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OS CONCEITOS DE PÚBLICO E PUBLICIDADE NO SURGIMENTO DA OPINIÃO PÚBLICA NO BRASIL (1820-1830) Renato de Ulhôa Canto Reis (História Universidade Federal de Juiz de Fora) Orientadora: Silvana Mota Barbosa Palavras-Chave: Opinião pública; publicidade; história dos conceitos. Passaram-se 27 anos entre a publicação da tese de habilitação de Jürgen Habermas, “Mudança estrutural da esfera pública: uma investigação quanto uma categoria da sociedade burguesa” (1962) 1 , e sua primeira tradução para o inglês (1989). Na década de 80, quando a discussão proposta pelo autor começa a ter uma repercussão maior entre os historiadores, consolidou-se o conceito de “esfera pública” como tradução para o termo investigado pelo autor: öffentlichkeit. Devido à ausência do conceito de esfera pública na realidade política de diversos países no século XIX, um dos grandes debates em torno da questão se direcionou para o embate entre a historicidade ou a normatividade da sua análise. Acredito que é possível abordar a discussão proposta por Habermas através de outro prisma, pois a ausência do conceito não implica que o processo descrito por ele não exista. A solução passaria, então, pela adoção de outra tradução para o termo öffentlichkeit, uma tradução que estivesse mais próxima do contexto linguístico dos oitocentos. Dois anos após a publicação da tese de habilitação de Habermas, em 1964, W. G. Runciman publica uma resenha sobre o livro, na qual diz que “öffentlichkeit não é facilmente traduzido para o inglês”, sendo que “um número de tópicos pode ser interessantemente justapostos sob o título comum de öffentlichkeit2 . Runciman opta em sua resenha pelo termo publicness, que poderia ser encontrado no dicionário de Oxford, mas alerta que este estava se perdendo na língua inglesa. Bem mais recentemente, Pablo Piccato afirmou que public sphere só aparece no dicionário de Oxford no ano de 1992, 1 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 2 HABERMAS, Jürgen. Strukturwandel der Öffentlichkeit. Untersuchungen zu einer Kategorie der bürgerlichen Gesellschaft. 1962. Resenha de: RUNCIMAN, W. G. Strukturwandel der Öffentlichkeit by Jürgen Habermas. The British Journal of Sociology. Vol. 15. Nº 4. Dez. 1964. P. 366.

Habermas, “Mudança estrutural da esfera pública: …...Habermas, “Mudança estrutural da esfera pública: uma investigação quanto uma categoria da sociedade burguesa” (1962)

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Page 1: Habermas, “Mudança estrutural da esfera pública: …...Habermas, “Mudança estrutural da esfera pública: uma investigação quanto uma categoria da sociedade burguesa” (1962)

OS CONCEITOS DE PÚBLICO E PUBLICIDADE NO SURGIMENTO DA OPINIÃO

PÚBLICA NO BRASIL (1820-1830)

Renato de Ulhôa Canto Reis (História – Universidade Federal de Juiz de Fora)

Orientadora: Silvana Mota Barbosa

Palavras-Chave: Opinião pública; publicidade; história dos conceitos.

Passaram-se 27 anos entre a publicação da tese de habilitação de Jürgen

Habermas, “Mudança estrutural da esfera pública: uma investigação quanto uma

categoria da sociedade burguesa” (1962)1, e sua primeira tradução para o inglês (1989).

Na década de 80, quando a discussão proposta pelo autor começa a ter uma repercussão

maior entre os historiadores, consolidou-se o conceito de “esfera pública” como tradução

para o termo investigado pelo autor: öffentlichkeit. Devido à ausência do conceito de

esfera pública na realidade política de diversos países no século XIX, um dos grandes

debates em torno da questão se direcionou para o embate entre a historicidade ou a

normatividade da sua análise. Acredito que é possível abordar a discussão proposta por

Habermas através de outro prisma, pois a ausência do conceito não implica que o

processo descrito por ele não exista. A solução passaria, então, pela adoção de outra

tradução para o termo öffentlichkeit, uma tradução que estivesse mais próxima do

contexto linguístico dos oitocentos.

Dois anos após a publicação da tese de habilitação de Habermas, em 1964, W. G.

Runciman publica uma resenha sobre o livro, na qual diz que “öffentlichkeit não é

facilmente traduzido para o inglês”, sendo que “um número de tópicos pode ser

interessantemente justapostos sob o título comum de öffentlichkeit”2. Runciman opta em

sua resenha pelo termo publicness, que poderia ser encontrado no dicionário de Oxford,

mas alerta que este estava se perdendo na língua inglesa. Bem mais recentemente, Pablo

Piccato afirmou que public sphere só aparece no dicionário de Oxford no ano de 1992,

1 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da

sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

2 HABERMAS, Jürgen. Strukturwandel der Öffentlichkeit. Untersuchungen zu einer Kategorie der

bürgerlichen Gesellschaft. 1962. Resenha de: RUNCIMAN, W. G. Strukturwandel der Öffentlichkeit by Jürgen Habermas. The British Journal of Sociology. Vol. 15. Nº 4. Dez. 1964. P. 366.

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possivelmente devido à primeira tradução para o inglês de 19893. De qualquer forma,

public sphere não aparece em nenhum momento na resenha escrita por Runciman. Vale

notar que, atualmente, seria impossível escrever uma resenha sobre a tese de habilitação

de Habermas sem falar, em nenhum momento, de esfera pública.

No dicionário inglês-alemão e alemão-inglês de Nathan Bailey do ano de 18014 a

tradução de öffentlichkeit se dá através de publicness, tal como sugerido por Runciman.

Já no dicionário de George J. Adler de 18855, além de publicness, as opções possíveis são

openess e publicity. No dicionário português-alemão e alemão-português de Henriette

Michaëlis de 1887, o conceito é traduzido para “publicidade, notoriedade”6. Além disso,

sabemos de antemão que existem diversos textos clássicos do XIX, tais como de Jeremy

Bentham ou Benjamin Constant, que discutem o significado e a importância da

publicidade na política. A opção por “publicidade” ao invés de “esfera pública”, por outro

lado, oferece alternativa a algumas passagens confusas derivadas da tradução. Habermas

teria afirmado: “a própria ‘esfera pública’ [öffentlichkeit] se apresenta como uma esfera

[sphäre]: o âmbito do que é setor público contrapõe-se ao privado”7. Na verdade, não se

tratava de entender como a “esfera” se apresentava como uma “esfera”, mas sim como

um atributo, a publicidade, passaria a demarcar um espaço social distinto, a adquirir

conotações espaciais. Repensar a esfera pública como publicidade permite compreender e

incorporar uma dimensão não espacial que foi sendo negligenciada da teoria de

Habermas8. Essa dimensão tem a ver com a sugestão de tradução literal para o conceito

3 PICCATO, Pablo. Public sphere in Latin America: A map of the historiography. In: Social History 35:2,

May, 2010. P. 165-192.

4 BAILEY, Nathan. Nathan Bailey’s Dictionary English-German and German-English. Leipzig und Sena:

bei Friedrich Frommann, 1801.

5 ADLER, George J. A Dictionary of the German and English Languages: indicating the ccentuation of

every word, containing several hundred german synonymes, together with a classification and alphabetical

list of the irregular verbs, and a list of abbreviations. Compiled from the works of Hilpert, Flügel, Grieb,

Heyse, and others. New York: D. Appleton and Company, 1885.

6 MICHAËLIS, Henriette. Novo Diccionario da Lingua Portugueza e Allemã: enriquecido com os termos

technicos do commercio e da indústria, das sciencias e das artes e da linguagem familiar. Leipzig: F. A. Brockhaus, 1887.

7 HABERMAS, Jürgen. Op. Cit. 2003. pp. 14.

8 MAH, Harold. Phantasies of the public sphere: Rethinking the Habermas of historians. The Journal of

Modern History, Vol. 72, nº 1, New Work on the Old Regime and the French Revolution: A Special issue in honor of François Furet, 2000.

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öffentlichkeit apresentada pelo professor Sérgio Alcides. Segundo ele, literalmente,

öffentlichkeit seria mais bem traduzido para “aberturidade”9.

Assim, o que parece é que a tradução da obra de Habermas, de alguma forma, a

encaminhou da história conceitual para a sociologia. Não se trata de negar o processo

descrito pelo autor, mas de recuperar a historicidade implícita nele procurando evitar

possíveis anacronismos. Além dos benefícios já citados que viriam da opção por outra

tradução, seria possível também compreender o aparecimento da opinião pública de outra

maneira. Na teoria do autor, a opinião pública emerge da literarische öffentlichkeit (esfera

pública literária, ou “publicidade” literária), afirmação que enfatiza o papel da imprensa e

dos novos espaços de sociabilidade, como os salões, os coffe-houses, as associações, etc.,

na possibilidade do intercâmbio de ideias na formação e constituição de um “público”.

Este significa um conjunto de indivíduos privados que, através da razão, colocam de lado

suas particularidades sociais e se reduzem às qualidades comuns humanas, reivindicando

para si o atributo de “público”10. De qualquer forma, trata-se de pensar que a imprensa e

os novos espaços de sociabilidade inauguram, na verdade, uma nova forma de se pensar a

“publicidade”, e que se relaciona com uma nova concepção sobre o “público”. Em outras

palavras, reconfigurações de sentido do conceito de público e publicidade se coadunam

com a existência de um novo tipo de sociabilidade e de imprensa que, por sua vez, são

elencados como pressupostos necessários para o aparecimento da opinião pública.

Portanto, no objetivo de entender a presença do conceito de opinião pública como força

política, torna-se imperioso investigar as alterações de sentido do conceito de publicidade

e de que maneira esta passa a atuar nos discursos políticos do período.

No Antigo Regime Português o uso que prevalecia do conceito de público era

aquele relacionado ao poder régio. O papel que ele desempenhava dentro das teorias

corporativas de poder da segunda escolástica era de ressaltar a unicidade do corpo, a

junção das partes que o compunham através da cabeça. “Público” era o que a cabeça

representava. Ao mesmo tempo, a “publicidade” era um atributo exclusivo do poder

9 (Informação Verbal). Palestra intitulada “Um pouco de Grécia na Literatura Nacional”, proferida no 8º

Seminário Brasileiro de História da Historiografia, no dia 19 de Agosto de 2014.

https://www.youtube.com/watch?v=V-Z6R5NI9ZA. (especificamente no minuto 37:20). Acessada em

27/10/2016.

10 HABERMAS, Jürgen. Op. Cit., 2003. P. 71-12.

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régio. Bluteau11 associa “publicidade” com os termos autêntico (aquilo que era munido

de autoridade e testemunho público), notório e promulgado. Para explicar o que é

“público”, “publicar”, “publicação” e “publicado”, o autor recorre às comunicações

realizadas pelas autoridades régias. A “publicidade” no Antigo Regime Português recebia,

assim, uma marca de autoridade que derivava do fato de emanar das autoridades

políticas. Encarnando o interesse do “geral” dos homens, apelando para o zelo e a

garantia da “paz pública”, as autoridades atribuíam à “publicidade” sua própria

autoridade, e isso se manifestava semanticamente no conceito através da sua vinculação

com as ideias de autenticidade, notoriedade e promulgação. Essa autoridade era recebida

de maneira apriorística, pois dependia apenas de sair à luz dentro do privilégio real.

Conforme a “publicidade” foi se desgarrando da sua função oficial essa vinculação se

desfaz gradualmente, derivando três formas de comunicação: a divulgação, a

promulgação e a publicação. Porém, ainda dentro da sua função oficial, a publicidade,

sob a mão das autoridades, cumpria a função de regulação moral da sociedade.

Nesse período a publicidade não possuía presença no debate político e se referia

apenas às comunicações das autoridades aos súditos. Carregava uma autoridade derivada

da posição social de quem publicava ou autorizava a publicação e cumpria a função de

regular moralmente a sociedade. Alterações ocorreram no início do XIX que permitiram

pensar a “publicidade” como “alma” do sistema constitucional e representativo, bem

como tornaram possível a existência da opinião pública como força política. A meu ver,

dois processos são centrais nessa mudança de sentido: primeiro, a liberação dos escritos e

o aparecimento de uma imprensa não oficial e, segundo, uma nova concepção sobre a

verdade. Entendo que esses dois processos afetam a estrutura de sentido destes conceitos

de uma forma relativamente independente de posições específicas nos debates políticos.

Ainda que se inserissem nos conflitos da época através destes conceitos, os atores tinham

que lidar com esses novos sentidos, assim como tinham que lidar com a presença da

opinião pública, fosse para tentar ganhar para si ou para negá-la. Estes dois processos são

tratados separadamente neste trabalho apenas como recurso de análise, na verdade,

ocorriam ao mesmo tempo e nutriam-se mutuamente.

11 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Lisboa: Officina de Pascoal Silva, 1712-1727.

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O início da mudança no sentido do conceito se dá a partir de 1808 com a

introdução da imprensa periódica, especificamente, a partir da Gazeta do Rio de Janeiro.

Até 1820 a Gazeta permanecia como uma gazeta tradicional, conforme aponta Marco

Morel12, e ainda lança mão dos sentidos mais antigos dos conceitos de público e

publicidade. Sem embargo, algumas alterações já são possíveis de observar. Em primeiro

lugar, a Gazeta recorre muitas vezes ao conceito de “público” para se referir ao “geral dos

homens” ou a “todas as classes de pessoas”13. Trata-se de um público que está descolado

do poder régio. Ainda permanece com um sentido universalizante14 de público,

impedindo-o de tornar-se mais efetivo polêmica e politicamente. Refere-se ao público

como um sujeito, mas passivo: “comunicar ao Público”, “anunciar ao Público”, “dar ao

Público”, “apresentar ao Público”, “oferecer ao Público”. Este público como sujeito-

passivo recebe atribuições que o personifica e que permite que se manifeste, ainda que

indiretamente: “rancor”, “ansiedade”, “curiosidade” e “impaciência pública” são alguns

exemplos. Não é estranho pensar que esse “público” também vai passar a ter “opinião”,

mas isso implica em outra mudança: ele deve deixar de ser passivo e se tornar agente.

A segunda forma como a Gazeta inicia a mudança é através da inserção de artigos

e notícias estrangeiras que, de alguma forma, inova nos usos dos conceitos. É o caso do

“Extrato das reflexões que sobre o discurso de Luiz Bonaparte se publicaram em Londres

no Courier” 15, na qual o redator deste periódico diz que “seu próprio irmão [Luiz

Bonaparte] é quem o traz de rastros ante o tribunal público”. Antes da “opinião pública”

como um tribunal, que passaria a integrar o vocabulário político a partir da década de

12 MOREL, Marco. Da gazeta tradicional aos jornais de opinião: metamorfoses da imprensa periódica no

Brasil. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P. (org.) Livros e impressos: retratos do setecentos e do oitocentos. Rio de janeiro: Editora da UERJ, 2009, p. 156.

13 De acordo com Roger Chartier, o público do século XVIII na França é “composto por homens e

mulheres de todos os estamentos”. CHARTIER, Roger. Espacio público, crítica y desacralización en el

siglo XVIII: los orígenes culturales de la Revolución Francesa. Gedisa, 1995. P. 34.

14 Reinhart Koselleck tratando do conceito de humanidade diz que enquanto este possuiu apenas um

sentido universal (“todos os homens”) foi “politicamente cego e neutro”. Para ele, a partir do momento que

o conceito de homem adquiriu uma diferenciação interna, homem como cidadão, o conceito de humanidade

adquiriu também “qualidades adicionais”. Adquirir essas qualidades é fundamental para a politização do

conceito, pois a exclusão e a disputa de sentidos o tornam polêmica e politicamente mais efetivo.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos históricos; tradução,

Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed.

PUC-Rio, 2006. P. 220.

15 GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 01/12/1810, nº 96.

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1830, referências ao “tribunal público” já podem ser encontradas mesmo na Gazeta. Na

verdade, o conceito de público, em sua longa trajetória, foi por diversas vezes utilizado

como recurso para responder à pergunta fundamental de “quem deve julgar” no âmbito

político e moral da filosofia. Em outro trecho também do Courier, a Gazeta insere a

seguinte passagem sobre problemas enfrentados na Inglaterra: “os Ministros trabalham

mais do que nunca; mas o público não tem conhecimento do resultado de suas

discussões”16. A ideia é de que o público deve ou pode checar as ações dos governantes.

A publicidade das ações das autoridades se tornará uma exigência comum após a década

de 1820 e a entrada efetiva dos ideais liberais no Brasil.

A terceira forma como a Gazeta contribui para as mudanças de sentido é através

da inserção em suas páginas de correspondências de pessoas não vinculadas diretamente

ao poder régio. A publicação de opiniões diversas sobre temas políticos ao saírem dentro

dos marcos do privilégio real acabaria por receber uma autoridade que passaria a se

rivalizar com as autoridades estabelecidas. Em grande medida, devido ao sentido da

publicidade que imperava no Antigo Regime e sua autoridade apriorística. Tal processo

era notado pelos redatores, e não à toa insere-se logo no primeiro número uma nota que

diz que “esta Gazeta, ainda que pertença por Privilégio aos Oficiais da Secretaria de

Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra não é contudo oficial; e o Governo

somente responde por aqueles papéis, que nela mandar imprimir em seu nome”17. Essa

passagem demarca um tipo de tensão específica que o surgimento dos impressos trouxe

para a realidade do início dos oitocentos. O “privilégio” continua sendo essencial para a

publicação, contudo, o governo não podia e nem queria se responsabilizar por todo e

quaisquer “papéis” impressos. Mesmo uma gazeta tradicional, originada “sob proteção

oficial” e “por iniciativa oficial”18, já tinha que lidar com a possível perda da

exclusividade da informação e se adaptar a um contexto no qual a “multiplicidade de

vozes” ganhava a cena pública, isto é, ganhava publicidade.

Ao longo da década de 1820 e a presença mais efetiva dos ideais liberais, o

movimento constitucionalista, as discussões sobre a liberdade de imprensa e o fim da

16 GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 08/02/1815, nº 2.

17 GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 10/09/1808, nº 1.

18 SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 4ª Ed., 1999. P. 19.

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censura prévia, a ampliação dos espaços de sociabilidade e dos números de periódicos,

entre outros fatores, contribuíram para aprofundar o processo e consolidar a mudança nos

sentidos dos conceitos. O dicionário de Antonio Morais Silva de 183119 foi editado por

Theotônio José de Oliveira Velho. Este, por sua vez, recorreu ao Ensaio sobre alguns

synonimos da Lingua Portuguesa de Francisco de São Luiz Saraiva (1776-1845)20, com o

intuito de esclarecer as diferenças de alguns termos utilizados geralmente como

sinônimos. Assim, o autor apresenta as diferenças entre divulgar, considerada uma forma

vulgar e oral de comunicação, onde as notícias são geralmente mentirosas; promulgar,

que diz respeito a “publicar com autoridade”, tratando especialmente das leis e decretos

dos legisladores; e publicar, propriamente, que se referia a “fazer saber ao público, fazer

constar a todo um povo, cidade ou nação”. A definição de quem é o público da

publicação ainda não está clara, mas este já possui “qualidades adicionais” que o diferem

de um público universal, tal como na ideia de “todas as classes de pessoas”, pois ele pode

ser o povo, a cidade ou mesmo a nação. Também se diferencia “público” de “notório”, a

partir da constatação de que “público” concerne aquilo que é “sabido de todos”, à

extensão do conhecimento, e notório significava certeza do fato:

Os jurisconsultos romanos designavam pelo vocábulo notória as

informações e instruções que davam conhecimento e prova do fato, e no

foro é como axioma que o fato notório não necessita de prova; porque a própria notoriedade o põe fora de toda controvérsia21.

Dessa forma, Francisco de São Luiz Saraiva conclui que “a simples publicidade

nunca teve esta prerrogativa, nem a terá jamais, senão quando o juiz tiver vontade, ou

interesse de condenar”. O autor pretende com isso separar a publicidade daquela

autoridade inerente que possuía, afastando-a das ideias de autenticidade e notoriedade

19 SILVA, António de Moraes. Diccionário da língua portugueza, reformada, emendada, e muito

accrescentada pelo mesmo autor: posta em ordem, correcta e enriquecida de grande número de artigos

novos e dos synonymos por Theotonio José de Oliveira Velho. Lisboa: Impressão Régia, 4ª Ed, 2 tomos,

1831.

20 O Tomo I foi publicado no ano de 1821 e teve uma segunda edição, acrescentada de alguns sinônimos,

no ano de 1824. O Tomo II saiu no ano de 1828. A terceira edição saiu em 1838. SARAIVA, D. Francisco

de São Luiz. Ensaio sobre alguns synonimos da língua portugueza. Lisboa: Typografia da Academia Real

das Sciencias, 2ª Edição, 1824.

21 SARAIVA, D. Francisco de São Luiz. Ensaio sobre alguns synonimos da língua portugueza. Lisboa: Typografia da Academia Real das Sciencias, Tomo II, 1828. pp. 28-29.

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pelas quais se compreendia o ato de tornar algo público anteriormente. Outra distinção é

entre “público” e “comum”, conceitos que até então também eram utilizados como

sinônimos. Para São Luiz Saraiva, “comum” é entendido distributivamente, no qual o

todo é constituído por partes. Os interesses da sociedade, corporação ou família

particular seriam comuns e não públicos. Já os interesses da nação seriam “comuns” e

“públicos”: comuns, pois cada indivíduo participa deles e “públicos, porque pertencem ao

todo dessa nação”. Dessa forma, o autor entende “público” como algo coletivo e unitário:

“Público é o que pertence ao todo da nação, povo ou cidade, considerada como pessoa

moral, debaixo da autoridade de um governo” 22.

Essas alterações no sentido da publicidade anotada na edição de 1831 tem início

com a Gazeta do Rio de Janeiro, como se procurou demonstrar, mas se desenrolam mais

efetivamente durante a década de 1820. A separação da publicidade das ideias de

autenticidade, promulgação e notoriedade, bem como o aumento considerável de

periódicos, folhas, manuscritos e cartazes, não são processos isolados. A percepção é que

a publicidade, que não estava mais sobre o controle das autoridades, ou ao menos não se

vinculava a elas diretamente, perde aquela autoridade recebida de maneira a priori. Com

ela, perde também sua força e certeza. Outro processo, contudo, contribui para substituir

e fundamentar a autoridade da publicidade, agora sob pressupostos relacionados a fatores

imanentes à própria condição de ser público. Refere-se a uma nova percepção sobre a

verdade.

Marco Morel em seu artigo sobre as Gazetas tradicionais anota uma passagem de

Voltaire, na qual este afirmava que “nem todas as verdades” estavam contidas nas

gazetas. Para Morel, o autor “se referia à verdade num dos sentidos mais peculiares da

filosofia, ou seja, o da justeza da visão de mundo”. Voltaire estaria apontando para o fato

de que as Gazetas “expressavam de algum modo suas respectivas visões de mundo”23. Tal

é a noção de verdade que gradualmente vai se tornando mais comum: a de que para se

chegar a ela é preciso conectar os pontos de vista, às diversas perspectivas, através de

discussão e debate. Essa noção já era comum nos círculos eruditos de Portugal desde o

22 SARAIVA, D. Francisco de São Luiz. Ensaio sobre alguns synonimos da língua portugueza. Lisboa:

Typografia da Academia Real das Sciencias, 2ª edição, 1824. p. 204-205.

23 MOREL, Marco. Op. Cit. 2009. p. 158.

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século XVIII, através das obras de F. Bacon (Novum Organum - 1620) e Newton

(Philosophiae Naturalis Principia Mathematica – 1687), e constituía as bases do método

experimental em oposição ao método dedutivo24. Novamente, Francisco de São Luiz

Saraiva explicita essa noção por meio da distinção entre na verdade/na realidade:

Como porém o filosofo nada possa conhecer da realidade das coisas, senão

por meio das suas ideias; nada da realidade absoluta, mas só da realidade

relativa; nada em fim do que as coisas são em si mesmas, mas só do que são com respeito a nós, e aos nossos conhecimentos; daqui vem que usam

promiscuamente as duas expressões na verdade e na realidade, atribuindo

nós sempre ao objeto as propriedades, ou relações, que vemos claramente envolvidas nas ideias que deles fazemos25.

Na acepção de Saraiva, a realidade seria o “mundo real” e a verdade o “mundo

intelectual”. De qualquer forma, não se tratava da verdade como “razão informada” pelos

textos, princípios e doutrinas da Igreja, mas sim de uma verdade relativa, no sentido dos

pontos de vista e perspectivas em conexão. Após 1820 é relativamente comum encontrar

referências a esse tipo de “verdade” na imprensa brasileira, que não só dissemina esta

forma de pensar como, baseada nela, justifica um tipo de autoridade imanente à

publicidade. A forma relativa da verdade funda a autoridade da nova publicidade.

Em 1822, o periódico A Verdade Constitucional diz que apesar de gritar no

coração do homem “o amor da verdade e da justiça (...) o excesso de paixões a tem

ofuscado em uns e tornado odiosa em outros muitos homens”26. Já no Reverbéro

Constitucional Fluminense, como a liberdade de imprensa teria possibilitado “arrancar as

máscaras que disfarçam os vícios: como ela pôde mostrar no seu verdadeiro ponto de

vista, aquilo que até agora era encarado pelo microscópio das paixões e dos prejuízos”,

teriam aparecido “atletas a combater a liberdade de imprensa”27. Gradualmente, essa

discussão parece ir tomando mais forma. Nos finais da década de 1820 já aparece mais

claramente este ponto de inflexão da verdade. O periódico A Aurora Fluminense diz que

“muito diversa é a índole do Sistema Representativo, ele exige franqueza, e discussão,

24 ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte,

2003.

25 SARAIVA, Francisco de São Luiz. Op. Cit. 1824. P. 184-185.

26 A VERDADE CONSTITUCIONAL, 16 de março de 1822.

27 REVERBÉRO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE, 15/11/1821. n. 5.

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para que apareça a verdade, e não são os Constitucionais, nem os homens honestos, que

devem recear-se de semelhante prova”28. Em outra passagem diz que "muitas matérias se

deixam de discutir, e de produzir interesse, por não haver o choque de opiniões diversas e

opostas, que faz aparecer mais brilhante a verdade"29.

Procuro chamar a atenção para o fato de que no discurso constitucional liberal que

emerge a partir de 1820 no Brasil, concebia-se que para se chegar a “verdade” era preciso

superar as paixões, os ânimos individuais, os interesses particulares. O conceito de

público e a publicidade passam a desempenhar uma função específica e eficaz nesta nova

concepção sobre a verdade. A publicidade era fundamental, pois apresentava as diversas

perspectivas para a formação de uma verdade superior, cuja força residiria exatamente na

troca de perspectivas e no debate político. Ao mesmo tempo, se o particular e o individual

obscurecia a verdade, apenas o recurso ao público podia fundamentar essa verdade. Por

isso disse que a força da publicidade, e sua própria autoridade, passam a ser extraídas de

um fator imanente ao próprio conceito, e não por uma “autorização” ou “regulação”

dependente da posição social de quem publica. De uma publicidade usada como

ferramenta de retidão moral, a partir de verdades, valores e normas estabelecidas

previamente por autoridades políticas e eclesiásticas, ela se torna a própria ferramenta de

formação destas verdades, valores e normas, não mais exclusivamente nas mãos dessas

autoridades, mas sim através de “indivíduos iguais” que se associam voluntariamente

visando o “bem público”.

Elias J. Palti também encontra na alteração do conceito de verdade indícios para

explicar as inflexões do sentido da “opinião pública”. Segundo ele:

opinión pública deja, en fin, de aparecer como la premisa para convertirse en un resultado de la politiká (entendida como publicidad); ésta eleva la

pura opinión subjetiva (doxa) a convicción racionalmente fundada (ratio),

convierte la mera opinión en ‘opinión pública’30.

28 A AURORA FLUMINENSE, 30 de julho de 1828.

29 A AURORA FLUMINENSE, n. 171, 30 de março de 1829.

30 PALTI, Elías J. El tiempo de la política: el siglo XIX reconsiderado. 1ª Ed. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2007. p. 168.

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Em outras palavras, a política entendida como “publicidade”, no sentido da troca

de opiniões e debate na formação da verdade, é elevada como pressuposto para a

existência da “opinião pública”. Aquela opinião ligada ao juízo particular, ao sentimento,

à incerteza, através da publicidade, se torna “opinião pública”. A associação da política

com a publicidade denota outra forma de pensar a teoria e a prática política. Nesta

concepção, a exclusividade do soberano nos assuntos de interesse geral, que justificava o

próprio “segredo” do exercício da política, é substituída pela ideia de que “qualquer um”

ou “todos” podem interferir nas decisões do governo, pois quanto mais “opiniões diversas

e opostas”, “mais brilhante” aparece a verdade. Pensando na tradução literal de

öffentlichkeit, trata-se da “aberturidade”. A “abertura” se torna o princípio que une a

publicidade e a política dentro do mesmo discurso. Nos termos Habermasianos, a função

da esfera pública/öffentlichkeit é mediar a relação entre sociedade civil e Estado. O que

pode ser compreendido, então, como a função de mediação que a publicidade exerce na

relação entre a sociedade e o poder.

Por fim, nesse mesmo período, e como consequência dessa abertura da

publicidade, aquilo que é tornado público passa a ter possibilidade de ser avaliado e

criticado pelo escrutínio do público. Este, dessa forma, torna-se um agente no processo.

“Comunicar”, “oferecer”, “apresentar ao Público”, é substituído por “aprovação do

Público”, “ao exame e crítica do Público”, “confiança pública”, “discussão pública”,

“submetida ao Público” e “execração Pública”. O público não só é “ansioso”,

“rancoroso” e “impaciente”, agora ele “obriga” os escritores a marcharem na causa da

constituição31 e também é capaz de ter e dar sua opinião.

Referências

Periódicos

A VERDADE CONSTITUCIONAL (1822)

AURORA FLUMINENSE (1827-1830)

GAZETA DO RIO DE JANEIRO (1808-1822)

REVERBÉRO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE (1821-1822)

31 REVERBÉRO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE, 15/11/1821, n.5.

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