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O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA (1). MARTIAL GUÊROULT A legitimidade da história da filosofia é periklicamente coloca- da em dúvida. Essa dúvida se inspira, essencialmente, quase sempre nos mesmos sentimentos: sentimento ingênuo de que a filosofia se assemelhe à ciência, e que, como a única ciência válida é sempre a mais recente, a única filosofia válida deveria ser também a mais re- cente; sentimento ingênuo de que qualquer filosofia só é possível pe- la negação, até mesmo pela ignorância das doutrinas passadas, visto que ela parte do ato livre de uma reflexão autônoma mais ou menos genial . Sem demorarmo-nos em discutir agora essas posições ingênuas, notaremos que a dúvida que incide sôbre a legitimidade dessa histó- ria nada pode contra sua existência. Legítima ou não, ela existe. Contestar o direito não poderia impedir de constatar o fato . Em conseqüência, deve-se pensar que é partindo do fato de sua existência que se deve tratar o problema filosófico de sua legiti- midade, do mesmo modo que Kant partiu da ciência como fato indis- cutivelmente existente (resposta à questão quid facti) para se colo- car o problema de sua legitimidade, isto é, de sua possibilidade, no qual se resolve o de sua validez (resposta à questão quid juris). O problema da legitimidade da história da filosofia nada tem a ver, então, com aquêle da metafísica como ciência, que Kant acredi- tava poder resolver a partir da solução do problema da legitimidade da ciência, porque se admite prèviamente, aqui, a existência dessa história cuja possibilidade se pesquisa, enquanto Kant colocava o pro- blema de uma metafísica que jamais havia existido até então. Não se trata de pesquisar se essa história é possível e legítima, mas — sendo indubitável sua existência como fato dado — como ela o é . (1) . — O presente artigo é um dos textos de A Filosofia da História da Filosofia, edição conjunta Vrin (Paris) — I.S.F. (Roma), 1956, págs. 45-68.

Gueroult O problema da história da filosofia

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  • O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DA HISTRIA DA FILOSOFIA (1).

    MARTIAL GUROULT

    A legitimidade da histria da filosofia periklicamente coloca-da em dvida. Essa dvida se inspira, essencialmente, quase sempre nos mesmos sentimentos: sentimento ingnuo de que a filosofia se assemelhe cincia, e que, como a nica cincia vlida sempre a mais recente, a nica filosofia vlida deveria ser tambm a mais re-cente; sentimento ingnuo de que qualquer filosofia s possvel pe-la negao, at mesmo pela ignorncia das doutrinas passadas, visto que ela parte do ato livre de uma reflexo autnoma mais ou menos genial .

    Sem demorarmo-nos em discutir agora essas posies ingnuas, notaremos que a dvida que incide sbre a legitimidade dessa hist-ria nada pode contra sua existncia. Legtima ou no, ela existe. Contestar o direito no poderia impedir de constatar o fato .

    Em conseqncia, deve-se pensar que partindo do fato de sua existncia que se deve tratar o problema filosfico de sua legiti-midade, do mesmo modo que Kant partiu da cincia como fato indis-cutivelmente existente (resposta questo quid facti) para se colo-car o problema de sua legitimidade, isto , de sua possibilidade, no qual se resolve o de sua validez (resposta questo quid juris).

    O problema da legitimidade da histria da filosofia nada tem a ver, ento, com aqule da metafsica como cincia, que Kant acredi-tava poder resolver a partir da soluo do problema da legitimidade da cincia, porque se admite prviamente, aqui, a existncia dessa histria cuja possibilidade se pesquisa, enquanto Kant colocava o pro-blema de uma metafsica que jamais havia existido at ento. No se trata de pesquisar se essa histria possvel e legtima, mas sendo indubitvel sua existncia como fato dado como ela o .

    (1) . O presente artigo um dos textos de A Filosofia da Histria da Filosofia, edio conjunta Vrin (Paris) I.S.F. (Roma), 1956, pgs. 45-68.

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    A frmula do problema , dsse modo, a mesma do problema kantiano relativo cincia . Aqui como l consideramos resolvida a questo quid facti e nos esforamos em seguida para justificar a pos-sibilidade do fato, isto , resolver a questo quid juris.

    Partindo do fato da existncia de metafsicas na histria, intei-ramente distinto do fato da existncia da cincia, cuja maneira de existir intemporal, como validez universal e necessria, nada tem a ver com a maneira de existir das metafsicas, no postulamos desde o princpio que s haveria soluo positiva possvel para as metaf-sicas se o fato metafsico pudesse ser reduzido ao fato cientfico .

    Assim, o reconhecimento prvio da realidade do fato, respeitado em sua autenticidade irredutvel, a condio necessria da rigorosa correo da pesquisa . Assegura-lhe um carter puramente especula-tivo e a impede desde logo de se transformar em uma emprsa ca-trtica ou normativa .

    Com efeito, o sentido da questo quid juris depende do gnero de resposta dada prviamente questo quid facti. Sendo a cincia considerada como existindo de fato, a descoberta das condies que fundamentam sua legitimidade no pode modificar o fato . Se, com Kant, se considera que a metafsica como cincia jamais existiu de fato, a resposta questo quid juris no poderia modificar o fato quando negativa, mas deve modific-lo quando positiva, promo-vendo a instaurao efetiva de uma tal metafsica. Somos conduzi-dos, assim, a determinar o que deve ser a metafsica, em lugar de descobrir o que a torna possvel em seu ser histricamente indestru-tvel.

    Disso resultam duas conseqncias: . a soluo do problema no poderia modificar nenhuma

    das caractersticas do fato, porque ela decorre do prprio fato . S tem o seu valor na medida em que traz luz as condies dsse fato tal como . Assim, finalmente, isto , no resultado, deveremos reen-contar sse fato intacto, pois em caso contrrio se destruiria a base sbre a qual a soluo se apoia totalmente;

    . a teoria s poder ser correta se o fato que est no ponto de partida colocado tanto ntegra quanto integralmente.

    * *

    Mas o que pensaremos precisamente, quando declaramos que a histria da filosofia existe de fato, que devemos pesquisar, em con-seqncia, como ela possvel, e descobrir assim o princpio de sua legitimidade? A impreciso do conceito de histria da filosofia no

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    primrdios da prpria filosofia (2) . Com efeito, a filosofia no pode se colocar em sua liberdade autnoma sem se determinar em relao ao que a precedeu como filosofia ou no filosofia segundo um processo de repulso e de acomodao. Essa necessidade de anta-gonismo e de comparao une indissoluvelmente, desde a origem, em tda filosofia, o presente e o passado; em poucas palavras, con-fere-lhe um aspecto histrico . Ao mesmo tempo, impe ao devir da filosofia, atravs de sua histria, sse carter de combate perptuo, de irredutveis conflitos e de conciliaes aparentes e precrias, que serviu de argumento aos cticos.

    Da o estreito vnculo que une em filosofia a histria e a polmi-ca, que so, no obstante, coisas inteiramente diversas . A histria, com efeito, se abstm de polmica. Ela , em princpio, fria e objetiva; v as obras com o recuo que adquirem as coisas passadas; busca an-tes de tudo um fim positivo, puramente didtico; visa assegurar a compreenso ntima, o contato com o pensamento autntico . A po-lmica, ao contrrio, sempre apaixonada e parcial ,essencialmente repulsiva e negativa, tendenciosa, e, freqentemente, pouco preocupa-da com a verdade histrica. Por outro lado, ela confere quilo que combate, pelo prprio fato de que o discute, um valor de atualida-de que lhe retira tda colorao histrica .

    Mas o contraste se atenua quando se trata de filosofia. Di-ferentemente da polmica cientfica, que se limita sempre discusso das doutrinas mais recentes, pertencentes cincia ainda vlida no momento, e que no possui a menor ligao com a histria, a pol-mica filosfica, incidindo tanto sbre as doutrinas mais antigas quan-to sbre as mais recentes, se encontra por isso mesmo ligada his-tria.

    A histria da filosofia, por sua vez, reencontra a polmica . Sendo o intersse vivo pela filosofia, que ampara a vocao do his-toriador, o que confere s doutrinas passadas sse valor sempre atual que as erige em objetos dignos da histria, torna-as por isso objetos sempre vlidos para uma polmica possvel.

    O historiador, enfim, de mal ou bom grado, se faz polemista quando julga as doutrinas, o que o conduz a tomar partido como fil-sofo e a colocar sua responsabilidade pessoal nesse juzo .

    Essa ligao sui-generis entre a histria e a polmica filosfica, e a unio indissolvel entre a filosofia e sua histria so dois traos pelos quais a filosofia se ope cincia. Essa oposio advm da presena, na cincia, de verdades ad- quiridas, o que no se d na filosofia.

    (2) . Cfr. MARIO DAL PRA, La Storiografia Filosofica Antica, Milano, 1950.

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    retira dessa questo tda a clareza que ela possui quando relativa cincia?

    A histria da filosofia no , como a cincia, uma disciplina perfeitamente definida e universalmente aceita, tanto no que diz res-peito ao seu mtodo, quanto s suas finalidades . Nada mais vari-vel que as mltiplas formas sob as quais ela se apresenta . Tda his-tria da filosofia supe, com efeito, implcita ou explicitamente, um certo conceito de filosofia que a predetermina . Se h tantos concei-tos e espcies de histria da filosofia quantos so os conceitos poss-veis de filosofia, podemos ainda falar do fato da histria da filosofia? No absoluto o contraste entre sse pretenso fato e o fato da cin-cia, que no varia nem poderia variar segundo as concepes que dle se podem forjar?

    Todavia, a diversidade de formas que o fato da histria da fi-losofia reveste, sua dependncia com relao a concepes filosfi-cas, implcitas ou explcitas, dos historiadores, no poderia mascarar a realidade bruta do fato, que resta considerar em si mesmo, inde-pendentemente da variabilidade de suas formas . Em conseqncia, dizer que a histria da filosofia existe de fato significa, de modo pre-ciso, dizer que, aps algum tempo, existem de fato estudos e pesqui-sas sbre as filosofias passadas, a fim de represent-las conscincia filosfica do momento, segundo o sentido autntico em que se pre-sume que seus autores a entendiam. Por isso supe-se que essas fi-losofias, qualquer que seja sua poca, conservam uma certa validez para a reflexo filosfica de qualquer poca.

    A indissolubilidade da filosofia e de sua histria uma caracte-rstica essencial do fato dessa histria. Quaisquer que sejam suas formas, por desligada, objetiva e crtica que possa ser concebida, es-sa histria sempre, ao mesmo tempo, filosofia, sendo o intersse que a sustenta o da filosofia e no o da histria. A pesquisa da ver-dade histrica no tem por fim ltimo, especificamente, essa mesma verdade histrica, mas a valorizao das capacidades de sugesto filosfica que essa verdade encobre a ttulo de filosofia . No se tra-ta de satisfazer a uma v curiosidade erudita, nem a uma preocupa-o em relao psicologia, sociologia, etc ., mas de assegurar o melhor contato efetivo entre o pensamento filosfico do momento e o autntico pensamento de outrora, em vista de fortificar e de esti-mular a reflexo filosfica presente .

    Correlativamente, a filosofia no pode se dissociar do seu pas-sado, nem, conseqentemente, de sua histria . Desde que os siste-mas apareceram, a livre reflexo filosfica se ocupou e no cessou de se ocupar deles, a ponto de certos historiadores da historiografia fi-losfica fazerem coincidir os primrdios dessa historiografia com os

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    So as verdades adquiridas que dissociam inteiramente, na cin-cia, a histria da polmica, e a polmica da histria. A verdade adquirida limita a polmica s doutrinas mais recentes, no por causa de sua data, mas porque so as nicas cientificamente vlidas . A po-lmica no se encontra, ento, jamais, no plano da histria.

    Isso porque a cincia nada tem a ver com sua histria: sendo constituda de verdades intemporais, ela se coloca fora do tempo. No nem a antigidade, nem a atualidade, o que ope o ontem ao hoje da cincia: a presena neste caso, e a ausncia naquele outro,. de tais verdades intemporais adquiridas . A ignorncia de uma ver-dade hoje adquirida constitui o passado para a cincia . Mas uma verdade adquirida anteriormente no faz da cincia que a adquiriu uma cincia de ontem. Tal cincia j , por isso mesmo, a cincia de hoje, ou, antes, pura e simplesmente, a cincia, que no de ontem de hoje. Uma cincia s de ontem em virtude dos erros hoje denun-ciados que a tornam uma no-cincia (3) .

    Disso resulta que a cincia e sua histria tm dois objetos ra-dicalmente distintos: a primeira, a verdade cientfica, que intem-poral; a segunda, a aquisio dessa verdade, que se d no tempo. A histria da cincia no pode, ento, de nenhum modo, fazer parte da prpria cincia . O intersse que as sustenta, respectivamente, muito diferente.

    Disso resulta igualmente que a histria da cincia no pode ser seno a histria de um progresso, porque sendo a histria da aquisi-o da verdade, todo enfraquecimento ou declnio que conduzam a um deslize para alm da verdade so estranhos cincia e no per-tencem mais sua histria, isto , ao processo de aquisio da ver-dade. A histria da cincia a histria das descobertas e no a dos erros, pois stes s so conhecidos como tais em virtude das desco-bertas .

    Em razo disso, a cincia que, uma vez feita, esclarece e fe-cunda sua histria: no sua histria que a esclarece e a fecunda. E tambm em razo disso que a iniciao s cincias s se faz atra-vs de sua prtica, e no pelo estudo de sua histria .

    Em filosofia, a ausncia de tda verdade adquirida dissipa a oposio entre o conceito de aquisio temporal e o de verdade in-temporal, oposio que fundamenta para a cincia a dissociao com sua histria. Em conseqncia, a histria da filosofia no poderia ser a histria de um progresso, no poderia ter como objeto de estudo a aquisio da verdade; ela visa um conjunto de doutrinas situadas sbre o mesmo plano e que conservam, tdas, uma relao possvel

    (3). -- Isso vlido sobretudo para as cineias exatas.

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    com uma verdade no adquirida, que jamais dada e que resta sem-pre por procurar. Tudo o que h de filosofia no mundo reside nes-ses sistemas cujo valor (filosfico) os coloca como objetos dignos tanto de uma histria quanto de uma polmica . Alm disso, ao con-trrio do que se passa nas cincias, a histria da filosofia de fato o instrumento principal de iniciao filosofia, e, para a filosofia, fon-te permanente de inspirao .

    A ausncia de verdades adquiridas faz com que a filosofia no possa ser encerrada, como uma cincia, em um corpo constitudo por verdades annimas, aceitveis sem nenhuma oposio por tdas as inteligncias, mas faz com que ela possa parecer residir no conjunto das filosofias surgidas no decurso das diferentes pocas . Essas filo-sofias subsistem, inabalveis, na memria coletiva dos povos civili-zados, mesmo quando, aps muito tempo, so anuladas as circuns-tncias cientficas, religiosas, econmicas, polticas e sociais que as condicionaram e em que pareciam enraizadas .

    Poder-se-ia crer, ento, que a indestrutibilidade dessas filosofias contrrias se deva Unicamente ausncia nelas de alguma verdade adquirida: se nenhuma pode provar definitivamente sua verdade, ne-nhuma pode, igualmente, refutar definitivamente as outras; donde um cosmos de possibilidades especulativas indefinidamente em equilbrio, sendo tdas igualmente plausveis e incertas . Assim, a dvida miti-gada da Academia fez florescer o ecletismo que acolhia os prs e os contras com igual indiferena .

    Mas no se trata especificamente dos pontos de vista semi-cticos do ecletismo . Trata-se do fato histrico da subsistncia atravs do tempo de filosofias contrrias entre si, e freqentemente em oposio com as verdades estabelecidas de uma cincia mais evoluda. A au-sncia nelas de verdades adquiridas apenas uma condio negativa da possibilidade de sua subsistncia. ste elemento puramente nega-tivo no poderia por si mesmo seno servir de base sua caduquice total, sem poder se constituir num princpio positivo para sua indes-trutibilidade de fato .

    Em conseqncia, o problema da possibilidade da histria da filosofia como disciplina se transpe no problema da possibilidade dos objetos dessa disciplina, isto , no problema transcendental da possibilidade das filosofias como objetos permanentes de uma hist-ria possvel; enfim, no problema da possibilidade das filosofias como pluralidade de filosofias irredutveis uma s outras, indestrutveis por-que eternamente vlidas para a reflexo filosfica.

    Essa nova frmula confirma que o problema em questo mos-tra-se inteiramente diferente do problema da possibilidade da metaf-sica como cincia. Tratava-se naqule caso de nos perguntar se a

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    metafsica poderia se tornar capaz de adquirir uma validez que lhe faltava: a da cincia. Estabelecemos que, na negativa, ela no possuiria nenhuma. Havia especificamente o postulado de que nenhuma vali-dade seria concebvel fora do tipo da validade cientfica; que a verda-de s seria concebvel e definvel nos trmos em que a cincia a de-finia e concebia em sua prpria esfera, isto , como verdade de juzo. Tratava-se, em conseqncia, de examinar se a metafsica, referin-do-se aos objetos que escapam cincia, poderia se tornar uma cin-cia. Se ela poderia ser cincia permanecendo no-cincia, isto , me-tafsica. Seria preciso examinar si se poderia investir a metafsica de uma validade que, no apenas ela jamais havia possudo, mas que no poderia possuir jamais .

    Em contrapartida, negligenciava-se a validade que ela havia sem-pre possudo, ou seja, essa misteriosa propriedade dos sistemas de permanecerem vlidos para a reflexo filosfica, de se impor na pe-renidade da histria apesar de seus conflitos recprocos, e apesar ainda de seus conflitos com as verdades adquiridas da cincia .

    O defeito no era especificamente imputvel ao mtodo trans-cendental, mas maneira como era empregado . Se . Kant considera-va o fenmeno indiscutvel da validade da cincia, le no reconhecia ste outro fenmeno, no menos patente, da validade das metafsicas, vlidas no como a cincia, pela verdade segura de sua representa-o das coisas, mas por sua conservao indefinida atravs do tempo como objetos invulnerveis da reflexo filosfica, a despeito da im-possibilidade em que elas se encontram de fundamentar sua certeza, a despeito de sua freqente contradio com a verdade cientfica .

    Kant possui, todavia, uma excusa . Se a histria atesta que a validade e a verdade metafsica so de uma ordem diversa das da cincia, j que elas podem subsistir em condies em que perece tda pretensa cincia, cada filosofia, por outro lado, no possui outra finalidade alm de estabelecer uma representao verdadeira de um dado, e no se atribui outra validade possvel que uma verdade de juzo, isto , uma representao objetivamente verdadeira . Disse modo, cada filosofia contradiz, por sua vez, o fenmeno da histria da filosofia . Era natural que Kant, percebendo em cada uma delas esta mesma pretenso, permanecesse cego ao fenmeno que ela con-tradizia; e que a retomasse, ao se perguntar se seria possvel que uma metafsica pudesse se constituir como cincia, isto , chegar a esta-belecer uma verdade de juzo indiscutvel, e a conquistg por isso uma certeza to inabalvel quanto aquelas da cincia.

    Em todo caso, resta que o ponto de partida da investigao trans-cendental s pode residir no fato (ou fenmeno) da validade perma-

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    nente ou indestrutibilidade histrica das filosofias, independen-temente de sua pretenso a uma verdade representativa. Tentando descobrir as condies dessa misteriosa validade, inabalvel re-futao cientfica, poder-se- esperar conseguir captar a essncia da verdade filosfica, princpio profundo da indestrutibilidade histrica das grandes obras que aguardam.

    Donde se v que o nico mtodo admissvel para tentar resol-ver o presente problema que no outro, finalmente, que o da legitimidade das verdadeiras filosofias, na medida em que so atesta-das como tais por sua indestrutibilidade consiste em partir da ex-perincia histrica que nos apresenta seu ser imortal para descobrir, graas ao conhecimento das condies de possibilidade dessa expe-rincia, a essncia do tipo de verdade que seu fundamento ltimo.

    A determinao do que a filosofia, de sua essncia, do seu tipo de verdade, o que a investigao deve concluir, e no o que deve introduzir . A essncia da filosofia no o que deve permitir chegar soluo do problema mas, pelo contrrio, aquilo a que essa soluo permite chegar. Essa essncia a incgnita x que se trata de procurar. O nico elemento conhecido de que dispomos a ex-perincia histrica das filosofias, na medida em que le nos fornece, atravs dos fatos, os caracteres extrnsecos, mas indubitveis, que permitem uma definio puramente nominal dessa verdade filosfica cuja definio real o objeto ltimo da pesquisa. Essa definio, com a qual dever concordar a determinao real final dsse objeto, poderia ser a seguinte: essa verdade tal que, apesar da contradio recproca das filosofias, enquanto teorias que pretendem chegar a uma verdade representativa e de juzo, e apesar de sua contradio atual ou possvel com as verdades cientficas, ela fundamenta essas filosofias como objetos indestrutveis para a histria; e, em conse-qncia, sempre vlidos para a conscincia filosfica e dignos de ser erigidos como objetos de uma historiografia possvel.

    *

    Ora, de uma maneira geral, desde que o problema se colocou, le foi tratado por um mtodo inverso .

    Em lugar de terminar pela determinao da essncia da filoso-fia, comea-se por colocar seu conceito e sua definio, para valori-zar o conjunto dos sistemas passados por meio de sua reduo a sse conceito .

    Assim, o fundador da historiografia filosfica antiga, Arist-teles, interpreta todo o passado da filosofia em funo de seu siste-

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    ma de causas e da passagem da potncia ao ato . Ele fundamenta o valor de tdas as doutrinas anteriores e justifica sua oposio como conflitos de verdades parciais, cuja sntese assegurada por sua pr-pria doutrina . le conduzido por isso, seno como Hegel a um siste-ma da histria, pelo menos a uma histria cujo aspecto sistemtico contrasta com aqule que ela possui de fato . A filosofia desenha a priori um quadro lgico onde se inscrevem por anticipao tdas as doutrinas concebveis de direito . A histria s intervm para preen-cher sse quadro . E s o preenche, alis, parcialmente, porque de-terminadas doutrinas jamais se sustentaram histricamente (4) . No limite, parece que se poderia prescindir da histria, porque ela no traz por si nada de nvo, e apenas ilustra in concreto, de modo subsi-dirio, algumas das frmulas que a filosofia fornece a priori de mo-do preciso .

    O fundador da historiografia moderna sse no mais um fi-lsofo, mas um erudito, historiador de profisso Jacob Brcker (5), requer tambm uma determinao prvia do conceito da filoso-fia, sem o que seria impossvel, a seu ver, escrever e compreender sua histria, e fundamentar o intersse prprio das doutrinas que lhe so objeto . A definio da filosofia como "cincia que expe as re-gras e os princpios da verdade divina e humana" constitui a introdu-o sua histria . Essa histria, examinando a fundo a origem do pensamento filosfico e sua marcha at as pocas mais recentes, se apresenta, ento, como "o progresso da inteligncia humana" (6) .

    A determinao prvia do conceito da filosofia de nvo pro-clamada como necessria por Charles Garve, em seu De Ratione Scribendi Historiam Philosophicam (Leipzig, 1768), e, depois, por todos os grandes historiadores ou filsofos dessa histria, desde Tied-mann at Hegel. Depois de Hegel, prticamente no existe doutrina que no tente tirar de si prpria, como concluso, uma filosofia da filosofia, donde deriva uma filosofia da histria da filosofia. Mesmo pensadores como Dilthey e Jaspers, na Alemanha, Bergson e Bruns-chvicg, na Frana, que parecem preocupados em preservar contra os conceitos a priori a independncia e a vida original de cada doutrina passada, chegam finalmente a compreend-las apenas por intermdio de uma doutrina da filosofia prviamente constituda . Conclui-se sempre da essncia da filosofia, suposta conhecida, a justificao e explicao de seu passado e de sua histria . Ora, um mtodo racional e positivo deve prescrever, pelo contrrio, essa histria, como ponto

    . ARISTTELES, Fsica, I, 184 b, 15 s/.; Tpicos, VII, 6, 145 b, 2; VIII, 2, 162 a, 17; De Coelo, I, 10, 279 b; Metafsica, A, 4, 895 a 22; M, 6, 1080 a 15 s/.

    J. BRCKER, Historia critica philosophiae, Le1pz1g, 1742-44. . BRUCKER, op. cit., I, pg. 3-21.

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    de partida, apresentada como um fato conhecido, para se chegar descoberta das condies desconhecidas que a tornam possvel como indestrutvel e viva . Por sse caminho, poder-se-ia esperar determi-nar a essncia ainda desconhecida da filosofia .

    * *

    O incoveniente mais imediatamente visvel do modo habitual de proceder que os conceitos da essncia da filosofia so infinita-mente numerosos, to numerosos quantas so as filosofias particula-res . Em lugar da soluo do problema resultar da considerao de fatos idntica e universalmente constatveis. encontra-se dessa for-ma virtualmente decidida por antecipao, e entregue ao arbtrio de decises a priori, subjetivas e individuais.

    Para permanecer nos tipos mais gerais, essa essncia concebi-da seja como arte, seja como intuio da vida, como tambm, mais freqentemente, como cincia . Se ela for concebida como cincia, essa cincia, por seu lado, pode ser concebida das maneiras mais di-versas: seja como acumulao regular de contribuies sucessivas (Tiedmann, Reinhold (7), etc., Enciclopedistas), seja como geo-metria espiritual abstrata, expresso fenomenal de um desenvolvi-mento lgico da razo (Kant, Flleborn, Reinhold (8), Goess, Groh-mann, etc. ), seja como cincia especulativa que o esprito se d de si, realizando-se por isso mesmo (Hegel), seja como constituio pro-gressiva, por seleo segundo uma lei, de uma cincia total de ver-dade necessria e infinita, em que se elimina a liberdade, fonte si-multneamente do rro e do progresso para o verdadeiro (E . Zel-ler), seja como conscincia filosfica do esprito filosfico que se pro-move a si prprio e a seus conceitos, criando a cincia (Brunschvicg), etc

    Quaisquer que sejam essas variantes, a histria da filosofia se encontra legitimada sob forma de progresso, o que nada possui de surpreendente j que tda a histria da cincia apenas a histria de um progresso (9) .

    . Nos Beitrge zur leichteren Uebersicht dez Zustandes der Philosophie, etc. (1801-1802) .

    . Nos Beitrge zur Berichtigung bisheriger Missverstndnisse der Philosophie (1790-179) .

    . Pode parecer que a concepo da essncia da filosofia como cincia no acarrete sempre, nem necessriamente, a introduo do progresso em sua histria. Brentano, por exemplo, que v a filosofia como uma cincia te-rica, concebe sua histria como um desenvolvimento segundo uma srie de ciclos fechados sbre si, cada um comportamento quatro fases. A filo-sofia, fiel sua essncia na primeira fase, degrada-se progressivamente nas trs ltimas, e termina por contradizer o que ela essencialmente. Ento,

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    Em conseqncia, introduz-se em filosofia a noo cientfica de verdades adquiridas, e fundamenta-se sse progresso sbre a ordem de aquisio dessas verdades . Somos levados, ento, seja a afirmar com Hegel que as filosofias mais tardias no necessriamente mais verdadeiras que as antigas, seja a fazer com Brunschvicg, em cada doutrina antiga ou recente a triagem dos elementos falsos e dos elementos verdadeiros definitivamente adquiridos, para estabelecer a complicada curva do progresso .

    Ora, bem evidente, nesse caso, que se trata de puras fices, desmentidas pelos fatos . sses testemunham que no h verdades adquiridas em filosofia, que nada escapa a uma perptua recoloca-o em questo, que nenhum progresso pode ser afirmado, pelo me-nos quando se trata de cada sistema considerado em si (porque po-deria haver um progresso para a disciplina filosfica em geral, pelo crescimento do nmero de conceitos e anlises, e pelo aperfeioamen-to do instrumento mental) .

    No obstante, a necessidade de definir prviamente a essncia da filosofia para se poder refletir filosficamente sbre seu passado foi defendida por Hegel como imposta pela natureza das coisas . Ns-te ponto, sua doutrina a transformao e a sublimao da de Winckelmann, relativa arte e sua histria .

    Sendo, para Winckelmann, a histria da arte diferente da hist-ria dos artistas, impossvel tratar dela sem se preocupar primeira-mente em saber o que a arte. Donde essa declarao: "A essncia da arte antes de tudo a minha finalidade". Donde o desejo de con-sagrar a primeira parte de sua obra a uma investigao sbre a arte "considerada em sua essncia". A histria da arte toma, em conse-

    ela se instaura de nvo como cincia na primeira fase do ciclo seguinte. Brentano, Die Vier Phasen der Philosophie, 1935, ed. Meiner, 1926, pg. 7-32.

    Todavia, deve-se observar que, a cada vez que ela no foge sua essncia e que se apresenta como cincia terica isto , em tdas as primeiras fases a filosofia reencontra um progresso linear. Por a se confirma a indissolubilidade da cincia e do progresso. Alm disso, se a essncia da filosofia fsse uma cincia, deveria excluir de sua histria co-mo dela prpria tudo o que escapasse sua essncia como cincia, isto , as trs ltimas fases. S restaria, ento, o progresso das primeiras fases de cada ciclo. A cincia, com efeito, elimina de si prpria como de sua histria tudo o que regresso, decadncia. Ela s retm de seu passado o que pode figurar como uma etapa de seu progresso.

    Notar-se- que certas doutrinas que definem a filosofia como cincia especulativa combinam a idia de ciclo (Rck-kehr) com a de desenvol-vimento (Entwicklung) . Hegel, por exemplo. Mas o ciclo um meio pelo qual se d o desenvolvimento.

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    qncia, o carter de um sistema . sse sistema chega a determina-es a priori. le liga necessriamente tal ou qual caracterstica das obras a tal ou qual momento particular da evoluo da arte em ge-ral. Pode-se, ento, de modo completamente a priori, situar hist-ricamente uma obra a partir de seus caracteres, isto , sem conhecer sua data nem sua origem (10) .

    E' incontestvel que a crtica artstica, e sobretudo os especia-listas reclamam uma tcnica que permita situar seguramente, pela considerao de suas caractersticas, tdas as obras de data e de es-cola desconhecidas . O mtodo Winckelmann, que no deixa de pos-suir, alis, alguma afinidade com aqule que Cuvier pratica a prop-sito dos sres vivos, responde a essa necessidade de crtica.

    Mas apoiando-se, de certa maneira, nos resultados de uma an-lise de grandes obras concretas, le oferece essa particularidade de ser guiado tambm, seno mais, pela concepo da essncia da arte. Essa concepo, que serve de fio condutor para a investigao hist-rica, s pode ser filosfica e a priori. A histria, ultrapassando as manifestaes particulares e concretas, toma, ento, como objeto uma entidade abstrata: a arte. Ela acompanha o seu desenvolvimento re-gular, desenvolvimento que imanente a essa entidade, e que se efe-tua segundo leis estranhas vontade consciente dos criadores . Esta-belece-se, ento, um processo de evoluo contnuo, gentico e in-consciente, acima dos esforos individuais e concretos e alm da rea-lidade das obras concretas . E a essa entidade, a arte, que se encon-tra sistemticamente aplicada a antiga comparao (que data de Pru-dncio e Aulo-Glio) entre a histria da civilizao humana e o cres-cimento de um homem: infncia, juventude, velhice.

    Parece que basta transpor para a filosofia essa concepo de Winckelmann, que devia entusiasmar Herder (11), e que parece pressentir a potncia de formas, para obter os traos essenciais da doutrina hegeliana . Para empreender e compreender a histria da fi-losofia no preciso tambm conhecer de sada a essncia da filoso-fia? Essa histria nos far conhecer, ento, temporalmente e a pos-teriori, o que o Esprito, no qual reside a essncia de tda filosofia, assume intemporalmente e a priori. Donde a noo de um desenvol-vimento intemporal do esprito, que a alma do desenvolvimento temporal da histria . Donde um sistema da histria a priori, em que so determinadas in abstrato tdas as formas possveis das filosofias, e a idia necessria de sua sucesso . Como o historiador da arte, o historiador da filosofia dever prviamente fazer-se filsofo: "a con-

    . WINCKELMANN, Geschichte der Kunst des Altertums (1764), Vorrede, particularmente pg. 9 (ed. Phaidon, Viena) .

    . HERDER, Denkmal Johann Winckelmann's, Ibid., pg. 44.

  • 201 W il

    dio prvia da crtica filosfica e da interpretao de sua histria a determinao da Idia da filosofia, do mesmo modo que a crtica artstica supe prviamente a determinao da Idia da arte". Sen-do essa idia una e sempre a mesma porque a beleza una fundamenta a objetividade da crtica artstica . Do mesmo modo, a crtica filosfica s pode se constituir pela definio prviada Idia da filosofia . Sendo essa idia una porque a verdade una, como a beleza permite fundamentar a objetividade do juzo . Sem uma tal idia, a crtica filosfica sossobraria em uma srie de apreciaes puramente subjetivas . A possibilidade de uma crtica filosfica obje-tiva supe, ento, a conscincia de que no h filosofias essencialmen-te diferentes e, todavia, igualmente verdadeiras, mas que apenas exis-te uma nica filosofia sob formas diferentes, "porque, do mesmo mo-do que no h vrias razes mas uma s, no h vrias filosofias mas uma s, visto que a filosofia apenas exprime a razo" (12) .

    V-se como Hegel transpe aqui Winckelmann, e tambm o quanto vai muito mais longe que le.

    Para Winckelmann, com efeito, a arte se forma na histria . Possui sua infncia, sua juventude, sua velhice . Constituiu-se um certo dia, tornando-se bela . A filosofia, para Hegel (13), no nas-ceu um dia, como a arte . Ela eterna e consubstanciai ao esprito. No repudia nenhuma das formas mais antigas . Conserva-as em seu seio: antigas ou recentes, elas esto, na verdade, fora do tempo e so indestrutveis . A histria da filosofia apenas a manifestao tem-poral de uma filosofia imanente que se furta ao devir e corrupo. No so essas verdades eternas que pertencem ao tempo e a suas vi-cissitudes, mas simplesmente sua revelao progressiva.

    O conhecimento da essncia da filosofia aparece, ento, a He-gel como uma condio necessriamente prvia a qualquer conside-rao de sua histria . Sem ela, recai-se na atitude prpriamente his-trica, que tende a lanar as filosofias a um passado morto, que tende a trat-las como fatos cumpridos, esvaziados de sua seiva, pron-tos a serem contemplados "objetivamente", isto , como coisas es-tranhas que nos deixam indiferentes (14) .

    Em verdade, Hegel confunde duas coisas . E' certo que impossvel tratar da histria da filosofia si nos

    falta sse sentido filosfico inato que responde sugesto de doutri-

    (12). HEGEL, Ueber das Wesen der philosophischem Kritik, "Sritik Jornal d. Phil.", Stck I 1802 S. W. XVI pg. 33 ss/.

    (13) . Phaenomenologie des Geistes, Vorrede (Lasson) pg. 4 Geschichte der Philosophie, S. W. XIII pg. 51.

    (14). HEGEL, Bit ferenz der Fichteschen und Schellingschen Systems der Philo-sophie, Iena, 1801, S. W. I pg. 167-168. Compara com a critica do ponto de vista da Betrachtung em Jaspers, Philosophie, I, pg. 241 s/.

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    nas conservadas pela histria, e graas ao qual ns as reconhecemos como realidades filosficas substanciais e vivas . Com efeito, a sse ttulo que a histria as conservou, e no a ttulos de fatos termi-nados, esvaziados de sua seiva como as opinies da doxografia .

    Mas essa urgncia no significa, de nenhuma maneira, que a investigao filosfica concernente histria da filosofia suponha co-mo condio sine qua non uma filosofia prvia da essnca da filoso-fia . O sentido filosfico que reconhece em cada doutrina uma vida prpria convida a assumi-las segundo sua vida respectiva. Uma dou-trina particular que determine a essncia de tdas as filosofias como condio da soluo do problema de sua validade no as assume conforme a vida prpria de cada uma, mas conforme a sua prpria vida . Ela suprime, ento, seu objeto, fazendo-o esvaecer-se em si. Existem, nesse caso, tantas filosofias da histria da filosofia quantas so as filosofias . Ela se excluem reclprocanaente umas s outras co-mo as diversas filosofias . Destinadas a justificar uma histria da filo-sofia como perenidade de filosofias temporalmente indestrutveis pa-ra a conscincia filosfica, elas terminam por des'i'ru-la em proveito da validade intemporal e absoluta de uma doutrina particular. Abo-lem o fato que pretendiam fundamentar; detm a histria em si pr-prias .

    * *

    Poderamos dizer, verdade, que essas conseqncias pernicio-sas no se referem concepo prvia da essncia da filosofia, mas falsa concepo de sua essncia como cincia .

    Desde o sculo XVII, o ceticismo teolgico de um Daniel Huet, partindo da antinomia instituda por Descartes, ou a cincia ou a tradio filosfica, opunha-se opo cartesiana, acreditando poder salvaguardar a tradio, arruinando em seu proveito o valor da cin-cia . Uma vez destrudo o dogmatismo da cincia cartesiana, torna-se novamente disponvel o tesouro da sabedoria humana acumulado no decorrer do tempo pela experincia e pela reflexo . sse tesouro no contm, todavia, verdades absolutamente certas, mas certezas morais, possibilidades, verossimilhanas . O humanismo valorizava assim o passado da filosofia por um ceticismo mitigado que, para melhor aba-ter o cientificismo, acreditava dever comear por abater a cincia (15) .

    (15) . D. HUET, Huetiana, cap. XXVIII; Censura phil. cartesianae, Paris, 1639; De Ia Faiblesse de l'esprit humain, Amsterdam, 1723.

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    Vico, por sua vez, sob as influncias combinadas de Huet e de Bayle, tenta, em seu De Antiquissima (16), reabilitar o saber hist-rico e a tradio, em nome de um humanismo que se afirma sbre as runas da certeza matemtica e fsica.

    Nossa poca no mais permite tais extremos . Repugna-lhe sal-var o passado da filosofia marginalizando tda cincia vlida, e re-correndo ao ecletismo. Se ela contesta que tda filosofia seja uma cincia, no nega a cincia em geral, mas a ope cincia; e isto pa-ra denunciar uma iluso contrria ao fato, e nefasta tanto para a fi-losofia quanto para sua histria . Concordam a sse respeito histo-riadores e filosfos das mais diversas tendncias; na Itlia, Gentile, e, sob certos aspectos, B . Croce; na Frana, Brhier e E . Souriau; na Alemanha, aps Schleiemacher e Ritter, Dilthey, Jaspers e outros .

    Assim, aps haver dissociado a filosofia da cincia, e t-la oposto a esta, torna-se muito fcil captar sua verdadeira essncia e explicar, a partir dela, o fenmeno de sua manifestao histrica no que le possui de especfico . Sendo a filosofia interioridade, compreenso, no evidente que no se poderia resolver o problema colocado por sua histria se, sob pretexto de uma objetividade to v quanto contrria quilo pelo que ela se caracteriza, ns nos contentssemos em focali-zar de fora o conjunto dos sistemas, sem conceber prviamente a es-sncia do filosofar, isto , sem primeiramente elaborar uma filosofia da filosofia?

    Dsse modo, Dilthey, se bem que pretendendo ir da histria filosofia, e no da filosofia histria, julga que sem o conhecimento prvio dessa essncia seria impossvel utilizar o mtodo transcenden-tal para resolver a antinomia da filosofia e de sua histria . Para le, como todo sistema depende da atitude geral da conscincia na poca em que nasce, suas condies de possibilidade s podem ser descober-tas recorrendo-se conscincia histrica, na medida em que ela com-bina um fator permanente, que resulta da estrutura imutvel, e um fator de variabilidade, que resulta do devir histrico do esprito . A essncia da filosofia manifesta-se, ento, no como cincia prpria-mente dita, que pertence esfera cultural da atividade interessada, tendo por misso esclarecer essa ltima, mas, do mesmo modo que a poesia e a religio, como viso total do mundo, Weltanschauung desinteressada, "complexo espiritual que envolve um conhecimento do mundo, um ideal, um sistema de regras, uma finalidade suprema que no implica jamais a inteno de completar atos precisos" (17) .

    (16) . VICO, De Antiqussima Italorum sapientia ex linguae latinae originibus emenda (1710).

    (17). DILTHEY, Die Typen der Weltanschauungen S. W. (ed. Teubner, Berlim, V, pg. 380).

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    A relao dos diversos tipos de W. A. conscincia que os suben-tende, permite especificar essa essncia da filosofia, opondo-a s W . A. potica e religiosa . Descobre-se, ento, que a W. A. filo-sfica fundamentada sbre a faculdade de conhecer (o que acarreta sua organizao lgica), enquanto a W. A. potica est fundamen-tada sbre a faculdade afetiva, e a W . A. religiosa sbre a faculda-de volitiva; descobre-se, ento, que a W. A. filosfica se diversifica, por sua vez, em trs tipos principais, na medida em que o princpio de organizao lgica escolhido , seja o conhecimento, seja a afeti-vidade, seja a vontade. Descobre-se, enfim, que as diferentes formas assumidas por cada um dsses tipos atm-se a fatres histricos e individuais submetidos mudana . Dessa forma, os diversos siste-mas relacionados diversidade de funes de nossa conscincia so percebidos como seus reflexos, e cessam de se contradizer no sen-do mais objetivados como possuindo um valor representativo .

    V-se por isso como a determinao prvia da essncia da fi-losofia aparece como o nico caminho que nos permite captar as con-dies que tornam possveis todos os sistemas, e que nos permite dis-sipar a iluso transcendental de seu valor objetivo, fonte de sua anu-lao por contradio recproca.

    De modo semelhante, filosofando primeiramente sbre a es-sncia da filosofia que Jaspers, se bem que em oposio Dilthey, tambm cr poder resolver o problema.

    Essa essncia captada como Weltanschauung radicalmente oposta cincia, isto , no plano da Weltorientierung . Conscincia original do ser que surge do ato espontneo de uma liberdade exis-tencial lanando-se em direo dsse ser, assumindo um Dasein his-tricamente situado, incondicionado de uma vida estreitamente limi-tada no tempo, possuindo a simplicidade inerente a cada existncia, tda filosofia s se produz uma vez. Ela , ao mesmo tempo, um absoluto e alguma coisa de histrico . Donde as caractersticas de sua histria: tendo cada filosofia captado inteiramente a verdade no passado, sob uma forma apropriada limitao de sua existncia, , a cada poca, perfeita e nica em seu gnero . No pode se repetir, nem envelhecer, nem ser corrigida ou melhorada . Subsiste como um poder de sugesto e de aplo . Dsse modo, a histria da filosofia no , absolutamente, presena de um passado morto, mas de um passa-do vivo (18) .

    Concluses hegelianas, na medida em que afirmam a irrefutabi-lidade, a perfeio de cada filosofia em seu gnero, mas obtidas s avessas do hegelianismo, sendo o fundamento do absoluto de cada

    (18) . JASPERS, Philosophie, I, pg. 241 ss/.

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    sistema apenas um momento eterno do desenvolvimento dialtico do esprito, dominando, limitando e utilizando a liberdade de pensado-res individuais, mas residindo inteiramente na particularidade ori-ginal da liberdade de um existente que reencontra a transcendncia (19) .

    Essa Weltanschauung filosfica completamente diferente da-quela que Dilthey concebe . Longe de repousar sbre alguns elemen-tos imutveis de uma conscincia universal, dominante, e que envol-ve todos os pensadores, isto , sbre um Dasein psquico universal que lhe impe de fora sua consistncia, ela, de algum modo, no tem apio fora de si prpria, bodenlos, estando inteiramente depen-dente de um ato livre individual, que se sustenta e se projeta de si prprio.

    Mas essa oposio entre os dois pensadores no impede uma certa analogia em suas concluses . Aqui como l a validade do pas-sado da filosofia salva pela destruio da verdade representativa afirmada por tda filosofia . Cada filosofia s possui valor como expresso subjetiva . A construo conceitual que a realiza como obra reduzida a aprisionamento degradante nascido das sujeies da comunicao social. Enfim, arrancada cincia, a filosofia sub-trada miragem do progresso . O absoluto das filosofias se torna, ento, sobretudo em Jaspers, radical e completo. Tdas so iguais, semelhantemente vlidas, heterogneas a tal ponto que excluem radi-calmente de si tda hierarquia e tda sntese impostas por um ponto de vista dominador. Alm disso, tdas as filosofias parecem por isso bem fundamentadas em sua realidade original e sua diversidade con-creta, no apenas para o passado mas para o futuro.

    Para Dilthey, por outro lado, a W . A . -lehre, fundamentando t-das as posies sem excluir nenhum, deixa aberta a porta a um futu-ro infinito de proliferaes histricas . Ela escapa antinomia que pesa sbre tda filosofia da histria da filosofia, porque sendo teoria de tdas as posies possveis, ela prpria est fora dessas posies e no desejaria se ver implicada em suas querelas .

    Quanto a Jaspers, se le recusa em Dilthey uma concepo que, focalizando tdas as posies possveis da filosofia, transforma absur-damente absolutos em pontos de vista possveis, isto , em relativos, le tambm preserva o futuro tanto quanto o passado, concebendo que tais absolutos, fulguraes imprevisveis de liberdades existen-

    (19) . O ponto de vista "posto aqui o da existncia, mas existem dois outros, o da Weltorientierung, que contemplao das filosofias e que me deixa estranho a elas (Betrachtung), e o da transcendncia (teoria dos sinais) . O ponto de vista da existncia o mais fundamental, porque le condi-ciona o da transcendncia, e recusa como absurdo o ponto de vista da Weltorientierung, cuja validade todavia mantida por outros motivos.

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    ciais, colocar-se-o indefinidamente amanh como se colocaram on-tem .

    Mas, examinando bem as coisas, percebe-se que se trata de ilu-ses, aqui como l. Tanto definindo a essncia da filosofia corno ao pela qual a vida se eleva conscincia e pensamento extremos, como excluindo a possibilidade de tda metafsica enquanto sistema vlido do mundo, recusando tda objetividade independente de um sistema do mundo relativo vida, Dilthey professa uma filosofia de um tipo bem definido: o da Lebensanschauung. Longe de se elevar acima de tdas as posies possveis, le prprio se coloca numa de-las e entra em conflito com tdas as outras . Smente as justifica re-lacionando-as a ela, traduzindo-as em sua linguagem. Em poucas pa-lavras, o passado e o futuro so aglutinados na sua definio .

    O mesmo acontece com Jaspers . Tdas as filosofias so salvas como absolutos sob a condio de cada uma se tornar os absolutos de Jaspers, isto , posies existenciais, Lebensanschauungen, que so a Lebensanschauung jasperiana . Tambm nesse caso as realidades filosficas s so conservadas por sua anulao, isto , por sua re-duo a um mesmo denominador: a da filosofia de Jaspers, transfor-mado em criterium objetivo das filosofias, contrriamente a seu pr-prio ensinamento. O que resiste a essa reduo desliza (Abgleitung). Alm disso, se bem que tda filosofia tenha sido considerada irrefu-tvel, a afirmao do absoluto jasperiano acompanhada de uma imensa refutao (do idealismo, do positivismo, do historicismo, de Hegel, de Dilthey at mesmo de Nietzsche e de Kierkegaard, na medida em que viram mal o papel do conceito) . Essa refutao pe-netra mesmo no interior de doutrinas em que dissocia o bom e o mau (Descartes, Comte, Hegel, etc . ) .

    Essa falha nasce do fato de que, aqui como l, a determinao de condies de validade permanente das filosofias atravs dos tempos, isto , de sua indestrutibilidade histrica, guiada a priori por uma definio prvia da essncia de tda a filosofia . Tdas as outras de-finies so por isso mesmo radicalmente condenadas, e por isso mes-mo so condenadas a realidade, a indestrutibilidade e a validade de tdas as filosofias que as sustentam e que, ao contrrio, se tratava precisamente de fundamentar.

    *

    E' preciso, ento, como dizia Descartes, distingir os "trmos ge-rais da dificuldade", captando exatamente sua natureza.

    Os fatos nos trazem um qudruplo ensinamento:

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    19) . qualquer filosofia s se edifica e se torna vlida a seus prprios olhos, construindo uma doutrina qual atribui uma verda-de de juzo, isto , edificando uma teoria. Dito de outra maneira, ela elabora uma representao do real que se esfora por validar como concordando com le, explicando-o em seus fundamentos autnticos, qualquer que seja, alis, sse real: cosmos, esprito, eu, liberdade, verdade, etc .. Por mais irracional que possa ser, ela visa sempre uma verdade de juzo, estabelecendo o que em si a coisa a que se refere, ou demonstrando que no se pode estabelc-la pelo fato dela ser irrepresentvel para ns .

    Sem dvida, numerosas filosofias tm precisamente por objeto elaborar um conceito de verdade que recuse sua definio como adaequatio rei et intellectus: Espinosa, por exemplo, com a teoria da idia adequada; Kant, com a da verdade transcendental; os pragma-tistas, com a da relao "ambulatria" substituda relao "saltat-ria"; Husserl, com a da Erfullung, etc .. Mas o objeto de cada uma estabelecer, dessa forma, uma teoria da verdade, isto , uma repre-sentao da natureza em si da verdade . Trata-se de provar que essa teoria verdadeira na medida em que se mostra conforme natureza da verdade. Poder-se-, sem dvida, esforar-se posteriormente por integrar a verdade da teoria adequada coisa, verdadeira natureza da verdade descoberta pela prpria teoria (idia adequada, verdade transcendental, conceito pleno, etc . ) . Mas para que essa reduo seja ao mesmo tempo materialmente possvel e filosficamente leg-tima, necessrio precisamente que o filsofo tenha prviamente des-vendado a natureza da verdade e estabelecido demonstrativamente que essa representao que nos impe efetivamente uma cpia adequada dessa natureza;

    29) . as filosofias aparecem como indestrutveis para a hist-ria, objetos eternamente vlidos para uma reflexo filosfica possvel;

    39) . essa indestrutibilidade histrica, que atesta seu valor, no pode ser fundamentada em uma verdade de juzo, isto , em sua adequao coisa que elas pretendem representar e penetrar, porque por isso elas se contradizem tdas, e contradizem na maior parte das vzes s verdades adquiridas da cincia atual;

    49) . o valor filosfico que fundamenta a indestrutibilidade das filosofias na histria no pode em conseqncia residir na verda-de de juzo que cada uma pretende.

    sses quatro trmos determinam o quadro em que o problema de-ve se inscrever. As tentativas que se fundamentam sbre uma defi-nio prvia da filosofia como cincia (caminho da validade cient-fica), alm de contradizerem ab initio as exigncias epistemolgicas de uma pesquisa vlida, abandonando o plano do fato pelo da defi-

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    nio a priori, s retm o primeiro trmo e contradizem os outros trs.

    As tentativas como as de Dilthey, de Jaspers, de Bergson, de Brhier, etc ., que, a ttulos diversos, reduzem as filosofias a expres-ses subjetivas, .e vem em suas construes conceituais uma degrada-o de sua vida animadora, tornada necessria pelas necessidades so-ciais (caminho da subjetividade esttica) contradizem, como as pre-cedentes, s exigncias epistemolgicas da pesquisa . Elas retm os trs ltimos trmos e contradizem o primeiro . Alm disso, caem em contradio porque, conforme o primeiro trmo, elas se apresentam cada uma como portadora de uma representao verdadeira das coisas.

    A considerao objetiva dos quatro tempos, independentemen-te de tda definio pr-concebida da filosofia, pode conduzir a um terceiro caminho, o da objetividade esttica (E. Souriau) (20) . le consiste em reter apenas, como as teorias do segundo tipo, os trs ltimos trmos, mas em lugar de eliminar o primeiro por meio de uma definio a priori, pensa poder destru-lo confrontando-o com os outros trs. Visto que o valor filosfico atestado pela indestrutibi-lidade das filosofias na histria no pode residir em sua verdade de juzo, le faz residir em sua verdade intrnseca, isto , em uma certa realidade determinada e sublimada que elas conseguiram promover e captar em sua obra. Cada filosofia , ento, a instaurao de uma realidade a partir de um insignificante original.

    A realidade que fundamenta a eternidade de cada filosofia no advm, ento, de sua adequao a um real dado, mas constituda pela plenitude de ser que encerrou em sua obra acabada. Ela se en-contra ao trmo de sua "anfora", no no indeterminado original. Est no cume em que o gnio se realiza, no na imprecisa inspira-o original. Donde a completa reviravolta das teses do primeiro tipo, para as quais o valor das filosofias reside na conformidade de suas representaes s coisas representadas, estando o essencial na realidade que suas teorias refletem . Donde a reviravolta tambm das teses do segundo tipo, para as quais o essencial a vida que anima a inspirao subjetiva inicial, e no a obra constituda sendo a obra terminada apenas degradao do elan original, impsto pelas neces-sidades sociais .

    As filosofias so, dessa forma, inteiramente identificadas s obras de arte. Elas s diferem das obras de arte porque se dirigem para a perfeio de uma realidade singular, no simplesmente de uma peque-na parte, mas da totalidade do cosmos . Como tda criao artstica, elas no visam uma verdade de juzo mas uma obra onde se completa

    (20) . E. SOURIAU, A Instaurao Filosfica, Paris, 1940.

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    uma realidade superior . Ademais, como as artes do segundo grau, eloborando essa obra elas devem "respeitar" uma verdade de juzo que lhes dada por outra parte . H, ento, uma heterogeneidade radi-cal entre a cincia que se estabelece pela lgica; pela verificao, etc., visando uma veritas in intellectu, e que no instaura nenhuma realida-de, e a filosofia que instaura uma realidade que se completa pela arquitetnica, visando a veritas in re.

    Essa tese, que tem o duplo mrito de ser sugestiva e de querer resolver o problema partindo do fato e no de uma definio a priori da essncia, recai todavia sob a objeo que atingia as concepes do segundo tipo: ela contradiz o fato que testemunha que tda filosofia visa, como a cincia, uma verdade de juzo, uma teoria, e no o per-feito xito de uma obra que vale por seu brilho prprio. Certamente, o fato testemunha tambm que a perdurabilidade das filosofias, no podendo se apoiar sbre sua pretensa verdade representativa visto que elas se contradizem tdas, e que visam contradizer, hoje ou amanh, as verdades da cincia deve, mais que verossimilhante-mente, ser fundamentada de outra forma, em um certo valor interno, em uma venhas in re. Mas isso no faz com que elas se instaurem, como as obras de arte, em vista dsse valor, permanecendo indiferen-tes verdade de juzo que elas receberiam inteiramente de fora, sem procurar elas prprias promov-la.

    Descobre-se, sem dvida, nas filosofias, procedimentos arquite-tnicos unidos aos procedimentos lgicos. Se essa arquitetnica ocupa um grande lugar, pelo fato de que tda filosofia tende explicao total, a organizao arquitetnica no buscada por si prpria, nem a harmonia ou o sistema, pela harmonia e pelo sistema. O fim visado a validao de uma verdade de juzo e a perfeio da explicao que essa verdade produz. A arquitetnica completa a representao do real e fortifica a argumentao lgica. A prova est perfeitamente fixada quando tudo novamente se separa . Nesse sentido, as teorias cientficas, se recusam o esprito de sistema, outro aspecto do esp-rito de totalidade, no ignoram a arquitetnica, requerida por sua necessidade de sistematizar os conhecimentos (21) . Tomado com certo ngulo, o progresso das cincias testemunha uma ruptura per-ptua entre o nominalismo impsto pelos fatos e a arquitetnica exi-gida pela inteligncia .

    No h filosofia que no se apresente como visando uma verda-de de juzo . A filosofia da instaurao filosfica no faz exceo regra. Assim, ela desmente pelo fato suas prprias concluses . (21). Diderot e d'Alembert (Cfr. Encyclopdie, Discurso preliminar) distingui-

    ram espirito de sistema, que odioso, e sistematizao dos conhecimentos, que requisito da cincia. A mesma oposio encontra-se em Condillac, Tratado dos Sistemas, cap. III, ed. du Corpus, I, pg. 130 b.

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    Antes de mais nada, enquanto filosofia, ela s poderia ser ins-taurao artstica do segundo grau, visando uma veritas in re, uma obra vlida por seu brilho prprio . Nessa hiptese, seu valor cien-tfico como teoria seria nulo . Ela no descobriria por si prpria ne-nhuma verdade de juzo . As leis da instaurao que ela enuncia no seriam as de uma realidade dada, mas o resultado da livre instaura-o de uma realidade indita que jamais se viu e que nenhuma outra filosofia far ver . Mas ela se apresenta de fato como uma teoria ci-entificamente verdadeira, como uma veritas in intellectu perfeitamente estabelecida como tal. Nessas condies, ela no poderia ser uma filosofia mas uma cincia . Ora, ela no se apresenta como uma cin-cia mas como uma filosofia: a filosofia das filosofias. Haveria, en-to, filosofias que, como a cincia, visam verdades de juzo, desco-brem leis de um real inteiramente dado; em resumo, haveria filoso-fias que no resultam da instaurao filosfica. Assim, a doutrina faz o contrrio do que diz. Contradio, diria Fichte, entre atos e palavras (tum und sagen) .

    V-se por isso em que consiste a especificidade e a dificuldade do problema . A experincia revela que as obras filosficas parecem se manter indestrutveis como as obras de arte por uma verdade inter-na (venhas in re), inteiramente diferente de sua pretensa verdade de juzo . Mas ela revela ao mesmo tempo que, para criar essas obras, o filsofo no as visa, como o artista, elas prprias por si prprias, mas visa sempre, como o cientista, a descoberta de uma verdade de juzo, de uma teoria conforme a realidade das coisas . A unio dessas duas caractersticas o que fundamenta a irredutibilidade da filoso-fia, cincia de um lado, arte de outro . Nenhuma dessas caracte-rsticas pode ser suprimida em proveito da outra sem que o fato seja mutilado . Sustentar que tda filosofia se cria como obra de arte porque se matm como ela pelo valor prprio de uma verdade intrn-seca mutilar a experincia que nos mostra, pelo contrrio, que as duas criaes so completamente diferentes . E', em conseqncia, tornar impossvel a soluo -do problema transcendental, problema de direito que s se pode resolver corretamente a partir do fato no adul-terado .

    Em conseqncia, a primeira frmula do problema da legitimi-dade da histria da filosofia, procurar as condies que tornam pos-svel a indestrutibilidade das filosofias na histria, se precisa em uma segunda: procurar de que maneira, em cada filosofia, a instaurao cientfica de uma verdade de juzo torna possvel a instaurao de uma verdade intrnseca, independente de tda verdade de juzo .

    Por essa frmula se determina sem ambigidade o conceito de uma dianoemtica, isto , de uma disciplina que se refere s condi-

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    es de possibilidade das filosofias (dianoema, doutrina) como obje-tos de uma histria possvel. A chave da passagem de verdade de ju-zo verdade intrnseca captada pela seguinte observao: cada fi-losofia se esfora por demonstrar a verdade de um juzo que se refere ao real, ao lugar transcendental e natureza dsse real. Ela apresenta sse real como coisa ou esprito, sensvel ou inteligvel, unidade ou pluralidade, ser ou liberdade, imutabilidade ou devir, etc . . A sujei-o da exigncia cientfica relativa a sse juzo verdadeiro sbre a realidade conduz verdade intrnseca pela posio da verdadeira rea-lidade . Em conseqncia, deve-se conjecturar que o pensamento fi-losofante no poderia em nenhum caso fundamentar sua validade s-bre sua pretensa adequao a um real inteiramente anterior sua de-ciso, visto que no h outra realidade seno aquela que o pensa-mento filosofante institui a cada vez. Donde essa concluso de que a dianoemtica, como filosofia das filosofias dadas de fato, deve se constituir como uma problemtica da realidade.

    Assim se determinam "os .trmos gerais da dificuldade". Por a se v que a dianoemtica (definida como cincia das condies de possibilidade das obras filosficas na medida em que elas possuem um valor filosfico indestrutvel) pode existir paralelamente cincia tanto quanto esttica, sem jamais se arriscar a ser absorvida por elas revelando-nos que se o mistrio filosfico participa simult-neamente da cincia e da arte no , todavia, nem uma nem outra (*).

    (a ) . (Traduo de Paulo Roberto Moser Nota da Redaao) .