto! Salto, deixa-me pr-te uma coleira. Vou levar-te para junto do Rex.E o rapaz baixou-se e fingiu colocar uma coleira. Francisco nunca soube exactamente o que aconteceu. Sentiu que o seu punho esmurrava o rosto do outro. Trs! Mas, imediatamente, qualquer coisa atingia a sua prpria face: era o punho do outro rapaz. A luta prosseguiu: Zs! Trs! Toma! Toma!S poderia terminar duma maneira: o desconhecido era mais alto e mais forte. Em menos de um minuto, Francisco, estendido no cho, via as estrelas em redor!O outro afastava-se, a rir escandalosamente. E, como agravante, chamava por Salto:Salto! Porque esperas! Nunca mais vs para aquele. No te merece. Vem comigo!Francisco sentou-se, ainda estonteado. Parecia que via tudo andar roda. Subitamente envergonhado, fechou os olhos. Ele era um escoteiro e, no obstante, havia iniciado uma luta. Nem sequer tinha a atenuante de justificar que fora para defender-se. Mas como poderia evit-la? O rapaz penetrara no seu segredo e troara dele.- 31 -Dissera que havia posto uma coleira no Salto. E tinha-o levado para casa!Francisco ergueu-se e dirigiu-se para o porto. Estava perplexo. Tentava criar nimo, mas no conseguia. Sabia que no poderia ter agido de outra forma e, todavia, no procedera inteiramente bem.Entrou em casa, esperanado em que no se lhe notassem vestgios da luta. Seu olho esquerdo pesava-lhe um tanto e tinha uma sensao esquisita na face direita, porque dantes no conseguia ver as bochechas com o olho direito e agora via-as, muito prximas...Esgueirou-se pela porta do jardim, esperanoso em que pudesse alcanar despercebido o quarto. Mas a av ouviu-o e chamou-o:- s tu, Francisco? Podes vir aqui?- Vou primeiro l acima lavar-me, avozinha-respondeu.Correu para a escada antes que a av pudesse v-lo. Entrou no quarto e aproximou-se do espelho. Meu Deus! Que aspecto tinha! Que horrvel aspecto! O olho esquerdo estava agora quase fechado e um crculo arroxeado comeava a rode-lo. Tinha a bochecha direita vermelha e entumescida.Precipitou-se para a casa de banho e comeou a chapejar, com gua fria, o rosto. Mas de sbito sentiu um aperto no corao. A av decidira segui-lo, agastada por no ter sido prontamente obedecida.- Francisco! Porque no...-principiou ela, mas deteve-se. - Que aconteceu tua cara? Ests ferido?- 32 -- Estou perfeitamente, avozinha, muito obrigado - disse Francisco, desesperadamente. - Acabo de chegar.A av ergueu-lhe a cabea.- Ests ferido! Tiveste um acidente! Que aconteceu?- Nada. Repito que no foi nada - afirmou Francisco. - Um pequeno inchao apenas.- Estiveste a lutar! - exclamou a av, horrorizada.- No o negues. Tu, um escoteiro! Devias ter vergonha.E desceu a escada.Francisco sentia-se muito desditoso. Apertou o nariz e mergulhou toda a cabea na bacia, com gua, esperanado em poder aliviar dessa forma o olho e o rosto. Sentiu uma pancadinha no ombro e levantou a cabea.Era Clara.- Francisco! Que aconteceu? A av contou a todos que estiveste a lutar. Ficaste magoado?- No!-negou ferozmente o rapaz.-Tanta complicao! Parece que nunca viram uma luta!- Mas tu, Francisco, tu s to sossegado - insistiu a irm.-Francisco, conta-me tudo, sim? Quero saber. a primeira luta em que entra algum da famlia.Francisco, muito delicadamente, na verdade, enxugou o rosto e escovou e penteou o cabelo.- Ests medonho! - admirou-se Clara. - No te sentes importante por teres esse aspecto devido a uma luta?- 33 -- Porque sero to estpidas as raparigas? - explodiu Francisco, ansioso por se ver sozinho e em paz, para recapitular o que to subitamente ocorrera. Empurrou a irm e encaminhou-se para o quarto.- A me mandou-me dizer-te que descesses imediatamente-observou Clara. - E no me empurres dessa maneira.- Se no te vais embora, vers o que um bom empurro - ameaou o pobre Francisco.Clara desapareceu.Francisco analisou-se ao espelho. Que aspecto! Bem, de nada servia continuar no quarto. A famlia no tardaria a subir, para investigar.Desceu, portanto. Mal abriu a porta da sala toda a gente ergueu os olhos e logo soaram incontidas exclamaes.- Francisco, meu querido! A tua pobre cara!- Que lhes disse eu? Esteve a lutar!- 34 -- No me quiseste contar! - censurou Clara.Alexandre fitava sisudamente o irmo. Como estava esquisito o Francisco! No parecia o mesmo.- Como aconteceu isso, meu filho? - perguntou a me, em voz meiga, atraindo-o a si.Graas a Deus! No estava ento muito zangada? E quanto ao pai? Irritado como a av?A av era quem ralhava, em altas palavras de censura. Ningum mais proferia palavra. O pai de Francisco interveio finalmente:- Basta! Deixem-no em paz. Ele no dos que lutam sem motivo - e a maioria dos rapazes entra em contendas, mais cedo ou mais tarde. Os prprios escoteiros tm de saber defender-se! Algum te atacou, Francisco?Francisco bem desejaria poder dizer: Sim e tive de defender-me. Mas essa seria uma atitude de cobarde, e mentiroso, o que ele no era. Negou com a cabea.- Que sucedeu ento? - perguntou o pai, atnito. - No fiques mudo, por favor. Ns apenas pretendemos saber.- Eu... bem... eu s esmurrei algum e eis tudo - confessou o rapaz. - Ele... ele disse e... e fez certa coisa de que no gostei - e esmurrei-o.Seguiu-se um silncio.- Ento foste tu quem iniciou a luta - observou o pai. - Compreendo. Que disse e fez o rapaz? Podes certamente dizer-no-lo?- No, no posso - escusou-se Francisco, ocultando no mais recndito recanto do corao o seu fictcio Salto.- 35 -Sentia um estranho mal-estar, pois de momento s conseguia ver com um olho, o direito. O esquerdo entumescera gradualmente e permanecia cerrado.A av recomeou:- Na minha opinio entendo que...- Nada mais h a acrescentar ao que j foi dito por mim - observou o genro em voz to decisiva que todos estremeceram.A av deteve-se melindrada.- Muito bem, se eu no posso dizer o que penso na minha prpria casa, retiro-me!E saiu, rgida e firme como um pau. A me das crianas suspirou.- Valha-me Deus! Que contrariedade! Francisco, vou tratar-te desse olho.- Quem ganhou na luta? - perguntou, de sbito, Alexandre.- Eu no - respondeu Francisco.- Aposto que o rapaz era mais corpulento e mais velho do que tu-- declarou o irmo. - De contrrio terias vencido. Havias de atir-lo ao cho e faz-lo em bocados!- Cala-te, Alexandre - interveio a me. - Vem comigo, Francisco.A me foi bondosa. Tratou-lhe do rosto, afagou-lhe o ombro e no fez quaisquer perguntas. Francisco abraou-a.- Se eu pudesse, contar-lhe-ia tudo, minha me, mas no posso - lamentou. - Pelo menos por enquanto.- 36 -- No te preocupes, meu filho. Toda a gente tem um ou outro segredo, e porque no? - animou-o a me. - No devias ter iniciado a briga, bem o sabes, mas se o fizeste, estou convencida de que no tinhas outra soluo. No te preocupes.Mas Francisco estava preocupado, evidentemente. Supondo que o assunto chegava aos ouvidos do chefe dos escoteiros?... Supondo que o tal rapaz espalhava o que sabia acerca do co invisvel... Toda a gente riria... Supondo... Supondo... Supondo! Tinha de desabafar com algum.Foi Clara a escolhida. Afinal ela quase sabia tudo a respeito do co imaginrio e no faria troa se ele, o irmo, lho pedisse.- Clara, podes vir c acima ao velho quarto das brincadeiras? - rogou Francisco, dois dias aps a briga.O rosto apresentava-se ainda desfigurado e causava-lhe grandes aborrecimentos com os rapazes da aula, porque a bochecha no estava ainda normal, o que o obrigava a falar com dificuldade.- Est bem - acedeu Clara. - s o tempo de arrumar a mesa.E foi depois reunir-se ao irmo. Sentados no recesso da janela, Francisco principiou imediatamente:- por causa da luta. Estou imensamente preocupado, Clara, e no tenho outro remdio seno desabafar com algum. Mas no troars?- 37 -Clara sacudiu vigorosamente a cabea:- No, evidentemente que no. Conta-me tudo. Ento Francisco confidenciou o que ocorrera: comoo rapaz, do alto da rvore, o surpreendera a treinar Salto, o co imaginrio. Como fora escarnecido e imitado e, finalmente, a maneira como o rapaz intentara pr no co uma coleira, para o levar para casa.- Oh! Que horrvel rapaz!-horrorizou-se Clara. - E tu disseste que ele tem um co, mesmo dele? espantoso ter-te tirado o Salto! No admira que lhe tivesses batido. Eu faria o mesmo.- Foi tudo to repentino - prosseguiu Francisco. - O que mais me irrita ter iniciado a luta e, como compreendes, se eu confessasse a verdade ao pai, me ou av, eles poderiam pensar que eu sou maluco por lutar por causa de um co que no existe. Portanto no posso falar no Salto. Excepto contigo.- No te preocupes - disse Clara de modo reconfortante. - Que importncia tem? Ainda te pertence o Salto e podes ensin-lo a seguir esse rapaz.- No posso - lastimou Francisco. - Nunca mais ser meu.- Porqu? - perguntou Clara, admirada.- Bem, tu sabes o que so as coisas imaginrias: s vezes desaparecem de repente - explicou o irmo. - Tal como sucedeu connosco, quando supnhamos que havia um urso nos velhos estbulos e no queramos l entrar. De sbito essa ideia desapareceu e ns soubemos que no estava l qualquer urso.- 38 -- Sim. Foi porque quisemos ir para a casa dos arreios brincar s escondidas-esclareceu Clara.-Mas tens razo. As coisas imaginrias desaparecem de repente. Nesse caso o Salto desapareceu? Porque no arranjas outro co?Francisco fitou a irm.- J tentei - confessou. - Mas no surge mais algum. Quero dizer, s a fingir e nada mais. O Salto parecia verdadeiro. Oh, Clara como eu desejava ter um animal qualquer! Um cavalo. Ou um co. Ou pombos, talvez.- Prometo-te no me esquecer de pedir para ti um co nas minhas oraes todas as noites - prometeu a irm. - Coragem, Francisco. horrvel ver-te to entristecido. Fazes a me preocupar-se.- Bem; j me sinto melhor depois de ter falado contigo - concluiu Francisco, com aspecto mais animado.-No contes isto seja a quem for, compreendes?- Por quem me tomas? - proferiu a irm, com desdm. - Tens de ter confiana em mim. Sabes que cumpro sempre o que prometo.A correr, desceu a escada, orgulhosa por Francisco a ter escolhido para confidente.Que horrvel, esse tal rapaz! Gostaria de poder esbofete-lo, pensava, veementemente. o que farei se algum dia o vir. Mas no provvel que o veja.Mas enganava-se...- 39 -Captulo III - AINDA O MESMO RAPAZ.No dia seguinte Francisco regressou muito contente da escola. Ia ser chefe da turma!- Adivinha-se quando um escoteiro o chefe durante a semana-dissera-lhe o professor.-Nem preciso de certificar-me de que as minhas ordens so cumpridas. S desejaria que todos os meus alunos fossem escoteiros!Francisco ficou contente. Demorara-se mais tempo na escola para verificar se tudo estava em ordem e chegou a casa com meia hora de atraso.Clara e Alexandre aguardavam-no, encavalitados no muro. Queriam participar que a av estivera muito bem disposta durante todo o dia e comprara biscoitos de chocolate para o lanche.- A vem! - avisou Clara. - No digas uma palavra at ele chegar ao porto. Depois gritamos: Biscoitos de chocolate, e ele assusta-se.Mas antes que aquela ideia fosse posta em prtica, algum bradou primeiro:Eh! Vem c, Salto! Ele j no o teu dono! Vem c, rapaz! Muito bem, muito bem!- 40 -Francisco deu meia volta. O rapaz de h dias estava ali, a rir no meio do caminho. Acabava de inclinar-se e fingia acariciar um co. Atravessando a estrada, a olhar para o cho, como se um co estivesse colado aos seus calcanhares, deteve-se junto do muro, precisamente onde se encontravam Clara e Alexandre. No os viu. Estava a observar Francisco.- Perdeste o teu co? - perguntou. Francisco acelerou o passo, alcanou o porto,fechou-o com fora e, fremente, avanou pelo ptio! Odioso, odioso rapaz!O outro gargalhou de prazer, mas eis que de sbito se interrompeu. Algo lhe caa em cima, qualquer coisa o sovava valentemente e lhe arrancava os cabelos, gritando :- Toma! E toma! Toma l mais! Oh, maldoso e horrvel rapaz!O rapaz libertou-se e ergueu o punho, disposto luta. Mas baixou-o imediatamente.- Raios! - exclamou. - , uma rapariga! Que julgas que ests a fazer, minha minhoca?- Isto! - ripostou Clara e investiu impetuosamente.O rapaz esquivou-se e Clara caiu estrondosamente no cho.- Eu no luto com raparigas! - observou o outro. - Nem com crianas sequer - acrescentou ao ver surgir Alexandre. - Vocs dois quem so? Porque tomam essa atitude?- 41 -- Deixa em paz o Salto! - invectivou Clara, erguendo-se, irritada. - O meu irmo gosta muito de ces e nem sei o que ele daria para ter um! Tu tens a sorte de j ter um! Acautela-te, no se d o caso de o teu co vir para o Francisco, agora que lhe levaste o Salto!- No sejas parva! - replicou o rapaz. - O Salto no passa de um estpido co a fingir. O meu Rex nunca me deixar.- Bem-acrescentou Clara em voz tremente.-As pessoas que procedem mal so sempre castigadas. No te admires, portanto, se alguma coisa suceder ao teu co. Mas podes ter a certeza de que se ele viesse para o Francisco seria bastante estimado.-No digas disparates - respondeu o rapaz, a rir. - O meu co muito meu, j o tenho h cinco anos e nunca me separei dele. Ns acabmos de mudar-nos para um dos andares daquele prdio, e, apesar de a casa ser pequena e no termos um quintal, como tnhamos, o Rex feliz, porque est comigo. E quanto ao parvo co invisvel, aqui o tens. No o quero!Baixou-se, simulou afagar um co e retirar-lhe a coleira.Podes ir!, ordenou. J no te quero, Salto.Imitou depois to perfeito latido que Clara e Alexandre deram um pulo.O rapaz sorriu-lhes.- Adeus E deixa-te de saltares daquela maneira para cima das pessoas, minha menina! Se me tornares a fazer o mesmo, desmancho-te os caracis!- 42 -- Experimenta!- ameaou Alexandre, severamente, falando pela primeira vez.- E fao-te o mesmo a ti, mido! - troou o rapaz e afastou-se, sempre a rir.As duas crianas seguiram-no com os olhos.- Horrvel, horrvel, odioso rapaz!-exclamou Clara, batendo com o p no cho.Os dois irmos correram para a porta principal e entraram, procura do Francisco para o informarem do sucedido. O irmo ficou alarmado.- Clara! No devias ter feito isso! s uma rapariga! As raparigas no devem comportar-se dessa maneira!- Conheo dzias de raparigas que teriam feito o mesmo - ripostou a irm, em tom de desafio.- Ela corajosa - elogiou Alexandre, na sua lenta voz pausada. - E muito corajosa. No teve medo daquele rapaz to alto.- 43 -- Libertou o Slto, por isso teu novamente- insinuou Clara a tentear que Francisco sorrisse.!Mas ele meneou a cabea.- No. J te disse que essa ideia tinha desaparecido. Era uma idiotice. J estou demasiado crescido para essas tolices. Esqueamos o assunto.- Onde dormia o Salto? - quis, de sbito, Alexandre saber. - Nunca te ouvi falares com ele no quarto.- Limpei a velha casota - explicou Francisco. - Venham ver. At pus l palha, para ele dormir!Conduziu os irmos at um local, no jardim, onde permanecia ainda o velho canil, no qual durante muitos anos os ces da av haviam dormido.L dentro estava tudo limpo e confortvel. Um monte de palha calcado no centro parecia demonstrar que ali dormira recentemente um co. Fora da casota, uma vasilha com gua.- No tinha reparado que o canil estava limpo- confessou Clara. - Alexandre! Aonde vais? Repara, Francisco, ele entrou na casota! Alexandre!Alexandre rastejou para dentro do canil e depois voltou-se para trs a rir:- o! o! - fez. - o! Estou esfomeado. Quero um biscoito, de chocolate. o! o! o!Os irmos torciam-se de riso. Clara puxou Alexandre e sacudiu-lhe as palhas.- s um pateta! - disse Francisco subitamente, com parecer mais animoso. - Esqueamos para sempre o Slto. Nunca mais se fala nele. Fui muito palerma.- 44 -Nesse momento Clara lembrou-se das novidades:- A av esteve muito bem disposta todo o dia. E comprou biscoitos de chocolate para a merenda. Muitos! prefervel apressarmo-nos, de contrrio ela perde a boa disposio e guarda os bolos. Vamos!Ao entrarem em casa, Francisco justificou o atraso, dizendo que era, naquela semana, o chefe da turma. A av assentiu com a cabea, em aprovao.- E sabemos que te desempenhas muito bem desse cargo - elogiou. - O teu olho est hoje com melhor aspecto, Francisco. Voltaste a ver o tal rapaz?O genro tossiu, como advertncia, e disse:- Esse assunto est encerrado.Por baixo da mesa Clara beliscou Alexandre e endereou-lhe um sorriso cmplice. Bela ideia o pai dizer aquilo, ou, de contrrio, o pobre Francisco seria forado a revelar o que ocorrera junto do muro. av no agradava que lhe cortassem a palavra. Franziu as sobrancelhas.Clara olhou-a ansiosamente, desejosa de que nenhum acidente surgisse antes de serem comidos todos os biscoitos...A me mudou habilmente de assunto, como s ela sabia.- J algum contou os narcisos que apareceram na ravina? Eu ontem contei vinte e nove. No se esqueam de que, quando excederem o nmero de trinta, poderemos colher alguns, para enfeitar a casa. Encarregas-te desse trabalho, Clara?- 45 -- Oh, sim - alegrou-se a rapariga. Gostava de colher flores e disp-las nas jarras.Felizmente a me havia mudado de assunto...- Primeiramente enfeitarei o quarto da avozinha, depois o seu e, por fim, o nosso.- No; primeiramente p-las-s na mesa - rectificou a av, satisfeita. - S ento dividiremos os restantes. Queres mais biscoitos de chocolate, Alexandre?- Quero, sim - respondeu o rapaz.- Queres o qu? - proferiu a av afastando oprato.- Quero biscoitos - respondeu o neto, surpreendido. - Oh, isto , quero, se faz favor. Obrigado, minha av!- Que maneiras!-censurou ela.-Quando eu era rapariguinha e me esquecia de ter maneiras, a minha preceptora desenhava uma lista de palavras, todas elas: Se faz favor e obrigada. E pregava-as com alfinetes no meu vestido. De cada vez que eu as lembrava, ela retirava uma palavra; quando eu as esquecia a preceptora colocava-a de novo.- Oh, que excitante! - observou Clara. - Avozinha, faa-me o mesmo, por favor!- Era um castigo - retorquiu a av. - No um jogo. De que te ris, Joo?Voltou-se para o genro, que soltava sonoras gargalhadas, o que nele no era frequente. A esposa imitou-o.- Estamos a rir por sabermos que a Clara no ignora que lhe seria impossvel conservar as palavras- 46 -por mais de cinco minutos. Ela desejou-as porque est convencida de ter boas maneiras.- E a avozinha conservava as suas palavras durante horas e horas? - interrogou Alexandre, muito interessado.A av comeou a rir tambm.- J me recordo - proferiu. - Agora vamos acabar os biscoitos, sim?Aps a merenda, Clara saiu para colher os narcisos. Eram lindos.Vocs esto a danar!, disse a rapariga. Gostam do vento, narcisos. Sim, gostam porque esto a afirmar com a cabea.Contou-os. Eram cinquenta e trs.Vinte e nove ontem; hoje cinquenta e trs, murmurou Clara. Posso colher todos menos trinta. Quantos vm a ser?Era uma bela poro.Clara colheu tambm algumas longas folhas verdes. No momento em que se preparava para se retirar ouviu uma voz:- Escuta!Clara estacou, perplexa. Donde proviria a voz? Olhou em redor mas nada viu.- Escuta!- Quem est a? - perguntou a rapariga. - No te vejo. Ests no quintal?- Sim, estou aqui - disse a voz.- 47 -E, de um espesso macio de arbustos, um rapaz avanou, aquele que lutara com Francisco e que fora sovado pela rapariga havia umas duas horas.- Que fazes tu no meu quintal? - inquiriu imediatamente Clara. - Que atrevimento! Vai-te embora seno vou j chamar minha me!- No vs; ouve. Desejo falar com o teu irmo. Como se chama ele? Francisco, no verdade? Trata-se de um assunto muito urgente - explicou o rapaz.- Para que queres falar com ele? - interrogou Clara. - Eu no gosto de ti. s detestvel. Vai-te daqui ou ento grito pela minha me.- No, por favor, no faas isso - pediu o outro, e acercou-se mais. - Vai chamar o teu irmo, peo-te. Por favor!Clara olhou-o. O rapaz tinha os olhos avermelhados. Estava a chorar! Um rapaz to crescido! Que se passaria?- 48 -- Vou procurar o Francisco - acedeu. - Espera-me aqui.De narcisos ainda nas mos, quase voou em demanda do irmo. Porque choraria o rapaz desconhecido? Ela nunca antes tinha presenciado lgrimas em rapazes daquela idade. Era impressionante! At Alexandre j raramente chorava.- Francisco! - gritou. - Francisco! Onde ests?- Est l em cima, no quarto - informou a av. - No berres dessa maneira, Clara Sobressaltaste-me!Clara passou pela av e tambm pelo pai, sentado, como sempre, na sua cadeira de rodas. Correu para o quarto do irmo. Francisco escovava o uniforme de escoteiro, que tencionava vestir no dia seguinte, para assistir a uma reunio. Clara entrou e parou, ofegante.- Que te aconteceu? - admirou-se o rapaz.- Francisco. Sabes? Aquele rapaz com quem lutaste... Aquele em quem hoje bati. O que te tirou o Salto. Bem... est l fora, junto do valado, e quer falar contigo.- Para qu? - disse Francisco, carrancudo.- Quer brigar mais?- No. Est a chorar - relatou a irm, martelando as palavras.Surpreso, o rapaz encarou-a.- A chorar? Porqu? No acredito. muito crescido!- 49 -- verdade, repito. Mandei-o sair do quintal, mas ele insistiu em pedir-me que te chamasse. Penso que est em apuros.- Pois bem. Que no conte com a minha colaborao - declarou Francisco, inflexvel. - No me nada simptico. Vou saber o que deseja.- Posso acompanhar-te? - perguntou Clara.- No. Chamar-te-ei, se assim o entender. E avisa o Alexandre, para que no se aproxime. Vou com ele para os estbulos - disse Francisco.Desceu a escada. Clara escolheu uma jarra e disps-se a ornamentar a mesa com os narcisos colhidos. No deixava de interrogar-se acerca do estranho rapaz e dos motivos da sua vinda. Alexandre no conseguia tambm adivinh-los.Francisco procurou o desconhecido, que no arredava do macio de arbustos, do lado oposto ao valado. No chorava, mas tinha ainda os olhos congestionados. Ao avistar Francisco sorriu-lhe dbilmente.- Que me queres? - perguntou este. - descaramento da tua parte vires aqui e mandares a minha irm chamar-me.- No tal - justificou-se o rapaz. - Aconteceu-me uma coisa horrvel e pensei que podias ajudar-me.- Vamos para o estbulo - props Francisco. - Estaremos mais vontade. No sei como poderei ajudar-te, nem tenho inteno de faz-lo.O rapaz seguiu Francisco, que, fechada a porta, proferiu:- 50 -- Diz-me ento o que pretendes.- por causa do meu co - explicou o outro, e engoliu em seco. - Do meu co, o Rex. Deteve-se, incapaz de prosseguir.V- Bem; diz o que sucedeu ao co. No compreendo o que tenho a ver com o assunto. Depois do teu comportamento para comigo no estou interessado no teu co.- 51 -- Bem sei. Sinto-me agora arrependido - lamentou o outro rapaz. - Fui mesquinho, mas j recebi o castigo, porque me vo tirar o co.- No por causa da nossa briga, com certeza? - acentuou Francisco.- Oh, no. Ningum sabe coisa alguma a tal respeito - elucidou o outro. - Escuta: chamo-me Daniel Oldham e moro num dos novos andares daquele grande prdio prximo. Ora acabam de informar-nos que no permitido ter l ces. Compreendes?- Oh! Nesse caso vais separar-te do Rex? Que pouca sorte!- Pouca sorte! - repetiu Daniel, de olhos novamente humedecidos. - pior do que isso. Vai ser entregue ao meu tio Toms, que no gosta de ces. O pobre Rex levar pontaps, nunca ir passear e... e oxal no se esqueam de lhe dar gua nem...No pde prosseguir. Com as mos esfregou os olhos. Depois baixou a cabea.- Sou idiota, bem sei - admitiu. - Mas tenho-o h cinco anos, e meu. Nunca mais o ver nem senti-lo lamber-me ou saltar-me em cima, para me dar as boas-vindas! Nunca tiveste um co; no podes imaginar.- Mas compreendo - observou Francisco. - Que pena, Daniel! No tens esperana de ficar com ele?- No tenho. O meu pai disse que correramos o risco de nos porem fora do andar. No nos haviam informado. Alm disso minha me no querer sair da sua linda casa nova, por que h tantos anos suspirava.- 52 -Portanto temos de separar-nos do Rex. S o soube hoje depois de ter estado com a tua irm e o teu irmo.Daniel sentou-se num caixote e enfiou os dedos pelos abundantes cabelos.- Para que vieste falar comigo? - perguntou Francisco, aps uma pausa.- Para te perguntar uma coisa. Para pedir, na verdade - confessou o outro rapaz. - Estimas os ces, no ? Tenho a certeza, por causa do tal co imaginrio. Estou terrivelmente arrependido agora por ter troado de ti: parece que estou a ser castigado pelo meu mau procedimento. Bem... eu gostava de saber uma coisa: queres o meu co? Tens um grande quintal, h muito espao! Eu traria comida e levaria o Rex a passear...Francisco conservava-se calado. Daniel, suplicante, olhava-o. Ergueu uma das mos e tocou no brao de Francisco.- s um escoteiro. J hoje praticaste uma boa aco? Esta seria a melhor de todas.Francisco olhou-o.- J hoje fiz duas boas aces - disse. - Mas no h razo para que no faa terceira se...O outro saltou, radiante, de olhos a brilhar.- Queres dizer que aceitas o Rex - quase gritou.- Senta-te e escuta - disse Francisco. - E no te entusiasmes antecipadamente porque no vejo possibilidade de o alojarmos aqui. No creio que meu pai consinta. Minha me poderia dizer que um co sujaria, com as patas, o cho que ela acabara de limpar.- 53 -- Mas ento a tua me no tem quem a ajude nesta grande casa? - admirou-se Daniel.- Ns ajudamos, evidentemente-esclareceu Francisco. - Mas estamos pobres, porque o meu pai foi ferido na guerra e no pode trabalhar. Quanto minha av - ora vejamos... No sei o que pensaria. Adora os animais, mas tivemos de vender o seu Tambor, porque era um grande danois e comia demasiado. Ela ficou desesperada. Pode no querer outro co.- Compreendo - disse Daniel. - Bem... obrigatrio participar este assunto? O Rex um co tremendamente bom. S ladra se vierem ladres, e nesse caso no te importarias, no verdade? Eu dar-lhe-ia comida e tudo se me permitisses entrar no teu quintal. Sinceramente, o Rex no incomodaria. Havias de gostar dele.- No duvido - concordou Francisco, inundado por uma onda de excitao ao pensamento de vir a ter um co no quintal. - Se eu viesse a gostar dele, poderia querer lev-lo eu prprio a dar um passeio, Daniel - lembrou.Seguiu-se silncio.- Bem - concordou Daniel finalmente. - Poderamos ambos lev-lo a passear. Eu... eu desejo pagar o seu alojamento. S recebo por semana um escudo, para pr no mealheiro, mas minha me pagaria a alimentao do Rex. Dar-te-ei todo o dinheiro que tenho.- No quero - recusou Francisco, que corara. - Sou um escoteiro. As boas aces pratico-as desinteressadamente. Se o fosses tambm, compreender-me-ias.- 54 -- Apre! - exclamou Daniel. - Vale qualquer coisa ser escoteiro se faz pessoas como tu. Francisco, vais fazer o possvel para ficares com o meu Rex? Hei-de recompensar-te de qualquer maneira, podes estar certo, mesmo que no queiras receber dinheiro. Vamos!- Devo aconselhar-me com a Clara e o Alexandre - volveu Francisco. - Verei se eles concordam.Saiu do estbulo e chamou os irmos. Estes, que nas proximidades aguardavam, muito excitados, surgiram prontamente. Em breve o assunto era debatido. Mal Clara e Alexandre souberam do problema de Daniel, apoiaram o rapaz. Lutas e ressentimentos tinham desaparecido. Agora apenas o Rex estava em causa:- Evidentemente que ficamos com o Rex - declarou Clara. - J no te lembras, Francisco, que limpaste o velho canil e puseste l palha?- No, no esqueci-confirmou o irmo. - como se estivesse a postos para este acontecimento. Ningum costuma ir quele ponto do quintal. Est um pouco afastado. Poderamos arranjar uma espcie de cerca para que o Rex no se alongasse, denunciando-nos.- Sim, devemos guardar segredo - concordou Clara. - No creio que os pais ou a av queiram o Rex. Por vrias razes. Temos de manter o assunto secreto. Um segredo! Que grande segredo! Um co s nosso!-No - discordou de pronto, Daniel. - Ele no deixa de ser meu, todo meu. Que isto fique bem esclarecido.- 55 -- Mas podes partilh-lo connosco, no podes?- observou Clara. - Sinto que deve ser um lindo co, Daniel. No te importas, decerto, que me faa sua amiga!- Bem... veremos!-admitiu Daniel, um tanto ciumento. - Alis no posso deixar de consentir no que vocs quiserem. So a minha nica esperana. bastante louvvel da vossa parte ajudarem-me atendendo ao que fiz aqui ao Francisco.- Tudo foi esquecido - tranquilizou-o o rapaz. - Est encerrado o assunto.- Lamento agora ter-te batido com tanta fora- acrescentou Daniel. - O teu olho deve ter ficado medonho.- Eu disse que o assunto estava encerrado - repetiu Francisco, impaciente. - Vamos decidir quando e como vir o Rex.- Pode ser no prximo sbado? - pediu Daniel. - o fim do prazo para todos os animais sarem dos andares. Nessa altura posso traz-lo e ao seu cesto e gamelas. Vai sentir-se infeliz, mas dir-lhe-ei que volto no dia seguinte e preveni-lo-ei para que no ladre. Vai portar-se bem, tenho a certeza.- Meu Deus, ento o Rex compreende tudo o que lhe dizes? - exclamou Clara.- Perfeitamente - elucidou Daniel. - Palavra de honra que sinto o corao desfeito, acreditem. Mas vocs so estupendos. Gostava de um dia poder tambm ser-lhes til.- 56 -Discutido meticulosamente o caso do Rex, as trs crianas sentiam que o co j lhes era familiar.- Sabem? - disse, finalmente, Daniel. - Impressionou-me o que a Clara me disse esta tarde. Acautela-te, no se d o caso de o teu co vir para o Francisco. E eu ri. Mas o certo que isso aconteceu.- Sim. Foi estranho que eu tivesse dito isso - observou Clara, admirada.Daniel ergueu-se para se retirar. Estendeu solenemente a mo a Francisco.- Muito obrigado - disse, e as mos estreitaram-se com vigor. Ento Clara estendeu tambm a sua e Alexandre imitou-a.Este acto, um tanto solene, foi de repente interrompido pela voz da av:- Francisco! Clara! Alexandre! Onde esto vocs metidos? Francisco!- Temos de ir - observou Francisco. - Tu ficas aqui at entrarmos em casa. Nessa altura podes sair. At sbado... e felicidades, Daniel!- 57 -Captulo IV - UM SEGREDO EMOCIONANTE.A deciso tomada a respeito de Rex excitou de tal modo as crianas que no conseguiam falar noutro assunto.- No maravilhoso? - proferiu Clara. - Bem sei que o co continua a pertencer ao Daniel, mas como se fosse tambm um pouco nosso.- Penso que no h inconveniente em guardarmos este segredo - declarou Francisco. - No vejo vantagem em criarmos complicaes s pessoas crescidas... Que raa ser a do Rex? O Daniel disse que uma espcie de spaniel.- Hei-de gostar dele, seja de que raa for - afirmou Alexandre.A av assomou a cabea porta do quarto de Clara, onde os trs irmos se haviam reunido para conversar.- Que esto vocs aqui a segredar? - perguntou. - Clara: a tua me est a passar a ferro. Vai ajud-la. teu dever, bem sabes.Clara franziu o cenho. Ela ajudava no servio da casa. Auxiliava em vrias tarefas, quando, na verdade, muitas vezes teria preferido ler ou brincar.- 58 -- Vou j, av - disse um tanto secamente.- Bem, no necessrio responderes nesse tom - retorquiu a av, parecendo um tanto irritada. - Eu no devia ter vindo chamar-te.- Podia ter-me pedido - resmungava Clara, ao sair. Oh, mas porque teria a av aquele feitio, se possua bom corao?Lentamente, a rapariga, carrancuda ainda, descia a escada. Mas antes de chegar ao fim comeou a pensar de novo no Rex, e, j radiante, galgou os trs ltimos degraus.Grandes planos estavam a ser elaborados pelos trs irmos.- H na estrebaria uns troos de arame farpado - lembrou Francisco. - Penso que so suficientes para construirmos uma espcie de cerca para o co com a superfcie necessria para que ele possa movimentar-se vontade.- Precisaremos de algumas estacas para apoiar o arame - acrescentou Clara. - Haver algumas?- H sim - esclareceu Alexandre. - Eu sei onde esto.Alexandre sabia o lugar de tudo. Conhecia todos os recantos da casa e do quintal. Quando algum precisava de qualquer coisa pedia informao a Alexandre.- ptimo! Ento podes ir busc-las - acrescentou. - Que sorte termos ainda o canil em boas condies!- Sim. E tudo est a postos, sem faltar palha para a cama - regozijou-se Clara. - Eu me encarregarei de,- 59 -todas as manhs, dar a gua ao Rex. Gosto desse trabalho.- No. Isso comigo - objectou Francisco, imediatamente.- Lembrem-se: o Daniel pediu-me que cuidasse do co. Sou o responsvel.- Bem... creio que o Daniel querer vir ele prprio mudar a gua ao Rex. - No lhe agrada sinceramente que ns fiquemos com o co e tem cimes, mas no h outra maneira de resolver o assunto. De outro modo, ficaria sem o Rex - disse Clara.- O Daniel no pode dar-lhe a gua - elucidou Alexandre. - A torneira fica longe e ele seria visto.- Sim. Tens razo - concordou Francisco. Ficaram em silncio, imaginando tudo o que poderiam fazer pelo co. Alexandre comeou a assobiar.- Pra com isso! - protestou Clara. - Assobias horrivelmente. Para que insistes?- Eu estava a assobiar porque me sinto feliz - disse o irmo parecendo magoado. - Estava a assobiar a msica da Noite de Natal.- Bem, ningum o diria - observou Clara. - Tanto parecia a Noite de Natal como, por exemplo, o hino nacional. Foi pena que tivesses aprendido a assobiar, Alexandre. s muito desafinado.- Pois bem. Vou tentar esquecer-me - foi a resposta do pobre Alexandre. - Mas sai-me sem querer quando me sinto particularmente feliz.- Nesse caso, assobia! - interveio Francisco, e deu-lhe uma palmada amigvel. - Conheo essa sensao.- 60 -- Devemos ir conversar com o Rex sempre que pudermos - sugeriu Clara. - Ele h-de sentir-se desamparado sem o dono.Todos concordaram calorosamente.- Eu encarrego-me de limpar a casota - afirmou Alexandre, peremptrio.- Tu no! - contrariou Francisco, igualmente categrico. - Esse trabalho compete-me.- No sejam idiotas. Faam-no por turnos-disse a irm. - Como mulher, entendo que a soluo mais atilada.- E eu, como homem, concordo - apoiou solenemente Alexandre, e todos riram.- Este co pode vir a ser uma terrvel herana - lembrou-se de dizer Francisco. - No seria lamentvel se ele no gostasse de ns?Fez-se silncio opressivo. Clara mudou de tema:- Esperemos que ningum descubra o Rex. triste que o ocultemos dos adultos, mas seria pavoroso que o pobre co tivesse de ser enviado ao horrvel tio do Daniel.- Vou buscar o arame - disse Francisco e ergueu-se. - A me e a av saram. Apenas o pai est em casa. A ocasio propcia.- Pobre paizinho! - suspirou Clara. - Havia de gostar de associar-se e de nos ajudar a colocar o arame, tenho a certeza. Deus queira que a sua doena tenha cura. Quem me dera que ele fosse como os outros pais e pudesse trabalhar e distrair-se. to doloroso ver-se ali,- 61 -sempre sentado onde est, vendo as outras pessoas correrem e mexerem-se.- Sim. E todas as vezes que o mdico experimenta novo tratamento, o pai fica to excitado como ns estamos agora por causa do Rex. Mas logo que o tratamento no produz resultados o pai volta a desanimar.- Quando eu for mais velho - prometeu, seriamente Alexandre - hei-de ser mdico. Um mdico muito competente. E o que primeiro farei ser curar o paizinho.- J disseste isso mais de cem vezes - observou Clara. - Mas acredito em ti. Tu no s dos que mudam de ideias. s como eu. Vamos. A me no deve tardar.Obtido o arame, as ripas encontrou-as Alexandre na casa dos arreios. Eram mesmo medida. Francisco, munido de um alicate, colocou os materiais no distante recanto do grande quintal situado to longe da casa. Local excelente para esconder um co... rvores e arbustos ocult-lo-iam de olhos indiscretos. Estava ali o canil, grande e limpo, com palhas a espreitarem porta. Alexandre esfregou as mos e assobiou com fora. Clara riu:- Feliz, novamente? D uma ajuda, Alexandre. O Francisco vai colocar as ripas.Durante cerca de uma hora as trs crianas estiveram muito ocupadas na tarefa. O arame teve de ser desenrolado e endireitado. Francisco, com o alicate,; cortava medida, mas, esquecido de que as lminas estavam afiadas, feriu-se profundamente na mo direita.- 62 -- Est a deitar sangue! - exclamou Alexandre. - Vou buscar tintura.E correu quanto lho permitiam as curtas pernas.- No exageres! - gritou Francisco.- No exagero! - observou a irm. - Ferimentos desses devem ser desinfectados. Se o Rex tivesse uma ferida numa pata, no lha limpavas e desinfectavas?- 63 -Pois bem: tu s mais importante que um co. Aguarda um minuto.Alexandre, j de regresso, vinha mais devagar. Nenhuma das crianas corria quando transportava objectos de vidro. A av havia-as advertido muito seriamente, mostrando-lhes a enorme cicatriz patente na sua mo direita e que fora originada por um fragmento de vidro.- Eu vinha a correr com uma vasilha de vidro - explicara-lhes. - Ca e quase fiquei sem mo. Portanto, no sejam desastrados, como eu fui!Francisco fez uma ligadura, com adesivo. Prosseguiu o interrompido trabalho. Alexandre colocava as estacas, regularmente intervaladas, e a vedao surgia, bonita e rectilnea, mesmo medida desejada.Tinha bom aspecto a tarefa, aps concluda. No havia cancela, mas o arame no tinha altura excessiva e permitia que as crianas o transpusessem, apesar de Alexandre o fazer com um pouco de dificuldade. Era suficiente para deter um co, a menos que esse co fosse excelente saltador de obstculos...Francisco retirou a palha da casota e voltou a rep-la.- Tu amachucaste-a terrivelmente, Alexandre, quando entraste na casota - notou Francisco. - Os ces gostam de palha fofa, onde se enrosquem.- Ele h-de amachuc-la mais do que eu! - replicou Alexandre.- Poderemos fazer-lhe a cama diariamente - sugeriu Clara. - Quem me dera que j fosse sbado!- 64 -Chegou finalmente o desejado dia e veio Daniel, acompanhado pelo Rex. Entraram pela porta traseira, onde aguardavam os trs excitados irmos.- Ol! - saudou Daniel, que parecia extremamente grave. Era uma circunstncia solene ceder um co em tais circunstncias. Rex. Cumprimenta!O Rex alongou a pata direita, e, obediente, trocou apertos de mo com Francisco, em seguida com Clara, depois, Alexandre. Este cumprimentou e tornou a cumprimentar. Rex parecia no se importar.- J chega - interveio Daniel. - No lha arranques. Bem, que tal lhes parece?As crianas apreciavam o co. Parecia, de facto, uma espcie de spaniel, mas no puro.- 65 -Era demasiado grande e tinha a cauda muito comprida, mas possua magnficos olhos meigos e dourados, de verdadeiro spaniel, e longas e sedosas orelhas pendentes. Com o olhar fito nas crianas, acenava vigorosamente com a cauda.- lindo!-manifestou-se Clara, ajoelhando-se para o acariciar.- um verdadeiro co! - elogiou Francisco, e deu uma palmadinha no plo de seda. - Um autntico co!- Gosto muito dele - disse, por seu turno, Alexandre.- Muito, muito, muito.Daniel parecia transbordar de orgulho e satisfao.- Estou contente - disse simplesmente ao acariciar Rex.- Eu... eu penso que vocs trs so formidveis. Digo-o com sinceridade.Ningum respondeu. O animal prendia-lhes toda a ateno.Feliz ao ver-se to acarinhado, deitara-se de costas e, de patas no ar, parecia pedalar. Como se montasse uma bicicleta de quatro pedais!- Olhem para ele!-gritou Clara fazendo-lhe ccegas.Daniel volveu-se para Francisco, a contar-lhe as diligncias efectuadas.- Falei com minha me - disse. - A princpio no lhe agradou muito que o Rex fosse para casa de pessoas desconhecidas. Mas tanto lhe pedi que ela consentiu. Acha que muito gentil da vossa parte.- 66 -- Vamos gostar de t-lo connosco - garantiu Francisco. - E quanto comida, vens tu traz-la diariamente?- Sim. Virei todos os dias com a comida e, sempre que possvel, lev-lo-ei a passear. Mas vocs tero de mudar-lhe a gua. Importam-se?- Temos muito prazer - retorquiu Francisco. - Escuta: tu tens cuidado muito bem do Rex, no verdade? O plo parece de seda e at as orelhas esto penteadas.- Sim, e tambm as penas - elucidou, com orgulho, Daniel.- Oh, onde esto as penas? - admirou-se Alexandre, mirando o Rex de alto a baixo. - Eu julgava que ele s tinha plos.- O plo felpudo da parte posterior das pernas tem o nome de penas - explicou Daniel, a rir. - Bem. Tenho de ir-me embora. Adeus, Rex, meu velho. Porta-te bem. tarde virei visitar-te.Cerrou-se a porta das traseiras. Daniel partira. Rex imobilizou-se, escuta, e soltou um pequeno ganido. Onde estaria o seu dono muito amado?No te preocupes, dirigiu-se-lhe Francisco, acarinhando-o.Mas Rex no era dessa opinio. Correu para a vedao e, ao verificar que no conseguia transp-la, andou apressadamente em redor, mas viu que no podia sair. Sentou-se e ganiu novamente. As crianas rodearam-no, temerosas de que ladrasse. Mas Rex no o fez. Ergueu-se, de repente, e percorreu o canil,- 67 -observando-o com interesse. Entrou e farejou. As crianas ouviam-no respirar. Soava como se o co estivesse satisfeito.Houve um pequeno baque e Rex espreitou porta, deitado na palha, a observar a entrada, dono da sua pequena casa.- Gostou dela! Sabe que lhe pertence! - exclamou Alexandre, delicado. - Olhem para ele.Todos fitaram Rex, que, com seus meigos olhos castanhos, lhes devolvia o olhar. Ento, de sbito, Rex ergueu-se, saiu da casota e lambeu primeiramente Francisco, depois Alexandre, e Clara por fim. A seguir foi at junto da vasilha da gua e ps-se a beber ruidosamente.- Devia ter qualquer coisa de comida - observou Clara. - Nada tem para roer se sentir fome. Que dizes de um biscoito de chocolate, Francisco? Tenho um, guardado no meu quarto.- No, de modo algum - recusou, de pronto, Francisco. - O chocolate pode engord-lo. Dever ser alimentado convenientemente. Alm disso penso que devemos deixar esse assunto a cargo de Daniel, sem lhe oferecermos pitus. No seria leal.- Gostaria de comprar-lhe um osso, para ele roer - disse Alexandre. - Hei-de perguntar ao Daniel se o posso fazer.- Bem, suponho que so horas de deixarmos o Rex e irmos para casa - lembrou Clara. - Tu tens uma reunio hoje de manh, no assim, Francisco?- 68 -E eu vou ajudar a me. Alexandre, creio que tens de ir fazer uns recados.- Bem sei - replicou Alexandre. - Mas a me disse-me que o fizesse pelas dez e meia. Ainda cedo. Vocs dois podem ir. Eu ficarei com o Rex at s dez e meia, para o caso de ele se sentir muito s.Os dois irmos no ficaram muito entusiasmados com a ideia de deixarem Alexandre na posse exclusiva do spaniel. Este podia dedicar-lhe mais amizade do que a eles! Todavia era generoso para Rex oferecerem-lhe companhia por mais uns momentos. Nesta conformidade, os dois mais velhos retiraram-se. Ouviram Alexandre comear a assobiar escandalosamente.- O Alexandre sente-se feliz - observou Clara. - Repara no seu assobio! O Rex lindo, no , Francisco? No achas excitante termos um segredo destes?Cheios de felicidade, dedicaram-se s suas tarefas, saboreando o segredo, ansiosos por um momento livre para correrem para junto do spaniel.A me quis saber onde tinham estado.- Chamei e tornei a chamar! - observou. - Onde estavam?- No jardim - respondeu Francisco. - Peo desculpa, minha me.- Que estiveram a fazer? - perguntou a av.- No os encontrei em parte alguma.Francisco e Clara no encontraram resposta. Ficaram silenciosos. Temiam que a av pesquisasse e lhes descobrisse o segredo.- 69 -A me nunca bisbilhotava, mas a avzinha parecia no se sentir sossegada sem conhecer os pensamentos e aces de toda a gente.A av ficou, evidentemente, muito intrigada naquele dia, em que Clara foi a primeira a desaparecer aps a concluso das tarefas que lhe cabiam. Depois do desempenho dos recados Alexandre desapareceu igualmente. E Francisco, regressando da sua reunio de escoteiros, um pouco antes do almoo, desapareceu tambm!- Onde estaro eles?-perguntou a av.-Agora foram-se todos!- No importa - disse o genro. - Est um lindo dia. Desconfio que tm qualquer assunto secreto no quintal: a construo de alguma casinha ou a escalada de alguma rvore. Todos executaram os seus trabalhos e cumpriram bem. Deixe-os em paz, avzinha.- Bem! Quem te ouvisse diria que eu ando sempre atrs deles!-replicou a av. - So meus netos, no so? E vivem na minha casa, no vivem? No posso perguntar onde esto?- Eu preferiria que vendesse a casa e nos permitisse irmos para outra mais pequena - disse Joo, fatigado. - demasiado trabalho para a minha pobre mulher e para as crianas. Uma casa mais pequena facilitar-nos-ia a vida. Bem sei que sou um peso morto, incapaz de trabalhar e de ganhar dinheiro. horrvel estar aqui sentado e ver-vos a todos matarem-se a trabalhar como mouros!- 70 -Lgrimas escorregaram pela face da av. Aproximou-se do genro e afagou-lhe as mos.- Pobre rapaz! - disse. - Bem sei como duro para ti, mas talvez um dia os mdicos consigam curar-te e ento sentir-te-s feliz por no nos termos privado desta linda casa. Foi o meu lar de criana, cedi-to quando casaste com a minha filha. Despedaar-me-ia a alma vend-lo e abandon-lo.- Sim, compreendo - admitiu Joo. - Faz por ns tudo quanto pode, bem sei. Mas -me insuportvel presenciar a azfama de todos vs, quando toda a minha colaborao consiste em descascar batatas, ervilhas e tarefas semelhantes. Isso enerva-me e faz-nos implicar com os outros. Uma famlia deve viver em unidade, paz e harmonia. Por vezes isso no acontece connosco.A av enxugou os olhos e decidiu que nessa mesma tarde iria comprar guloseimas para os netos, umas meias para a filha e cigarros para o genro.- Sou uma velha intil - afirmou. - Rabugenta, maadora e impertinente. No verdade, Sr. Negro?De olhos a cintilar, o enorme gato preto deslizou pela sala. Saltou agilmente para os braos amigos da idosa senhora e ronronou.- O seu gato! - disse Joo, a sorrir. - Eis o nico ser que nunca a importuna, avzinha.A av, de encontro ao peito, estreitou o sr. Negro. Ele miou levemente e debateu-se para se libertar.A me das crianas entrou na sala e olhou em redor.- 71 -- Onde estaro os pequenos?-perguntou.-No me digam que voltaram a desaparecer.Efectivamente, durante a semana seguinte, ausentavam-se a todo o momento! Haviam estabelecido que, aps as aulas, algum ficasse com Rex, se fosse possvel. O co nunca ladrava, mas tinha tendncia para ganir se pressentia as crianas em casa. E elas receavam que fosse ouvido.Regular e diariamente, Daniel vinha dar um passeio ao Rex. Quando o avistava, o co quase enlouquecia de alegria. Mas nem uma s vez ladrou. O dono prevenira-o e o inteligente animal compreendera. Todos os dias, Daniel trazia carne e biscoitos. Inspeccionava a vasilha da gua, para certificar-se de que a haviam substitudo. Francisco fazia desse trabalho uma das suas primeiras ocupaes matinais.Daniel verificou um dia que a casota fora rodada e estava orientada para outra direco.- Porque mudaram a situao da casota? - perguntou. - esquisito v-la virada para aquele lado.- Bem...-explicou Francisco. - Nos dois ltimos dias houve vento frio vindo de leste. A casa do Rex estava virada a leste e o vento encanava-se para l. Eu no conseguia deixar de pensar que ele havia de sentir frio quando estivesse deitado. Por isso mudei a situao da casota. Agora deve dormir confortvel e aconchegado noite.- s verdadeiramente seu amigo - observou Daniel, cheio de gratido. - No achas que tem bom aspecto?- 72 -Sente-se feliz, no verdade? Apesar de eu saber que tem imensas saudades minhas.- Oh, evidentemente - concordou Francisco. - Sempre que algum entra pela porta das traseiras, o Rex pe-se de p, escuta, esperanoso em que sejas tu. Mas feliz aqui. Todos gostamos muito dele.- Poderias lev-lo amanh a passear? - perguntou Daniel. - Tenho de ir, com minha me, visitar a minha av e por isso no me ser possvel vir. Mas ele necessita do seu passeio.Brilharam mais os olhos de Francisco.- Oh, sim! Com muito prazer. Nunca pensei que consentisses. to diferente tudo, agora que temos um co. No sei como poderamos passar sem ele, um amigo sempre pronto a escutar-nos, para brincar e para o acarinharmos. E, sabes?, h dias, quando eu estava triste por ter feito mal o meu trabalho, o Rex pareceu adivinhar e lambeu-me insistentemente quando fui v-lo.- Bem... todos os ces so assim - declarou Daniel.- Esto sempre do nosso lado, compreendes?, como as nossas mes. Fica ento combinado. Amanh virei trazer-lhe o comer, mas tu lev-lo-s a passear. Muito obrigado!Para as crianas era um verdadeiro prazer sarem com Rex. A av esteve mais inquisitorial que nunca quando os netos lhe participaram que iam sair juntos para um passeio. Chegou at a propor-lhes acompanh-los e ficou extremamente contrariada- 73 -quando os pequenos objectaram dizendo porque vamos demasiado longe para a avozinha.Partiram quando verificaram que ningum da casa os poderia surpreender. Ento puseram uma coleira no Rex at chegarem ao campo. S a o libertaram. Ele: correu loucamente e, por momentos de ansiedade, as crianas temeram que no regressasse.- No ir tentar fugir para junto do Daniel? - perguntou Clara.Rex! Aqui!, ordenou Francisco.O obediente animal regressou imediatamente, deteve-se junto do rapaz, com o focinho quase a tocar-lhe os calcanhares, lembrando-lhe Salto, o co imaginrio de outrora.Francisco troou de si prprio:Como fui pateta! Era todavia melhor que nada, ainda que no passasse de um co invisvel. Aqui, Rex! Busca aquele pau!Passaram momentos maravilhosos na companhia do Rex. Ao regressarem para a merenda, todos se sentiam fatigados. Rex, com fundo suspiro, deixou-se cair pesadamente na palha e acomodou junto dos ps a sedosa cabea, distendidas as longas orelhas.Sinto-me tambm como tu, Rex: estafado!, confessou Alexandre. Estou terrivelmente esfomeado. Oxal a av no faa demasiadas perguntas a respeito do nosso passeio. Tenho medo de descair-me e confessar alguma coisa a teu respeito!- 74 -- No caias nessa! - ameaou Clara, horrorizada. - Apanharias por debaixo da mesa o maior pontap que recebeste em toda a tua vida!Daniel surgiu, radiante, no dia seguinte :- Ento, ele gostou do passeio? Est a dizer que sim! Olhem, eu trouxe-lhes uma coisa, comprada com dinheiro do meu mealheiro. No querem receber pagamento por cuidarem do Rex, mas eu tenho de retribuir de qualquer forma!Mostrou uma caixa de rebuados.- 75 -- Oh, que amabilidade! - exclamou Clara. - Mas ns queremos cuidar do Rex por estima, no por pagamento.- V, aceitem - insistiu o rapaz. - A minha me afirmou que eu devo trazer-lhes rebuados todas as semanas se insistirem em que no devo pagar.- Nesse caso, concordamos em aceitar esta semana, muito agradecidos - disse Francisco. - Mas s por esta vez, combinado? Ns queremos aloj-lo desinteressadamente no s para praticarmos uma boa aco, mas tambm porque todos gostamos do Rex.- Nunca vi amigos como vocs - louvou Daniel. - Fazerem qualquer coisa sem esperarem recompensa! A maioria das pessoas aceita tudo. Bem, estou contente por terem aceitado os rebuados. So os melhores que pude comprar. No dem nenhuns ao Rex, por favor. Tem uns lindos dentes e no desejo que se lhes estraguem.- As coisas caminham lindamente - alegrou-se Francisco. - Muito bem, na verdade. A av deixou de fazer-nos perguntas quando desaparecemos e creio que o nosso segredo nunca vir a ser desvendado.Palavras um tanto prematuras... Porque na semana imediata o segredo foi descoberto.- 76 -Capitulo V - UM POUCO DE SORTE.Foi a av quem primeiro soube da existncia do Rex. Aconteceu por causa do sr. Negro, que, como era seu hbito, fora naquele dia tentar caar pssaros. Como sempre, mal ele se aproximava um pouco mais, o cobiado pssaro voava imediatamente, pousava em qualquer ramo e dali troava-o impiedosamente.O Sr. Negro no gostava disso, mas, por fatalidade, no era bom caador e a corpulncia e o peso, que lhe dificultavam a corrida, tornavam-no alvo excelente para olhos vigilantes. Os pssaros, ao v-lo surgir no jardim, irrompiam em coro clamoroso:Cuidado, incauto! A vem o gato!, cantava o tordo.Cautela, cautela! L vem a fera!, esganiava-se o melro.Fugi, fugi! Ele est ali!, avisava do ninho o melharuco azul.Certo dia - estavam as crianas na escola - o Sr. Negro disps-se mais uma vez a ir caar pssaros. Ao lobrigar gordo melro ocultou-se prudentemente atrs de uns arbustos, procurando no pisar ramo ou folha cada. Silencioso como um pele-vermelha!- 77 -O melro f-lo executar estranha dana e atraiu-o at s cercanias de Rex. De sbito voou para uma rvore, donde se ps a chamar to feios nomes ao Sr. Negro que o gato no pde suportar mais. Saltou para a rvore, o mais alto que pde, em perseguio da descarada ave.O melro esquivou-se. Voou para longe. O Sr. Negro sentou-se num ramo e comeou a lavar-se. Fazia-o sempre que pssaro ou rato lhe levavam a melhor, para demonstrar, simplesmente, que no se importava.Ouviu um rudo em baixo e olhou para averiguar a causa. O que descobriu f-lo duplicar de volume e a pelica da sua cauda avolumou tambm. Adquiriu a aparncia de terrfica viso.O que viu foi Rex, o spaniel, deitado, meio adormecido, ao sol. Um co! Um co nos domnios privados do Sr. Negro! Que ousadia!O Sr. Negro agitou-se e pateou. Rex acordou em sobressalto. Canes e vozes de pssaros nunca o perturbavam, mas o inslito rumor despertara-o imediatamente.Ergueu-se e olhou em redor a rosnar. O Sr. Negro pateou novamente e Rex levantou os olhos. Ficou estupefacto ao ver to enorme e negra criatura na rvore mesmo por cima do seu canil. Aquilo era um gato? Nunca antes vira um to grande.Rosnou outra vez. O Sr. Negro soprou. No se atrevia a descer, porque no podia prever as intenes do spaniel. Temia que aquele co o despedaasse.Assim, o gato permaneceu onde estava, a bufar e a silvar. E Rex mais e mais se enervava, correndo em volta da sua priso a tentar descobrir sada, donde pudesse alar-se para o tronco prximo.Esqueceu-se de que no devia ladrar. Soltou pequeno latido e depois um mais sonoro. Ento ficou to excitado que prosseguiu. O Sr. Negro decidiu que, se fosse necessrio, preferiria passar trs semanas no local a enfrentar aquele feroz co.A av estava sozinha em casa. De incio no se apercebeu dos latidos. Mas, quando eles prosseguiram, cada vez mais fortes, mais excitados, ergueu-se e franziu o cenho.Que ladrar ser este?, perguntou para si. Que horrvel barulho! Quem ser o dono do co que ladra desta maneira? Sinceramente, devo fazer queixa. E onde estar o Sr. Negro? Em geral, vem de tropel ao ouvir um co ladrar. Sr. Negro! Sr. Negro, onde ests?Mas o gato estava no alto do velho carvalho e de l no descia. A av chamou e tornou a chamar e entretanto continuava a ouvir Rex ladrar loucamente.Oh! Espero que no seja ao Sr. Negro que ele est a ladrar, receou, de sbito. Tenho de ir ver.Saiu, portanto, para o jardim, na direco do local donde provinha o barulho, onde, evidentemente, se lhe deparou a casota e Rex a ladrar ferozmente. A princpio no viu o gato. Ficara to atnita ao descobrir um co, numa pequena cerca com uma casota, que s tinha olhos para aquele espectculo.- 78 - 79 -Um co!, murmurou. Um co alojado aqui! Eis porque os pequenos desapareciam nos ltimos tempos. Que extraordinrio! Onde o teriam adquirido? E porque guardaram segredo?Rex viu a av. Deixou de ladrar e olhou-a. Correu para a vedao, onde se encostou, de patas a empurrar o arame. Ganiu. Sentiu que aquela idosa senhora amava os animais.Ela ergueu a mo por sobre a cerca e acariciou-lhe a sedosa cabea.Que lindos olhos tens!, disse. Olhos de autntico spaniel, meigos e suplicantes! Que fazes... aqui?o, o!, respondeu Rex e abanou a cauda.Como poderei entrar na cerca?, cismou a av. No h porta. Suponho que as crianas pulam para dentro. Pois bem, tentarei transp-la de qualquer maneira.Nesse preciso momento avistou o Sr. Negro, e ouviu-o tambm, porque ele miou lamentosamente, assustando-a.Oh, ests ento a!, disse, olhando para a rvore. Andaste a perseguir pssaros e vieste atnto deste co. Podes descer. No te molesta.A av encontrou processo de transpor o arame e de entrar. Rex estreitou-se de encontro a ela como se fosse uma velha e saudosa amiga. Lambia-a e saltava-lhe em redor a ganir.Quem tal visse diria ser aquele o co da av!s um belo co, elogiou ela, afagando-o. J h muito tempo que no tenho um co. Bem, bem, custa-me a acreditar. Pertences s crianas?o, o!, fez Rex e deitou-se de costas, para ser acariciado.No preciso momento em que a av se inclinava para ele e amim-lo, fazendo-o revolver-se de satisfao, os pequenos regressavam a casa. Fizeram como sempre: correram a certificar-se de que Rex estava bem.E, por Deus! ali estava a av, dentro da pequena cerca, debruada sobre o Rex, a fazer-lhe festas e a falar-lhe. A av! Estacaram surpreendidos. Rex ouviu-os e saltou, correu para a vedao, a saud-los.- 80 -- Avozinha! - exclamou Clara! - Oh, minha av! Descobriu o Rex!- Descobri - confessou ela, parecendo um tanto culpada. - Ele ladrou ao Sr. Negro, que est ali em cima, na rvore, e eu vim ver o que havia. De quem este co? Vosso?- Avozinha, ficou aborrecida? - perguntou Alexandre, pulando por cima da cerca. - Era um segredo nosso. No lho contmos porque julgmos que no queria mais ces depois de se ter separado do seu Tambor; no dissemos me porque pensmos que ela no gostaria de um co a incomod-la e a sujar com as patas enlameadas o soalho. E no quisemos contar ao pai porque poderia aborrecer-se.- Compreendo - retorquiu a av. - Compreendo perfeitamente. Mas donde veio este co? Ainda no mo explicaram. vosso?Ento tudo foi esclarecido. Clara e Francisco contaram o sucedido, enquanto Rex e Alexandre brincavam um com o outro e escutavam.- Avozinha, querida avozinha, por favor, guarde o nosso segredo - suplicou Clara calorosamente, aps ter concludo o relato. - Compreende como isso importante para o Daniel? Ele ama o Rex, como a av amava o Tambor.- Mas a vossa me talvez no se importe - principiou a av. Nesse momento, olhando as crianas, baixou a cabea. - Muito bem. No faam essa cara. Sei que somente para evitar preocup-la e aborrec-la que guardam segredo.- 81 -Estejam descansados. No os denunciarei.Quase perdeu o equilbrio assaltada pelas trs agradecidas crianas e por Rex, entusiasmado com a repentina excitao dos amigos.A av comeou a rir.- Oh, larguem-me! Esmagam-me! Prometo-lhes o seguinte: desde que o Rex seja feliz e no faa barulho, guardarei o vosso segredo. Mas suponham que a vossa me desce, um dia, at este recanto do jardim e o descobre por si prpria?- A me nunca aqui vem - observou Alexandre. - Diz que no gosta deste lugar, que est muito descuidado.Tanto como os netos, a av estava entusiasmada com Rex. Ia visit-lo quando eles estavam na escola. Comprou-lhe um grande osso, que ele roeu, nas profundezas da casota, s ocultas do Sr. Negro, que o enervava tanto que se ele, Rex, no fosse um co bem ensinado havia de despeda-lo!A Daniel no agradou muito que a av tivesse tomado conhecimento do assunto nem gostou que ela oferecesse ossos!- Quero eu aliment-lo! - protestou. - A sua palha vai ficar cheia de ossos! E quem o escovou? Eu fao isso, bem sabem.- Bem, todos ns o penteamos agora - confessou Clara. - to agradvel pente-lo e o Rex gosta tanto... A av comprou-lhe ontem uma escova, uma bela escova rija, que ele adora.- 82 - 83 -- Havias de ouvir o Alexandre enquanto o escova - interveio Francisco, com uma repentina risada. - Assobia todo o tempo, como se estivesse a tratar de um cavalo! Assobia e assobia, mas no se percebe o qu.- No verdade - replicou Alexandre. - Vocs so maldosos quando se trata do meu assobio.- Vocs acreditam que o Rex est a salvo, agora que a vossa av o descobriu? - inquietou-se Daniel. - As pessoas crescidas s vezes so pouco discretas, sabem?- Oh, sim, est bastante seguro. A me nunca suspeitar - afirmou Clara. - Repito que nunca aqui vem. A av prometeu no contar e ela cumpre sempre a sua palavra, sempre.A me das crianas cogitava, todavia, nas constantes ausncias da av. J se acostumara a que as crianas desaparec