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Extensão em Ação,Fortaleza,V.2 n. 7,p.31-45 Jul/Dez 2014 31 CULTURA GRUPO DE ESTUDOS ARISTOFÂNICOS: A COMÉDIA E A CIDADE EM CAVALEIROS DE ARISTÓFANES Ana Maria César Pompeu 1 Márcio Henrique V. Amaro 2 José André Ribeiro 3 Solange Maria S. de Almeida 4 Renata de Oliveira Lara 5 Paulo César de B. Teles Júnior 6 RESUMO A sobrevivência de Aristófanes pela leitura de suas peças até a atualidade se explica principalmente pela diversidade temática tratada em sua obra e a importância que o gênero cômico dá à arte poética, formando sua própria identidade através do diálogo paródico com os mais variados tipos de discursos da pólis, na qual está inserido o próprio Teatro. O Grupo de Estudos Aristofânicos tratará, neste estudo, dos mais diversos aspectos da pólis ateniense em conexão com a mobilidade genérica promovida pela comédia aristofânica. PALAVRAS-CHAVE: Poética cômica; Aristófanes; Cavaleiros; Pólis ateniense ABSTRACT The survival of Aristophanes by reading their pieces until today is mainly explained by the diversity of themes treated in his work and the importance it gives to the comic genre poetics, forming their own identity through the parodic dialogue with all kinds of discourses of the pólis, where the Theatre itself is inserted. The Study Group on Aristophanes treats in this study of various aspects of the Athenian polis in connection with the generic mobility promoted by the Aristophanic comedy. KEY-WORDS: Comic poetic; Aristophanes, Knights; Athenian Pólis 1 Professora associada da Universidade Federal do Ceará-UFC. Tem experiência na área de Letras Clássicas, com ênfase em Teatro Clássico, atuando, entre outros, nos seguintes temas: Aristófanes, Comédia Antiga, Aristófanes e Platão, Pólis e Comédia. 2 Mestrando em Letras 3 Doutorando em Filosofia 4 Doutoranda em Letras 5 Mestre em Filosofia 6 Graduando em Letras e Bolsista PIBIC/UFC-FUNCAP 2013-2014

GRUPO DE ESTUDOS ARISTOFÂNICOS: A COMÉDIA E A … · Paulo César de B. Teles Júnior6 RESUMO ... Eutidemo de Platão, por meio de uma análise do uso do cômico nesta obra,

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  • Extenso em Ao,Fortaleza,V.2 n. 7,p.31-45 Jul/Dez 2014 31

    CULTURA

    GRUPO DE ESTUDOS ARISTOFNICOS:

    A COMDIA E A CIDADE EM CAVALEIROS DE ARISTFANES

    Ana Maria Csar Pompeu1

    Mrcio Henrique V. Amaro2

    Jos Andr Ribeiro3

    Solange Maria S. de Almeida4

    Renata de Oliveira Lara5

    Paulo Csar de B. Teles Jnior6

    RESUMO

    A sobrevivncia de Aristfanes pela leitura de suas peas at a atualidade se explica

    principalmente pela diversidade temtica tratada em sua obra e a importncia que o

    gnero cmico d arte potica, formando sua prpria identidade atravs do dilogo

    pardico com os mais variados tipos de discursos da plis, na qual est inserido o

    prprio Teatro. O Grupo de Estudos Aristofnicos tratar, neste estudo, dos mais

    diversos aspectos da plis ateniense em conexo com a mobilidade genrica promovida

    pela comdia aristofnica.

    PALAVRAS-CHAVE: Potica cmica; Aristfanes; Cavaleiros; Plis ateniense

    ABSTRACT

    The survival of Aristophanes by reading their pieces until today is mainly explained by

    the diversity of themes treated in his work and the importance it gives to the comic

    genre poetics, forming their own identity through the parodic dialogue with all kinds of

    discourses of the plis, where the Theatre itself is inserted. The Study Group on

    Aristophanes treats in this study of various aspects of the Athenian polis in connection

    with the generic mobility promoted by the Aristophanic comedy.

    KEY-WORDS: Comic poetic; Aristophanes, Knights; Athenian Plis

    1Professora associada da Universidade Federal do Cear-UFC. Tem experincia na rea de Letras

    Clssicas, com nfase em Teatro Clssico, atuando, entre outros, nos seguintes temas: Aristfanes,

    Comdia Antiga, Aristfanes e Plato, Plis e Comdia.

    2 Mestrando em Letras

    3 Doutorando em Filosofia

    4 Doutoranda em Letras

    5 Mestre em Filosofia

    6 Graduando em Letras e Bolsista PIBIC/UFC-FUNCAP 2013-2014

  • Extenso em Ao,Fortaleza,V.2 n. 7,p.31-45 Jul/Dez 2014 32

    1. INTRODUO

    O Grupo de Estudos Aristofnicos GEA foi cadastrado como projeto de

    extenso em 2011. A pea Os Cavaleiros vem sendo traduzida, do grego para o

    portugus, objetivando uma expressividade maior para os mais diversos tipos de leitores

    e, consequentemente, uma maior divulgao da obra do nico representante da Comdia

    Antiga Grega que nos legou peas completas. Os integrantes do GEA so de reas de

    estudo diversas. Portanto, cada integrante tem um objetivo prprio ao estudar a comdia

    de Aristfanes. Todos, entretanto, se interessam pelo contexto em que as peas foram

    elaboradas e encenadas, e elas so a mais rica fonte de informaes acerca da vida

    ateniense do final do sculo V a.C.

    Em 486 a.C. a comdia entrou oficialmente nas Dionsias urbanas, logo depois

    de ter sido acolhida no festival das Leneias. Segundo Byl (1991, p. 54), conhecemos o

    nome de aproximadamente 50 poetas que tiveram representadas uma ou vrias de suas

    obras de 486 a 388 a.C., mas somente um nome passou a posteridade tendo parte das

    obras integralmente conservadas: Aristfanes, com 11 comdias de 425 a 388 a.C.

    totalizando 15.290 versos e com centenas de fragmentos (BYL, 1991, p. 54). Como

    explicar a sobrevivncia do comedigrafo diante dos seus predecessores e

    contemporneos? a pergunta de Byl (1991, p. 54), afirmando que a questo delicada,

    no entanto segundo o estudioso, ns podemos pensar que a arte de Aristfanes deve ter

    sido particularmente apreciada por seus contemporneos. Pelos Argumentos nos

    manuscritos dos textos que nos chegaram, sabemos que algumas de suas peas

    ganharam o primeiro prmio nos concursos que disputou. Uma de suas peas, As Rs,

    seu grande sucesso, foi representada duas vezes, algo muito raro para a poca.

    Byl (1991, p. 54-66) apresenta sucintamente o sucesso que conheceu

    Aristfanes nas geraes que o seguiram. Transcreveremos de forma mais sucinta ainda

    os principais argumentos do estudioso da comdia aristofnica. Em primeiro lugar,

    existem fortes indcios de que Aristfanes era muito apreciado pelo filsofo Plato.

    Apesar de alguns afirmarem o contrrio, pode-se verificar que, se Plato realmente

    execrasse o poeta, ele no teria jamais concordado em lhe dar um lugar no Banquete,

    uma obra composta aproximadamente em 385 a.C. pouco tempo aps a morte de

    Aristfanes.

    Duas histrias narradas sobre a vida de Aristfanes testemunham tambm a

    estima na qual Plato tinha o poeta cmico. Plato teria, ele mesmo, composto para a

    morte do poeta o seguinte epitfio: As graas procurando um templo para habitar o

  • Extenso em Ao,Fortaleza,V.2 n. 7,p.31-45 Jul/Dez 2014 33

    encontraram na alma de Aristfanes. Uma segunda anedota nos conta que Denis de

    Siracusa pediu informaes sobre a natureza da vida poltica ateniense, Plato teria

    enviado uma obra de Aristfanes e o aconselhado a estudar todas as suas peas.

    Aristteles se mostrava fortemente severo ao que ns denominamos Comdia

    Antiga: O que fazia os antigos rir (na comdia) era a linguagem obscena. Infelizmente

    ns no tivemos conservado o livro da potica que Aristteles dedicou comdia, mas

    ns podemos observar que o filsofo em uma passagem do clebre tratado cita

    Aristfanes como o representante mais ilustre da poesia cmica ao lado de Homero e

    Sfocles, que representam respectivamente a poesia pica e a poesia trgica. Ccero, trs

    sculos mais tarde, citar vrias vezes o nome de Aristfanes o qual tinha em alta

    estima. Quanto a Horcio, ele cita Aristfanes como pertencente a uma trade que

    conheceu grande sucesso: Os poetas Epolis, Cratino, Aristfanes e os outros que

    foram mestres da comdia antiga tiveram mrito de criarem ladres, adlteros, infames

    que gozaram de grande liberdade. Na comparao de Aristfanes e Menandro, Plutarco

    ir formular ao primeiro poeta a principal crtica que j tinha sido feita por Aristteles, a

    obscenidade, e ele considerar de longe Menandro como o melhor. O veredicto no

    deve nos surpreender, pois veremos que Plutarco condenar a comdia antiga

    considerando-a cheia de palavras imprprias e chocantes. Luciano, que em sua obra faz

    vrias referncias ao incio das Nuvens, qualifica Aristfanes como homem sbio e

    digno, mas ele teme que sua estima pelo cmico o faa imit-lo.

    Um pouco mais tarde, Eliano em sua coleo Histrias Diversas narrar que

    durante a apresentao das Nuvens em 423 a.C. Scrates teria ficado de p para que os

    espectadores o vissem durante toda a apresentao. Digenes Larcio faz parte da

    grande tradio que v Aristfanes como um dos principais responsveis pelo processo

    contra Scrates em 399 a.C. Por essas razes morais, o imperador Juliano defender o

    banimento da leitura da comdia antiga com suas grosserias e suas conversas obscenas.

    Aristfanes ser banido do mundo das letras at restaurao do Helenismo. no ano de

    1498 que aparece a primeira edio das obras de Aristfanes, em Veneza. A partir da

    renascena no cessaro as condenaes da obra de Aristfanes nem o estudo de sua

    obra. Nietzsche em 1886 narra uma anedota antiga que diz que Plato em seu leito de

    morte no tinha nenhum livro da Bblia, nenhum livro egpcio, nenhum livro de

    Pitgoras e nenhum platnico, mas uma pea de Aristfanes. Essa anedota se encontra

    na Vita Platonis de Olimpiodoro, filsofo da nossa era. Ernest Renan proclamou sua

    admirao pela Grcia e escreveu que o maior dos milagres da histria a Grcia. Ele

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    tambm, em sua biblioteca no possua nem Homero nem Sfocles, mas sim

    Aristfanes.

    Byl (1991, p.66) volta a explicar a perenidade da obra de Aristfanes e diz crer

    que a razo pela qual Aristfanes foi maltratado durante mais de dois milnios

    exatamente o que o fez ser admirado: sua agressividade e sua obscenidade. E Freud j

    apresentou que o bero do riso o esprito da agressividade e o da obscenidade.

    2. DIVERSIDADE TEMTICA DA COMDIA ARISTOFNICA

    A sobrevivncia dos estudos sobre Aristfanes e da leitura de suas peas at os

    nossos dias se explica especialmente pela diversidade temtica tratada em sua obra e a

    importncia que o gnero cmico d arte potica, formando sua prpria identidade

    atravs do dilogo pardico com os mais variados tipos de discursos da plis, na qual

    est inserido o prprio Teatro. Nosso estudo tratar dos mais diversos aspectos da plis

    ateniense em conexo com a mobilidade genrica promovida pela comdia aristofnica.

    2.1. Aristfanes e Plato - A Imagem do Filsofo em Eutidemo: Homem Cmico

    e Srio

    Estabeleceremos um dilogo entre as obras As Nuvens de Aristfanes e

    Eutidemo de Plato, por meio de uma anlise do uso do cmico nesta obra, para

    interpretar os recursos dramticos e dialticos utilizados por Plato para construir uma

    imagem do filsofo como homem cmico, porm srio ().

    De algum modo, se aposta que Plato promove uma reestruturao da comdia

    aristofnica para construir a imagem do filsofo. No Eutidemo, encontramos uma

    utilizao abundante de elementos cmicos que reeditam o aristofnico em uma

    roupagem filosfica. Halliwell (2008) compreende que o aristofnico pela relao entre

    o vergonhoso e o risvel estabelece contedos polticos que encontram significao na

    plis, o que recorre de modo significativo nos dilogos de Plato; mas, alm disso, com

    algumas reconfiguraes do aristofnico.

    Como afirma Luisa Buarque (2011, p. 46), em Plato, podem ser apontadas as

    seguintes proximidades com o aristofnico: em primeiro lugar, o uso dos personagens

    para representar teses e posies polticas; em segundo lugar, o uso de nomes e

    situaes nos personagens que adquirem sentido; em terceiro lugar, a utilizao de

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    aspectos anedticos e caricaturais; por fim, o uso da composio dramtica como

    recurso didtico para finalidades polticas.

    Por isso, no Eutidemo, encontramos no apenas uma simples utilizao do

    cmico, no sentido de despertar o riso, por meio de cenas que nos levam a ver os seus

    personagens como vergonhosos (). Alm disso, o dilogo constri uma imagem

    da prpria comicidade como sendo, s vezes, ridcula, isto , usado fora de um ambiente

    que lhe adequado, o prprio cmico vergonhoso (). Uma espcie de

    localizao do riso: ridculo ser cmico ao discutir coisas srias.

    O Eutidemo um dos dilogos socrticos ( ), no uma

    comdia. Nele encontramos, alm dos risos, argumentos de mbito filosfico. Com

    certeza, h no seu contexto dramtico uma iniciativa de situar a brincadeira () em

    meio a uma discusso cujo contedo srio (), para mostrar que os sofistas

    so pessoas despreocupadas com a verdade. De incio, pode-se avaliar que Plato abusa

    dos elementos cmicos para distanciar Scrates das brincadeiras dos argumentos

    sofsticos. Se, por um lado, o dilogo , em seus recursos, aristofnico, por utilizar do

    vergonhoso (), como meio para o riso (); por outro, o modo como Scrates

    narra e Crton avalia a brincadeira () anti-aristofnico, pois recria o ridculo

    () e o risvel () dos sofistas, para mostrar que as discusses filosficas

    so srias. Os sofistas, nesses termos, so ridicularizados a partir da imagem de dois

    homens srios (), estimveis, preocupados com a educao dos jovens, que

    so Scrates e Crton. Respectivamente, o Eutidemo seria uma aceitao da imagem dos

    sofistas de As Nuvens de Aristfanes; mas, ao mesmo tempo, um confronto, ao encenar

    que Scrates e Crton tem um modo diferente de se comportar, no vergonhoso e srio,

    para o qual tentam dar o nome de filosofia.

    como se a partir do prlogo do dilogo a apresentao dos personagens

    guiasse o contexto no qual a narrativa de Scrates vai determinar a postura dos dois

    irmos; o que nos leva a ver no Eutidemo um exerccio em torno de uma luta pela

    demarcao de linhas diferenciadoras entre sofistas, de um lado, e filsofos, de outro,

    no que diz respeito ao cmico, como vergonhoso, e ao srio, como digno de valor.

    Certamente, no havia uma demarcao ntida, uma fronteira (), aos olhos da

    maioria ( ), que diferenciasse a filosofia daquela habilidade () dos

    sbios (), polticos e oradores (), a erstica. Essa a percepo de Crton e

    Scrates no final do Eutidemo (305c-306d), que encena como concluso do dilogo

    uma certa desventura dos dois amigos frente ao problema da educao () dos

    filhos ( ) e do como lev-los ao amor sabedoria.

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    Desde o incio do dilogo (271a-272d), Scrates apresenta os personagens,

    Eutidemo e Dionisodoro, como refutadores, o que parece estabelecer uma confuso

    entre os dois sofistas e a filosofia socrtica. No final do dilogo, o annimo citado por

    Crton estabelece uma relao semelhante, de um modo que incapaz de compreender

    a diferena entre Scrates e os Sofistas (SCOLNICOV, 2000, p. 152). Com efeito,

    pode se dizer que Scrates parece no estabelecer uma distino rgida entre o que eles

    ensinam, a erstica, e o amor sabedoria. Acreditamos, por conseguinte, que

    perceptvel, pelo movimento que a narrativa traz, que o fato de o dilogo ridicularizar os

    dois irmos no suficiente para estabelecer uma rgida diviso entre filosofia e erstica.

    Scrates no procura descaracterizar os irmos, como se estivesse impondo previamente

    o significado da narrativa a Crton. o prprio Crton que v nos irmos algo de

    ridculo e que, detalhadamente, coloca-se no papel de avaliador.

    2.2.As Personagens Aristofnicas e o Rstico Estrepsades de As Nuvens

    caracterstico de Aristfanes nomear seus personagens de acordo com o

    carter de cada um, o heri de As Nuvens ganha seu nome a partir de , verbo

    que significa girar, revirar, revolver algo em seu esprito. Logo no incio da pea, o

    velho aparece na cama, girando de um lado ao outro, sem conseguir dormir: Ai, ai!

    Zeus soberano! Como so compridas as noites! Uma coisa interminvel! ... (v. 1-3).

    possvel dizer que Estrepsades , tambm, o homem que se vira, neste caso, para no

    pagar o que deve. O velho busca todas as maneiras de se livrar dos credores e aps uma

    tentativa fracassada de fazer com que o seu filho se torne um discpulo da escola de

    Scrates, resolve que ele mesmo ir ao Pensatrio aprender o raciocnio fraco, com o

    qual acredita ser possvel vencer qualquer causa nos tribunais. S mais adiante, que o

    nome do velho que falava no incio na pea revelado: O filho de Fido, Estrepsades

    de Cicina! (v. 134). Um nome que poderia muito bem ser traduzido como Enrolo e

    que, certamente, para o pblico pareceria bem apropriado.

    Estrepsades um novo heri cmico: em alguns aspectos, parecido com os

    heris das peas anteriores; em outros, bem diferente. Com Dicepolis, de Os

    Acarnenses, encontramos semelhanas por serem, ambos, agricultores e terem o mesmo

    desejo de voltar para o campo. Mas, enquanto Dicepolis mostra-se, no incio,

    interessado pela cidade de Atenas e pelo que justo e certo, tanto que o seu nome

    reflete esses interesses; Estrepsades, ao contrrio, no demonstra patriotismo algum e,

    abertamente, deseja o que injusto e errado. O vendedor de salsichas, de Os Cavaleiros,

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    parece um pouco mais com Estrepsades, porque atravs de trapaas e enrolaes, tenta

    superar seu adversrio. Mas, ainda assim, encontramos algumas diferenas: enquanto o

    vendedor de salsichas vence por meio de sua prpria esperteza e, s vezes, ingenuidade,

    Estrepsades incapaz de aprender as sutilezas das palavras precisas, por ser um

    velho esquecido e bronco (v.129-30).

    Durante toda a pea, Aristfanes cria situaes para apresentar ao pblico o

    carter de Estrepsades e mostrar que o seu maior objetivo na vida livrar-se, a qualquer

    custo, de suas dvidas. Depois de muito pensar sobre como se livrar de suas dvidas, ele

    encaminha-se sozinho para a casa de Scrates e apresenta uma resoluo louvvel na

    tentativa de fazer algo a respeito delas: Bem, mas no por ter cado que ficarei no

    cho... Vou invocar os deuses e instruir-me eu mesmo, frequentando o Pensatrio

    (v.127-28).

    Estrepsades o nico heri aristofnico a se arrepender do que fez, pois

    embora ele ponha fogo na escola de Scrates (pelo menos na segunda verso da pea),

    acaba no conseguindo enganar os credores e, com isso, livrar-se das dvidas. Pela

    primeira vez, no conseguimos ver uma mudana ocorrida no destino do nosso heri,

    ou, poderamos dizer, que Estrepsades sofre duas transformaes (ao e reao). Uma

    primeira, na qual ele torna-se discpulo de Scrates e passa a defend-lo. O pai, tentando

    mostrar sua sapincia, usa com o filho uma das mximas dos sete sbios gravadas nas

    paredes do templo de Apolo em Delfos . Adiante, Estrepsades passa

    por uma nova transformao, ao tomar conscincia da loucura que tentava fazer e ao

    sentir-se enganado pelos ensinamentos de Scrates.

    Contra o nosso heri usado todo o preconceito que um homem do campo

    poderia sofrer nas mos de um homem da cidade. Estrepsades no consegue aprender

    porque alm de ser campons, velhote, esquecido e imbecil (v. 790). Vendo que ele

    no tem condies de ser educado, Scrates logo desiste de ensin-lo. extremamente

    difcil para Estrepsades compreender toda a abstrao do pensamento filosfico.

    Embora sabendo que Estrepsades buscava algo desonesto, atravs do

    aprendizado da arte da oratria, o pblico acabava torcendo por ele, pois sabia que o

    discurso hbil era fundamental para o poder individual e a impunidade em Atenas. As

    outras peas de Aristfanes, especialmente Os Acarnenses, Os Cavaleiros e As Aves,

    tambm retratam o poder da persuaso. Pode at ser que os espectadores no

    admirassem Estrepsades, mas podemos supor que eles simpatizariam mais com ele do

    que com os outros personagens da pea. Essa simpatia facilmente compreensvel, se

    pensarmos no fato de que a grande maioria do pblico e dos jurados era composta de

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    moradores da zona rural, gente simples como o velho campons. Em contrapartida, uma

    identificao com o jovem nobre cavaleiro Fidpides ou com o filsofo nefelibata

    Scrates seria bem mais difcil.

    2.3.Metfora e Alegoria em Cavaleiros de Aristfanes

    A pea Cavaleiros foi apresentada nas Leneias de 424 a.C. Pela primeira vez, o

    autor corria o risco de se habilitar a concurso em seu prprio nome, sendo reconhecido

    com o xito em primeiro lugar. Aristfanes, comedigrafo de origem aristocrata, tem o

    propsito de denunciar a corrupo da demagogia vigente, o contexto aps o momento

    ureo da democracia seguido da decadncia da plis grega. A pea foi elaborada em

    carter bem especfico, usando uma abordagem metafrica, por analogias, comparando

    os personagens da pea com figuras que compem o cenrio poltico referido.

    Aristfanes recorre ao jogo de linguagem alegrico, em caricatura, descrevendo a

    realidade social com elementos crticos. O autor de modo sarcstico sugere como o

    povo se encanta com a vulgaridade, e quando o poeta quer estimular o intelecto busca

    ser sagaz, debocha do povo, mas para criticar e suscitar uma reflexo sobre a

    manipulao da plis. Segundo Pompeu, Sua crtica era parte de sua tentativa de

    convidar o povo a olhar mais criticamente para si mesmo, para refletir sobre os males,

    os quais o governo democrtico e seus cidados poderiam causar a si prprios, pelas

    ms deliberaes (2011, p. 67).

    O tema e a trama central da pea seguem em torno do agn (disputa) entre O

    Paflagnio e o Salsicheiro, mestres em baixaria... Enfim qualquer semelhana com as

    nossas eleies, no mera coincidncia! Os personagens na pea Cavaleiros

    representam figuras importantes na denncia poltica, a saber: 1 Escravo (Demstenes)

    seria o mais esperto, o 2 Escravo (Ncias), mais submisso, e podemos dizer que seria

    o escravo do escravo, o Paflagnio (Clon), servo do Povo, o Salsicheiro (que ir

    tornar-se o Agorcrito no fim da pea), o Coro de Cavaleiros (da o ttulo da pea) e o

    Povo. O argumento crtico central contra o Clon, que o popular demagogo criticado

    na figura do Paflagnio. Este nome Paflagnio est associado a quem vem da

    Paflagnia, ou seja, para ns seria a ideia de algum que vem de um lugar muito

    distante e desconhecido tipo da Conchinchina, um estrangeiro e por isso ningum

    sabe nada sobre a vida precedente deste. No contexto real o Clon foi o grande heri de

    Pilos, uma parte do imprio de Atenas, territrio conquistado com grandes investidas

    dos exrcitos, mas usando de ambio e explorando o seu patro que o povo ateniense.

  • Extenso em Ao,Fortaleza,V.2 n. 7,p.31-45 Jul/Dez 2014 39

    Conseguiu cativar a confiana do povo e uma vez que assim sucedeu, segue conduzindo

    com desonestidade, roubando o povo abusando de sua ingenuidade, devorando o

    patrimnio pblico. um homem que no tem origem aristocrtica e assim no tem as

    virtudes necessrias de um poltico instrudo, tem origem no povo, mas que no governa

    para o povo. Nesse sentido at o prprio Aristfanes contraditrio, pois pensa como

    aristocrata, isto , que para ser poltico tem que ser de formao nobre. Por esse motivo

    a figura do Clon na pea um escravo Paflagnio, servo do povo. Seus companheiros

    de escravatura so os dois escravos, seus subalternos, denominados Demstenes e

    Ncias, que so na realidade os generais do exrcito vitorioso, capachos do demagogo.

    Por meio do orculo, que o Paflagnio escondia com unhas e dentes, tm a

    revelao de que h um destinado, que iria destronar o Paflagnio (Clon, o demagogo).

    interessante destacar que pela primeira vez na dramaturgia o orculo no fora lido,

    mas relatado o contedo em interpretao cnica, destacando a relao imagem e

    linguagem na temtica crtica. Depois entra o coro de Cavaleiros (da o nome da pea)

    que so os guerreiros e nobres, representantes da aristocracia (os virtuosos) que vo

    surgir em apoio ao Salsicheiro e iro dar uma surra no Paflagnio colocando-o para

    correr!

    Assim dizia o orculo: o primeiro demagogo fora o comerciante de gado, o

    segundo o comerciante de estopa, o terceiro o comerciante de curtumes (curtidor de

    couro) e o quarto que o prximo destinado a destronar o Paflagnio: um vendedor de

    midos, um salsicheiro. isso mesmo, um salsicheiro! Porque a linhagem dos polticos

    em termos de formao foi decaindo, e agora a disputa no era de quem era o melhor,

    mas de quem era o pior, o menos apto em competncias polticas, mas o mais hbil em

    enrolar o povo, ou seja, encher linguia ou salsicha, que no caso d no mesmo. J vem,

    da essa histria de brincar com a ideia de que na poltica e na cozinha tudo acaba em

    pizza, neste caso em linguia ou salsicha. uma disputa de que tem a origem mais rasa,

    a performance mais preparada para o bom governo em artimanhas para enganar

    melhor o povo.

    2.4.O Mito do Destronamento em Hesodo e squilo e a Pardia de Cavaleiros

    Prometeu, considerado uma divindade do fogo, foi um dos filhos do tit Jpeto

    e da ocenide Clmene. Sua figura representa o esprito humano que aspira ao

    conhecimento e liberdade. Ele foi castigado por entregar aos homens o fogo, smbolo

    do conhecimento, da cincia, e por ter desafiado os deuses. Prometeu possua

  • Extenso em Ao,Fortaleza,V.2 n. 7,p.31-45 Jul/Dez 2014 40

    informaes de quem poderia destronar Zeus, pai dos homens e dos Deuses. Em Os

    trabalhos e os dias, de Hesodo, o primeiro poeta de que temos conhecimento a se

    inspirar nesse mito, Prometeu aparece como guardio dos homens a quem - contra a

    vontade de Zeus - concede a chama. Como castigo, o Deus envia terra a primeira

    mulher, Pandora. Ela desposa Epimeteu, irmo de Prometeu, e tida como a origem de

    todos os males. A utilizao do mito de Prometeu tambm realizada pelo

    tragedigrafo squilo para a criao da pea Prometeu Cadeeiro, ttulo em portugus

    segundo a traduo de Jaa Torrano. Essa tragdia, de data de composio incerta,

    considerada uma das grandes obras do Teatro Antigo, ainda que sua autoria seja

    contestada por alguns estudiosos. Ela entendida como a primeira pea de uma trilogia

    da qual a segunda seria Prometeu Libertado e a ltima, Prometeu Portador do Fogo. Em

    Prometeu Cadeeiro, temos a imagem de Zeus tirano, implacvel e imbatvel, assumindo

    o poder aps a Titanomaquia. Poder e Violncia (Krtos e Bia) juntamente com

    Hefestos castigam Prometeu a comando de Zeus por t-lo desrespeitado. Prometeu

    agrilhoado, preso a um rochedo. O coro formado pelas Ocenides, filhas de Oceano,

    rio que circunda a terra, e, na tragdia, tem a capacidade de dar conselhos e oferecer

    mediaes. Io, que, nessa pea, a representao da condio humana, filha do rio

    naco. Na esticomtia de Io e Prometeu, o tit fala sobre o fim do poder supremo de

    Zeus (v.752-769). No mito, Zeus destronou o prprio pai, Cronos, mas ficou atordoado

    com a profecia que anunciava a perda de seu trono por um filho. Tendo como primeira

    companheira Mtis (Astcia), filha de Oceano e de Ttis, Zeus a engole, esperando um

    filho, depois de saber daquele prenncio de destronamento. Em uma das variantes, aps

    sentir uma enorme vertigem, Zeus tem a cabea perfurada por Prometeu e dali surge a

    Deusa Atena, armada e com capacete.

    O tema do destronamento ainda utilizado pelo comedigrafo Aristfanes na

    pea Os Cavaleiros (424 a.C.). Contrariamente tragdia, que se baseia nos mitos para

    construir seu enredo, a comdia funda-se na stira poltica, social, ou mesmo literria.

    Sendo assim, a comdia estabelece um discurso sobre um outro discurso. O gnero

    cmico apropria-se de elementos da tragdia para atingir seu objetivo esttico e critica

    os fatos da plis, levando o pblico ao riso. Atravs desses recursos, o autor expe as

    instituies pblicas e a forma de encarar o direito na cidade.

    A pea Os Cavaleiros uma comdia poltica, dirigida contra o demagogo

    Clon, designado como Paflagnio, tido como servo do povo. A desonestidade e

    ambio deste servo tiram vantagens da ingenuidade do patro, o povo ateniense, cuja

    confiana incondicional to bem soube cativar (SILVA, p.13, 1985).

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    Companheiros de escravatura, Demstenes e Ncias procuram descobrir uma

    maneira de destronar o poderoso inimigo atravs dos orculos divinos. Segundo um

    desses orculos, Paflagnio seria substitudo por um Salsicheiro. Aps observar um

    vendedor de chourios a caminho do mercado com os utenslios de seu ofcio, os dois

    escravos tentam persuadi-lo de sua predestinao. Os Cavaleiros, coro de jovens da

    melhor estirpe e inimigos ferozes do demagogo, unem-se ao Salsicheiro para uma causa

    comum: derrotar Clon.

    Com denncias, afrontas e intimidaes, o agn se estabelece em planos

    sucessivos entre o Salsicheiro e o Paflagnio. Este acaba recorrendo ao Povo, juiz

    supremo, e h um encontro final na Pnix. Frente a frente, os dois apelam ainda aos

    orculos para auxili-los. Ao utilizarem-se de vocabulrio relacionado culinria,

    metaforizando a vida pblica, ambos colocam prova saborosos pratos que desafiam a

    fome do Povo. Finalmente, Clon derrotado em substituio do novo vencedor.

    2.5.A Crtica Aristofnica a Clon e Demagogia Ateniense em Cavaleiros

    Em Cavaleiros, Aristfanes tece uma forte crtica democracia e corrupo

    dos demagogos de sua poca, seu principal alvo, no entanto, o famoso poltico Clon

    o qual, alis, o autor, no cessa de atacar em diversas de suas peas de que temos

    notcia. Tentaremos fazer uma breve exposio a respeito da figura histrica de Clon,

    do contexto especfico pelo qual Atenas passava na poca que a pea em questo foi

    encenada, bem como dos ataques feitos pelo comedigrafo ao demagogo.

    A partir das notcias que temos dos fragmentos das outras peas de Aristfanes,

    que no sobreviveram at nossos dias, sabemos que a perseguio a Clon comea com

    a pea perdida Os Babilnios, de 426 a.C., em que o autor tece crticas contra a plis

    grega. No conhecemos muito de seu enredo, mas certamente os ataques foram grandes

    j que isso serviu para que o demagogo o processasse. Fato que contribuiu bastante para

    a escritura de Cavaleiros. Portanto, nessa pea, o autor joga todas as caractersticas ruins

    dos demagogos de sua poca na figura de Clon e sem freios, talvez, o ataque mais

    violento feito pelo comedigrafo. Curioso nisso tudo que nesse momento o poltico

    gozava de uma grande popularidade por conta de seus sucessos na batalha de Pilos.

    Mas agora vejamos quem era esse Clon e quais fatos histricos serviram para

    inspirar Aristfanes na composio dessa comdia.

    Nunca demais assinalar algumas caractersticas do novo regime democrtico

    de Atenas, afinal as crticas que Aristfanes tecia sobre a sociedade ateniense dirigiam-

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    se principalmente a essa nova forma de governo. das classes mais humildes quelas

    de comerciantes portanto, no to humildes assim j que deveriam dispor de boa

    quantidade de dinheiro graas a seus ofcios de vendedores - que saem as figuras que

    sucedero Pricles. Familiarizados ento com o comrcio esto bem aptos a enganar o

    povo. Atravs de sua boa oratria escondem-se atrs de uma imagem humilde,

    preocupada em satisfazer os desejos de todos, sempre dando esmolas, literalmente

    empanturrando os menos esclarecidos a fim de que fiquem de boca fechada e

    apenas agradeam. Para melhor servir ao povo, o poltico ainda persegue os mais

    abastados (no com intenes maiores do que ficar com todo o dinheiro para si) e mais

    uma vez os agradecimentos por parte da populao.

    Mas passemos a Clon. Quem era ento esse to agredido por Aristfanes?

    Alm de poltico era um general ateniense que participou da Guerra do Peloponeso,

    sendo cria exatamente desse novo regime democrtico, filho de um grande curtidor de

    peles foi um dos primeiros a representar os novos comerciantes e ir contra aos interesses

    da antiga aristocracia. Por muito tempo o demagogo se ops ao governo de Pricles e

    tentou de diversas formas derrub-lo, conquistando cada vez mais a populao

    ateniense. Com a morte de Pricles em 429 a.C. estava aberto, ento, definitivamente o

    caminho para ele. Suas aes eram quase sempre dirigidas para que obtivesse lucros

    custa dos outros gregos no importando o que fosse necessrio fazer. Para termos uma

    pequena ideia da falta de escrpulos do estratego, por volta de 425/424 a.C. ele

    aumentou o salrio dos juzes para trs bolos, atraindo assim a admirao das camadas

    mais populares, e abrindo mais espao para os demagogos aproveitarem-se dos pobres e

    multiplicarem as acusaes cada vez mais, fazendo da justia um simples meio de

    aumentar seus poderes e riquezas. Esse ltimo fato inclusive inspirou Aristfanes a

    investir mais uma vez contra Clon, escrevendo a comdia As Vespas, que foi encenada

    por volta de 422 a.C.

    Como podemos perceber, a pea tem como funo denunciar a corrupo

    instaurada na Grcia - mais especificamente em Atenas e a ocasio era bastante

    propcia, pois Clon gozava de muito sucesso e cada vez mais aprimorava suas

    tcnicas demaggicas. O irnico que, apesar de a pea ter vencido o concurso de

    comdias, o povo no deixou de eleger Clon como estratego do ano, pouco tempo

    depois. O que nos faz refletir sobre o real entendimento da populao ao assistir as

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    comdias de Aristfanes7. Ser que aos olhos do povo elas no passariam de

    pasteles que distraam e dessa forma acabavam at mesmo ajudando os corruptos a

    se instalarem cada vez mais? bastante notvel, principalmente no sistema em que

    vivemos atualmente, o poder que os governantes tem de se apropriar das boas e

    fundamentadas crticas e us-las a seu favor. Transformando tudo em uma bela

    comdia. Parece-nos ento que a poltica do po e circo existe desde que se tem

    notcias de sociedade ocidental, e esses demagogos, logo percebendo isso, junto com

    seus trs bolos davam ao pblico um pouco de diverso inofensiva nos seus

    festivais de teatro, j que ao que parece um mau costume do povo ficar calado

    quando est de boca cheia.

    3. RESULTADOS

    O estudo das comdias de Aristfanes nos apresenta um ponto comum que

    pode ser determinado como estrutural do gnero: a presena de Dioniso como o

    Libertador. A cidade teve que instituir cultos ao deus delirante para apaziguar o

    indomvel. Atravs dos rituais dionisacos, a plis se regenera e segue seu curso,

    apesar das guerras e maus polticos. O Teatro, como templo de Dioniso e instituio da

    Plis o lugar em que todos os aspectos se fundem e se renovam numa ressignificao

    de vida, nas suas formas trgica e cmica.

    3.1.Dioniso Libertador em Os Acarnenses e em Os Cavaleiros

    As peas Os Acarnenses (425 a.C.) e Os Cavaleiros (424 a.C.) foram

    apresentadas ao pblico de Atenas nos Festivais das Leneias (festival popular dionisaco

    realizado durante o inverno, em janeiro, somente ao pblico ateniense). Atenas ainda

    estava em guerra com os espartanos e exatamente a guerra, como a convivncia com

    os outros povos gregos, e os malefcios causados populao grega pelos anos de

    guerra o tema central de Os Acarnenses. J em Os Cavaleiros, Aristfanes aponta mais

    para conflitos da prpria poltica interna de Atenas, controlada por demagogos, e seu

    conflito, tambm, pessoal com Clon.

    Deus do vinho, Dioniso era o deus do entusiasmo, do xtase em delrio que

    fazia o homem sentir o prprio deus incorporado. A festa para os gregos seria

    7 Na sua comdia As Nuvens, inclusive, o autor faz uma censura ao povo que no soube

    reconhecer a sua melhor comdia (que fazia uma crtica ento educao vigente).

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    abenoada e incentivada pelo prprio deus, o patrocinador do Teatro, do espetculo. Os

    concursos dramticos so parte de seus festivais, que contm muitos outros concursos:

    procisses, msica, bebedeira, corrida, entre outros. Dioniso era o prprio smbolo da

    unio do divino com o homem, quando se une ao humano, em corpo, em consequncia

    de ser bebido, como vinho. Dioniso, assim, seria o prprio vinho; o Teatro, a

    conscincia da festa e do sacrifcio, e a comdia, que a cano do vinho, cura e

    revigora a cidade enferma. Dicepolis busca, alerta e, no final, sente por si exatamente

    aquilo que a comdia prope ao espectador: estar em paz, apesar da guerra, pela

    influncia do Teatro e os dons de Dioniso. A Comdia a cidade pacfica e justa, que

    sobrevive no por guerras e vitrias, mas por sua prpria regenerao.

    Em Os Acarnenses, o deus exaltado, atravs de duas alegorias presentes

    durante toda a pea: os festivais dionisacos celebrados por Dicepolis, e o prprio

    vinho do qual Dioniso o deus. Dioniso est presente do incio ao fim da pea.

    Dicepolis, maltrapilho, ao imitar Tlefo, diz este o concurso das Leneias; as

    trguas que o prprio bebe o inspiram a celebrar as Dionsias Rurais, que tinham

    como acontecimento principal um cortejo falofrico (cujos membros, os solistas dos

    cantos flicos, Aristteles cita, como origem da comdia) em culto fertilidade; depois,

    j no final da pea, h as Antestrias que acontecia durante trs dias e tinha na Festa

    dos Cngios (concurso de bebedores), celebrada em um desses dias seu ritual mais

    conhecido.

    Em Os Cavaleiros, como j vimos, Dioniso inspira a salvao dos dois

    escravos do Povo, atravs do vinho. Apreciemos a cena na traduo do GEA8 (vv.81-

    87):

    DEMSTENES [...]

    O vinho tu te atreves a censurar pela inveno?

    Do que o vinho encontrarias algo mais prtico?

    Olha, quando bebem os homens ento

    So ricos negociam vencem processos

    So felizes so teis aos amigos.

    Mas traz-me logo uma caneca de vinho,

    Para a cabea regar e eu dizer algo hbil.

    8 Alm dos autores deste artigo, participaram da traduo os seguintes integrantes do GEA:

    Carlos Getlio de Freitas Maia, Dary Alves Oliveira, Luiz Souza de Almada, Maria Helena da Silva, Maria Socorro Oliveira, Nazareno de Paulo do Amaral Accio, Sara Maria Tavares Almada e Valdsio Vieira da Silva.

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    4. CONSIDERAES FINAIS

    Pelo estudo e traduo da pea Os Cavaleiros de Aristfanes, o Grupo de

    Estudos Aristofnicos GEA vem se aproximando cada vez mais da verdadeira plis

    grega do final do sculo V a.C., que foi palco vivo de transformaes polticas e sociais

    que at hoje nos so apresentadas e exigem de ns uma mobilidade s alcanvel pelo

    dilogo com a permanente (re) instaurao e ressignificao da plis trgica e cmica

    que a vida humana.

    REFERNCIAS

    ARISTFANES. As Nuvens. Traduo de Gilda Maria Reale Starzynski. In: Scrates.

    Nova Cultural, 1987.

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    Janeiro: Hexis, Fundao Biblioteca Nacional, 2011.

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