(Hebeche) Não pense, veja - sobre a noção de semelhança de familia de Wittgenstein

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  • 7/22/2019 (Hebeche) No pense, veja - sobre a noo de semelhana de familia de Wittgenstein

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    "No pense, veja!"

    Sobre a noo de "semelhanas de famlia" em Wittgenstein

    Luiz Hebeche*

    Resumo:Neste artigo mostraremos a relevncia da noo de semelhanas de famlia naestratgia de Wittgenstein para eliminar a tendncia ao essencialismo, mostrando-a comouma iluso gramatical. Ele convida o leitor das Investigaes Filosficas para queprocure ver e no pensar, pois o pensamento filosfico tende a hipostasiar-se ementidades metafsicas, que surgem da nossa "nsia de generalidade". A noosemelhanas de famlia serve como terapia ocultao da execuo da linguagem emconceitos universais e abstratos.

    Palavras-chave: Wittgenstein, semelhanas de famlia, essencialismo.

    Abstract: This article aims at showing the bearing of the notion of family resemblance onWittgenstein's strategy to impugn our bias to essentialism, by charaterizing such a bias asa grammatical illusion. He invites the reader of the Philosophical Investigations to try tosee rather than to think, for philosophical thought inevitably tends to hipostasizemethaphysical entities that stem from our urge to "generality". Hence, the notion of familyresemblance functions as a therapeutic device to stop us from resorting to universal andabstract concepts.

    Key-words: Wittgenstein, family resemblance, essentialism.

    *Departamento de Filosofia - UFSC

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    Umideal de exatido no est previsto(PU 88).

    A noo de semelhanas de famlia introduzida no 65 das Investigaes Filosficas(PU), onde Wittgenstein, colocando-se no ponto de vista de um interlocutor imaginrio,afirma:

    Aqui encontramos a grande questo que est por trs de todas essasconsideraes. Pois poderiam objetar-me: "Voc simplifica tudo! Voc fala de todas asespcies de jogos de linguagem possveis, mas em nenhum momento disse que o que essencial do jogo de linguagem, e portanto da prpria linguagem. O que comum a todosesses processos e os torna linguagem ou partes da linguagem. Voc se dispensa poisjustamente da parte dainvestigao que outrora lhe proporcionara as maiores dores decabea, isto , quela concernente forma geral da proposio e da linguagem.

    E isso verdade. - Em vez de salientar (anzugeben) algo que comum a tudoaquilo que chamamos de linguagem, digo que no h uma coisa comum a essesfenmenos, em virtude da qual empregamos para todos a mesma palavra, - mas sim queesto aparentados (verwandt) uns com os outros de muitos modos diferentes. E por causadesse parentesco ou desses parentescos, chamamo-los todos de "linguagens". Tentareielucidar isso.

    Wittgenstein vai de encontro noo de algo em comum, essncia, universalidadeou generalidade. Essa posio metafsica concebe a humanidade do homem, a cadeiridadeda cadeira, a mesidade da mesa, a cachorridade do cachorro, enfim, a qididade da coisa.Na sua obra juvenil o "algo comum" encontrava-se na concepo da forma geral daproposio. Mas aquilo que lhe dera as maiores dores de cabea agora ser dispensadocomo uma iluso gramatical, pois no h nada que possa ser comum linguagem, poissequer se pode falar sobre a linguagem. No h algo como "a" linguagem, "o" mundo, "a"proposio, "a" realidade, "o" pensamento. Tambm na obra juvenil, as proposiesfilosficas (do TLP, por ex.) so contra-sensos. No entanto, a concepo de que a essnciada proposio coincide com a essncia da realidade1j no pode ser sustentada, pois noh nada em comum nem na linguagem, nem na realidade e nem entre a linguagem e arealidade. A intencionalidade - a conexo entre a linguagem e a realidade - no envolveum terceiro elemento ou processo que possa afirmar coisas do tipo: "a essncia daproposio coincide com a essncia da realidade". A noo de "essncia da proposio" uma iluso herdada da metafsica grega, como se a linguagem tivesse algo prprio ou

    1A forma proposicional geral a essncia da proposio(TLP 5.471). Tractatus logico-philosophicusserabreviado como TLP.Especificar a essncia da proposio significa especificar a essncia de toda a descrio e, portanto, a

    essncia do mundo(TLP 5.4711).

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    comum, independente da realidade. Ora, a forma geral da proposio o mesmo que aforma da linguagem e esta coincide com a essncia do mundo. Desse modo, encontrar aforma geral da proposio encontrar a essncia da realidade ou do mundo. Porm, "asmaiores dores de cabea" foram afastadas a medida que se desfizeram as ilusesgramaticais que as originaram. E isso torna-se possvel quando se passa a entender que o

    essencialismo uma iluso a respeito do funcionamento da linguagem. A noo de formageral da proposio um dogmatismo que se origina no anseio por alcanar um ponto devista externo execuo lingstica. A "dor de cabea" surge da "nossa nsia degeneralidade". Isto , em vez de descrever o modo "como" funciona a linguagem tenta-seresponder pelo "que" constitui as coisas, o que a linguagem, o que o pensamento, etc.O "que" a essncia que Wittgenstein ocupa-se em afastar, ou seja, o "algo comum" queestaria subjacente (e a fortioriseria o fundamento oculto) ao pensamento, linguagem eao mundo. E mais ainda, a iluso de que haveria algo de comum entre o pensamento, alinguagem e o mundo. A iluso gramatical est no anseio por um ideal de perfeio que seencontraria no mito intelectualista de que um pensamento correto expresso por umalinguagem perfeita e que, com isso, se alcanaria a essncia do mundo2. A noo de queh "algo em comum" a esses conceitos e que lhe permitiu, anteriormente, conectar aessncia da proposio com a essncia do mundo cede lugar agora para a noo de"semelhanas de famlia". A essncia oculta desses conceitos substituda pelos seus usosna linguagem. O seus significados no remetem para alm da sua execuo efetiva nalinguagem. A vivncia da significao das palavras geralmente expressa um certoparentesco que elas tem entre si. Parentesco aqui quer dizer: proximidade de funes daspalavras na linguagem. O significado de uma palavra no um objeto especfico que lhecorresponde, mas o aglomerado-de-usos-afins que ela tem na linguagem. Ou seja, pode-sefalar de "mundo dos gregos", "mundo de So Paulo", "mundo dos qumicos", "mundo dosapicultores", etc.; tambm pode-se falar da "linguagem dos enxadristas", "linguagem dosromnticos", "linguagem dos computadores", "linguagem dos matemticos", etc. Um dosexemplos que Wittgenstein recorre para desenvolver a crtica ao essencialismo o queordinariamente chamamos de "jogos". Ele convida o leitor dasInvestigaes Filosficasaque "no pense, mas veja", isto , de que, para levar adiante seu objetivo, tem-se de evitaro "que", ou seja, evitar a inclinao por "dar razes", e, portanto, a de recolocar a perguntasocrtica: "o que isto?". A gramtica nada explica, apenas descreve. E ao descreverdiferentes jogos como os de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios esportivos, etc. no seest procura do que haveria de comum entre eles, mas apenas descrevendo os "jogos"com as suas diferentes prticas e as suas diferentes regras. Wittgenstein procura mostrarque eles no se chamam "jogos" por terem algo em comum.

    A rejeio do modelo explicativo pode ser encontrada na distino gramatical entreos conceitos "conhecer", "explicar", "compreender" e "definir". "Definir" e "conhecer"no determinam a compreenso de uma sentena. Ou melhor, a compreenso de umasentena ou de uma palavra no est assegurada por explicaes e definies. As

    2Respondendo a esse otimismo ontolgico Wittgenstein afirma: particular iluso de que se fala aqui vm-se juntar outras, de diferentes lados. O pensamento, a linguagem, aparecem-nos como o nico (einzigertige)correlato, imagem (Bild) do mundo. Os conceitos: proposio, linguagem, pensamento, mundo esto numasrie uns depois dos outros, cada um eqivalendo ao outro. (Para que, porm, so empregadas (brauchen)essas palavras? Falta o jogo de linguagem na qual elas so empregadas. (PU 96)

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    distines gramaticais entres os conceitos visam eliminar a tendncia socrtica deencontrar o "algo comum" ou a "essncia" dos componentes de uma sentena, como a doexemplo do 70 das PU, "O solo est inteiramente coberto de plantas". Ora, no se tratade conhecer o "que", mas de dominar a tcnica de "como" so eles usados na linguagem,isto , se trata de dominar as funes das palavras na linguagem e no o que constitui a

    essncia dos seus constituintes. Para compreender essa sentena no necessrio conhecero que uma "planta", ou o que "solo", etc. Com a rejeio do modelo socrtico, quepretende definir claramente cada palavra, afasta-se tambm a concepo analtica dalinguagem. Isto , a concepo de que a compreenso de uma sentena s efetiva quandose define com clareza os seus constituintes. Enfim, a iluso gramatical est no projeto deeliminar a ambigidade e impreciso da linguagem ordinria. Para Baker e Hacker, naseo 70 encontra-se algo mais em questo que precisa ser melhor explicitado. Essaexplicitao diz respeito crtica de Wittgenstein do modelo agostiniano da linguagem,que se encontra ao longo das PU em sees como:

    ... a compreenso no um processo mental(PU 154)

    ... a aplicao permanece o critrio da compreenso(PU 146). Etc.

    a partir dessa posio que se pode destrinchar a complexa (e confusa) gramticados conceitos que tendem a assumir um vis teortico, ou seja, tendem a assumir aconcepo de que para compreender palavras ou sentenas depende da sua definio ou doseu conhecimento, isto , no exemplo acima, o que "jogo"?, o que "planta"?, etc. Eassim a compreenso da frase "O solo est coberto de plantas" dependeria da definiodos seus constituintes. E esse esclarecimento levaria ao que comum a cada um deles, aessncia de "solo", a essncia de "planta", etc.

    Um outro problema o que diz respeito possibilidade da conexo entre conhecero que significa "planta" e ser capaz de explicar ou dizer o que ela significa. Mas entouma nvoa envolve os conceitos de "definir", "explicar" e "compreender", pois,diferentemente de Frege que estabelece um contraste entre "definio" e "explicao", emWittgenstein, a gramtica da definio se assemelha a de explicao. Na seo 69 das PUa palavra "jogo" pode ser "explicada", e, nessa passagem, o que se trata de refutar anoo de que no se pode "compreender" essa palavra se, antes, no se poder "defini-la".Mas Wittgenstein sustenta que no a definio, mas a explicao o "correlato" dacompreenso, ou seja, de que ter a habilidade para explicaro que significa isto ou aquilo(isto , ser capaz de responder "o que quer dizer (mean) isto?") o critrio dacompreenso de uma palavra, mas no ser capaz de defini-la no critrio para nocompreend-la3. Mas a habilidade de explicar o significado de uma palavra noreintroduziria o modelo socrtico-platnico? Ora, a gramtica das palavras em que sedistingue entre "compreender" e "definir" que permite afastar o socratismo. Alis, nostextos preparatrios das PU, Wittgenstein faz um breve comentrio a uma passagem de

    3Baker G. P. e Hacker P. M. S., An Analytical Commentary on Wittgenstein's Philosophical Investigations,Oxford: Basil Blackwell , 1983, p. 141. O dilogo tende objetivao, por isso a mxima realizao daobjetividade a dialtica platnica.

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    Plato4em que Scrates afirma: Tu o conheces e podes falar grego, portanto tu deves terhabilidade para diz-lo. Scrates ento distingue entre "conhecer" e "ter habilidade paradizer". E Wittgenstein chama a ateno para a inferncia errnea de quem no capaz de"definir", ou seja, saber o que "justia", "piedade", "coragem", "virtude", etc. no estariaefetivamente em condies de falar delas. Sem estar assegurado no conhecimento o

    discurso seria flatus voicis. Para o platonismo compreender basicamente conhecer, oumelhor, definir. Na medida que o filsofo pode definir o que isto ou aquilo que podercompreender. A compreenso est delimitada pela definio. A dialtica platnica - comonos mostrou Aubenque5 - distinta do modo peculiar como os antigos gregos aconcebiam. A dialtica platnica, para Aubenque, suprime a abertura do dilogo. MasWittgenstein vai mais longe, o dilogo tende a encobrir a sua origem, isto , a antecipaoda compreenso. O dilogo origina-se na compreenso. Compreenso execuo. Nacompreenso, o dilogo permanece aberto. A compreenso no coincide com o dilogo.Sem compreenso prvia no h dilogo. Por isso, na compreenso permanece-se emsuspenso6. No entanto, Plato restringe a compreenso dialtica objetivadora. Oumelhor, ao priorizar-se a explicao e a definio acaba-se distorcendo o conceito decompreenso. Portanto, o erro de Plato est em que a "habilidade para dizer" deve serlegitimada pela "habilidade para definir"7. Esses autores nos lembram que Wittgensteinpretende mostrar que o intil aqui a "definio", no "explicao" e a "compreenso",pois estas dizem respeito ao modo como as palavras so usadas na linguagem. Esse ocaso da sentena "O solo est coberto de plantas", cuja compreenso, como vimos,dependeria da definio de seus constituintes "solo", "cobrir", "planta", etc. Ora, o critriopara a compreenso dessa sentena no depende da definio desses conceitos. Adefinio pretende eliminar a vagueza da linguagem. Mas a compreenso vaga, isto , agramtica da compreenso no depende de uma garantia estabelecida pela definio. Acompreenso autnoma. A "essncia" da compreenso est na gramtica e, portanto, nodiz respeito a nenhuma essncia comum externa execuo da linguagem.

    A definio retm o "algo comum" das palavras, e, com isso, distorce o conceitode compreenso. E esse tambm o caso do conceito de "jogo". O jogo de linguagem doconceito "jogo" no depende da essncia que seria subjacente ao uso dessa palavra emseus diversos contextos, pois esse conceito tampouco tem contornos precisos. No 71continua Wittgenstein contrapondo-se a Frege - e a nosso ver a toda tradio ontoteolgica- perguntando se um conceito impreciso realmente um conceito. A tradio socrticaprolonga-se at Frege quando este, metaforicamente, compara o conceito com um distrito.Numa cincia rigorosa esse "distrito" teria os contornos precisos; portanto, no haverialugar para uma compreenso imprecisa como ocorre com as artes e as humanidades.Nessas reas do conhecimento falta o rigor da lgica. E a lgica trata da verdade. E, nessencleo duro, os conceitos, como distritos, tem de ter os limites precisos o que no ocorrenas reas mais "moles" do conhecimento: as cincias humanas. No entanto, Wittgenstein,

    4Segundo Baker e Hacker possivelmente se trata de Crmides159a. Porm, essa informao no procede.5 "Para Plato era a dialtica enquanto tal ontologia". Ver Pierre Aubenque, El problema del ser enAristteles, Taurus Ediciones, Madrid, 1974, p. 248.6Para Backer e Hacker: "Nenhuma forma de explicao, nem mesmo de definio, garante a compreenso.Qualquer explicao pode ser no ser compreendida (misunderstood)". Op. cit, p. 145.7op. cit, p. 142.

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    para destacar o conceito de compreenso toma uma posio oposta a Frege e afirma avantagem da vagueza e da impreciso. Com isso, a posio de Frege tomada como umarestrio da compreenso, isto , a compreenso tomada como explicao ou definio.Porm, uma fotografia pouco ntida tambm uma imagem de uma pessoa. Por vezes,essa falta de nitidez pode ser til. A posio dogmtica de Frege sobre a verdade lgica

    descarta a falta de preciso. A sentena assertrica central para Frege, mas adeterminao de seu sentido vincula-se sempre aos seus valores de verdade. Ou seja, asentena assertrica ou verdadeira ou falsa. Conceitos que completam sentenas como:"A porta ...", "O carro ...", "O nmero de planetas ...", etc. no podem ser mais oumenos verdadeiros ou mais ou menos falsos8. O conceito tem de ser como um distritopreciso, nitidamente delimitado. Essa comparao, porm, no convincente paraWittgenstein, pois, por exemplo, quem mora em Porto Alegre no distrito ou bairroPetrpolis dificilmente poder traar uma linha precisa que o delimitam dos bairros SantaCeclia ou Bela Vista. E que sentido teria traar um limite preciso aqui? Em que issoauxiliaria um turista a chegar a tal ou qual ponto? Aqui uma delimitao precisa intil,apenas pode-se apontar para certos trechos, marcos ou detalhes que podero orientar oturista. Do mesmo modo, explica-se o que um jogo. A explicao (erklrt) feita a partirde exemplos. Com isso, a sublimidade da lgica cede ento lugar a um mtodo mais"grosseiro" ou "rudimentar". O recurso a exemplos no para que se possa ver o "algocomum", que no se poderia explicar de outro modo. Ou seja, o emprego de exemplos nose deve dificuldade em exprimir esse "algo comum", pois esse recurso caracterizadopelo seu modo de emprego para determinadas finalidades como a de explicar o jogo delinguagem da palavra "jogo". Diz Wittgenstein: "A exemplificao no aqui um meioindireto de elucidao, - na falta de outro melhor"9. O mtodo rigoroso da lgica substitudo por outro mtodo, constitudo pela habilidade em dar exemplos. Essa oposio reforada explicitamente: "... mas me interesso por aquilo que se tornou impuro" (PU 100). Mas exemplos no so asneira ou meros truques; ao contrrio, so alternativas aomonismo filosfico, pois

    No h um mtodo em filosofia, mas diferentes mtodos, como diferentes terapias(PU 133).

    8No artigo Sobre o Sentido e a Referncia, Frege reconhece uma dificuldade no projeto de uma cincia quetenha em vista uma linguagem perfeita. So as "variaes de sentido"; por exemplo, o nome prprio"Aristteles" pode ser entendido como o mestre de Alexandre, ou como aluno de Plato, etc. Para Frege,essas variaes de sentido podem ser toleradas desde que a referncia permanea a mesma. Porm, oconhecimento da referncia parcial, portanto, impreciso. Ou seja, um processo temporal impede oestabelecimento imediato do valor de verdade de uma sentena. Nas suas palavras: "O sentido de um nome

    prprio entendido por todos os que estejam suficientemente familiarizados com a linguagem ou com a

    totalidade de designaes a que ele pertence; isto, porm, elucida a referncia, caso ele tenha uma, mas deuma maneira sempre parcial. Para um conhecimento total da referncia, exigir-se-ia que fossemos capazesde dizer, imediatamente, se um dado sentido pertence ou no a essa referncia. Isto, porm, nuncaconseguiremos". Ou seja, isso compromete sua concepo de que o valor de verdade de uma sentena faa

    parte do "terceiro reino" inamovvel, pois o processo mental de reconhecimento da referncia impede que sepossa apreender imediatamente um pensamento. Ver Frege, Lgica e Filosofia da Linguagem, So Paulo:Cultrix e USP, 1978, p. 63.9"Das Exemplifizieren ist hier nicht ein indirektesMittel der Erklrung, - in Ermanglung eines Bessern"(PU 71).

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    E um dos mtodos alternativos o de dar exemplos, alis, o engano surge quandoum exemplo passa a ser unilateralmente aplicado. Esse o caso do modelo objeto-designao. Ele apenas um modelo entre outros, mas, medida que aceito semcontestao, torna-se uma "doena filosfica" que restringe a gramtica da linguagem.

    A causa principal das doenas filosficas - dieta unilateral: alimenta nossopensamento apenas com uma espcie de exemplos(PU 593).

    O recurso a exemplos faz parte da estratgia para eliminar a "nsia degeneralidade", ou a inclinao por "ver o algo comum" (Das Gemeinsame sehen), ouainda a "preocupao por certeza" (Sorge fr Gewissheit). Foi essa preocupao que levouos filsofos a buscarem apoio em essncias objetivamente concebidas nas coisas externas,na conscincia interna ou num terceiro reino. Para entender melhor essa procura pelaessncia voltemos a tematizar a iluso gramatical que a origina.

    A nsia por "ver algo comum" a tentativa encontrar um critrio seguro para aselucidaes. Ora, o significado de uma palavra seu uso na linguagem. No h critrioexterno. O "ver algo comum" uma ocultao dessa execuo lingstica. Para mostrarisso Wittgenstein recorre a exemplos bastante sutis, pois a iluso de estabilidade surge daprpria linguagem. O modo de emprego das palavras o que decide se o algo comum temefetivamente funes na execuo da linguagem ou se uma iluso essencialista. o casode quando, por exemplo, se mostra a algum diferentes quadros coloridos e se diz: "A corque voc v em todos chama-se ocre". Nesse caso, quem v o quadro pode encontrar algocomum, isto , a cor ocre. Mas as dificuldades (as iluses gramaticais) comeam a surgirquando olha-se para os quadros pintados com diversas figuras em tons de ocre e se diz: "Oque elas tem em comum chama-se 'ocre'". Wittgenstein ainda insiste noutro exemploparecido. Mostra-se modelos com diferentes matizes de azul e, ento, se diz: "A cor que comum a todos chamo de 'azul'". Ou seja, nessas sentenas expressa-se a diferena entre acor comum a vrios quadros ou figuras que se chama de "ocre" ou "azul" e quando essaspalavras so empregadas para referir-se a algo comum. "Ocre" uma palavra que expressauma cor comum a vrios quadros, mas no expressa algo comum que no seja uma cor.Ou melhor, de que "azul" ou "ocre" seja uma entidade ou uma razo de ser desses quadrosou figuras. Nesse caso, passa-se das funes dessas palavras na linguagem para algocomum que est alm delas. O algo comum torna-se ento a razo de ser dessas funes.Mas essa a iluso gramatical que se precisa afastar, pois as regras de uso das palavrasdas cores na linguagem no dependem de explicaes que esto margem de seus usos. Afuno das palavras das cores na linguagem o critrio. A noo do "algo comum"vinculado s palavras "azul" e "ocre", nos exemplos, criam a iluso de um processointermedirio de reconhecimento que daria salvo conduto para o uso dessas palavras. Comisso, o critrio dependeria de uma terceira entidade. o mesmo caso do conceito de"jogo", isto , o engano est na explicao de que esse conceito depende do que essencial a todos os jogos. Ou seja, a diversidade de exemplos ou modelos dependeriamde algo intermedirio que seria comum a esses exemplos. Portanto, uma sentena como"O que elas tem em comum chamo de 'azul'" pode expressar a iluso desse elementointermedirio denominado de "azul", mas essa aplicao da palavra uma distoro doseu uso efetivo, pois nenhuma caracterstica comum pode se interpor ao critriosemntico: o uso das palavras na linguagem. O "ver algo comum" platonismo. Isto , a

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    execuo lingstica passa a depender de justificaes ou de meta-regras. E o platonismo a iluso gramatical originada no modelo objeto-designao. Platonizar justificar. E oplatonismo tem muitas verses. Uma tpica fonte de iluso gramatical o mentalismo. Omentalismo ento uma justificao; ou melhor, o que vem a ser uma cor, uma sabor, umodor, um pensamento, etc., passa a ser garantido por um processo mental. A questo de

    como reconheo que esta cor azul, ou ocre, ou marrom tende a ser respondidainvocando-se uma imagem mental. E esse o mito que nos persegue sempre: "o fantasmadentro da mquina" (G. Ryle)10. O "ver algo comum" concebido tambm a partir dessemito.

    A sentena "A cor que comum a todos chamo de 'azul'" uma iluso gramaticalquando se considera a cor azul como o "comum", isto , como um elemento intermedirioa partir do qual todos os tons dessa cor dependeriam. A elucidao ostensiva da cordependeria de ter-se no esprito (Geist) um correspondente conceito, padro ou modelo. Amente seria uma espcie de mostrurio que se consultaria para certificar-se de que se tratadesta ou daquela cor. A mente como um recipiente constitudo por modelos ou padres.Ou seja, se h diferentes matizes da cor azul porque h um padro de azul que comum.E esse padro - medida - se encontra na mente ou esprito. No entanto, indagaWittgenstein, que cor tem o padro azul no esprito? Se h vrios tons de azul, que modeloseria comum a todos eles? Que processo no esprito resultaria no modelo da cor azul?Teria de ser um azul puro? O mesmo vale para a palavra "cadeira", como se chega a terum modelo de cadeira na mente que seria comum a todas as cadeiras? O mesmo vale paratodas as folhas ou todos os jogos, etc. Em vrias passagens de seu pensamento tardio,Wittgenstein recorre ao exemplo das iluses gramaticais que se originam nas definiesostensivas em que as palavras das cores se referem a objetos. Assim como num mostruriopode-se encontrar um diversidade de cores com suas palavras correspondentes, aelucidao de uma cor envolve ento um processo mental. Isto , como consulto omostrurio na minha mo, posso consultar o "conceito do elucidado no esprito" (PU 73). Nessa concepo, compreender uma elucidao s possvel se se tiver, no esprito,um modelo ou padro de correo. Haveria um mostrurio mental que determinaria o que comum ao verde, ao amarelo, e assim por diante. Um padro de correo retm algocomum ou geral que permite fazer comparaes entre diferentes matizes de cores. E essageneralidade encontra-se no esprito. Haveria ento na mente um padro "folha", "jogo","azul", etc. E mesmo o procedimento de comparar matizes seria uma comparao entrerepresentaes mentais das cores. O uso das palavras das cores teria de obter um salvoconduto de um elemento intermedirio: o mostrurio mental. A execuo da linguagemdependeria de um evento mental. Mas, no exemplo da folha, a questo como se dmentalmente o processo de reconhecimento de um padro ou de um conceito? Como sesolda o conceito de folha com uma certa imagem mental da folha? Nas palavras deWittgenstein:

    Se me mostrarem diferentes folhas e me disserem: "Isto chama-se 'folha'", entoadquiro um conceito da forma de folha, uma imagem (Bild) dela no esprito (Geist). - Masque aspecto tem ento a imagem de uma folha que no mostra uma forma determinada,

    10Ver G. Ryle, The Concept of Mind, Harmondsworth, University of Chicago Press, 1984, p. 18 ss.

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    mas sim 'o que comum a todas as formas de folha'? Que tom de cor tem o 'modelo nomeu esprito' da cor verde? - daquilo que comum a todos os tons de verde? (PU 73).

    No se est rejeitando a noo de modelo ou de esquema, mas apenas a concepode que esse modelo, padro ou esquema seja uma "forma no esprito", pois pode-se

    continuar indagando: que forma deve ter o modelo da folha verde ou do jogo de xadrez?Essa forma deve ser regular ou irregular? Que forma de tabuleiro deve se ter no esprito?E a forma das peas do jogo? Do mesmo modo, pode-se determinar arbitrariamente umcerto tom forte de azul e consider-lo como o "azul puro", isto , consider-lo como opadro a partir do qual se pode comparar as tonalidades das cores. Esse esquema, porm,no um "padro geral" (allgemeine Muster) que esteja parte do efetivo emprego dessemodelo de comparao. Portanto, o esquema da folha ou da cor azul, ou do jogo, no ,neste caso, o "algo comum" que tem certas caractersticas especiais, mas apenas o modocomo usado. O esquema ou modelo no uma forma mental, mas o domnio de umatcnica: um modo de apresentao11. E esse domnio tcnico dos modelos publicamentepartilhado. O engano est em conceber esse modelo como algo geral com propriedadesespeciais e inefveis, destacado dos seus usos efetivos. E esses modelos estabelecem ossignificados das palavras "folha", "azul", "jogo", etc. Diferentes exemplos so diferentesmodelos de interpretao ou formas de apresentao. As disputas filosficas so conflitosentre diferentes meios de apresentao. O "essencialismo" a tentativa de por um fim aesses conflitos numa forma de apresentao nica: o modelo objeto-designao. Portanto,"ver uma folha em geral", ou "ver uma cor comum" cede lugar para o modo como algo visto, pois pode-se ver deste ou daquele modo. V-se, porm, segundo um modelo. Porexemplo, quem v o desenho de um cubo como uma figura plana, v um quadrado e umlosango. Quem v, porm, um cubo como uma amostra espacial o v de maneira diferente(PU 74). Diferentes modelos so diferentes modos de ver. O desenho esquemtico no o "algo comum" a uma diversidade de desenhos, mas apenas um desenho empregado deum certo modo, com tais ou quais objetivos. Com isso, pode-se entender que o significadoda palavra "ver" o domnio de tcnicas. Os diferentes tons de cores o domnio detcnicas sutis das palavras das cores, a vivncia da significao das palavras, ou melhor, assemelhanas de famlia.

    * * *

    Explicitar o que j est explcito pleonasmo. No se pode responder o que coragem, virtude, justia ou, nos exemplos acima, folha, verde ou jogo sem que j no sedomine o significado dessas palavras na linguagem. Essa volta ao "solo spero", porm,envolve ainda algumas dificuldades. Poder-se-ia dizer que j se sabe de antemo o que um jogo. Mas isso no seria outra vez socratismo? No se estaria todavia assegurando

    11 Em La Viena de Wittgenstein, Madrid: Taurus Ediciones, A. Janik e S. Toulmin mostraram comoWittgenstein, desde suas primeiras obras, recorre ao conceito de modelo ou modo de apresentao(Darstellung). Essa concepo foi primeiramente adotada, a partir da fsica, por Hertz e Boltzmann, pp.209,230, 231.

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    algum tipo de conhecimento prvio? Essas dificuldades tornam relevante a questo sobre"o que significa saber (wissen) o que um jogo" (PU 75). E ainda: muitas vezes se sabe,mas no se pode dizer o que se sabe. Ou seja, no consigo dizer o que sei. Essasdificuldades persistem na esteira do socratismo: uns no sabem porque no podem definirou justificar o que dizem, enquanto que outros sabem, mas no conseguem dizer o que

    sabem. Isso levou Plato ao solipsismo da alma que dialoga silenciosamente consigomesma. Idias, definies, a sublimidade de um saber que j no pode ser expresso semuma "queda" no mundo impreciso da execuo lingstica. O saber ento um processomental inefvel que tem dificuldade de pegar carona na execuo da linguagem. Emqualquer dos casos, "saber o que significa x ou y" expressa a nsia de generalidade, isto ,a nsia pela determinao do sentido atravs de um processo mental extra-lingstico.Desse modo, perguntas como "o que jogo?", "o que planta?", "o que verde?" pareceenvolver um reconhecimento que se encontra fora do uso das palavras na linguagem, isto, de que a resposta a essas perguntas resultaria numa definio que, a sim, autorizaria suaexplicao. E essa iluso gramatical que agora precisa ser desfeita. Para isso, importante novamente retomar o significado do conceito de "explicao". Ora, comovimos, a explicao socratismo. Wittgenstein, porm, considera a noo de explicaovinculada a de descrio das palavras na linguagem. A explicao se aproxima dadescrio e mesmo da compreenso; a compreenso do uso da palavra "significao" tema mesma funo de "explicao da significao". A "significao" de uma palavra o queexplica a explicao da significao" (PU 560). Com isso, o conceito de explicao sedistingue dos de definio e de conhecimento12. Estes conceitos tendem a ser associados aprocessos que se situam alm da linguagem ordinria atravs de um processo deuniversalizao semelhante a quem compara manchas de cor fracamente delimitadas dasmanchas rigidamente delineadas; mas Wittgenstein questiona como se poderia compararmanchas nitidamente delineadas das que tem pouca nitidez, pode-se, por exemplo, traarum retngulo de um vermelho esmaecido que pode corresponder a retngulos de umvermelho esmaecido, alis isso pode ser feito ad infinitum. Mas originalmente - na vidacotidiana - as cores em seus mais diversos tons se imiscuem de tal modo que a tentativa deestabelecer limites rgidos seria uma tarefa irrealizvel. As figuras ntidas nunca poderiamdelimitar essa difusa variedade das cores, poderia fazer retngulos, crculos, o desenho deum corao, mas isso no poderia estabelecer limites precisos para as cores cotidianas (PU 77). Ora, assim tambm a linguagem. No h como estabelecer limites precisos para osconceitos. Porm, essa ambigidade conceitual pode ser erroneamente colocada emtermos de diferentes processos mentais em que algum estabelecesse os limites rgidospara um conceito, mas que eu no pudesse reconhec-lo como aquele que eu estabeleceramentalmente, isto , o meu conceito seria apenas aparentado com o do dele (PU 76).Mas a noo de semelhanas de famlia no envolve nenhum processo mental, pois eladepende da execuo pblica da linguagem. Esse "parentesco mental" do mesmo tipodaquele que afasta o meu conceito da sua expresso lingstica pblica. E atravs dessaexpresso Wittgenstein afasta-se da mundo inefvel das verdades eternas de Plato (ou deFrege), pois, ao invs de unificar as palavras em superconceitos filosficos, ele passa

    12Para Baker e Hacker, se no pudssemos distinguir "definio" e "explicao", o 75 seria internamenteincoerente. Ver op. cit., 1983, p. 154. Eles tambm recorrem ao conceito de compreenso, que, como vimos,tambm se distingue de definio ou de conhecimento.

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    apenas a descrever a sua diversidade de usos na linguagem. o caso do conceito de"bom", que em Plato se torna a pedra angular da metafsica, a maior expresso de umsaber inefvel que j nem mesmo pode ser dito. O Scrates do mito da caverna umfilsofo que aps ter acessado ao mundo das Idias tenta regressar para anunciar averdade, mas j no pode ser compreendido neste mundo, pois no tem como transmitir

    sua sabedoria sem rebaix-la uma vez que os outros mortais no tem recursos intelectuaispara ouvi-lo. Por isso, a Idia - o inefvel - est para alm da capacidade de suaexpresso. Esse engano gramatical de Plato no surge, porm, seno do desvio do modocomo as palavras so usadas na linguagem e, portanto, a partir do engano que leva afirmao "sei, mas no consigo dizer", isto , que o que venha a significar "bom" tenhaantes de ser sancionado por definies, que saber o seu significado , antes de mais nada,poder defini-lo com preciso. Ora, os conceitos ticos ou estticos constituem tambm"semelhanas de famlia", pois no h uma definio precisa do que "bom" ou do que "belo". Nesse caso, a tica e a esttica so tambm expresses da "nossa nsia degeneralidade". A diversidade de usos da palavras "bom" (ou "bem") na linguagem tornam-na borrada e opaca, isto , a sua definio nunca suficientemente delimitada. Os usosdessa palavra so tomados a partir dos jogos de linguagem de que participa. Portanto,dependendo do caso, a definio de bem poder ser correta ou incorreta. Assim como oexemplo das manchas de cores que se combinam diferentemente. Assim tambm oconceito de bom: "tudo est certo; e nada est certo" (PU 77). Essa ambigidade originaldos usos da palavra na linguagem no pode ser substituda por uma definio precisa. Osignificado da palavra "bom" est, antes, no modo como se ensina e se apreende a us-lana linguagem. Essa compreenso pblica ambgua da linguagem pode levar a enganos,isto , de que o falante no consegue expressar o seu conhecimento devido a grandeflutuao (schwankende) no significado dessa palavra. Nesse caso, tem-se a inclinao porexplicar o comportamento do falante individual medida que sua confuso se deve flutuao do significado. Nesse caso, a flutuao do significado vinculada a umaconfuso mental que poderia ser afastada quando o falante fosse se tornando ciente dela.Ou seja, a expresso "flutuao entre muitos significados" um engano gramatical se forconsiderada como a incapacidade que tem uma pessoa de no poder dizer - ou definir - oque significa uma palavra, como "bom". Mas, para Wittgenstein, a questo central no aexplicao do comportamento ou da confuso mental, pois toda a confuso mental efetivamente uma confuso gramatical. Ora, se a compreenso nunca um processomental, ento a questo decisiva aqui indagar ao falante: "O que realmente tu queresdizer?" (Meinen)13.

    A confuso gramatical que origina a distino entre o que se sabe e o que se podedizer continua a ser tematizada em PU 78. Nessa seo, encontram-se diferenas sutisque podem nos auxiliar a compreender, ou melhor, a afastar as iluses que envolvem osaber e a execuo lingstica.

    Compare: saber e dizer -quantos metros de altura tem o Monte-Branco -como usada a palavra "jogo" -

    13Ver Baker e Hacker, op. cit., 1983, p.157.

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    como soa um clarinete.Quem se admira de que se possa saber (wissen) algo e no se possa dizer (sagen),pensa talvez num caso como o primeiro. Certamente no pensa num caso como oterceiro.

    A diferena entre o primeiro e o terceiro apenas aparente, pois bvio a atitudede estranheza quando algum sabe que o Monte Branco tem x metros de altura e noconsegue dizer isso, mas j mais fcil aceitar que um msico, que toque clarinete, tenhadificuldades em colocar em palavras o que vem a ser o som de um clarinete. Nessesexemplos, algum tem a posse de um saber e no consegue dize-lo. como se eleretivesse em sua mente palavras ou sons, mas que no conseguisse compartilh-los com osoutros. O engano aqui a concepo agostiniana da linguagem, ou seja, as frasesproferidas ou o som do clarinete so meios de transporte de processos mentais que, em suaorigem, se encontram fora deles. Para Wittgenstein, porm, a compreenso de uma fraseverbal semelhante a de uma frase musical, assim como h cegos para os aspectos daspalavras tambm h surdos para as tonalidades sonoras14. A iluso gramatical a mesma:supor que algum sabe apenas para si o som de um clarinete, ou melhor ainda, que asensao ou o sentimento que ocorre ao ouvir-se uma certa msica seja um evento privadoque causado pela audio. Ao ouvir uma frase musical parece que desperta-se dentro demim um certo sentimento que acompanha a frase. Esse sentimento musical privado umailuso, pois como seria a compreenso de uma frase musical que algum tivesse apenaspara si mesmo? Como se poderia dar conta do modo como algum vivncia em si mesmoo sentimento por uma certa melodia? Ora, aqui tem-se de contornar a noo de que acompreenso musical tambm seja um processo interno, e a linguagem musicaldespertaria em ns sentimentos, emoes ou recordaes. H uma diferena entre acompreenso de uma frase musical e o sentimento que ela possa provocar, s que osentimento no um resultado a que leva a msica; o sentimento ele prprio parte dacompreenso, mas a compreenso no parte do sentimento. No se nega que ossentimentos estejam ausentes quando da audio da msica; o que se rejeita a noo deque a compreenso da frase seja dependente do sentimento, como se o contedo da fraseestivesse fora dela. A msica no , portanto, uma ponte entre o msico e o ouvinte. Amelodia de uma lied de Mahler no uma mensagem entre o mundo interior docompositor e o mundo interior do ouvinte; isto , ela no uma ligao entre instncias margem das frases musicais. O sentido da msica est na msica. Os lamentos da Canoda Terra no dizem respeito a algo externo a essa composio musical, pois no h umterceiro mundo capaz de estender uma ponte entre dois reinos exteriores ocultos. Dessemodo, a frase musical no diferente das sentenas na linguagem verbal. A msica de

    14Diz Wittgenstein: O que chamamos "compreender uma frase" tem, em muitos casos, uma semelhanamuito maior com a compreenso de um tema musical do que nos inclinamos a pensar. Mas no quero dizerque o compreender um tema musical seja mais parecido a uma imagem (picture) que geralmente se tem dacompreenso de uma frase; mas antes que esta imagem errnea, e que compreender uma frase muitomais parecido ao que sucede realmente quando compreendemos uma melodia do que parece primeiravista. Pois compreender uma frase, dizemos, aponta para uma realidade exterior frase, quandodeveramos dizer: "Compreender uma frase significa captar seu contedo, e o contedo da frase est nafrase". The Blue and the Brown Books, Oxford: B. Blackwell, 1992, p. 167.

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    Mahler o domnio de tcnicas apreendidas e desenvolvidas na nossa complicada formade vida.

    A questo de "como soa um clarinete" serve para chamar a ateno para o erro detomar o significado, verbal ou musical, como algo que se refere a algo. Considera-se

    geralmente a msica como uma expresso artstica que nos enternece, alegra, entristece,nos torna melanclicos e tudo isso d a impresso de que a msica carrega uma mensagemmuito especial e sublime, isto , de que a msica transporta um sentido que remete paraalm dela mesma, para uma transcendncia. Tanto num caso como noutro, a msicaserviria como um meio para um fim: desperta nossos sentimentos e aponta para ointangvel. E ento estaramos na iluso agostiniana de que a linguagem um veculo quetransporta uma mensagem. Alcanado seu objetivo, a msica mesma poderia serdispensada.

    Do mesmo modo, a questo do como "usada a palavra 'jogo'" tem de serdistinguida do que "significa saber o que 'jogo'". Ela pode ser resolvida a partir deexemplos de vrios jogos, mas isso parece envolver a dificuldade de traduzir essesexemplos em palavras, ou seja, haveria um processo mental intermedirio capaz de soldaros exemplos com as palavras que os expressariam. Pode-se, como vimos, dar explicaesrecorrendo a exemplos, mas, freqentemente, ocorrem dificuldades de colocar o que seisobre jogos em palavras, isto , tambm nesse caso, sei, mas no posso dizer o que sei, oque sei est margem da sua expresso lingstica. Sei o que "jogo", mas sou incapaz deexplicar o que sei. Esse saber se antecipa ao uso peculiar da palavra "jogo" na linguagem.Do mesmo modo, a anlise lgica da linguagem pretende definir o que jogo, mas essatentativa um procedimento que coloca o definido para alm da execuo lingstica, ouseja, s se pode compreender essa palavra quando se responder de modo preciso pergunta: "o que jogo?". Sem essa resposta no se pode explicar a palavra "jogo". Ora,com isso, abre-se um vazio entre o saber e a sua expresso lingstica. Esse vazio preenchido por uma atividade mental misteriosa. O objetivo de Wittgenstein, porm, eliminar a noo de corpo de significao, ou melhor, de que o "significado de saber o quesignifica a palavra 'jogo'" envolva quaisquer processos extra-lingsticos. O uso da palavra"jogo" uma habilidade na trama da linguagem; e, nessa trama, uma habilidade nunca um estado de coisas.

    Os significados das palavras - seus vrios usos ou funes na linguagem - seantecipam a toda explicao terica. Por isso, nas Investigaes Filosficas, Wittgensteinincita o seu interlocutor para que "No pense, veja!". Isto , para examinar essa execuoda linguagem preciso afastar a lenda intelectualista vinculada ao conceito depensamento. Pois, desde os gregos, pensar dar razes. Ou como afirma Heidegger apropsito de Leibniz: nihil est sine ratione15. A filosofia a razo, pois trata da essnciade todas as coisas. Por isso, antes de pensar a essncia ou a definio da palavra "jogo" preciso "ver" os jogos de tabuleiro, de bola, de cartas, etc.; pois eles no tem nada emcomum que no possa ser visto. O "algo comum" estaria oculto execuo desses jogos e,

    15Ver Heidegger Der Satz vom Grund, , Frankfurt am Main: Vitorio Klostermann, Gesamtausgabe Band10, 1977.

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    nesse caso, no poderia ser visto. Com isso, se pode entender que eles no se chamam"jogos" por terem algo em comum. Esse "algo em comum" surge do mau uso da palavra"jogo". A execuo dessa palavra cede lugar para algo que no tem funo nenhuma nalinguagem. Esse desvio que pretende alcanar a essncia de que fariam parte todos osjogos se expressa em afirmaes errneas como: "Algo deve ser comum a eles, seno no

    se chamariam 'jogos'". A metfora visual contida na palavra de ordem "veja!" empregadapara afastar a tendncia de pensar algo em comum, isto , de ir para trs daquilo que est mostra no simples ato de ver. O convite para que se "veja" pretende afastar a tendnciapara filosofar, isto , a inclinao para encontrar "algo comum"; isto , pensar buscaralgo que est por trs daquilo que aparece. Porm, a posio do Wittgenstein tardio podeser resumida na afirmao: "nada est oculto" (PU 126 e 435)16. O critrio no ajustificao, mas a aplicao. O significado do conceito "jogo" no uma essncia ocultaque precisa ser revelada pela explicao filosfica, mas os diversos usos dessa palavra nalinguagem. Ora, a noo de "semelhanas de famlia" outra metfora que visa substituiro "algo comum" pela apreenso certos aspectos, caractersticas e parentescos entre asatividades expressas no conceito de "jogo". Esse conceito vago. Os parentescos entre osdiversos usos da palavra "jogo". Os usos afins dessa palavra. A metfora das semelhanasde famlia ajuda a mostrar (ver) os domnios de tcnicas afins. Ela pretende, portanto,eliminar o mito do conceito preciso e exato, o mito da linguagem perfeita. O mitoplatnico da teoria das idias permanece no mito fregeano do conceito como um distritoexato. Ou seja, o que Wittgenstein pretende eliminar , como j vimos, a concepo deque um conceito d conta de objetos, isto , de que o que comum a todos esses objetos"caem sob esse conceito"17. Nessa concepo, o conceito "jogo" corretamenteempregado quando as propriedades de todos os jogos caem sob esse conceito: "jogo". Anoo de semelhanas de famlia se contrape a esse dogma filosfico. No se procuramrazes, mas apenas constatar similaridades e diferenas entre, por exemplo, os jogos detabuleiro, com seus mltiplos parentescos. E os jogos de cartas em que muitos dos traoscomuns desaparecem enquanto outros surgem. Tambm nos jogos de bola, muita coisacomum se conserva, mas muitas se perdem. Compare-se o jogo de que xadrez com aamarelinha. Um jogo de xadrez pode ser dramtico, mas nada mais tranqilo que umjogo de amarelinha ou as brincadeiras de roda. E as diferenas entre jogos de esforofsico e os de pacincia. Jogos em grupo e jogos em que algum arremete a bola na parede,etc18. E diz Wittgenstein: "E tal o resultado desta considerao: vemos uma redecomplicada de semelhanas, que se envolvem e se cruzam mutuamente. Semelhanas deconjunto e de pormenor" (PU 66). Ou ainda:

    16E como "nada est oculto", tampouco est a gramtica do pensamento. O pensar tampouco um processooculto. A gramtica do pensar tambm libera as outras palavras como "ver", "jogo", etc. de seus"compromissos ontolgicos". Sobre a gramtica do ver, pensar, representar ver L. Hebeche:O mundo da

    conscincia - ensaio sobre a filosofia da psicologia de L. Wittgenstein.Porto Alegre: Edipuc, 2002.17E a questo bvia : como os objetos podem "cair sob um conceito"? Como podem objetos tornarem-seconceitos?18Baker e Hacker, op. cit, p. 132, chamam a ateno para a diferena entre as palavras "spielen" e "game"que podemos estender para palavra "jogo" em portugus, pois, diferentemente de "jogo" e "game", a palavra"spielen" expressa caractersticas mais amplas e variadas. Por isso, na passagem die Vorgnge , die wir"spiele" nennen ("os processos que chamamos 'jogos'"). "Spiel" usado como acusativo interno de"spielen", por isso qualquer atividade pode ser empregada como jogo, como quando uma criana joga uma

    bola para o alto ou na parede, tambm so chamados "jogos" ("spielen").

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    No posso caracterizar melhor essas semelhanas do que com a expresso

    "semelhanas de famlia"; pois assim se envolvem e se cruzam as diferentes semelhanasque existem entre os membros de uma famlia: estatura, traos fisionmicos, cor dosolhos, o andar, o temperamento, etc., etc. - E digo: os "jogos" formam uma famlia(PU

    67).A noo de semelhanas de famlia expressa diferentes habilidades lingsticas ou

    o domnio de tcnicas afins; com isso, evita-se o recurso a uma "essncia" que, pelopensar, as reunisse sob algo em comum. Ao contrrio v-se certos aspectos, similaridadese aproximaes. Por exemplo, a complexa trama conceitual do mundo da conscincia noest reunida pelo e sob o superconceito de pensamento. O conceito de pensar faz partedessa rede e no a rene sob si. Os superconceitos surgem quando a linguagem opera novazio. Conceitos como "querer", "pensar", "imaginar" tornam-se ento fantasmas mentais,isto , conceitos filosficos. O modo "como" so usados na linguagem substitudo pelo"que", ou seja, passam a fazer parte da questo "o que isto?". As explicaestransformam os conceitos em superconceitos. O objetivo de Wittgenstein , porm,desfazer a iluso explicativa que est vinculada a esses conceitos. E assim as palavras"experincia", "linguagem", "mundo" tem um emprego to singelo como as palavras"lmpada", "mesa", "porta" (PU 97).

    Os superconceitos permanecem numa pretensa "linguagem perfeita", isto , no"ideal de pureza cristalina da lgica". Esse ideal se encontrava na tradio mais prximade Wittgenstein, especialmente na obra de Frege e Russel. Essa tradio preserva a noodo conceito como um distrito preciso, ou seja, de que um conceito retm "o que comum"a diversos objetos. Uma sentena insaturada como: "A porta ..."., torna-se saturada(verdadeira) caso um conjunto de propriedades comuns caem sob um conceito, porexemplo, o conceito "marrom". A diversidade de objetos com tons e caractersticas dessacor esto subsumidas no conceito "marrom". A sentena torna-se ento saturada: "A porta marrom". Ora, essa concepo fregeana de algo comum a vrios objetos que caem sobum conceito o que Wittgenstein rejeita como concepo agostiniana da linguagem. Ouseja, ao rejeitar um dos pilares da lgica contempornea ele tambm refuta oessencialismo em que se forjou a tradio ontoteolgica da metafsica expressa, comovimos, pelo socratismo na pergunta: "o que isto?".

    No entanto, algumas dificuldades parecem surgir quando se considera que apresena ou ausncia de propriedades comuns poderiam ser obtidas pela simplesobservao19. Ora, no se trata de "ver" fisicamente os aspectos dos jogos e tampouco setrata de "conhecer" o que haveria de comum entre eles, mas apenas de descreversimilaridades e distines entre eles. Essa descrio, porm, no de algo que aparece nocampo visual, mas dos usos da palavra "jogo" na linguagem. O significado dessa palavrano resulta de uma observao visual, pois encontra-se na sua execuo na linguagem.

    19 o caso de Baker e Hacker, op. cit., 1983, p.131.

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    "Uma palavra s tem significado na execuo de uma linguagem"20. A metfora visualque acompanha a noo de semelhanas de famlia no pode levar ao engano de que aesteja presente o ato de ver algo. No se trata de "explicar" o que se observa. No h nadaa ser provado ou justificado. Se a tradio ocidental recorreu metfora da viso paraestabelecer os fundamentos do saber, agora a metfora da viso empregada para desfazer

    a iluso gramatical da "nsia por generalidade". Mas, para Wittgenstein, no hdescobertas na gramtica. Por isso, a gramtica limita-se a descrever as funes daspalavras - suas semelhanas - na linguagem. A descrio visa dar conta das sutilezas e dosaspectos das palavras e no a buscar algo que lhes seja comum. O mtodo das cincias um prosseguimento da metafsica socrtico-platnica medida que reduz essa diversidadeda linguagem leis mais comuns ou genricas (PU 69, 70, 71). Mas no se podeexplicar o que j est explicito.

    A noo de "semelhanas de famlia" foi introduzida por Wittgensteinpossivelmente atravs da leitura de "Geometry in the Sensible World" presente no livro"Foundations of Geometry and Induction" (1930) onde o matemtico Jean Nicod introduzessa noo a partir dos dados sensveis. Baker e Hacker21, sucintamente, apresentam opensamento de J. Nicod sobre esse tema:

    a) ele distingue entre semelhana global e as similaridades parciais. O contrasteentre similaridades global e local est presente na discusso dos espaostopolgicos; e a h o equivalente para o contraste entre similaridades em"grande escala" (in the large) e similaridade em "pequena escala" (in thesmall).

    b) Duas coisas podem ser similares em um aspecto mas dissimilar em outro.Consequentemente, acontece que "duas estruturas sobrepostas ou uma trama desimilaridades cruzam-se uma sobre a outra e arranjam o mesmo dado (sensvel)em dois modos diferentes".

    c) Nicod considera que uma relao particular de semelhana parcial pode formaro ncleo de um conjunto de relaes formando uma famlia (une famille) suavolta; isto quer dizer que as relaes de incluso, transgresso e separaoforma uma famlia em torno da "semelhana local".

    Porm, nesse resumo da posio de Nicod encontra-se a inclinao que leva aconceber erroneamente a noo de semelhana de famlia a partir de uma observao domundo sensvel. Pois, esse "olhar para algo" que se encontra a origem do teorizar e,portanto, do modelo objeto-designao. Se a noo de semelhanas de famlia envolve ametfora do olhar apenas para destacar os aspectos das palavras na linguagem. E"aspectos" no resultam do ver algo, mas do domnio de tcnicas. As semelhanas deaspectos de famlia quer dizer um domnio de tcnicas afins. Ou seja, a significao de

    20 Wittgenstein, Bemerkungen ber die Grundlagen der Mathematik, Shurkamp, Werkausgabe, Band 6,1984, p. 344.21Baker e Hacker, op. cit, 1983, p. 133, 134. Apesar do destaque que esses autores do crtica do modeloobjeto-designao, ocasionalmente, reincidem na iluso que se encontra no ato de "olhar para algo", como o caso de ver figuras. Ora, o significado o domnio de tcnicas. Em outras palavras, no h nada externo aoexerccio da regra de uso das palavras visuais.

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    uma palavra como uma fisionomia (PU 568). E fisionomia quer dizer que no h algocomum por detrs do que aparece, ou melhor, uma fisionomia envolve certos detalhesmuitas vezes ambguos que esto sempre mostra. S pode apanhar uma fisionomia quempode ver aspectos. S se pode compreender a significao de uma palavra quando se podeapanhar as suas semelhanas de famlia, isto , a fina trama de seus diversos aspectos. A

    "cegueira para a significao" falta de domnio tcnico na linguagem. A cegueira para oaspecto a incapacidade de apanhar os parentescos entre as palavras que constituemsemelhanas de famlia. Mas, ao contrrio de Nicod, com a noo de semelhanas defamlia Wittgenstein visa afastar a tradio que olha para algo externo, ou para o "mundosensvel". A noo de ver aspectos tematizada por Wittgenstein na segunda parte dasInvestigaes Filosficas, junto com a de vivncia da significao de uma palavra e daconhecida figura pato-lebre. A vivncia da significao de uma palavra o domnio detcnicas lingsticas e no uma torrente de vivncias intencionais da conscinciatranscendental (Husserl). No entanto, a figura pato-lebre parece re-introduzir a posio deque "algo visto" e, portanto, a noo de representao mental; isto , a concepo queerroneamente distingue eventos internos e externos. Ora, Wittgenstein ao rejeitar o "idealde exatido" do logicismo retoma a vagueza da linguagem ordinria. Seu objetivo ooposto do de Frege. A cegueira para os aspectos a cegueira para a significao. Mas"cegueira para a significao" no um defeito no aparelho ocular, mas a falta de destrezatcnica. E isso no pode ser confundido como o processo de "ver algo". Os aspectos daspalavras - a significao como fisionomia - so domnios das tcnicas sutis que permitemapanhar as semelhanas de famlia das palavras na linguagem. A significao destrezaem lidar com as palavras na linguagem.

    A noo de semelhanas de famlia tambm pode ser aplicada ao conceito denmero, pois esse conceito geralmente entendido desde o "ideal de exatido". Amatemtica ainda hoje considerada como uma cincia exata. O conceito de nmero concebido como o que h de mais certo, puro e rigoroso. A tentativa de encontrar os seusfundamentos na lgica d a esta um carter de sublimidade. Ou seja, a lgica tem deocupar-se com o que mais rigoroso. Esse "ideal de exatido" vem desde Pitgoras, quepensava a essncia do cosmos a partir da exatido do conceito de nmero. Desse modo, onmero se tornou a maior expresso da razo. Mesmo em Plato, s se chega "Idia"quando se conhece matemtica. Tambm a moderna fsica galileana obteve seu rigor apartir da sua conexo com a matemtica. O ncleo da matemtica o conceito de nmero.E a lgica que Wittgenstein pretende contestar originou-se na busca dos fundamentos daaritmtica (Frege, Russell, Gilbert, etc.)22. Ora, ao contrrio desse "ideal de exatido" dalgica, o conceito de nmero ser compreendido agora a partir dos seus "ares de famlia".Como os jogos tambm os nmeros constituem uma "famlia". O que se chama "nmero"no uma idia geral e abstrata, pois seu significado encontra-se nos parentescos que hentre conceitos afins como os de nmeros racionais, nmeros pares, nmero de acidentesde carro, nmero dos atos duma pea de teatro, nmeros dos quadros de Pollock, etc.Portanto, a "robustez" do conceito de nmero no est em suas rgidas propriedades

    22A crise dessas tentativas fundacionistas est expressa na obra de Gdel. Neste ensaio apenas colocaremosa posio de Wittgenstein nas PU; sobre as suas objees ao fundacionismo a partir das "Consideraessobre os fundamentos da matemtica", voltaremos noutra oportunidade.

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    ocultas, mas nos diversos modos como usado. A matemtica uma habilidade tcnica. Oconceito de nmero o domnio dessas habilidades e no algo comum subjacente a elas. Oconceito de nmero como um fio tecido de fibra com fibra e a sua robustez econsistncia no esto numa fibra nica que o percorra em toda a extenso, mas no fato deque essas fibras esto enroladas umas com as outras (PU 67). No h uma fibra que

    esteja presente do comeo ao fim, isto quer dizer, no h nada em comum que estabelea arobustez do conceito de nmero. O interlocutor imaginrio, porm, poderia objetar que oque h de comum precisamente a disjuno (Disjunktion) de todas as caractersticascomuns (Gemeinsamkeiten). Ou seja, no ter nada em comum seria o "algo comum". Aresposta de Wittgenstein a de que o seu opositor apenas "joga com uma palavra" (apalavra "comum"), pois, tambm neste caso, essas caractersticas comuns no dependemde algo oculto e tampouco a "disjuno" expressaria algo comum subjacente. Aqui estmais um exemplo do modo errneo no uso da palavra "comum". A questo de comopode haver algo em comum por no se ter nada em comum. E isso apenas "jogar comuma palavra" (PU 67). Esse "jogar com a palavra" surge do engano que est emidentificar num conjunto de objetos (nmeros, cadeiras, mesas, etc.) algo que lhes seja ouno comum. A disjuno o contrrio da conjuno, mas as caractersticas do conceito denmero no esto na sua identificao num domnio de objetos como aquilo que faltaneles. O noo que o comum o que no comum num conjunto de objetos a faceoposta da mesma moeda, que leva a pensar dogmaticamente a falta de algo em comum poroposio a algo em comum. Mas, como vimos, o conceito de nmero uma execuo, ouseja, um aglomerado de usos afins.

    Wittgenstein vai de encontro tradio platnica que se estende moderna anliselingstica, cujo dogma principal o de que um conceito impreciso no um conceito.Ora, mesmo o conceito de nmero no tem limites precisos. O conceito de nmero deixaento de ser uma soma lgica de sub-conceitos bem definidos (nmero cardinal, nmeroracional, nmero real, etc.). Essa soma lgica, porm, no pode ser considerada em termosde caractersticas comuns de todos os nmeros, pois no h limites precisos para os usosdos conceitos de "jogo", "planta", "azul" e "nmero" na linguagem. Os limites no soprecisos ou exatos porque no so definidos por nenhuma generalidade que estabeleceria oque h de rigorosamente comum a todos. Esse "essencialismo" a ocultao metafsica dagramtica da linguagem. Pode-se obviamente determinar limites precisos entre os nmerosracionais e os irracionais, mas essa habilidade tcnica apenas mais um exemplo dadiversidade de empregos do conceito de nmero.

    A posio que destaca a vagueza do conceito de nmero provoca resistncia porque vai de encontro a tradicional concepo que na matemtica as regras so precisamentedelimitadas, pois se as diversas aplicaes do conceito de nmero forem vagas eimprecisas ento no se poderia distinguir a relevncia desse conceito dos outros conceitoscomo o de "justia", "dor", "medo", "alegria", etc. Mas a vagueza no um obstculo paraa compreenso. Alis, a noo de compreenso tambm vaga. o "ideal de pureza" quetende a substituir a vagueza pelo "algo em comum", isto , pela busca de umafundamentao lgica do conceito de nmero. Os conceitos de nmero, jogo, folha, azul,etc. precisam ser afastados da "nsia de generalidade" que se encontra na procura daregularidade e da preciso. O conceito de nmero se diferenciaria dos outros por seressencialmente o que h de mais regular, mas, como estamos mostrando, seu significado,

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    como o de todos os outros conceitos, se encontra em suas diversas aplicaes.Wittgenstein responde objeo de falta de regularidade:

    "Mas ento o emprego da palavra no est regulamentado: o 'jogo' que jogamoscom ela no est regulamentado". Ele no est limitado por regras; mas tambm no h

    nenhuma regra do tnis que prescreva at que altura permitido lanar a bola nem comquanta fora; mas o tnis um jogo e tambm tem regras"(PU 68).

    A aplicao de um conceito na linguagem segue regras, mas o que se pretendeafastar o mito objetivista da regularidade da regra posta fora da sua aplicao. Esse mitoda meta-regularidade da regra o platonismo, ou seja, o esssencialismo que est para almda execuo de seguir regras, e, ao contrrio, tenta definir a regra por uma outra regra queseja a sua essncia, a sua razo de ser. Ora, esse "essencialismo" o que oculta a execuoda linguagem, mesmo a linguagem da matemtica. O mito do platonismo est no "ideal deexatido" da regra, esse ideal coloca-se, fora da regra, numa super-regra, ou melhor, numsuperconceito: "a Idia", a "razo", o "cogito", etc. Os superconceitos ocultam que "apalavra 'conceito' vaga". Como se poderia estabelecer a exatido do conceito de nmerose o prprio "conceito" um conceito vago? Com isso, Wittgenstein ataca a sublimidadeda lgica que, desde a antigidade, reteve o ideal de exatido do pensamento, ou seja, deParmnides a Frege, pensar sempre pensar logicamente. Mas o conceito de pensartambm vago. A "nsia de generalidade" vincula o conceito de pensamento com umideal posto alm da linguagem ordinria. Wittgenstein, porm, insiste na posio quepreserva a autonomia da gramtica frente ao ideal de perfeio. Esse ideal seria um "leitode Procusto" da gramtica se no fosse apenas uma iluso gramatical, pois no precisodo parecer de um lgico para a compreenso de palavras ou frases na linguagem. Ou seja,nenhuma regra que estabelea o valor de verdade de uma sentena pode fixar o seusignificado. Como os significados de palavras como "mesa", "cadeira", "nmero", "jogo",etc. so os seus diversos usos na linguagem, nenhuma regra de clculo lgico poderiaestabelec-los de fora. E o que vem a ser isso seno a tentativa de fixar o significado, ouseja, de preencher a demanda por definies completas para cada palavra. Esse oprograma da anlise lgica da linguagem, mas essa "nsia de generalidade" uma ilusogramatical medida que a definio completa de cada palavra seria um processointerminvel e intil. o caso da palavra "poltrona" e as variadas circunstncias em quepode ser usada. As regras desses usos no so externas a eles. Isto , "no estamosequipados com as regras de seu emprego" para s ento podermos aplic-las. Essas"regras prontas" - como as regras inferenciais dos clculos dos enunciados ou dospredicados - nos escapam quando usamos (verschwinden) a palavra "poltrona". Mas seno temos essas regras prontas para serem aplicadas e se no estamos equipados comregras para todas as possibilidades de emprego (Gebrauch) da palavra "poltrona", isto noquer dizer que "no ligamos a esta palavra nenhuma significao" (PU 80)23. E essasignificao no definida pelo que haveria de comum palavra "poltrona", mas pelassemelhanas de famlia que ela tem na linguagem. As regras do clculo lgico levaram F.P. Ramsey afirmar, numa conversa com Wittgenstein, que a lgica uma "cincia

    23Sobre a diferena entre "emprego" (Anwendung ou Verwendung) e "uso" (Gebrauch), ver Newton Garver,This Complicated Form of Live - Essays on Wittgenstein, Open Court, Illinois, 1994, pp. 54 ss. e pp. 197 ss..

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    normativa" (PU 81). Essa concepo normativa da lgica a mesma que leva a ilusesgramaticais em que se a afirma coisas do tipo: "A linguagem (ou pensamento) algonico" (PU 110). Ou seja, essa afirmao tem o aspecto de que, em filosofia, se esttratando de algo sublime e profundo, de super entidades como a linguagem, o pensamento,a vontade, o ser, a lgica, etc. Mas a "profundidade" filosfica aqui uma metfora que

    tambm expressa o caracter normativo da lgica enquanto "linguagem ideal".Uma metfora que incorporada s formas da nossa linguagem causa uma falsa

    aparncia; esta nos inquieta: "No assim!" - dizemos. "Mas preciso que seja assim!"(PU 112).

    E ainda:

    " assim" - no paro de repetir. como se eu devesse apreender a essncia dacoisa, como se eu pudesse fixar agudamente esse fato e situ-lo no foco de meu olhar(PU 113).

    A constante repetio " assim!" est na origem mesma do carter normativo dalgica. a iluso gramatical que vincula o pensamento e a lgica como atividades,instncias ou processos sublimes e que tambm levou o jovem Wittgenstein a conceberque quem pronuncia uma sentena e quer dizer (meint) algo com ela, ou a compreende(versteht), tem que empregar, para isso, um clculo com regras determinadas. Mas isso sedeve, como ironicamente afirma o Wittgenstein tardio, a "que ns, especialmente emfilosofia, comparamos (vergleichen) freqentemente o uso das palavras com jogos, comclculos segundo regras fixas", isto , podemos comparar os diferentes modelos ou jogosde linguagem em que se pode compreender o significado das palavras; pode-se mesmoreconhecer que os clculos lgicos tenham certas funes e que, portanto, certas palavrastenham a um certo sentido, mas tais comparaes "no nos autorizam a dizer que quememprega a linguagem deva (msse) jogar um s jogo". Ao contrrio, essas comparaesentre diferentes jogos ou modelos liberam a linguagem do carter normativo da lgica.Portanto, quando se entende que nossa expresso lingstica ordinria apenas se aproximadesses clculos, isto , quando comparamos a linguagem ordinria com as regrasdeterminadas do clculo lgico, ento "nos encontramos beira de um mal-entendido(Missverstndnisses)". Essa comparao ento errnea medida que tenta corrigir aexecuo imprecisa da linguagem ordinria atravs de uma linguagem feita de regras maisdefinidas. O "carter normativo" da lgica faz com que quando se fala dela est-setratando de uma linguagem ideal (idealen Sprache). Essa linguagem deslizaria num meioque no ofereceria nenhuma resistncia, destacada da execuo ordinria, deslizaria entono vazio. A sublimidade da lgica - enquanto linguagem ideal - existiria apenas num meioinefvel. Ou seja: "Como se nossa lgica fosse, por assim dizer, uma lgica para o vcuo(lufteeren Raum)". No entanto, se a lgica se confunde com o pensamento, ou melhor, sedesde Parmnides, o ser se confunde com o pensar, para Wittgenstein agora, a lgica notrata da linguagem ou do pensamento do mesmo modo com que a cincia natural trata dosfenmenos fsicos. No TLP, ele afirmara que "a lgica no uma teoria, mas uma imagemque espelha o mundo. A lgica transcendental" (TLP 6.13), que "As proposies dalgica no dizem nada. (So proposies analticas)" (TLP 6.11) e, embora afirme: "Osinal proposicional empregado, pensado o pensamento (TLP 3.5), tambm afirma que

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    "A linguagem (ordinria) disfara o pensamento" (TLP 4.002) e ainda se propunha o"esclarecimento lgico dos nossos pensamentos"; agora, porm, ele reconhece que algica no est habilitada a tratar nem do pensamento e nem de si mesma. A lgica como"cincia normativa" substituda pela autonomia da gramtica. a gramtica que trata do"pensamento", ou seja, do modo como esse conceito usado na linguagem; a partir dela

    que Wittgenstein afirma: "no mximo pode-se dizer que construmos (konstruirten)linguagens ideais". Com essas linguagens, porm, se pretende ento comparar o que sepensa e o que se diz na linguagem ordinria, isto , se pretende corrigir a linguagem comclculos lgicos que poderiam ento livr-la das ambigidades e imprecises; desse modo,o que "construdo" se torna um ideal que oculta sua origem: "a nsia de generalidade". Aconstruo de uma "linguagem ideal", por conseguinte, no o estabelecimento denenhuma essncia que poderia ser elucidada por uma anlise da linguagem. A palavra"ideal", porm, est contaminada pelo platonismo, e, por isso, ela pode "induzir ao erro,como se estas linguagens fossem melhores, mais completas que nossa linguagem comum(Umgangsprache), como se fosse necessrio um lgico para mostrar finalmente aoshomens a caracterstica de uma frase correta" (PU 81 ver melhorar a traduo). Acompreenso de uma frase no se precisa do salvo conduto da lgica, ou seja, que paracompreend-la se tenha, antes, de submet-la a um clculo com regras determinadas.Wittgenstein no nega que se possam comparar modelos ou jogos de linguagem, aocontrrio, ele procura evitar o erro de que apenas um modelo se torne a medida ideal decomparao. O modelo assumiria ento um carter normativo. Essa iluso gramatical serevitada quando forem descritas as funes lingsticas dos conceitos de compreender(verstehen), querer dizer (meinen) e pensar (denken). Trataremos deles noutraoportunidade.

    A crtica da comparao entre os usos das palavras na linguagem ordinria e asregras determinadas do clculo pode todavia lanar luzes sobre o que est aqui emquesto. Como se pode saber se algum realmente est empregando essas regrasdefinidas? Teria ele algum comportamento caracterstico a partir delas? Como se d,enfim, a sua relao com essas regras? Essas regras poderiam definir o comportamento deum autmato, mas qual a natureza da relao entre as regras e aquele que as aplica? Mas ouso das palavras na linguagem no tem nada automtico. Para melhor distinguir a vaguezadas palavras na linguagem da tentativa de enquadr-las segundo clculo com regrasdefinidas, Wittgenstein novamente recorre analogia com os jogos. Aquele que participade jogos se comporta segundo as regras desse jogo, assim as regras do futebol sedistinguem das do basquete ou de tnis. Num jogo de xadrez, os movimentos do bispo sodistintos da torre, dos pees e da rainha; no entanto, nada impede que se invente a partirdessas regras novas regras e, com isso, um outro tipo de jogo, nada impede que pessoas,num campo de futebol, comecem jogos diferentes, por exemplo, limitando-se a apenaschutar em gol, que possam contornar o campo cabeceando ou fazendo embaixadas, podemjogar-se a bola uns nos outros apenas por brincadeira, etc. Nesse caso, foram fazendonovas regras: make up the rules as we go along (PU 83). Assim tambm opera alinguagem, esse operar, porm, no segue regras determinadas externamente. Noutraoportunidade Wittgenstein dir que a diversidade de emprego das palavras como um

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    "torvelinho"24. A "analogia" com o comportamento dos jogadores, serve para salientar asua posio principal, de que as regras da linguagem so autnomas e isso que asdistingue das regras exatas do clculo lgico. Essas ltimas so regras externas quepretendem corrigir aquelas. A linguagem, porm, no um caos; e o ponto central o deque as regras da gramtica no dependem de nenhuma cincia normativa.

    Para situar melhor a sua objeo Wittgenstein retoma a errnea noo objetivadorada regra ao indagar: "O que chamo de 'regra segundo a qual ele procede'?" (PU 82).Dessa noo surgem algumas respostas do tipo: 1) a hiptese que descreve o uso daspalavras por ns observado; 2) a regra que ele consulta ao usar os signos; 3) a que nos dcomo resposta, quando perguntamos sobre qual a sua regra. Essas respostas, porm, soconcebida da noo errnea que leva a vincular-se comportamento e regra determinada.Ou seja, a resposta 1 mantm uma relao externa entre o uso das palavras e a observaode quem as profere; a resposta 2 diz respeito a que algum dispe de uma regra para secertificar do seu uso dos signos lingsticos, ou seja, novamente uma regra externa ao usodas palavras; e a resposta 3 a prpria resposta de algum, isto , a resposta umaexplicao da regra e no a prpria regra. Ora, essas respostas esto concebidas em ilusesgramaticais. Todas elas tentam externamente dar conta da vagueza da linguagem. Quandose pergunta "o que voc compreende por N"? A resposta no dada a partir de umaconsulta a regras determinadas. O interlocutor pode dar vrias explicaes, mas, para isso,no precisa recorrer a uma ou a um conjunto de regras fixas. Para exteriorizar a suaresposta o interlocutor no precisa fazer um curso de lgica. Wittgenstein termina a seo82 novamente indagando: "o que poderia significar aqui a expresso (Ausdruck) 'regrasegundo a qual ele procede'?" Ora, a ambigidade da linguagem - a nsia degeneralidade - que leva pergunta sobre, afinal de contas, qual a regra segundo a qualfulano fala, mas a geralmente se cai na iluso de que deve haver regras fixas para o seucomportamento e de que podemos observar o uso das suas palavras, mas como se poderia,pela observao, reconhecer uma regra e como uma pergunta poderia trazer uma regra luz?

    A analogia com os jogos permite afastar o uso das palavras na linguagem comregras rigorosas. Na linguagem palavras no so usadas de modo catico, pois quemconfunde as palavra "verde" e "azul" ou as expresses "dor de cabea" e "dor de cotovelo"mostra que no domina o uso dessas palavra, que no compreende a trama da linguagem.As palavras tem funes na linguagem que no podem ser confundidas, assim como nose pode confundir, no jogo de xadrez, os movimentos do bispo e da torre, ou, os modos dearremessar a bola nos jogos de basquete e vlei, etc. No entanto, esses jogos,constantemente, do lugar a dvidas, o jogador estava ou no impedido, porque ele nofez tal ou qual movimento, o rbitro viu ou no viu a falta, houve uma invaso do campoadversrio, a bola caiu na risca ou fora dela, etc. Por isso, indaga Wittgenstein, "queaparncia teria um jogo inteiramente limitado por regras? Regras que no do lugar anenhuma dvida e que lhe fechem todas as lacunas" (PU 84). Essas regras seriam da

    24 Como pode ser descrito o comportamento humano? Certamente apenas esboando as aes de umavariedade de homens, enquanto elas esto misturadas umas com as outras. O que determina nossos juzos,nossos conceitos e reaes, no o que um homem faz agora, uma ao individual, mas todo o torvelinho(hurly-burly) das aes humanas, o pano de fundo contra o qual ns vemos qualquer ao (Zettel, 567).

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    mesma natureza das que pretendem corrigir a vagueza das palavras na linguagem, elaspretendem abolir todas as dvidas geradas por essa impreciso. Iluses gramaticaisrondam a palavra "dvida". A posio que pretende "abolir dvidas" parte do socratismo,ou melhor, da tentativa de elucidar o que uma coisa. A pergunta pela coisa epistmica -a "nsia por certeza". Esse conjuntos de regras dariam, para as palavras, uma certeza que

    no se encontra na linguagem ordinria. E isso que leva a "imaginar uma regra queregule o emprego da regra", pois tambm podemos "imaginar" uma dvida levantada portal regra; ora, aqui temos uma verso subjetiva do platonismo, pois no duvidamos porquepodemos "imaginar" uma dvida. Ou seja, imaginar uma regra ou duvidar dela no soprocessos (subjetivos) externos ao uso efetivo das palavras na linguagem. As palavras"imaginar" e "duvidar" no se referem a processos mentais. As suas regras de uso nalinguagem so autnomas. As suas diversas funes na linguagem ordinria tampoucooriginam ou dependem de uma meta-regra corretiva. Portanto, no se est eliminando asregras da gramtica, mas apenas afastando a iluso essencialista das regras do clculolgico. Para estabelecer melhor a distino entre elas, Wittgenstein afirma que "uma regraest a (steht da) como um indicador de direo (Wegweiser/signpost)" (PU 85). Acomparao da regra de uso com indicadores de direo (poste, bandeia, sinaleira, etc.)serve para mostrar como no h apenas uma interpretao, ou seja, uma meta-regra quepoderia explicar o funcionamento das palavras na linguagem. Um indicador de direopoderia deixar "dvidas" sobre que rumo se deveria seguir, ou ainda a viso de umindicador de direo no deixaria subsistir nenhuma dvida, poderia tambm, algumasvezes, deixar dvidas e outra vezes no. Ora, isso pressuporia que toda vez que a gente sedepara com um indicador de direo ter-se-ia uma atitude cognitiva que teria de afastaresse tipo de dvidas. No entanto, essas dvidas surgem a partir do emprego do indicadorde direo e no o contrrio. E esse emprego, porm, no um "ideal de exatido", esseideal o mito intelectualista, ou como vimos, a precisa delimitao do distrito (Frege),que pretende fornecer apenas uma interpretao correta. A gente pode enganar-se e, aoinvs de dobrar esquerda, dobrar direita, ao invs de adentrar na mata, seguir para amontanha, ao invs de entrar no bairro Petrpolis, seguir adiante, etc. Mas apenas quem jdomina a tcnica do indicador de direo pode errar ou ter dvidas a seu respeito, mas taisdvidas, porm, dependem do domnio dessa tcnica e no podem ser corrigidas porapenas "uma interpretao". Ou melhor, toda interpretao do indicador pressupe oemprego do indicador. Operar com o indicador no saber ou interpretar como se lidacom ele. E, muito menos, interpret-lo de modo unilateral. Como saber que direo sedeve tomar no depende de informaes adicionais ao emprego do indicador de direo,pois todas as informaes dependem dele. Nesse domnio tcnico, segue-se uma regra, eno se necessita de uma regra que a posteriori venha a eliminar as dvidas. A regra no ento empregada para corrigir uma ao, pois os diferentes modos de agir j so as aesde seguir regras. Wittgenstein antecipa aqui o tema de seguir regras que desenvolveralhures (PU 185 a 246), onde pretende mostrar a diferena entre a ao conforme aregra e a aquela que a concebe como interpretar a regra25. Agir conforme a regra se situano domnio de uma certa execuo, ou melhor, de que a noo de seguir regras inseparvel da de aprendizagem de uma maneira de agir: "As interpretaes nodeterminam sozinhas a significao". No caso do indicador de direo: "fui treinado para

    25Schulte, J.Lire Wittgenstein - Dire et montrer. Paris: Editions de L'clat, 1992, p. 135.

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    reagir de uma determinada maneira a este signo e agora reajo assim" (PU 198). Domesmo modo, a compreenso do uso das palavras na linguagem tampouco depende deelucidaes ou informaes adicionais, pois o "saber qu" pressupe o "saber como", oumelhor, ainda nas palavras de Ryle, "saber como fazer no saber como dizer comofazer"26. As elucidaes chegam a um fim. Esse fim, porm, a execuo da linguagem e

    no uma fundamentao que possa dirimir as dvidas. Como vimos, o uso da palavradvida no diz respeito a uma carncia de elucidao. A dvida no uma brechaexistente no fundamento e que poderia ser supressa por elucidaes, ou seja, a filosofia dalinguagem concebida a partir do cartesianismo: "uma compreenso segura possvelapenas quando primeiramente duvidamos de tudo aquilo que pode ser duvidoso eafastamos ento todas essas dvidas". Essa a iluso que pretende encontrar osfundamentos da linguagem. As descries definidas visariam, por exemplo, dar conta deum nome prprio como "Moiss", ou "Aristteles", etc. Mas, como na sentena "O soloest coberto de plantas", ter-se-ia de definir cada um de seus termos, e isso seria umprocedimento interminvel: "Sim, essas questes no teriam fim, se chegssemos apalavras como 'vermelho', 'escuro', 'doce'." (PU 87). Pode-se, obviamente, "darexplicaes" quando, por exemplo, algum pede uma melhor orientao no trnsito, naInglaterra os carros andam do lado esquerdo da rua, precisamos dessas informaes paradirigir l, etc. Porm, a procura por descries exatas - a anlise lgica da linguagem -pode levar a enganos expressos em perguntas do tipo: "Mas ento como uma elucidaoajuda-me a compreender, se ela no for a ltima? Ento a elucidao nunca se completa;no compreendo e nunca compreenderei o que ele quer dizer!". Pode-se defender umalgica em que nunca se ter elucidaes completas, mas o objetivo de Wittgenstein, afastar toda a elucidao que, desde fora, pretende corrigir a execuo da linguagem. Noentanto, freqentemente essa "nsia de generalidade" ou "procura por fundamentos"invoca o platonismo medida que, sem apoio seguro, uma "elucidao parece pairar noar". Paradoxalmente, a tentativa de fundamentao filosfica que, a sim, levar alinguagem a funcionar no vazio: as iluses gramaticais. A meta-regra, porm, estafastada. O significado das palavras ou das sentenas dependem das suas funes nalinguagem. Do mesmo modo, "o indicador de direo est em ordem quando, emcondies normais, preencher sua finalidade" (PU 87)27.

    A

    26 Segundo G. Ryle:Descrever o modo de emprego de uma expresso no exige e, de hbito, no encontraauxlio em informaes a respeito da predominncia ou no dessa maneira de empreg-la. Como muitasoutras pessoas, o filsofo, com efeito, h muito aprendeu como empreg-la ou como manipul-la, e o queele est tentando descrever exatamente aquilo que ele prprio aprendeu.Ver Linguagem Ordinria, SoPaulo: Abril Cultural, 1975, p. 51.27Norman Malcolm, retoma o exemplo do indicador de direo (sign-post) dos 85 e 87 das PU, mas, paradistingui-lo da doutrina do Tractatus que A proposio mostra seu sentido. A proposio mostra comoesto as coisas se for verdadeira. E dizque esto assim (TLP 4.022). Com isso, ao invs de comparar o

    indicador de direo com a regra, ele o comparar com a proposio. Malcolm afirma: "Um indicador dedireo no pode apenas ser 'comparado' com uma proposio: ele uma proposio". Segundo o TLP, ummotorista que se dirige para Dover pode encontrar um sinal de trnsito que indique que deve dobrar esquerda ou direita, mas tambm um guarda de trnsito pode apontar com o dedo e dizer "Dover estnaquela direo". O signo proposicional pode ser feito de cadeiras, mesas, gestos, postes, sinaleiras, etc.desde que seus constituintes estejam arranjados de um certo modo, pois esse arranjo o sentido da

    proposio (TLP 3.1431). E compreendemos o sentido da proposio sem que ele nos tenha de serexplicado, isso que Wittgenstein entende por "A proposio mostrao seu sentido". E compreendemos(verstehen) o signo proposicional sem que ele nos tenha sido explicado (TLP 4.02). A proposio uma

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    Com isso, afasta-se a noo de que a linguagem ordinria possa ser corrigida pelasregras do clculo lgico. Essas regras fazem parte da noo de que uma linguagem mais

    figurao da realidade: pois sei qual a situao por ela representada, se compreendo a proposio. Ecompreendo a proposio sem que seu sentido me tenha sido explicado (TLP 4.021). A compreenso deuma proposio, neste caso, tampouco depende de elucidaes. O que pode ser dito s porque pode ser

    mostrado pode ser dito, mas ento: O que pode ser mostrado, no pode ser dito (TLP 4.1212). No entanto,Malcolm chama a ateno para a diferena crucial ente as PU e o TLP. No TLP, essas proposies socompletamente genricas, elas dizem respeito a todas as proposies, em todas as circunstncias. O TLP,seguindo a concepo do atomismo lgico, tambm sustenta que, ainda que no haja explicaes para osentido (sense) do signo proposicional, tem-se, deve-se (must) explicar o significado (meaning) das partesque o compem. Um nome corresponde a um objeto, se isso no fosse assim a linguagem no seria possvel.Portanto: Compreender uma proposio significa saber o que o caso se ela for verdadeira. (Pode-se,porm, compreend-la e no saber se verdadeira.) Compreende-se uma proposio quando secompreende suas partes constituintes(4.024). Essa, porm, tambm uma tese bastante geral. Ela o centroda concepo figurativa da proposio. E se aplica tanto s proposies elementares e no elementares.Segundo o TLP, o sinal de trnsito Dover um signo proposicional constitudo de duas partes, o nome"Dover" e uma seta apontando para o lado; nesse caso, para compreender esses dois constituintes suficiente para compreender o sentido do signo proposicional. No 85 das PU, porm, como vimos, a

    compreenso no to simples, pois o indicador de direo - o nome "Dover" e a seta - "mostra em quedireo devo seguir quando passo por ele; se pela rua, pelo atalho ou pelos campos?... Haveria ento apenasuma interpretao?". Ora, isso faz com que as vezes haja ento lugar para dvidas, que podem ser afastadas

    por um guarda ou um morador da regio. Ou seja, o signo que indica a direo compreendido em certascircunstncias. A gente pode perder-se em meio aos sinais de trnsito (imagene-se numa dessas complexasrtulas das grandes rodovias). Isso no quer dizer que Wittgenstein esteja apelando para uma meta-linguagem, mas apenas reabilitando o uso comum da palavra "dvida", isto , de que a compreenso de umaregra envolve vrias habilidades, que elas no so externas regra, mas que fazem parte da sua execuo.

    No TLP, ao contrrio, qualquer dvida sobre a compreenso dos constituintes do signo proposicionalinviabilizaria a compreenso da proposio. A dvida, ento, abriria uma brecha nos fundamentos, pois,

    para Malcolm, o TLP, "assumiu uma posio extraordinria de que no h dvida alguma sobre o sentido dosigno proposicional se a gente compreende o significado das suas partes constituintes. J no comeo advida foi excluda". Da porque, para ele, "a diferena entre o TLP e as PU muito clara e de imensaimportncia. No Tractatuso pensamento de Wittgenstein estava dirigido para a (im)possibilidade lgicadadvida. Se fosse logicamente possvel para uma pessoa que compreendesse as partes constituintes de umasentena ter uma dvida quanto ao sentido da sentena, ento todo o pensamento e a linguagem seriamimpossveis. A dvida no deve provocar estranheza (creep) em lugar algum; pois se isso ocorresse elareapareceria em qualquer tentativa de remov-la. A dvida quanto ao sentido do signo proposicional deveser logicamenteexcluda! No entanto, a atitude de Wittgenstein nas Investigaes totalmente diferente.

    No faz sentido supor que a dvida quanto ao sentido do signo proposicional poderia ser logicamenteexcluda". Ver Norman Malcolm, Wittgenstein: nothing is hidden. Oxford: Basil Blackwell, 1989, p. 83 ss.Wittgenstein exemplifica o funcionamento de uma regra com um indicador de direo, Malcolm, porm,afirma que o indicador de direo uma proposio. E essa a sua dificuldade medida que pretendeafastar da doutrina do TLP, mantendo, porm, a noo da materialidade do signo proposicional; ora, essanoo provm da concepo figurativa da proposio. A concepo da "materialidade do signo" substituda pela de uso das palavras na linguagem ordinria. Malcolm retoma a ambigidade e a dvida noato de seguir a regra, mas correndo o risco de afastar a regra da sua aplicao, pois o sinal de trnsito aponta

    para onde se deve seguir "Dove", mas as regras da linguagem no apontam para lugar nenhum. Poder-se-iadizer que "apontar" aqui apenas uma das habilidades da linguagem, mas a compreenso de um simplessinal de trnsito envolve a complexa trama da linguagem onde, alis, a palavra dvida pode ter vriasfunes. Os signos lingsticos no tem seus significados fora de seus usos na linguagem. A gramtica noaponta para fora de si. O exemplo do indicador de direo e a dvida sobre que direo se deve seguir serve

    para mostrar que a gramtica da palavra "compreenso" envolve tambm o domnio da palavra "dvida",mas essa palavra no se refere a um evento mental externo regra de seu emprego. A palavra "dvida" faz

    parte da gramtica da compreenso, mas esta no superconceito. O significado de "compreenso" so osseus usos na linguagem. A palavra "compreenso" faz parte da gramtica da dvida. E assim por diante.

  • 7/22/2019 (Hebeche) No pense, veja - sobre a noo de semelhana de familia de Wittgenstein

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    perfeita substituir as ambigidades da nossa forma comum de expresso. No entanto,paradoxalmente, essa linguagem que se pretende mais eficiente a mais vazia designificao. Pretendendo ser uma operao que segue regras mais exatas, acaba porop