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 GUIMARÃES ROSA GRANDE SERTÃO: VEREDAS EDITORA NOVA AGUILAR 1994

Grande Sert+úo Veredas - Jo+úo Guimar+úes Rosa

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GUIMARÃES ROSA

GRANDE SERTÃO:

VEREDAS

EDITORA NOVA AGUILAR

1994

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 João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

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PRIMEIRA EDIÇÃO, 1994

BIBLIOTECA

LUSO-BRASILEIRA

SÉRIE BRASILEIRA

 JOÃO GUIMARÃES ROSA

FICÇÃO COMPLETA

EM DOIS VOLUMES

VOLUME II

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– NONADA. TIROS QUE O SENHOR ouviu foram de

briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira emárvores noquintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo diaisso faço,gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram mechamar.Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhosde nemser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram;eu não

quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu,arrebitado debeiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente,cara decão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio.Mataram.Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhasarmas,cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas...Olhe:quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega alatir,instantaneamente – depois, então, se vai ver se deumortos. Osenhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja:quesituado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro,eles dizem,fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima.Para os deCorinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah,

quetem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastoscarecem defechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, semtopar comcasa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus,arredadodo arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montõesoestes.Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de

fazendas,

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almargem de vargens de bom render, as vazantes;culturas que

vão de mata em mata, madeiras de grossura, até aindavirgensdessas lá há. Ogeraiscorre em volta. Esses gerais são sem

tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhorsabe: pãoou pães, é questão de opiniães... O sertão está em todaa parte.

Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos

moradores.Em falso receio, desfalam no nome dele – dizemsó:

o Que-Diga.Vote! não... Quem muito se evita, se convive. SentençanumAristides – o que existe no buritizal primeiro desta minhamãodireita, chamado a Vereda-da-Vaca-Mansa-deSanta-Rita– todoo mundo crê: ele não pode passar em três lugares,designados:porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e umavozinhaque avisando: – “Eu já vou! Eu já vou!...” – que é ocapiroto,

o

que-diga...E um José Simpilício – quem qualquer daqui juraeletem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso

obrigado aajudar em toda ganância que executa; razão que oSimpilício se

empresa em vias de completar de rico. Apre, por issodizemtambém que a besta pra ele rupeia, nega de banda, não

deixando, quando ele quer amontar... Superstição. JoséSimpilícioe Aristides, mesmo estão se engordando, de assim não-ouvir ououvir. Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes diasde época,tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, depassagem,

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no Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá selouvou

que, para aqui vir – normal, a cavalo, dum dia-e-meio –ele eracapaz que só com uns vinte minutos bastava... porquecosteava oRio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também, quem sabe– semofensas – não terá sido, por um exemplo, até mesmo osenhorquem se anunciou assim, quando passou por lá, porprazidodivertimento engraçado? Há-de, não me dê crime, seique nãofoi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta, em hora, àsvezes,clareia razão de paz. Mas, o senhor entenda: o tal moço,se há,quis mangar. Pois, hem, que, despontar o Rio pelasnascentes,será a mesma coisa que um se redobrar nos internosdeste nossoEstado nosso, custante viagem de uns três meses...

Então?

Que-

Diga?Doideira. A fantasiação. E, o respeito de dar a eleassim

esses nomes de rebuço, é que é mesmo um quererinvocar queele forme forma, com aspresenças!

Não seja. Eu, pessoalmente, quase que já perdi nelea

crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe digo, àpuridade.Sei que é bem estabelecido, que grassa nos Santos-Evangelhos.Em ocasião, conversei com um rapaz seminarista, muito

condizente, conferindo no livro de rezas e revestido de

paramenta, com uma vara de maria-preta na mão –proseou queia adjutorar o padre, para extraírem o Cujo, do corpo vivode

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uma velha, na Cachoeira-dos-Bois, ele ia com o vigáriodo

Campo-Redondo... Me concebo. O senhor não é comoeu? Nãoacreditei patavim. Compadre meu Quelemém descreveque o querevela efeito são os baixos espíritos descarnados, deterceira,fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travaremcom osviventes – dãoencosto.Compadre meu Quelemém é quem

muitome consola – Quelemém de Góis. Mas ele tem de morarlongedaqui, na Jijujã, Vereda do Buriti Pardo... Arres, me deixelá, que– em endemoninhamento ou com encosto – o senhormesmodeverá de ter conhecido diversos, homens, mulheres.Pois nãosim? Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe,Sangue-d’Outro, o Muitos-Beiços, o Rasgaem-Baixo, Faca-Fria, o

Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... oHermógenes...Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantosnomes... Nãosou amansador de cavalos! E, mesmo, quem de si de ser

 jagunçose entrete, já é por alguma competência entrante dodemônio.Será não? Será?

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar nãopensava. Nãopossuía os prazos. Vivi puxando difícil de dificel, peixe

vivo nomoquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora,feita afolga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estoude rangerede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. Odiabo

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existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essasmelancolias.

O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira ébarrancode chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor

consome essa água, ou desfaz o barranco, sobracachoeiraalguma? Viver é negócio muitoperigoso...

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os

crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou ohomem dosavessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabonenhum.Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declaretudo,franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso,encarecido. Estecaso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa

importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que osenhor,assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não?Lheagradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia,esperavapor ela-já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de tersuaaragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum.Nem

espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eumesmo,este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diaboregula seuestado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens.Até: nascrianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem dodiabo”?E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento...Estrumes....O diabo na rua, no meio do

redemunho...

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Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as

certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de contarnão...Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formatoderamos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se comecomum,e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viuumaestranhez? A mandioca-doce pode de repente virarazangada –motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada noterrenosempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai emamargando,de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, oraveja: aoutra, a mandiocabrava, também é que às vezes podeficarmansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que issoé? Eh,o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido,

carantonho,nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo,cadadia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolirpor suasuja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns,asfeições deles já representam a precisão de talhar paraadiante,rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito

afiada porruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras,horrorosas,venenosas – que estragam mortal a água, se estão

 jazendo emfundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo.Sesabe? E o demo – que é só assim o significado dumazouguemaligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem

licença paracampear?! Arre, ele está misturado emtudo.

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Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro dagente,

aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor–compadre meu Quelemém, diz. Família. Deveras? É, enão é. Osenhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todomaisgrave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bomfilho,bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Sóque temos depois – e Deus, junto. Vi muitasnuvens.

Mas, em verdade, filho, também, abranda. Olhe: um

chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, noda-Areia, era o homem de maiores ruindades calmas que jáse viu.Me agradou que perto da casa dele tinha um açudinho,entre aspalmeiras, com traíras, pra-almas de enormes,desenormes, aoreal, que receberam fama; o Aleixo dava de comer aelas, emhoras justas, elas se acostumaram a se assim das locas,parapapar, semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só porgraçarústica, ele matou um velhinho que por lá passou,desvalido

rogando esmola. O senhor não duvide – tem gente, nesteaborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazercareta...Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vema mão,vem o são, vem o cão. Esse Aleixo era homemafamilhado, tinhafilhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo,despropósito.Dê bem, que não nem um ano estava passado, de sematar o

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velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram.Andaço

de sarampão, se disse, mas complicado; eles nuncasaravam.Quando, então, sararam. Mas os olhos delesvermelhavam altos,numa inflama de sapiranga à rebelde; e susseguinte – oque nãosei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro eoutro– eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinhode luzdessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha – trêsmeninos euma menina – todos cegados. Sem remediável. O Aleixonãoperdeu o juizo; mas mudou: ah, demudou completo –agora viveda banda de Deus, suando para ser bom e caridoso emtodas suashoras da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, queantesnão era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte,

porqueDeus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo desua alma.Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Sesendocastigo, que culpa das hajas do Aleixo aquelesmeninozinhostinham?!

Compadre meu Quelemém reprovou minhasincertezas.Que, por certo, noutra vida revirada, os meninostambémtinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai,

demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o queacha? E ovelhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir.Pois,também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime,no

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corpo, por pagar. Se a gente – conforme compadre meu

Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnarrenovado,eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filhodoinimigo. Mire veja: se me digo, tem um sujeito PedroPindó,vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudoemtudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem.Eles têmum filho duns dez anos, chamado Valtei – nomemoderno, é oque o povo daqui agora apreceia, o senhor sabe. Poisessezinho,essezim, desde que algum entendimento alumiou nele,feitomostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador,gostosode ruim de dentro do fundo das espécies de suanatureza. Emqual que judia, ao devagar, de todo bicho ou

criaçãozinhapequena que pega; uma vez, encontrou uma crioulabenta-bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhouem trêspontos a popa da perna dela. O que esse menino babejavendo,é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – “Eu gosto de

matar...” – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu

em mimum susto; porque: passarinho que se debruça – o vôo jáestápronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo decorri-gir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botamomenino sem comer, amarram em árvores no terreiro, elenunuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na

peia ena taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia desalmoura.

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A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino járebaixou de

magreza, os olhos entrando, carinha de ossos,encaveirada, eentisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secospeitos.Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher sehabituaram denele bater, de pouquinho em pouquim foram criandonisso umprazer feio de diversão – como regulam as sovas emhorascertas confortáveis, até chamam gente para ver oexemplo bom.Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim,não chegapara a quaresma que vem... Uê-uê, então?! Não sendocomocompadre meu Quelemém quer, que explicação é que osenhordava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, embalanço,terríveis perversidades. Alma dele estava no breu.

Mostrava. E,agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorandoepenando, ele sofre igual que se fosse um meninobonzinho...Ave, vi de tudo, neste mundo! lá vi até cavalo comsoluço... – oque é a coisa mais custosa quehá.

Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo –parapecados e artes, as pessoas – como por que foi que tanto

emendado se começou? Ei, ei, aí todos esbarram.Compadremeu Quelemém, também. Sou só um sertanejo, nessasaltasidéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Invejaminha puraé de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma

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doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei,anos e

meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tivemestre,Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, asoperações,regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhasgrandesde papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não éporfalar: mas, desde o começo, me achavam sofismado deladino. Eque eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia –quetambém diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio umbomlivro, despaçado. Na fazenda O Limãozinho, de um meuamigoVito Soziano, se assina desse almanaque grosso, delogogrifos echaradas e outras divididas matérias, todo ano vem. Emtanto,ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo,

virtudes eexemplos – missionário esperto engambelando os índios,ou SãoFrancisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo... Eugostomuito de moral. Raciocinar, exortar os outros para obomcaminho, aconselhar a justo. Minha mulher, que o senhorsabe,zela por mim: muito reza. Ela é uma abençoável.

Compadremeu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar meutemer deconsciência, que sendo bem-assistido, terríveis bons-espíritosme protegem. Ipe! Com gosto... Como é de são efeito,ajudocom meu querer acreditar. Mas nem sempre posso. Osenhorsaiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou

nascidodiferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo omundo... Eu

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quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. Osenhor

concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre– osenhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eurastreio essapor fundo de todos os matos, amém! Olhe: o que deviadehaver, era de se reunirem-se os sábios, políticos,constituiçõesgradas, fecharem o definitivo a noção – proclamar poruma vez,artes assembléias, que não tem diabo nenhum, nãoexiste, nãopode. Valor de lei! Só assim, davam tranqüilidade boa àgente.Por que o Governo não cuida?!

Ah, eu sei que não é possível. Não me assente osenhorpor beócio. Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é

lidar compaís de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantasmisérias... Tanta gente – dá susto de saber – e nenhum se sossega:todosnascendo, crescendo, se casando, querendo colocaçãodeemprego, comida, saúde, riqueza, ser importante,querendochuva e negócios bons... De sorte que carece de seescolher: ou

a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida sódereligião só. Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefede jagunços; para outras coisas não fui parido. Mas minhavelhice jáprincipiou, errei de toda conta. E o reumatismo... Lácomoquem diz: nas escorvas. Ahã.

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Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-

mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Porisso éque se carece principalmente de religião: para sedesendoidecer,desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso éque é asalvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, nãopercoocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água detodo rio...Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezocristão,católico, embrenho a certo; e aceito as preces decompadre meuQuelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quandoposso,vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: agentese acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantandohinos belosdeles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer

sombrinha merefresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – otempotodo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deuséprivilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? –o quefaço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço,

executado. Eu não tresmalho!

Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não

mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Poisa elapago, todo mês – encomenda de rezar por mim um terço,todosanto dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale.Minhamulher não vê mal nisso. E estou, já mandei recado parauma

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outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvide

que reza também com grandes meremerências, vouefetuar comela trato igual. Quero punhado dessas, me defendendoem Deus,reunidas de mim em volta... Chagas deCristo!

Viver é muito perigoso... Querer o bem com demaisforça,

de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal,

porprincipiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo parasi,para o concertar consertado. Mas cada um só vê eentende ascoisas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério– foiMedeiro Vaz. Que um homem antigo... Seu JoãozinhoBem-Bem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôdedecifrarcomo ele por dentro consistia. Joca Ramiro – grandehomempríncipe! – era político. Zé-Bebelo quis ser político, masteve enão teve sorte: raposa que demorou. Só Candelário se

endiabrou, por pensar que estava com doença má. TitãoPassosera o pelo preço de amigos: só por via deles, de suasmesmas

amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antônio Dó –severobandido. Mas por metade; grande maior metade que seja.

Andalécio, no fundo, um bom homem-de-bem, estouvado

raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria eraser ricoem paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi quenasceuformado tigre, e assassim. E o “Urutu-Branco”? Ah, nãome

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fale. Ah, esse... tristonho levado, que foi – que era umpobre

menino do destino...

 Tão bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe dizia: oruimcom o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar –

Deusespera essa gastança. Moço!: Deus é paciência. Ocontrário, é odiabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca – e afia –

que seraspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-searredondinhando lisas, que o riachinho rola. Porenquanto, queeu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque semerece ecarece. Antesmente preciso. Deus não se comparece comrefe,não arrocha o regulamento. Pra quê? Deixa: bobo combobo –um dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, àsvezes, pormais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado depimenta...

Haja? Pois, por um exemplo: faz tempo, fui, de trem,lá emSete-Lagoas, para partes de consultar um médico, de

nome meindicado. Fui vestido bem, e em carro de primeira, por

via dasdúvidas, não me sombrearem por jagunço antigo. Vai eacontece, que, perto mesmo de mim, defronte, tomouassento,voltando deste brabo Norte, um moço Jazevedão,delegadoprofissional. Vinha com um capanga dele, um secreta, eeu bemsabia os dois, de que tanto um era ruim, como o outroruim era.A verdade que diga, primeiro tive o estrito de medesbancar para

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um longe dali, mudar de meu lugar. Juízo me disse,melhor

ficasse. Pois, ficando, olhei. E – lhe falo: nunca vi cara dehomem fornecida de bruteza e maldade mais, do quenesse.Como que era urco, trouxo de atarracado, reluzia um crunosolhos pequenos, e armava um queixo de pedra,sobrancelhonas;não demedia nem testa. Não ria, não se riu nem uma vez;mas,falando ou calado, a gente via sempre dele algum dente,presapontuda de guará. Arre, e bufava, um poucadinho. Sórosneavacurto, baixo, as meias-palavras encrespadas. Vinhareolhando,historiando a papelada – uma a uma as folhas comretratos e comos pretos dos dedos de jagunços, ladrões de cavalos ecriminososde morte. Aquela aplicação de trabalho, numa coisa

dessas,gerava a ira na gente. O secreta, xereta, todo perto,sentado junto,atendendo, caprichando de ser cão. Me fez um receio,mas só nobobo do corpo, não no interno das coragens. Uma hora,umadaquelas laudas caiu – e eu me abaixei depressa, sei lámesmo porque, não quis, não pensei – até hoje crio vergonha disso –

apanhei o papel do chão, e entreguei a ele. Daí, digo: eutive maisraiva, porque fiz aquilo; mas aí já estava feito. O homemnem meolhou, nem disse nenhum agradecimento. Até as solasdossapatos dele – só vendo – que solas duras grossas,dobradas deenormes, parecendo ferro bronze. Porque eu sabia: esse

 Jazevedão, quando prendia alguém, a primeira quietacoisa que

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 João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

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procedia era que vinha entrando, sem ter que dizer,fingia umas

pressas, e ia pisava em cima dos pés descalços doscoitados. Eque nessas ocasiões dava gargalhadas, dava... Pois,osga!Entreguei a ele a folha de papel, e fui saindo de lá, porter mãoem mim de não destruir a tiros aquele sujeito. Carnesque muitopesavam... E ele umbigava um princípio de barrigabarriguda, queme criou desejos... Com minha brandura, alegre que eumatava.Mas, as barbaridades que esse delegado fez e aconteceu,o senhornem tem calo em coração para poder me escutar.Conseguiu demuito homem e mulher chorar sangue, por este simples

universozinho nosso aqui. Sertão. O senhor sabe: sertãoé ondemanda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo,

quando vier,que venha armado! E bala é um pedacinhozinho demetal...

 Tanto, digo: Jazevedão – um assim, devia de ter,precisava?Ah, precisa. Couro ruim é que chama ferrão de ponta.

Haja que,depois – negócio particular dele – nesta vida ou na outra,cada

 Jazevedão, cumprido o que tinha, descamba em seutempo depenar, também, até pagar o que deveu – compadre meu

Quelemém está aí, para fiscalizar. O senhor sabe: operigo que éviver... Mas só do modo, desses, por feio instrumento, foique a jagunçada se findou. Senhor pensa que Antônio Dó ouOlivinoOliviano iam ficar bonzinhos por pura soletração de si, oupor

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rogo dos infelizes, ou por sempre ouvir sermão de padre? Te

acho! Nos visos...

De jagunço comportado ativo para se arrepender nomeiode suas jagunçadas, só deponho de um: chamado Joé

Cazuzo –foi em arraso de um tirotei’, p’ra cima do lugar Serra-Nova,distrito de Rio-Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia

máminoria pequena, e fechavam para riba de nós o pessoaldumCoronel Adalvino, forte político, com muitos soldadosfardadosno meio centro, comando do Tenente Reis Leme, quedepoisficou capitão. Agüentamos hora mais hora, e já dávamosquasede cercados. Aí, de bote, aquele Joé Cazuzo – homemmuitovalente – se ajoelhou giro no chão do cerrado, levantavaosbraços que nem esgalho de jatobá seco, e só gritava,urro claro eurro surdo: –“Eu vi a Virgem Nossa, no resplandor do Céu,

com seusfilhosde Anjos!...” Gritava não esbarrava. –“Eu vi a Virgem!...” 

Ele almou? Nós desigualamos. Trape por meu cavalo –que

achei – pulei em meu assento, nem sei em que rompe-tempodesatei o cabresto, de amarrado em pé de pau. Voei,vindo. Balavinha. O cerrado estrondava. No mato, o medo da gentese saiao inteiro, um medo propositado. Eu podia escoicear,feitoburro bruto, dá-que, dá-que. Umas duas ou três balas se

cravaram na borraina da minha sela, perfuraram dearrancar

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quase muita a paina do encheio. Cavalo estremece empró, em

meio de galope, sei: pensa no dono. Eu não cabia deestar maisbem encolhido. Baleado veio também o surrão que eutinha nascostas, com poucas minhas coisas. E outra, de fuzil, em

ricochete decerto, esquentou minha coxa, sem me ferir,osenhor veja: bala faz o que quer – se enfiou imprensada,entreem mim e a aba da jereba! Tempos loucos...Burumbum!: ocavalo se ajoelhou em queda, morto quiçá, e eu já caindoparadiante, abraçado em folhagens grossas, ramada e cipós,que mebalançaram e espetavam, feito eu estava pendurado emteião dearanha... Aonde? Atravessei aquilo, vida toda... De medoemânsia, rompi por rasgar com meu corpo aquele mato, fui,

sei lá –e me despenquei mundo abaixo, rolava para o oco deum grotãofechado de moitas, sempre me agarrava – rolava mesmoassim:depois – depois, quando olhei minhas mãos, tudo nelasque nãoera tirado sangue, era um amasso verde, nos dedos, defolhasvivas que puxei e masgalhei... Pousei no capim do fundo

– e umbicho escuro deu um repulão, com um espirro, tambémdoidode susto: que era um papa-mel, que eu vislumbrei; parafugir,esse está somente. Maior sendo eu, me molhou meucansaço;espichei tudo. E um pedacinho de pensamento: seaquele bichoirara tinha jazido lá, então ali não tinha cobra. Tomei o

lugardele. Existia cobra nenhuma. Eu podia me largar. Eu erasó

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mole, moleza, mas que não amortecia os trancos, dentro,do

coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nemfaziamal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menoseuguardava a licença de prazo para me descansar.Conformepensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-de-barrocantou. Eu queria morrer pensando em meu amigoDiadorim,mano-oh-mão, que estava na Serra do Pau-d’Arco, quasenadivisa baiana, com nossa outra metade dossócandelários... Commeu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meuiavoava retopara ele... Ai, arre, mas: que esta minha boca não temordemnenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas. Nosenhor mefio? Atéque, até-que. Diga o anjo-da-guarda... Mas,

conforme euvinha: depois se soube, que mesmo os soldados do Tenente e oscabras do Coronel Adalvino remitiram de respeitar oassoprodaquele Joé Cazuzo. E que esse acabou sendo o homemmaispacificioso do mundo, fabricador de azeite e sacristão, noSãoDomingos Branco. Tempos!

Por tudo, réis-coado, fico pensando. Gosto. Melhor,para aidéia se bem abrir, é viajando em trem-de-ferro. Pudesse,

viviapara cima e para baixo, dentro dele. Informação quepergunto:mesmo no Céu, fim de fim, como é que a alma vence seesquecerde tantos sofrimentos e maldades, no recebido e nodado? A

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como? O senhor sabe: há coisas de medonhas demais,tem. Dor

do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como otodoamor e raiva de ódio. Vai, mar... De sorte que, então,olhe: oFirmiano, por apelidado Piolho-de-Cobra, se lazarou comaperna desconforme engrossada, dessa doença que nãose cura; enão enxergava quase mais, constante o branquiço nosolhos, dascataratas. De antes, anos, teve de se desarrear da

 jagunçagem.Pois, uma ocasião, algum esteve no rancho dele, no Alto Jequitaí,depois contou – que, vira tempo, vem assunto, eledissesse: –“Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, pra umaboa esfola,com faca cega... Mas, primeiro, castrar...” O senhorconcebe?Quem tem mais dose de demo em si é índio, qualquer

raça debugre. Gente vê nação desses, para lá fundo dos geraisde Goiás,adonde tem vagarosos grandes rios, de água sempre tãoclaraaprazível, correndo em deita de cristal roseado...Piolhode-Cobrase dava de sangue de gentio. Senhor me dirá: mas queele pro-nunceia aquilo fora boca, maneira de representar que

ainda nãoestava velho decadente. Obra de opor, por medo de sermanso, ecausa para se ver respeitado. Todos tretam por tal regra:

proseiam de ruins, para mais se valerem, porque a genteao redoré duro dura. O pior, mas, é que acabam, pelo mesmovau, tendode um dia executar o declarado, no real. Vi tanta cruez!

Pena nãopaga contar; se vou, não esbarro. E me desgosta, trêsque me

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enjoa, isso tudo. Me apraz é que o pessoal, hoje em dia,é bom de

coração. Isto é, bom no trivial. Malícias maluqueiras, eperversidades, sempre tem alguma, mas escasseadas.Geraçãominha, verdadeira, ainda não eram assim. Ah, vai vir umtempo,em que não se usa mais matar gente... Eu, já estouvelho.

Bom, ia falando: questão, isso que me sovaca... Ah;

formeiaquela pergunta, para compadre meu Quelemém. Quemerespondeu: que, por perto do Céu, a gente se alimpoutanto, quetodos os feios passados se exalaram de não ser – feitosem-modez de tempo de criança, más-artes. Como a gentenão carecede ter remorso do que divulgou no latejo de seuspesadelos deuma noite. Assim que: tosou-se, floreou-se! Ahã. Por issodito, éque a ida para o Céu é demorada. Eu confiro comcompadre meuQuelemém, o senhor sabe: razão da crença mesma quetem –que, por todo o mal, que se faz, um dia se repaga, oexato. Sujeitoassim madruga três vezes, em antes de querer facilitarem

qualquer minudência repreensível... Compadre meuQuelemémnunca fala vazio, não subtrata. Só que isto a ele não vouexpor. Agente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio– essa éque é a regra do rei!

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do

mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais,ainda não

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foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.Afinam

ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida meensinou. Issoque me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é àsbrutas; masDeus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dágosto! Aforça dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor!Deusvem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho–assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se

economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinhaminha queeu tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca decurtir,barbatimão, angico, lá sei. – “Amanhã eu tiro...” – falei,comigo.Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah,então,saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido

roído,quase por metade, por aquela agüinha escura, todaquieta. Deixei,para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois,nessa mesmada tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo... O cabo –por nãoser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí está:Deus... Bem,o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me

entende...Somenos, não ache que religião afraca. Senhor acheocontrário. Visível que, aqueles outros tempos, eu pintava

– créque o caroá levanta a flor. Eli, bom meu pasto...Mocidade. Masmocidade é tarefa para mais tarde se desmentir.

 Também, eudesse de pensar em vago em tanto, perdia minha mão-de-

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homem para o manejo quente, no meio de todos. Mas,hoje, que

raciocinei, e penso a eito, não nem por isso não dou porbaixaminha competência, num fogo-e-ferro. A ver.Chegassemviessem aqui com guerra em mim, com más partes, comoutrasleis, ou com sobejos olhares, e eu ainda sorteio deacender estazona, ai, se, se! É na boca do trabuco: é no té-retêretém... Esozinhozinho não estou, há-de-o. Pra não isso, heicoloquei re-dor meu minha gente. Olhe o senhor: aqui, pegado,veredaabaixo, o Paspe – meeiro meu – é meu. Mais légua, setanto, temo Acauã, e tem o Compadre Ciril, ele e três filhos, sei que

servem. Banda desta mão, o Alaripe: soubesse o senhoro que éque se preza, em rifleio e à faca, um cearense feito esse!

Depoismais: o João Nonato, o Quipes, o Pacamã-de-Presas. E oFafafa– este deu lances altos, todo lado comigo, no combatevelho do Tamanduá-tão: limpamos o vento de quem não tinhaordem derespirar, e antes esses desrodeamos... O Fafafa tem umaeguada.Ele cria cavalos bons. Até um pouco mais longe, no pé-

de-serra,de bando meu foram o Sesfredo, Jesualdo, o Nélson e JoãoConcliz. Uns outros. O Triol... E não vou valendo? Deixoterracom eles, deles o que é meu é, fechamos que nemirmãos. Paraque eu quero ajuntar riqueza? Estão aí, de armasareiadas.Inimigo vier, a gente cruza chamado, ajuntamos: é hora

dumbom tiroteiamento em paz, exp’rimentem ver. Digo istoao

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senhor, de fidúcia. Também, não vá pensar em dobro.

Queremos é trabalhar, propor sossego. De mim, pessoa,vivopara minha mulher, que tudo modo-melhor merece, epara adevoção. Bem-querer de minha mulher foi que meauxiliou,rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. EmDiadorim,penso também – mas Diadorim é a minha neblina...Agora, bem:não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mastem umporém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdadenessaparlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não,não énão? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto detoda boaconfirmação. Vender sua própria alma... invencionicefalsa! E,alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna

supremada, muitomais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, almaabsoluta!Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado demomento,não tem a obediência legal. Posso vender essas boasterras, daí deentre as Veredas-Quatro – que são dum senhorAlmirante, quereside na capital federal? Posso algum!? Então, se um

meninomenino é, e por isso não se autoriza de negociar... E agente, issosei, às vezes é só feito menino. Mal que em minha vidaaprontei,foi numa certa meninice em sonhos – tudo corre e chegatãoligeiro –; será que se há lume de responsabilidades? Sesonha; jáse fez... Dei rapadura ao jumento! Ahã. Pois. Se tem

alma, e tem,ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ounão

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queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare,franco,

peço. Ah, lhe agradeço. Se vê que o senhor sabe muito,em idéiafirme, além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, portanto. Suacompanhia me dá altosprazeres.

Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, erauma

ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão.

Sabe osenhor: sertão é onde o pensamento da gente se formamais fortedo que o poder do lugar. Viver é muitoperigoso...

Eh, que se vai? Jajá? É que não. Hoje, não. Amanhã,não.

Não consinto. O senhor me desculpe, mas em empenhodeminha amizade aceite: o senhor fica. Depois, quinta de-

manhã-cedo, o senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixasentindosua falta. Mas, hoje ou amanhã, não. Visita, aqui em casa,

comigo, é por três dias!

Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso estemar deterritórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem

seusmotivos. Agora – digo por mim – o senhor vem, veiotarde.

 Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, delegítimoleal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandosbons devalentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, poraí pena,pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no

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comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham quetraje de

gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vaiminguandomenos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvémcom oresto de curraleiro e de crioulo. Sempre, no gerais, é àpobreza, àtristeza. Uma tristeza que até alegra. Mas, então, parauma safrarazoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestarviagemmais dilatada. Não fosse meu despoder, por azias ereumatismo,aí eu ia. Eu guiava o senhor atétudo.

Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenhade lá,

num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, sótombos. Ocio da tigre preta na Serra do Tatu – já ouviu o senhor

gargaragem de onça? A garoa rebrilhante da dos-Confins,madrugada quando o céu embranquece – neblim quechamamde xererém. Quem me ensinou a apreciar essas asbelezas semdono foi Diadorim... A da-Raizama, onde até os pássaros

calculam o giro da lua – se diz – e canguçu monstra pisaem

volta. Lua de com ela se cunhar dinheiro. Quando osenhorsonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores,forte,em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova,amarelinhas...Isto – no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um

tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá geia até em costas deboi, aténos telhados das casas. Ou no Meãomeão – depois dalitem uma

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terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azulvivoso,

igual um ovo de macuco. Ventos de não deixar se formarorvalho... Um punhado quente de vento, passante entreduaspalmas de palmeira... Lembro, deslembro. Ou – o senhorvai –no soposo: de chuva-chuva. Vê um córrego com mápassagem,ou um rio em turvação. No Buriti-Mirim, Angical,Extrema-de-Santa-Maria... Senhor caça? Tem lá mais perdiz do quenoChapadão das Vertentes... Caçar anta no Cabeça-de-Negro ouno Buriti-Comprido – aquelas que comem um capimdiferente eroem cascas de muitas outras árvores: a carne, degostosa,diverseia. Por esses longes todos eu passei, com pessoaminhano meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe?

 Játenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que temsaudade deidéia e saudade de coração... Ah. Diz-se que o Governoestámandando abrir boa estrada rodageira, de Pirapora aParacatu,por aí...

Na Serra do Cafundó – ouvir trovão de lá, e retrovão,osenhor tapa os ouvidos, pode ser até que chore, demedo mauem ilusão, como quando foi menino. O senhor vê vacaparindona tempestade... De em de, sempre, Urucuia acima, oUrucuia –tão a brabas vai... Tanta serra, esconde a lua. A serra alicorretorta. A serra faz ponta. Em um lugar, na encosta, brotado chão

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um vapor de enxofre, com estúrdio barulhão, o gado fogede lá,

por pavor. Semelha com as serras do Estrondo e doRoncador –donde dão retumbos, vez em quando. Hem? O senhor?Olhe: orio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno; meu, embelo, é oUrucuia – paz das águas... É vida!... Passado o Porto dasOnças,tem um fazendol. Ficamos lá umas semanas, sedescansou.Carecia. Porque a gente vinha no caminhar a pé, paranão acabaros cavalos, mazelados. Medeiro Vaz, em lugares assim,fora deguerra, prazer dele era dormir com camisolão e barrete;antes dese deitar, ajoelhava e rezava o terço. Aqueles forammeus dias. Secaçava, cada um esquecia o que queria, de de-comer nãofaltava,pescar peixe nas veredas... O senhor vá lá, verá. Os

lugaressempre estão aí em si, paraconfirmar.

Muito deleitável. Claráguas, fontes, sombreado e sol.

Fazenda Boi-Preto, dum Eleutério Lopes – mais antes do

Campo-Azulado, rumo a rumo com o Queimadão. Aí foiem

fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Tresmente:que com o capitão-do-campo de prateadas pontas,viçoso nocerrado; o anis enfeitando suas moitas; e com florzinhasasdejaniras. Aquele capim-marmelada é muito restível,redobralogo na brotação, tão verde-mar, filho do menorchuvisco. Dequalquer pano de mato, de de-entre quase cada encostarde duas

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folhas, saíam em giro as todas as cores de borboletas.Como não

se viu, aqui se vê. Porque, nos gerais, a mesma raça deborboletas, que em outras partes é trivial regular – cácresce, viramuito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é doseco doar, do limpo, desta luz enorme. Beiras nascentes doUrucuia, ali opovi canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava demanhã norevoredo, o saci-dobrejo, a doidinha, a gangorrinha, otempo-quente, a rola-vaqueira... e o bem-te-vi que dizia, eararasenrouquecidas. Bom era ouvir o mom das vacas devendoseuleite. Mas, passarinho de bilo no desvéu da madrugada,para todatristeza que o pensamento da gente quer, ele reperguntae fingeresposta. Tal, de tarde, o bento-vieira tresvoava, em vai

sobrevem sob, rebicando de vôo todo bichinhozinho de finasasas;pássaro esperto. Ia dechover mais em mais. Tardinhaque encheas árvores de cigarras – então, não chove. Assovios que

fechavam o dia: o papa-banana, o azulejo, a garricha-do-brejo, osuiriri, o sabiá-ponga, o grunhatá-do-coqueiro... Eu

estava todo otempo quase com Diadorim.

Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios.Comassim, a gente se diferenciava dos outros – porque

 jagunço nãoé muito de conversa continuada nem de amizadesestreitas: abem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mascada um é

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feito um por si. De nós dois juntos, ninguém nada nãofalava.

 Tinham a boa prudência. Dissesse um, caçoasse, digo –podiamorrer. Se acostumavam de ver a gente parmente. Quenemmais maldavam. E estávamos conversando, perto dorego –bicame de velha fazenda, onde o agrião dá flor. Desselusfús, iaescurecendo. Diadorim acendeu um foguinho, eu fuibuscarsabugos. Mariposas passavam muitas, por entre asnossas caras,e besouros graúdos esbarravam. Puxava uma brisbisa. Oiansodo vento revinha com o cheiro de alguma chuva perto. Eochiim dos grilos ajuntava o campo, aos quadrados. Pormim, só,de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, nãosou deà parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que

se hojefosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre emtodasessas quisquilhas da natureza. Sei como sei. Som comoos sapossorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relumedasbrasas. Quase que a gente não abria boca; mas era umdelémque me tirava para ele – o irremediável extenso da vida.

Pormim, não sei que tontura de vexame, com ele calado eua eleestava obedecendo quieto. Quase que sem menos eraassim: agente chegava num lugar, ele falava para eu sentar; eusentava.Não gosto de ficar em pé. Então, depois, ele vinhasentava, suavez. Sempre mediante mais longe. Eu não tinha coragem

demudar para mais perto. Só de mim era que Diadorim àsvezes

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parecia ter um espevito de desconfiança; de mim, queera o

amigo! Mas, essa ocasião, ele estava ali, mais vindo, ameia-mãode mim. E eu – mal de não me consentir em nenhumafirmardas docemente coisas que são feias – eu me esquecia detudo,num espairecer de contentamento, deixava de pensar.Mas suce-dia uma duvidação, ranço de desgosto: eu versavaaquilo emredondos e quadrados. Só que coração meu podia mais.Ocorpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se nãoentende.Perto de muita água, tudo é feliz. Se escutou, banda dorio, umalontra por outra: o issilvo de plim, chupante. – “Ta que,mas euquero que esse dia chegue!” – Diadorim dizia. – “Nãoposso teralegria nenhuma, nem minha mera vida mesma,

enquantoaqueles dois monstros não forem bem acabados...” E ele

suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, nomais, nãose alterava. De tão grande, o dele não podia mais teraumento:parava sendo um ódio sossegado. Odio com paciência; osenhorsabe?

E, aquilo forte que ele sentia, ia se pegando em mim– masnão como ódio, mais em mim virando tristeza. Enquanto

os doismonstros vivessem, simples Diadorim tanto não vivia.Até queviesse a poder vingar o histórico de seu pai, eletresvariava.Durante que estávamos assim fora de marcha em rota,tempo de

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descanso, em que eu mais amizade queria, Diadorim sófalava

nos extremos do assunto. Matar, matar, sangue mandasangue.Assim nós dois esperávamos ali, nas cabeceiras da noite, juntoem junto. Calados. Me alembro, ah. Os sapos. Sapotirava sacode sua voz, vozes de osga, idosas. Eu olhava para a beirado rego.A ramagem toda do agrião – o senhor conhece – às horasdá desi uma luz, nessas escuridões: folha a folha, um fosforém– agriãoacende de si, feito eletricidade. E eu tinha medo. Medoem alma.

Não respondi. Não adiantava. Diadorim queria o fim.Para

isso a gente estava indo. Com o comando de MedeiroVaz, dalidepois daquele carecido repouso, a gente reviravacaminho, ia emcima dos outros – deles! – procurando combate. Muniçãonãofaltava. Nós estávamos em sessenta homens – mas todoscabrasdos melhores. Chefe nosso, Medeiro Vaz, nunca perdiaguerreiro.Medeiro Vaz era homem sobre o sisudo, nos usosformado, nãogastava as palavras. Nunca relatava antes o projeto quetivesse,

que marchas se ia amanhecer para dar. Também, tudoneledecidia a confiança de obediência. Ossoso, com a nucaenorme,cabeçona meia baixa, ele era dono do dia e da noite –que quasenão dormia mais: sempre se levantava no meio dasestrelas,percorria o arredor, vagaroso, em passos, calçado comsuas boasbotas de caititu, tão antigas. Se ele em honrado juízoachasse que

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estava certo, Medeiro Vaz era solene de guardar orosário na

algibeira, se traçar o sinal-da-cruz e dar firme ordempara sematar uma a uma as mil pessoas. Desde o começo, euaprecieiaquela fortaleza de outro homem. :O segredo dele erade pedra.

Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro dascoisas,

antes delas acontecerem... Com isso minha fama clareia?

Remeivida solta. Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Algumacoisa,ainda encontra. Vaqueiros? Ao antes – a um, aoChapadão doUrucuia – aonde tanto boi berra... Ou o mais longe:vaqueirosdo Brejo-Verde e do Córrego do Quebra-Quinaus: cavalodelesconversa cochicho – que se diz – para dar sisadoconselho aocavaleiro, quando não tem mais ninguém perto, capaz deescutar. Creio e não creio. Tem coisa e cousa, e o ó daraposa...Dali para cá, o senhor vem, começos do Carinhanha e do

Piratinga filho do Urucuia – que os dois, de dois, se dãoascostas. Saem dos mesmos brejos – buritizais enormes.Por lá,

sucuri geme. Cada surucuiú do grosso: voa corpo noveado e seenrosca nele, abofa – trinta palmos! Tudo em volta, é umbarrocolador, que segura até casco de mula, arranca ferraduraporferradura. Com medo de mãe-cobra, se vê muito bichoretardarponderado, paz de hora de poder água beber, essesescondidosatrás das touceiras de buritirana. Mas o sassafrás dámato,

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guardando o poço; o que cheira um bom perfume. Jacarégrita,

uma, duas, as três vezes, rouco roncado. Jacaré choca –olhalhão, crespido do lamal, feio mirando na gente. Eh,ele sabese engordar. Nas lagoas aonde nem um de asas nãopousa, porcausa da fome de jacaré e da piranha serrafina. Ou outra– lagoaque nem não abre o olho, de tanto junco. Daí longe emlonge,os brejos vão virando rios. Buritizal vem com eles, buritisesegue, segue. Para trocar de bacia o senhor sobe, porladeiras debeira-de-mesa, entra de bruto na chapada, chapadão quenão sedevolve mais. Água ali nenhuma não tem – só a que osenhorleva. Aquelas chapadas compridas, cheias de mutucasferroandoa gente. Mutucas! Dá o sol, de onda forte, dá que dá, a

luz tantamachuca. Os cavalos suavam sal e espuma. Muita vez agentecumpria por picadas no mato, caminho de anta – a ida da

vinda... De noite, se é de ser, o céu embola um brilho.Cabeçada gente quase esbarra nelas. Bonito em muitocomparecer,como o céu de estrelas, por meados de fevereiro! Mas,

emdeslua, no escuro feito, é um escurão, que peia e pega. Énoitede muito volume. Treva toda do sertão, sempre me fezmal.Diadorim, não, ele não largava o fogo de gelo daquelaidéia; enunca se cismava. Mas eu queria que a madrugadaviesse. Diaquente, noite fria. Arrancávamos canela-de-ema, para

acenderfogueira. Se a gente tinha o que comer e beber, eudormia logo.

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Sonhava. Só sonho, mal ou bem; livrado. Eu tinha umalua

recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutavaoutrospássaros. Tiriri, graúna, a fariscadeira, juriti-dopeito-branco ou apomba-vermelha-do-mato-virgem. Mas mais o bem-tevi.Atrás eadiante de mim, por toda a parte, parecia que era umbem-te-visó. – “Gente! Não se acha até que ele é sempre um, em

mesmo?” – perguntei a Diadorim. Ele não aprovou, eestavaincerto de feições. Quando meu amigo ficava assim, euperdiameu bom sentir. E permaneci duvidando que seria – queera umbem-te-vi,.exato, perseguindo minha vida em vez, meacusandode más-horas que eu ainda não tinha procedido. Até hojeéassim...

Dali vindo, visitar convém ao senhor o povoado dos

pretos: esses bateavam em faisqueiras – no recessobrenho doVargem-da-Cria – donde ouro já se tirou. Acho, de baixo

quilate. Uns pretos que ainda sabem cantar gabos emsua língua

da Costa. E em andemos: jagunço era que perpassavaligeiro; nochapadão, os legítimos coitados todos vivem é demaisdevagar,pasmacez. A tanta miséria. O chapadão, no pardo, éigual, igual– a muita gente ele entristece; mas eu já nasci gostandodele. Aschuvas se temperaram...

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Digo: outro mês, outro longe – na Aroeirinha fizemos

paragem. Ao que, num portal, vi uma mulher moça,vestida devermelho, se ria. – “Ô moço da barba feita...” – ela falou.Nafrente da boca, ela quando ria tinha os todos dentes,mostravaem fio. Tão bonita, só. Eu apeei e amarrei o animal numpau dacerca. Pelo dentro, minhas pernas doíam, por tanto quedessestrês dias a gente se sustava de custoso varar:circunstância detrinta léguas. Diadorim não estava perto, para mereprovar. Derepente, passaram, aos galopes e gritos, unscompanheiros, quetocavam um boi preto que iam sangrar e carnear embeirad’água. Eu nem tinha começado a conversar com aquelamoça, ea poeira forte que deu no ar ajuntou nós dois, num

grosso rojoavermelhado. Então eu entrei, tomei um café coado pormão demulher, tomei refresco, limonada de pêra-do-campo. Secha-mava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pêlo –

alegria que foi, feito casamento, esponsal. Ah, amangaba boa sóse colhe já caída no chão, de baixo... Nhorinhá. Depois

ela medeu de presente uma presa de jacaré, para traspassar nochapéu,com talento contra mordida de cobra; e me mostrou parabeijaruma estampa de santa, dita meia milagrosa.Muito foi.

Mãe dela chegou, uma velha arregalada, por nomede Ana

Duzuza: falada de ser filha de ciganos, e donaadivinhadora da

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boa ou má sorte da gente; naquele sertão essa dispôs demuita

virtude. Ela sabia que a filha era meretriz, e até –contanto quefosse para os homens de fora do lugarejo, jagunços outropeiros– não se importava, mesmo dava sua placença.Comemosfarinha com rapadura. E a Ana Duzuza me disse,vendendoforte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passarde bandaa banda o liso do Suçuarão. Ela estava chegando doarranchadode Medeiro Vaz, que por ele mandada buscar, elequerendo suasprofecias. Loucura duma? Para quê? Eu nem nãoacreditei. Eusabia que estávamos entortando era para a Serra dasAraras –revinhar aquelas corujeiras nos bravios de ali além,aonde tudoquanto era bandido em folga se escondia – lá se podia

azo decombinar mais outros variáveis companheiros. Depois, dearte:que o Liso do Suçuarão não concedia passagem a genteviva, erao raso pior havente, era um escampo dos infernos. Se é,se? Ah,existe, meu! Eh... Que nem o Vão-do-Buraco? Ah, não,isto écoisa diversa – por diante da contravertência do Preto e

doPardo... Também onde se forma calor de morte – masemoutras condições... A gente ali rói rampa... Ah, o

 Tabuleiro? Se-nhor então conhece? Não, esse ocupa é desde a Vereda-da-Vaca-Preta até Córrego Catolé, cá embaixo, e de emdesde anascença do Peruaçu até o rio Cochá, que tira da Várzea

daEma. Depois dos cerradões dasmangabeiras...

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Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Suçuarão,é o

mais longe – pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com simesmo. Água, não tem. Crer que quando a genteentesta comaquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta,sempre. Um éque dali não avança, espia só o começo, só. Ver o luar

alumiando, mãe, e escutar como quantos gritos o ventosesabe sozinho, na cama daqueles desertos. Não tem

excrementos. Não tem pássaros.

Com isso, apertei aquela Ana Duzuza, e ela nãoagüentou

a raiva em meus olhos. – “Seô Medeiro Vaz, pois foi ele

mesmo próprio quem me contou...” – ela teve de falar.

Soturnos. Não era possível!

Diadorim estava me esperando. Ele tinha lavadominha

roupa: duas camisas e um paletó e uma calça, e outracamisa,nova, de bulgariana. Às vezes eu lavava a roupa, nossa;masquase mais quem fazia isso era Diadorim. Porque eu

achava talserviço o pior de todos, e também Diadorim praticavacommais jeito, mão melhor. Ele não indagou donde eu tinha

estado, e eu menti que só tinha entrado lá por causa davelhaAna Duzuza, a fim de requerer o significado do meufuturo.Diadorim também disso não disse; ele gostava desilêncios. Seele estava com as mangas arregaçadas, eu olhava paraos

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braços dele – tão bonitos braços alvos, em bem feitos, ea cara

e as mãos avermelhadas e empoladas, de picadas dasmutucas.No momento, foi que eu caí em mim, que podia ter

perguntado à Ana Duzuza alguma passagem de minhasinapor vir. Também uma coisa, de minha, fechada, eu deviadeperguntar. Coisa que nem eu comigo não estudava, nãotinha acoragem. E se a Duzuza adivinhasse mesmo, conhecessepordetrás o pano do destino? Não perguntei, não tinha

perguntado. Quem sabe, podia ser, eu estavaenfeitiçado? Mearrependi de não ter pedido o resumo à Ana Duzuza. Ah,temuma repetição, que sempre outras vezes em minha vida

acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da

travessia nãovejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares desaída ede chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passarum rio anado, e passa; mas vai dar na outra banda é num pontomuitomais embaixo, bem diverso do em que primeiro sepensou.Viver nem não é muito perigoso?

Redisse a Diadorim o que eu tinha surripiado: que o

projeto de Medeiro Vaz só era o de conduzir a gente parao Lisodo Suçuarão – a dentro, adiante, até ao fim. – “E certo é.Écerto” – Diadorim respondeu, me afrontando com asurpresa deque ele já sabia daquilo e a mim não tinha antecipadonem

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miúda palavra. E veja: eu vinha tanto tempo merelutando,

contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro,de umamigo se pertence gostar; e, agora aquela hora, eu nãoapuravavergonha de se me entender um ciúme amargoso. Sendo

sabendo que Medeiro Vaz depunha em Diadorim uma

confiança muito maior do que em nós outros todos, deformasque com ele externava os assuntos. Essa diferença deregraagora me turvava? Mas Medeiro Vaz era homem deoutrasidades, andava por este mundo com mão leal, nãovariavanunca, não fraquejava. Eu sabia que ele, a bem dizer, só

guardava memória de um amigo: Joca Ramiro. locaRamirotinha sido a admiração grave da vida dele: Deus no Céu

e JocaRamiro na outra banda do Rio. Tudo o justo. Mas ciúme émaiscustoso de se sopitar do que o amor. Coração da gente –oescuro, escuros.

Então, Diadorim o resto me descreveu. Pra por lá do

Suçuarão, já em tantos terrenos da Bahia, um dos dois Judaspossuía sua maior fazenda, com os muitos gados,lavouras, e lámorava sua família dele legítima, de raça – mulher efilhos. Agente suprisse de varar o Liso em boas farsas, sechegava lásem ser esperados, arrastava aquele pessoal por durasurpresa– acabou-se com aquilo! Mesmo quem havia de deduzirque o

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Liso do Suçuarão prestasse para nele caminho se impor?Ah,

eles prosperavam em sua fazenda feito num quartel debronze– com que por outros cantos não se podia remeter, poisdearredor decerto tinham vigias, reforço de munição erécua decamaradas, pelos pontos de passagem dificultosa, queelesgovernavam, em cada grota e cada ipueira. Truco que,derepente, do lado mais impossível, a gente fosse surgir de

sobrevento, soflagrar aqueles desprevenidos... Euescutei, eperfiz até um arrepio. Mas Diadorim, de vez mais sério,

temperou: – “Essa velha Ana Duzuza é que inferna e nãoseserve... Das perguntas que Medeiro Vaz fez, ela tirou portinoa tenção dele, e não devia de ter falado as pausas... Essa

carecede morrer, para não serleleira...”

Ouvi mal ouvi. Me vim d’águas frias. Diadorim era

assim: matar, se matava – era para ser um preparo. O judasalgum? – na faca! Tinha de ser nosso costume. Eu nãosabia?

Não sou homem de meio-dia com orvalhos, não tenho afracanatureza. Mas me venceu pena daquela Ana Duzuza, elacomos olhos para fora – a gente podia pegar nos dedos. Coisaqueme contou tantas lorotas. Trem, caco de velha, boca quesefechava aboborosa, de sem dentes. Raspava a rapaduracom aquicé, ia ajuntando na palma da mão o farelo peguentopreto;

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ou, se não, segurava o naco, rechupando, lambendo. Agente

engrossava nojo, salivava. Por que é, então, que elamereciatanto dó? Eu não tive solércia de contradizer. Asvontades deminha pessoa estavam entregues a Diadorim. A razãodele erado estilo acinte. Só previ medo foi de que ele falassepara eumesmo ir voltar lá, por minhas próprias acabar a AnaDuzuza.Eu não sojigava tudo por sentir. Fazia tempo que eu não

olhava Diadorim nos olhos.

Mas, de seguinte, eu pensei: se matarem a velhaDuzuza,

pelo resguardar o segredo, então é capaz que matem afilhatambém, Nhorinhá... então é assassinar! Ah, que sepuxou demim uma decisão, e eu abri sete janelas: – “Disso quevocêdisse, desconvenho! Bulir com a vida dessa mulher, paraa gentedá atraso...” – eu o quanto falei. Diadorim me adivinhava:– “Jásei que você esteve com a moça filha dela...” – elerespondeu,seco, quase num chio. Dente de cobra. Aí, entendi o quepra

verdade: que Diadorim me queria tanto bem, que ociúme delepor mim também se alteava. Depois dum rebatecontente, seatrapalhou em mim aquela outra vergonha, umestúrdio asco.

E eu quase gritei: – “Aí é a intimação? Pois, fizerem,eu saiodo meio de vós, pra todo o nunca. Mais tu há de não me

ver!...”Diadorim pôs mão em meu braço. Do que me estremeci,de

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dentro, mas repeli esses alvoroços de doçura. Me deu amão; e

eu. Mas era como tivesse uma pedra pontuda entre asduaspalmas. – “Você já paga tão escasso então por JocaRamiro? Porconta duma bruxa feiticeira, e a má-vida da filha dela,aqui nesteconfim de gerais?!” – ele baixo exclamou. E tive ira. –“Dou!” –falei. Todo o mundo, então, todos, tinham de viverhonrando afigura daquele, de Joca Ramiro, feito fosse Cristo NossoSenhor,o exato?! E por aí eu já tinha pitado dois cigarros. Serdonodefinito de mim, era o que eu queria, queria. MasDiadorim sabiadisso, parece que nãodeixava:

– “Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era omeu

pai...” – ele disse – não sei se estava pálido muito, edepois foique se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, paramaisperto de mim.

Acalmou meu fôlego. Me cerrou aquela surpresa.Sentei emcima de nada. E eu cri tão certo, depressa, que foi como

sempreeu tivesse sabido aquilo. Menos disse. Espiei Diadorim, aduracabeça levantada, tão bonito tão sério. E corri lembrançaem JocaRamiro: porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, arisada, osbigodes, o olhar bom e mandante, a testa muita, o topetedecabelos anelados, pretos, brilhando. Como que brilhavaele todo.Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os homens,ele tinha

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uma luz, rei da natureza. Que Diadorim fosse o filho,agora de

vez me alegrava, me assustava. Vontade minha foideclarar: –Redigo, Diadorim: estou com você, assente, em todosistema, ecom a memória de seu pai!... Mas foi o que eu não disse.Será porquê? Criatura gente é não e questão, corda de trêstentos, trêstranços. – “Pois, para mim, pra quem ouvir, no fato essaAnaDuzuza fica sendo minha mãe!” – foi o que eu disse. E,fe-chando, quase gritei: – “Por mim, pode cheirar quechegue omanacá: não vou! Reajo dessasbarbaridades!...”

 Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De umaceso,de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que

eu, àsloucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dummodo, araiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostarcomoqueria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a vozdele.Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amorinchou, deempapar todas as folhagens, e eu ambicionando depegar em

Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, asmuitasdemais vezes, sempre. E tinha nojo maior daquela AnaDuzuza,que vinha talvez separar a amizade da gente. Em mesmoeuquase reconheci um surdo prestígio de, sendo preciso, irlá, pormim, reduzir a velha – só não podia maltratar eraNhorinhá, que,ao tanto afeto, eu, eu bem-queria. Há-de que eu certonão

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regulasse, ôxe? Não sei, não sei. Não devia de estarrelembrando

isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga!Nãodevia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meuestranho. Mas,talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, quebemouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito:faz do

 jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o quee ruim,dentro da gente, a gente perverte sempre por arredarmais de si.Para isso é que o muito sefala?

E as idéias instruídas do senhor me fornecem paz.

Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Talnãoexiste; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o

Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, oMafarro,o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho,oNão-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos...Pois, nãoexiste! E, se não existe, como é que se pode se contratarpacto

com ele? E a idéia me retorna. Dum mau imaginado, osenhorme dê o lícito: que, ou então – será que pode tambémser quetudo é mais passado revolvido remoto, no profundo, mais

crônico: que, quando um tem noção de resolver a vendera almasua, que é porque ela já estava dada vendida, sem sesaber; e apessoa sujeita está só é certificando o regular dalgumvelho trato

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– que já se vendeu aos poucos, faz tempo? Deus nãoqueira;

Deus que roda tudo! Diga o senhor, sobre mim diga. Atépodendo ser, de alguém algum dia ouvir e entenderassim: quem-sabe, a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que Deus sópode àsvezes manobrar com os homens é mandando porintermédio dodiá? Ou que Deus – quando o projeto que ele começa éparamuito adiante, a ruindade nativa do homem só é capazde ver oaproximo de Deus é em figura do Outro? Que é que deverdadea gente pressente? Dúvido dez anos. Os pobres ventosno burroda noite. Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas

guardadas, a poder de minhas rezas. Ahã. Deamar,deamo...Relembro Diadorim. Minha mulher que não me ouça.

Moço:toda saudade é uma espécie develhice.

Mas aí, eu estava contando – quando eu gritei aquele

desafio raivoso, Diadorim respondeu o que eu nãoesperava: –“Tem discórdia não, Riobaldo amigo, se acalme. Não épreciso

se haver cautela de morte com essa Ana Duzuza. Nemnósvamos com Medeiro Vaz para fazer barbaridade com amulher efilhos pequenos daquele pior dos dois Judas, tão bem que

mereciam, porque ele e os da laia dele têm costumes de

proceder assim. Mas o que a gente quer é só pegar afamíliaconosco prisioneira; então, ele vem, se vem! E vemobrigado pra

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combates... Mas, se você algum dia deixar de vir junto,como

 juro o seguinte: hei de ter a tristeza mortal...” Disse. Tinhatornado a pôr a mão na minha mão, no começo de falar,e quedepois tirou; e se espaçou de mim. Mas nunca eu sentique eleestivesse melhor e perto, pelo quanto da voz, duma vozmesmorepassada. Coração – isto é, estes pormenores todos. Foiumesclaro. O amor, já de si, é algum arrependimento.AbraceiDiadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nomede seupai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, sebem.

Mas Diadorim mais não supriu o que mais nãoexplicava. E,quem sabe para deduzir da conversa, me perguntou: –

“Riobaldo,se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito debondade que era a dela...”

Na ação de ouvir, digo ao senhor, tive um menosgosto, naação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre quando

outro querdireto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci

disso,o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podiaacertaresse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi.Assimdevia de ser. Toda mãe vive de boa, mas cada umacumpre suapaga prenda singular, que é a dela e dela, diversabondade. E eununca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãeera aminha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondadeespecial

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de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que

eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meusdemaseios,querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela mefantasiou,fraseou – só face dum momento – feito grandezacantável, feitoentre madrugar e manhecer.

– “... Pois a minha eu não conheci...” – Diadorim

prosseguiu no dizer. E disse com curteza simples, igualquisessefalar:barra – beiras – 

cabeceiras...Fosse cego, de nascença.

Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; querdizer

isso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome dele.Não meenvergonho, por ser de escuro nascimento. Orfão de

conhecençae de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestessertões.Homem viaja, arrancha, passa: muda de lugar e demulher, algumfilho é o perdurado. Quem é pobre, pouco se apega, éum giro-o-giro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios elagoas. Osenhor vê: o Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho

ehabilidoso. Pergunto: – “Zé-Zim, por que é que você nãocriagalinhas-d’angola, como todo o mundo faz?” – “Querocriarnada não...” – me deu resposta: – “Eu gosto muito demudar...”Está aí, está com uma mocinha cabocla em casa, doisfilhos dela já tem. Belo um dia, ele tora. É assim. Ninguém discrepa.Eu,tantas, mesmo digo. Eu dou proteção. Eu, isto é – Deus,por

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baixos permeios... Essa não faltou também à minha mãe,quando

eu era menino, no sertãozinho de minha terra – baixo dapontada Serra das Maravilhas, no entre essa e a Serra dosAlegres,tapera dum sítio dito do Caramujo, atrás das fontes doVerde, oVerde que verte no Paracatu. Perto de lá tem vila grande– que sechamou Alegres – osenhor vá ver. Hoje, mudou de nome,

mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. É emsenhas.

São

Romãotodo não se chamou de primeiroVila Risonha? O Cedroe

o Bagrenão perderam o ser?O Tabuleiro-Grande?Como é que

podem remover uns nomes assim? O senhor concorda?Nomede lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado.Lá comoquem diz: então alguém havia de renegar o

nome de

Belém – de

Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, com NossaSenhora eSão José?! Precisava de se ter mais travação. Senhorsabe: Deus édefinitivamente; o demo é o contrário Dele... Assim é quedigo:eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que nãofalta, recordotudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com

agrado;mas sem saudade. Porque logo sufusa uma aragem dosacasos.Para trás, não há paz. O senhor sabe: a coisa maisalonjada deminha primeira meninice, que eu acho na memória, foi oódio,que eu tive de um homem chamado Gramacedo... Gentemelhordo lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes;

quando saíram de lá, nos trouxeram junto, minha mãe eeu. Fica-

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mos existindo em território baixio da Sirga, da outrabanda, ali

onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe.Eu estavacom uns treze ou quatorzeanos...

De sorte que, do que eu estava contando, ao senhor,umanoite se passou, todo o mundo sonhado satisfeito.

Declaro queera em abril, em entrar. Medeiro Vaz, para o que traçava,

tinhaquerido se adiar das restadas chuvas de março – dia deSão José esua enchente temposa – para pegar céu perfeito, com oscamposainda subindo verdes, pois visto a gente ia baixarprimeiro porcampinas de brejais, e daí avançar aquilo que se disse,depo-depois. Porque era extraordinária verdade, logo conheci;nãoachei terrível. Tangemos, esbarrando dois dias no Vespê– lá setinha boa cavalaria descansada, outros cavalos sobguarda dumsitiante amigo, Jõe Engrácio, por nome. Nos caminhosainda selambuzava muita lama de ontem. – “Versar viagem acavalo semter estradas – só doido é quem faz isso, ou jagunz...” –aquele Jõe

Engrácio falou, esse era homem sério trabalhador, masdemais desimplório; e, do que ele falava, ele mesmo logo se ria,fortemente.Mas erro era – porquanto Medeiro Vaz sempre souberumoprático, pelo firme. Modo mesmo assim, ele Jõe Engrácio

reparou na quantidade de comidas e mantimentos que agentetinha reunido, em tantos burros cargueiros: e que era

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despropósito, por amor daquela fartura – as carnes efarinhas, e

rapadura, nem faltava sal, nem café. De tudo. E ele,vendo o quevia, perguntou aonde se ia, dando dizendo de querer ir junto. –“Bobou?” – foi só o que Medeiro Vaz indeferiu. – “Bobei,chefe.Perdão peço...” – Jõe Engrácioreverenciou.

Medeiro Vaz não era carrancista. Somente de mais

sisudez,a praxe, homem baseado. Às vezes vinha falando surdo,deresmão. Com ele, ninguém vereava. De estado calado,elesempre aceitava todo bom e justo conselho. Mas nãolouvavacantoria. Estavam falando todos juntos? Então MedeiroVaznão estava lá. O que tinha sido antanha a história mesmadele, osenhor sabe? Quando moço, de antepassados de posses,elerecebera grande fazenda. Podia gerir e ficar estadonho.Masvieram as guerras é os desmandos de jagunços – tudoera mortee roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas edonzelas,foi impossível qualquer sossego, desde em quandoaquele

imundo de loucura subiu as serras e se espraiou nosgerais. EntãoMedeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o deverdele:largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras egados, selivrou leve como que quisesse voltar a seu sónascimento. Nãotinha bocas de pessoa, não sustinha herdeiros forçados.Noderradeiro, fez o fez-por suas mãos pôs fogo na distintacasa-de-

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fazenda, fazendão sido de pai, avô, bisavô – espiou até ovoejo

das cinzas; lá hoje é arvoredos. Ao que, aí foi aonde amãe estavaenterrada – um cemiteriozinho em beira do cerrado –entãodesmanchou cerca, espalhou as pedras: pronto, dealívios agorase testava, ninguém podia descobrir, para remexer comdesonra,o lugar onde se conseguiam os ossos dos parentes. Daí,relimpode tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete,com cachosd’armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagemdoscampos, e saiu por esse rumo em roda, para impor a

 justiça. Deanos, andava. Dizem que foi ficando cada vez maisesquisito.Quando conheceu Joca Ramiro, então achou outraesperançamaior: para ele, loca Ramiro era único homem, par-de-

frança,capaz de tomar conta deste sertão nosso, mandando porlei, desobregoverno. Fato que Joca Ramiro também igualmentesaíapor justiça e alta política, mas só em favor de amigos

perseguidos; e sempre conservava seus bons haveres.MasMedeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor

mais nãovê; eu ainda vi. Ele tinha conspeito tão forte, que pertodele até odoutor, o padre e o rico, se compunham. Podia abençoarouamaldiçoar, e homem mais moço, por valente que fosse,de beijara mão dele não se vexava. Por isso, nós todosobedecíamos.Cumpríamos choro e riso, doideira em juízo. Tenente nos

gerais– ele era. A gente era os medeiro-vazes.

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Razão dita, de boa-cara se aceitou, quando conforme

Medeiro Vaz com as poucas palavras: que íamos cruzar oLisodo Suçuarão, e cutucar de guerrear nos fundões daBahia! Até, otanto, houve, prezando, um rebuliço de festejo. O queninguémainda não tinha feito, a gente se sentia no poder fazer.Comofomos: dali do Vespê, tocamos, descendo esbarrancadose es-corregador. Depois subimos. A parte de mais árvores, dos

cerrados, cresce no se caminhar para ascabeceiras. Boi

brabeza

pode surgir do caatingal, tresfuriado com o que de gentenuncasoube – vem feio pior que onça. Se viam bandos tãocompridosde araras, no ar, que pareciam um pano azul ouvermelho,desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente. Daí,

sedesceu mais, e, de repente, chegamos numa baixadatodaavistada, felizinha de aprazível, com uma lagoa muitocorreta,rodeada de buritizal dos mais altos: buriti – verde queafina eesveste, belimbeleza. E tinha os restos de uma casa, queotempo viera destruindo; e um bambual, por antigos

plantado; eum ranchinho. Ali se chamava o Bambual do Boi. Lá agenteseria de pernoitar e arrumar os finais preparos. Eu estavadesentinela, afastado um quarto-de-légua, num alto retuso.Dali euvia aquele movimento: os homens, enxergadostamanhinho demeninos, numa alegria, feito nuvem de abelhas em flor

de araçá,esse alvoroço, como tirando roupa e correndo paraaproveitarem

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de se banhar no redondo azul da lagoa, de dondefugiam

espantados todos os pássaros – as garças, os jaburus, osmarrecos, e uns bandos de patos-pretos. Semelhava queporsaberem que no outro dia principiava o peso da vida, oscom-panheiros agora queriam só pular, rir e gozar seu exato.Mas unsdez tinham de sempre ficar formando prontidão, comseus riflese granadeiras, que Medeiro Vaz assim mandava. E, detardinha,quando voltou o vento, era um fino soprado seguido, naspalmasdos buritis, roladas uma por uma. E o bambual, quase

igualmente. Som bom de chuvas. Então, Diadorim veiome fazercompanhia. Eu estava meio dúbito. Talvez, quem tivessemaisreceio daquilo que ia acontecer fosse eu mesmo.

Confesso. Eu cánão madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mimeravariável. Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é quesei: que,para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ahbasta seolhar um minutinho no espelho – caprichando de fazercara devalentia; ou cara de ruindade! Mas minha competência

foicomprada a todos custos, caminhou com os pés daidade. E, digoao senhor, aquilo mesmo que a gente receia de fazerquandoDeus manda, depois quando o diabo pede se perfaz. ODanador!Mas Diadorim estava a suaves. – “Olha, Riobaldo” – medisse –“nossa destinação é de glória. Em hora de desânimo,

vocêlembra de sua mãe; eu lembro de meu pai...” Não falenesses,

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Diadorim... Ficar calado é que é falar nos mortos... Mefaltou

certeza para responder a ele o que eu estava achando.Que von-tade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigosolhosdele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim ochamado,até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquelabeleza verde,me adoecido, tão impossível.

Dormiu-se bem. De manhãzim – moal de aves epássarosem revôo, e pios e cantos – a gente toda discorria, se

esparramava, atarefados, ajudando para o derradeiro. Osbogósde couro foram enchidos nas nascentes da lagoa, eenqueridosnas costas dos burrinhos. Também tínhamos trazido

 jumentos,só modo para carregar. Os cavalos ainda pastavam umpouco,do capim-grama, que tapava os pés deles. Se dizia muitaalegria.Cada um pegava também sua cabaça d’água, e nacapanga odiário de se valer com o que comer – paçoca. MedeiroVaz,depois de não dizer nada, deu ordem de seguida.Primeiro, para

adiante, foi uma turma de cinco homens, a patrulhazinha.Constante que com a gente estavam três bonsrastreadores –Suzarte, Joaquim Beiju e Tipote – esse Tipote sabia meiosdedescobrir cacimbas e grotas com o bebível, o Suzarte

desempenhava um faro de cachorro-mestre, e JoaquimBeijuconhecia cada recanto dos gerais, de dia e de noite,referido

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deletreado, quisesse podia mapear planta. Saímos,semoventes.

Seis novilhos gordos a gente repontava, serviam para secarnearem rota. De repente, com a gente se afastando, ospássarostodos voltavam do céu, que desciam para seus lugares,em ponto,nas frescas beiras da lagoa – ah, a papeagem noburitizal, quelequelequeia. A ver, e o sol, em pulo de avanço, longe nabandade trás, por cima de matos, rebentava, aquelagrandidade. Diadesdobrado.

Em o que afundamos num cerrado de mangabal,indo sem

volvência, até perto de hora do almoço. Mas o terreno

aumentava de soltado. E as árvores iam se abaixando

menorzinhas, arregaçavam saia no chão. De vir lá, sóalgum tatu,por mel e mangaba. Depois, se acabavam asmangabaranas emangabeirinhas. Ali onde o campo largueia. Os urubusem vastoespaceavam. Se acabou o capinzal de capim-redondo epaspalho,e paus espinhosos, que mesmo as moitas daquele deprateados

feixes, capins assins. Acabava o grameal, naquelasparagenspardas. Aquilo, vindo aos poucos, dava um peso extrato,omundo se envelhecendo, no descampante. Acabou osapé brabodo chapadão. A gente olhava para trás. Daí, o sol nãodeixavaolhar rumo nenhum. Vi a luz, castigo. Um gavião-andorim: foi ofim de pássaro que a gente divulgou. Achante, pois, seestava

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naquela coisa – taperão de tudo, fofo ocado, arrevesso.Era uma

terra diferente, louca, e lagoa de areia. Onde é que seriao sobejodela, confinante? O sol vertia no chão, com sal,esfaiscava. Delonge vez, capins mortos; e uns tufos de seca planta –feitocabeleira sem cabeça. As-exalastrava a distância,adiante, umamarelo vapor. E fogo começou a entrar, com o ar, nospobrespeitos da gente.

Expondo ao senhor que o sucedido sofrimentosobrefoi jáinteirado no começo; daí só mais aumentava. E o que era

paraser. O que é pra ser – são as palavras! Ah, porque. Porquê? Juroque: pontual nos instantes de o raso se pisar, um sujeitodoscompanheiros, um João Bugre, me disse, ou disse aoutro, domeu lado:

– “ ... O Hermógenes tem pauta... Ele se quis com o

Capiroto...”

Eu ouvi aquilo demais. O pacto! Se diz – o senhorsabe.Bobéia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma

encruzilhada,e chama fortemente o Cujo – e espera. Se sendo, há-deque vemum pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece umaporca comninhada de pintos, se não for uma galinha puxandobarrigada deleitões. Tudo errado, remedante, sem completação... O

senhor

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imaginalmente percebe? O crespo – a gente se retém –então dá

um cheiro de breu queimado. E o dito – o Coxo – tomaespécie,se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina opacto. Seassina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muitomaisdepois. O senhor vê, superstição parva? Estornadas!“...

O

Hermógenes tem pautas...” 

Provei. Introduzi. Com ele ninguém

podia? O Hermógenes – demônio. Sim só isto. Era elemesmo.

A gente viemos do inferno – nós todos – compadremeuQuelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-

medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundarporum relance a graça de sua sustância alumiável, em astrevas devéspera para o Terceiro Dia. Senhor quercrer?

Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dosoutros, bom

atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, paradigerir oque se come, é preciso de esforçar no meio, com fortesdores; eaté respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se

creio?Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba,soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros –as ruin-dades de regra que executavam em tantos pobrezinhosarraiais:baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos,cortandolínguas e orelhas, não economizando as criançaspequenas,atirando na inocência do gado, queimando pessoas aindameio

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vivas, na beira de estrago de sangues... Esses nãovieram do

inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dosprazos,figuro que por empreitada de punir os outros,exemplação denunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Emtanto,que muitos retombam para lá, constante que morrem...Viver émuito perigoso.

Mas mor o infernal a gente também media. Digo. Aigual,igualmente. As chuvas já estavam esquecidas, e o miolo

mal dosertão residia ali, era um sol em vazios. A genteprogredia dumaspoucas braças, e calcava o reafundo do areião – areiaqueescapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalospara trás.Depois, se repraçava um entranço de vice-versa, comespinhos erestolho de graviá, de áspera raça, verde-preto cor decobra. Ca-minho não se havendo. Daí, trasla um duro chão rosadooucinzento, gretoso e escabro – no desentender aquilo oscavalosarupanavam. Diadorim – sempre em prumo a cabeça – osorriso

dele me dobrava o ansiar. Como que falasse: “Hê,valentessomos, corruscubas, sobre ninguém – que vamospadecer emorrer por aqui...” Os medeiro-vazes... Medeiro Vaz se

estugasse adiante, junto com os que rastreavam? Seráque de láainda se podia receder? De devagar, vi visagens. Os

companheiros se prosseguindo, só prosseguindo, receeide ter

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um vágado – como tonteira de truaca. Havia eu de saberpor

quê? Acho que provinha de excessos de idéia, poiscaminhadaspiores eu já tinha feito, a cavalo ou a pé, no tosta-sol.Medo,meu medo. Agüentei. Tanto tudo o que eu carregavacomigo mepesava – eu ressentia as correias dos correames, osformatos. Acom légua-e-meia de andada, bebi meu primeiro chupod’água,da cabaça – eu tinha avarezas dela. Alguma justa noçãonãoemendei, eu pensava desconjuntado. Até queesbarramos. Atéque, no mesmo padrão de lugar, sem mudança nenhuma,

nenhuma árvore nem barranco, nem nada, se viu o solde umlado deslizar, e a noite armar do outro. Nem auxiliei atomarconta dos bois, nem a destravar os burros de albarda.

Onde eraque os animais iam poder pastar? Noite redondeou,noite semboca. Desarreei, peei o animal, caí e dormi. Mas, noextremo deadormecer, ainda intruji duas coisas, em cruz: queMedeiro Vazestava insensato? – e que o Hermógenes era pactário!

 Tomo queessas traves fecharam meus olhos. De Diadorim, aí jaz

quedescansando do meu lado, assim ouvi: – “Pois dorme,Riobaldo,tudo há-de resultar bem...” Antes palavras que picaramem mimuma gastura cansada; mas a voz dele era o tanto-tantopara oembalo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive umasonhice:Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu

pudessemesmo gostar dele – osgostares...

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Como vou achar ordem para dizer ao senhor acontinuação

do martírio, em desde que as barras quebraram, noseguinte, nabrumalva daquele falecido amanhecer, sem esperançaem uma,sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Euabaixava osolhos, para não reter os horizontes, que trancados nãoalteravam,circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar,

imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido,vivido. Sósaiba: o Liso do Suçuarão concebia silêncio, e produziaumamaldade – feito pessoa! Não destruí aquelespensamentos: ir, e ir,vir – e só; e que Medeiro Vaz estava demente, sempreexistidodoidante, só agora pior, se destapava – era o que eutinharompência de gritar. E os outros, companheiros, que é

que osoutros pensavam? Sei? De certo nadas e noves – iamcomo ocostume – sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem jámeio de-sistido por si... A calamidade de quente! E o esbraseado,o estufo,a dor do calor em todos os corpos que a gente tem. Oscavalosventeando – só se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o

trabalhocustoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra.Água nãohavia. Capim não havia. A debeber os cavalos em cochoarmadode couro, e dosar a meio, eles esticando os pescoçospara pedir,eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudo oquecangavam de esforço, e cada restar de bebida carecia de

serpoupado. Se ia, o pesadelo. Pesadelo mesmo, de delírios.Os

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cavalos gemiam descrença. Já pouco forneciam. E nósestávamos

perdidos. Nenhum poço não se achava. Aquela gentetodasapirava de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz

assassinava demais. E a gente dava voltas, osrastreadores fare- jando, procurando. Já tinha quem beijava os bentinhos, serezava.De mim, entreguei alma no corpo, debruçado para asela, numaquebreira. Até minhas testas formaram de chumbo.Valentia valeem todas horas? Repensei coisas de cabeça-branca. Oueuvariava? A saudade que me dependeu foi de Otacília.Moça quedava amor por mim, existia nas Serras dos Gerais –Buritis Altos,cabeceira de vereda – na Fazenda Santa Catarina. Meairei nela,como a diguice duma música, outra água eu provava.

Otacília, elaqueria viver ou morrer comigo – que a gente se casasse.Saudadese susteve curta. Desde unsversos:

Buriti, minha palmeira,

lá na vereda de lá

casinha da bandaesquerda,olhos de onda domar...Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meuamor deprata e meu amor de ouro. De doer, minhas vistas

bestavam, seembaçavam de renuvem, e não achei acabar para olharpara océu. Tive pena do pescoço do meu cavalo – pedação,tábua

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suante, padecente. Voltar para trás, para as boas serras!Eu via,

queria ver, antes de dar à casca, um pássaro voandosemmovimento, o chão fresco remexido pela fossura dumaanta, ocabecear das árvores, o riso do ar e o fogo feito dumaarara. Osenhor sabe o que é o frege dum vento, sem uma moita,um péde parede pra ele se retrasar? Diadorim não se apartoudo meulado. Caso que arredondava a testa, pensando.Adivinhou que euroçava longe dele em meus pensamentos. – “Riobaldo,não sematou a Ana Duzuza... Nada de reprovável não se fez...”–falou. E eu não respondendo. Agora, o que era que aquilomeimportava – de malfeitos e castigos? Eu ambicionava osuíxomanso dum córrego nas lajes – o bom sumiço dum riacho

matoa fundo. E adverti memória dos derradeiros pássaros do

Bambual do Boi. Aqueles pássaros faziam arejo.Gritavamcontra a gente, cada um asia sua sombra num palmovivod’água. O melhor de tudo é a água. No escaldado... “Saiodaquicom vida, deserteio de jaguncismo, vou e me caso com

Otacília!” – eu jurei, do proposto de meus todossofrimentos.Mas mesmo depois, naquela hora, eu não gostava maisdeninguém: só gostava de mim, de mim! Novo que euestava novelho do inferno. Dia da gente desexistir é um certodecreto –por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê. Ah, e os

poços nãose achavam... Alguém já tinha declarado de morto. OMiquim,

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um rapaz sério sincero, que muito valia em guerreio,esbarrou e

se riu: – “Será que não é sorte?” Depois, se sofreu o gritodeum, adiante: – “Estou cego!...” Mais aquele, o do pior –caiutotal, virado torto; embaraçando os passos dasmontadas. Derepente, um rosnou, reclamou baixo. Outro também. Oscavalosbobejavam. Vi uma roda de caras de homens. Suas ascaras.Credo como algum – até as orelhas dele estavamcinzentas. Eoutro: todo empretecido, e sangrava das capelas epapos-dos-olhos. Medeiro Vaz a nada não atendia? Ouvi minhasveias. Aí,a rumo, eu pude pegar a rédea do animal de Diadorim –aquelaspeças doeram na minha mão – tive que fiquei uminstante noinclinado. – “Daqui, deste mesmo de lugar, mais não

vou! Sódesarrastado vencido...” – mas falei. Diadorim pareceuempedra, cão que olha. Contanto me mirou a firme, comaquelabeleza que nada mudava. – “Pois vamos retornar,Riobaldo...Que vejo que nada campou viável...” – “Tal tempo!” –truquei,mais forte, rouco como um guariba. Foi aí que o cavalo

deDiadorim afundou aberto, espalhado no chão, e seagoniou. Euapeei do meu. Medeiro Vaz estava ali, num aspeitorepartido.Pessoal companheiro, em redor, se engasgavam, pelo o

resultado. – “Nós temos de voltar, chefe?” – Diadorimsolicitou.Acabou de falar, e parou um gesto, para nós, a gente

sofreasse. Tom bom; mas se via que Medeiro Vaz não podia outroquerer,

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a não ser o que Diadorim perguntava. Medeiro Vaz, então– por

primeira vez – abriu dos lados as mãos, de nada nãopoderfazer; e ele esteve de ombros rebaixados. Mais não vi, eentendi.Peguei minha cabaça, bebi gole, amargo de felém. Maseramesmo o final de se voltar, Deus me disse. E – o senhormaissaiba – de supeto já eu estava remoçado, são, disposto!

 Todosinfluídos assim. Pra trás, sempre dá o prazer. Diadorimapalpoumeu braço. Vi: os olhos dele marejados. Mor que depoiseusoube – que, a idéia de se atravessar o Liso do Suçuarão,eleDiadorim era que a Medeiro Vaz tinhaaconselhado.

Mas, para que contar ao senhor, no tinte, o mais quese

mereceu? Basta o vulto ligeiro de tudo. Como Deus foiservido,de lá, do estralal do sol, pudemos sair, sem maioresestragos. Istoé, uns homens mortos, e mais muitos dos cavalos.Mesmo o maisgrave sido que restamos sem os burros, fugidos porinfelizes, e acarga quase toda, toda, com os mantimentos, a genteperdemos.

Só não acabamos sumidos dextraviados, por meio doregular dasestrelas. E foi. Saímos dali, num pintar de aurora. E emlugaresdeerrados. Mais não se podia. Céu alto e o adiado dalua. Comoutros nossos padecimentos, os homens tramavamzuretados defome – caça não achávamos – até que tombaram à balaummacaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavamcomendo.

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Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto – juroao

senhor – enquanto estavam ainda mais assando, emanducando,se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam orabo. Erahomem humano, morador, um chamado José dos Alves!Mãedele veio de aviso, chorando e explicando: era criaturo deDeus,que nu por falta de roupa... Isto é, tanto não, pois elamesmaainda estava vestida com uns trapos; mas o filhotambémescapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado.Foiassombro. A mulher, fincada de joelhos, invocava. Algumdisse:– “Agora, que está bem falecido, se come o que alma nãoé,modo de não morrermos todos...” Não se achou graça.Não,mais não comeram, não puderam. Para acompanhar,

nem farinhanão tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. Amulherrogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos

perrengavam. – “Aí, então, é a fome?” – uns xingavam.Masoutros conseguiram da mulher informação: que tinha,obra dequarto-delégua de lá, um mandioca) sobrado. – “Arre que

não!”– ouvi gritarem: que, de certo, por vingança, a mulherensinasseaquilo, de ser mandiocabrava! Esses olhavam comterrível raiva.Nesse tempo, o Jacaré pegou de uma terra, qualidadeque dizemque é de bom aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, semacharsabor, só o pepego esquisito, e enganava o estômago.

Melhorengolir capins e folhas. Mas uns já enchiam até capanga,com tor-

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rão daquela terra. Diadorim comeu. A mulher tambémaceitou, a

coitada. Depois Medeiro Vaz passou mal, outros tinhamdores,pensaram que carne de gente envenenava. Muitosestavamdoentes, sangrando nas gengivas, e com manchasvermelhas nocorpo, e danado doer nas pernas, inchadas. Eu cumpriaumadisenteria, garrava a ter nojo de mim no meio dos outros.Maspudemos chegar até na beira do dos-Bois, e na LagoaSuçuarana,ali se pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempotodo, elatemia de que faltasse outro de-comer, e ela servisse. –“Quemquiser bulir com ela, que me venha!” – Diadorimgarantiu. –“Que só venha!” – eu secundei, do lado dele. Matou-secapivaragorda, por fim. Dum geralista roto, ganhamos farinha-de-

buriti,sempre ajudava. E seguimos o corgo que tira da LagoaSu-çuarana, e que recebe o do Jenipapo e a Vereda – do-Vitorino, eque verte no Rio Pandeiros – esse tem cachoeiras quecantam, e éd’água tão tinto, que papagaio voa por cima e gritam,semacordo: – Éverde!É azul! Éverde! É verde!...E longe pedra velha

remeleja, vi. Santas águas, de vizinhas. E era bonito, nocorrer dobaixo campo, as flores do capitão-da-sala-todasvermelhas ealaranjadas, rebrilhando estremecidas, de reflexo. – “É ocava-lheiro-da-sala...” – Diadorim falou, entusiasmado. Mas oAlaripe,perto de nós, sacudiu a cabeça. – “Em minha terra, o

nomedessa” – ele disse“é dona-joana... Mas o leite dela évenenoso...”

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Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela

esfrega. Esmorecidos é que não. Nenhum se lastimava,filhos dodia, acho mesmo que ninguém se dizia de dar por assim. Jagunçoé isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota– quaseque tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida jáestáassentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e ofim final. Etodo o mundo não presume assim? Fazendeiro, também?

Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de arroz. Tudo queeu mesmo, do que mal houve, me esquecia. Tornava ater fé naclareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo.Confiança– o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ouperfeitas: elarodeia é o quente da pessoa. E despaireci meu espírito de

irprocurar Otacília, pedir em casamento, mandado devirtude. Fuifogo, depois de ser cinza. Ah, algum, isto é que é, agente temdevassalar. Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai portodaparte lambendo o prato... Mas eu gostava de Diadorimparapoder saber que estes gerais são

formosos. Talmente, também, se carecia de tomar repouso eaguardo.Por meios e modos, sortimos arranjados animais de

montada,arranchamos dias numa fazenda hospitaleira na VeredadoAlegre, e viemos vindo atravessando o Pardo e o Acari,em todaa parte a gente era recebida a bem. Tardou foi para seter sinal

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dos bandos dos Judas. Mas a vantagem nossa era quetodos os

moradores pertenciam do nosso lado. Medeiro Vaz nãomaltratava ninguém sem necessidade justa, não tomavanada àforça, nem consentia em desatinos de seus homens.

Esbarrávamos em lugar, as pessoas vinham, davam oquepodiam, em comidas, outros presentes. Mas osHermógenes eos cardões roubavam, defloravam demais,determinavam sebaçaem qualquer povoa) à-toa, renitiam feito peste. Naocasião, oHermógenes beirava a Bahia de lá, se soube, e eram ummundoenorme de má gente. E o Ricardão? Estivesse,esperasse. Dandomeias andadas, nós chegamos num ponto-verdadeiro,numBuriti-do-Zé. Dono de lá, Sebastião Vieira, tinha curral e

casa. Eguardava munição da gente: mais de dez mil tirosde bala.

Por que foi que não se fez combate, depois naquelesmesestodos? A verdade digo ao senhor: os soldados do

Governoperseguiam a gente. Major Oliveira, Tenente Ramiz eCapitão

Melo Franco – esses não davam espaço. E Medeiro Vazpensavaera um pensamento: a gente mamparreasse de com elesnãoguerrear, não se esperdiçar – porque as nossas armasguardavamum destino só, de dever. Escapulíamos, esquipávamos.Veredaem vereda, como os buritis ensinam, a gente varava paraapós. Sepassava o Piratinga, que é fundo, se passava: ou no Vauda Mata

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ou no Vau da Boiada; ou então, pegando mais por baixo,o São

Domingos, no Vau do José Pedro. Se não, subíamos beiradesse,até às nascentes, no São Dominguinhos. A ser oimportante, quese tinha de estudar, era avançar depressa nas boaspassagens nasdivisas, quando militar vinha cismado empurrando. Épreciso desaber os trechos de se descer para Goiás: em debruçarparaGoiás, o chapadão por lá vai terminando, despenha. Temquebra-cangalhas e ladeiras terríveis vermelhas. Olhe: muito emalém, vilugares de terra queimada e chão que dá som – umestranho.Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho: de medo de nós,umhomem se enforcou. Por aí, extremando, se chegava aténo Jalapão – quem conhece aquilo? – tabuleiro chapadoso,

proporema. Pois lá um geralista me pediu para serpadrinho defilho. O menino recebeu nome de Diadorim, também.Ah, quemoficiou foi o padre dos baianos, saiba o senhor:população de umarraial baiano, inteira, que marchava de mudada-homens,

mulheres, as crias, os velhos, o padre com seus

petrechos e cruz ea imagem da igreja – tendo até bandinha-de-música,comovieram com todos, parecendo nação de maracatu! Iampara osdiamantes, tão longe, eles mesmo dizendo: “... nosrios...” Unstocavam jumentos de almocreve, outros carregavamsuas coisas –sacos de mantimentos, trouxas de roupa, rede de caroá a

tiracol.O padre, com chapéu-de-couro prà-trasado. Só era uma

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procissão sensata enchendo estrada, às poeiras, com oplequeio

das alpercatas, as velhas tiravam ladainha, gentecantável.Rezavam, indo da miséria para a riqueza. E, pelo prazerde tomarparte no conforto de religião, acompanhamos esses até àVila daPedra-de-Amolar. Lá venta é da banda do poente, notempo-das-águas; na seca, o vento vem deste rumo daqui. O cortejodosbaianos dava parecença com uma festa. No sertão, atéenterrosimples é festa.

Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé eposição

se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dosgerais, parase viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deusepedindo glória do perdão do mundo. Todos vinhamcomparecendo, lá se levantava enorme igreja, não haviamaiscrimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava emDeus,dado logo, até à hora de cada uma morte cantar.Raciocinei issocom compadre meu Quelemém, e ele duvidou com acabeça: –

“Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar ésozinho...” –ciente me respondeu.

Compadre meu Quelemém é um homem fora deprojetos.O senhor vá lá, na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A

estrela-d’alva sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempoda cana.Senhor vê, no escuro, um quebrapeito – e é ele mesmo, já

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risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebeuma

cuia de garapa e dá a ele lembranças minhas. Homem demansalei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmopessoamuito alegre ou muito triste gosta de poder conversarcom ele.

 Todo assim, o que minha vocação pedia era umfazendão

de Deus, colocado no mais tope, se braseando incenso

nascabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até ospássaros ebichos vinham bisar. Senhor imagina? Gente sã valente,

querendo só o Céu, finalizando. Mas diverso do que sevê, ora cáora ali lá. Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essadesistiuum dia de comer e só bebendo por dia três gotas deágua de piabenta, em redor dela começaram milagres. Mas odelegado-regional chegou, trouxe os praças, determinou odesbando dopovo, baldearam a moça para o hospício de doidos, nacapital,diz-se que lá ela foi cativa de comer, por armagem desonda. Tinham o direito? Estava certo? Meio modo, acho que foibom.

Aquilo não era o que em minha crença eu prezava.Porque, numestalo de tempo, já tinham surgido vindo milharesdesses, parapedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra,aleijados porhorríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos,loucosacorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo:criaturas quefediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor desanimava.Se tinha

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um grande nojo. Eu sei: nojo é invenção, do Que-NãoHá,para

estorvar que se tenha dó. E aquela gente gritava,exigiam saúdeexpedita, rezavam alto, discutiam uns com outros,desesperavamde fé sem virtude – requeriam era sarar, não desejavamCéunenhum. Vendo assaz, se espantava da seriedade domundo paracaber o que não se quer. Será acerto que os aleijões efeiezasestejam bem convenientemente repartidos, nos recantosdoslugares. Se não, se perdia qualquer coragem. O sertãoestá cheiodesses. Só quando se jornadeia de jagunço, no teso dasmarchas,praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o estatutodemisérias e enfermidades. Guerra diverte – o demoacha.

Mire veja: um casal, no Rio do Borá, daqui longe, sóporquemarido e mulher eram primos carnais, os quatro meninosdelesvieram nascendo com a pior transformação que há: sembraços esem pernas, só os tocos... Arre, nem posso figurar minhaidéianisso! Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz,que

explorava as pedras turmalinas no vale do Araçuaí,discorreu medizendo que a vida da gente encarna e reencama, porprogressopróprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não terDeus?!Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre ummilagre épossível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de agente perdidos no vaivem, e a vida é burra. É o abertoperigo das

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grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – étodos

contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave sedescuidar umpouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus,então, agente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existedor. E avida do homem está presa encantoada – erra rumo, dáemaleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços.Dor nãodói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dóisemprecisar de se ter razão nem conhecimento? E aspessoas nãonascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte,mas de vernascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que nãoéDeus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quandonão há.Mas o demônio não precisa de existir para haver – a

gentesabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta detudo. Oinferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas agentequer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depoisdele agente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, osenhor mecorte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual

emmeus gostos. O que eu invejo é sua instrução dosenhor...

De Araçuaí, eu trouxe uma pedra detopázio.Isto, sabe o senhor por que eu tinha ido lá daqueleslados?De mim, conto. Como é que se pode gostar do

verdadeiro nofalso? Amizade com ilusão de desilusão. Vida muitoesponjosa.

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Eu passava fácil, mas tinha sonhos, que me afadigavam.Dos de

que a gente acorda devagar. O amor? Pássaro que põeovos deferro. Pior foi quando peguei a levar cruas minhasnoites, sempoder sono. Diadorim era aquela estreita pessoa – nãodava detransparecer o que cismava profundo, nem o quepresumia. Achoque eu também era assim. Dele eu queria saber? Só sequeria enão queria. Nem para se definir calado, em si, umassuntocontrário absurdo não concede seguimento. Voltei paraos friosda razão. Agora, destino da gente, o senhor veja: eutrouxe apedra de topázio para dar a Diadorim; ficou sendo paraOtacília,por mimo; e hoje ela se possui é em mão de minhamulher! Ouconto mal? Reconto.

Ao que nós acampados em pé duns brejos, brejal,cabo de

várzea. Até, lá era favorável de defender que os cavalosseespairassem – por ter manga natural, onde se encostar, ecurraisfalsos, de pegar gadobrabeza.Natureza bonita, o capim macio.

Me revejo, de tudo, daquele dia-a-dia. Diadorim restavaumtempo com uma cabaça nas duas mãos, eu olhava paraele. “Sejapor ser, Riobaldo, que em breve rompemos adiante.Desta vez, agente tange guerra...” – pronunciou, a prazer, comosemprequando assim, em véspera. Mas balançou a cabaça:tinha umtrem dentro, um ferro, o que me deu desgosto; taco deferro, sem

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serventia, só para produzir gastura na gente. – “Bota issofora,

Diadorim!” – eu disse. Ele não contestou, e me olhou deumhesitado jeito, que se eu tivesse falado causa impossível.Em tal,guardou o pedaço de ferro na algibeira. E ficava toda-a-vida coma cabaça nas mãos, era uma cabaça baiana fabricada,desenhadade capricho, mas que agora sendo para nojo. E, como medeusede, eu peguei meu copo de corno lavrado, que nãoquebranunca, e fomos apanhar água num poço, que ele medisse. Erapor esconso por uma palmeira – duma de nome que nãosei, decurta altura, mas regrossa, e com cheias palmas,reviradas paracima e depois para baixo, até pousar no chão com aspontas. Todas as palmas tão lisas, tão juntas, fechavam um

coberto,remedando choupã de índio. Assino que foi de avistaremumasassim que os bugres acharam idéia de formar suas tocas.Aí agente se curvar, suspendia uma folhagem, lá entrava. Opoçoabria redondo, quase, ou ovalado. Como no recesso domato, aliintrim, toda luz verdeja. Mas a água, mesma, azul, dum

azul quehaja – que roxo logo mudava. A vai, coração meu foiforte.Sofismei: se Diadorim segurasse em mim com os olhos,medeclarasse as todas as palavras? Reajo que repelia. Eu?Asco!Diadorim parava normal, estacado, observando tudosemimportância. Nem provia segredo. E eu tive decepção de

logro,por conta desse sensato silêncio? Debrucei, ia catar água.Mas,

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qual, se viu um bicho – rã brusca, feiosa: botando bolhas,que à

lisa cacheavam. Resumo que nós dois, sob num tempo,demospara trás, discordes. Diadorim desconversou, e se sumiu,por lá,por aí, consoante a esquisitice dele, de sempre às vezes

desaparecer e tornar a aparecer, sem menos. Ah, quemfaz issonão é por ser e se saber pessoaculpada?

No que vim para um grupo de companheiros, essesestavam jogando buzo, enchendo folga. Por simples queacompanheirada naqueles derradeiros tempos mecaceteava comum enjôo, todos eu achava muito ignorantes, grosseiroscabras.Somente que na hora eu queria a frouxa presença deles –fulão esicrão e beltrão e romão – pessoal ordinário. A tanto,mesmosem fome, providenciei para mim uma jacuba, no come-calado.E quis – que até me perguntei – pensar na vida: “Penso?”Masfoi no instante em que todos levantaram as caras: sósendo umrebuliço, acolá, na virada que principiava a vertente –onde é que

estavam uns outros, que chamavam, muito, acenandoespecial.Pois fomos, ligeiro, ver o que, subindo peloresfriado.

Passava era uma tropa, os diversos lotes de burros,quevinham de São Romão, levavam sal para Goiás. E o

arrieiro-mestre relatando uma infeliz notícia, dessas da vida. –“Ele eraalto, feições compridas, dentuço?” – Medeiro Vaz exigiucerteza.

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– “Olhe, pois era” – o arrieiro respondeu – “e, antes demorrer,

deu o nome: que era Santos-Reis... Mais não propôs dizer,porque aí se exalou. Comandante, o senhor creia, nóstivemosgrande pena...” A gente, em volta, se consternava.Aquelestropeiros, no Cururu, tinham achado o Santos-Reis, quemorriaurgente; tinham acendido vela, e enterrado. Febres? Aomenos,mais, a alma descansasse. A gente tirou chapéus, emvoto todosse benzendo. E o Santos-Reis era o homem que vivo faziamaisfalta – ele estava viajando para trazer recado ecombinação, daparte de Só Candelário e Titão Passos, chefes em nossofavor naoutra grande banda do Rio.

– “Agora alguém carece de ir...” – Medeiro Vazdecidiu,olhando salteado;amém! – nós apreciávamos. Eu espiei,

caçando Diadorim, que ali que era a mocinha de cabeloslouros.– “Sesfredo, me conta, me fala nesse acontecer...” –nem bemcem braças andadas eu já pedia a ele. Era como se eutivesse de

caçar emprestada uma sombra de um amor. – “E vocênão voltapara lá, Sesfredo? Você agüenta o existir?” – perguntei. –

“Guardo isso, para às vezes ter saudade. Berimbau!Saudade,só...” – e ele alargou as ventas, de tanto riso. Vi que aestória damoça era falsa. De inventar )ouco se ganha. Regra domundo é

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muito dividida. O Sesfredo comia muito. E sabia assoviar

seguido, copiando o de muitospássaros.Ao viável, eu tinha de atravessar as tantas terras e

municipios, jogamos uma viagem por este Norte, meiageral.Assim conheço as províncias do Estado, não há onde eunãotenha aparecido. A que viemos: por Extrema de Santa

Maria –Barreiro Claro – Cabeça de Negro – Córrego Pedra doGervásio– Acari – Vieira – e Fundo – buscando jeito de encostar nodeSão Francisco. Novidade não houve. Passamos, numabarca. Sósempre bater para o nascente, direitamente em cima de

 Tremedal, chamada hoje Monte-Azul. Sabíamos: umpessoalnosso perpassava por lá, na Jaíba, até à Serra Branca,brabasterras vazias do Rio Verde-Grande. De madrugada,acordamosem sua janela um velhozinho, dono de um bananal. Ovelho-zinho era amigo, executou o recado. Daí a cincomadrugadas,retornamos. Era para vir alguém, quem veio foi JoãoGoanhá,

próprio. E as descrições que deu foram de todas aspiores. SóCandelário? Morto em tiroteio de combate,metralhadorastinham serrado o corpo dele, de esguelha, por riba dacintura. OAlípio, preso, levado para a cadeia de algum lugar. TitãoPassos?Ah, perseguido por uma soldadesca, tivera de se escaparpara aBahia, pela proteção do Coronel Horácio de Matos. Sómesmo

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 João Goanhá era quem ainda estava. Comandava saldode uns

homens, os poucos. Mas coragem e munição nãofaltavam. – “Eos Judas?” – perguntei, com triste raciocínio: por que eraque ossoldados não deixavam a gente em paz, mas comaqueles nãoterçavam? – “Se diz que eles têm uma proteção preta...”– JoãoGoanhá me esclareceu: – “O Hermógenes fez o pauto. Éodemônio rabudo quem pune por ele...” Nisso todosacreditavam.Pela fraqueza do meu medo e pela força do meu ódio,acho queeu fui o primeiro que cri.

Ainda disse João Goanhá que estávamos embrevidade.Porque ele sabia que os Judas, reforçados, tinham

resolvidopassar o Rio em dois lugares, e marcharem em cima deMedeiroVaz, para acabar com ele de uma vez, no país de lá.Onde era queo perigo, Medeiro Vaz precisava denós.

Mas não pudemos. Mal a gente se tocou, para aCachoeirado Salto, e esbarramos com tropa de soldados – tenente

Plínio.Foi fogo. Fugimos. Fogo no Jacaré Grande – tenenteRosalvo.Fogo no Jatobá Torto – sargento Leandro. Volteamos.Sobre aí,me senti pior de sorte que uma pulga entre dois dedos.Noformato da forma, eu não era o valente nem mencionado

medroso. Eu era um homem restante trivial. A verdadeque diga,eu bem defronte de mim se portava, mesmo seguravauma vara-

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de-ferrão, considerei nele certo propósito, de despique

gandaiado. Apartei minhas vistas. Requeri, dei passo: –“Se sendoordens, Chefe, eu gostava era de ir...” Medeiro Vazlimpou agoela. A meio, eu estava me lançando, mas maisnegaceandoprosápia: duvidoso d’ele consentir; pelo bom atirador queeu era,o melhor e mor, necessitavam de mim, haviam de querermemandar escoteiro, dizedor de mensagem? E aí se deu oque sedeu – o isto é. Medeiro Vaz concordou! – “Mas carece delevarum companheiro...” – ele propôs. Aí em tanto eu nãodevia deme calar, deixar alheia a escolha do segundo, que nãomecompetia? Ah, ânsia: que eu não queria o que de certoqueria, eque podia se surtir de repente... E a vontade de fim, que

me oravinha ranger na boca, me levou num avanço: – “Sendosuasordens, Chefe, o Sesfredo comigo vai...” – falei. Nem olhei

Diadorim. Medeiro Vaz aprouve. Me encarou, demais, e

despachou, em duríssimo: – “Vai, então, e no caminhonãomorre!” A ser que Medeiro Vaz, por esse tempo, já

acusavadoença a quase acabada – no peso do fôlego e nodesmanchodos traços. Estava amarelo almecegado, se curvava semquerer, ediziam que no verter água ele gemia. Ah, mas outro igualeu nãoconheci. Quero ver o homem deste homem!... MedeiroVaz – oReidosGerais...

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Por que era que eu estava procedendo à-toa assim?Senhor,

sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente viverepetido, orepetido, e, escorregável, num mim minuto, já estáempurradonoutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendofiquei,para de lá de tantos assombros... Um está sempre noescuro, sóno último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o realnão estána saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente éno meio datravessia. Mesmo fui muito tolo! Hoje em dia, não mequeixo denenhuma coisa. Não tiro sombras dos buracos. Mas,também,não há jeito de me baixar em remorso. Sim, que sóduma coisa. Edessa, mesma, o que tenho é medo. Enquanto se temmedo, euacho até que o bom remorso não se pode criar, não é

possível.Minha vida não deixa benfeitorias. Mas me confessei comsetepadres, acertei sete absolvições. No meio da noite euacordo epelejo para rezar. Posso. Constante eu puder, meu suornãoesfria! O senhor me releve tantodizer.

Mire veja o que a gente é: mal dali a um átimo, euselandomeu cavalo e arrumando meus dobros, e já me muitoentristecia.Diadorim me espreitava de longe, afetando a espéciedumavagueza. No me despedir, tive precisão de dizer a ele,baixinho: –“Por teu pai vou, amigo, mano-oh-mano. Vingar JocaRamiro...”

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A fraqueza minha, adulatória. Mas ele respondeu: –“Viagem

boa, Riobaldo. E boa-sorte...” Despedir dáfebre.Galopando junto com Sesfredo, larguei aquele lugardoBuriti das Três Fileiras. Pesares que me desenrolavam. E

entãoeu decifrei meu arranque de ter querido vir com oSesfredo. Queele, se sabia, tinha deixado, fazia muitos anos, em terras

do Jequitinhonha, uma moça que apaixonava, e achava quenãotinha nascido para aquilo, de ser sempre jagunço nãogostava.Como é, então, que um se repinta e se sarrafa? Tudosobrevém.Acho, acho, é do influimento comum, e do tempo detodos. Tanto um prazo de travessia marcada, sazão, como osmeses deseca e os de chuva. Será? Medida de muitos outrosigualassecom a minha, esses também não sentindo e nãopensando. Senão, por que era que eram aqueles aprontados versos –que agente cantava, tanto toda-a-vida, indo em bando porestradas jornadas, à alegria fingida nocoração?:

Olererê, baiana...

eu ia e não vou mais: eufaçoque vou

lá dentro, oh baiana!

e volto do meio pra trás...

 – ?

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 João Goanhá, por valentão e verdadeiro, nem careciade

estadear orgulho. Pessoa muito leal e briosa. Ele medisse: –“Agora, da gente não sei o que vai ser... Para guerragrande, euacho que só Joca Ramiro é que era capaz...” Ah, mas João

Goanhá também tinha suas cartas altas. Homem de gritogrosso.E, mesmo ignorante analfabeto, de repente ele tirava, seinão deonde, terríveis mindinhas idéias, mortes diversas. Assima genteexperimentava, cá e cá, falseando fuga. Os campos-gerais alitambém tem. Tombadores. Arre, ostremedais, já viu algum? O

chão deles consiste duro enxuto, normal que engana;quem nãosabe o resto, vem, pisa, vai avançando, tropa comcavalos,cavalama. Seja sem espera, quando já estão meio no

meio, aquilosucrepa: pega a se abalar, ronca, treme escapulindo,feito gema deovo na frigideira. Ei! Porque, debaixo da crosta seca,reboleocultado um semifundo, de brejão engolidor... Pois, emroda dali, João Goanhá dispôs que a gente se amoitasse – trêsgolpes dehomens – tocaiando. Ao de manhã, primeiro passaram os

dosargento Leandro, esses eram os menos, e um guiapagavam, porconhecer o caminho firme. Mas fomos lá, às pressasespalhamosde lugar os ramos verdes de árvore, que eles tinhambotado paraa certa informação. No depois, vinham os do tenente.

 Tenente,tenente, tu quer! Seguidos por ali entraram, ah. Dos

nossos, uns,acolá, deram tiros, por disfarçação. Iscas! Cavalaria dospraças se

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avexou. Ave, e pronto, de repente foi: a casca de terrasacudia, se

rachou em cruzes, estalando, em muitos metros –balofou. Oscavalos entornados – era como despejar prateleirascheias – e ossoldados aiando gritos, se abraçavam com os animaiscaintes, oucom o ar, uns a esmo desfechavam mosquetão. Masencalcadosse afundando, pra não mais. A gente, se queria, mirava,aindaacertava neles. Coisas que vi, vi, vi – oi... Eu não atirei.Não tivebraçagem. Talvez tive pena.

 Tanto por tanto, daí se encachorraram mais em nós,por

beber vinganças. De campos e matas, vargens e grotas,em cadaponto para trás, dos lados e adiante da gente, ei eram só

soldados, montão, se gerando.Furadodo-Meio. Serra do Deus-Me-Livre. Passagem da Limeira. Chapada doCovão.

Solón Nélson

morreu. Arduininho morreu. Morreram o Figueiró,BatataRoxa,Dávila Manhoso, o Campelo, o Clange, Deovídio,Pescoço-Preto, Toquim, o Sucivre, Elisiano, Pedro Bernardo – achoque

foram esses, todos.Chapada do Sumidouro. Córrego doPoldro.

Mortos mais uns seis. Corrijo: com outros, que pegospresos – sedisse que foram acabados! Doideamos. A Bahia estavacercadanas portas. Achavam de tomar regalia de desforra nagente, atéqualquer molambo de sujeito, paisano morador. Ah, àsvezes,perdiam ligeiro essa graça...Gerais da Pedra.Lá, o Eleutério se

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apartou da gente, umas cem braças, e foi, a pé, bateuem porta

duma cafua, por esclarecer. O capiau surgiu, ensinoualgumacoisa, errada. Eleutério agradeceu, deu as costas, veioandandouns passos. O capiau então chamou. Eleutério virou paratrás,para ouvir o que havia, e levou na cara e nos peitos ocheio dumacarga de chumbo fino. Cegou, rodou, entrupicado,arreganhavaos braços, todo se sarapintando das manchas vermelhas,quecresciam. O cabelo dele aumentou em pé. E a soldadescaatirava,de emboscados no mato do córrego, e na beira docerrado, daoutra banda. O capiau se encobriu detrás do forno deassarbiscoito – de lá fazia pontaria com a espingarda – e balasnossaslevantavam terra ao redor dali, feito um ciscado de

cachorrogrande. Dentro da cafua também restavam outrossoldados; quederam contas a Deus. Ataliba, com o facão, pregou ocapiau nataipa da cafua, ele morreu mansinho, parecia um santo.Ficou lá,espetado. Nós – eh – bom. Conseguimos aragem. Até emumponto de a salvo conversarmos.

Serra Escura.Nem munição nem de-comer nãosobravam.De forma que a gente carecia de se separar, cada um

por seurisco, como pudesse caçar escape. Se esparramavam osgoanhás.De si por si, quem vivesse viesse para cá do Rio, parareunião: na

 juntura da Vereda Saco dos Bois com o Ribeirão SantaFé. Ou ir

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de direto para onde estivesse Medeiro Vaz. Ou, caso oinimigo

rondasse perto demais, então no Buriti-da-Vida, SãoSimão doBá, ou mais em riba, ali onde o Ribeirão Gado Bravo évadeável.Ao que João Goanhá mandou. A pressa era pressa. O artodo docampo cheirava a pólvora e a soldados. Diante de mim,nuncaterminava de atar as correias do gibão um Cunha Branco,sarado,cabra velho guerreiro: ele boiava língua em boca aberta.E medo,meu, medi muito maior. Se despedimos. Escorregandosemrumo, eu fui, vim, o Sesfredo comigo também, viemos.Com agraça de Deus, saímos fora da roda do perigo. ChegamosnoCórrego Cansanção, não longe do Araçuaí. Por duranteumtempo, carecíamos de ter algum serviço reconhecido, no

vivertudo cabe. Nossas armas, com parte das roupas,campeamos umseguro lugar, deixamos escondidas. Aí, a gente seajustou nomeio do pessoal daquele doutor, que estava namineração, queeu já disse e o senhor sabe.

Por que não ficamos lá? Sei e não sei. Sesfredoesperava demim toda decisão. Algum remorso, de não se cumprir deir, dedesertados? Não vê que não, desafasto. Gente sendodois,garante mais para se engambelar, etcétera de traiçãonão sopraescrúpulos, como nem de crime nenhum, não agasta:iguallobisomem verte a pele. Só se, companheiros sobrantes,a gente

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amiúda no ajuizar o desonroso assunto, isto sim, rança o

descrédito de se ser tornadiço covarde. Mas eu podiareverproveito, caçar de voltar dali para a casa-grande deSeloricoMendes, exigir meu estado devido, na Fazenda SãoGregório. Temeriam! Assim e silva, como em outro tempo, adiante,podiaflauteado comparecer no Buritis Altos, por conta deOtacília –continuação de amor. Quis não. Suasse saudade deDiadorim? Aponto no dizer, menos. Ou nem não tinha. Só como o céue asnuvens lá atrás de uma andorinha que passou. Talvez, euacho,também, que foi juvenescendo em mim uma inclinaçãodeabelhudice: assaz eu queria me estar misturado lá, comosmedeiro-vazes, ver o fim de tudo. Em mês de agosto,

buritivinhoso... Araçuaí não eram os meus campos... Viver éumdescuido prosseguido. Aí, as noites cambando para oentrar daschuvas, os dias mal. Desengoli. – “Tempo de ir. Vamos?”– eudisse para Sesfredo. – “Vamos, demais!” – o Sesfredo me

respondeu.

Ah, eh e não, alto-lá comigo, que assim falseio, omesmo é.Pois ia me esquecendo: o Vupes! Não digo o que digo, se

o doVupes não orço – que teve, tãomente. Esse um eraestranja,alemão, o senhor sabe: clareado, constituído forte, comos olhosazuis, esporte de alto, leandrado, rosalgar – indivíduo,mesmo.

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Pessoa boa. Homem sistemático, salutar na alegria séria.Hê, hê,

com toda a confusão de política e brigas, por aí, e elenãosomava com nenhuma coisa: viajava sensato, e ia

desempenhando seu negócio dele no sertão – que era odetrazer e vender de tudo para os fazendeiros: arados,enxadas,debulhadora, facão de aço, ferramentas rógers eroscofes, latasde formicida, arsênico e creolinas; e até papa-vento,dessesmoinhos-de-vento de sungar água, com torre, ele tomava

empreitada de armar. Conservava em si um estatuto tãodiversode proceder, que todos a ele respeitavam. Diz-se quevive atéhoje, mas abastado, na capital – e que é dono de vendagrande,loja, conforme prosperou. Ah, o senhor conheceu ele? Õ

titiquinha de mundo! E como é mesmo que o senhorfraseia?Wusp? É. Seo Emílio Wuspes... Wupsis... Vupses. PoisesseVupes apareceu lá, logo vai me reconheceu, como meconhecia,do Curralinho. Me reconheceu devagar, exatão. Sujeito

escovado! Me olhou, me disse: – “Folgo. Senhor estar

bom?Folgo...” E eu gostei daquela saudação. Sempre gosto detornara encontrar em paz qualquer velha conhecença –consoante apessoa se ri, a gente se acha de voltar aos passados,mas pareceque escolhidas só as peripécias avaliáveis, as queagradáveisforam. Alemão Vupes ali, e eu recordei lembrança

daquelasmocinhas – a Miosótis e a Rosa’uarda – as que, noCurralinho,

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eu pensava que tinham sido as minhas namoradas. –“Seo

Vupes, eu também folgo. Senhor também estar bom?Folgo...”– que eu respondi, civilizadamente. Ele pitava eracharutos. Maisme disse: – “Sei senhor homem valente, muito valente...Euprecisar de homem valente assim, viajar meu, quinzedias, sertãoagora aqui muito atrapalhado, gente braba, tudo...”Destampei,ri que ri, de ouvir.

Mas o mais garboso fiquei, prezei a minha profissão.Ah, obom costume de jagunço. Assim que é vida assoprada,

vividapor cima. Um jagunceando, nem vê, nem repara napobreza detodos, cisco. O senhor sabe: tanta pobreza geral, genteno duroou no desânimo. Pobre tem de ter um triste amor àhonestidade.São árvores que pegam poeira. A gente às vezes ia poraí, oscem, duzentos companheiros a cavalo, tinindo emusicando detão armados-e, vai, um sujeito magro, amarelado, saíada algumcanto, e vinha, espremendo seu medo, farraposo: comum

vintém azinhavrado no conco da mão, o homem queriacomprarum punhado de mantimento; aquele era casado, pai defamíliafaminta. Coisas sem continuação... Tanto pensei,perguntei: –“Para que banda o senhor tora?” E o Vupes respondeu: –“Eu,direto, cidade São Francisco, vou forte.” Para falar, nemcomuma pontinha de dedo ele não bulia gesticulado. Então,era

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mesmo meu rumo – aceitei – o destinar! Daí, falei com o

Sesfredo, que quis também; o Sesfredo não presumianada, elenaquilo não tinha própriodestaque.

Mas os caminhos não acabam. Tal por essasdemarcas deGrão-Mogol, Brejo das Almas e Brasília, sem confrontos

deperturbação, trouxemos o seu Vupes. Com as graças,

deleaprendi, muito. O Vupes vivia o regulado miúdo, e paratudotinha sangue-frio. O senhor imagine: parecia que não se

mealhava nada, mas ele pegava uma coisa aqui, outracoisinhaali, outra acolá – uma moranga, uns ovos, grelos debambu,umas ervas – e, depois, quando se topava com uma casamaismelhorzinha, ele encomendava pago um jantar oualmoço,pratos diversos, farto real, ele mesmo ensinava o guisar,tudovirava iguarias! Assim no sertão, e ele formava conforto,o quequeria. Saiba-se! Deixamos o homem no final, e eucuidei bemdele, que tinha demonstrado a confiançaminha...

Demos no Rio, passamos. E, aí, a saudade deDiadorim

voltou em mim, depois de tanto tempo, me custandoseiscentos já andava, acoroçoado, de afogo de chegar, chegar, eperto estar.Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito. Belaé a lua,lualã, que torna a se sair das nuvens, mais redondadarecortada.Viemos pelo Urucuia. Meu rio de amor é o Urucuia. O

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chapadão – onde tanto boi berra. Daí, os gerais, com ocapim

verdeado. Ali é que vaqueiro brama, com suas boiadasespatifadas. Ar que dá açoite de movimento, o tempo-das-águasde chegada, trovoada trovoando. Vaqueiros todosvaquejando.O gado esbravaçava. A mal que as notícias referiamdemais acambada dos Judas, aumentável, a corja! – “A tantosquantos?”– eu pondo meu perguntar. – “Os muitos! Umamonarquiadeles...” – os vaqueirosrespondendo.

Mas Medeiro Vaz não se achava, os nossos, delesninguém

não sabia bem. Tocamos, fim que o mundo tivesse. Só

deerrávamos. Assim como o senhor, que quer tirar éinstantâneodas coisas, aproximar a natureza. Estou entendido.Esbarramosnum varjeado, esconso lugar, por entre o daGarapa e oda-Jibóia,ali tem três lagoas numa, com quatro cores: se diz que aágua évenenosa. E isso de que me serve? Águas, águas. Osenhor veráum ribeirão, que verte no Canabrava – o que verte no

 Taboca,

que verte no Rio Preto, o primeiro Preto do Rio Paracatu –poisa daquele é sal só, vige salgada grossa, azula muito:quemconhece fala que é a do mar, descritamente; nem boi nãogosta,não traga, eh não. E tanta explicação dou, porque muitoribeirãoe vereda, nos contornados por aí, redobra nome.Quando umainda não aprendeu, se atrapalha, faz raiva.Só

Preto, já molhei

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mão nuns dez.Verde,uns dez. DoPacari,uns cinco. DaPonte,

muitos. Do Boi, ou daVaca,também. E uns sete por nome deFormoso. São Pedro, Tamboril, SantaCatarina,

uma porção. O

sertão é do tamanho do mundo.

Agora, por aqui, o senhor já viu: Rio é só o SãoFrancisco,

o Rio do Chico. O resto pequeno évereda.E algum ribeirão. E

agora me lembro: no Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor váver afazenda velha, onde tinha um cômodo quase do tamanhodacasa, por debaixo dela, socavado no antro do chão – lá

 judiaramcom escravos e pessoas, até aos pouquinhos matar...Mas, paranão mentir, lhe digo: eu nisso não acredito. Reconditóriode seocultar ouro, tesouro e armas, munição, ou dinheiro falsomoedado, isto sim. O senhor deve de ficar prevenido:esse povodiverte por demais com a baboseira, dum traque de

 jumentoformam tufão de ventania. Por gosto de rebuliço.Querem-porque-querem inventar maravilhas glorionhas, depoiseles

mesmos acabam crendo e temendo. Parece que todo omundocarece disso. Eu acho, que.

Assim, olhe: tem um marimbu – um brejo matador,noRiacho Cizlá se afundou uma boiada quase inteira, que

apodreceu; em noites, depois, deu para se ver, deitado afora, sedeslambendo em vento, do cafofo, e perseguindo tudo,um

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milhão de lavareda azul, de jãdelãfo, fogo-fá. Gente quenão

sabia, avistaram, e endoideceram de correr fuga. Poisessa estóriafoi espalhada por toda a parte, viajou mais, se duvidar,do que euou o senhor, falavam que era sinal de castigo, que omundo ia seacabar naquele ponto, causa de, em épocas, teremcastrado umpadre, ali perto umas vinte léguas, por via do padre nãoterconsentido de casar um filho com sua própria mãe. Aque, até,cantigas rimaram: do Fogo-Azul-do-Fim-do-Mundo. Hê,hê?...

Agora, a forca, eu vi – forca moderna, esquadriada,

arvorada bem erguida no elevado, em madeira de boalei, parda:sucupira. Ela foi num morrote, depois do São Simão doBá,perto da banda da mão-direita do Pripitinga. A estúrdiaforca deenforcar, construída, aprovada ali particularmente,porque nãotinham recurso de cadeia, e pajear criminoso por viagenseradificultoso, tirava as pessoas de seus serviços. Aí, então,usavam.Às vezes, da redondeza, vinham até trazendo ocondenado, a

cavalo, para a forca, pública. Só que um pobre veiomorarpróximo, quase debaixo dela, cobrava sua esmola, emcada útilcaso, dando seguida cavava a cova e enterrava o corpo,com cruz.No mais nada.

Semelhante não foi, quando um homem, Rudugériode

Freitas, dos Freitas ruivos da Água-Alimpada, mandouobrigado

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um filho dele ir matar outro, buscar para matarem, esseoutro,

que roubou sacrário de ouro da igreja da Abadia. Aí,então, emvez de cumprir o estrito, o irmão combinou com o irmão,osdois vieram e mataram mesmo foi o velho pai deles,distribuídode foiçadas. Mas primeiro enfeitaram as foices, urdindocomcordões de embira e várias flores. E enqueriram ocadáverpaterno em riba da casa – casinha boa, de telhas, amelhornaquele trecho. Daí, reuniram o gado, que iam levandoparadistante vender. Mas foram logo pegos. A pegar, a genteajudou.Assim, prisioneiros nossos. Demos julgamento. Ao que,fosseMedeiro Vaz, enviava imediato os dois para tão razoávelforca.Mas porém, o chefe nosso, naquele tempo, já era – o

senhorsaiba Zé Bebelo!

Com Zé Bebelo, oi, o rumo das coisas nasciainconstantediferente, conforme cada vez. A papo: – “Co-ah! Por que

foi quevocês enfeitaram premeditado as foices?” – eleinterrogou. Os

dois irmãos responderam que tinham executado aquiloempadroeiragem à Virgem, para a Nossa Senhora emadiantadoremitir o pecado que iam obrar, e obraram dito e feito.

 Tudo queZé Bebelo se entesou sério, em pufo, empolo, mas semrugas emtesta, eu prestes vi que ele estava se rindo por de dentro.

 Tal, tal,disse: – “Santíssima Virgem...” E o pessoal todo tirou os

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chapéus, em alto respeito. – “Pois, se ela perdoa ou não,eu não

sei. Mas eu perdôo, em nome dela – a Puríssima, NossaMãe!” –Zé Bebelo decretou. – “O pai não queria matar? Poisentão,morreu – dá na mesma. Absolvo! Tenho a honra deresumircircunstância desta decisão, sem admitir apelo nemrevogo, legale lealdado, conformemente!...” Aí mais Zé Bebelo disse,comoapreciava: – “Perdoar é sempre o justo e certo...” –pirlimpim,pimpão. Mas, como os dois irmãos careciam de algumcastigo,ele requisitou para o nosso bando aquela gorda boiada, aqualpronto revendemos, embolsamos. E desse casoderivaramtambém uma boa cantiga violeira. Mas deponho que ZéBebelosomente determinou assim naquela ocasião, pelo

exemplo peladecência. Normal, quando a gente encontrava algumaboiadatangida, ele cobrava só imposto de uma ou umas duasreses, parao nosso sustento nos dias. Autorizava que era preciso serespeitaro trabalho dos outros, e entusiasmar o afinco e a ordem,no meiodo triste sertão.

Zé Bebelo – ah. Se o senhor não conheceu essehomem,deixou de certificar que qualidade de cabeça de gente a

naturezadá, raro de vez em quando. Aquele queria saber tudo,dispor detudo, poder tudo, tudo alterar. Não esbarrava quieto.Seguro jánasceu assim, zureta, arvoado, criatura de confusão.

 Trepava de

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ser o mais honesto de todos, ou o mais danado, notremeluz,

conforme as quantas. Soava no que falava, artes quefalava,diferente na autoridade, mas com uma autoridade muitoveloz.Desarmado, uma vez, caminhou para o Leôncio Du, quetinhaafastado todo o mundo e meneava um facãozão. Comogritou: –“Você quer vermelho? Te racho, fré!” Ao de que, oLeôncio Dudecidiu deixou o facão cair, e se entregou. Senhor ouve esabe?Zé Bebelo era inteligente e valente. Um homemconsegueintrujar de tudo; só de ser inteligente e valente é quemuito nãopode. E Zé Bebelo pegava no ar as pessoas. Chegou umbrabo,cabra da Zagaia, recomendado. – “Tua sombra meespinha, juazeiro!” – Zé Bebelo a faro saudou. E mandou amarrar

osujeito, sentar nele uma surra de peia. Atual, o cabraconfessou:que tinha querido vir drede para trair, em empreitaencobertada.Zé Bebelo apontou nos cachos dele a máuser: estampidoqueespatifa – as miolagens foram se grudar longe e perto. Agentepegou cantando a Moda-do-Boi.

No regular, Zé Bebelo pescava, caçava, dançava asdanças,exortava a gente, indagava de cada coisa, laçava rês ou

topava àvara, entendia dos cavalos, tocava violão, assoviavamusical; sónão praticava de buzo nem baralho – declarando terreceios, poratreito demais a vício e riscos de jogo. Sem menos, se

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– 101 –

entusiasmava com qual-me-quer, o que houvesse:choveu,

louvava a chuva; trapo de minuto depois, prezava o sol.Gostava, com despropósito, de dar conselhos.Considerava oprogresso de todos – como se mais esse todo Brasil,territórios– e falava, horas, horas. – “Vim de vez!” – disse, quando

retornou de Goiás. O passado, para ele, era mesmopassado,não vogava. E, de si, parte de fraco não dava, nenhão,nunca.Certo dia, se achando trotando por um caminhocompletonovo, exclamou: – “Ei, que as serras estas às vezes atémudammuito de lugar!...” – sério. E era. E era mas que eleestavaperdido, deerrado de rota, há, há. Ah, mas, com ele, atéo feio daguerra podia alguma alegria, tecia seu divertimento.

Acabandoum combate, saía esgalopado, revólver ainda em mão,perseguirquem achasse, só aos brados: – “Viva a lei! Viva a lei!...”– e erao pipoco-paco. Ou: – “Paz! Paz!” – gritava também; ebala: seentregaram mais dois. – “Viva a lei! Viva a lei!...” Há-de-o, quequilate, que lei, alguém soubesse? Tanto aquilo, sucinto,

a famacorreu. Dou-lhe qual: que, uma vez, ele corria a cavalo,porexercício, e um veredeiro que isto viu se assustou, puloude joelhos na estrada, requerendo: – “Não faz vivalei emmim não,môr-de-Deus, seu Zebebel’, por perdão...” E Zé Bebelo

 jogoupara o pobre uma cédula de dinheiro; gritou: – “Amonta

aqui,irmão, na garupa!” – trouxe o outro para com a gente jantar.

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– 102 –

Esse era ele. Esse era um homem. Para Zé Bebelo,melhor

minha recordação está sempre quente pronta. Amigo, foiumadas pessoas nesta vida que eu mais prezei eapreciei.

Pois porém, ao fim retomo, emendo o que vinha

contando. A ser que, de campinas a campos, por morros,areiõese varjas, o Sesfredo e eu chegamos no Marcavão. Antes

de lá,inchou o tempo, para chover. Chuva de desenraizar todopau,tromba: chuvão que come terra, a gente vendo. Quemmede epesa esses demais d’água? Rios foram se enchendo.Apeamos noMarcavão, beira do do-Sono. Medeiro Vaz morreu,naquele paísfechado. Nós chegamos em tempo.

Ao quando encontramos o bando, foi ali, Medeiro Vaz jáestava mal; talvez por isso a alegria comum não pôde se

dizer,nem Diadorim me abraçou nem demonstrou um salvesporminha volta. Fiquei sincero. A tristeza e a espera mátomavamconta da gente. – “O mais é o pior: é que tem inimigo,

próximo,tocaiando...” – Alaripe me disse. Muito chovido de noite-asárvores esponjadas. Mesmo dava um frio vento, comumidades.Para agasalhar Medeiro Vaz, tinham levantado um boi – o

senhor sabe: um couro só, espetado numa estaca, porresguardara pessoa do rumo donde vem o vento – o bafe-bafe.

Acampávamos debaixo de grandes árvores. O barulhimdo rio

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– 103 –

era de bicho em bicheira. Medeiro Vaz jazente numamanta de

pele de bode branco – aberto na roupa, o peito, cheio decabelos grisalhados. A barriga dele tinha inflamadomuito, masnão era de hidropisia. Era de dores. Quando vislumbroudemim, aí armou no se aprumar, pelejando para me ver. Osolhos– o alvor, como miolo de formigueiro. Mas se abriu, arriouosbraços, e mediu o chão com suas costas. “Está no bilim-bilim” –eu pensei. Ah, a cara – arre de amarela, o amarelamento:depalha! Assim desse jeito ele levou o dia quase atermo.

A tarde foi escurecendo. Ao menos Diadorim mechamouadeparte; ele tramava as lágrimas. – “Amizade, Riobaldo,

que euimaginei em você esse prazo inteiro...” – e apertou minhamão.Avesso fiquei, meio sem jeito. Aí, chamaram: – “Acode,que ochefe está no fatal!” Medeiro Vaz, arquejando, cumprindotudo.E o queixo dele não parava de mexer; grandesmomentos.Demorava. E deu a panca, troz-troz forte, como depropósito.

Uma chuva de arrobas de peso. Era quase sonoite.Reunidos emvolta, ajoelhados, a gente segurava uns couros abertos,paraproteger a morte dele. Medeiro Vaz – o rei dos gerais ;como eraque um daquele podia se acabar?! A água caía, àsdespejadas,escorria nas caras da gente, em fios pingos. Debruçandopordebaixo dos couros, podia-se ver o fim que a alma obtémdo

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corpo. E Medeiro Vaz, se governando mesmo no remar a

agonia, travou com esforço o ronco que puxava gosmade suagoela, e gaguejou: – “Quem vai ficar em meu lugar?Quemcapitaneia?...” Com a estrampeação da chuva, os poucos

ouviram. Ele só falava por pedacinhos de palavras. Maseu vique o olhar dele esbarrava em mim, e me escolhia. Eleaverme-lhava os olhos? Mas com o cirro e o vidrento. Coração me

apertou estreito.

Eu não queria ser chefe! “Quem capitaneia...” Vimeu

nome no lume dele. E ele quis levantar a mão para meapontar.As veias da mão... Com que luz eu via? Mas não pôde. Amortepôde mais. Rolou os olhos; que ralava, no sarrido. Foidormirem rede branca. Deu a venta.

Era seu dia de alta tarefa. Quando estiou a chuva,

procuramos o que acender. Só se trouxe uma vela decarnaúba,o toco, e um brandão de tocha. Eu tinha passado por um

susto.Agora, a meio a vertigem me dava, desnorteado navontade defalar aqueles versos, como quem cantasse umcoreto:

Meu boi pretomocangueiro,árvore para teapresilhar?Palmeira que nãodebruça:

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– 105 –

buriti – sem entortar...

Deviam de tocar os sinos de todas asigrejas!Cobrimos o corpo com palmas de buriti novo,cortadasmolhadas. Fizemos quarto, todos, até ao quebrar da

barra. Ossapos gritavam latejado. O sapo-cachorro arranhou seurouco.Alguma anta assoviava, assovio mais fino que o relincho-

rinchodum poldrinho. De aurora, cavacamos uma funda cova. Aterrados gerais é boa.

 Tomou-se café, e Diadorim me disse,firme:– “Riobaldo, tu comanda. Medeiro Vaz te sinalou comas

derradeiras ordens...”

 Todos estavam lá, os brabos, me olhantes – tantas

meninas-dos-olhos escuras repulavam: às duras – grão egrão –era como levando eu, de milhares, uma carga dechumbo grossoou chuvas-de-pedra. Aprovavam. Me queriam

governando.Assim estremeci por interno, me gelei de não poderpalavra. Eunão queria, não queria. Aquilo revi muito por cima deminhascapacidades. A desgraça, de João Goanhá não ter vindo!Rente-mente, que eu não desejava arreglórias, mão de mando.Engolicuspes. Avante por fim, como que respondi às gagas, istodisse:– “Não posso... Não sirvo...”

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– 106 –

– “Mano velho, Riobaldo, tu pode!”

 Tive testa. Pensei um nome feio. O que achassem,

achassem! – mas ninguém ia manusear meu ser, para

brincadeiras...

– “Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece, masnós

sabemos a tua valia...” – Diadorim retornou. Assim

instava, mãoerguida. Onde é que os outros, roda-a-roda, denotavam

assentimento. – “Tatarana! Tatarana!...” – unspronunciaram;sendo Tatarana um apelido meu, que eutinha.

 Temi. Terçava o grave. Assim, Diadorim dispunha do

direito de fazer aquilo comigo? Eu, que sou eu, batio pé:– “Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de sereexecutar, não me ajusto de produzir

ordens...” Tudo parava, por átimo. Todos esperando comsuspensão.Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de

 jagunços –quando um perigo poja? – sabe os quantos lobos? Mas,eh, não,o pior é que é a calma, uma sisudez das escuras. Nãoquematem, uns aos outros, ver; mas, a pique de coisinha, osenhorpode entornar seu respeito, sobrar desmoralizado parasempre,neste vale de lágrimas. Tudo rosna. Entremeio, Diadorim

se

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– 107 –

maisfez, avançando passo. Deixou de me medir, vigiou oar de

todos. Aí ele era mestre nisso, de astuto se certificar sócom umrabeio ligeiro de mirada – tinha gateza para contador degado. Emuito disse:

– “A pois, então, eu tomo a chefia. O melhor não sou,

oxente, mas porfio no que quero e prezo, conforme vocês

todostambém. A regra de Medeiro Vaz tem de prosseguir,comtenção! Mas, se algum achar que não acha, o justo, agente istodecide a ponta d’armas...”

Hê, mandacaru! Oi, Diadorim belo feroz! Ah, eleconheciaos caminhares. Em jagunço com jagunço, o poder seco

dapessoa é que vale... Muitos, ali, haviam de querer morrerpor serchefes – mas não tinham conseguido nem tempo de sefirmarquente nas idéias. E os outros estimaram e louvaram: –

“Reinaldo! O Reinaldo!” – foi o aprovo deles.Ah.

Num nu, nisto, nesse repente, desinterno de mimum negoforte se saltou! Não, Diadorim, não. Nunca que eu podia

consentir. Nanje pelo tanto que eu dele era louco amigo,econcebia por ele a vexável afeição que me estragava,feito ummau amor oculto – por mesmo isso, nimpes nada, eraque eunão podia aceitar aquela transformação: negócio de para

sempre

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– 108 –

receber mando dele, doendo de Diadorim ser meu chefe,nhem,

hem? Nulo que eu ia estuchar. Não, hem, clamei – quecomoum sino desbadala:

– “Discordo.”

 Todos me olhassem? Não vi, não tremi. Visivo só vi

Diadorim – resumo do aspecto e esboço dele para

movimentos:as mãos e os olhos; de reguarda. Como em relance corricálculo,de quantos tiros eu tinha para à queima-bucha dar – eumabalazinha, primeira, botada na agulha da automática –ah, euestava com milho no surrão! De devagar, oscompanheiros, osoutros, não se buliram, tanto esperavam; decerto que

saldavamantipatia de mim, repugnados por eu estar seguidamente

atrapalhando as decisões, achassem que eu agora nãotinha maisdireito de parecer, pois a chefia própria eu enjeitara.Quem sabe,será se praziam no poder ver nós dois, Diadorim comigo– queantes como irmãos, até ali – a gente se estraçalhar nas

facas? Torci vontade de matar alguém, para pacificar minhaaflição;alguém, algum – Diadorim não – digo. Decerto isso emmimeles perceberam. Os calados. Só o Sesfredo, inesperadoassim,disse um também: – “Discordo!” Por me estimar, ele me

secundava. E o Alaripe, séria pessoa: – “Tem de que.Deixa oRiobaldo razoar...” Endireitei os chifres.Chapei:

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– 109 –

– “Vejo, Marcelino Pampa é quem tem de comandar.

Mediante que é o mais velho, e, demais de mais velho,valente, econsabido de ajuizado!” Cara de Marcelino Pampa ficouenorme.Do que constei dos outros, concordantes, estabeleci queeu tinhaacertado solerte – dei na barra! Mas, Diadorim? De olhososolhos agarrados: nós dois. Asneira, eu naquela horasupriasuscitar alto meu maior bem-querer por Diadorim;mesmo,mesmo, assim mesmo, eu arcava em cru com o desafio,desdeque ele brabasse, desde que ele puxasse. Tempoinstante, queempurrou morros para passar... Afinal, aí, Diadorimabaixou asvistas. Pude mais do que ele! Se riu, depois de mim.Sempresendo que falou, firme:

– “Com gosto. Melhor do que Marcelino Pampa nãotem

nenhum. Não ambicioneipoderes...”

Falou como corajoso. E:

– “Tresdito que é a vez de se estar contornados,unidossem porfiar...” – o Alaripe inteirou.

Amém, todos, voz a voz, aprovavam. MarcelinoPampaentão principiou, falou assim:

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– “Aceito, por precisão nossa, o que obrigação minhaé.

Até enquanto não vem algum dos certos, de realcemaior: JoãoGoanhá, Alípio Mota, Titão Passos... A tanto, careço dobomconselho de todos que tiverem, segura fiança. Assentesquevamos...”

Sobre mais disse, sem importância, sem noção; pois

Marcelino Pampa possuía talentos minguados. Somentepenseique ele estava pondo um peso no lombo, por sacrifício.Ao que,em melhores tempos, aprazia bem capitanear; mas,agora aquelaocasião, a gente por baixos, e essas misérias, qualquerum nãohavia de desgostar de responsabilidade? Ã, aí observei:comoMarcelino Pampa desde o instante expunha outro ar deser, asisuda extravagância, soberbo satisfeito! Ser chefe – porfora umpouquinho amarga; mas, por dentro, é rosinhasflores.

Meu era um alívio. Mesmo não duvidei de meumenosvaler: alguém lá tem a feição do rosto igualzinha à

minha? Eh, deprimeiro meu coração sabia bater copiando tudo. Hoje,eudesconheço o arruído rumor das pancadas dele.Diadorim veiopara perto de mim, falou coisas de admiração, muito deafetoleal. Ouvi, ouvi, aquilo, copos a fora, mel de melhor. Eu

precisava. Tem horas em que penso que a gente carecia,derepente, de acordar de alguma espécie de encanto. Aspessoas, e

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– 111 –

as coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde,a gente

adverte incertas saudades? Será que, nós todos, asnossas almas jávendemos? Bobéia, minha. E como é que havia de serpossível?Hem?!

Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando deAntônio

Dó, tinha um grado jagunço, bem remediado de posses –

Davidão era o nome dele. Vai, um dia, coisas dessas queàsvezes acontecem, esse Davidão pegou a ter medo demorrer.Safado, pensou, propôs este trato a um outro, pobre dosmaispobres, chamado Faustino: o Davidão dava a ele dezcontos deréis, mas, em lei de caborje – invisível no sobrenatural –

chegasse primeiro o destino do Davidão morrer emcombate,então era o Faustino quem morria, em vez dele. E oFaustinoaceitou, recebeu, fechou. Parece que, com efeito, nopoder defeitiço do contrato ele muito não acreditava. Então, pelo

seguinte, deram um grande fogo, contra os soldados doMajor

Alcides do Amaral, sitiado forte em São Francisco.Combatequando findou, todos os dois estavam vivos, o Davidão eoFaustino. A de ver? Para nenhum deles não tinhachegado ahora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os meses,

escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridoseles nãosaíam... Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja:isto

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– 112 –

mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muitointeligente,

vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio.Sabe oque o moço me disse? Que era assunto de valor, para secomporuma estória em livro. Mas que precisava de um finalsustante,caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, umdia, oFaustino pegava também a ter medo, queria revogar oajuste!Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, nãoqueria,por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso,ferravamnuma luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca,

investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, noconfuso,por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do

Faustino, que falecia...

Apreciei demais essa continuação inventada. Aquanta coisa

limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução nãoconcebe! Aí podem encher este mundo de outros movimentos, semos errose volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vidadisfarça?

Por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quemsincerolouvei. E ele me indagou qual tinha sido o fim, naverdade derealidade, de Davidão e Faustino. O fim? Quem sei.Soube so-mente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem –deubaixa do bando, e, com certas promessas, de ceder unsalqueiresde terra, e outras vantagens de mais pagar, conseguiudo Faustino

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– 113 –

dar baixa também, e viesse morar perto dele, sempre.Mais deles,

ignoro. No real da vida, as coisas acabam com menosformato,nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá errocontra agente. Não se queira. Viver é muitoperigoso...

A que, o que logo vi, que Marcelino Pampa, por bemde

seu dispor, não dava altura. A tento de se acertar nos

primeirosrumos de se mexer, ele me chamou, mais João Concliz. –“Os Judas estão aqui mesmo, de nós a umas quinze léguas,e sabemda gente. Deveras atacar, não atacam, com este tempode todaschuvas e ribeirões cheios. Mas vão fechando modo derodear agente, de menos longe, porque a quantidade deles é àfarta... Re-curso, que eu acho, é dois: ou se fugir para o chapadão,enquanto tempo – mas é perder toda esperança ediminuir davergonha... Ou, então, forçar tudo e experimentar umcaminhopor entremeio deles: se vai para a outra banda do Rio,caçar João Goanhá e os outros companheiros... Mais ainda nãosei,

quero toda razoável opinião.” Assim ele, MarcelinoPampa,disse. – “Mas, se souberem a notícia que Medeiro Vazmorreu,hoje mesmo é capaz que sejam de vir em riba de nós...”– foi oque João Concliz achou; e estava muito certo. Eu nãoatinavacom o que dizer, as confusões dessas horas meencostavam. Oque era, na situação, que Medeiro Vaz havia de fazer? E

 Joca

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– 114 –

Ramiro? E Só Candelário? Ao esmo, esses pensamentosem

mim. Ai de, foi que reconheci como súcia de homenscarece deuma completa cabeça. Comandante é preciso, paraaliviar osaflitos, para salvar a idéia da gente de perturbações

desconformes. Não sabia, hoje será que sei, a regra denenhummeio-termo. Sem ação, eu podia gastar ali minha vidainteira,debulhando. Também, logo depois, depois de muitossilêncios epoucas palavras, Marcelino Pampa resolveu que, detarde, nossaconversa ia ter repetição. Atontados,três.

Dali, fui para perto de Diadorim. – “Riobaldo,” – elemaldisse – “você está vendo que não temos remédio...” Aí,

esbarrou, pensou um tempo, com uma mão por cima daoutra.– “E vocês, que foi que determinaram de se fazer?” – me

perguntou. Respondi: – “Hoje de tarde é que se tomadecisão,Diadorim. Você está mal satisfeito?” Ele endireitou ocorpo.Foi, falou: – “Sei o meu. Cá por mim, isso tudo poucoadianta.

Quente quero poder chegar junto dum dos Judas, paraterminar!” Eu sabia que ele falava coisas de pelejar porcumprir.Eu tinha mais cansaço, mais tristeza. – “Quem sabe, se...Parater jeito de chegar perto deles, até se não era melhor...”– assimele desabafou, em trago; e recolhido num estado desegredo. Porseus grandes olhos, onde aquilo redondeou, cri quearmasse

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– 115 –

agarrar o comando, por meio de acender o bando todoem

revolta. Qualquer loucura, semelhante, era a dele. Mas,não; maisdisse: – “Foi você, mesmo, Riobaldo, quem governoutudo,hoje. Você escolheu Marcelino Pampa, você decidiu efez...”Era. Gostei, em cheio, de escutar isso, soprante. Ah,porém,estaquei na ponta dum pensamento, e agudo temi, temi.Cadahora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade novade medo!

Mas, depois de janta, quando estávamos outra vez

reunidos – Marcelino Pampa, eu e João Concliz, – não setevenem o tempo de principiar. Pelo que ouvimos: umgalope, ochegar, o riscar, o desapeio, o xaxaxo de alpercatas.Sendo assimo Feliciano e o Quipes, que traziam um vaqueirinho,escoltado.Que vieram quase correndo. O vaqueirinho não devia determais de uns quinze anos, e as feições dele mudavam-demestrepavor. – “Arte, que este tal passou, às fugas, meio arupa.

Pegamos. Aí ele tem grande coisa pra contar...” – eempurraram

um pouco o vaqueirinho. De medo – a gente olhava paraele – ede nossos olhos ele se desencostava. Afe, por fim, bebeugole dear, e soluceou:

– “É um homem... Só sei... É umhomem...”

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– 116 –

– “Te acerta, mocinho. Aqui você está livre e salvo.Aonde

é que está indo?” – Marcelino Pamparegrou.– “É briga enorme... É um homem... Vou indo pralonge,para a casa de meu pai... Ah, é um homem... Ele desceu

o RioParacatu, numa balsa deburiti...”

– “Que foi mais que o homem fez?” – então João

Conclizperguntou. – “Deu fogo... O homem, com mais cincohomens...Avançaram do mato, deram fogo contra os outros. Osoutroseram montão, mais duns trinta. Mas fugiram. Largaramtrêsmortos, uns feridos. Escaramuçados. Ei! E estavam acavalo... Ohomem e os cinco dele estão a pé. Homem terrível...

Falou quevai reformar isto tudo! Vieram pedir sal e farinha, norancho.Emprestei. Tinham matado um veadinho campeiro, mederamnaca de carne...”

– “Qual é que é o nome dele? Fala! Como é que osoutrosdizem? Aí e que jeito, que semelhança de figura é que

ele tem?”– “Ele? O jeito que é o dele, que ele tem? Em é maisbaixo

do que alto, não é velho, não é moço... Homem branco...Veiode Goiás... O que os outros falam etratam:

`Deputado’.Desceu o

Rio Paracatu numa balsa de buriti... – ‘Estávamos em jejum de

briga...’ – ele mesmo disse. Ele e seus cinco deram fogofeito

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– 117 –

feras. Gritavam de onça e de uivado... Disse: vai remexero

mundo! Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti...Desce-ram... Nem cavalo eles nãotêm...”

– “É ele! Mas é ele! Só pode ser...” – aí alguémlembrou. –“E é. E, então, está do nosso lado!” – outro completou. –

“Temos de mandar por ele...” – foi a palavra de

MarcelinoPampa. – “Onde é que estará? Na Pavoã? Alguém tem deirlá...” – “É ele... É ver a vida: quem pensava? E é homem

danado, zuretado...” – “Está a favor da gente... E elesabeguerrear...” E era. Repegava a chuva, trozante, masmesmoassim o Quipes e Cavalcânti montaram e saíram por ele,daPavoã no rumo. De certo não acharam fácil, pois até àhora deescurecer não tinham aparecido. Mas: aquele homem,para que osenhor saiba, – aquele homem: era Zé Bebelo. E, nanoite,ninguém não dormiu direito, em nosso campo. Demanhã, comuma braça de sol, ele chegou. Dia da abelhabranca.

De chapéu desabado, avantes passos, veio vindo,acompanhado de seus cinco cabras. Pelos modos, pelasroupas,aqueles eram gente do Alto Urucuia. Catrumanos dosgerais.Pobres, mas atravessados de armas, e com cheiascartucheiras.Marcelino Pampa caminhou ao encontro dele; seguintede nossocomandante, nós formávamos. Valia ver. Essascerimônias.

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– 118 –

– “Paz e saúde, chefe! Como passou?” – “Comopassou,

mano?”

Os dois grandes se saudavam. Aí Zé Bebelo reparouemmim: – “Professor, ara viva! Sempre a gente tem de se

avistar...”De nomes e caras de pessoas ele em tempo nenhum seesquecia.Vi que me prezava cordial, não me dando por traidor nem

falso.Riu redobrado. De repente, desriu. Refez pé paratrás.

– “Vim de vez!” – ele disse; disse desafiando,quase.– “Em boa veio, chefe! É o que todos aqui

representamos...” – Marcelino Pamparespondeu.

– “A pois. Salve Medeiro Vaz!...”

– “Deus com ele, amigo. Medeiro Vaz ganhourepouso...”– “Aqui soube.Lux eterna...” – e Zé Bebelo tirou o chapéu

e se persignou, parando um instante sério, num ar deexemplo,

que a gente até se comoveu. Depois,disse:– “Vim cobrar pela vida de meu amigo Joca Ramiro,que avida em outro tempo me salvou de morte... E liquidar

com essesdois bandidos, que desonram o nome da Pátria e estesertãonacional! Filhos da égua...” – e ele estava com a raiva

tanta, que

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tudo quanto falava ficava sendo verdade. – “Pois, então,estamos

irmãos... E esses homens?”

Os urucuianos não abriram boca. Mas Zé Bebelorodeoutodos, num mando de mão, e declarou forte o

seguinte:– “Vim por ordem e por desordem. Este cá é meus

exércitos!...” Prazer que foi, ouvir o estabelecido. A gente

quisesse brigar, aquele homem era em frente, cresciasozinho nasarmas.

Vez de Marcelino Pampa dizer:

– “Pois assim, amigo, por que é que não combinamos

nosso destino? Juntos estamos, juntosvamos.”

– “Amizade e combinação, aceito, mano velho. Já,ajuntar,não. Só obro o que muito mando; nasci assim. Só sei ser

chefe.”Sobre curto, Marcelino Pampa cobrou de si suascontas.

Repuxou testa, demorou dentro dum momento. Circulouosolhos em nós todos, seus companheiros, seus brabos.Nada nãose disse. Mas ele entendeu o que cada vontade pedia.Depressadeu, o consumado:

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– “E chefe será. Baixamos nossas armas, esperamosvossas

ordens...” Com coragem falou, como olhou para a genteoutravez.

– “Acordo!” – eu disse, Diadorim disse, João Conclizdisse;todos falaram: – “Acordo!”

Aí Zé Bebelo não discrepou pim de surpresa, parecia

atéque esperava mesmo aquele voto. – “De todo poder? Todo omundo lealda?” – ainda perguntou, ringindo seriedade.

Confirmamos. Então ele quase se aprumou nas pontasdos pés, enos chamou: – “Ao redor de mim, meus filhos. Tomoposse!”Podia-se rir. Ninguém ria. A gente em redor dele,

misturando emmeio nosso os cinco homens do Urucuia. Adiante: – “Pois

estamos. É o duro diverso, meu povo. Mas os assassinosde JocaRamiro vão pagar, com seiscentos-setecentos!...” – eledefiniu,apanhando um por um de nós no olhar. – “Assassinos –els sãoos Judas.Desse nome, agora, que é o deles...” – explicou

 JoãoConcliz. – “Arre, vote: dois judas, podemos romper asaleluias!Aleluia! Aleluia! Carne no prato, farinha na cuia!...” – eleaprovou,deu aquilo feito um viva. Nós respondemos. E assim eraque ZéBebelo era. Como quando trovejou: desse trovôo de altoe rasto,dos gerais, entrementes antes dos gotejos de chuvaesquentada: otrovão afunda largo, pé da gente apalpa a terra.Conforme foi:

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trovejou de cala-a-boca – e Zé Bebelo tocou um gesto decostas

da mão, respeitoso disse: – “Isto é comigo...” Do que setratava,retorno e conto, ele o seguinte revelou: – “Tudo eu nãotinha,com os meus, munição para nem meia-hora...” A gente

reconheceu mais a coragem dele. Isto é, qualquer um denóssabia que aquilo podia ser mentira. Mesmo por isso,somenos,por detrás de tanta papagaiagem um homem carecia deter avalentia muito grande.

A cômodo ele começou, nesse dia, nessa hora; não

esbarrou mais. Achou de ir ver o lugar da cova, e asarmas e trensque Medeiro Vaz deixava, essas determinou que, o mortonãotendo parentes, então para os melhores mais chegadoscomolembrança ficassem: as carabinas e revólveres, aautomática derompida e ronco, punhal, facão, o capote, o cantilrevestido, ascapangas e alforjes, as cartucheiras de trespassar.Alguém disseque o cavalo grande, murzelo-mancho, devia de ficarsendo dele

mesmo. Não quis. Chamou Marcelino Pampa, a ele fezdonativograve: – “Este animal é vosso, Marcelino, merecido.Porque euainda estou para ver outro com igual siso e caráter!”Apertou amão dele, num toques. Marcelino Pampa dobrou de ar,

perturbado. Desse fato em diante, era capaz de semorrer, por ZéBebelo. Mas, para si mesmo, Zé Bebelo guardou somenteo

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pelego berbezim, de forrar sela, e um bentinhomilagroso, em

três baetas confeccionado.

Daí, levou a eito, vendo, examinando, disquirindo.

Aprendeu os nomes, de um em um, e em que lugarnascido,resumo da vida, quantos combates, e que gostos tinha,qualqueroficio de habilidade. Olhou e contou as pencas de

munição e asarmas. Repassou os cavalos, prezando os mais bemferrados eos de agüentada firmeza. – “Ferraduras, ferraduras! Istoé que éimportante...” – vivia dizendo. Repartiu os homens emquatropelotões – três drongos de quinze, e um de vinte – emcada umao menos um bom rastreador. – “Carecemos de quatrobuzinasde caçador, para os avisos...” – reclamou. Ele mesmotinha umapito, pendurado do pescoço, que de muito longe seatendia.Para capitanear os drongos, escolheu: Marcelino Pampa,

 JoãoConcliz, e o Fafafa. Pessoalmente, ficou com o maior, ode vinte– nesse figuravam os cinco urucuianos, e eu, Diadorim,

Sesfredo, o Quipes, Joaquim Beiju, Coscorão, DimasDoido, oAcauã, Mão-de-Lixa, Marruaz, o Credo, Marimbondo,Rasga-em-Baixo, Jiribibe e Jõe Bexiguento, dito Alparcatas.Só que,

tidos todos repartidos, ainda sobravam nove – serviramparaesquadrão adeparte, tomar conta dos burros cargueiros,competrechos e mantimentos. O testa deles foi Alaripe, porbom

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que fosse para tudo ser. Aos esses, mesmo, se comediu

obrigação: Quim Queiroz zelava os volumes de balas; o jacaréexercia de cozinheiro, todo tempo devia de dizer o decomer queprecisava ou faltava; Doristino, ferrador dos animais,tratadordeles; e os outros ajudavam; mas Raimundo Lê, queentendia decuras e meizinhas, teve cargo de guardar sempre umsurrão comremédios. O que, remédio, por ora, não havia nenhum.Mas ZéBebelo não se atontava: – “Aí em qualquer parte, depois,secompra, se acha, meu filho. Mas, vai apanhando folha eraiz, vaitendo, vai enchendo... O que eu quero é ver o surrão àmão...” Oacampamento da gente parecia umacidade.

Assuntos principais, Zé Bebelo fazia lição, e deduziaordens. – “Trabucar duro, para dormir bem!” – publicava.

Gostadamente: – “Morrendo eu, depois vocêsdescansam...” – eria: – “Mas eu não morro...” Sujeito muito lógico, o senhorsabe:cega qualquer nó. E – engraçado dizer – a genteapreciava aquilo.

Dava uma esperança forte. Ao um modo, melhor quetudo é secuidar miudamente trabalhos de paz em tempo deguerra. O maiseram traquejos, a cavalo, para lá e para cá, ouesbarrados firmesem formatura, então Zé Bebelo perequitava, assoviando,

manobrava as patrulhas, vai-te, volta-te. Somente: –“Arre, temosnenhum tempo, gente! Capricha...” Sempre, no fim, poranimar,

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levantava demais o braço: – “Ainda quero passar, acavalos,

levando vocês, em grandes cidades! Aqui o que me fazfalta éuma bandeira, e tambor e cornetas, metais mais... Masheide! Ah,que vamos em Carinhanha e Montes Claros, ali, no hajavinho...Arranchar no mercado da Diamantina... Eli, vamos noParacatu-do-Príncipe!...” Que boca, que o apito:apitava.

A sério, ele me chamava para o lado dele, e iamandando viroutros – Marcelino Pampa, João Concliz, Diadorim, o

urucuianoPantaleão, e o Fafafa, vice-mandantes. Todos tinham deexpor oque sabiam daquelegeraisterritório: as distâncias em léguas e

braças, os vaus, o grau de fundo dos marimbus e dospoços, osmandembes onde se esconder, os mais fartos pastos.Como ZéBebelo simplificava os olhos, e perguntando e ouvindoavante.Às vezes riscava com ponta duma vara no chão, tudo

representado. Ia organizando aquilo na cabeça. Estavaaprendido.Com pouco, sabia mais do que nós juntos todos. Bem eu

conhecia Zé Bebelo, de outros currais! Bem eu desejasseternascido como ele... Aí, saía, por caçar. Sucinto quegostava decaçar; mas estava era sujeitando a exame o morro,discriminando.O mato e o campo – como dois é um par. Veio e foi,figurava,tomava a opinião da gente: – “Com dez homens, naquelaaltura,e outros dez espalhados na vertente, se podia impedir apassagem

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de duzentos cavaleiros, peloresfriado...Com outros alguns, dando

a retaguarda, então...” Nesfartes, só nisso ele pensava,quase que.Sendo que expedia, sobre hora, alguém adiante, seinformar domeximento dos Judas, trazer notícias vivas. E, homemfeliz, feitoZé Bebelo naquele tempo, afirmo ao senhor, nuncanão vi.

Diadorim também, que dos claros rumos me dividia.

Vinhaa boa vingança, alegrias dele, se calando. Vingar, digo aosenhor:é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais. Odemôniodiz mil. Esse! Vige mas não rege... Qual é o caminhocerto dagente? Nem para a frente nem para trás: só para cima.Ou pararcurto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos estão só émuitoesperando? Mas, quem é que sabe como? Viver... Osenhor jásabe: viver é etcétera... Diadorím alegre, e eu não.

 Transato nomeio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã,ospássaros, que bem-meviam todo tal tempo. Gostava de

Diadorim, dum jeito condenado; nem pensava mais quegostava,

mas aí sabia que já gostava em sempre. Oi, suindara! –linda cor...Dando o dia, de repente, Zé Bebelo determinou quetudo etudo fosse pronto, para uma remarcha em exercícios,

como geral.Só por festa. Ao que os burrinhos comiamamadrinhados, embom pasto: – “Menininhos, responsabilidade decangalhas emvocês, carregando a nossa munição!” – Zé Bebelomandou. Mas,

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montado, declarou: – “Meu nome d’ora por diante vai serah-oh-

ah o de Zé Bebelo Vaz Ramiro!Como confiança só tenho emvocês, companheiros, meus amigos: zé-bebelos!A vez chegou:

vamos em guerra. Vamos, vamos, rebentar com aquelacambadade patifes!...” Saímos, solertesentes.

Para isso, a lua não era boa. Quem põe praça de

cavalhadas, por desbarranco de estradas lamentas,desmanchoempapado de chão, a chuva ainda enxaguando?Convinhaesperar regras d’água. – “O Rio Paracatu está cbeio...”alguémdisse. Mas Zé Bebelo atalhou: – “O São Francisco émaior...”Com ele tudo era assim, extravagável; e não queriaconversas decutilquê. Rompemos. Melava de chover baixo, mimelava.Até oderradeiro do momento, parecia que íamos atravessar o

Paracatu. Não atravessamos. Tudo aquele homemretinhaestudado. Daí, distribuiu as patrulhas. O drongo dele,viemos,pela beira, sempre o Paracatu à mão esquerda. Trovejou,de

perturbar. Ele disse: – “Melhor, dou surpresa... Só umaboasurpresa é que rende. Quero é atacar!”. A gente ia para oBuriti-Pintado. A lá, consta de dez léguas, doze, – “Na hora,cada umdeve de ver só um algum judas de cada vez, mirar bem eatirar.O resto maior é com Deus...” – já vai que falava. – “Paraumtrabalho que se quer, sempre a ferramenta se tem. Sócom estes

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cavalos, só à ligeireza, de lugar para lugar, para a frentee para

trás. Sei, mas o principal dos combates vamos dar é bema pé...”Na beira do rio Soninho, descansamos. Animais de carga,aponta de mulas, ficaram botados escondidos, numabocaina nabalsa. Só três homens tomavam conta. – “Eu é queescolho ahora e o lugar de investir...” – Zé Bebelo disse. E, numlugar deremanso, passamos o rio Soninho, no escuro, semensolvar, balaem boca. De manhã, de três lados, demos fogo. Aí ZéBebelotinha meditado tudo como um ato, de desenho. Primeiro,

 JoãoConcliz avançou, com seus quinze, iam fazendo de contaquedesprevenidos. Quando os outros vieram, nós todos já

estávamos bem amoitados, em pontos bons. Duma

banda, então,o Fafafa recruzou, seus cavaleiros: que estavam muito juntos,embolados, do modo por que um bando de cavaleiros oucavalosdá ar de ser muito maior do que no real é. Todos cavalosruçosou baios – cor clara também aumenta muito a visão dotamanhodeles. Ah, e gritavam. Assaz os judas atiravam mal,

discordados,nadinha nem. Aí, de poleiro pego prévio, abrimos nossa

calamidade neles. Pessoal do Hermógenes... Não se disseguavai!Supetume! Só bala de aço. – “Dou duelo!... – Ei, tibes...”Só oquanto de se quebrar galho e rasgar roupagem. Um

 judas correuerrado, do lado onde o Jiribibe estava: triste daquele. –

“Ouh!” –foi o que ele fez de contrição perfeita. Outro levantou ocorpo

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um pouco demais. – “Tu! Tu pensa que tem Deus-e-meio?!” –

Zé Bebelo disse, depois de derrubar o tal, com um tiro denhambu, baixo. Outro fugia esperto. – “Tem talento nospés...”Os que enviei, deixei de numerar, por causa de caridade.Ai deles.Vitória, é isto. Ou o senhor pensa que é em alegre mal,feitonuma caçada?

Descansar? Quem disse, não foi ouvido. – “Vou ládeixaressa cambada birbar por aí em sossego?! Bis, minha

gente!Vamos neles!” – Zé Bebelo se frigia. Mas o própriopessoal de

 João Concliz tinha segurado mão nos cavalos daqueles. –

“Toquemos na mão do norte: lá a cara do chão é minhamais...”Não, o caminho era da banda contrária. Tínhamos decair emriba do grosso da judadas. Porresfriadose atalhos, mesmo com

aquela cavalhada adestra, tocamos, tocamos. Estradacapaz dequatro, lado a lado. No Oi-Mãe. Lá tem um lajeiro – largo:ondegrandes pedras do fundo do chão vêm à flor. Chegamosde

sobremão, vagarosinho. Zé Bebelo recomendava, feitorondandoquarto de doente. Ele cheirava até o ar. Sonso pareciaum gato.Se vendo que, no inteiro mesmo de sua cabeça, ele antestudotraçava e guerreava. Seja por um exemplo: havia umacavagrande, o inimigo estava emboscado dos dois lados, nos

socavões, nas paredes. Como era que Zé Bebelo jásabia?

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Orçando longe volta, João Concliz levou seus homensmuito

adiante de lá, na borda do campo, de recacha. Dadotempo,então, nosso pelotão rastejou para os altos, até chegaestávamospor cima dos beiços da cava. Ah e aí o Fafafa veio vindo,

descuidado à mostra, com seus cavaleiros – surgiam

inocentemente, feito veados para se matar... Mas – há! –entãopor de riba da cava desfechamos demos urros e o rifleio,

transcruzando nos inferiores: – “Lávai obra!...” Hê-hê! Deu de

abelhas de pau oco: os das socavas entornaram osangue-frio,demais se assustaram, correndo em fuga maior debaixode tiros,xingos, às pragas. João Condiz, pois é, o senhor sabe...Urubuspuderam voar cererém – uns urubus

declarados.Mas daí voltamos, desatravessando outra vez oSoninho,

até onde estava a nossa mulada, com munição e o mais.Mesmoviemos negaceando de recuar. Assim era pena, mascarecíamosde flautear desse jeito, sustância nossa não dava para seacabar

com aqueles judas de uma vez. Sempre, sempre, paraenganar noque vissem, Zé Bebelo variava de se viajar uma horaquase todos juntos, outra hora despedidos espalhados. Ainda, porsumavantagem disso, demos um tiroteio ganho, na fazendaSãoSerafim, dos diabos!

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Rumo a rumo de lá, mas muito para baixo, é umlugar. Tem

uma encruzilhada. Estradas vão paraas Veredas Tortas-veredasmortas. Eu disse, o senhor não ouviu. Nem torne a falarnessenome, não. É o que ao senhor lhe peço. Lugar não onde.Lugaresassim são simples – dão nenhum aviso. Agora: quandopassei porlá, minha mãe não tinha rezado – por mim naquelemomento?

Assim, feito no Paredão. Mas a água só é limpa é nascabeceiras. O mal ou o bem, estão é em quem faz; não énoefeito que dão. O senhor ouvindo seguinte, me entende.OParedão existe lá. Senhor vá, senhor veja. É um arraial.Hojeninguém mora mais. As casas vazias. Tem até sobrado.Deucapim no telhado da igreja, a gente escuta a qualquerentrar oborbolo rasgado dos morcegos. Bicho que guarda muitosfriosno corpo. Boi vem do campo, se esfrega naquelasparedes.Deitam. Malham. De noitinha, os morcegos pegam arecobrir osbois com lencinhos pretos. Rendas pretas defunteiras.Quando se

dá um tiro, os cachorros latem, forte tempo. Em toda aparte édesse jeito. Mas aqueles cachorros hoje são do mato,têm decaçar seu de-comer. Cachorros que já lamberam muitosangue.Mesmo, o espaço é tão calado, que ali passa o sussurrode meia-noite às nove horas. Escutei um barulho. Tocha decarnaúbaestava alumiando. Não tinha ninguém restado. Só vi umpapagaio

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manso falante, que esbagaçava com o bico algum trem.Esse, vez

em quando, para dormir ali voltava? E eu não reviDiadorim.Aquele arraial tem um arruado só: é a rua daguerra...

O demônio

na rua, nomeio do redemunho...O

senhor não me pergunte nada.

Coisas dessas não se perguntambem.

Sei que estou contando errado, pelos altos.

Desemendo.Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei docomum,disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor éhomemde pensar o dos outros como sendo o seu, não é criaturade pôrdenúncia. E meus feitos já revogaram, prescrição dita.

 Tenhomeu respeito firmado. Agora, sou anta empoçada,ninguém mecaça. Da vida pouco me resta – só odeo-gratias;e o troco.Bobéia. Na feira de São João Branco, um homem andava

falando: – “A pátria não pode nada com a velhice...”Discordo.A pátria é dos velhos, mais. Era um homem maluco, osdedoscheios de anéis velhos sem valor, as pedras retiradas –ele dizia:

aqueles todos anéis davam até choque elétrico... Não. Euestoucontando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerrasebatalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. Os

revoltosos depois passaram por aqui, soldados dePrestes,vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais desela.Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São Romão,aonde

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– 132 –

aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia.Muitos

anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontrabalascravadas. O que vale, são outras coisas. A lembrança davida dagente se guarda em trechos diversos, cada um com seusigno esentimento, uns com os outros acho que nem nãomisturam.Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisasde rasaimportância. De cada vivimento que eu real tive, dealegria forteou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como sefossediferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim euacho, assim éque eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Temhoras anti-gas que ficaram muito mais perto da gente do queoutras, derecente data. O senhor mesmo

sabe.Mire veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome

Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi delaumacarta: carta simples, pedindo notícias e dandolembranças,escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa Nhorinhátinha

lenço curto na cabeça, feito crista de anu-branco.Escreveu,mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito anos paramechegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta quesezanzou, para um lado longe e para o outro, nessessertões,nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantasalgibeiras ecapangas. Ela tinha botado por fora só: Riobaldo que está com

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Medeiro Vaz.E veio trazida por tropeiros e viajores,recruzou

tudo. Quase não podia mais se ler, de tão suja dobrada,serasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, emcanudo,com linha preta de carretel. Uns não sabiam mais dequemtinham recebido aquilo. Ultimo, que me veio com ela,quase porengano de acaso, era um homem que, por medo dadoença dotoque,ia levando seu gado de volta dos gerais para a

caatinga,logo que chuva chovida. Eu já estava casado. Gosto deminhamulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci deolhos emãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento.

Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando demim, decerto; e aí já estivesse morando mais longe, magoal, no

São Josezinho da Serra – no indo para o Riacho-dasAlmas evindodo Morro dos Ofícios. Quando recebi a carta, vi queestavagostando dela, de grande amor em lavaredas; masgostando detodo tempo, até daquele tempo pequeno em que com elaestive,na Aroeirinha, e conheci, concernente amor. Nhorinhá,

gostobom ficado em meus olhos e minha boca. De lá para lá,os oitoanos se baldavam. Nem estavam. Senhor subentende oque issoé? A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha

aumentado de ser mais linda. De certo, agora nãogostasse maisde mim, quem sabe até tivesse morrido... Eu sei que isto

queestou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas osenhor vai

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– 134 –

avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria

decifrar as coisas que são importantes. E estou contandonão éuma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas amatériavertente. Queria entender do medo e da coragem, e dagã queempurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo aosuceder. Oque induz a gente para más ações estranhas é que agente estápertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, nãosabe, nãosabe!

Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é

homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhorme ouve,pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é comoconto.Antes conto as coisas que formaram passado para mimcom maispertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que nãosei. Umgrande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Sóumasraríssimas pessoas – e só essas poucas veredas,veredazinhas. Oque muito lhe agradeço é a sua fineza deatenção.

Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro.Depois o senhor verá por quê, me devolvendo minharazão.

Se deu há tanto, faz tanto, imagine: eu devia deestar comuns quatorze anos, se. Tínhamos vindo para aqui –

circunstânciade cinco léguas – minha mãe e eu. No porto do Rio-de-

 Janeiro

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– 135 –

nosso, o senhor viu. Hoje, lá é o porto do seo Josozinho, o

negociante. Porto, lá como quem diz, porque outro nomenão há.Assim sendo, verdade, que se chama, no sertão: é umabeira debarranco, com uma venda, uma casa, um curral e umpaiol dedepósito. Cereais. Tinha até um pé de roseira. Rosmes!...Depoiso senhor vá, verá. Pois, naquela ocasião, já era quase do

 jeito. Ode-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no SãoFrancisco, bemreto ele vai, formam uma esquadria. Quem carece, passao de- Janeiro em canoa – ele é estreito, não estende de larguraas trintabraças. Quem quer bandear a cômodo o São Francisco,tambémprincipia ali a viagem. O porto tem de ser naquele ponto,maisalto, onde não dá febre de maresia. A descida do

barranco é indopor a-pique, melhoramento não se pode pôr, porque acheia veme tudo escavaca. O São Francisco represa o de-Janeiro,alto emgrosso, às vezes já em suas primeiras águas denovembro.Dezembro dando, é certo. Todo o tempo, as canoasficamesperando, com as correntes presas na raiz descoberta

dum pau-d’óleo, que tem. Tinha também umas duas ou trêsgameleiras, deoutrora, tanto recordo. Dá dó, ver as pessoas desceremna lamaaquele barranco, carregando sacos pesados, muita vez.A vidaaqui é muito repagada, o senhor concorde. Outro, meutempo,então, o que é que não havia de

ser?

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 João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

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Pois tinha sido que eu acabava de sarar dumadoença, e

minha mãe feito promessa para eu cumprir quandoficasse bom:eu carecia de tirar esmola, até perfazer um tanto –metade parase pagar uma missa, em alguma igreja, metade para sepôrdentro duma cabaça bem tapada e breada, que se

 jogava no SãoFrancisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar noSantuário doSanto Senhor Bom-Jesus da Lapa, que na beira do riotudopode. Ora, lugar de tirar esmola era no porto. Mãe medeu umasacola. Eu ia, todos os dias. E esperava por lá, naqueleparado,raro que alguém vinha. Mas eu gostava, queria novidadequietapara meus olhos. De descer o barranco, me dava receio.Masespiava as cabaças para bóia de anzol, sempre

dependuradas naparede do rancho.

 Terceiro ou quarto dia, que lá fui, apareceu maisgente.Dois ou três homens de fora, comprando alqueires de

arroz.Cada saco amarrado com broto de buriti, a folha nova –verde e

amarela pelo comprido, meio a meio. Arcavam comaquelessacos, e passavam, nas canoas, para o outro lado do de-

 Janeiro.Lá era, como ainda hoje é, mata alta. Mas, por entre asárvores,se podia ver um carro-de-bois parado, os bois quemastigavamcom escassa baba, indicando vinda de grandesdistâncias. Daí, osenhor veja: tanto trabalho, ainda, por causa de unsmetros de

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água mansinha, só por falta duma ponte. Ao que, mais,no

carro-de-bois, levam muitos dias, para vencer o que emhoras osenhor em seu jipe resolve. Até hoje é assim, porborco.

Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa

árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menosdo queeu, ou devia de regular minha idade. Ali estava, com um

chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. Não semexeu.Antes fui eu que vim para perto dele. Então ele foi medizendo,com voz muito natural, que aquele comprador era o tiodele, eque moravam num lugar chamado Os-Porcos, meio-mundodiverso, onde não tinha nascido. Aquilo ia dizendo, e eraummenino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes,verdes. Muito tempo mais tarde foi que eu soube queesselugarim Os-Porcos existe de se ver, menos longe daqui,nosgerais de Lassance.

– “Lá é bom?” – perguntei. – “Demais...” – ele me

respondeu; e continuou explicando: – “Meu tio planta detudo.Mas arroz este ano não plantou, porque enviuvou demorte deminha tia...” Assim parecesse que tinha vergonha, deestaremcomprando aquele arroz, o senhorveja.

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Mas eu olhava esse menino, com um prazer decompanhia,

como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achavaque eleera muito diferente, gostei daquelas finas feições, a vozmesma,muito leve, muito aprazível. Porque ele falava semmudança,nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversarumaconversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim umdesejode que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre ashoras, eassim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem

brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido.

Escondido enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fédepromessa, tive vergonha de estar esmolando. Mas eleapreciavao trabalho dos homens, chamando para eles meu olhar,

com um jeito de siso. Senti, modo meu de menino, que eletambém sesimpatizava a já comigo.

A ser que tinha dinheiro de seu, comprou um quartodequeijo, e um pedaço de rapadura. Disse que ia passear

em canoa.

Não pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha. Tudofazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindopressa,que a gente só podia responder que sim. Ele me deu amão, parame ajudar a descer o barranco.

As canoas eram algumas, elas todas compridas,como as de

hoje, escavacadas cada qual em tronco de pau deárvore. Uma

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estava ocupada, apipada passando as sacas de arroz, enós

escolhemos a melhor das outras, quase sem água nemlamanenhuma no fundo. Sentei lá dentro, de pinto em ovo.Ele sesentou em minha frente, estávamos virados um para ooutro.Notei que a canoa se equilibrava mal, balançando noestado dorio. O menino tinha me dado a mão para descer obarranco. Erauma mão bonita, macia e quente, agora eu estavavergonhoso,perturbado. O vacilo da canoa me dava um aumentantereceio.Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botadosverdes, defolhudas pestanas, luziam um efeito de calma, que atémerepassasse. Eu não sabia nadar. O remador, um meninotam-bém, da laia da gente, foi remando. Bom aquilo não era,

tãopouca firmeza. Resolvi ter brio. Só era bom por estarperto domenino. Nem em minha mãe eu não pensava. Eu estavaindo ameu esmo.

Saiba o senhor, o de-janeiro é de águas claras. E ério cheio

de bichos cágados. Se olhava a lado, se via um viventedesses –em cima de pedra, quentando sol, ou nadandodescoberto,exato. Foi o menino quem me mostrou. E chamou minha

atenção para o mato da beira, em pé, paredão, feito àréguaregulado. – “As flores...” – ele prezou. No alto, erammuitasflores, subitamente vermelhas, de olho-de-boi e deoutras

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trepadeiras, e as roxas, do mucunã, que é um feijãobravo;

porque se estava no mês de maio, digo – tempo decomprararroz, quem não pôde plantar. Um pássaro cantou.Nhambu? Eperiquitos, bandos, passavam voando por cima de nós.Não meesqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu iapoderdeslembrar? Um papagaio vermelho: – “Arara for?” – elemedisse. E –quê-quê-quê? – oaraçari perguntava. Ele, o menino,

eradessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoaoutranenhuma. Comparável um suave de ser, mas asseado eforte –assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhumsensível – osenhor represente. As roupas mesmas não tinhamnódoa nemamarrotado nenhum, não fuxicavam. A bem dizer, ele

poucofalasse. Se via que estava apreciando o ar do tempo,calado esabido, e tudo nele era segurança em si. Eu queria queelegostasse de mim.

Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor

surja: é de repentemente, aquela terrível água delargura:imensidade. Medo maior que se tem, é de vir canoandonumribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum riogrande. Atépelo mudar. A feiúra com que o São Francisco puxa, semoendotodo barrento vermelho, recebe para si o de-janeiro,quase sóum rego verde só. – “Daqui vamos voltar?” – eu pedi,ansiado.

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O menino não me olhou – porque já tinha estado meolhando,

como estava. – “Para quê?” – ele simples perguntou, emdescanso de paz. O canoeiro, que remava, em pé, foiquem seriu, decerto de mim. Aí o menino mesmo avançaçãoenormeroda-a-roda – o que até hoje, minha vida, avistei, demaior, foiaquele rio. Aquele, daquele dia. As remadas que seescutavam,do canoeiro, a gente podia contar, por duvidar se não

satisfaziam termo. – “Ah, tu: tem medo não nenhum?” –aocanoeiro o menino perguntou, com tom. – “Soubarranqueiro!”– o canoeirinho tresdisse, repontando de seu orgulho. Detal omenino gostou, porque com a cabeça aprovava. Eutambém. Ochapéu-de-couro que ele tinha era quase novo. Os olhos,

eusabia e hoje ainda mais sei, pegavam um escurecimentoduro.Mesmo com a pouca idade que era a minha, percebi que,de mever tremido todo assim, o menino tirava aumento parasuacoragem. Mas eu agüentei o aque do olhar dele. Aquelesolhosentão foram ficando bons, retomando brilho. E o menino

pôs amão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhordaminha pele, no profundo, desse a minhas carnes algumacoisa.Era uma mão branca, com os dedos dela delicados. –“Vocêtambém é animoso...” – me disse. Amanheci minhaaurora. Masa vergonha que eu sentia agora era de outra qualidade.

Arre vai,o canoeiro cantou, feio, moda de copla que gentebarranqueira

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usa: “...Meu Rio de São Francisco, nessa maior turvação:vim te dar 

um gole d’água, mas pedir tuabenção...”  Aí, o desejado, arribamosna outra beira, a de lá.

Ao ver, o menino mandou encostar; só descemos. –“Vocênão arreda daqui, fica tomando conta!” – ele falou para o

canoeiro, que seguiu de cumprir aquela autoridade,

desde queamarrou a corrente num pau-pombo. Aonde o meninoqueriair? Sofismei, mas fui andando, fomos, na vargem, nomeio-avermelhado do capim-pubo. Sentamos, por fim, numlugarmais salientado, com pedras, rodeado por ásperobamburral.Sendo de permanecer assim, sem prazo, isto é, o quasecalados,somente. Sempre os mosquitinhos era que arreliavam, ovulgar.– “Amigo, quer de comer? Está com fome?” – ele me

perguntou. E me deu a rapadura e o queijo. Ele mesmo,sótocou em miga. Estava pitando. Acabou de pitar,apanhava talosde capim-capivara, e mastigava; tinha gosto de milho-verde, édele que a capivara come. Assim quando me veiovontade deurinar, e eu disse, ele determinou: – “Há-te, vai ali atrás,longede mim, isso faz...” Mais não conversasse; e eu reparei,meacanhava, comparando como eram pobres as minhasroupas, junto das dele.

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Antojo, então, por detrás de nós, sem avisos,apareceu a

cara de um homem! As duas mãos dele afastavam osramos domato, me deu um susto somente. Por certo algum trilhopassavaperto por ali, o homem escutara nossa conversa. À fé,era umrapaz, mulato, regular uns dezoito ou vinte anos; masaltado,forte, com as feições muito brutas. Debochado, ele disseisto: –“Vocês dois, uê, hem?! Que é que estão fazendo?...”Aduzidofungou, e, mão no fechado da outra, bateu um figurado

indecente. Olhei para o menino. Esse não semelhava tertomadonenhum espanto, surdo sentado ficou, social com seupráticosorriso. – “Hem, hem? E eu? Também que se sorriu, sem

malícia e sem bondade. Não piscava os olhos. O

canoeiro, semseguir resolução, varejava ali, na barra, entre duaságuas, menosfundas, brincando de rodar mansinho, com a canoapasseada.Depois, foi entrando no do-Chico, na beirada, para orumo deacima. Eu me apeguei de olhar o mato da margem.Beiras sempraia, tristes, tudo parecendo meio podre, a deixa,

lameada aindada cheia derradeira, o senhor sabe: quando o do-Chicosobe osseis ou os onze metros. E se deu que o remador encostouquasea canoa nas canaranas, e se curvou, queria quebrar umgalho demaracujá-do-mato. Com o mau jeito, a canoadesconversou, omenino também tinha se levantado. Eu disse um grito. –

“Temnada não...” – ele falou, até meigo muito. – “Mas, então,vocês

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fiquem sentados...” – eu me queixei. Ele se sentou. Mas,sério

naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao canoeiro,com umapalavra só, firme mas sem vexame: – “Atravessa!” Ocanoeiroobedeceu.

 Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo!Enxerguei os

confins do rio, do outro lado. Longe, longe, com que

prazo se iraté lá? Medo e vergonha. A aguagem bruta, traiçoeira – orio écheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurrosdedesamparo. Apertei os dedos no pau da canoa. Não melembreido Caboclo-d’Água, não me lembrei do perigo que é a“onça-d’água”, se diz – a ariranha – essas desmergulham, embando, ebecam a gente: rodeando e então fazendo a canoa virar,deestudo. Não pensei nada. Eu tinha o medo imediato. Etantaclaridade do dia. O arrojo do rio, e só aquele estrape, e oriscoextenso d’água, de parte a parte. Alto rio, fechei osolhos. Maseu tinha até ali agarrado uma esperança. Tinha ouvidodizer que,quando canoa vira, fica boiando, e é bastante a gente seapoiarnela, encostar um dedo que seja, para se ter tenência, a

constância de não afundar, e aí ir seguindo, até sobre sesair noseco. Eu disse isso. E o canoeiro me contradisse: – “Estaé dasque afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa deperoba e depau-d’óleo não sobrenadam...” Me deu uma tontura. Oódio que

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eu quis: ah, tantas canoas no porto, boas canoasboiantes, de

faveira ou tamboril, de imburana, vinhático ou cedro, e agentetinha escolhido aquela... Até fosse crime, fabricar dessas,demadeira burra! A mentira fosse – mas eu devo de terarregaladodoidos olhos. Quieto, composto, confronte, o menino mevia. –“Carece de ter coragem...” – ele me disse. Visse quevinhamminhas lágrimas? Dói de responder: – “Eu não seinadar...” Omenino sorriu bonito. Afiançou: – “Eu também não sei.”

Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziamumaluz. – “Que é que a gente sente, quando se tem medo?” –eleindagou, mas não estava remoqueando; não pude terraiva. –“Você nunca teve medo?” – foi o que me veio, de dizer.

Elerespondeu: – “Costumo não...” – e, passado o tempodum meususpiro: – “Meu pai disse que não se deve de ter...” Aoque meiopasmei. Ainda ele terminou: – “... Meu pai é o homemmaisvalente deste mundo.” Aí o bambalango das águas, aro!”– omulato veio insistindo. E, por aí, eu consegui falar alto,

contes-tando, que não estávamos fazendo sujice nenhuma,estávamosera espreitando as distâncias do rio e o parado dascoisas. Mas, oque eu menos esperava, ouvi a bonita voz do meninodizer: –“Você, meu nego? Está certo, chega aqui...” A fala, o jeitodele,imitavam de mulher. Então, era aquilo? E o mulato,

satisfeito,caminhou para se sentar juntinhodele.

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Ah, tem lances, esses – se riscam tão depressa, olharda

gente não acompanha. Urutu dá e já deu o bote? Só foiassim.Mulato pulou para trás, ô de um grito, gemido urro.Varou omato, em fuga, se ouvia aquela corredoura. O meninoabanava afaquinha nua na mão, e nem se ria. Tinha embebido ferronacoxa do mulato, a ponta rasgando fundo. A lâminaestavaescorrida de sangue ruim. Mas o menino não se aluía dolugar. Elimpou a faca no capim, com todo capricho. – “Quicé que

corta...” – foi só o que disse, a si dizendo. Tornou a pôrnabainha.

Meu receio não passava. O mulato podia voltar, terido

buscar uma foice, garrucha, a reunir companheiros; denós oque seria, daí a mais um pouco? Ao menino ponderei isso,

encarecendo que a gente fosse logo embora. – “Carecede tercoragem. Carece de ter muita coragem...” – ele memoderou, tãogentil. Me alembrei do que antes ele tinha falado, de seupai.Indaguei: – “Mas, então, você mora é com seu tio?” Aí eleselevantou, me chamando para voltarmos. Mas veiodemorão,vagarosinho até aonde a canoa. E não olhava para trás.Não,medo do mulato, nem de ninguém, ele nãoconhecia.

 Tem de tudo neste mundo, pessoas engraçadas: o

remadorzinho estava dormindo espichado dentro dacanoa, com

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os seus mosquitos por cima e a camisa empapada desuor de sol.

Se alegrou com o resto da rapadura e do queijo, nostrouxeremando, no meio do rio até mais cantava. Dessa volta,não lhedou desenho – tudo igual, igual. Menos que, por vez, me

pareceu depressa demais. – “Você é valente, sempre?” –emhora eu perguntei. O menino estava molhando as mãosna águavermelha, esteve tempo pensando. Dando fim, sem meencarar,declarou assim: – “Sou diferente de todo o mundo. Meupaidisse que eu careço de ser diferente, muito diferente...”E eu nãotinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhorescute,me escute mais do que eu estou dizendo; e escutedesarmado. Osério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu

lhecontei eu não sentia nada. Só uma transformação,pesável. Muitacoisa importante falta nome.

Minha mãe estava lá no porto, por mim. Tive de ircomela, nem pude me despedir direito do Menino. De longe,

virei,ele acenou com a mão, eu respondi. Nem sabia o nomedele.Mas não carecia. Dele nunca me esqueci, depois, tantosanostodos.

Agora, que o senhor ouviu, perguntas faço. Por quefoique eu precisei de encontrar aquele Menino? Toleima, eu

sei.Dou, de. O senhor não me responda. Mais, que coragem

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inteirada em peça era aquela, a dele? De Deus, do demo?Por

duas, por uma, isto que eu vivo pergunta de saber, nemocompadre meu Quelemém não me ensina. E o que eraque o paidele tencionava? Na ocasião, idade minha sendo aquela,não deide mim esse indagado. Mire veja: um rapazinho, noNazaré, foidesfeiteado, e matou um homem. Matou, correu emcasa. Sabeo que o pai dele temperou? – “Filho, isso é a tuamaioridade. Navelhice, já tenho defesa, de quem me vingue...” Bolas,ora.Senhor vê, o senhor sabe. Sertão é o penal, criminal.Sertão éonde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada.Mas, ondeé bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta sepergunta.Por que foi que eu conheci aquele Menino? O senhor não

conheceu, compadre meu Quelemém não conheceu,milhões demilhares de pessoas não conheceram. O senhor penseoutra vez,repense o bem pensado: para que foi que eu tive deatravessar orio, defronte com o Menino? O São Francisco cabe sempreaí,capaz, passa. O Chapadão é em sobre longe, beira até

Goiás,extrema. Os gerais desentendem de tempo. Sonhação –achoque eu tinha de aprender a estar alegre e triste

 juntamente,depois, nas vezes em que no Menino pensava, eu achoque. Mas,para quê? por quê? Eu estava no porto do de-Janeiro,comminha capanguinha na mão, ajuntando esmolas para o

SenhorBom-Jesus, no dever de pagar promessa feita por minhamãe,

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para me sarar de uma doença grave. Deveras se vê queo viver

da gente não é tão cerzidinho assim? Artes que foi, queficopensando: por aí, Zé Bebelo um tanto sabia disso, massabiasem saber, e saber não queria; como Medeiro Vaz, como

 JocaRamiro; como compadre meu Quelemém, que viajadiversocaminhar. Ao quê? Não me dê, dês. Mais hoje, maisamanhã,quer ver que o senhor põe uma resposta. Assim, osenhor já mecompraz. Agora, pelo jeito de ficar calado alto, eu vejoque osenhor me divulga.

Adiante? Conto. O seguinte é simples. Minha mãemorreu– apenas a Bigri, era como ela se chamava. Morreu, num

dezembro chovedor, aí foi grande a minha tristeza. Masumatristeza que todos sabiam, uma tristeza do meu direito.Dedesde, até hoje em dia, a lembrança de minha mãe àsvezes meexporta. Ela morreu, como a minha vida mudou parauma se-gunda parte. Amanheci mais. De herdado, fiquei comaquelasmiserinhas – miséria quase inocente – que não podiafazerquestão: lá larguei a outros o pote, a bacia, as esteiras,panela,chocolateira, uma caçarola bicuda e um alguidar;somente pegueiminha rede, uma imagem de santo de pau, um caneco-de-asapintado de flores, uma fivela grande com ornados, umcobertorde baeta e minha muda de roupa. Puseram para mimtudo em

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trouxa, como coube na metade dum saco. Até que umvizinho

caridoso cumpriu de me levar, por causa das chuvasnumaviagem durada de seis dias, para a Fazenda SãoGregório, demeu padrinho Selorico Mendes, na beira da estradaboiadeira,entre o rumo do Curralinho e o do Bagre, onde as serrasvãodescendo. Tanto que cheguei lá, meu padrinho SeloricoMendesme aceitou com grandes bondades. Ele era rico esomítico,possuía três fazendas-de-gado. Aqui também dele foi, amaiorde todas.

– “De não ter conhecido você, estes anos todos,purgomeus arrependimentos...” – foi a sincera primeira palavra

queele me disse, me olhando antes. Levei dias pensando queelenão fosse de juizo regulado. Nunca falou em minha mãe.Nascoisas de negócio e uso, no lidante, também quase nãofalava.Mas gostava de conversar, contava casos. Altas artes de

 jagunçosisso ele amava constante –histórias.

– “Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão.Política! Tudo política, e potentes chefias. A pena, queaqui jáé terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homem

particular. Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeirograúdose reina mandador – todos donos de agregados valentes,

turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada!

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Domingos Touro, no Alambiques, Major Urbano naMacaçá,

os Silva Salles na Crondeúba, no Vau-Vau dona PrósperaBlaziana. Dona Adelaide no Campo-Redondo, SimãoAvelinona Barra-da-Vaca, Mozar Vieira no São João doCanastrão, oCoronel Camucim nos Arcanjos, comarca de Rio Pardo; e

tantos, tantos. Nisto que na extrema de cada fazendasome esurge um camarada, de sentinela, que sobraça o pau-de-fogo evigia feito onça que come carcaça. Ei. Mesma coisa no

barranco do rio, e se descer esse São Francisco, queaprova,cada lugar é só de um grande senhor, com sua famíliageral,seus jagunços mil, ordeiros: ver São Francisco da Arrelia,

 Januária, Carinhanha, Urubu, Pilão Arcado, Xiquexique e

Sento-Sé.”

Demais falasse, tendo conhecido o Neco, selembrava dequando Neco forçou Januária e Carinhanha, nas eras do

anode 79: tomou todos os portos – Jatobá, Malhada e Manga–fez como quis; e pôs sede de suas fortes armas no arraialdo

 jacaré, que era a terra dele. – “Estive lá, com cartafirmadapelo Capitão Severiano Francisco de Magalhães, que era

companheiro combinado do Neco. O pessoal que eles

numeravam em guerra comprazia uma babilônia.Botavam atébarcas, cheias de homens com bacamartes, cruzandopara

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baixo e para cima o rio, de parte a parte. Dia e noite, agente

ouvia gritos e tiros. Cavalaria de jagunços galopando,saindopara distâncias marcadas. Abriam festa de bomba-real e

foguetório, quando entravam numa cidade. Mandavamtocar osino da igreja. Arrombavam a cadeia, soltando os presos,

arrancavam o dinheiro em coletoria, e ceiavam em Casa-da-Câmara...”

Meu padrinho Selorico Mendes era muito medroso.

Contava que em tempos tinha sido valente, se gabava,goga.Queria que eu aprendesse a atirar bem, e manejarporrete efaca. Me deu logo um punhal, me deu uma garrucha eumagranadeira. Mais tarde, me deu até um facão enterçado,quetinha mandado forjar para próprio, quase do tamanho de

espada e em formato de folha de gravata. – “Sentei emmesacom o Neco, bebi vinho, almocei... Debaixo da chefiadele,paravam uns oitocentos brabos, só obedeciam erendiamrespeito.” Meu padrinho, hóspede do Neco; de recontarissoele sempre se engrandecia. Naquela dita ocasião, todasaspessoas importantes tinham fugido da Januária,desamparadasde poder-de-lei, foram esperar melhor sorte em Pedras-de-Maria-da-Cruz. – “Neco? Ah! Mandou mais que Renovato,ouo Lióbas, estrepoliu mais do que João Brandão e os

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Filgueiras...” E meu padrinho me mostrou um papel,com

escrita de Neco – era recibo de seis ancorotes compólvora euma remessa de iodureto – a assinatura rezava assim:Manoel Tavares de Sá.

Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma

decisão: me enviou para o Curralinho, para ter escola e

morarem casa de um amigo dele, Nhô Maroto, cujo Gervásio LêdeAtaíde era o verdadeiro nome social. Bom homem. Lá eunãocarecia de trabalhar, de forma nenhuma, porquepadrinhoSelorico Mendes acertava com Nhô Maroto de pagartodo fimde ano o assentamento da tença e impêndio, até debotina eroupa que eu precisasse. Eu comia muito, a despesa nãoerapequena, e sempre gostei do bom e do melhor. A ser que,

alguma vez, Nhô Maroto me pedia um ou outro serviço,

usando muito bico de palavreado, me agradando edizendoque estimava como um favor. Nunca neguei a ele meuspés emãos, e mesmo não era o nenhum trabalho notável. Vai,

acontece, ele me disse: – “Baldo, você carecia mesmo de

estudar e tirar carta-de-doutor, porque para cuidar dotrivialvocê jeito não tem. Você não é habilidoso.” Isso que elemedisse me impressionou, que de seguida formei empergunta, aoMestre Lucas. Ele me olhou, um tempo – era homem detão

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 justa regra, e de tão visível correto parecer, que nãopoupava

ninguém: às vezes teve dia de dar em todos os meninoscom apalmatória; e mesmo assim nenhum de nós não tinharaivadele. Assim Mestre Lucas me respondeu: – “É certo. Masomais certo de tudo é que um professor de mão-cheiavocê da-va...” E, desde o começo do segundo ano, ele medeterminoude ajudar no corrido da instrução, eu explicava aosmeninosmenores as letras e a tabuada.

Curralinho era lugar muito bom, de vida contentada.Com

os rapazinhos de minha idade, arranjei companheirice.Passei láesses anos, não separei saudade nenhuma, nem com opassadonão somava. Aí, namorei falso, asnaz, ah essas meninaspornomes de flores. A não ser a Rosa’uarda – moça feita,maisvelha do que eu, filha de negociante forte, seo AssisWababa,dono da vendaO Primeiro Barateiro da Primavera

de São José – ela

era estranja, turca, eles todos turcos, armazém grande,casagrande, seo Assis Wababa de tudo comerciava. Tantosendobizarro atencioso, e muito ladino, ele me agradava, diziaquemeu padrinho Selorico Mendes era um freguesão,diversas vezesme convidou para almoçar em mesa. O que apreciei –carnemoída com semente de trigo, outros guisados, recheiobom emabobrinha ou em folha de uva, e aquela moda de azedaro

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quiabo – supimpas iguarias. Os doces, também. Estimeiseo

Assis Wababa, a mulher dele, dona Abadia, e até osmeninos,irmãozinhos de Rosa’uarda, mas com tamanha diferençadeidade. Só o que me invocava era a linguagemgarganteada quefalavam uns com uns, a aravia. Assim mesmo afirmo queaRosa’uarda gostou de mim, me ensinou as primeiras

bandalheiras, e as completas, que juntos fizemos, nofundo doquintal, num esconso, fiz com muito anseio e deleite.Sempreme dizia uns carinhos turcos, e me chamava de: – “Meusolhos.”Mas os dela era que brilhavam exaltados, eextraordináriospretos, duma formosura mesmo singular. Toda a vidagosteidemais de estrangeiro.

Hoje é que reconheço a forma do que meu padrinho

muito fez por mim, ele que criara amparado amor ao seu

dinheiro, e que tanto avarava. Pois, várias viagens, eleveio aoCurralinho, me ver – na verdade, também, eleaproveitava paratratar de vender bois e mais outros negócios – e traziapara mimcaixetas de doce de buriti ou de araticum, requeijão emarmela-das. Cada mês de novembro, mandava me buscar.Nunca ralhoucomigo, e me dava de tudo. Mas eu nunca pedi coisanenhuma aele. Dez vezes mais me desse, e não se valia. Eu nãogostavadele, nem desgostava. Mais certo era que com ele eunão

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soubesse me acostumar. Acabei, por razão outra,fugindo do

São Gregório, o senhor vai ver. Nunca mais vi meupadrinho.Mas por isso ele não me desejou mal; nem entendo.Decerto,ficou entusiasmado, quando teve notícias de que eu erao jagunço. E me deixou por herdeiro, em folha detestamento: dastrês fazendas, duas peguei. Só o São Gregório foi que eletestoupara uma mulata, com que no fim de sua velhice seajuntou.Disso não fiz conta. Mesmo o que recebi eu menosmerecia.Agora, derradeiramente, destaco: quando velho, elepenouremorso por mim; eu, velho, a curtir arrependimento porele.Acho que nós dois éramos mesmopertencentes.

Depois pouco que voltei do Curralinho, definitivo,grandefato se deu, que ao senhor não escondo. Certamadrugada, oscachorros todos latiram, no São Gregório, alguém estava

batendo. Era mês de maio, em má lua, o frio fiava. E,quandotão moço, eu custava muito para me levantar; não porfracasaúde, mas por preguiça mal corrigida. Assim que saí dacama efui ver se era de se abrir, meu padrinho Selorico Mendes,com alamparina na mão, já estava pondo para dentro da salaunshomens, que eram seis, todos de chapéu-grande etrajados decapotes e capas, arrastavam esporas. Ali entraram comumaaragem que me deu susto de possível reboldosa.Admirei: tantas

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armas. Mas eles não eram caçadores. Ao que farejei: péde

guerra.

Meu padrinho mandou eu ir lá dentro, chamaralguma dasmulheres, que coasse café quente. Quando voltei, um

doshomens – Alarico Totõe – estava expondo, explicando. Todoscontinuavam sem tomar assentos. Alarico Totõe sendo

umfazendeiro do Grão-Mogol, conhecido de meu padrinho.Ele,com seu irmão Aluiz Totõe, pessoas finas, gente debem.

 Tinham encomendado o auxílio amigo dos jagunços,por

uma questão política, logo entendi. Meu padrinhoescutava,aprovando com a cabeça. Mas para quem ele sempre

estavaolhando, com uma admiração toda perturbosa, era parao chefedos jagunços, o principal. E o senhor sabe quem eraesse? JocaRamiro! Só de ouvir o nome, eu parei, na maiorsuspensão.

Adrede Joca Ramiro estava de braços cruzados, ochapéudele se desabava muito largo. Dele, até a sombra, que a

lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na

imponência, pojava volume. E vi que era um homembonito,caprichado em tudo. Vi que era homem gentil. Dos lados,

ombreavam com ele dois jagunões; depois eu soube –que seussegundos. Um, se chamava Ricardão: corpulento e

quieto, com

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um modo simpático de sorriso; compunha o ar de um

fazendeiro abastado. O outro – Hermógenes – homemsemanjo-da-guarda. Na hora, não notei de uma vez. Pouco,pouco,fui receando. O Hermógenes: ele estava de costas, masumascostas desconformes, a cacunda amontoava, com ochapéu rasoem cima, mas chapéu redondo de couro, que se que umacabaçana cabeça. Aquele homem se arrepanhava de não terpescoço.As calças dele como que se enrugavam demais da conta,

enfolipavam em dobrados. As pernas, muito abertas;mas,quando ele caminhou uns passos, se arrastava – mepareceu –que nem queria levantar os pés do chão. Reproduzo isto,e ficopensando: será que a vida socorre à gente certos avisos?

Sempreme lembro dele, me lembro mal, mas atrás de muitasfumaças.Naquela hora, eu estava querendo que ele não virasse acara.Virou. A sombra do chapéu dava até em quase na boca,

enegrecendo.

No terminar, Alarico Totõe pediu que precisavam deum

recanto oculto, onde a tropa dos homens passasse o diaquevinha, pois que viajavam de noite, dando surpresa e

desmanchando rastro. – “Tem ótimo reconditório...” –meupadrinho consentiu. E mandou que eu fosse guiar aquelagente,até aonde o poço do Cambaubal, num fechado, matocaapuão.

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Primeiro, tomou-se café. Assim Joca Ramiro corria prontoos

olhos, em tudo ali, sorrindo franco, a cara muitogalharda, e pôsas mãos nos bolsos. Ricardão ria grosso. E aqueleHermógenesveio para sair comigo, mais o outro homem – um cabeça-chataalvaço, com muita viveza no olhar; desse gostei, Alaripesechamava, até hoje se chama. Em que, eles dois a cavalo,eu a pé,viemos até onde estavam esperando os outros, doispassos, nobaixo da estrada.

Aí mês de maio, falei, com a estrela-d’alva. Oorvalho

pripingando, baciadas. E os grilos no chirilim. De repente,decerta distância, enchia espaço aquela massa forte, antesde poderver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Oscavaleiros.Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser pertoduns cem.Respirei: a gente sorvia o bafejo – o cheiro de crinas erabossacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado daspoeiras dosertão.

Adonde o movimento esbarrado que se sussurraduma

tropa assim – feito de uma porção de barulhinhospequenos, quenem o dum grande rio, do aflor. A bem dizer, aquelagente estavatoda calada. Mas uma sela range de seu, tine um arreaz,estribo, eestribeira, ou o coscós, quando o animal lambe o freio emastiga.Couro raspa em couro, os cavalos dão de orelha oubatem com o

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pé. Daqui, dali, um sopro, um meio-arquejo. E umcavaleiro ou

outro tocava manso sua montada, avançando naquelebolo,mudando de lugar, bridava. Eu não sentia os homens,sabia sódos cavalos. Mas os cavalos mantidos, montados. Édiferente.Grandeúdo. E, aos poucos, divulgava os vultos muitos,feitoárvores crescidas lado a lado. E os chapéus rebuçados,as pontasdos rifles subindo das costas. Porque eles não falavam –erestavam esperando assim – a gente tinha medo. Alideviam deestar alguns dos homens mais terríveis sertanejos, emcima doscavalos teúdos, parados contrapassantes. Soubessesonhasse eu?

Decerto de guarda, apartado dos mais, se via umcavaleiro,

inteiro. Veio vindo para cá, o cavalo dele era escuro; eraumalazão de bom pisar.

– “Capixum, é eu, mais o siô Hermógenes...” – ocabeça-chata falou aviso.

– “A bom, Alaripe!” – o de lárespondeu.A gente se encostava no frio, escutava o orvalho, omato

cheio de cheiroso, estalinho de estrelas, o deduzir dosgrilos e acavalhada a peso. Dava o raiar, entreluz da aurora,quando o céubranquece. Ao o ar indo ficando cinzento, o formardaqueles

cavaleiros, escorrido, se divisava. E o senhor medesculpe, de

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estar retrasando em tantas minudências. Mas até hojeeu

represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e,o que é,é saudade.

De junto com o Capixum, se aproximou outro um,

também, de sotochefe, que o Hermógenes tratou de sié-Marques.O Hermógenes tinha voz que não era fanhosa nem rouca,

masassim desgovernada desigual, voz que se safava. Assim –fantasiade dizer – o ser de uma irara, com seu cheiro fedorento. –“Aoh,uê, alguém, irmão?” – aquele sié-Marques perguntou,tratando deminha pessoa. – “De paz, mano velho. Amigo que veiomostrar àgente o arrancho...” – o Hermógenes contestou. Deuainda umbarulho de boca e goela, qual um rosno. Sem maisdelongasnenhumas, saí, caminhando ao lado do cavalo doHermógenes,puxando todos para o Cambaubal. Atrás de nós, eu ouviaospassos postos da grande cavalaria, o regular, esseempurrocontinuado. Eu não queria virar e espiar, achassem queeu eraabelhudo. Mas, agora, eles conversavam, alguns riam,diziamgraças. Presumi que estavam muito contentes de ganharorepouso de horas, pois tinham navegado na sela a noitetoda. Umfalou mais alto, aquilo era bonito e sem tino: – “Siruiz,cadê amoça virgem?” Largamos a estrada, no capim molhadomeus pés

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se lavavam. Algum, aquele Siruiz, cantou, palavrasdiversas, para

mim a toada toda estranha:

Urubu é vila alta,

mais idosa dosertão:

 padroeira, minha vida – 

vim de lá, volto mais

não...Vim de lá, volto maisnão?...Corro os dias nessesverdes,meu boi mochobaetão:buriti –água azulada,

carnaúba – sal dochão...Remanso de riolargo,viola da solidão:

quando vou p’ra dar batalha,convido meucoração...

Vinham quebrando as barras. Dia de maio, comorvalho, eudisse. Lembrança da gente éassim.

Me emprestaram um cavalo, e eu fui, com o Alaripe,

esperar a chegada da tropa de burros, adiante, na bocada ponte.Não tardava já vinham aparecendo. Um lote de dez

mulas, comos cargueiros. Mas vinham com os cincerros tapados,tafulhados

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com rama de algodão: afora o geme-geme dascangalhas, não

faziam nenhum rumor. Guiamos os tropeiros tambémpara oCambaubal. Mas, aí, meu padrinho chegou, com JocaRamiro, Ri-cardão, e os Totões. Meu padrinho insistiu, me trouxeoutra vezpara casa. O dia já estava clareando completo. Meucoraçãorestava cheio de coisasmovimentadas.

Não vi mais o acampo deles, as esporas tilintim. Nãopude.Padrinho Selorico Mendes mandou que eu fosse no O-

Cocho,buscar um homem chamado Rozendo Pio, esse homem –meupadrinho me disse – rastreava. E era para ele vir, debaixodetodos os segredos, tapejar o bando de Joca Ramiro porbonstrilhos e atalhos, na Serra das Trinta Voltas, modo decaber emduas noites, sem perigo maior, o que, se não, durasseseis ou sete.Sendo assim, só eu mesmo merecia confiança de ir. Fui,comdesgosto. Três léguas, três léguas e meia longe. Mas eutinha delevar um cavalo adestro, para o homem. E esse RozendoPio eratratantaz e tolo. Demorou muito, com desculpa dearranjos. Nocaminho, na vinda, ele nem sabia de nada, de jagunços,quase nãoconversava, não quis dar demonstração. Nem faziaprazernaquilo. Quando chegamos, era o anoitecido, o bandoestavapronto para sair. Se separavam em pequenos golpes.Meupadrinho tinha mandado amarrar os cachorros todos dafazenda.

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Se foram. Achei mesmo que tudo tinha perdido a graça,o de se

ver.

Semanas seguintes, meu padrinho só falou nos jagunços.Dito que Joca Ramiro era um chefe cursado: muitos

iguais nãonascem assim – dono de glórias! Aquela turma decabras, tivessesorte, podia impor caráter ao Governo. Meu padrinho

levaraaquele dia todo no meio deles. Contava: o cuidado nosarranjos,as coisas todas regradas, aquele dormir de ordem,aquelaautoridade enorme no entremeamento. Nem nadafaltava. Assacas de farinha, tantas e tantas arrobas de carne-de-sol,amunição bem zelada, caixote com pães de sabão paracada umlavar a roupa e o corpo. Até tinham um mestre-ferrador,comsua tendinha e os pertences: uma bigorna e as tenazes,fole demão, ferramenta exata; e capanga de alveitar, comváriossortidos flames de sangrar cavalos adoecidos. E as maiscoisasmeu padrinho descrevia com muito agrado, de que tinhaouvidosincera narração. As lutas dos joca-ramiros, os barulhos,asmanhas traçadas para se ganhar em combate, maço deestóriasde toda raça de artes e estratagemas. De ouvir meupadrinhocontar aquilo, se comprazendo sem singeleza, começavaa darem mim um enjôo. Parecia que ele queria se emprestar asi asfaçanhas dos jagunços, e que Joca Ramiro estava ali

 junto de

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nós, obedecendo mandados, e que a total valentiapertencia a

ele, Selorico Mendes. Meu padrinho era antipático. Ficavamaissendo. Eu achava. Num lugar parado, assim, na roça,carece de agente de vez em quando ir alterando osassuntos.

Não estou caçando desculpa para meus errados,não, o

senhor reflita. O que me agradava era recordar aquela

cantiga,estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada,ah, sim.Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha idéia. Aire,meadoçou tanto, que dei para inventar, de espírito, versosnaquelaqualidade. Fiz muitos, montão. Eu mesmo por mim não

cantava, porque nunca tive entôo de voz, e meus beiçosnão dãopara saber assoviar. Mas reproduzia para as pessoas, etodo omundo admirava, muito recitados repetidos. Agora, tirosuaatenção para um ponto: e ouvindo o senhor concordarácom oque, por mesmo eu não saber, não digo. Pois foi – que eu

escrevi os outros versos, que eu achava, dosverdadeiros assun-tos, meus e meus, todos sentidos por mim, de minhasaudade etristezas. Então? Mas esses, que na ocasião prezei, estãogoros,remidos, em mim bem morreram, não deram cinza. Nãomelembro de nenhum deles, nenhum. O que eu guardo nogiro damemória é aquela madrugada dobrada inteira: oscavaleiros nosombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfimdo

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orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisardos

cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado issotem?Meu padrinho Selorico Mendes me deixava viver na

lordeza. No São Gregório, do razoável de tudo eudispunha,querer querendo. E, de trabalhar seguido, eu nemcarecia.Fizesse ou não fizesse, meu padrinho me apreciava; mas

não melouvava. Uma coisa ele não tolerava, e era só: quealguémindagasse justo quanto era o dinheiro que ele tinha. Comisso eununca somei, não sou especula. Eu vivia com o meu bomcorpo.Alguém há de achar algum regimemelhor?

Mas, um dia – de tanto querer não pensar no

princípiodisso, acabei me esquecendo quem – me disseram quenão era à-toa que minhas feições copiavam retrato de SeloricoMendes.Que ele tinha sido meu pai! Afianço que, no escutar, emroda demim o tonto houve – o mundo todo me desproduzia,numagrande desonra. Pareceu até que, de algum encoberto

 jeito, eudaquilo já sabia. Assim já tinha ouvido de outros, aospeda-cinhos, ditos e indiretas, que eu desouvia. Perguntar aele, fosse?Ah, eu não podia, não. Perguntar a mais pessoanenhuma;chegava. Não desesquentei a cabeça. Ajuntei meus trens,minhasarmas, selei um cavalo, fugi de lá. Fui até na cozinha,conduzium naco de carne, dois punhados de farinha no bornal.Achasse

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algum dinheiro à mão, pegava; disso eu não tinhanenhum

escrúpulo. Virei bem fugido. Toquei direto para oCurralim.Razão por que fiz? Sei ou não sei. De as, eu pensavaclaro,acho que de bês não pensei não. Eu queria o ferver.

Quasemesmo aquilo me engrossava, desarrazoado, feito ovicio dumruim prazer. Eu fazia minha raiva. Raiva bem não era,

isto é: sóuma espécie de despique a dentro, o vexame que meinçava nãome dava rumo para continuação. Único reger era meempinar eassoprar em esta minha cabeça, aí a confusão edesordem e altosdesesperos. Arremessei o cavalo, galopei demais. Não iapara acasa de Nhô Maroto. Ante antes ia para o seo AssisWababa –aquela hora eu queria só gente estranha, muitoestrangeira,estrangeira inteira! Só fosse um pouco para ver aRosa’uarda,essa assim eu amava? Ah, não. Gostasse da Rosa’ uarda,mais aí nas delícias dela minha idéia não podendo se firmar –porqueaumentava o desamparo de minha vergonha. Ia para aescola deMestre Lucas. A lá, perto da casa de Mestre Lucas,morava umsenhor chamado Dodó Meireles, que tinha uma filhachamadaMiosótis. Assim, à parva, às tantices, essa mocinhaMiosótistambém tinha sido minha namorada, agora por muitos

momentos eu achava consolo em que ela me visse – que

soubesse: eu, com minhas armas matadeiras, tinha dadorevolta

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contra meu padrinho, saíra de casa, aos gritos, danadono

animal, pelo cerrado a fora, capaz de capaz! Daí, aMestre Lucaseu tinha de dar uma explicação. Eu não gostava daquela

Miosótis, ela era uma bobinhã, no São Gregório nuncatinhapensado nela; gostava era de Rosa’uarda. Mas NhôMarotohavia de logo saber que eu tivesse chegado no Curralim,e meupadrinho ia ter o pronto aviso. Mandava alguém mebuscar.Vinha, ele. Não me importava. De repente, eu sabia: oque euestava querendo era isso mesmo. Ele viesse, me pedisseparavoltar, me prometendo tudo, ah, até nos meus pés seajoelhava.E não viesse? Se demorasse a vir? Aí, o que era que eu iafazer,caçar meio de vida, aturar remoque sei lá de todos, me

repartirno miudinho de cada dia, tão penoso aborrecido. A bis,então,cresceu minha raiva. Tive outras lágrimas nos bobosolhos.Adramado pensei em minha mãe, com todo querer, eafirmeialto que seria só por conta dela que eu estavaprocedendo peloavesso, gritei. Mas aquilo se fingia mal, espécie de minha

vergonha esteve sendo maior. Como o cavalo, em rogodemisericórdia, escureceu o pêlo de todo suor. Sossegueias espo-ras. Viemos a passo de marcha. Eu tinha medo por causademinha vida, quando entramos noCurralinho.

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Em casa de seo Assis Wababa, me deram tratoregozijante.

No que jantei, ri, conversei. Só a praga duma surpresamedeclararam: a de que a Rosa’uarda agora estava sendonoiva, parase casar com um Salino Cúri, outro turco negociante, nos

derradeiros meses para lá vindo. Assumi, em trela,tristeza e alívio– aquele amor não seria mesmo para mim, pelos motivos

pessoais. Nublo em que me vi, mas me governei: tranceiaspernas, comecei cara de falar pouco, senhor-não, senhor-sim,acautelado sisudo, e indagando dos grandes preços;assim fossemcuidar que essa minha viagem era por tramar importanteencargopara o meu padrinho Selorico Mendes. Seo Assis Wababaoxentese prazia, aquela noite, com o que o Vupes noticiava:

que embreves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam dechegaraté lá, o Curralinho então se destinava ser lugarcomercial detodo valor. Seo Assis Wababa se engordavaconcordando, trouxecanjirão de vinho. Me alembro: eu entrei no que imaginei– nailusãozinha de que para mim também estava tudo assim

resolvido, o progresso moderno: e que eu merepresentava alirico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosseverdade.

Mas estava lá o Vupes, Alemão Vupes, que eu disse– seoEmílio Wusp, que o senhor diz. Das vezes que viera a

passar peloCurralinho, ele já era meu conhecido. Tresdobradohomem.

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Sendo que entendia tudo de manejar com armas, masviajava sem

cano nenhum; dizia: – “Níquites! Desarmado eucompleto, euassim, eles todos mesmo vão muito mais me respeitar,oh, nosertão.” Ele me viu afinar mira, uma vez, e me louvou,por eu, denascença, saber tão bem, na horinha, segurar de nãorespirar.Mesmo dizia: – “Senhor atira bem, porque atira comespírito.Sempre o espírito é que acerta...” Soante que dissesse:sempre oespírito é que mata... Mas, a bem, agora aquela hora,estava lá oVupes, assim foi. Porque, num desastre de instante, eutinhapegado a pensar – o que resolvia minha situação eratrabalharpara ele, se viajar vendendo ferramentas por aí,descaroçador dealgodão. Nem ponderei, mas disse: – “Seo Vupes, o

senhor nãoquererá me ajustar, em seu serviço?” Minhabestice.

“Níquites!” – 

conforme que o Vupes constante exclamava. Ali nemacabei defalar, e em mim eu já estava arrependido, com toda avelocidade.Idéia nova que imaginei: que, mesmo pessoa amiga ecortês,virando patrão da gente, vira mais rude e reprovante.

Mordi boca, já tinha falado. Ainda quis emendar, garantindo que eraporgracejo; mas seo Assis Wababa e o Vupes me olhavam amenos,com desconfianças, me senti rebaixado demais. A contramimtudo contra, o só ensejo das coisas me sisava. Dali logosaí, medespedindo bem. Aonde? Só se fosse ver o Mestre

Lucas. Assimvim andando, mediante desespero. Me alembro, vinhaandando e

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agora era que eu pegava a pensar livre e solto naRosa’uarda,

lindas pernas as lindas grossas, ela no vestido denanzuque,nunca havia de ser para meu regalo. Dum modo senti,como merecordei, depois, tempos, quando foi arte se cantar umacantiga:

Seu pai fosse rico,

tivesse negócio,

eu casava contigo

e o prazer eranosso...Isso, mas totalmente; àsvezes.Ao que, digo ao senhor, pergunto: em sua vida éassim? Naminha, agora é que vejo, as coisas importantes, todas,

em casocurto de acaso foi que se conseguiram – pelo pulo finode semver se dar – a sorte momenteira, por cabelo por um fio,um climde clina de cavalo. Ah, e se não fosse, cada acaso, nãotivessesido, qual é então que teria sido o meu destino seguinte?Coisavã, que não conforma respostas. As vezes essa idéia me

põesusto. Mas, o senhor veja: cheguei em casa do MestreLucas, eleme saudou, tão natural. Achei também tudo o natural, euestavaera cansado. E, quando Mestre Lucas me perguntou seeu vinhaera de passeata, ou de recado da fazenda, expliquei quenão: queeu tinha merecido licença de meu padrinho, para

começar vida

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própria em Curralinho ou adiante, a fito de desenvolvermais

estudos e apuramento só de cidade. Dizendo o quedisse, eumesmo jurava que Mestre Lucas não ia acreditar. Masacreditou,até melhor. Sabe o senhor por quê? Porque, naquele dia,

 justo,ele estava remexido no meio de um assunto, quepreparava odesejo dele para aí me acreditar. Digo: ele me ouviu, edisse: –“Riobaldo, pois você chega em feitaocasião!”

Aí me explicou: um senhor, no Palhão, na fazendaNhanva,altas beiras do Jequitaí, para o ensino de todas as

matérias estavaencomendando um professor. Com urgência, era homemde suasituação, garantia boa paga. Assim queria que MestreLucas fosse,que deixasse alguém dando escola no lugar dele, noCurralim, poruns tempos; isso, claro, não podia. Euqueria ir?

– “O senhor acha que eu posso?” – perguntei; para

principiar qualquer tarefa, quase que eu sozinho nuncativecoragem. – “Ei, pode!” – o Mestre Lucas declarou. Já que

estavaacondicionando numa bruaca os livros todos – geografia,arimética, cartilha e gramática – e borracha, lápis, régua,tinteiro,tudo o que pudesse ter serventia. Aceitei. Umentusiasmo nossome botava brioso. Melhor que era para logo, para oseguinte: doiscamaradas do dito fazendeiro estavam ali no Curralinho,

esperando decisão, agora me levavam. Dona Dindinha,mulher

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de Mestre Lucas, no despedir, me abraçou, me deu umaslágrimas

de bondade: – “Tem tanta gente ruim neste mundo, meufilho...E você assim tão moço, tão bonito...” Aí, nem cheguei averaquela menina Miosótis. A Rosa’uarda, vi, de longesolhares.

Os dois camaradas, em tanto percebi, eramcapangas. Mas

sujeitos de seu trato, sem altos-e-baixos nem as maiores

asperezas, me deram toda consideração. Viajamos juntos quatrodias, quase trinta léguas, bom tempo beirando o Riachãoeenxergando à mão esquerda os vultos da Serrado-Cabral.Meuscompanheiros quase que não me informavam, de nadaou nada. Tinham outras ordens. Mas, mesmo antes da genteentrar em ter-ras do Palhão, fui vendo coisas calculosas, dei meio paraduvidar.Patrulhas de cavaleiros em armas; troco de conversa devigiação;e uma tropa de burros cargueiros, mas no meio dostocadoresvinham três soldados. Mais perto, em maiores me vi.Chegar ládeclamava surpresa. A Nhanva enxameava de gentehomem –pralaprá de feira em praça. E era vistosa fazendaassobradada,com grandes currais e um terreirão. Vi logo odono.

Ele era imediatamente estúrdio, vestido de brim azulecalçando botas amareladas. Era nervoso, magro, um

pouco maispara baixo do que o tamanho mediano, e com braços que

pareciam demais de compridos, de tanto que podiamgesticular.

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Fui indo, ele veio vindo, o grande revólver na cintura; umlenço

no pescoço dele esvoaçava. E aquele cabelo bom,despenteadoalto, topete arrepiadinho. Apressei o passo, e eleesbarrou, comas mãos nas cadeiras. Me olhou frenteante, deu risada –de certonem estava sabendo quem eu era. E gritou, caçoando: –“Mevem com o andar de sapo, mevem...

Ah-oh-ah, o destempo de estar sendo debochado seirou demim. Esbarrei, também. Me fiz mouco. Mas ele veio para

mim,então, saudou, com um modo sensato de simpatia.Adiado eudisse: – “Sou o moço professor...” A alegria dele, meouvindo, foiestupefacta. Me ferrou do braço, com porção de falas eagrados,subiu a escada comigo, me levou para um quarto, ládentro,ligeiro, parecia até que querendo me esconder de todos.Umadoidice, de quê? Ah, mas, ah – esse quem era – ohomem? ZéBebelo. A fixe de fato, tudo nele, para mim, tirava maispara forauma real novidade.

Disse ao senhor? – eu estava pensando que ia darescola

para os filhos dum fazendeiro. Engano. O comum, comZéBebelo, virava diferente adiante, aprazava engano.Estudantesendo ele mesmo. Me avisou. Quis antever os cadernos,livros,pegar com as mãos. Assim ler e escrever, e as quatrocontas, ele

 já soubesse, consumia jornais. Remexeu, tarabuz, e tudofoi

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arrumando na mesa grande do quarto, senhor-jesus-cristo que

assoviava, o cantarolado. Mas – e aí comigo falou sério –naquilo se tinha de sungar segredo: eu visse. – “Vamosconstar éque estou assentando os planos! Você fica sendo meu

secretário.” Nesse mesmo ido dia, a gente começou.Aquelehomem me exercitou tonto, eh, ô, me fino fiz. Ânsiaassim eanfa, e poder de entender demais, nunca achei quemoutro. Oque ele queria era botar na cabeça, duma vez, o que oslivrosdão e não. Ele era a inteligência! Vorava. Corrido,passava delição em lição, e perguntava, reperguntava, parecia teraté raivade eu saber e não ele, despeitos de ainda carecer deaprender,contra-fim. Queimava por noite duas, três velas. Ele

mesmofalava: – “Relógio não vou olhar. Aí estudo, estudo, atéqueestico um cochilão. Cochilão me vem: então espairo olivro, eme deito, que me durmo.” Pela sua vontade dele,simples. Dedia, estávamos debulhando páginas, e de repente selevantavaele, chegava na janela, apitava num apito, ministrava

aquelabrama de ordens: dez, vinte executações duma vez. Opessoalcorria, cumpriam; aquilo semelhava um circo, bom teatro.Mas,com menos de mês, Zé Bebelo se tinha senhoreado deretertudo, sabia muito mais do que eu mesmo soubesse. Aí, aalegriadele ficou demasiadamente. Sobrevinha com o livro, me

fazia dequeima-cara um punhado de perguntas. Ao tanto eudemorava,

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treteava no explicar, errando a esmo, caloteava. Ai-ai-aid’ele

atalhar as minhas palavras, mostrar no livro que euestava falso,corrigir o dito, me dar quinau. Se espocava àsgargalhadas,espalmava mão, expendia outras normas, próprias desua idéia ládele – e sendo feliz de nessas dificuldades me ver, eu )a

ignorante, esmorecido e escabreado. Só aí, digo, foi queeleficou gostando de mim. Certo. Me deu um abraço, megratificouem dinheiro, me fez firmes elogios – “Siô Baldo, já tomeiosaltos de tudo! Mas carece de você não ir s’embora, não,masantes prosseguir sendo o secretário meu... Aponto quevamospor esse Norte, por grandes fatos, que você não se

arrependerá...” – me disse – “... Norte, más bandas.”

Soprou, só;enche que ventava.

Porque ele tinha me estatutado os todos projetos.Comoestava reunindo e pervalendo aquela gente, para sair

pelo Estadoacima, em comando de grande guerra. O fim de tudo,que seria:romper em peito de bando e bando, acabar com eles,liquidarcom os jagunços, até o último, relimpar o mundo da

 jagunçadabraba. – “Somente que eu tiver feito, siô Baldo, estoutodo:entro direito na política!” Antes me confessou essa únicasinaque ambicionava, de muito coração: e era de serdeputado.Pediu segredo, e eu não gostei. Porque eu estavasabendo que

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todos já aventavam aquela toleima, por detrás dele até

antecipavam alcunha:“o Deputado”... Omundo é assim. Mas,mesmo desse jeito, o pessoal todo não regateava a ele amaiordedicação de respeito. Por via de sua macheza. Ah, ZéBebeloera o do duro – sete punhais de sete aços, trouxadosnumabainha só! Atirava e tanto com qualquer quilate de arma,semprecerteira a pontaria, laçava e campeava feito um todovaqueiro,amansava animal de maior brabeza – burro grande oucavalo;duelava de faca, nos espíritos solertes de onça acuada,sem pararde pôr; e medo, ou cada parente de medo, ele cuspia emriba edesconhecia. Contavam: ele entrava de cheio,pessoalmente, ebotava paz em qualquer rutuba. Ô homem couro-n’água,

enfrentador! Dava os urros. E mesmo, para ele, parecianão ternada impossível. Com tanta bobéia assim, desfrutável eescurril,e ai de quem pensasse em poitar olho de chacotas:morriavertiginoso... – “O único homem-jagunço que eu podiaacatar,siô Baldo, já está falecido... Agora, temos de render este

serviço àpátria – tudo é nacional!” Esse que já tinha morrido, queelefalava, era Joãozinho Bem-Bem, das Aroeiras, deredondeantefama. Se dizia, tinha estudado a vida dele, nospormenores, comtanta devoção especial, que até um apelido em si seapôs:

 Zé

Bebelo;causa que, de nome, em verdade, era José Rebelo

AdroAntunes.

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– “Sei seja de se anuir que sempre haja vergonheirade

 jagunços, a sobre-corja? Deixa, que, daqui a uns meses,nestenosso Norte não se vai ver mais um qualquer chefeencomendarpara as eleições as turmas de sacripantes, desentrandoda justiça,só para tudo destruírem, do civilizado e legal!” Assimdizendo, naverdade sentava o dizer, com ira razoável. A gente deviamesmode reprovar os usos de bando em armas invadir cidades,arrasar ocomércio, saquear na sebaça, barrear com estrumeshumanos asparedes da casa do juiz-de-direito, escramuçar opromotoramontado à força numa má égua, de cara para trás, comlataamarrada na cauda, e ainda a cambada dando morras eaí soltando os foguetes! Até não arrombavam pipas de

cachaçadiante de igreja, ou isso de se expor padre sacerdote nuno olhoda rua, e ofender as donzelas e as famílias, gozarsenhorascasadas, por muitos homens, o marido obrigado a ver?Aoquando falava, com fogo que puxava de si, Zé Bebelotinha de seesbarrar, ia até na varanda ou na janela, a apitar o apito,

ditar asboas ordens. Daí, mais renovado, voltava para perto demim,repunha: – “Ah, cujo vou, siô Baldo, vou. Só eu que soucapaz defazer e acontecer. Sendo porque fui eu só que nasci paratanto!”Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo,edeputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando

pontes,baseando fábricas, remediando a saúde de todos,preenchendo a

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pobreza, estreando mil escolas. Começava por aí,durava um

tempo, crescendo voz na fraseação, o muito instruído no jornal.Ia me enjoando. Porque completava sempre amesma coisa.

Mas, minha vida na fazenda, era ruim ou era boa? Se

melhor era. Arre, eu estava feito um inhampas. Aí lordeei. Meacostumei com o fácil movimento, entrei de amizade com

oscapangas. Sempre chegavam pessoas de fora, queconversavamem sozinhos com Zé Bebelo, gente de cidade. De um, eusoubeque era delegado, em missão. E ele me apresentava coma honrade: Professor Riobaldo, secretário sendo. Nas folgasvagas, eu iacom os companheiros, obra de légua dali, no Leva, aonde

estavam arranchadas as mulheres, mais de cinqüenta.Elasvinham vindo, tantas, que, quase todo dia, mais tinhamdebaratear. Não faltava esse bom divertir. Zé Bebeloaprovava: –“Onde é que já se viu homem valer, se não tem à mãoestadasraparigas? Ond’é?” Mesmo cachaça ele fornecia, comregra. –“Melhor, se não eles por si providenceiam, dão logo emabusos,patuléias...” – isto explicava. Demais, de tudo ali sepraziafartura confortável! Abastada comida, armamento deprimeira,monte de munição, roupas e calçados para os melhores.E ocobre para semanal de pagamento, pois nenhumdaqueles

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homens estava ali por amor-de-deus, mas ajeitando seumeio de

viver. Diziam que era dinheiro do cofre do Governo.Parecia.A tal que, enfim, veio o dia de se sair,guerreiramente, porvales e montes, a gente toda. Oi, o alarido! Aos quantos

gritos,um araral, revôo avante de pássaros – o senhor mesmonunca viucoisa assim, só em romance descrito. De glória e avio de

própriasoldadesca, e cavalos que davam até medo de não seachar pastoque chegasse, e o pessoal perto por uns mil.Acompanhado doschefes-de-turma – que ele dava patente de serem seussotenentese oficiais de seu terço – Zé Bebelo, montado numformudo ruço-pombo e com um chapéu distintíssimo na cabeça,repassavadaqui p’r’ali, eguando bem, vistoriava. Me chamou para junto, eutinha de ter à mão um caderno grosso, para por ordemdeleassentar nomes, números e diversos, amanuense. Comeles euestava vindo, então, o senhor vê. Vinha, para conheceressedestino-meu-deus. O que me animou foi ele predizer que,

quando eu mais não quisesse, era só opor um aceno, eele davabaixa e alta de me irm’embora.

Digo que fui, digo que gostei. A passeata forte,prontacomida, bons repousos, companheiragem. O teor da

gente sedistraía bem. Eu avistava as novas estradas, diversidadede terras.Se amanhecia num lugar, se ia à noite noutro, tudo o quepodia

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ser ranço ou discórdia consigo restava para trás. Era oenfim.

Era. – “Mais, mais, há-de dará é para diante, quando seformarcombate!” – uns proseavam. Zé Bebelo querendo. Sabiao quequeria, homem de muita raposice. Já no sair da Nhanva,tinhacomposto seu povo em avulsos – cada grupo, cadarumo. Umpelo São Lamberto, da mão direita; outro pegou o RiachoFundoe o Córrego do Sanhar; outro se separou da gente no Só-Aqui,indo o Ribeirão da Barra; outro tomou sempre à mãoesquerda,encostando ombro no São Francisco; mas nós, quevínhamosmais Zé Bebelo mesmo em capitania, rompemos, nomeio, se-guindo o traço do Córrego Felicidade. Passamos perto deVilaInconfidência, viemos acampar no arraial Pedra-Branca,

beira doÁgua-Branca. E tudo correndo bem. Dum batalhão paraoutro,se expedia gente com ordens e recados. Arrastávamosuma redegrande, peixe grande por pegar. E foi. Eu não vi essacélebrebatalha – eu tinha ficado na Pedra-Branca. Não por medo,não.Mas Zé Bebelo me mandou: – “Tem paciência, você

espera, parareunir os municipais do lugar e fazer discurso, logo queumestafeta vier relatar qual foi nossa primeiravitória...”

Se deu, o que se disse. Só que, em vez de estafeta, agalope,veio Zé Bebelo mesmo. Eu tinha ficado com ruma de

foguetes,para soltar, e foi festa. Zé Bebelo mandou dispor umatábua por

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cima de um canto de cerca, conforme ele ali subiu emuito falou.

Referiu. Para lá do Rio Pacu, no município de Brasília,tinhamvolteado um bando de jagunços – o com o valentão

Hermógenes à testa – e derrotado total. Mais de dezmortos,mais de dez cabras agarrados presos; infelizmente só, foiqueaquele Hermógenes conseguira de fugir. Mas não podia iralonge! Ao que Zé Bebelo elogiou a lei, deu viva aogoverno, paraperto futuro prometeu muita coisa republicana. Depois,enxeriuque eu falasse discurso também. Tive de. – “Você devede citarmais é em meu nome, o que por meu recato não versei.E falarmuito nacional...” – se me se soprou. Cumpri. O que umhomemassim devia de ser deputado – eu disse, encalquei.

Acabei, ele meabraçou. O povo eu acho que apreciava. Daí, quando seestavano depois do almoço, vieram cavaleiros nossos,tangendo o troçode presos. Senti pena daqueles pobres, cansados,azombados,quase todos sujos de sangues secos – se via que nãotinhamesperança nenhuma decente. Iam de leva para a cadeia

deExtrema, e de lá para outras cadeias, de certo, até paraa daCapital. Zé Bebelo, olhando, me olhou, notou moleza. –“Temdó não. São os danados de façanhosos...” Ah, era. Dissoeu sabia.Mas como ia não ter pena? O que demasia na gente é aforça feiado sofrimento, própria, não é a qualidade do

sofrente.

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Pensei que agora podíamos merece maior descanso.Ah,

sim? – “Montar e galopar. Tem mais. Tem...” – Zé Bebelochamou. Tocamos. Conversando, no caminho, euperguntei, nãosei: – “E Joca Ramiro?” Zé Bebelo tiscou de ombros,parece quenão queria falar naquele. Daí me deu um gosto, de menor

maldade, de explicar como era fabuloso o estado de JocaRamiro,como tudo ele sabia e provia, e até que trazia umhomem só parao oficio de ferrador, com a tendinha e as ferramentas, eo tudomais versante aos animais. O que ouvindo, Zé Bebeloesbarrou.– “Ah, é uma idéia que vale, ora veja! Isso a gente temdeconceber também, é o bom exemplo para seaproveitar...” – eleatinou. E eu, que já ia contar mais, do diverso, das

peripécias quemeu padrinho dizia que Joca Ramiro inventava no darbatalha,então eu como me concertei em mim, e calei a boca.Mire veja osenhor tudo o que na vida se estorva, razão depressentimentos.Porque eu estava achando que, se contasse, perfazia atodetraição. Traição, mas por quê? Dei um tunco. A gente não

sabe, agente sabe. Calei a boca toda. Desencurtamos oscavalos.

No entre o Condado e a Lontra, se foi a fogo. Aí, vi,

aprendi. A metade dos nossos, que se apeavam, noavanço,entremeados disfarçantes, suas armas em arte –escamoteadospelas árvores – e de repente ligeiros se jazendo: para orastejo;

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com as cabeças, farejavam; toda a vida! Aqueles sabiambrigar,

desde de nascença? Só avistei isso um instante. Sendoqueseguindo Zé Bebelo, reviramos volta, para o Gameleiras,ondehouve o pior. O que era, era o bando do Ricardão, quequasepróximo, que cercamos. Para acuar, só faltando cães! Edemosinferno. Se travou. Tiro estronda muito, no meio docerrado: sediz que é estampido, que é rimbombo Tive noção de que

morreram bastantes. Vencemos. Não desci de meuanimal. Nemprestei, nem estive, no fim, como o galope se desabriu:os ho-mens perseguindo uns, que com o mesmo Ricardão se

escapavam. Mas mais não se aproveitou, o Ricardão játinha tidofuga. Então os nossos, de jeriza, com os oito prisioneiros

feitosqueriam se concluir. – “Eh, de jeito nenhum, epa! Nãoconsintocovardias de perversidade!” – Zé Bebelo se danou.Apreciei aexcelência dele, no sistema de não se matar. Assim euquis que oar de paz logo revertesse, o alimpado, o povo gritandomenos.Aquele dia tinha sido forte coisa. De longe e sossego eu

careci,demais. Se teve pouco. Arranjado o preciso, só se tomouprazobreve, porque recombinaram por diante os projetos e

desarrancamos para a Terra Fofa, quase na demarcacom o Grão-Mogol. Mas lá não cheguei. Em certo ponto do caminho,euresolvi melhor minha vida.

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Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, megovernou

um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo:de se ir,com tanta maioria e largueza, matando e prendendogente, naconstante brutalidade. Debelei que descuidassem demim, resteiescondido retardado. Vim-me. Isso que, pelo ajustado, eunãocarecia de fazer assim. Podia chegar perto de Zé Bebelo,

desdizer: – “Desanimei, declaro de retornar para oCurralim...”Não podia? Mas, na hora mesma em que eu a decisãotomei, logome deu um enfaro de Zé Bebelo, em trosgas, aconversação.Nem eu não estava para ter confiança nenhuma emninguém. Abem: me fugi, e mais não pensei exato. Só isso. O senhorsabe, sedesprocede: a ação escorregada e aflita, mas sem

sustâncianarrável.

Meu cavalo era bom, eu tinha dinheiro na algibeira,euestava bem armado. Virei, vagaroso. Meu rumo mesmo

era o domais incerto. Viajei, vim, acho que eu não tinha vontadedechegar em nenhuma parte. Com vinte dias deremanchear, e semas trapalhadas maiores, foi que me encostei para o RiodasVelhas, à vista da barra do Córrego Batistério. Dormi comumamulher, que muito me agradou – o marido dela estavafora, naredondeza. Ali não dava maleita. De manhã cedo, amulher medisse: – “Meu pai existe daqui a quarto-de-légua. Vai, látu almoça

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– 186 –

e janta. De noite, se meu marido não tiver voltado, eu techamo,

dando avisos.” Eu falei: – “Você acende uma fogueiranaquelealto, eu enxergo, eu cá venho...” Ela falou: – “Ao que nãoposso,alguém mais avistando havia de poder desconfiar.” Eufalei: –“Assim mesmo, eu quero. Fogueira – uma fogueirinha denada...”Ela falou: – “Quem sabe eu acendo...” A gente sérios,nem sesorrindo. Aí, eu fui.

Mas o pai dessa mulher era um homem finório deesperto,com o jeito de tirar da gente a conversa que ele

constituía. Acasa dele – espaçosa, casa-de-telha e caiada – era nabeira, alionde o rio tem mais troas. Se chamava Manoel Inácio,

Malinácio dito, e geria uns bons pastos, com cavalhadapastando, e os bois. Me deu almoço, me pôs em fala. Euestavaquerendo ser sincero. E notei que ele no falar meencarava e noouvir piscava os olhos; e, quem encara no falar mas piscaosolhos para ouvir, não gosta muito de soldados. Aospoucos,então, contei: que dos zé-bebelos não tinha querido fazerparte;o que era a valente verdade. – “E Joca Ramiro?” – ele me

perguntou. Eu disse, um pouco por me engrandecer e pôr

minha prosa, que já tinha servido Joca Ramiro, e com ele

conversado. Que, mesmo por isso, é que eu não podiaficar comZé Bebelo, porque meu seguimento era por loca Ramiro,em

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coração em devoção. E falei no méu padrinho SeloricoMendes,

e em Aluiz e Alarico Totõe, e de como foi que JocaRamiropernoitou em nossa fazenda do São Gregório. Maiscoisas de-certo eu disse, e aquele homem Malinácio me ouvia, sósefazendo de sossegado. Mas eu percebi que ele nãoestava. Deu

 jeito de aconselhar que eu fosse embora. Que alimiasmavabraba maleita. Não acertei. Eu queria esperar, para verse afogueira por minha sorte se acendia, eu tinha gostadomuito dafilha dele casada. Por um instante, o sabido do homemse tardouno que fazer. Mas, eu, requerendo um lugar para armarminharede na sombra, e descansar – eu disse que não andavabem desaúde, – isso pareceu ser de seu agrado. Me levou para

umquarto, onde tinha um jirau com enxergão, me botou lá àIavontade, fechou a porta. Ferrei; abraçado com minhasarmas.

Acordei só no aquele Malinácio me chamando para jantar.Cheguei na sala, e dei com outros três homens. Disseram

de sique tropeiros eram, e estavam assim vestidos eparecidos. Mas oMalinácio começou a glosar e reproduzir minha conversatidacom ele – disso desgostei, segredos frescos contados nãosãopara todos. E o arrieiro dono da tropa – que era o de cara

redonda e pra clara – me fez muita interrogação. Nãoestive emboas cócoras. Construí de desconfiar. Não do fato d’eletal

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encarecer – pois todo tropeiro sempre muito pergunta ;mas do

 jeito como os outros dois ajudavam aquele a me ver, detudoperseverado tomando conta. Ele queria saber para ondeeumesmo me ia além. Queria saber por que, se eu puniapor locaRamiro, e estava em armas, por que então eu não tinhacaçado

 jeito de trotar para o Norte, a fito de com o pessoalramiros me juntar? Quem desconfia, fica sábio: dizendo como pude,muitoconfirmei; mas confirmei acrescentando que chegara atéali pordar volta cautelosa, e mesmo para sobre ter a calma deresolveros projetos em meu espírito. Ah, mas ah! – enquanto quemeouviam, mais um homem, tropeiro também, vinhaentrando, nasoleira da porta. Agüentei aquele nos meus olhos, e

recebi umestremecer, em susto desfechado. Mas era um susto decoraçãoalto, parecia a maior alegria.

Soflagrante, conheci. O moço, tão variado e vistoso,era,pois sabe o senhor quem, mas quem, mesmo? Era o

Menino! OMenino, senhor sim, aquele do porto do de-Janeiro,daquilo quelhe contei, o que atavessou o rio comigo, numa bambacanoa,toda a vida. E ele se chegou, eu do banco me levantei.Os olhosverdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas

pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho.

Arvoamento desses, a gente estatela e não entende; quedirá o

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senhor, eu contando só assim? Eu queria ir para ele, para

abraço, mas minhas coragens não deram. Porque elefaltou como passo, num rejeito, de acanhamento. Mas mereconheceu,visual. Os olhos nossos donos de nós dois. Sei que devede tersido um estabelecimento forte, porque as outras pessoaso novonotaram – isso no estado de tudo percebi. O Menino medeu amão: e o que mão a mão diz é o curto; às vezes pode sero maisadivinhado e conteúdo; isto também. E ele como sorriu.Digoao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se

chamava o Reinaldo.

Para que referir tudo no narrar, por menos e menor?

Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum,sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que selê.Mesmo o que estou contando, depois é que eu pudereunirrelembrado e verdadeiramente entendido – porque,enquantocoisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo apróprioé: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põediante.– “Essas são as horas da gente. As outras, de todotempo, são ashoras de todos” – me explicou o compadre meuQuelemém.Que fosse como sendo o trivial do viver feito uma água,dentrodela se esteja, e que tudo ajunta e amortece – só raravez seconsegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre:

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peixinho pediu. Por quê? Diz-que-direi ao senhor o quenem

tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor aalguém, noramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito,a gentequer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando;mas,quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama

inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facearcom assurpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.Muitofalo, sei; caceteio. Mas porém é preciso. Pois então.Então, osenhor me responda: o amor assim pode vir do demo?Poderá?!Pode vir de um-que-não-existe? Mas o senhor caladoconvenha.Peço não ter resposta; que, se não, minha confusãoaumenta.Sabe, uma vez: no Tamanduá-tão, no barulho da guerra,

eu ven-cendo, aí estremeci num relance claro de medo – medosó demim, que eu mais não me reconhecia. Eu era alto, maiordo queeu mesmo; e, de mim mesmo eu rindo, gargalhadasdava. Queeu de repente me perguntei, para não me responder: –“Você éo rei-dos-homens?...” Falei e ri. Rinchei, feito um cavalão

bravo.Desfechei. Ventava em todas as árvores. Mas meusolhos viamsó o alto tremer da poeira. E mais não digo; chus! Nem ose-nhor, nem eu, ninguém não sabe.

Conto.Reinaldo – ele se chamava. Era o Menino doPorto,

 já expliquei. E desde que ele apareceu, moço e igual, noportal

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da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, irme

separar da companhia dele, por lei nenhuma; podia? Oqueentendi em mim: direito como se, no reencontrandoaquela horaaquele Menino-Moço, eu tivesse acertado de encontrar,para otodo sempre, as regências de uma alguma a minhafamília. Sesem peso e sem paz, sei, sim. Mas, assim como sendo, oamorpodia vir mandado do Dê? Desminto. Ah – e Otacília?Otacília,o senhor verá, quando eu lhe contar – ela eu conheci em

conjuntos suaves, tudo dado e clareado, suspendendo, sediz:quando os anjos e o vôo em volta, quase, quase. AFazendaSanta Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda.Otacília,estilo dela, era toda exata, criatura de belezas. Depois

lhe conto;tudo tem o tempo. Mas o mal de mim, doendo e vindo, éque eutive de compesar, numa mão e noutra, amor com amor.Sepode? Vem horas, digo: se um aquele amor veio deDeus, comoveio, então – o outro?... Todo tormento. Comigo, ascoisas nãotêm hoje e anfontem amanhã: é sempre. Tormentos. Sei

quetenho culpas em aberto. Mas quando foi que minha culpa

começou? O senhor por ora mal me entende, se é queno fimme entenderá. Mas a vida não é entendível. Digo: aforaessesdois – e aquela mocinha Nhorinhá, da Aroeirinha, filha deAnaDuzuza – eu nunca supri outro amor, nenhum. E

Nhorinhá eudeamei no passado, com um retardo custoso. Nopassado, eu,

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digo e sei, sou assim: relembrando minha vida para trás,eu

gosto de todos, só curtindo desprezo e desgosto é porminhamesma antiga pessoa. Medeiro Vaz, antes de sair pelosGeraiscom mão de justiça, botou fogo em sua casa, nem dascinzascarecia a possessão. Casas, por ordem minha aosbradados, euincendiei: eu ficava escutando – o barulho de coisasrompendo ecaindo, e estralando surdo, desamparadas, lá dentro.Sertão!

Logo que o Reinaldo me conheceu e me saudou, nãotivemais dificuldade em dar certeza aos outros de minha

situação.Ao quase sem sobejar palavras, ele afiançou o meuvalimento,para aquele mestre de cara redonda e bom parecer, quepassavapor arrieiro da tropa e se chamava Titão Passos. De fato,tropeiros não eram, eu soube, mas pessoal brigal de Joca

Ramiro. E a tropa? Essa, que se estava para seguirporquantopra o Norte, com os três lotes de bons animais, era paralevarmunição. Nem tiveram mais prevenimento de esconderisso demim. Aquele Malinácio era o guardador: com asmunições bemencobertadas. Defronte da casa dele, mesmo, e paracima e parabaixo, o rio possuía as croas de areia – cada qual com seunome,que os remadores do das-Velhas botavam, e que todostantoconheciam. Três croas e uma ilha. Mas uma delas três,maior,também sendo meio ilha: isto é, ilha de terra, na parte debaixo,

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com grandes pedras e árvores, e suja de matinho, capim,o

alecrim viçoso remolhando suas folhagens nágua e obunda-de-negro verde vivente; e croa, só de areia, na parte decima. Umacroa-com-ilha, que é conforme se diz. A Croa-comIlha do

Malinácio, dita. A lá, que aonde estava o oculto, a genteia emcanoa, baldear a munição. Os outros companheiros,afetados detropeiros, sendo ó Triol e João Vaqueiro, e mais Acrísio e

Assunção, de sentinelas, e Vove, Jenolim e Admeto, que

acabavam de enquerir a carga na mulada. A gente, jantou-se, jáse estava de saída, para toda viagem. Eu iacom eles.

Pois fomos, Nem tive pesar nenhum de não esperar osinal

da fogueira da mulher casada, filha do Malínácio. E elaerabonita, sacudida. Mulher assim de ser: que nem braçadade cana– da bica para os cochos, dos cochos para os tachos.Menospensei. A andada de noite principiava como sobrealgodão –produzida cuidadosa. Aquilo era munição de contos econtos deréis, a gente prezava grandes responsabilidades. Sevinha sembeiradear, mas sabendo o rio. Titão Passoscomandava.

De seguir assim, sem a dura decisão, feito cachorromagroque espera viajantes em ponto de rancho, o senhor

quem sabevá achar que eu seja homem sem caráter. Eu mesmopensei.Conheci que estava chocho, dado no mundo, vazio deum meu

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dever honesto. Tudo, naquele tempo, e de cada bandaque eu

fosse, eram pessoas matando e morrendo, vivendo numafúriafirme, numa certeza, e eu não pertencia a razãonenhuma, nãoguardava fé e nem fazia parte. Abalado desse tanto,transtorneium imaginar. Só não quis arrependimento: porque aquilo

sempre era começo, e descoroçoamento era modo-de-matériaque eu já tinha aprendido a protelar. Mas o Reinaldovinhacomigo, no mesmo lote, e não caçava minha companhia,não sechegou para perto de mim, nem vez, não dava sinal deprosse-guir amizade. A gente descarecia de cuidar dos burros,um porum, enfileirados naquela paciência, na escuridão da noiteelestudo enxergavam. Se eu não tivesse passado por um

lugar, umamulher, a combinação daquela mulher acender afogueira, eununca mais, nesta vida, tinha topado com o Menino? –era o queeu pensava. Veja o senhor: eu puxava essa idéia; e comela emvez de me alegre ficar, por ter tido tanta sorte, eu sofriao meu.Sorte? O que Deus sabe, Deus sabe. Eu vi a neblina

encher ovulto do rio, e se estralar da outra banda a barra damadrugada.Assaz as seriemas para trás cantaram. Ao que,esbarramos numsitiozinho, se avistou um preto, o preto já levantado paraotrabalho, descampando mato. O preto era nosso; fizemos

paragem.

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Dali, rezei minha ave-mariazinha de de-manhã,enquanto

se desalbardava e amilhava. Outros escovavam os burrosemulas, ou a cangalhada iam arrumando, a carga toda sepôderesguardar – quase que ocupou inteira a casinha dopreto.O qualera tão pobre desprevenido, tivemos até de dar comida aele e àmulher, e seus filhinhos deles, quantidade. E notícianenhuma,de nada, não se achava. A gente ia ao menos dormir odia; mastrês tinham de sobreficar, de vigias. O Reinaldo sedizendo serum deles, eu tive coragem de oferecer também queficava; nãotinha sono, tudo em mim era nervosía. O rio, objetoassim agente observou, com uma croa de areia amarela, e umapraialarga: manhãzando, ali estava re-cheio em instância de

pássaros.O Reinaldo mesmo chamou minha atenção. O comum:essasgarças, enfileirantes, de toda brancura; o jaburu; o pato-verde, opato-preto, topetudo; marrequinhos dançantes; martim-

pescador; mergulhão; e até uns urubus, com aqueletriste pretoque mancha. Mas, melhor de todos – conforme o

Reinaldodisse-o que é o passarim mais bonito e engraçadinho derio-abaixo e rio-acima: o que se chama omanuelzinhoda-croa.

Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer dese pararapreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles

pássaros,em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação.Aquilo era

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para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldogostava: – “É

formoso próprio...” – ele me ensinou. Do outro lado, tinhavargem e lagoas. P’ra e p’ra, os bandos de patos secruzavam. –“Vigia como são esses...” Eu olhava e me sossegavamais. O soldava dentro do rio, as ilhas estando claras. – “É aquele lá:

lindo!” Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal,indo porcima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas,esteiadas muitoatrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulososcatandosuas coisinhas para comer alimentação. Machozinho efêmea –às vezes davam beijos de biquinquim – a galinholagemdeles. –“É preciso olhar para esses com um todo carinho...” – o

Reinaldo disse. Era. Mas o dito, assim, botava surpresa. E

amacieza da voz, o bem-querer sem propósito, ocaprichado ser– e tudo num homem-d’armas, brabo bem jagunço – eunãoentendia! Dum outro, que eu ouvisse, eu pensava:frouxo, estáaqui um que empulha e não culha. Mas, do Reinaldo,não. Oque houve, foi um contente meu maior, de escutar

aquelaspalavras. Achando que eu podia gostar mais dele.Sempre melembro. De todos, o pássaro mais bonito gentil que existeémesmo o Manuelzinho-da-croa.

Depois, conversamos de coisas miúdas sem valoralheio, e

eu tive uma influência para contar artes de minha vida,falar a

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esmo leve, me abrir em amáveis, bom. Tudo mecomprazia por

diante, eu não necessitava de prolongares. –“Riobaldo...Reinaldo...” – de repente ele deixou isto em dizer: – “... Dão

par,os nomes de nós dois...” A de dar, palavras essas que se

repartiram: para mim, pincho no em que já estava, dealegria;para ele, um vice-versa de tristeza. Que por quê? Assimeu aindanão sabia. O Reinaldo pitava muito; não acerto comopodiaconservar os dentes tão asseados; tão brancos. Ao emtanto que,também, de pitar se carecia: porque volta-emeiaabespinhavam agente os mosquitinhos chupadores, donos da vazante,unsmosquitinhos dançadinhos, tantos de se despertar. Eu fui

contando minha existência. Não escondi nada não.

Relatei comotinha acompanhado Zé Bebelo, o foguetório que soltei eodiscurso falado, na Pedra-Branca, o combate dado nabeira doGameleiras, os pobres presos passando, com as camisase ascaras sujadas de secos sangues. – “Riobaldo, você évalente...Você é um homem pelo homem...” – ele no fim falou.

Sopeseimeu coração, povoado enchido, se diz; me cri capaz dealtos,para toda seriedade certa proporcionado. E, aí desdeaquelahora, conheci que, o Reinaldo, qualquer coisa que elefalasse,para mim virava sete vezes.

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Desculpa me dê o senhor, sei que estou falandodemais,

dos lados. Resvalo. Assim é que a velhice faz. Também, oque éque vale e o que é que não vale? Tudo. Mire veja: sabepor que éque eu não purgo remorso? Acho que o que não deixa éa minhaboa memória. A luzinha dos santos-arrependidos seacende é noescuro. Mas, eu, lembro de tudo. Teve grandes ocasiõesem queeu não podia proceder mal, ainda que quisesse. Por quê?Deusvem, guia a gente por uma légua, depois larga. Então,tudo restapior do que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo,

ninguém pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto.Contopara mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me

entender, me espere.

Aí nesse mesmo meio-dia, rendidos na vigiação, o

Reinaldo e eu não estávamos com sono, ele foi buscarumacapanga bonita que tinha, com lavores e trêsbotóezinhos deabotoar. O que nela guardava era tesoura, tesourinha,pente,espelho, sabão verde, pincel e navalha. Dependurou oespelhonum galho de marmelo-do-mato, acertou seu cabelo, que

 jáestava cortado baixo. Depois quis cortar o meu. Meemprestou anavalha, mandou eu fazer a barba, que estava bemgrandeúda.Acontecendo tudo com risadas e ditos amigos – comoquandocom seu arreleque por-escuro uma nhaúma devoou, ouquando

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– 199 –

eu pulei para apanhar um raminho de flores e quase caí 

comprido no chão, ou quando ouvimos um him de mula,queperto pastava. De estar folgando assim, e com o cabelodecidadão, e a cara raspada lisa, era uma felicidadezinhaque euprincipiava. Desde esse dia, por animação, nunca deixeidecuidar de meu estar. O Reinaldo mesmo, no mais tempo,

comprou de alguém uma outra navalha e pincel, me deu,

naquela dita capanga. Às vezes, eu tinha vergonha deque mevissem com peça bordada e historienta; mas guardeiaquilo commuita estima. E o Reinaldo, doutras viagens, me deuoutrospresentes: camisa de riscado fino, lenço e par de meia,essascoisas todas. Seja, o senhor vê: até hoje sou homem

tratado.Pessoa limpa, pensa limpo. Euacho.

Depois, o Reinaldo disse: eu fosse lavar corpo, norio. Elenão ia. Só, por acostumação, ele tomava banho era

sozinho noescuro, me disse, no sinal da madrugada. Sempre eusabia de talcrendice, como alguns procediam assim esquisito – os

caborjudos, sujeitos de corpo-fechado. No que eraverdade. Nãome espantei. Somente o senhor tenha: tanto sacrifício,des-conforto de esbarrar nos garranchos, às tatas na ceguezda noite,não se diferenciando um ai dum ei, e pelos barrancos,lajesescorregadas e lama atolante, mais o receio de aranhas

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– 200 –

caranguejeiras e de cobras! Não, eu não. Mas o Reinaldome

instruiu aquilo, e me deixou na beira da praia, alegriasdo ar emmeu pensamento. Cheguei a encarar a água, o Rio dasVelhaspassando seu muito, um rio é sempre sem antiguidade.Chegueia tirar a roupa. Mas então notei que estava contentedemais delavar meu corpo porque o Reinaldo mandasse, e era umprazerfofo e perturbado. “Agançagem!” – eu pensei. Destapeiraivas. Tornei a me vestir, e voltei para a casa do preto; devia deserhora de se comer a janta e arriar a tropa para asestradas. Agorao que eu queria era ímpeto de se viajar às altas e irmuito longe. Aponto que nem queria avistar oReinaldo.

Estou contando ao senhor, que carece de umexplicado.Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. Agente vive, euacho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. Asenvergonhicereina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeironão secrê no sincero sem maldade. Está certo, sei. Mas ponhominhafiança: homem muito homem que fui, e homem pormulheres! –nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados.Repilo oque, o sem preceito. Então – o senhor me perguntará – oque eraaquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro oque,durando todo tempo, sempre mais, às vezes menos,comigo sepassou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava emadiação

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– 201 –

nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, diamais dia,

mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feitocoisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Eraelefechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego.Era eleestar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo nãoentendiaentão o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eumesmoentender não queria. Acho que. Aquela meiguice,desigual que elesabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontadede chegartodo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro docorpo dele,dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente –tentaçãodessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitosmomentos.Conforme, por exemplo, quando eu me lembrava

daquelas mãos,do jeito como se encostavam em meu rosto, quando elecortoumeu cabelo. Sempre. Do demo: digo? Com queentendimento euentendia, com que olhos era que eu olhava? Eu conto. Osenhorvá ouvindo. Outras artes vieramdepois.

Assim mesmo, naquele estado exaltado em queandei,

concebi fundamento para um conselho: na jornada pordiante, agente tinha de deixar duma bando o rio, ir passar aSerra-da-Onça e entestar com a travessia do Jequitaí, por ondepodia tertropa de soldados; mais ajuizado não seria se enviar sóum, até lá,espiar o que se desse e colher outrasinformações?

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– 202 –

 Titão Passos era homem ponderado em simples,achou boa

a minha razão. Todos acharam. Aquela munição era deidaurgente, mas também valia mais que ouro, que sangue,se careciade todo cuidado. Fui louvado e dito valedor, certo nasidéias. Aosenhor confesso, desmedi satisfação, no ouvir aquilo –que aassoprada na vaidade é a alegria que dá chama maisdepressa emais a ar. Mas logo me reduzi, atinando que minhaopinião era sópelo desejo encoberto de que a gente pudesse ficar maistempoali, naquele lugar que me concedia tantos regalos. Assimum rôode remorso: tantos perigos ameaçando, e a vida tãoséria emcima, e eu mexendo e virando por via de pequenosprazeres.Sempre fui assim, descabido, desamarrado. Mas meu

querersurtiu efeito, novas ordens. Para assuntar e ver com ver,o

 Jenolim saiu em rumo do Jequitaí, de sua Lagoa-Grande;e, coma mesma tenção, rebuçado viajou o Acrísio, até Porteirase oPontal da Barra, com todos os ouvidos bem abertos. Enósficamos esperando a volta deles, cinco dias lá, com

granderegozijo e repouso, na casa do preto Pedro Segundo deRezende,que era posteiro em terras da Fazenda São Joãozinho, deumcoronel Juca Sá. Até hoje, não me arrependo retratando?Os diasque passamos ali foram diferentes do resto de minhavida. Emhoras, andávamos pelos matos, vendo o fim do sol nas

palmasdos tantos coqueiros macaúbas, e caçando, cortandopalmito e

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– 203 –

tirando mel da abelha-depoucas-flores, que arma suacera cor-de-

rosa. Tinha a quantidade de pássaros felizes, pousadosnas croase nas ilhas. E até peixe do rio se pescou. Nunca mais, atéoderradeiro final, nunca mais eu vi o Reinaldo tão sereno,tãoalegre. E foi ele mesmo, no cabo de três dias, quem me

perguntou: – “Riobaldo, nós somos amigos, de destinofiel,amigos?” – “Reinaldo, pois eu morro e vivo sendo amigoseu!” –eu respondi. Os afetos. Doçura do olhar dele metransformoupara os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi ascores domundo. Como no tempo em que tudo era falante, ai, sei.Demanhã, o rio alto branco, de neblim; e o ouricuri retorceaspalmas. Só um bom tocado de viola é que podia remir a

vivez detudo aquilo.

Dos outros, companheiros conosco, deixo de dizer.

Desmexi deles. Bons homens no trivial, cacundeirossimplóriosdesse Norte pobre, uns assim. Não por orgulho meu, masantespor me faltar o raso de paciência, acho que sempredesgostei decriaturas que com pouco e fácil se contentam. Sou deste

 jeito.Mas Titão Passos, digo, apreciei; porque o que salvava afeiçãodele era ter o coração nascido grande, cabedor degrandesamizades. Ele achava o Norte natural. Quando que

conversamos, perguntei a ele se Joca Ramiro era homembom.

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– 204 –

 Titão Passos regulou um espanto: uma pergunta dessadecerto

que nunca esperou de ninguém. Acho que nem nuncapensouque Joca Ramiro pudesse ser bom ou ruim: ele era oamigo de Joca Ramiro, e isso bastava. Mas o preto de-Rezende,que estavaperto, foi quem disse, risonho bobeento: – “Bom? Um

messias!...” O senhor sabe: preto, quando é dos queencaram defrente, é a gente que existe que sabe ser maisagradecida. Aoque, em tanto, no ouvir falar de Joca Ramiro, o Reinaldoseaproximou. Parecia que ele não gostava de me ver emcompridaconversa amiga com os outros, ficava quasezinhoamuado. Como tempo dos dias, fui conhecendo também que ele nãoerasempre tranqüilo igual, feito antes eu tinha pensado. Ah,

elegostava de mandar, primeiro mandava suave, depois,visto quenão fosse obedecido, com as sete-pedras. Aquela forçadeopinião dele mais me prazia? Aposto que não. Mas eucon-cordava, quem sabe por essa moleza, que às vezes agente tem,sem tal nem razão, moleza no diário, coisa que até me

parece serparente da preguiça. E ele, o Reinaldo, era tão galhardogarboso,tão governandor, assim no sistema pelintra, quepreenchia emmim uma vaidade, de ter me escolhido para seu amigotodo leal. Talvez também seja. Anta entra n’água, se rupeia. Mas,não. Eranão. Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando

eufechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar demeu nariz e

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do sonho de minhas noites. O senhor entenderá, agoraainda não

me entende. E o mais, que eu estava criticando, era mea mimcontando logro – jigajogas.

– “Você vai conhecer em breve Joca Ramiro,Riobaldo...”– o Reinaldo veio dizendo. – “Vai ver que ele é o homem

queexiste mais valente!” Me olhou, com aqueles olhos

quando doces.E perfez: – “Não sabe que quem é mesmo inteiradovalente, nocoração, esse também não pode deixar de ser bom?!”Isto elefalou. Guardei. Pensei. Repensei. Para mim, o indicadodito, nãoera sempre completa verdade. Minha vida. Não podiaser. Maiseu pensando nisso, uma hora, outra hora. Perguntei aocompadremeu Quelemém. – “Do que o valor dessas palavras temdentro”– ele me respondeu – “não pode haver verdade maior...”

Compadre meu Quelemém está certo sempre. Repenso.E osenhor no fim vai ver que a verdade referida serve paraaumentarmeu pejo de tribulação.

Fim do bom logo vem, mas. O Acrísio retornou:pasmaceira na barra do rio, a nenhuma novidade.Retornou o Jenolim: o Jequitaí estava passável. E saímos simples comatropa, sem menos dessossego nem mais receio, serrapara cima,pelos caminhos tencionados. Daí, hora grave me veio,com três

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léguas de marcha. Mazelas de mais pesares. E dondemenos temi,

no pior me vi. Titão Passos começou a meperguntar. Titão Passos era homem liso bom; me fazia asperguntascom natureza tão honrosa, que eu não tinha ânimo de

mentir,nem de me caber calado. Nem podia. De lá mais adiante,

atravessando o Jequitaí, tudo ia se abrir a ser para nós

todoscampo de fogo e aos perigos de mortes. As turmas decavaleirosde Zé Bebelo campeavam naquele país, caçando gente,sopitan-do, vigiando. Do povo morador, não faltava quem,desconfiandode nós, mandasse a eles envio de denúncia, pois todosqueriamaproveitar a ocasião para se acabar com os jagunços,parasempre. – “Morrer, morrer, a gente sem luxo se cede...” –oReinaldo disse. – “... Mas a munição tem de chegar empoder deloca Ramiro!” Eu podia pensar tranqüilo na minha mortepor ali?Podia pensar no Reinaldo morrendo? E o que TitãoPassosqueria saber era tudo que eu soubesse, a respeito de ZéBebelo,das malasartes que ele usava em guerra, de seusaprovadoscostumes, suas forças e armamentos. Tudo o que eufalasse,podia ajudar. O saber de uns, a morte de outros. Paramelhorpensar, fui mal-respondendo, me calando, falando o queeravasto. Como eu ia depor? Podia? Tudo o que eu mesmoquisesse.Mas, traição, não.

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Não. Nem era por retente de dever, por lei honesta

nenhuma, ou floreado de noção. Mas eu não podia. Tudodentro de mim não podia. Dou vendido em pecasriquezas oque eu cansei naquela hora, minhas caras deviam deestarpegando fogo. Que se eu contasse, não contasse, essasânsias.Eu não podia, como um bicho não pode deixar de comeraavistada comida, como uma bicha-fêmea não pode fugir

deixando suas criazinhas em frente da morte. Eu devia?Nãodevia? Vi vago o adiante da noite, com sombras mais

apresentadas. Eu, quem é que eu era? De que lado euera? ZéBebelo ou Joca Ramiro? Titão Passos... o Reinaldo... De

ninguém eu era. Eu era de mim. Eu, Riobaldo. Eu não

queriaquerer contar.

Falei e refalei inútil, consoante; e quer ver que TitãoPassosaceitava aquilo assim? Me acreditava. Lembrei que ainda

tinha,guardada estreito comigo, aquela lista, de nomes ecoisas, de ZéBebelo, num caderno. Alguma valia aquilo tinha? Não sei,sabianão. Andando, peguei, oculto, rasguei em pedacinhos,taqueitudo no arrojo dum riacho. Aquelas águas me lavavam.E, detudo que a respeito do resto eu sabia, cacei em mim umesforçode me completo me esquecer. Depois, Titão Passos disse:–“Você pode ser de muita ajuda. Se a gente topar com a

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zebelância, você entra de bico – fala que é um deles, queesta

tropa você está levando...” Com isso, me conformei. Aospoucos,mesmo compunha uma alegria, de ser capaz de auxiliar epôrefeito, como o justo companheiro. A que, no bando delocaRamiro, eu havia de prestar toda a minha diligência ecoragem. Enem fazia mal que eu não relatasse a respeito de ZéBebelo mais,porquanto o prejuízo que disso se tivesse, por ele eutambémpadecia e pagava. No caso, em vista de que agora euestavatambém sendo um ramiro, fazia parte. De pensar isso, eu

desfrutei um orgulho de alegria de glória. Mas ela duroucurta.Oi, barros de água do Jequitaí, que passaram diante deminhafraqueza.

Foi que Titão Passos, pensando mais, me disse: –“Tudo

temos de ter cautela... Se eles já souberam notícia deque vocêfugiu, e te encontram, são sujeitos para quererem logo tematarimediato, por culpas de desertor...” Ouvi retardado, nãopude darresposta. Me amargou no cabo da língua. Medo. Medoquemaneia. Em esquina que me veio. Bananeira dá emvento de todolado. Homem? É coisa que treme. O cavalo ia melevando semdata. Burros e mulas do lote de tropa, eu tinha invejadeles... Temdiversas invenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Piorde todasé essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já

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principia com um grande cansaço. Em minhas fontes,cocei o

aviso de que um suor meu se esfriava. Medo do que podehaversempre e ainda não há. O senhor me entende: costas domundo.Em tanto, eu devia de pensar tantas coisas – que derepentepodia cursar por ali gente zebebela armada, mepegavam: por al,por mal, eu estava soflagrante encostado, rendido, semsalves,atirado para morrer com o chão na mão. Devia de melembrar deoutros apertos, e dar relembro do que eu sabia, de ódiosdaqueleshomens querentes de ver sangues e carnes, dasmaldades delescapazes, demorando vingança com toda judiação. Nãopude, nãopensava demarcado. Medo não deixava. Eu estando comumvapor na cabeça, o miolo volteado. Mudei meu coração

de posto.E a viagem em nossa noite seguia. Purguei a passagemdo medo:grande vão eu atravessava.

A tristeza. Aí, o Reinaldo, na paragem, veio paraperto demim. Por causa da minha tristeza, sei que de mim ele

maisgostava. Sempre que estou entristecido, é que os outrosgostammais de mim, de minha companhia. Por quê? Nunca faloqueixa,de nada. Minha tristeza é uma volta em medida; masminhaalegria é forte demais. Eu atravessava no meio datristeza, oReinaldo veio. Ele bem-me-quis, aconselhou brincando: –

“Riobaldo, puxa as orelhas do teu jumento...” Masamuado eu

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não estava. Respondi somente: – “Amigo...” – e nãodisse nem

mais. Com toda minha cordura. Mas, de feito, eu careciadesozinho ficar. Nem a pessoa especial do Reinaldo não me

ajudava. Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, semprenasestreitas horas – isso procuro. O Reinaldo comigo par apar, e atristeza do medo me eivava de a ele não dar valor.Homem comoeu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queriamesmoalgum desespero.

Desespero quieto às vezes é o melhor remédio quehá. Que

alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra agente é peloenraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei emmim ogole de um pensamento – estralo de ouro: pedrinha deouro. Econheci o que é socorro.

Com o senhor me ouvindo, eu deponho. Conto. Mas

primeiro tenho de relatar um importante ensino querecebi docompadre meu Quelemém. E o senhor depois verá que

naquelaminha noite eu estava adivinhando coisas, grandesidéias.

Compadre meu Quelemém, muitos anos depois, me

ensinou que todo desejo a gente realizar alcança – setiver ânimopara cumprir, sete dias seguidos, a energia e paciênciaforte de sófazer o que dá desgosto, nojo, gastura e cansaço, e de

rejeitar

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toda qualidade de prazer. Diz ele; eu creio. Mas ensinouque,

maior e melhor, ainda, é, no fim, se rejeitar até mesmoaqueledesejo principal que serviu para animar a gente napenitência deglória. E dar tudo a Deus, que de repente vem, comnovas coisasmais altas, e paga e repaga, os juros dele não obedecemmedidanenhuma. Isso é do compadre meu Quelemém. Espéciede reza?

Bem, rezar, aquela noite, eu não conseguia. Nissonempensei. Até para a gente se lembrar de Deus, carece de

se teralgum costume. Mas foi aquele grão de idéia que meacuculou,me argumentou todo. Ideiazinha. Só um começo. Aos

pouquinhos, é que a gente abre os olhos; achei, de permim. Efoi: que, no dia que amanhecia, eu não ia pitar, por fortequefosse o vício de minha vontade. E não ia dormir, nemdescansarsentado nem deitado. E não ia caçar a companhia doReinaldo,nem conversa, o que de tudo mais prezava. Resolviaquilo, e mealegrei. O medo se largava de meus peitos, de minhaspernas. Omedo já amolecia as unhas. Íamos chegando numatapera, nasLagoas do Córrego Mucambo. Lá nós tínhamos pastosbons. Oque resolvi, cumpri. Fiz.

Ah, aquele dia me carregou, abreviei o poder deoutrasaragens. Cabeça alta – digo. Esta vida está cheia de

ocultoscaminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, nãome

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entenderá. Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou.O que

há, que se diz e se faz – que qualquer um vira brabocorajoso, sepuder comer cru o coração de uma onça-pintada. É, mas,aonça, a pessoa mesma é quem carece de matar; masmatar à mãocurta, a ponta de faca! Pois, então, por aí se vê, eu já vi:umsujeito medroso, que tem muito medo natural de onça,mas quetanto quer se transformar em jagunço valentão – e essehomemafia sua faca, e vai em soroca, capaz que mate a onça,com muitainimizade; o coração come, se enche das coragensterríveis! Osenhor não é bom entendedor? Conto. De não pitar, mevinhamuns rangidos repentes, feito eu tivesse ira de todo omundo.Agüentei. Sobejante saí caminhando, com firmes passos:

bis,tris; ia e voltava. Me deu vontade de beber a da garrafa.Rosneique não. Andei mais. Nem não tinha sono nenhum,desmentifadiga. Reproduzi de mim outro fôlego. Deus governagrandeza.Medo mais? Nenhum algum! Agora viesse corja dezebebelos outropa de meganhas, e me achavam. Me achavam, ah,

bas-tantemente. Eu aceitava qualquer vuvu de guerra, e iaem cima,enorme sangue, ferro por ferro. Até queria que viessem,dumavez, pelo definitivo. Aí, quando os passos escutei, vi: eraoReinaldo, que vindo. Ele queria direto, comigo seconferir.

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Eu não podia tão depressa fechar meu coração a ele.Sabia

disso. E ele curtia um engano: pensou que eu estavaamofinado, eeu não estava. O que era sisudez de meu fogo de pessoa,eletomou por mãmolência. Queria me trazer consolo? –“Riobaldo,amigo...” – me disse. Eu estava respirando muito forte,compouca paciência para o trivial; pelo tanto respondialguma palavrasó. Ele, em hora comum, com muito menos que isso agentemarfava. Na vez, não se ofendeu. – “Riobaldo, nãocalculei quevocê era genista...” – ainda gracejou. Dei a nenhumaresposta.Momento calados ficamos, se ouvia o corrute dosanimais, quepastavam à bruta no capim alto. O Reinaldo se chegoupara pertode mim. Quanto mais eu tinha mostrado a ele a minha

dureza,mais amistoso ele parecia; maldando, isso pensei. Achoque olheipara ele com que olhos. Isso ele não via, não notava. Ah,ele mequeria-bem, digo ao senhor.

Mas, graças-a-deus, o que ele falou foi com asucinta voz:

– “Riobaldo, pois tem um particular que eu careçode

contar a você, e que esconder mais não posso... Escuta:eu nãome chamoReinaldo,de verdade. Este é nome apelativo,

inventado por necessidade minha, carece de você nãomeperguntar por quê. Tenho meus fados. A vida da gentefaz setevoltas – se diz. A vida nem é dagente...”

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Ele falava aquilo sem rompante e sem entonos, maisantes

com pressa, quem sabe se com tico de pesar evergonhosasuspensão.

– “Você era menino, eu era menino... Atravessamoso riona canoa... Nos topamos naquele porto. Desde aquele

dia é quesomos amigos.” Que era, eu confirmei. E

ouvi:– “Pois então: o meu nome, verdadeiro, éDiadorim...

Guarda este meu segredo. Sempre, quando sozinhos agenteestiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digoe peço,Riobaldo...”

Assim eu ouvi, era tão singular. Muito fiqueirepetindo emminha mente as palavras, modo de me acostumar comaquilo. Eele me deu a mão. Daquela mão, eu recebia certezas.Dos olhos.Os olhos que ele punha em mim, tão externos, quasetristes degrandeza. Deu alma em cara. Adivinhei o que nós doisqueríamos– logo eu disse: –“Diadorim... Diadorim!” com uma força de

afeição. Ele sério sorriu. E eu gostava dele, gostava,gostava. Aí tive o fervor de que ele carecesse de minha proteção,toda a vida:eu terçando, garantindo, punindo por ele. Ao mais osolhos meperturbavam; mas sendo que não me enfraqueciam.Diadorim.Sol-se-pôr, saímos e tocamos dali, para o Canabrava e o

Barra.

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Aquele dia fora meu, me pertencia. Íamos por um plainode

varjas; lua lá vinha. Alimpo de lua. Vizinhança do sertão –esseAlto-Norte brabo começava. – Estes rios têm de correrbem! –eu de mim dei. Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto,tudocerto. Dia da lua. O luar que põe a noiteinchada.

Reinaldo, Diadorim, me dizendo que este era real o

nomedele – foi como dissesse notícia do que em terras longessepassava. Era um nome, ver o quê. Que é que é umnome? Nomenão dá: nome recebe. Da razão desse encoberto, nemresumicuriosidades. Caso de algum crime arrependido, fosse,fuga dealguma outra parte; ou devoção a um santo-forte. Mashavendo oele querer que só eu soubesse, e que só eu esse nomeverdadeiropronunciasse. Entendi aquele valor. Amizade nossa elenãoqueria acontecida simples, no comum, sem encalço. Aamizadedele, ele me dava. E amizade dada é amor. Eu vinhapensando,feito toda alegria em brados pede: pensando porprolongar.Como toda alegria, no mesmo do momento, abresaudade. Atéaquela-alegria sem licença, nascida esbarrada.Passarinho cai devoar, mas bate suas asinhas nochão.

Hoje em dia, verso isso: emendo e comparo. Todoamornão é uma espécie de comparação? E como é que o amor

desponta. Minha Otacília, vou dizer. Bem que eu conheci

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Otacília foi tempos depois; depois se deu a selvagemdesgraça,

conforme o senhor ainda vai ouvir. Depois após. Mas oprimeiroencontro meu com ela, desde já conto, ainda que estejacontandoantes da ocasião. Agora não é que tudo está me subindomaisforte na lembrança? Pois foi. Assim que desta banda decá agente tinha padecido toda resma de reveses; e quesoubemos queos judas também tinham atravessado o São Francisco;então nóspassamos, viemos procurar o poder de Medeiro Vaz,únicaesperança que restava. Nos gerais. Ah, buriti cresce emerece énos gerais! Eu vinha com Diadorim, com Alaripe e com

 João Va-queiro mas Jesualdo, e o Fafafa. Aos Buritis-Altos, digo ao

senhor – vereda acima – até numa Fazenda Santa

Catarina sechegar. A gente tinha ciência de que o dono erafavorável donosso lado, lá se devia de esperar por um recado. Fomos

chegando de tardinha, noitinha já era, noite, noitefechada. Mas odono não estava, não, só ia vir no seguinte, e sorAmadeu o graçadele era. Quem acudiu e falou foi um velhozinho, já

santificadode velho, só se apareceu no parapeito da varanda –parece queestava receoso de nossa forma; não solicitou de sesubir, nemmandou dar nada de comer. mas disse licença d’a gentedormirna rebaixa do engenho. Avô de Otacília esse velhinhoera, sechamava Nhô Vô Anselmo. Mas, em tanto que ele falava,

emesmo com a confusão e os latidos de muitos cachorros,eu

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– 217 –

divulguei, qual que uma luz de candeia mal deixava, adoçura de

uma moça, no enquadro da janela, lá dentro. Moça decarinharedonda, entre compridos cabelos. E, o que mais foi, foiumsorriso. Isso chegasse? Às vezes chega, às vezes. Artesque mortee amor têm paragens demarcadas. No escuro. Mas senti:mesenti. Águas para fazerem minha sede. Que jurei emmim: a Nos-sa Senhora um dia em sonho ou sombra me aparecesse,podia serassim – aquela cabecinha, figurinha de rosto, em cima dealgumacurva no ar, que não se via. Ah, a mocidade da gentereverte empé o impossível de qualquer coisa! Otacília. O prêmiofeito esseeu merecia?

Diadorim-dirá o senhor: então, eu não notei viciicenomodo dele me falar, me olhar, me querer-bem? Não, quenão –fio e digo. Há-de-o, outras coisas... O senhor duvida? Ara,

mitilhas, o senhor é pessoa feliz, vou me rir... Era que elegostavade mim com a alma; me entende? O Reinaldo. Diadorim,digo.Eli, ele sabia ser homem terrível. Suspa! O senhor viuonça: bocade lado e lado, raivável, pelos filhos? Viu rusgo de tourono altodo campo, brabejando; cobra jararacuçu emendandosete botesestalados; bando doido de queixadas se passantes,dando febreno mato? E o senhor não viu o Reinaldo guerrear!... Essascoisas

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– 218 –

se acreditam.O demônio na rua, no meio doredemunho...

Falo!

Quem é que me pega de falar, quantas vezesquero?!Assim ao feito quando logo que desapeamos noacampo doHermógenes; e quando! Ah, lá era um cafarnaum.

Moxinife demás gentes, tudo na deslei da jagunçagem bargada. Seestavamentre o Furado-de-São-Roque e o Furado-do-Sapo,

rebeira doRibeirão da Macaúba, por fim da Mata da Jaíba. A láchegamosnum de-tardinha. Às primeiras horas, conferi que era oinferno.Aí, com três dias, me acostumei. O que eu estava meiotrans-tornado da viagem.

A ver o que eu contava: quem não conhecia o

Reinaldo,ficou pronto conhecendo. Digo, Diadorim. Nós tínhamosemfim chegado, sem soberba nenhuma, contentes portopar comtanto número de companheiros em armas: de todos,todos eramgarantia. Entramos no meio deles, misturados, paraacocorar eprosear caçamos um pé de fogo. Novidade nenhuma, o

senhorsabe – em roda de fogueira, toda conversa é miudinhostempos.Algum explicava os combates com Zé Bebelo, nós onosso:roteiro todo da viagem, aos poucos para se historiar. Mas

Diadorim sendo tão galante moço, as feições finascaprichadas.Um ou dois, dos homens, não achavam nele jeito demacheza,ainda mais que pensavam que ele era novato. Assimloguinho,

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– 219 –

começaram, aí, gandaiados. Desses dois, um sechamava de alcu-

nha o Fancho-Bode, tratantaz. O outro, um tribufu, sediziaFulorêncio, veja o senhor. Mau par. A fumaça dos tiçõesdeupara a cara de Diadorim – “Fumacinha é do lado – do

delicado...” – o Fancho-Bode teatrou. Consoante falousoez,com soltura, com propósito na voz. A gente, quietos. Sevai láaceitar rixa assim de graça? Mas o sujeito não queriapazear. Selevantou, e se mexeu de modo, fazendo xetas,mengando ecastanhetando, numa dança de furta-passo. Diadorim seesteveem pé, se arredou de perto da fogueira; vi e mais vi: ele

apropriar espaços. Mas esse Fancho-Bode era abusado,vinhaquerer dar umbigada. E o outro, muito comparsa,

lambuzantepreto, estumou, assim como fingiu falsete, cantarolandopelonariz:

Pra gauder,Gaudêncio...E aqui pra oFulorêncio?...

Aquilo lufou! De rempe, tudo foi um ão e um cão,mas, oque havia de haver, eu já sabia... Oap!: o assoprado deumrefugão, e Diadorim entrava de encontro no Fancho-Bode,

arrumou mão nele, meteu um sopapo: – um safado nasqueixadase uma sobarbada – e calçou com o pé, se fez em fúria.Deu com

o Fancho-Bode todo no chão, e já se curvou em cima: e opunhal

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parou ponta diantinho da goela do dito, bem encostadono gogó,

da parte de riba, para se cravar deslizado com bomapoio, e opico em pele, de belisco, para avisar do gosto de umaboa-morte;era só se soltar, que, pelo peso, um fato se dava. Ofechabrir deolhos, e eu também tinha agarrado meu revólver. Arre,eu nãoqueria presumir de prevenir ninguém, mais queriamesmo eramatar, se carecesse. Acho que notaram. Ao que, em hora

 justa ecerta, nunca tive medo. Notaram. Farejarampressentindo: comocachorro sabe. Ninguém não se meteu, pois desapartarassim éperigoso. Aquele Fulorêncio instantâneo esbarrou com os

acionados indecentes, me menos olhou uma vez, daí nãoquis meencarar mais. – “Coca, bronco!” – Diadorim mandou o

Fanchose levantasse: que puxasse também a faca, viessemelhor sedesempenhar! Mas o Fancho-Bode se riu, amistososafado, comotudo tivesse constado só duma brincadeira: – “Oxente!Homemtu é, manovelho, patrício!” Estava escabreado. Dava nojo,ele,com a cara suja de maus cabelos, que cresciam por todo

lado.Guardei meu revólver, respeitosamente. Aqueles doishomensnão eram medrosos; só que não tinham os interesses demorrertão cedo assim. Homem é rosto a rosto; jagunçotambém: é noquem-com-quem. E eles dois não estavam ali muitoestimados.Comprazendo conosco, outros companheiros deram ar de

amizade. E mesmo, por gracejo cordial, o Fulorêncio me

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perguntou: – “Mano Velho, me compra o que eu sonheihoje?”

Divertindo, também, para o ar dei resposta: – “Só se forcomdinheiro da mãe do jacaré...” Todos riram. De mim nãoriram. OFulorêncio riu também, mas riso de velho. Cá pensei,silencioso,silenciosinho: “Um dia um de nós dois agora tem decomer ooutro... Ou, se não, fica o assunto para os nossos netos,ou paraos netos dos nossos filhos...” Tudo em mais paz, meofereceram:bebi da januária azulosa – um gole me foi; cachaça muito

nomeada. Aquela noite, dormiconseguintemente.

Sempre disse ao senhor, eu atirobem.E esses dois homens, Fancho-Bode e Fulorêncio,

bateram abota no primeiro fogo que se teve com uma patrulha deZéBebelo. Por aquilo e isso, alguém falou que eu mesmotinhaatirado nos dois, no ferver do tiroteio. Assim, porexemplo, nocircundar da confusão, o senhor sabe: quando balaraciocina.Adiante falaram que eu aquilo providenciei, motivo de

evitar quemais tarde eles quisessem vir com alguma tranquibérniaouembusteria, em fito de tirarem desforra. Nego isso, não é

verdade. Nem quis, nem fiz, nem praga roguei. Morreram,

porque era seu dia, deles, de boa questão. Até, o quemorreu foisó um. O outro foi pego preso – eu acho – deve de teracabadocom dez anos em alguma boa cadeia. A cadeia de MontesClaros,

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quem sabe. Não sou assassino. Inventaram em mimaquele falso,

o senhor sabe como é esse povo. Agora, com uma coisa,euconcordo: se eles não tivessem morrido no começo, iampassar oresto do tempo todo me tocaiando, mais Diadorim, paracom agente aprontarem, em ocasião, alguma traição oumaldade. Nasestórias, nos livros, não é desse jeito? A ver, emsurpresasconstantes, e peripécias, para se contar, é capaz queficasse muitoe mais engraçado. Mas, qual, quando é a gente que estávivendo,no costumeiro real, esses floreados não servem: o melhor

mesmo, completo, é o inimigo traiçoeiro terminar logo,bemalvejado, antes que alguma tramóia perfaça! Também,sei o quedigo: em toda a parte, por onde andei, e mesmo sendo

de ordeme paz, conforme sou, sempre houve muitas pessoas quetinhammedo de mim. Achavam que eu eraesquisito.

Só o que mesmo devo de dizer, como atiro bem: quevivoainda por encontrar quem comigo se iguale, em pontaria

egatilho. Por meu bom, de desde mocinho. Alemão Vupespoucome ensinou. Naquele tempo, já eu era. Dono de qualquercanode fogo: revólver, clavina, espingarda, fuzil reiúno,trabuco,clavinote ou rifle. Honras não conto alto, porque achoque acertonatural assim é de Deus, dom dado. Pelo que compadremeuQuelemém me explicou: que eu devo de, noutra vida,por certo

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em encarnação, ter trabalhado muito em mira em arma.Seja?

Pontaria, o senhor concorde, é um talento todo, na idéia.Omenos é no olho, compasso. Aquele Vupes era profeta?Certavez, entrei num salão, os companheiros careciam que eu

 jogasse,mor de inteirar a parceiragem. Bilhar – quero dizer. Eunão sabia,total. Tinha nunca botado a mão naquilo. – “Faz malnenhum” –o Advindo disse. – “Você forma comigo, que sou tão notaco. João Nonato, com o Escopil, jogam de contra-lado...”Aceitei.Combinado ficou que o Advindo pudesse mesuperintender epronunciar cada toque, com palavras e noção deconselhos, massem licença de apoiar mão em minha mão ou braço,nemencostar dedo no taco. É de ver que, mesmo do jeito,

nãobobeei um ceitil: o Advindo me lecionava o rumo medidodavantagem, e eu encurvava o corpo, amolecia barriga etaqueavao meu chofre, querendo aquilo no verde . era o justorepique –umas carambolas de todos estalos, retruque erecompletas, comrecuanço, ladeio perfeito, efeito produzido e reproduzido;

porfim, eu me reprazia mais escutando rebrilhar o concoco

daquelas bolas umas nas outras, deslizadas... E pois,conformedizia, por meu tiro me respeitavam, quiseram pôrapelido emmim: primeiro,Cerzidor,depois Tatarana, lagarta-de-fogo.

Masfirme não pegou. Em mim, apelido quase que não

pegava. Será:eu nunca esbarro pelo quieto, numfeitio?

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No que foi, no que me vi, no acampo doHermógenes.

Cabralhada. Tiba. De boa entrada, ao que megasturei, novendo. Aqueles eram mais de cento e meio, sofreúdos,

quetodos curtidos no jagunçar, rafaméia, mera gente.Azombado,que primeiro até fiquei, mas daí quis assuntação, achei,a meucômodo. Assim, isto é, me acostumei com meiosó meu

coração,naquele arranchamento. Propriamente, pessoal doHermógenes.Digo: bons e maus, uns pelos outros, como neste mundose per-tence. Por um que ruim seja, logo mais para adiante seencontraoutro pior. E a situação nossa era de guerra. Mesmo comisso, apeito pronto, ninguém se perturbou com perigos de tanta

gravidade. Se vivia numa jóvia, medindo mãos, emvavavá econversa de festa, tomando tempo. Aqueles não

desamotinavam. A ajunta, ali, assim, de tantos atrás doar, na va-gagem: manga de homens, por zanzar ou estar à-toa oupararformando rodas; ou uns dormindo, como boi malha; ou

deitados no chão sem dormir – só aboboravam. Assaztodaespécie de roupa, divulguei: até sujeito com cinta largade lãvermelha; outro com chapéu de lebre e colete preto definopano, cidadão; outros com coroça e bedém, mesmo semchuvanenhuma; só que de branco vestido não se tinha: quecom ternoclaro não se guerreia. Mas jamais ninguém ficasse nu-de-Deus

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ou indecente descomposto, no meio dos outros, isso nãoe não.

Andando que sentados, jogando jogos, ferrando queda debraço,assoando o nariz, mascando fumo forte e cuspindo longe,epitando, picando ou dedilhando fumo no covo da mão,commuita demora; o mais, sempre no proseio. Aventesbaldrocavamsuas pequenas coisas, trem objeto que um tivesse emenosquisesse, que custou barato. E ninguém furtava!Furtasse, eraperigar morte. Cantavam cantarol, uns, aboiavam sembois. Oucuidavam do espírito da barriga. O serviço que cumpriameraalimpar as armas bem – marcadas as cruzes nas feiçõesdascoronhas. E tudo o mais que faziam, que fosse coisa desem-o-que-fazer. Por isso – se dizia – que ali corresse muita

besouragem, de falação mal, de rapa-tachos. Tinham láatécachorros, vadiando geral, mas o dono de cada um sesabia;convinha não judiar com cão, por conta dodono.

Ao às-tantas me aceitaram; mas meio atalhados. Seo quefossem mesmo de constância assim, por tempero de

propensão;ou, então, por me arrediarem, porquanto me achandodelesdiverso? Somente isto nos princípios. Sendo que eusoube queeu era mesmo de outras extrações. Semelhante por este

exemplo, como logo entendi: eles queriam completo ser

 jagunços, por alcanço, gala mestra; conforme o queavistei,

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seguinte. Pois não era que, num canto, estavam uns,

permanecidos todos se ocupando num manejocaprichoso, eisto que eles executavam: que estavam desbastando osdentesdeles mesmos, aperfeiçoando os dentes em pontas! Semeentende? Senhor ver, essa atarefação, o tratear, davaalojo eapresso, dava até aflição em – aflito, abobante. Os quelavravamdesse jeito: o Jesualdo – mocinho novo, com sua simpatia–, oAraruta e o Nestor; os que ensinavam a eles eram oSimião e oAcauã. Assim um uso correntio, apontar os dentes dediante, apoder de gume de ferramenta, por amor de remedar oaguçosode dentes de peixe feroz do rio de São Francisco –piranharedoleira, a cabeça-de-burro. Nem o senhor não pense

que paraesse gasto tinham instrumentos próprios, algumaliminha, ouferro lixador. Não: aí era à faca. O Jesualdo mesmo sefazia,fazia aquilo sentado num calcanhar. Aviava de encalcar ocorteda faca nas beiras do dente, rela releixo, e batia no caboda faca,com uma pedra, medidas pancadas. Sem espelho, sem

ver; aotanto, que era uma faca de cabo de niquelado. Ah, noabre-boca,comum que babando, às vezes sangue babava. Ao maisgemesse,repuxando a cara, pelo que verdadeiro muito doía.Agüentava.Assim esquentasse demais; para refrescar, então elebochechavaa breve, com um caneco de água com pinga. Os outros

dois,também. O Araruta procedia sozinho, igual, batendo nafaca

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com a prancha de outra. O Nestor, não: para ele, oSimião, com

um martelinho para os golpes, era quem raspava; masdecerto oNestor ao outro para isso algum tanto pagasse.Abrenunciei. –“Arrenego!” – eu disse. – “Deveras? Então, mano-velho,pois tunão quer?” – o Simão, em gracejo, me perguntou. Me fezcareta;e – acredite o senhor: ele, que exercia lâmina nos dooutro, elenão possuía, próprio, dente mais nenhum nas gengivas –

conforme aquela vermelha boca banguela toda abriu ememostrou. Repontei: – “Eu acho que, para se ser valente,nãocarece de figurativos...” O Acauã, que já era bomconhecidomeu, assim mesmo achou de se reagir: – “São gostos...”Mas,um outro, que chegando veio, falou o mais seco: – “Tudo

navida são gostos, companheiro. Mas não será o meu!”Olhei paraesse, que me deu o apoio. E era um Luís Pajeú – com afaca-punhal do mesmo nome, e ele sendo de sertão do mesmonome,das comarcas de Pernambuco. Sujeito despachado,moreno bemqueimado, mas de anelados cabelos, e com uma

coragemterrivelmente. Ah, mas o que faltava, lá nele, que elemais nãotinha, era uma orelha, – que rente cortada fora, pelosinal. Ondeera que o Luís Pajeú havia de ter deixado aquela orelha?– “Serágosto meu não, de descasear dentaduras...” – concisodeclarou,falava meio cantado, mole, fino. Alto e forte, foi outro

falar, deoutro, que no instante também ouvi: – “Uê, em minhaterra, se

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afia guampa, é touro, ixi!” E esse um, trolado demaisfranco, e

desempenado cavaleiro, era o Fafafa. Fiz conhecença.Deletenho, para mais depois.

Ao que lá não faltava a farta comida, pelo que logovi.Gêneros e bebidas boas. De donde vinha tudo, em

redondezastão pobrezinhas, a gente parando assim quase num

deserto? E amunição, tanta, que nem precisaram da que tínhamostrazido, eque foi levada mais adiante, para os escondidos de JocaRamiro,perto do arraial do Bró? E a jorna, para satisfazer àquela

cabroeira vivente, que estavam ali em seu emprego decargo? Ah,tinham roubado, saqueado muito, grassavam. A sebaçaera alavoura deles, falavam até em atacar grandes cidades.Foi ou nãofoi?

Mas, mire e veja o senhor: nas eras de 96, quando os

serranos cismaram e avançaram, tomaram conta de São

Francisco, sem prazo nem pena. Mas, nestes derradeiros

anos,quando Andalécio e Antônio Dó forcejaram por entrar lá,quasecom homens mil e meio-mil, a cavalo, o povo de SãoFranciscosoube, se reuniram, e deram fogo de defesa: diz-queduroucombate por tempo de três horas, tinham armadotranquias, naboca das ruas – com tapigos, montes de areia e pedra, eárvorescortadas, de través – brigaram como boa população! Daí,aqueles

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retornaram, arremeteram mesmo, senhores da cidadequase toda,

conforme guerrearam contra o Major Alcides Amaral eunssoldados, cercados numas duas ou três casas e umquintal,guerrearam noites e dias. A ver, por vingar, porque anteso MajorAmaral tinha prendido o Andalécio, cortado os bigodesdele.Andalécio – o que, de nome real: Indalécio GomesPereira-homem de grandes bigodes. Sei de quem ouviu, serecordavasempre com tremores: de quando, no tiroteio de inteiranoite,Andalécio comandava e esbarrava, para gritar feroz: –“Sai prafora, cão! Vem ver! Bigode de homem não se corta!...”

 Tudogelava, de só se escutar. Aí, quem trouxe socorro, parasalvar oMajor, foi o delegado Doutor Cantuária Guimarães, vindo

àspressas de Januária, com punhadão de outros jagunços,defazendeiros da política do Governo. Assim que salvaram,

mandaram desenterrar, para contar bem, mais desessentamortos, uns quatorze juntos numa cova só! Essas coisas

 já nãoaconteceram mais no meu tempo, pois por aí eu já

estava retiradopara ser criador, e lavrador de algodão e cana. Mas omais foiainda atual agora, recentemente, quase, isto é; foi logode seemendar depois do barulhão em Carinhanha –mortandades:quando se espirrou sangue por toda banda, o senhorsabe:“Carinhanha é bonitinha...” – uma verdade que barranqueiro

canta, remador. Carinhanha é que sempre foi de umhomem de

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valor e poder: o coronel João Duque – o pai da coragem.

Antônio Dó eu conheci, certa vez, na Vargem Bonita,tinha umafeirinha lá, ele se chegou, com uns seus cabras,formaram grupocalados, arredados. Andalécio foi meu bom amigo. Ah,tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com osertão.Acaba?

Atinei mal, no começo, com quem era que mandavaemnós todos. O Hermógenes. Mas, perto duns cinqüenta –

nessemeio o Acauã, Simão, Luís Pajeú, Jesualdo e o Fafafa –

obedeciam a João Goanhá, eram dele. E tinha um grupodebrabos do Ricardão. Onde era que estava o Ricardão?Reunindomais braços-de-armas, beira da Bahia. Se esperavatambém avinda de Só Candelário, com os seus. Se esperava ochefegrande, acima de todos – Joca Ramiro – falado aquelahora emPalmas. Mas eu achava aquilo tudo dando confuso. Titão

Passos, cabo-de-turma com poucos homens à mão, era

nãostante muito respeitado. E o sistema diversiavademais doregime com Zé Bebelo. Olhe: jagunço se rege por ummodoencoberto, muito custoso de eu poder explicar aosenhor. Assim– sendo uma sabedoria sutil, mas mesmo sem juízonenhumfalável; o quando no meio deles se trança um ajustecalado ecerto, com semelho, mal comparando, com o governo debando

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de bichos – caititu, boi, boiada, exemplo. E, de coisas,faziam

todo segredo. Um dia, foi ordem: ajuntar todos osanimais, desela e de carga, iam ser levados para amoitamento epasto, entreserras, no Ribeirão Poço Triste, num varjal. Para mim, atéoendereço que diziam, do lugar, devia de ser mentira. Mastive deentregar meu cavalo, completo no contragosto. Me senti,a pé,como sem segurança nenhuma. E tem as pequenascoisas queaperreiam: enquanto estava com meu animal, eu tinha a

capoteira, a bolsa da sela, os alforjes; podia guardarmeus trecos.De noite, dependurava a sela num galho de árvore,botava pordebaixo dela o dobro com as roupas, dormia ali perto, empaz.Agora, eu ficava num descômodo. Carregar os trens não

podia –chegava o peso das armas, e das balas e cartuchame.Perguntei aum, onde era que tudo se depositava. – “Eh, bereu...Bota emalgum lugar... Joga fora... Oxe, tu carrega ouro nessesdobros?...”Quê que se importavam? Por tudo, eram fogueiras de se

cozinhar, fumaça de alecrim, panela em gancho de

mariquita, echeiro bom de carne no espeto, torrada se assando, ebatatas emandiocas, sempre quentes no soborralho. A farinha e

rapadura: quantidades. As mantas de carne-ceará. Aotanto que acarne-de-sol não faltasse, mesmo amiúde ainda saíamalguns eretornavam tocando uma rês, que repartiam. Muitos

misturavama jacuba pingando no coité um dedo de aguardente, eununca

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tinha avistado ninguém provar jacuba assim feita. Osusares! A

ver, como o Fafafa abria uma cova quadrada no chão,ajuntavaali brasas grandes, direto no brasal mal-assasse pedaçãode carneescorrendo sangue, pouco e pouco revirava com a pontadofacão, só pelo chiar. Disso, definitivo não gostei. Asaudademinha maior era de uma comidinha guisada: um frangocomquiabo e abóbora-d’água e caldo, um refogado de carurucomofa de angu. Senti padecida falta do São Gregório – bemque aminha vidinha lá era mestra. Diadorim notou meusmales. Medisse consolo: – “Riobaldo, tem tempos melhores. Por ora,

estamos acuados em buraco...” Assistir com Diadorim, eouviruma palavrinha dele, me abastava

aninhado.Mas, mesmo, achei que ali convinhável não era seficar

muito tempo juntos, apartados dos outros. Cismei que

maldavam, desconfiassem de ser feio pegadio. Aquelepovoestava sempre misturado, todo o mundo. Tudo era faladoatodos, do comum: às mostras, às vistas. Diferentemelhor, foiquando estivemos com Medeiro Vaz: o maior número láera depessoal dos gerais – gente mais calada em si e sozinha,moradoresdas grandes distâncias. Mas, por fim, um se acostuma;isto é, eume acostumei. Sem receio de ser tirado de meu dinheiro:que euempacotava ainda boa quantia, que Zé Bebelo sempreme pagou

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no pontual, e gastar eu não tinha onde. Recontei. Aí, quisque

soubessem logo como era que eu atirava. Até gostavamde ver: –“Tatarana, põe o dez no onze...” – me pediam, por festar.Deduzentas braças, bala no olho de um castiçal euacertava. Numaquele alvo só – as todas, todas! Assim então esbarreiaquilo comque me aperreavam, os coscuvilhos. – “Se alguém faloumal demim, não me importo. Mas não quero que me venhammecontar! Quem vier contar, e der notícias, é esse mesmoque nãopresta: e leva o puto nome-da-mãe, e de que é filho!...” –euinformei. O senhor sabe: nome-da-mãe, e o depois, querdizer –meu pinguelo. Sobre o fato, para de mim nãodesaprenderem,não se esquecerem, eu pegava o rifle – tive rifle de

winchester,até, de quatorze tiros – e dava gala de entremez. –“Corta aquelerisco Tatarana!” – me aprovavam. Se eu cortasse? Nuncaerrei.Para rebater, reproduzia tudo a revólver. – “Vem umcismo defio de cabelo no ar, que eu acerto.” Sobrefiz. Social euandavacom minhas cartucheiras triplas, só que atochadas

sempre. Aoque, me gabavam e louvavam, então eu esbarravasossegado.Surgidamente, aí, principiou um desejo que tive – queera o dedestruir alguém, a certa pessoa. O senhor pode rir: seuriso temsiso. Eu sei. Eu quero é que o senhor repense as minhastolaspalavras. E, olhe: tudo quanto há, é aviso. Matar a aranha

em teia.Se não, por que era que já me vinha a idéia desejável:que joliz

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– 234 –

havia de ser era se meter um balaço no baixo da testado

Hermógenes?

A bronzes. O ódio pousa na gente, por umascriaturas. Jávai que o Hermógenes era ruim, ruim. Eu não queria ter

medodele. Digo ao senhor que aquele povo era jagunços; euqueriabondade neles? Desminto. Eu não era criança, nunca

bobo fui.Entendi o estado de jagunço, mesmo assim sendo eumarinheirode primeira viagem. Um dia, agarraram um homem, quetinhavindo à traição, espreitar a gente por conta dos bebelos.

Assassinaram. Me entristeceu, aquilo, até ao vago do ar.Osenhor vigie esses: comem o cru de cobras. Carecem. Sóporisso, para o pessoal não se abrandar nem esmorecer, atéSóCandelário, que se prezava de bondoso, mandava,mesmo emtempo de paz, que seus homens saíssem fossem, para

estropelias, prática da vida. Ser ruim, sempre, às vezes écustoso,carece de perversos exercícios de experiência. Mas, comotempo, todo o mundo envenenava do juízo. Eu tinhareceio deque me achassem de coração mole, soubessem que eunão erafeito para aquela influição, que tinha pena de toda cria de

 Jesus.– “E Deus, Diadorim?” – uma hora eu perguntei. Ele meolhou,com silenciozinho todo natural, daí disse, em resposta: –“Doca

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Ramiro deu cinco contos de réis para o padre vigário de

Espinosa...”

Mas o Hermógenes era fel dormido, flagelo comfrieza.Ele gostava de matar, por seu miúdo regozijo. Nemcontavavalentias, vivia dizendo que não era mau. Mas, outra vez,

quandoum inimigo foi pego, ele mandou: – “Guardem este.” Sei

o quefoi. Levaram aquele homem, entre as árvores dumacapoeirinha,o pobre ficou lá, nhento, amarrado na estaca. OHermógenes nãotinha pressa nenhuma, estava sentado, recostado. Agente podiacaçar a alegria pior nos olhos dele. Depois dum tempo, ialá,sozinho, calmoso? Consumia horas, afiando a faca. Eu

ficavavendo o Hermógenes, passado aquilo: ele estavacontente de si,com muita saúde. Dizia gracejos. Mas, mesmo paracomer, oufalar, ou rir, ele deixava a boca própria se abrir alta nomeio,como sem vontade, boca de dor. Eu não queria olhar paraele,encarar aquele carangonço; me perturbava. Então,

olhava o pédele – um pé enorme, descalço, cheio de coceiras,frieiras deremeiro do rio, pé-pubo. Olhava as mãos. Eu acabavaachandoque tanta ruindade só conseguia estar naquelas mãos,olhava paraelas, mais, com asco. Com aquela mão ele comia, aquelamão eledava à gente. Entremeando, eu comparava com ZéBebelo aquelehomem. Nessa hora, eu gostava de Zé Bebelo, quasecomo um

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– 236 –

filho deve de gostar do pai. As tantas coisas metonteavam: eu

em claro. De repente, eu via que estava desejando queZé Bebelovencesse, porque era ele quem estava com a razão. ZéBebelodevia de vir, forte viesse: liquidar mesmo, a rãs, com oinferno da jagunçada! E eu estava ali, cumprindo meu ajuste, porfora, comtodo rigor; mas estava tudo traindo, traidor, no cabo domeucoração. Alheio, ao que, encostei minhas costas numaárvore. Aí eu não queria ficar doido, no nem mesmo. Puxeiconversa comDiadorim. Por que era que Joca Ramiro, sendo chefe tãosubido,de nobres costumes, consentia em ter como seu alferesum su- jeito feito esse Hermógenes, remarcado no mal?Diadorim meescutou depressa, tal duvidou de meu juízo: – “Riobaldo,

onde éque você está vivendo com a cabeça? O Hermógenes éduro, masleal de toda confiança. Você acha que a gente cortacarne é comquicé, ou é com colher-de-pau? Você queria homensbem-comportados bonzinhos, para com eles a gente darcombate a ZéBebelo e aos cachorros do Governo?!” A espichado,

nesse diacalei. Assim uma coisa eu estava escondendo, mesmo de

Diadorim: que eu já parava fundo no falso, dormia com atraição.Um nublo. Tinha perdido meu bom conselho. E entrei em

máquinas de tristeza.

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– 237 –

Então, eu era diferente de todos ali? Era. Por meubom.

Aquele povo da malfa, no dia e noite de relaxação, brigar,beber,constante comer. – “Comeu, lobo?”E vozear tantasasneiras,mesmo de Diadorim e de mim já pensavam. Um dia, umdisse:– “Eh, esse Reinaldo gosta de ser bom amigo... Aoquando oLeopoldo morreu ele quase morreu também, dosdemoradospesares...” Desentendi, mediante meu querer. Mas nãomeadiantou. Dai, persistentemente, essa história meremoía, essenome de um Leopoldo; Tomava por ofensa a mim, que

Diadorim tivesse tido, mesmo tão antes, um amigo

companheiro. Até que, vai, cresci naquela idéia: que oque estavafazendo falta era uma mulher.

E eu era igual àqueles homens? Era. Com não terem

mulher nenhuma lá, eles sacolejavam bestidades. –“Saindo poraí”, – dizia um – “qualquer uma que seja, não meescapole!” Aoque contavam casos de mocinhas ensinadas por eles,

aproveitavelmente, de seguida, em horas safadas. –“Mulher égente tão infeliz...” – me disse Diadorim, uma vez, depoisquetinha ouvido as estórias. Aqueles homens, quandoestavamprecisando, eles tinham aca, almiscravam. Achavam,

manejavam. Deus me livrou de endurecer nessescostumesperpétuos. A primeira, que foi, bonita moça, eu estavacom ela

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somente. Tanto gritava, que xingava, tanto me mordia, eas

unhas tinha. Ao cabo, que pude, a moça – fechados osolhos –não bulia; não fosse o coração dela rebater no meupeito, euentrevia medo. Mas eu não podia esbarrar. Assim tanto,derepente vindo, ela estremeceuzinha. Daí, abriu os olhos,aceitouminha ação, arfou seus prazeres, constituído milagre.Para mim,era como eu tivesse os mais amores! Pudesse, levavaessa moçacomigo, fiel. Mas, depois, num sítio perto da Serra Nova,foiuma outra, a moreninha miúda, e essa se sujeitou friaestendida,para mim ficou de pedras e terra. Ah, era que nem eunosmedonhos fosse – e, o senhor crê? – a mocinha meagüentavaera num rezar, tempos além. Às almas fugi de lá, larguei

com elao dinheiro meu, eu mesmo roguei pragas. Contanto quenuncamais abusei de mulher. Pelas ocasiões que tive, e de ladodeixei,ofereço que Deus me dê alguma minha recompensa. Oque euqueria era ver a satisfação – para aquelas, pelo meu ser.Feitocom a Rosa ‘uarda, sempre formosa, a filha de Assis

Wababa,sonhos meus, turcamente; e que a qual, não lhe disse: opai dela,que era forte negociante, em todo tempo nanja que não

desconfiou. Feito com aquela moça Nhorinhá, filha deAnaDuzuza. Digo ao senhor. Mas o senhor releve eu estarglosandoassim a seco essas coisas de se calar no preceito devido.

Agora:o tudo que eu conto, é porque acho que é sériopreciso.

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Permeio com quantos, removido no estatuto deles,com

uns poucos me acompanheirei, daqueles jagunços,conformeque os anjos-da-guarda. Só quase a boa gente. Sendoque são,por todos, estes:Capixum – caboclo sereno, viajado, filho dos

gerais de São Felipe;Fonfredo – que cantava todas as rezas de

padre, e comia carne de qualidade nenhuma, e quenunca diziade onde era e viera; o que rimava verso comele:

Sesfredo,desse

 já lhe contei; oTesta-em-Pé,baiano ladino, chupava muito; o

Paspe,vaqueiro jaibano, o homem mais habilidoso eserviçal que

 já topei nesta minha vida;Dadá Santa-Cruz,dito “o Caridoso”,

queria sempre que se desse resto de comida à gentepobre comvergonha de vir pedir; oCarro-de-Boi,gago, gago.O Catocho,

mulato claro – era curado de bala.Lindorífico,chapadeiro minas-

novense, com mania de aforrar dinheiro.O Diolo, preto de

beiço maior. Juvenato, Adalgizo, o Sangue-de-Outro.

Ei, tantos;

para que que eu fui querer começar adescrever?

Dagobé, o

Eleutério, Pescoço-Preto, José

 Amigo...Amigo? Homem desses, alguém dizendo a um queele édemônio de ruim, ele ria de não querer ser, capaz até de

nessaraiva matar o outro. Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais

difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso,

mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder deir até

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no rabo da palavra.Ezirinomatou um companheiro, queBa-

tatinhase chamava, o pobre dum cafuz magrelo, só quetinha odanado defeito de contrariar qualquer coisa que a gentefalava.Ezirino caiu no mundo. Daí, começou voz que ele tinhafugidopara se bandear com os zé-bebelos, pago por suatraição, e queBatatinha somente morreu porque disso sabia. Todo omundoandava encrespo, forjicavam muita cilada e enredos de

desconfianças. Mudamos para outros lugares, mais acoberto,em distância: obra de sete léguas, para a parte dopoente. Muitovi que não estávamos fazendo isso por escapulir; masque oHermógenes, Titão Passos e João Goanhá, antes acharamdecombinar aquilo, em suas conversas – era o arrumo para

melhores combates com Zé Bebelo. Ah, e, aí, láchegaram, comsatisfação de todos, dez homens, a Só Candeláriopertencidos. Traziam cargueiros com mais sal, bom café e umabarrica debacalhau. Delfim era um daqueles, tocava. E o Luzié,alagoanode Alagoas. Nesse dia, eu saí, com esquadra, fomos

rondar oscaminhos de porventura dos bebelos, andamos mais detrêsléguas e tanto, no meio da noiteretornamos.

De manhã cedo, eu soube: tinham até dançado,aquelavéspera. – “Diadorim, você dança?” – logo, perguntei. –

“Dança? Aquilo é pé de salão...” – quem respondeu foi o

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Garanço, o de olhos de porco. Ouvindo o que, me sobrouum

enjôo. O Garanço, era um mocorongo mermado, comestúrdiasfeições, e pessoa muito agradável de seu natural. Eletinha idéias,às vezes parecia criança pequena. Punha nome em suasarmas: ofacão eratorturum, orevólverrouxinol,a clavina eraberra-bode.

Com ele, a gente ria, sempremente. Mais o Garanço davadeprocurar a companhia nossa, minha e de Diadorim;aqueletempo ele vinha costumeiro para perto. Às vezes, comonaquilo,ele me produzia jeriza, verdadeira. Diadorim não dizianada,estava deitado de costas, num pelego, com a cabeçanum feixede capim cortado. Ali naquele lugar ele contumaz dormia– Dia-dorim menos gostava de rede. O Garanço era

sanfranciscano,dum lugar chamado Morpará. Hás-de, queria que a gente

escutasse ele recontar compridas passagens de sua vida.Aquiloaborrecia. Eu queria estar-estâncias: dos violeiros, quetocavamsentimento geral. Depois, Diadorim se levantou, ia emalgumaparte. Guardei os olhos, meio momento, na beleza dele,

guapotão aposto – surgido sempre com o jaleco, que ele tiravanunca, ecom as calças de vaqueiro, em couro de veado macho,curtidocom aroeira-brava e campestre. De repente, uma coisaeunecessitei de fazer. Fiz: fui e me deitei no mesmo ditopelego, nacama que ele Diadorim marcava no capim, minha cara

posta nopróprio lugar. Nem me fiz caso do Garanço, só com ovioleiro

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somei. A zangarra daquela viola. Por não querer meu

pensamento somente em Diadorim, forcejei. Eu já nãopresenciava nada, nem escutava possuído – fiqueisonhejando: oir do ar, meus confins. Aí pensei no São Gregório? A bem,noSão Gregório, não; mas peguei saudade dos passarinhosde lá, dopoço no córrego, do batido do monjolo dia e noite, dacozinhagrande com fornalha acesa, dos cômodos sombrios dacasa, doscurrais adiante, da varanda de ver nuvens. O senhorsabe?: nãoacerto no contar, porque estou remexendo o vivido longealto,com pouco caroço, querendo esquentar, demear, defeito, meucoração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia,achar orumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do

que nãohouve. As vezes não é fácil. Fé que nãoé.

Mire veja: naqueles dias, na ocasião, devem de ter

acontecido coisas meio importantes, que eu não notava,nãosurpreendi em mim. Mesmo hoje não atino com o queforam.Mas, no justo momento, me lembrei em madrugadadaquelenome: de Siruiz. Refiro que perguntei ao Garanço, poraquelerapaz Siruiz, que cantava cousas que a sombra delas emmeucoração decerto já estava. O que eu queria saber não eraprópriodo Siruiz, mas da moça virgem, moça branca,perguntada, e dospés-de-verso como eu nunca tive poder de formar umigual. Mas

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o Garanço já tinha respondido. – “Eh, eh, ô... O Siruiz jámorreu.

Morreu morto no tiroteio, entre o Morcego e oSuaçuapara,passado para cá o Pacuí...” Do choque com que ouvi essa

confirmação de notícia, fui arriando para um desânimo.Como seassim ele tivesse falado: “Siruiz? Mas não foram vocêsmesmosque mataram?...” Eu, não. Nessa vez, eu tinha restadolonge porfora, na PedraBranca, não vi combate. Como era que eupodia?O Garanço tomava rapé. Era um sujeito de intençõesmuitoparvas. Perguntou se o Siruiz não seria meu amigo, meuparente.– “Quem sabe se era...” – eu respondi, de toleima. OGaranço, vique não gostou. Viver perto das pessoas é sempredificultoso, naface dos olhos. Nem eu quis indagar o mais, certo estava

de queele Garanço não sabia nada do que tivesse valor. Mas eu

guardava triste de cor a canção recantada. E Siruiz tinhamorrido.Então me instruíram na outra, que era cantiga de seviajar ecantar, guerrear e cantar, nosso bando, toda avida:

“Olererêêê, baiana... Euia enão vou mais: Eufaçoque vou lá dentro, oh baiana,e voltodo meio p’ratrás...” O senhor aprende? Eu entôo mal. Não por boca de

ruindade, lá como quem diz. Sou ruim não, sou homemde gostar

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dos outros, quando não me aperreiam; sou de tolerar.Não tenho

a caixeta da raiva aberta. Rixava com nenhum, ali,aceitava oregime, na miudez das normas. Vai, daí, comigo erraram.Um,errou. Um pai-jagunço chamado Antenor, acho que eracoração– de-jesusense, começou a temperar conversa, sagaz defiúza,notei. Ele era homem chegado ao Hermógenes – se sabiadessaparte. De diz em diz, rodeava a questão. Queria saberque apreçoeu tinha por loca Ramiro, por Titão Passos, os outrostodos. Seeu conhecia Só Candelário, que estava por chegar? Ogiro dosassuntos – ele me tenteava a fala. Notei. E, devagar,vinhaquerendo deixar em mim uma má vazante: me largar emdúvida.Não era? Aquilo eu inteligenciava. Esse Antenor, sempre

louvando e vivando Joca Ramiro, acabou por me dar aentender,curtamente, o em conseguinte: que Joca Ramiro talvezfazia malem estar tanto tempo por longe, alguns de bofe ruim já

calculavam que ele estivesse abandonando seu pessoal,em horasde tanta guerra; que Joca Ramiro era rico, dono de

muitas possesem terras, e se arranchava passando bem em casas degrandesfazendeiros e políticos, deles recebia dinheiro de muniçãoe paga:seô Sul de Oliveira, coronel Caetano Cordeiro, doutorMirabô deMelo. Que era que euachava?

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Eu escutei. Respondi? Ah, ah. Sou lá para acharnenhuma

coisa. Não tinha nascido no ontem, cedo tomeiexperiência dehomens por homens. Disse só que decerto Joca Ramiroestavaformando gente e meios para vir em ajuda de nós,

 jagunços emlei, e nesse meio-tempo punha toda confiança noHermógenes,em Titão Passos, João Goanhá – fortes no fato valor e na

lealdade. Gabei o Hermógenes, principal; bispei. Comisso,aquele Antenor concordou. A bem dizer, aprovou oquanto eudisse. Mas realçou mais altamente a fama doHermógenes, e doRicardão, também – esses dois seriam os chefes deencher amão, em paz regalada mas por igual nos combates. EssesujeitoAntenor sabia coçar queixo de cobra e semear sal em

roçasverdes. Vulto perigoso, nas ações – o Garanço mepreveniu,com a boa noção vinda de sua redondice de atinar.Ações? Oque eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo épor umapalavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada,que vairompendo rumo. Aquele Antenor já tinha depositado em

mim oanúvio de uma má idéia: disidéia, a que por minhascostas logoescorreu, traiçoeirinha como um rabo de gota de orvalho.Queexplicação dou ao senhor? Acreditar, no que ele tinhasuso dito,não acreditei. Mas, em mim, para mim, aquilo tudo era –eraassim como um lugar com mau-cheiro, no campo, uma

árvore:lugar fedido, onde é que alguma jaratataca acuou, por sedefender

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– 246 –

do latido dos cachorros. E grande aviso, naquele dia, eutinha

recebido; mas menos do que ouvi, real, do que do que eutinhade certo modo adivinhado. De que valeu? Aviso. Eu achoque,quase toda a vez que ele vem, não é para se evitar ocastigo, massó para se ter consolo legal, depois que o castigo passoue veio.Aviso? Rompe, ferro!

Cacei Diadorim. Mas eu estreava umas ânsias. Comofosse,falei, do novo e do velho; mal foi que falei: em zanga –

desrazoadamente – e de primeira entrada. Acho que, porviadisso, Diadorim não deu a devida estimação às minhaspalavras.Alheio, eh. Só ojerizado em estilos ele esteve, um raio de

momento, foi de ouvir que alguém pudesse duvidar doprocederde loca Ramiro: loca Ramiro era um imperador em trêsalturas!loca Ramiro sabia o se ser, governava; nem o nome delenãopodia à toa se babujar. E aqueles outros: o Hermógenes,

Ricardão? Sem Joca Ramiro, eles num átimo sedesaprumavam,deste mundo desapareciam – valiam o que pulga pula. O

Hermógenes? Certo, um bom jagunço, cabo-de-turma;masdesmerecido de situação política, sem tino nem prosápia.E oRicardão, rico, dono de fazendas, somente viviapensando emlucros, querendo dinheiro e ajuntando. Diadorim, doRicardão

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– 247 –

era que ele gostava menos: – “Ele é bruto comercial...” –disse, e

fechou a boca forte, feito fossecuspir.Eu então disse, pelo conseguinte: – “A bom e bem,

Diadorim. Mas, se é ou se não é, por que é que nãovamos levarinformação sutil a loca Ramiro, para o enfim?” Aí, refaleimuito,ao tanto que escondi minha raiva. Quem sabe Joca

Ramiro, na leida caminhação, não estava esquecido de conhecer oshomens,deixando de farear o mudar do tempo? Viesse, JocaRamiropodia detalhar o podre do são, recontar seus brabosentre asmãos e os dedos. Podia, devia de mandar embora aquelemonstrodo Hermógenes. Se sendo etcétera, se carecesse – eh,uai: sematava!... Diadorim pôs muito os olhos em mim, vi quecom umespanto reprovador, não me achasse capaz de estipulartantamaldade sem escrúpulo. Mau não sou. Cobra? – eledisse? Nemcobra serepente malina não é. Nasci devagar. Sou émuitocauteloso.

Mais em paz, comigo mais, Diadorim foi medesinfluindo.

Ao que eu ainda não tinha prazo para entender o uso,que eudesconfiava de minha boca e da água e do copo, e quenão seiem que mundo-de-lua eu entrava minhas idéias. OHermógenestinha seus defeitos, mas puxava por Joca Ramiro, fiel –punia eterçava. Que, eu mais uns dias esperasse, e ia ver oganho do sol

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nascer. Que eu não entendia de amizades, no sistema de ja-

gunços. Amigo era o braço, e oaço!Amigo? Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo,paramim, é diferente. Não é um ajuste de um dar serviço ao

outro, ereceber, e saírem por este mundo, barganhando ajudas,ainda quesendo com o fazer a injustiça aos demais. Amigo, para

mim, é sóisto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar,do igual oigual, desarmado. O de que um tira prazer de estarpróximo. Sóisto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que agenteseja, mas sem precisar de saber o por que é que é.Amigo meu eraDiadorim; era o Fafafa, o Alaripe, Sesfredo. Ele não quismeescutar. Voltei da raiva.

Digo ao senhor: nem em Diadorim mesmo eu nãofirmava

o pensar. Naqueles dias, então, eu não gostava dele? Empardo.Gostava e não gostava. Sei, sei que, no meu, eu gostava,

permanecente. Mas a natureza da gente é muito

segundas-e –sábados. Tem dia e tem noite, versáveis, em amizadede amor.

Antes o que me atazanava, a mor – disso criorazoávellembrança – era o significado que eu não achava lá, no

meioonde eu estava obrigado, naquele grau de gente. Mesmo

repensando as palavras de Diadorim, eu apurava só este

resto:

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que tudo era falso viver, deslealdades. Traição? Traiçãominha,

fosse no que fosse. Quase tudo o que a gente faz oudeixa defazer, não é, no fim, traição? Há-de-o, a alguém, aalguma coisa.E eu não tardei no meu querer: lá eu não podia maisficar. Dondeeu tinha vindo para ali, e por que causa, e, sem paga depreço, mesujeitava àquilo? Eu iame embora. Tinha de ir embora.Estavaarriscando minha vida, estragando minha mocidade. Semrumo.Só Diadorim. Quem era assim para mim Diadorim? Nãoera,aquela ocasião, pelo próprio dito de estar perto dele, deconversare mais ver. Mas era por não agüentar o ser: se derepente tivessede ficar separado dele, pelo nunca mais. E mesmo forteera aminha gastura, por via do Hermógenes. Malagourado de

ódio:que sempre surge mais cedo e às vezes dá certo, igualpalpite deamor. Esse Hermógenes – belzebu. Ele estavacaranguejando lá.Nos soturnos. Eu sabia. Nunca, mesmo depois, eu nuncasoubetanto disso, como naquele tempo. O Hermógenes,homem quetirava seu prazer do medo dos outros, do sofrimento dos

outros.Aí, arre, foi que de verdade eu acreditei que o inferno émesmopossível. Só é possível o que em homem se vê, o quepor homempassa. Longe é, o Sem-olho. E aquele inferno estavapróximo demim, vinha por sobre mim. Em escuro, vi, sonhei coisasmuitoduras. Nas larguezas do sono da

gente.

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A já, que ia m’embora, fugia. Onde é que estavaDiadorim?

Nem eu não imaginava que pudesse largar Diadorim ali.Ele erameu companheiro, comigo tinha de ir. Ah, naquela horaeugostava dele na alma dos olhos, gostava da banda defora demim. Diadorim não me entendeu. Se engrotou. Assaz,também,acho que me acuso: que não tive um ânimo de francofalar. Sefosse eu falasse total, Diadorim me esbarrava, no tolher,não meentendia. A vivo, o arisco do ar: o pássaro – aquele poderdele.Decerto vinha com o nome de Joca Ramiro! JocaRamiro... Essenem a gente conseguia exato real, era um nome só,aquela graça,sem autoridade nenhuma avistável, andava por longe, seera queandava. Teve um instante, bambeei bem. Foi mesmo

aquela vez?Foi outra? Alguma, foi; me alembro. Meu corpo gostavadeDiadorim. Estendi a mão, para suas formas; mas, quandoia,bobamente, ele me olhou – os olhos dele não medeixaram.Diadorim, sério, testalto. Tive um gelo. Só os olhosnegavam. Vi– ele mesmo não percebeu nada. Mas, nem eu; eu tinha

percebido? Eu estava me sabendo? Meu corpo gostavado corpodele, na sala do teatro. Maiormente. As tristezas ao redorde nós,como quando carrega para toda chuva. Eu podia pôr osbraçosna testa, ficar assim, lorpa, sem encaminhamentonenhum. Que éque queria? Não quis o que estava no ar; para isso,

mandei viruma idéia de mais longe. Falei sonhando: – “Diadorim,você não

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– 251 –

tem, não terá alguma irmã, Diadorim?” – voz minha; eu

perguntei.

Sei lá se ele riu? O que disse, que resposta? Seiquando aamargura finca, o que é o cão e a criatura. De tristeza,

tristeságuas, coração posto na beira. Irmã nem irmão, ele nãotinha: –“Só tenho Deus, Joca Ramiro... e você, Riobaldo...” – ele

declarou. Hê, de medo, coração bate solto no peito; masdealegria ele bate inteiro e duro, que até dói, rompe paradiante naparede. – “Diadorim, então quem foi esse moçoLeopoldo, quemorreu seu amigo?” – eu indaguei, de sem-tempo, nemseiporquê; eu não estava pensando naquilo. Antes já euestava paratrás de ter perguntado, palavras fora da boca. –“Leopoldo? Umamigo meu, Riobaldo, de correta amizade...” – eDiadorim desfezassoprado um suspiro, o que muda melhor. – “Até tefalaramnele, Riobaldo? Leopoldo era o irmão mais novo de locaRami-ro...” Aquilo, eu já soubesse demais – que Joca Ramiro se

realçasse por riba de tudo, reinante. Mas pude ter alínguasofreada. – “Vamos embora daqui, juntos, Diadorim?Vamospara longe, para o porto do de-Janeiro, para o sertão dobaixio,para o Curralim, São-Gregório, ou para aquele lugar nosgerais,chamado Os-Porcos, onde seu tio morava...” De arrancar,demeu falar, de uma sede. Aos tantos, fui abaixando osolhos –

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– 252 –

constando que Diadorim me agarrava com o olhar, correque um

silêncio de ferro. Assombrei de mim, de desprezo,desdenhado,de duvidar da minha razão. O que eu tinha falado eraumasdoideiras. Diadorim esperou. Ele era irrevogável. Então,eu saí dali, querendo esquecer ligeiro o atual. Minha caraestavapegando fogo.

Andei, em dei, até que lembrei: o Garanço. Bom, oGaranço, esse ia comigo, me seguia em tudo, era pobrehomemà espera de qualquer ordem cordial. Isto ele mesmo nemsabia,mas era: que carecia era de alguma amizade. Estava lá,curvado,cabeçudo como uma cigarra. Estava cozinhando pequis,numalata. – “Eh, eh, nós!...” – ele assim dizia. Ladeei conversa.Eleme ouvia, com anuídos, e fazendo uma cara deentender. Nãoconseguia. Só conseguia demonstrar os tamanhos de suacabeça.Ao que bastava um meu maior cochicho, e o Garançovinha,servia de companheiro para fugirmos. O mais quepudessehaver, era ele primeiro perguntar: – “E o Reinaldo?” ;porque jáestava acostumado com eu e Diadorim sermos dois, e elequererser o três. Então, eu respondi: – “Segredo, eh, Garanço.

Segredo, eh, e vamos!” – e que Diadorim era para virdepois. OGaranço tinha alguma diferença, por alguma banda desuanatureza ele se desapartava da

 jagunçagem.

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– 253 –

Mas eu não cheguei a falar, não quis, não expliqueinada.

Que era que eu ia fazer, às fugas com aquele prascóvio,pelo sul epelo norte, nos sertões da Jaíba? Ele só sabia cumprirobediência,no que eu riscasse, governado por meu querer e porminha idéia;um companheiro assim não aumentava segurança minha

nenhuma. Quero sombra? Quero eco? Quero cão? Não,com eleeu não me fazia, melhor esperar; eu ia ficando. Desse noquedesse; mais um tempo. Algum dia, podia Diadorim mudardetenção. Em Diadorim era que eu pensava, de fugir juntocom eleera que eu carecia; como o rio redobra. O Garanço seregalavacom os pequis, relando devagar nos dentes aquela polpaamarelaenjoada. Aceitei não, daquilo não provo: por demais

distraídoque sou, sempre receei dar nos espinhos, craváveis emlíngua. –“Eh, eh, nós...” – o Garanço reproduzia, tão satisfeito.Minhaamizade sobrou um pouco para ele, que era criatura desimplescoração. Digo ao senhor: naquele dia eu tardava, nomeio desozinha travessia.

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu

desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelosanos quese já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisaspassadas –de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eufalei foiexato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. Sãotantas

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– 254 –

horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudomiúdo

recruzado. Se eu fosse filho de mais ação, e menos idéia,isso sim,tinha escapulido, calado, no estar da noite, varava dezléguas,madrugada, me escondia do largo do sol, varava maisdez,passava o São Felipe, as serras, as Vinte-e-Uma-Lagoas,

encostava no São Francisco bem de frente da Januária,passava,chegava em terra cidadã, estava no pique. Ou mepegassem nocaminho, bebelos ou Hermógenes, me matassem?Morria comum bé de carneiro ou um au de cão; mas tinha sido ummaisdestino e uma mor coragem. Não valia? Não fiz. Quemsabe nempensei sério em Dia~ dorim, ou, pensei algum, foi emvezo dedesculpa. Desculpa para meu preceito, mesmo. Quanto

pior maisbaixo se caiu, maismente um carece próprio de serespeitar. Demim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nóstodos. Maseu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisãode fuga.

As razões de não ser. O que foi que eu pensei? Nas

terríveis dificuldades; certamente, meiamente. Como iapoderme distanciar dali, daquele ermo jaibão, em enormesvoltas ecaminhadas, aventurando, aventurando? Acho que eunão tinhaconciso medo dos perigos: o que eu descosturava eramedo deerrar – de ir cair na boca dos perigos por minha culpa.Hoje, sei:medo meditado – foi isto. Medo de errar. Sempre tive.Medo de

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errar é que é a minha paciência. Mal. O senhor fia?Pudesse tirar

de si esse medode-errar, a gente estava salva. O senhortece?Entenda meu figurado. Conforme lhe conto: será que eumesmo já estava pegado do costume conjunto de ajagunçado?Será, sei.Gostar ou não gostar, isso é coisa diferente. O sinal éoutro. Umainda não é um: quando ainda faz parte com todos. Eunemsabia. Assim que o Paspe tinha agulhas grandes, fio esovela:consertou minhas alpercatas. Lindorífico me cedeu, portroco deespórtula, um bentinho com virtudes fortes, dito desãossalavá ecruz-com-sangue. E o Elisiano caprichava de cortar edescascarum ramo reto de goiabeira, ele que assava a carne maisgostosa,as beiras tostadas, a gordura chiando cheio. E o Fonfredo

cantava loas de não se entender, o Duvino de tudoarmavarisada e graça, o Delfim tocando a viola, Leocádiodançava umvalsar, com o Diodolfo; e Geraldo Pedro e o Ventarol que

queriam ficar espichados, dormindo o tempo todo, oVentarolroncasse – ele possuía uma rede de casamento, de bom

algodão,com chuva de rendas rendadas... Aí e o Jenolim e oAcrísio, e João Vaqueiro, que depunham por mim com uma estima

diferente, só porque se tinha viajado juntos, vindo dodas-Velhas: – “Viva, companheiro tropeiro...” – saudavam. Aoquese jogava truque, e douradinha e douradão, por cima de

courosde rês. Aí a troça em beirada de fogueiras, o vuvo defalinhas e

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falas, no encorpar da noite. Artes que havia uma alegria.Alegria,

é o justo. Com os casos, que todos iam contando, decombates etiroteios, perigos tantos vencidos, escapulas milagrosas,altascoragens... Aquilo, era uma gente. Ali eu estava noentremeiodeles, esse negócio. Não carecia de calcular o avante deminhavida, a qual era aquela. Saísse dali, tudo viravaobrigação minhatrançada estreita, de cor para a morte. Homem foi feitopara osozinho? Foi. Mas eu não sabia. Saísse de lá, eu não tinha

contrafim. Com tantos, com eles, gente vivendo sorte, se

cumpria o grosso de uma regra, por termo havia de virumganho; como não havia de ter desfecho geral? Por queera quetodos ficavam ali, por paz e por guerra, e não se

desmanchava obando, não queriam ir embora? Reflita o senhor nisso,que foi oque depois entendi vasto.

Desistir de Diadorim, foi o que eu falei? Digo,desdigo.Pode até ser, por meu desmazelo de contar, o senhor

estejacrendo que, no arrancho do acampo, eu pouco visseDiadorim,amizade nossa padecesse de descuido ou míngua. Oengano. Tudo em contra. Diadorim e eu, a gente parava em somde voz ealcance dos olhos, constante um não muito longe dooutro. Demanhã à noite, a afeição nossa era duma cor e dumapeça.Diadorim, sempre atencioso, esmarte, correto em seubom

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proceder. Tão certo de si, ele repousava qualquer mauânimo.

Por que é, então, que eu salto isso, em resumo, comonão deviade, nesta conversa minha abreviã? Veja o senhor, o queé muito emil: estou errando. Estivesse contando ao senhor, portudo,somente o que Diadorim viveu presente mim, o tempo –emrepetido igual, trivial – assim era que eu explicava aosenhoraquela verdadeira situação de minha vida. Por que é,então, quedeixo de lado? Acho que o espírito da gente é cavalo queescolheestrada: quando ruma para tristeza e morte, vai nãovendo o queé bonito e bom. Seja? E, aquele Garanço, olhe: o que eudeledisse, de bondade e amizade, não foi estrito. Sei que,naquela vez,não senti. Só senti e achei foi em recordação, que

descobri,depois, muitos anos. Coitado do Garanço, ele queriarelatar, mefalava: – “Fui almocreve, no Serem. Tive três filhos...”Mas, quesorte de jagunço recluta era ele – assim meninoso, jalofoe bom.– “Eta, e você já matou seus muitos homens, Garanço?” –poisperguntei. O riso dele ficava querendo ser mais grosso: –

“Eh,eh, nós... Sou algum medroso? E mecê encomenda oque, no rifleque está em minha mão, mano velho! Eh, nãodesprevino, nãolhe envergonho o desse...” O Garanço, mesmo afirmo,acho quenunca duvidou de coisa nenhuma. Toda tardeza dele nãodeixava.E só. Comum de benquistar e

malquistar.

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O senhor entenderá? Eu não entendo. Aquele

Hermógenes me fazia agradados, demo que ele gostavade mim.Sempre me saudando com estimação, condizia umgracejoamistoso ou umas boas palavras, nem parecia ser obedegueba.Por cortesia e por estatuto, eu tinha de responder. Mas,em mal.Me irava. Eu criava nojo dele, já disse ao senhor. Aversãoquerevém de locas profundas. Nem olhei nunca nos olhosdele.Nojo, pelos eternos – razão de mais distâncias. Aquelehomem,para mim, não estava definitivo. E arre que ele nãodesconfiava,não percebia! Queria conversa, me chamava; eu tinha deir – eleera o chefe. Fiquei de ensombro. Diadorim notou; medeuconselho: – “Modera esse gênio que você tem, Riobaldo.

Aspessoas não são tão ruins agrestes.” – “Dele não metemo!” – eurespondi. Eu podia xingar com os olhos. Aí, oHermógenes mepresenteou com um nagã, e caixas de balas. Estive paranemaceitar. Eu já possuía revólver meu, carecia algumdaquele, detanto só cano, tão enorme? Por insistências dele,

mesmo, comaquilo fiquei. Cuspi, depois. Dado que eu nunca iaretribuir!Queria eu lá viver perto de chefes? Careço é de pousarlonge daspessoas de mando, mesmo de muita gente conhecida.Sou peixede grotão. Quando gosto, é sem razão descoberta,quandodesgosto, também. Ninguém, com dádivas e gabos, não

metransforma. Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de

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criaturas filhos-de-deus – felão de mau. Meus ouvidos

expulsavam para fora a fala dele. Minha mão não tinhasido feitapara encostar na dele. Ah, esse Hermógenes – eupadecia queele assistisse neste mundo... Quando ele vinha conversar

comigo, no silêncio da minha raiva eu pedia até aodemôniopara vir ficar de permeio entre nós dois, para dele meapartar. Eupodia rechear de balas aquele nagã próprio, edescarregar neletiros, entre os todos olhos. O senhor tolere e releve estaspalavrasminhas de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu sentia,sofria. Euera assim. Hoje em dia, nem sei se sou assimmais.

Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajudado

ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outraaumentamais forte. Coração cresce de todo lado. Coração vigefeitoriacho colominhando por entre serras e varjas, matas ecampinas.Coração mistura amores. Tudo cabe. Conforme contei ao

senhor, quando Otacília comecei a conhecer, nas serrasdos ge-rais, Buritis Altos, nascente de vereda, Fazenda SantaCatarina.Que quando só vislumbrei graça de carinha de riso eboca, e oscompridos cabelos, num enquadro de janela, por o malaceso deuma lamparina. Mas logo fomos para acomodar, numarebaixa deengenho-de-pilões, lá pernoitamos. Eu, com Diadorim,Alaripe,

 João Vaqueiro e Jesualdo, e o Fafafa. No querepontávamos de

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dura viagem: tudo o que era corpo era bom cansaço.Mas eu

dormi com dois anjos-da-guarda.

O que lembro, tenho. Venho vindo, de velhasalegrias. AFazenda Santa Catarina era perto do céu – um céu azul

norepintado, com as nuvens que não se removem. A genteestavaem maio. Quero bem a esses maios, o sol bom, o frio de

saúde,as flores no campo, os finos ventos maiozinhos. A frentedafazenda, num tombado, respeitava para o espigão, para océu.Entre os currais e o céu, tinha só um gramado limpo eumarestinga de cerrado, de donde descem borboletasbrancas, quepassam entre as réguas da cerca. Ali, a gente não vê ovirar dashoras. E a fogo-apagou sempre cantava, sempre. Paramim, atéhoje, o canto da fogo-apagou tem um cheiro de folhas deassa-peixe. Depois de tantas guerras, eu achava um valorviável emtudo que era cordato e correntio, na tiração de leite, numpapudoque ia carregando lata de lavagem para o chiqueiro, nasgalinhas-d’angola ciscando às carreiras no fedegoso-bravo, com

florezinhas amarelas, e no vassoural comido baixo, pelogado epelos porcos. Figuro que naquela ocasião tive curtasaudade doSão Gregório, com uma vontade vã de ser dono de meuchão,meu por posse e continuados trabalhos, trabalho desegurar aalma e endurecer as mãos. Estas coisas eu pensavarepassadas. E

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estava lá, outra vez, nos gerais. O ar dos gerais, o senhorsabe.

 Tomamos farto leite. Trouxeram café para nós, emxicrinhas. Aoque ficamos por ali, à-toa, depois de uma conversa comovelhozinho, avô. Otacília eu revi já foi na sobremanhã.Elaapareceu.

Ela era risonha e descritiva de bonita; mas, hoje-em-

dia, osenhor bem entenderá, nem ficava bem conveniente, medavapejo de muito dizer. Minha Otacília, fina de recanto, emseurealce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença.Fui euque primeiro encaminhei a ela os olhos. Molhei mão emmel,regrei minha língua. Aí, falei dos pássaros, que tratavamde seuvoar antes do mormaço. Aquela visão dos pássaros,aqueleassunto de Deus, Dioadorim era quem tinha meensinado. MasDiadorim agora estava afastado, amuado, longe numemperreio.Principal que eu via eram as pombas. No bebedouro,pombasbando. E as verdadeiras, altas, cruzando do mato. – “Ah,

 jápassaram mais de vinte verdadeiras...” – palavras deOtacília,que contava. Essa principiou a nossa conversa. Salvo unsrisos esilêncios, a tão. Toda moça é mansa, é branca e delicada.

Otacília era a mais.

Mas, na beira da alpendrada, tinha um canteirozinhode

 jardim, com escolha de poucas flores. Das quesobressaíam, era

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uma flor branca – que fosse caeté, pensei, e parecia umlírio –

alteada e muito perfumosa. E essa flor é figurada, osenhor sabe?Morada em que tem moças, plantam dela em porta dacasa-de-fazenda. De propósito plantam, para resposta epergunta. Eunem sabia. Indaguei o nome daflor.

– “Casa-comigo...” – Otacília baixinho me atendeu.

E, nodizer, tirou de mim os olhos; mas o tiritozinho de sua vozeuguardei e recebi, porque era de sentimento. Ou não era?Daquelecurto lisim de dúvidas foi que minou meu maisquerer. E onomeda flor era o dito, tal, se chamava – mas para osnamoradosrespondido somente. Consoante, outras, as mulhereslivres,dadas, respondem: – “Dorme-comigo... “Assim era quedevia dehaver de ter de me dizer aquela linda moça Nhorinhá,filha deAna Duzuza, nos Gerais confins; e que também gostou demim eeu dela gostei. Ah, a flor do amor tem muitos nomes.Nhorinháprostituta, pimenta-branca, boca cheirosa, o bafo demenino-pequeno. Confusa é a vida da gente; como esse rio meuUrucuiavai se levar no mar.

Porque, no meio do momento, me virei para onde láestavaDiadorim, e eu urgido quase aflito. Chamei Diadorim – e

era umchamado com remorso – e ele veio, se chegou. Aí, poralgumacoisa dizer, eu disse: que estávamos falando daquelaflor. Não

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estávamos? E Diadorim reparou e perguntou tambémque flor

era essa, qual sendo? – perguntou inocente. – “Ela sechama éliroliro...” – Otacília respondeu. O que informou, altaneiradisse,vi que ela não gostava de Diadorim. Digo ao senhor quealegriaque me deu. Ela não gostava de Diadorim – e ele tãobonitomoço, tão esmerado e prezável. Aquilo, para mim,semelhava ummilagre. Não gostava? Nos olhos dela o que vi foi asco,

antipatias, quando em olhar eles dois não seencontraram. EDiadorim? Me fez medo. Ele estava com meia raiva. Oque édose de ódio – que vai buscar outros ódios. Diadorim eramaisdo ódio do que do amor? Me lembro, lembro dele nessahora,nesse dia, tão remarcado. Como foi que não tive um

pressentimento? O senhor mesmo, o senhor podeimaginar dever um corpo claro e virgem de moça, morto à mão,esfaqueado,tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descoradosnobranquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos’meiofechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que

era umdestino e uma surda esperança em sua vida?! Ah,Diadorim... Etantos anos já se passaram.

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Desde esse primeiro dia, Diadorim guardou raiva de

Otacília. E mesmo eu podia ver que era açoite de ciúme.Osenhor espere o meu contado. Não convém a gentelevantarescândalo de começo, só aos poucos é que o escuro éclaro. QueDiadorim tinha ciúme de mim com qualquer mulher, eu jásabia,fazia tempo, até. Quase desde o princípio. E, naquelesmesestodos, a gente vivendo em par a par, por altos e baixos,

amarguras e perigos, o roer daquilo ele não conseguiaesconder,bem que se esforçava. Vai, e vem, me intimou a umtrato: que,enquanto a gente estivesse em oficio de bando, quenenhum denós dois não botasse mão em nenhuma mulher.Afiançado,falou: – “Promete que temos de cumprir isso, Riobaldo,

feito jurado nos Santos-Evangelhos! Severgonhice e airadoaveioservem só para tirar da gente o poder da coragem...Você cruza e jura?!” Jurei. Se nem toda a vez cumpri, ressalvo é aspoesias docorpo, malandragem. Mas Diadorim dava como exemploa regrade ferro de Joãozinho Bem-Bem – o sempre sem mulher,

masvalente em qualquer praça. Prometi. Por um prazo, jejueide nemnão ver mulher nenhuma. Mesmo. Tive penitência. Osenhorsabe o que isso é? Desdeixei duma roxa, a que mesuplicou oscarinhos vantajosos. E outra, e tantas. E uma rapariga,das deluxo, que passou de viagem, e serviu aos companheirosquasetodos, e era perfumada, proseava gentil sobre as sérias

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imoralidades, tinha beleza. Não acreditei em juramento,

nemnaquilo de seo Joãozinho Bem-Bem; mas Diadorim mevigiava.De meus sacrifícios, ele me pagava com seu respeito, ecom maisamizade. Um dia, no não poder, ele soube, ele quase viu:eu tinhagozado hora de amores, com uma mocinha formosa edianteira,morena cor de doce-de-buriti. Diadorim soube o que

soube, medisse nada menos nada. Um modo, eu mesmo foi queuns diascalado passei, na asperidão sem tristeza. De déu emdemos,falseando; sempre tive fogo bandoleiro. Diadorim nãome acu-sava, mas padecia. Ao que me acostumei, não meimportava. Quedireito um amigo tinha, de querer de mim um resguardodetamanha qualidade? Às vezes, Diadorim me olhasse comumdesdém, fosse eu caso perdido de lei, descorrigido embandalho.Me dava raiva. Desabafei, disse a ele coisas pesadas. –“Não souo nenhum, não sou frio, não... Tenho minha força dehomem!”Gritei, disse, mesmo ofendendo. Ele saiu para longe demim;

desconfio que, com mais, até ele chorasse. E era para euterpena? Homem não chora! – eu pensei, para formas.Então, eu iadeixar para a boca dos outros aquela menina que seagradou demim, e que tinha cor de doce-deburiti e os seios tãograndes?!Ah, essa agora não estava a meu dispor, tínhamosviajado muitopara longe de onde ela morava. Mas entramos numarraial maior,

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com progresso de bordel, no hospedado daquilo usufruí 

muito,sou senhor. Diadorim firme triste, apartado da gente,naquele ar-raial, me lembro. Saí alegre do bordel, acinte. Depois, oFafafa,numa venda, perguntou se não tinham chá de mate seco,

comercial; e um homem tirou instantâneo nosso retrato.Sechamava o lugar: São João das

Altas.Mulher esperta, cinturinhazinha, que me fez bem. Osenhorreleve e não reprove. Demasias de dizer sobem com as

lembranças da mocidade. Não estou contando? Poisminha vidaem amizade com Diadorim correu por muito tempo desse

 jeito.Foi melhorando, foi. Ele gostava, destinado, de mim. E eu

–como é que posso explicar ao senhor o poder de amorque eucriei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio.Eu iacom ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta demim.

E ainda falhamos dois dias na Fazenda SantaCatarina.Naquele primeiro dia, eu pude conversar outras vezes

comOtacília, que, para mim, hora em mais hora embelezava.Minhaalma, que eu tive; e minha idéia esbarrada. Conheci queOtacíliaera moça direta e opiniosa, sensata mas de muita ação.Ela nãotinha irmão nem irmã. Sor Amadeu chefiava largo:grandes gadosem léguas de alqueires. Otacília não estava noiva de

ninguém. E

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ia gostar de mim? De moça-de-família eu pouco

entendesse. Aser, a Rosa’uarda? Assim igual eu Otacília não queriaquerer;salvante assente que da Rosa’uarda nunca me lembreicomdesprezo: não vê, não cuspo no prato em que o bom jácomi.Sete voltas, sete, dei; pensamentos eupensava.

Revirei meu fraseado. Quis falar em coração fiel esentidascoisas. Poetagem. Mas era o que eu sincero queria –

como emfala de livros, o senhor sabe: de bel-ver, bel-fazer e bel-amar. Oque uma mocinha assim governa, sem precisão de armasegolpes, guardada macia e fina em sua casa-grande,sorrindosantinha no alto da alpendrada... E ela queria saber tudo

de mim,mais ainda me perguntava. – “Donde é mesmo que osenhor é,donde?” Se sorria. E eu não medi meus alforjes: fuicontando queera filho de Seô Selorico Mendes, dono de três possosas

fazendas, assistindo na São Gregório. E que não tinha emminhascostas crime nenhum, nem estropelias, mas que somente

porcálculos de razoável política era que eu vinha conduzindoaqueles

 jagunços, para Medeiro Vaz, o bom foro e patente fiel detodosestes Gerais. Aqueles? Diadorim e os outros? Eu eradiferentedeles.

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Fiquei esperando o que ela desse em resposta. Nem

nadanão acreditava? Mas Otacília mudou para séria a feiçãodo rosto,não queria mais de minha vida só assim meiamenteindagar. Osde todos lindos olhos dela estavam me assinalando océu comessas nuvens. Eu tinha renegado Diadorim, travei o quetivevergonha. Já era para entardecendo. Vindo na vertente,

tinha oquintal, e o mato, com o garrulho de grandes maracanãspousadas numa embaúba, enorme, e nas mangueiras,que o soldourejava. Da banda do serro, se pegava no céu azul,comaquelas peças nuvens sem movimento. Mas, de parte dopoente,algum vento suspendia e levava rabos-de-galo, comoque comeles fossem fazer um seu branco ninho, muito longe,ermo dosGerais, nas beiras matas escuras e águas todas doUrucuia, enesse céu sertanejo azul-verde, que mais daí a poucoprincipiavaa tomar raias feito de ferro quente e sangues. Digo,porque atéhoje tenho isso tudo do momento riscado em mim, comoa

mente vigia atrás dos olhos. Por que, meu senhor? Lheensino:porque eu tinha negado, renegado Diadorim, e por issomesmologo depois era de Diadorim que eu mais gostava. Aespécie doque senti. O sol entrado.

Daí, sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossanoite, na

rebaixa do engenho, deitados em couros e esteiras –nem se tinha

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o espaço de lugar onde rede armar. Diadorim perto de

mim. Eunão queria conversa, as idéias que já estavam seacontecendoeram maiores. Assim eu ouvindo o ciciri dos grilos. Nabeira darebaixa, a fogueira feita sarrava se acabando, Alaripeainda estevelá, mexendo em tição, pitou um cigarro. O Jesualdo;Fafafa e

 João Vaqueiro não esbarravam de falar, mais o Alaripe

também,repesavam as vantagens da Santa Catarina. No que eupensava?Em Otacília. Eu parava sempre naquela meia-incerteza,semsaber se ela sim-se. Ao que nós todos pensávamos asmesmascoisas; o que cada um sonhava, quem é quesabia?

– “Aquilo é poço que promete peixe...” – o Jesualdo

disse.Dela devia de ser. – “Amigo, não toque no nome dessamoça,amigo!...” – eu falei. Ninguém deu resposta, eles viamque era asério fatal, deviam de estar agora desqueixelados, noescuro. Porlonge, a mão-da-lua suspirou o grito:–

Floriano,foi, foi, foi... –

que gemia nas almas. Então, era que em alguma parte a

lua estavase saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim ficamirando,apaixonada abobada. Deitado quase encostado em mim,

Diadorim formava um silêncio pesaroso. Daí, escutei um

entredizer, percebi que ele ansiava raiva. Derepente.

– “Riobaldo, você está gostando dessa

moça?”

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Aí era Diadorim, meio deitado meio levantado, o

assoprodo rosto dele me procurando. Deu para eu ver que eleestavabranco de transtornado? A voz dele vinha pelosdentes.

– “Não, Diadorim. Estou gostando não...” – eu disse,

neguei que reneguei, minha almaobedecia.

– “Você sabe do seu destino,Riobaldo?”Não respondi. Deu para eu ver o punhal na mãodele, meioocultado. Não tive medo de morrer. Só não queria que os

outrospercebessem a má loucura de tudo aquilo. Treminão.

– “Você sabe do seu destino, Riobaldo?” – ele

reperguntou. Aí estava ajoelhado na beira demim.

– “Se nanja, sei não. O demônio sabe...” – eurespondi –“Pergunta...”

Me diga o senhor: por que, naquela extrema hora,

eu nãodisse o nome de Deus? Ah, não sei. Não me lembrei dopoder dacruz, não fiz esconjuro. Cumpri como se deu. Como odiaboobedece – vivo no momento. Diadorim encolheu o braço,com opunhal, se defastou e deitou de corpo, outra vez. Osolhos deledançar produziam, de estar brilhando. E ele devia de

estarmordendo o correiame de couro.

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– 271 –

Assisado, me enrolei bem no cobertor; mas não

adormeci.Eu tinha dó de Diadorim, eu ia com meu pensamentoparaOtacília. Me balanceei assim, adiantado na noite, emtanto gaio,em tanto piongo, com todas as novas dúvidas e idéias, e

esperanças, no claro de uma espertina. Com muito, melevantei.Saí. Tomei a altura do sete-estrelo. Mas a lua subia

estada,abençoando redondo o friinho de maio. Era da borda-do-campoque a mãe-da-lua sofria seu cujo de canto, do vulto deárvores damata cercã. Quando a lua subisse mais, as estrelas sesumiam paradentro, e até as seriemas podiam se atontar de gritar. Aoquefiquei bom tempo encostado no cajueiro da beira docurral. Sóolhava para a frente da casa-da-fazenda, imaginandoOtacíliadeitada, rezada, feito uma gatazinha branca, no cavo doslençóislavados e soltos, ela devia de sonhar assim. E, derepente, pres-senti que alguém tinha vindo por detrás de mim, mevigiava.Diadorim, fosse? Não virei a cara para ver. Não tivereceio.

Nunca posso ter medo das pessoas de quem eu gosto.Digo.Esperei mais, outro tempo. Daí, vim voltando. Mas lá nãoestavapessoa nenhuma, entre claridade e sombras. Ilusãominha, afantasiação. Bebi água do rego, com o frio da noite elacorriamorna. Tornei a entrar na rebaixa. Diadorim permanecialá,

 jogado de dormir. De perto, senti a respiração dele,remissa e

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delicada. Eu aí gostava dele. Não fosse um, como eu,

disse aDeus que esse ente eu abraçava e beijava. E, com ovago, devode ter adormecido – porque acordei quando Diadorim nomexeleve se levantou, saiu sem rumor, levando a capanga, iatomar seubanho em poço de córrego, das barras no clarear. Desdeo que,depressa eu tornei a me

dormir.Mas, cedo no amanhecer, o sor Amadeu tinhachegado, ecom notícia urgente: que o grosso do bando de Medeiro

Vazrecruzava, de lá a quinze léguas, da Vereda-Funda para a

Ratragagem, e nós tínhamos de seguir, sem folga,

supraditamente. No que Nhô Vô Anselmo me deu um dito

afeiçoado e diferente – entendi que o velhozinho sabiade algumacoisa, e que não desgostava que eu viesse a ficar netodele. Nósalmoçamos e montamos. Diadorim, Alaripe, Jesualdo e

 JoãoVaqueiro se retiraram em adiantando, e o Fafafa. Mas eucaceimelhor coragem, e pedi meu destino a Otacília. E ela, por

alegriaminha, disse que havia de gostar era só de mim, e que otempoque carecesse me esperava, até que, para o trato denosso casa-mento, eu pudesse vir com jus. Saí de lá aos grandescantos,tempo-doverde no coração. Por breve – pensei – era queeu medespedia daquela abençoada fazenda Santa Catarina,excelentesproduções. Não que eu acendesse em mim ambição deteres e

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haveres; queria era só mesma Otacília, minha vontade de

amor.Mas, com um significado de paz, de amizade de todos, de

sossegadas boas regras, eu pensava: nas rezas, nasroupagens, nafesta, na mesa grande com comedorias e doces; e, nomeio dosolene, o sor Amadeu, pai dela, que apartasse –destinado paranós dois – um buritizal em dote, conforme o uso dos

antigos.Vim. Diadorim nada não me disse. A poeira dasestradaspegava pesada de orvalho. O birro e o jesus-meu-deus

cantavam.O melosal maduro alto, com toda sua roxidão, roxura.Mas, omais, e do que sei, eram mesmo meus fortespensamentos.Sentimento preso. Otacília. Por que eu não podia ficar lá,

desdevez? Por que era que eu precisava de ir por adiante, com

Diadorim e os companheiros, atrás de sorte e morte,nestesGerais meus? Destino preso. Diadorim e eu viemos, vim;de rotaabatida. Mas, desse dia desde, sempre uma parte de mimficou lá,com Otacília. Destino. Pensava nela. Às vezes menos, às

vezesmais, consoante é da vida. Às vezes me esquecia, àsvezes melembrava. Foram esses meses, foram anos. MasDiadorim, poronde queria, me levava. Tenho que, quando eu pensavaemOtacília, Diadorim adivinhava, sabia,sofria.

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Essas coisas todas se passaram tempos depois.

 Talhei deavanço, em minha história. O senhor tolere minhas másdevassasno contar. É ignorância. Eu não converso com ninguémde fora,quase. Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi comocompadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudodiverso: quernão é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-

coisa.Agora, neste dia nosso, com o senhor mesmo – meescutandocom devoção assim – é que aos poucos vou indoaprendendo acontar corrigido. E para o dito volto. Como eu estava,com osenhor, no meio dos Hermógenes.

Destaque feito: Zé Bebelo vinha vindo. Vinham por

nós.E tivemos notícia: a légua dali, eles estavam chegando,no meiodo dia, patrulhão de cavaleiros. Légua, não era verdade –mas,obra de seis léguas, o sim. E eram só uns sessenta, poraí. Todoo tempo eu vinha sabendo que nosso fim era esse, masmesmoassim foi feito surpresa. Eu não podia imaginar que ia

entrar emfogo contra os bebelos. De certo modo, eu prezava ZéBebelocomo amigo. Respeitava a finura dele – Zé Bebelo:sempreentendidamente. E uma coisa me esmoreceu a torto.Medo, não,mas perdi a vontade de ter coragem. Mudamos deacampo, paraperto, para perto. – “É agora! É hoje!...” O Hermógenesreuniao pessoal, todos. A gente carecia de levar o préstimomaior de

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munição, que se pudesse. Aonde? Diadorim, por um

gesto, mecortou de fazer mais perguntas. Às armas. Diadorim ia,paraaquilo, prezável de passeata. Ah, uma coisa não referi aosenhor.Que era que, aquele tempo, no arranchamento doHermógenes,minha amizade com Diadorim estava sendo feito águaque correem pedra, sem pepa de barro nem pó de turvação. Da

voz dehomens e do tinir de armas em má véspera, não se podiadeixarde receber um lufo de dureza, de mais próprio respeito, emuitacoisinha se empequenava. – “Zé Bebelo é arisco de aviso,

Diadorim... Ele joga seguro: por aí perto, em esconso,deve deter outra tropa de guerra, prontos para virem darretaguarda. Eusei bem – essa a norma dele... Carece de prevenir oHermógenes, João Goanhá, Titão Passos...” – eu nãoretive, edisse. – “Eles sabem, Riobaldo. Toda guerra é essa...” –

Diadorim me respondeu. E eu estava sabendo que eu jádizeraquilp era traição. Era? Hoje eu sei que não, que eu tinhade

zelar por vida e pela dos companheiros. Mas era, traição,istotambém sim: era, porque eu pensava que era. Agora,depoismais do tudo que houve, não foi?

Agarrei minha mochila, comi fria a minha jacuba. Tudoestava sendo determinado decidido, até o que a gente

tinha defazer depois. Aí João Goanhá apartava o pessoal empunhados

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de quinze ou vinte: cada um desses, acabado o fogo,

devia de sereunir em lugar certo comum. Daquela hora em diante,íamos terde brigar em pequenas quantidades. Pelas caras doshomens, euvia que estavam satisfeitos, parecia muito e pouco. Comregozijo,um golinho se bebeu. – “Toma este breve, Riobaldo. Foiminhamãe-de-criação quem costurou para mim. Mas eu

carrego dois...”Era o Feijó, um sacudido oitavão, ele manobrava rifle detrêscanos. Que simpatia demonstrada era essa, eu nuncatinha dadofé daquele Feijó? – “A vamos. Hoje se faz o que não sefaz...” –um se exaltava assim, tive medo de castigo de Deus.Quemquisesse rezar, podia, tinha praça; outros, contritos,

acompanhavam. Outros ainda comiam, zampando,limpavam aboca com as duas mãos. – “Não é medo não, amigos, é otrivialdo corpo!” – explicavam alguns, que ainda careciam de irporsuas necessidades. Restantes risadas davam. Ao quefaltava nemmeia-hora para o sol ir entrando. Daquele lugar, vazio de

moradas e de terras lavradias, a gente ouvia o gugo da juriti comoum chamado acabado, junto com lobo guará já dandogritos depenitência. – “Presta uma demão, aqui...” Ajudei. Era ummon-tesclarense – acho que o cujo nome esqueci – que queriapassartiras de pano, por sola das alpercatas e peito dos pés,reforçando.

 Terminou, e fez os passos de dança, maneiro nas juntas,

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assobiava. Aquele rapaz pensava alguma coisa? –

“Riobaldo?” –Diadorim me disse – “arruma jeito de mudar de lugar, nahora,sempre que puder. E põe cautela: homem rasteja porentre asmoitas, e vem pular nas costas da gente, relampeandofaca.”Diadorim sorria sério. Um outro me esbarrou, quandopassava.Era o Delfim, violeiro. Onde era que a viola ele ia poder

guardar?Eu apertei a mão de Diadorim, e queria sair, andar,gastar.

Conto que chegou o Hermógenes. A voz doHermógenes,dando ordens de guerra – já disse ao senhor? – ficava

clara ecorreta; um podia dizer: que até ficava. Ao menos elesabiaaonde ia levar a gente, e o que queria. Deu resumo do

traço.Que todos cumprissem, que todos soubessem! A partidadoszebebelos estava com posição no Alto dos Angicos –

tabuleirinho de chã. Podiam ter espalhado sentinelasmuitolonge, até na beira do córrego Dinho, ou para lá, emvolta, nascontravertentes. Mas, disso, logo se ia saber, porqual os

espiasnossos rondavam. O que se tinha era de chegar, já comooescuro, e engatinhar às ladeiras, no durado da noite, naartevagarosa. Só íamos abrir fogo, de surpresa, noclarearzinho damadrugada. Cada um de seu Ponto melhor. Tudo tinha devalerPm cnnsagato e finice, até se carecia de respirar só pormetade.Se algum topasse com inimigos, por má-sorte, antes, eleque

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escorresse como pudesse, ou dependesse na faca: atirar

comarma é que não podendo. Sendo que podendo, mas sódepois doHermógenes – que era quem era o dono: – o primeiro tiroeledava. Como cada qual tinha de atirar com sangue-frio, dematarexato. Porque nosso prazo seria acabar com todos, com

brevidade; mais antes que outros deles pudessem vir,

para umreforço. Mesmo assim, Titão Passos ia com uns trintacompanheiros reguardar o caminho de vinda, àemboscada, numtombador de pedra. Já vai que o Hermógenes explicava,devagar,e tudo repetia, com paciência: o dever absoluto era queaté omais tonto aprendesse, e estava definido o rumo detarefa poronde cada um devia de se pôr no chão e começar aengatinhar,virada arriba. Mas, eu, catei o sentido de tudo já naprimeirarazão, e, de cada vez que ele repetia, eu reproduzia – emminhaidéia os acontecimentos se passando, eu já estava lá, erastejava,me aprontava. Peguei a sentir. Me fiz fácil nasarmas.

Por jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O

Hermógenes me chamou. Aí – as cintas e cartucheiras,mochilão,rede passada e um cobertor por tudo cobrir – ele estava

parecendo até um homem gordo. – “Riobaldo, Tatarana,tu vem.Lugar nosso vai ser o mais perigoso. Careço de trêshomensbons, no próximo de meu cochicho.” Para que vou mentirao

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senhor? Com ele me apartar assim, me conferindo valia,

um certoaprazimento me deu. Natureza da gente bebe de águaspretas,agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei. Mesmo comaversão, quedigo, que foi, que forte era, como um escrúpulo. A gente– o quevida é : é para seenvergonhar...

Mas, aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza de querer,queespremi de minha sustância vexada, fui sendo outro – eu

mesmosenti: eu Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrercom aminha valentia. Riobaldo, homem, eu, sem pai, semmãe, semapego nenhum, sem pertencências. Pesei o pé no chão,achegueimeus dentes. Eu estava fechado, fechado na idéia,

fechado nocouro. A pessoa daquele monstro Hermógenes nãoencostavaamizade em mim. E nem ele, naquela hora, não era. Eraumnome, sem índole nem gana, só uma obrigação de chefia.E, porcima de mim e dele, estava Joca Ramiro. Pensei em JocaRamiro.Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não

obedeciaàquele Hermógenes. Dentro de mim falei: – “Eu,Riobaldo, eu!”

 Joca Ramiro é que era – a obrigação de chefia. Mas JocaRamiroparava por longe, era feito uma lei, uma lei determinada.Penseinele só, forte. Pensando: – “Joca Ramiro! Joca Ramiro!

 JocaRamiro!...” A arga que em mim roncou era umdespropósito,uma pancada de mar. Nem precisava mais de ter ódionem receio

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nenhum. E fui desertando da cobiça de mimar o revólver

edesfechar em fígados. Refiro ao senhor: mas tudo isso nobaterde ser. Só. Dessas boas fúrias davida.

Aí, ele tinha que eu escolhesse os para vir juntos.Eu? Eleestava me experimentando? E não tardei: – “O

Garanço...” – eudisse. – “... e este, aqui!” – completei, para aquele

montesclarense apontando. Bem que eu queria tambémo Feijó;mas deviam de ser só dois, a conta já estava. EDiadorim? – osenhor perguntará. Ah, por Diadorim era que eu nãodizia, opensamento nele me repassava. O tempozinho todo,naquelesoflagrante. E estúrdio: eu principalmente não queria

Diadorimperto de mim, para as horas. Por quê? Por que, é o queeumesmo não sabia. Seria que me desvalesse a presençadelecomigo, pelos perigos que eu visse virem a ele, no meiodocombate; ou seria que a lembrança de ter Diadorim

 junto, naqui-lo, me desgostasse, por me enfraquecer, agora eu assim,

duroferro diante do Hermógenes, leão coração? Se sei, sei.Porqueera como eu estava. E assim respondi: que então oGaranço e oMontesclarense iam com agente.

Como saímos, viemos vindo, desfeitos aos dois, aostrês,aos sozinhos. Já a já, era noite. Noite da Jaíba dá de uma

asada,

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uma pancada só. Há-de: que se acostumar com o escuro

nosolhos. Conto tudo ao senhor. O caminhar da gente semedia emsilencioso, nem o das alpercatas não se ouvia. De tantosmatosbaixos, carrascal, o chio dos bichinhos era um milhão só.Por lá acoruja grande avoa, que sabe bem aonde vai, sabe sembarulho. Aquando o vulto dela assombrava em frente da gente no

ar, eufechava os olhos três vezes. O Hermógenes rompiaadiante, nãodizia palavra. Nem o Garanço também, nem oMontesclarense.Isso, em meu sentir, eu a eles agradecia. Quem vaimorrer ematar, pode ter conversa? Só esses pássaros de penamole,gerados da noite – tantos bacuraus insensatos: osebastião quechamava a fêmea, com grandes risadas, pedindo tabaco-bom.Digo ao senhor o que eu ia pensando: em nada. Sóesforçavatenção numa coisa: que era que devia de guardartenência simplese constância miúda, esperando a novidade de cadamomento.Minha pessoa tomava para mim um valor enorme.Aquele

pássaro mede-léguas erguia vôo de pousado no meio daestrada,toda vez ia se abaixar dez braças mais adiante, do jeitomesmo,conforme de comum esses fazem. Bobice dele – não viaque operigo torna a vir, sempre?

Digo tudo, disse: matar-e-morrer? Toleima. Nissomesmo

era que eu não pensava. Descarecia. Era assim: eu iaindo,

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cumprindo ordens; tinha de chegar num lugar, aperrar as

armas;acontecia o seguinte, o que viesse vinha; tudo não ésina? Nanjanão queria me alembrar, de nenhum, nenhuma. Commeia-léguaandada, por um trilho. É preciso não roçar forte nasramagens,não partir galhos. Caminhar de noite, no breu, se jurasabença: oque preza o chão – o pé que adivinha. A gente imagina

uns bu-racões disformes. A gente espera vozes. Eh. Pouquinhasestrelasdando céu; a noite barrava bruta. Digo ao senhor: a noiteé damorte? Nada pega significado, em certas horas. Saiba oque eumais pensei. No seguinte: como é que curiango canta.Que ocuriango canta é: Curí-angú!

A obra de umas cem braças do riacho, oHermógenesesbarrou. Con chegamos. E com as mãos apalpávamos

uns osoutros. Dali em diante, era junto a junto. O Hermógenes,

puxando, enxergava por nós. Que olhos, que esse,descascavamde dentro do escuro qualquer coisa, olhar assim, que

nem o desuindara. Cada um com punhal a ponto, atravessamos ocórrego,pulando pelas alpondras; mais para baixo, sabíamos deumaestiva, mas lá se temia que tivessem botado sentinelas.Ali era olugar pior: um estremecimento me desceu, senti oespaço daminha nuca. Do escurão, tudo é mesmo possível. Nooutro lado,o Hermógenes sussurrou ordens. Deitamos. Eu estavaatrás

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duma árvore, uma almêcega. Mais atrás de mim, o

riacho,passante por suas pedras. Naquela espera, carecíamosde persistirhoras, dando tempo. Assim, a água perto, os mosquitosvêm, elesacordam com o cheiro da cara da gente, não concedemsossego.Acender cigarro e pitar, não se podia. A noite é umagrandedemora. Ah o que os mosquitos infernizavam. Por isso

mesmo,direi, era que Hermógenes tinha escolhido ali: queninguémpegasse no sono, que a mosquitada não deixava? Masnão seriade mim que pudesse ferrar no sono assim perto daquelehomem,príncipe das tantas maldades. O que eu queria era quetudosucedesse, mal ou bem aquela noite tivesse termo determinada. –“Tá aqui, toma...” – ouvi. Era o Hermógenes, um taco defumome dando, que em forte cachaça ele tinha acabado deempapar.Era para se esfregar na cara e nas mãos. Aceitei. Fossecoisa decomer, não aceitava. Nada não disse, não agradeci.Aquilo era doserviço de armas, fazia parte. E esfreguei, bem. Ao queos

mosquitos deixaram de me ferroar. Desde fiquei, poisentão, medivertindo de beliscar a casca da almêcega, aquela resinade ici-í.Daí, os pensamentos que tive foram os que nemmerecem, e eunão sou capaz de dar narração: retrato de pessoasdiversas,ressalte de conversas tolas, coisas em vago das viagensque eutinha feito. A noite durava.

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Haja de contar o que foi – o todo de se escorregar

paracima a encosta – até ao ponto, donde a espera de tocaiadevia deser? Aquilo o igual, sempre sendo. Um homem searraiga emterra, no capim, no chão, e vai, vai – sendo serepente –de gato-em-caça. Carece de repartir frouxo o peso do corpo,semelhantefosse nadando; cotovelo e joelho é que transpõem. Tudo

um aide vagar, que chega aporreia, tem que ser. Não valearranco depressa, o senhor tem de ficar o comprido que pode, pormais de.As juntas da gente estalam, o senhor mesmo escuta. Secoça acanela com o calcanhar; – estando com polaina nãoadianta. Decada vez, o senhor vira o corpo num lado: e olha, escuta.

Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo.Pássaropousado em moita, que se assusta forte a vôo, dá avisoaoinimigo. Pior são os que têm ninho feito, às vezesesvoaçam aosgritos, no mesmo lugar – dão muito aviso. Aí quando étempo devaga-lume, esses são mil demais, sobre toda a parte: agente mal

chega, eles vão se esparramando de acender, na gramaem redor éuma esteira de luz de fogo verde que tudo alastra – é opior aviso.O que nós estávamos fazendo era uma razão de loucuramuita,coisa que só mesmo em guerra é que se quer. O punhal

travessado na boca, sabe?: sem querer, a gente rosna. Àsguardas,qualquer mato ameaçava que ia bulir: com o inimigovindo dele.

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Árvores branquiçadas, traiçoeiramente. A gente amassa

com abarriga espinhos e gravetos, é preciso de saber quando éque émelhor se calcar no estrepe firme com gosto – que é oque maisdefende d’ele não se cravar. O inimigo pode estarengatinhandotambém, versa por detrás, nunca se tem certeza. Ocheiro deterra agoura mal. Capim de beira em fio, que corta a

cara. E unsgafanhotos pulam, têm um estourinho, tlique, eufigurava que eradas estrelas remexidas, titique delas, caindo por minhascostas. Trabalhos de unha. O capim escorria, do sereno da noite,

lagrimado. Ah, e cobra? Pensar que, num corisco demomento,se pode premer mão numa rodilha grossa de cascavel,numa certamorte dessas. Pior é a surucucu, que passeia longe,noturnazã,monstro: essa é o que há com mais doida ligeireza nestemundo.Rezei a jaculatória de São Bento. A água do sereno memolhava,da macega, das folhas, – é o que digo ao senhor; medesgostava.Raio de um repente, afastaram a erva alta, minhacabeça eu

encolhi. Era um tatu, que ia entrando no buraco, fungou eescuteio esfrego de suas muxibas. Tatu-peba, e eu no rés dele.Quemodo quê? Rastejando de minha banda da direita, oHermógenesrompia, eu sentia o bafo duma boca, e aquele avultardeitado debicho duro, braço por braço. O Garanço e oMontesclarenseespigavam vez mais adiante, vez mais atrás. Quando desem-

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menos, o Hermógenes me esbarrou. Ele falou um murmo

– mecochichou de mão em concha. – “É aqui mesmo...” – eleredisse.Onde era que estavam as estrelas dianteiras, e osmacios pássarosda noite? – pensei. Eu tinha fechado os olhos. O cheirodumaraçá-branco formava bolas.Quietei.

Até que o dia deu, que é que foi do meu tempo, quehorasque se passaram? Aí eu podia medir, pelas estrelas que

vão emmovimento, descendo no rumo de seu poente, elasviravam. Mas,digo ao senhor, eu não olhei para o céu. Não queria. Nãopodia.Assim espichado, no escabro, um sofre o festo da noite,o chãoesfriava. Pensei: será se eu fosse adoecer?; um longe de

dor-de-dente já me indispondo. Aquilo que cochilei – dormir, euemfirme rejeitava. O Hermógenes, um homem existenteencostadono senhor, calado curto, o pensamento dele assanha –feito umberreiro. Aquelas mortes, que eram para daí a pouco, jáestavamna cabeça do Hermógenes. Eu não tinha nada com aquilo,

próprio, eu não estava só obedecendo? Pois, não era? Aoque, omeu primeiro fogo tocaieiro. Danado desuso disso é oantes –tanto antes, ror. O senhor acha que é natural? Osgas,que a gentetem de enxotar da idéia: eu parava ali para matar osoutros – enão era pecado? Não era, não era, eu resumi: – Osgas...Cochilei,tenho; Por descuido de querer. Dormi, mesmo? Eu nãoera o

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– 287 –

chefe. loca Ramiro queria aquilo? E o Hermógenes,

mandanteperto, em sua capatazia. Dito por uns: no céu, coisacomo umacareta preta? É erro. Não, nada, oi.Nada.

Eu ia matar gente humana. Dali a pouco, o madrugar

clareava, eu tinha de ver o dia vindo. Como era oHermógenes?Como vou dizer ao senhor..? Bem, em bró de fantasia:elegrosso misturado – dum cavalo e duma jibóia... Ou umcachorrogrande. Eu tinha de obedecer a ele, fazer o quemandasse.Mandava matar. Meu querer não correspondia ali, porcontanenhuma. Eu nem conhecia aqueles inimigos, tinha raiva

nenhuma deles. Pessoal de Zé Bebelo, povo reunido na

beira do Jequitaí, por ganhar seu dinheirinho fiel, feito tropa desoldo.Quantos não iam morrer por minha mão? Andante que

perpassou um vento, entre ele o crico de grilos e tantos

bichinhos divagados. Assaz, a noite, com sombrasvermelhas. Oexemplar da morte, dessa, é que é num átimo, tão

ligeira, tãodireitinha. As coisas que eu nem queria pensar, maspensavamais, elas vinham. Vezo de falar do Geraldo Pedro, quedisse: –“Aquele? Hoje ele não existe mais, virou sombração...Matei...”E o Catocho, contando doutro: – “... Lá tem uns órfãosmeus, lá... Tive de matar o pai deles...” Por que era que falavamessasperversidades... Por que é que falavam... Por que era queeu

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tinha de obedecer ao Hermógenes? Ainda estava em

tempo: seeu quisesse, sacanhava meu revólver, gastava nele umbreve tiro,bem certo, e corria, ladeira abaixo, às voltas, caçava demeusumir nesse vai-te-mundo. Ah, nada: então, aí mesmoera que ofogo feio começava, por todas as partes, de todo jeitomorressemuita gente, primeiro de todos morria eu. Mesmo estava

semremédio. O Hermógenes mandava em mim. Que quequer, eleera mais forte! Pensei em Diadorim. O que eu tinha dequererera que nós dois saissemos sobrados com vida, dessestodoscombates, acabasse a guerra, nós dois largávamos a

 jagunçada,íamos embora, para os altos Gerais tão ditos, viver emgrandepersistência. Agora, aqueles outros, os contrários, nãoestavamtambém com poder de me matar? À asneira. E eu ia,numamadrugadinha, a cavalo, por uma estrada de areiabranca, noBuriti-do-Á, beira de vereda, emparelhado com umcapiauzinhobondoso, companheiro qualquer, a gente ria, conversavade

tantas miúdas coisas, sem maldade, se pitava, eu ialevando meiosaco de milho na garupa, ia para um moinho, para umafazenda,para berganhar o milho por fubá... – sonhos que pensava.À fé:aqueles zebebelos também não tinham varado o Nortepara des-truir gente? E pois?! O que tivesse de ser, somentesendo. Nãoera nem o Hermógenes, era um estado de lei, nem delenão era,

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eu cumpria, todos cumpriam. “Vou para os Gerais! Vou

para osGerais!” – eu dizia, me dizia. Numa minha perna, entãotorci ode dar cãibra. Depois, tirei a dureza dos dedos. A ver,Diadorim,a gente ia indo, nós dois, a cavalo, o campo cheirava, dezmetrosde chão de flor. Por que que eu ia ter pena dos outros?Algumtinha pena de mim...? Cabeça de homem é fraca,

repensava. Oque se carecia justo de fazer era acabar logo com aguerra,acabar com aqueles zebebelos. Pensar em Diadorim, erao queme dava cordura de paz. Ah, digo ao senhor: dessa noitenão meesqueço. Posso? Aos poucos, fui ficando soporado, nembomnem ruim. Matar, matar, que que me importava? Dessanoiteesquecer não posso. Garoou, para aaurora.

Como clareia: é aos golpes, no céu, a escuridãopuxada aos

movimentos. A gente estava de costas para as barras dodia. Melembro do que me lembro: o Hermógenes cruzou,adiante,chato no chão, relando barriga em macio. Aquele homem

eradanado de tigre, estava cochichando na cabeça doGaranço,depois com o Montesclarense – mostrava a eles oslugares emque deviam-de. Arre, voltou para perto de mim, agoraveio daoutra banda. Disse: – “Tento, Riobaldo...” Eu vi quando o

Garanço rojou, indo, indo, pegou postura na proteçãodumcupim grande; obra de cinco metros para a minha frente,

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pouquinho para esta banda da esquerda. No não longe,

rumo arumo, divulguei o Montesclarense. Eu ainda mudeidistância deuns passos: aproveitei tapação duma árvore de boagrossura –um araçáde-pomba, fechado. De sovigia, o Hermógenesnão melargava. Doesse na gente, mesmo aquele principiozinhodemadrugada. Apertava a necessidade. Por que não se

avançava deuma vez, para tudo, vir às brabas? Ah, não se podia. Sólogo noprimeiro entremear com os bebelos, nós quatrohavíamos derestar mortos, cosidos nas parnaíbas. E, doscompanheiros,outros, não se sabia. Sendo somente que oacampamento dosbebelos devia de estar a uma hora dessas cercado exato,em boadistância, à roda toda. Tudo era paciência. Vinha umventozinho, folheando. Tantos homens amoitados, quesóespiavam: na obrigação – refleti. Até achei bonito, agora.Aí passarinhos que já vão voando, com o menorzinho ralode luzeles se contentam, para seu só isso de caçar o de comer.

 Triste,

triste, um tiriri cantou. Alegre, para mim, a peitica. Olheiadiante, curto, lá era que eles estavam: por entre umasárvorespequenas, dava réstia de claridade, e um formato dehomem,contravisto. Ele ia acender fogo. E apareceram vultos deoutros,levantantes. Com pouco, alguns podiam vir descendo,buscarmais água no corguinho, se carecessem. Asneiras quepensei:

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será que eles gastaram muita água? Será que um

esmorece, pormedo ter? Eu não campeava a morte. Seguro nasci, soufeito.D’o Hermógenes ali junto estar, naquela hora, digo aosenhor,gostei. – “Riobaldo, Tatarana! É o é...” – ele megovernou, derepente. Aceitei. Desamarrei mão, de vez pronta: eu játinharesumido pontaria: eu tive consolo duma coisa, que era

queaquele homem alto não podia ser Zé Bebelo... Não tremi,eescutei meu tiro, e o do Hermógenes; e o homem altocaiu certomorto, rolou na má poeira. Me deu uma raiva, dele, delestodos.E em toda a parte, a sobre, o tiroteio tinhacomeçado.

Estrondou. Falavam os rifles e outros: manlixa,

granadeirae comblém. Festa de guerra.

Mais digo ao senhor? Atirei, minhas vezes. Aí, tomeiar. O

senhor já viu guerra? A mesmo sem pensar, a genteesbarra eespera: espera o que vão responder. A gente querporções.Demais é que se está: muito no meio de nada. A morte?A coisaque o que era xô e bala. Que qual, agora não se podiamais teroutros lados. Agora era só gritar ódio, caso quisesse, e oar seestragou, trançado de assovios de ferro metal. O senhorali nãotem mãe, não vê que a vida é só brabeza. Revém ramocortadode árvore, aí e o comum que cavacam poeiras e terras.

Digo ao

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senhor, dou conversa. Aquilo era. Artes que carreguei o

rifle,escorei, repetente. Aquele povo inimigo nossoesperdiçava muitamunição, atiravam com nervosia. Não queriam morrerpor nossamão, não queriam. Ri me ri, e o Hermógenes mechamou comassombro. Em isso ele me crendo endoidado. Mas euestava erade repente pensando em meu padrinho Selorico

Mendes.“Agora, tu mesmo vai lá, vai! Tu não quer?!” – foi oquearranjei vontade de gritar com o Hermógenes. Cão, que

ele. Rimais. Homem sozinho, com sua carabina em mãos, o

Hermógenes era um como eu, igual, igual, até pioratirava. Eaqueles bebelos tinham feito madrugada para levar fogo.

Fiqueimeu. “... Se todos passam mão em arma e fecham voltadetiroteio, uns contra os outros, então o mundo seacaba...” – achoque pensei. Eram só tolicezinhas, que por minha mente

marinhavam. Os tiros peguei a querer contar. Aquilocomodurou, demorava um oco. O dia tinha clareado saído: eu

todopodendo descrever o Montesclarense, atrás dum toro depau emoitas de anduzinho. Para que conto isto ao senhor? Voulonge.Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vaisaber? Sãocoisas que não cabem em fazeridéia.

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Combate quanto, combate grande. Ser menos, que a

gentenão rastejava alterando de lugar, que não era o caso.Quase quesó quando se pega no defendimento é que isso é de sefazer: parapensarem que se vai em número maior que a verdade.Comonão, mais valia garantir o bom do posto, sem desguar.

 Tiro de láchama tiro de cá, e vira em vira. Disparo que eu dava,

eracatando mover alheio, cujo descuido, como malandromalandreia. Nem cento – e-cinqüenta braças era o eito,

 jaculaçãominha. Aquilo servia até para carga de bocamorte. E maisde um,eu etcétera, aí, pelo que sei, pelo que vejo. Mas sóaqueles quepara morrer estavam com dia marcado. Minto? O senhorreleveidéias. Era assim.

Deu vez de, os muitos tiros se assanhavam, deprão, em

riba dum trecho só. Queriam costurar. Aí, e as horas não

acabavam. O sol encostava na nuca da gente. Sol, solão,debaixoeu suava, transpirava dos cabelos, e pelo dentro das

roupas, desentir as cócegas grossas no meio do lombo; e essasdormênciasnumas partes do corpo. Então, eu atirava. Não se iaavançar?Não, nem. Os outros picavam forte, o fogo deles não

desmerecia. Cachorrada! Xingar, mesmo, ia servir sóparamostrar mais alvo. Ao que, eu descansava meus olhosnas costasdo Garanço, ali quase em minha frente. O Garanço tinha

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arrumado no chão o bissaco e o cobertor, estava sem

 jaleco, sócom a camisa de xadrezim. Eu vi o suor minar emmancha, nacamisa, no meio das costas dele, Garanço, aquela nódoaescuraia crescendo, arredondada, alargada. O Garançodisparava,sacudia o corpo, ele era amigo meu, com minúcia devalentia.Rapaz de como se querer, homem de leal qualidade.

Então, euatirava, também. “Bala e chumbo...” – eu peguei a dizer.“Bala echumbo... Bala e chumbo...” O lugar do coração meapertando– eu era carne muita e calor bravo – “O que foi? Que é?”– oHermógenes me perguntou. – “Nada não!” – respondi.“Bala echumbo... Chumbo e bala...” Estrumes! Pelo que foi, derepente:bem apartado, da banda esquerda de nós, uns homensdosnossos deram figura, se pulando para diante, aos gritos,

investiram – contra o contra!

Ao que, eram dois... Três... – “Diá!” – o Hermógenes

rosnou: – “Deu a fúria nesses, bute!” Raspa que eles por

láentraram, iam de coronhada e faca... Não se atirou,suspendemosfôlego. E, vai, o Hermógenes me segurou tente: que o

Montesclarense – coitado! – também tinha crescido paraavante,no igual, e, de lá, nele balearam. Caiu, catando cacos.Pobre. Deudoidice? Antes aí, os outros nossos, que se danando novespeirodos bebelos, roncavam em poeira deles, decerto seacabavam

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estraçalhados que nem coelho com a cainça. Tomara

tivessemaprontado seus alguns! Assim aquilo sossegou, povonossodemos raiva de fogo – aí é que foi atirar. O Hermógenesmeresignou os ímpetos: – “Tatarana, te trava, não dá deesquentararma, gasta munição não. Só os tiros bons poucos. Sócobrar odizmo.” Aquele homem fazia frio, feito caramujo de

sombra. Aver que tive sede, mas minha cabaça não dava gotamais. Guardeimeu cuspe.

Aquilo não ia ter pique de ponto, guerra que não sesabe

terminar? Assunto que apostaram os mil tiros para cimade nossaredondez de lugar, esses assoviaços. Triplavam. No

ferrenho, tiveum tempo de coisa, espécie de mais medo, o que umnãoconfessa: vara verde, ver. Mas, morresse, eu descansava.

Descansava de todo desânimo. Andando que aqueleataquenosso não servia para resultado nenhum, e eu carecia deavistaros outros, saber de qualquer contagem de balanço, de

quantostinham morrido ou estavam mal. Eu queria saber, dosdeles e dosnossos. Combate sem cabimento! Só o tiroteio, repetido

reproduzido. Meio peguei um pensamento: se oHermógenessungasse raiva, se o Ele desse nele, por um vir? Quemandasseavançasse, a fino de faca, nós todos tínhamos deavançar? Então,eu estava ali era feito um escravo de morte, sem querermeu, no

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puto de homem, no danadório! E eu não podia virar só o

corpoum pouco, abocar minha arma nele Hermógenes,desfechar?Podia não, logo senti. Tem um ponto de marca, que delenão sepode mais voltar para trás. Tudo tinha me torcido paraum rumosó, minha coragem regulada somente para diante,somente paradiante; e o Hermógenes estava deitado ali, em mim

encostado –era feito fosse eu mesmo. Ah, e toda hora ele estavassempreestava. Que me disse: – “Tatarana, toma, come, eagradece aocorpo um poucado...” Há-de que estava me oferecendo a

capanga, paçoca de carnes.

 Tanto que os tiros tinham esbarrado quase em

completo,em partes. Eu, tendo comida minha, de matula, nobornal. Aí, emunição minha de balas, no surrão. Eu carecia lá do

Hermógenes? Mas, por que foi então que aceitei, quemastigueidaquela carne, nem fome acho que não tinha direito,engolidaquela farinha? E pedi água. – “Mano velho, bebe, que

esta écompetente...” – ele riu. O que estava me dando, nacabacinha,era água com cachaça. Bebi. Limpei os beiços. Escorei ocanodo rifle, num duro de moita. Eu olhava aquele bom suor,nascostas do Garanço. Ele atirava. Eu atirava. A vida eraassimmesmo, coração quejando. Até me caceteou umalombeira.

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E, daí, deu-se. Da banda de longe – lá pelo tombador

depedra, onde nossa gente com Titão Passos estavamescondidospara a esparrela – foi um tirotear forte, fogo por salvas.Ah,então era outra partida de zé-bebelos que deviam deestarchegando, drongo deles, cavaleiros. O Hermógenesesticou opescoço, rijo ouvindo. Soante que atiravam, sucedidos, o

tiroteiofoi mudando de feição. – “Tou gostando não...” – o que oHermógenes disse. Mais disse: – “O diabo deu em erro...”

Homem atilado, cachorral. – “Seja que sabidos vieram,eh,pressentiram! Sei se, por ora, o trabalho estádesandado...” Aí,eu estava escutando. Eu olhei. Olhava para as costas do

Garanço, ela, a mancha, estava ficando de outra cor... Osuorvermelho... Era sangue! Sangue que empapava as costasdoGaranço – e eu entendi demais aquilo. O Garanço parado

quieto, sempre empinado com a frente do corpo,semelhandoque o cupim ele tivesse abraçado. A morte é corisco quesempre

 já veio. Ânsias, ao em que bola me vinha goela arriba, doarrocho grosso, imposto, que às vezes em lágrimas nosolhos setransforma. A bobagem...

– “Tu, Tatarana, Riobaldo: agora é a má hora!” – eraoHermógenes prevenindo. – “Demo!” – eu repontei. Mas

ele nãoentendeu minha soltura. Soprou: – “A muita cautela.

 Temos,

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que se foge em boa ordem: os que estão chegando vêm

rodear agente, vão dar retaguarda.” E era. Como que essemaldito tudosabia, adivinhava o seguinte vivo das coisas, esseHermógenes,trapaças! Mas ainda me prezei: quem é que me seguravade ir?! –rastejei de esquinado, os metros, em afogo, carecia dever se oGaranço podia ter ajuda. – “A p’a trás, mano. Te cuida!” –

ouvio rispe do Hermógenes – que eu não me desgraçasse.Mas nãose deixa um cristão amigo deitar seu sangue no capimdasmoitas, feito um traste roto, caititu caçado. Peguei, commeusbraços: não adiantava – era corpo. Ele estava defunto denãofechar boca – aí, defunto airado. Todo vejo, o sanguedele amofos cheirasse. Anda que vinham vôo os mosquitoschupadores, e mosca-verde que se ousou, sem o zumbofrisso,perto no ar. Porque os tiros. E nem um momento de velaacesao Garanço não ia poder ter. – “Vem, tu vem, queestamos noamém estreitos!” – que, enfezado, o Hermógeneschamou. Dei

para trás. O perigo saca toda tristeza. E a vez era esta:que oHermógenes encheu os peitos, e soltou um rinchadozurro, dosde jumento velho em beira de campo. Três tantos. Eleestavadando a retirada. Por outros lados, mais longe, outros omesmoonco-e-rincho copiavam. – “Arre, fogo, agora, forte fogo!”– oHermógenes me mandou. Atirei. Atiramos, teúdo. Ao queos

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companheiros todos atiravam. Assaz à retirada se estava

rinchando, mas os inimigos não sabiam: carecia que eles

pensassem que a gente ia dar um ataque final. Acharam?E sei.A bala com bala ripostavam. Mas, nós, nesseentrequanto,rompemos o arvoredo, aqui e ali, rojamos para baixo,embora,mesmo. Desunir, assim, verga pior do que avançar. A

lanço alanço, fui, pulei, nos abertos entre árvores, acompanhei oHermógenes. Aí, eu já estava para lá dele; mas virei eesperei.Porque, na desordem de mente do alvoroço, aquela horaera sóno Hermógenes que eu via salvamento, para meu cão decorpo.Quem que diz que na vida tudo se escolhe? O quecastiga,cumpre também. Vim. Ainda divulguei, nas sofraldasdescentes,homens que corriam, meus iguais, às vezes se subiam do

bamburral baixo, feito acãoada codorniz. Viemos.Repassamos ocorguinho do Dinho, beiramos uma ipueira. Entramos no

cerrado. – “Tu tem tudo, Tatarana? Munição, as armas?”– o

Hermógenes me indagou. – “Tenho, se tenho!” – eurespondi,bem. E ele para mim: – “Então, está certo...” Agora elefalassegrosseado, com modo de chefe e mando, era assim. Efomospara cinco léguas, entre o norte e o poente, noCansanção, lugaraonde um punhado dos da gente devia de se engrupar.Para láfomos, de rastros apagados. Caminhamos prazo dentrode

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riacho, depois escolhemos para pisar pedras, de nosso

pisadocom ramos as marcas desmanchamos, e o mais docaminho seseguiu por muitos diversosrodeios.

De tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhorminhavida em dobrados passos; servia para quê? Quero é

armar oponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho. Pordaí,então, careço de que o senhor escute bem essaspassagens: davida de Riobaldo, o jagunço. Narrei miúdo, desse dia,dessanoite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O

 jagunçoRiobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou,nãoquero ser. Deus esteja!

E dizendo vou. No mais, que quando se alcançou onossobom esconder, num boqueirãozinho, já achamos

companheirosoutros, diversos, vindos de armas, e que chegavam

separadamente, naquela satisfação de vida salva. Um erao Feijó.Será, se tinha avistado o Reinaldo sem perigo? A meio

perguntei. Por causa que só em Diadorim era que eupensava. OFeijó em tanto tinha notado: Diadorim, na retirada, bem

conseguido; depois se retrasou, por uma cacimba degrota. – “...Estava com sangue numa perna de calça. Para mim, foinada,arranho à-toa...” O que me ensombreceu – então

Diadorim

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– 301 –

estava ferido. Aí, eu mesmo esbarrei, beirávamos o

riachinho do Jio, eu quis lavar os pés, que muito me doíam. Acho que,decansado, estava também com dores redondas de cabeça,molheiminhas fontes. Cansaço faz tristeza, em quem delacarece.Diadorim estivesse ali, somentemente, espaço disso mealegrava,eu não havia de querer conversar reportório de tiros e

combates,eu queria calado a conseqüência dele. Ao modo que eunemconhecia bem o estorvo que eu sentia. Pena. Doshomens queincerto matei, ou do sujeito altão e madrugador – quemsabe erao pobre do cozinheiro deles – na primeira mão de horavaradoretombado? Em tenho que não. Dó que me dava era do

Garanço, e o Montesclarense. Quase com um peso, porminhaculpa dos dois – eles eu era quem tinha escolhido, paraconduzir,e depois tudo. Logo esses – o senhor sabe, o senhorseguecomigo. Remorso? Por mim, digo e nego. Olhe: légua eoutra,daqui, vereda abaixo, tigre canguçu estragou e arruinoua perna

do Sizino Ló, um que foi desse rio de São Francisco,foguista devapor; depois cá herdou uns alqueires. Comprou-se paraele,então, uma boa perna-de-pau. Mas, assim, talvez por setersacolejado um pouco do juizo, ele nunca mais quer sairde casa,nem se levanta quase do catre, vive repetindo e dizendo:– “Ai,quem tem dois tem um, quem tem um não temnenhum...” Todo

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– 302 –

o mundo ri. E isso é remorso? Desgraça a mando era que

eucumpria, azo de que tivesse perdido alguma coisa.Porque dó deamizade é num sofrerzinho simples, e o meu não era. Echegueino CansançãoVelho, chamado também o Jio,dito.

Lá, com pouco, a gente era doze. Os algunsfaltavam, dos

que eram para se reunir ali, mas decerto ainda vinhamvir. Numponto me agradei: então, em guerra, quase não se morre?E,mesmo, nas más horas é que vem bom consolo: para o

 Jio tinhatocado, de antevéspera, o Braz, nessa antecedência emdois

 jumentos ele tinha trazido mantimento de feijão e arroz,e tou-cinho para torresmos, e pratos e panela, se cozinhou um

 jantar. Tanto que comi, deitei. Dormi impado. Que caso que eucareciade pensar, que não fosse que na morte do Garanço e do

Montesclarense eu não devia nenhum dolo; e queDiadorim iachegar a vir também, aonde estávamos, mais tardar noromper daaurora? Dormi. Mas daí a logo acordei, mão no rifle,

como se vezfosse. E não havia a coisa nenhuma, nem vulto nembarulho. Osoutros no estar, pesados no sono, cada um em seurecanto,estufando suas redes penduradas de árvore emárvore.

Só vi um, o Jõe Bexiguento, sobrechamado oAlpercatasesse era homem de estranhez em muitos seus costumes,

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– 303 –

conforme se dizia e era notado. Jõe Bexiguento parecia

não estarquerendo ir dormir, tinha ficado na beira do fogo,remexendo asbrasas; num fusco em vermelho, dava para a cara dele sedivulgar.E ele pitava. Meigo repus o rifle, virei para o outro lado.

Adormecer, pude; mas, com outros minutos, torneinaquele maususto de acordar. Isso aconteceu três vezes, reformadas.

 JõeBexiguento reparou em meu dessossego, veio para o péde minharede, sentou no chão. – “Horas destas, tem galo jácantando,noutros lugares...” – ele falou. Não sei se dei algumaresposta.Agora eu estava cismado.

Ou se fosse que algum perigo se produzia por ali, e

eucolhia o aviso? Não é que, com muitos, dose dissosucedesse? Eusabia, tinha ouvido falar: jagunços que pegam essecondão,adivinham o invento de qualquer sobrevir, por isso emboa horaescapam. O Hermógenes. João Goanhá, mais do quetodos, eraatreito a esses palpites de fino ar, coraçãoados. Atual

issocomigo? Que os bebelos rodeavam para ali, quem sabeperto járastejavam. Zé Bebelo mandava neles. Em todos omomentos,em Zé Bebelo sempre pensei, e em como a vida é cheiadepassagens emendadas. Eu, na Nhanva, ensinando lição aele,ditado e leitura, as contas de juros; depois, de noite, nasalagrande, na mesa grande, se comia canjica temperadacom leite,

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– 304 –

queijo, coco-da-baía, amendoim, açúcar, canela e

manteiga-de-vaca. – “Fofo faço, e em prazo, siô Baldo: acabar parauma vezcom essa cambada canalha de jagunços!” – ele referia,comrompante e festa no dizer, bebendo seu coité de chá-de-

congonha, que de tão quente pelava. Então, agora, eraeutambém – Zé Bebelo vinha de lá, comandando armas de

esqua-drões, e o que ele tinha jurado, naquela ocasião, ficavasendotambém de acabar comigo, com minha vida. Mas euprezava ZéBebelo, minha simpatia é uma só, dada definitiva àsaltas, semprefui assim. Sendo que não fosse ele em sua pessoa, se eleno meionão estivesse, tudo tinha outra ordem: eu podia pôr meuafinco o– farto destravado, no querer combater. Mas, brigar,cruzandomorte, com Zé Bebelo, eu vi que era isso que me davauma re-pugnância, em minha inteligência. Levantei da rede, econvidei Jõe Bexiguento para se botar mais lenha no fogo. Eledisse: –“Convém não. Ocasiões assim, convém acender nemvela de cera

preta...” Enrolei um cigarro.

Contei ao Jõe o que eu estava sentindo estúrdio; senão eraagouramento? E ele me apaziguou: que anjo aviso não

vinhadesse jeito, antes era uma certeza que minava fininha,de dentroda idéia da gente, sem razoado nem discussão. O que eupurgavaera ranço nervoso, sobra da esquentação curtida nashoras de

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– 305 –

tiroteio. – “Comigo, assim, depois de cada forte fogo, me

dá esseporém. É uma coceira na mente, comparando mal. Fazregularuns seis anos, que estou na jagunçagem, medo deguerra nãoconheço; mas, na noite, passado cada fogo, não me livrodisso,essa desinquietação mevem...”

Pela causa, me disse, era que ele não vencia dormirnem umpisco, naquela comprida noite, e nem experimentava. Jõe

Bexiguento achava que não tinha mais sustância para ser jagunço;duns meses, disse, andava padecendo da saúde,erisipelava easmava. – “Cedo aprendi a viver sozinho. P’ra o Riachãovou,derrubo lá um bom mato...” Era o projeto em tal, que ele

formava vez em quando. – “Trabalhar de amassar asmãos... Queisso é que sertanejo pode, mesmo na barra davelhice...”

– “Você era amigo do Garanço, Jõe?” – em manso

perguntei. – “Assim, o dito, pela rama. Que foi com ele?Deu ofim, mesmo, legal? Acho que esse sempre se estevemeiocaipora... Ele mesmo sabia que era...” Ainda ouvindo aspalavras,conheci que tinha perguntado pelo Garanço só paradepoisperguntar por Diadorim, digo: o Reinaldo. Mas outracoragemnão tive. Faltou razão para mim. Que desconversei: –“Caiporase cura, Jõe? Você sabe rezas fortes?” – por aí devo que

indaguei;

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bobéia minha, assunto. – “A que cujo, se caipora não

curasse? Todo o mundo dela tem, nos tempos...” – ele merepositou. – “...Mas desses ensalmos quis aprender não. Memória queDeus medeu não foi para palavrear avesso nele, com feitasofensas...”

Pecados, vagância de pecados. Mas, a gente estavacom

Deus? Jagunço podia? Jagunço – criatura paga paracrimes,impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matandoeroupilhando. Que podia? Esmo disso, disso, queri, porpuratoleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe,broeiropeludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente,nós,assim jagunços, se estava em permissão de fé para

esperar deDeus perdão de proteção? Perguntei,quente.

– “Uai?! Nós vive...” – foi o respondido que ele medeu.Mas eu não quis aquilo. Não aceitei. Questionei comele,duvidando, rejeitando. Porque eu estava sem sono, sem

sede,sem fome, sem querer nenhum, sem paciência deestimar umbom companheiro. Nem o ouro do corpo eu não quisesse,

aquela hora não merecia: brancura rosada de uma moça,depoisdo antes da lua-de-mel. Discuti alto. Um, que estava comsuarede ali a próximo, de certo acordou com meu vozeio, exingouxiu. Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que

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sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o

bom sejabom e o rúim ruim, que dum lado esteja o preto e dooutro obranco, que o feio fique bem apartado do bonito e aalegria longeda tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como équeposso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si;mastranstraz a esperança mesmo do meio do fel do

desespero. Aoque, este mundo é muitomisturado...

Mas Jõe Bexiguento não se importava. Duro homem

 jagunço, como ele no cerne era, a idéia dele era curta,nãovariava. – “Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo,

 jagunceio...” – ele falasse. Tudo poitava simples. Então –

eupensei – por que era que eu também não podia serassim, como o Jõe? Porque, veja o senhor o que eu vi: para o JõeBexiguento, nosentir da natureza dele, não reinava mistura nenhumanestemundo – as coisas eram bem divididas, separadas. – “DeDeus?Do demo?” – foi o respondido por ele – “Deus a gente

respeita,do demônio se esconjura e aparta... Quem é que pode irdivulgaro corisco de raio do borro da chuva, no grosso dasnuvensaltas?” E por aí eu mesmo mais acalmado ri, me ri, eleeraengraçado. Naquele tempo, também, eu não tinha tantoo estritoe precisão, nestes assuntos. E o Jõe contava casos.Contou. Casoque se passou no sertão jequitinhão, no arraial de São

 João Leão,

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perto da terra dele, Jõe. Caso de Maria Mutema e do

PadrePonte.

Naquele lugar existia uma mulher, por nome Maria

Mutema, pessoa igual às outras, sem nenhumadiversidade. Umanoite, o marido dela morreu, amanheceu morto demadrugada.Maria Mutema chamou por socorro, reuniu todos os mais

vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar.Sinalnenhum não se viu, e ele tinha estado nos dias antes emsaúdeapreciável, por isso se disse que só de acesso do coraçãoera quepodia ter querido morrer. E naquela tarde mesma do diadessamanhã, o marido foi bem

enterrado.Maria Mutema era senhora vivida, mulher empreceitosertanejo. Se sentiu, foi em si, se sofreu muito não disse,

guardoua dor sem demonstração. Mas isso lá é regra, entregente que sediga, pelo visto a ninguém chamou atenção. O que deuem notafoi outra coisa: foi a religião da Mutema, que daí pegou air àigreja todo santo dia, afora que de três em três agora se

confessava. Dera em carola – se dizia – só constante nasalvaçãode sua alma. Ela sempre de preto, conforme oscostumes, mulherque não ria – esse lenho seco. E, estando na igreja, nãotirava osolhos do padre.

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O padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-

homem, demeia-idade, meio gordo, muito descansado nos modos ede todosbem estimado. Sem desrespeito, só por verdade nodizer, umapecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com umamulher,simplória e sacudida, que governava a casa e cozinhavapara ele, etambém acudia pelo nome de Maria, dita por aceita

alcunha aMaria do Padre.Mas não vá maldar o senhor maiorescândalonessa situação – com a ignorância dos tempos,

antigamente, essascoisas podiam, todo o mundo achava trivial. Os filhos,bem-criados e bonitinhos, eram “os meninos da Maria doPadre”. Eem tudo mais o Padre Ponte era um vigário de mão-cheia,

cumpridor e caridoso, pregando cora muita virtude seusermão eatendendo em qualquer hora do dia ou da noite, paralevar aosroceiros o conforto da santa hóstia do Senhor ou dossantos-óleos.

Mas o que logo se soube, e disso se falou, era em

duaspartes: que a Maria Mutema tivesse tantos pecados parade trêsem três dias necessitar de penitência de coração e boca;e que oPadre Ponte visível tirasse desgosto de prestar a ela pai-ouvidonaquele sacramento, que entre dois só dois se passa etem de serpor ferro de tanto segredo resguardado. Contavam,mesmo, que,das primeiras vezes, povo percebia que o padre ralhavacom ela,

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terrível, no confessionário. Mas a Maria Mutema se

desajoelhavade lá, de olhos baixos, com tanta humildade serena, queumasanta padecedora mais parecia. Daí, aos três dias,retornava. E seviu, bem, que Padre Ponte todas as vezes fazia uma caradeverdadeiro sofrimento e temor, no ter de ir, a junjo,escutar aMutema. Ia, porque confissão clamada não se nega. Mas

ia apoder de ser padre, e não de ser só homem,como nós.

E daí mais, que, passando o tempo, como se diz: no

decorrido, Padre Ponte foi adoecido ficando, de doençaparamorrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia,amofinava omodo, tinha dores, e em fim encaveirou, duma cor

amarela depalha de milho velho; dava pena. Morreu triste. E desdepordiante, mesmo quando veio outro padre para o São JoãoLeão,aquela mulher Maria Mutema nunca mais voltou naigreja, nempor rezar nem por entrar. Coisas que são. E ela, dadoque viúvasoturna assim, que não se cedia em conversas, ninguém

nãoalcançou de saber por que lei ela procedia epensava.

Por fim, no porém, passados anos, foi tempo demissão, echegaram no arraial os missionários. Esses eram dois

padresestrangeiros, p’ra fortes e de caras coradas, bradandosermãoforte, com forte voz, com fé braba. De manhã à noite,

durado

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– 311 –

de três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando,

confessando, tirando rezas e aconselhando, comentusiasmadosexemplos que enfileiravam o povo no bom rumo. Areligiãodeles era alimpada e enérgica, com tanta saúde comovirtude; ecom eles não se brincava, pois tinham de Deus algumencobertopoder, conforme o senhor vai ver, por minha

continuação. Sóque no arraial foi grassando aquela boa bem-aventurança.

Aconteceu foi no derradeiro dia, isto é, véspera, poisnoseguinte, que dava em domingo, ia ser festa de

comunhão gerale glória santa. E foi de noite, acabada a benção, quandoum dosmissionários subiu no púlpito, para a prédica, e tascava

decomeçar de joelhos, rezando a salve-rainha. E foi nessahora quea Maria Mutema entrou. Fazia tanto tempo que nãocompareciaem igreja; por que foi, então, que deu devir?

Mas aquele missionário governava com luzes outras.MariaMutema veio entrando, e ele esbarrou. Todo o mundo

levou umsusto: porque a salve-rainha é oração que não se podepartir emmeio – em desde que de joelhos começada, tem de tersuaspalavras seguidas até ao tresfim. Mas o missionárioretomou afraseação, só que com a voz demudada, isso se viu. E,mal noamém, ele se levantou, cresceu na beira do púlpito, em

brasa

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– 312 –

vermelho, debruçado, deu um soco no pau do peitoril,

pareciaum touro tigre. E foi de grito:

– “A pessoa que por derradeiro entrou, tem de sair!A p’rafora, já, já, essa mulher!”

 Todos, no estarrecente, caçavam de ver a MariaMutema.– “Que saia, com seus maus segredos, em nome de

 Jesuse da Cruz! Se ainda for capaz de um arrependimento,entãopode ir me esperar, agora mesmo, que vou ouvir suaconfissão...Mas confissão esta ela tem de fazer é na porta docemitério! Quevá me esperar lá, na porta do cemitério, onde estão dois

defuntos enterrados!...”

Isso o missionário comandou: e os que estavamdentro daigreja sentiram o rojo dos exércitos de Deus, que

lavoram emfundura e sumidade. Horror deu. Mulheres soltaramgritos, emeninos, outras despencavam no chão, ninguém ficou

sem seajoelhar. Muitos, muitos, daquela gente,choravam.

E Maria Mutema, sozinha em pé, torta magra depreto,

deu um gemido de lágrimas e exclamação, berro decorpo quefaca estraçalha. Pediu perdão! Perdão forte, perdão defogo, que

da dura bondade de Deus baixasse nela, em dores deurgência,

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– 313 –

antes de qualquer hora de nossa morte. E rompeu fala,

por entreprantos, ali mesmo, a fim de perdão de todos também,seconfessava. Confissão edital, consoantemente, paratremerexemplo, raio em pesadelo de quem ouvia, público, querasgavagastura, como porque avessava a ordem das coisas e oquietocomum do viver transtornava. Ao que ela, onça monstra,

tinhamatado o marido – e que ela era cobra, bicho imundo,sobradodo podre de todos os estercos. Que tinha matado omarido,aquela noite, sem motivo nenhum, sem malfeito delenenhum,causa nenhuma ; por que, nem sabia. Matou – enquantoeleestava dormindo – assim despejou no buraquinho doouvidodele, por um funil, um terrível escorrer de chumboderretido. Omarido passou, lá o que diz – do oco para o ocão – dosonopara a morte; e lesão no buraco do ouvido dele ninguémnão foiver, não se notou. E, depois, por enjoar do Padre Ponte,

também sem ter queixa nem razão, amargável mentiu,no

confessionário: disse, afirmou que tinha matado o maridoporcausa dele, Padre Ponte – porque dele gostava em fogodeamores, e queria ser concubina amásia... Tudo eramentira, elanão queria nem gostava. Mas, com ver o padre em justazanga,ela disso tomou gosto, e era um prazer de cão, queaumentavade cada vez, pelo que ele não estava em poder de sedefender de

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– 314 –

modo nenhum, era um homem manso, pobre coitado, e

padre. Todo o tempo ela vinha em igreja, confirmava o falso,maisdeclarava – edificar o mal. E daí, até que o Padre Pontededesgosto adoeceu, e morreu em desespero calado... Tudocrime,e ela tinha feito! E agora implorava o perdão de Deus,aos uivos,se esguedelhando, torcendo as mãos, depois as mãos no

alto elalevantava.

Mas o missionário, no púlpito, entoou grandeo Bendito,

louvado seja! – e, enquanto cantando mesmo, fazia os gestospara

as mulheres todas saírem da igreja, deixando lá só oshomens,porque a derradeira pregação de cada noite era mesmo

semprepara os ouvintes senhores homens, comoconforme.

E no outro dia, domingo do Senhor, o arraialilustrado

com arcos e cordas de bandeirolas, e espoco de festa,foguetesmuitos, missa cantada, procissão – mas todo o mundo só

pensava naquilo. Maria Mutema, recolhida provisóriapresa nacasa-de-escola, não comia, não sossegava, sempre de

 joelhos,clamando seu remorso, pedia perdão e castigo, e quetodos vies-sem para cuspir em sua cara e dar bordoadas. Que ela –

exclamava – tudo isso merecia. No meio-tempo,desenterraramda cova os ossos do marido: se conta que a gente

sacolejava a

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caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia!

 Tantopor obra de Maria Mutema. Mas ela ficou no São JoãoLeãoainda por mais de semana, os missionários tinham idoembora.Veio autoridade, delegado e praças, levaram a Mutemapara culpae júri, na cadeia de Araçuaí. Só que, nos dias em queainda esteve,o povo perdoou, vinham dar a ela palavras de consolo, e

 juntosrezarem. Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos daMaria doPadre, para perdoarem também, tantos surtosproduziam bem-estar e edificação. Mesmo, pela arrependida humildadeque elaprincipiou, em tão pronunciado sofrer, alguns diziam queMariaMutema estava ficando santa.

E foi isso que Jõe Bexiguento a mim contou, e que decertomodo me divagasse. Mas, foi ele acabar de contar, e

escutamos oassovio combinado dos nossos, e demos resposta: eraum quechegava – o Paspe – se aparecendo macio dos escuros,comalpercatas sem barulho e o rifle em bandoleira. Ele tinha

formado, para a esparrela, com Titão Passos, agora vinhatrazernotícia dos dele, seguidos para se ajuntarem ao covo doCapão; epedir ordens. Rio de homem, esse Paspe: que não temianem secansava. Contou: que, aquilo que era para estratagemas,deu foiem por água-abaixo, porque os bebelos tinham botadoespiação,ou tomado o faro. Assim, o inimigo contornando, em vezde vir

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simples: e tochando resposta antes de pergunta, fogo

feio – doismortos, dos titão-passos, companheiros bons; mais trêsmuitoferidos. Guerra tinha dissotambém.

– “Ah, e Zé Bebelo mesmo estava lá, no comando

daqueles, em sua dita pessoa?” –perguntei.

– “Decerto que estava. A cujo!” – o Paspe falou; epediulogo quem tivesse um golinho decachaça.

Devo, então, que perguntei por Diadorim. Puro por

perguntar, sem esperanças de informação. E mesmo,másnotícias eu ainda tinha o receio de ouvir. Serviço que me

foi, oPaspe me respondeu:

– “Vi, esse por mim passou, até me deu um recado,uail: epara você mesmo: –Vai, diz por mim ao Riobaldo Tatarana:

que eutenho um quefazer, ao que vou, por dias poucos, combreve estou devolta... – foi o que falou. Assim passou, a cavalo – onde

terá sidoque arrumou montada? Decerto conseguiu algum animaldosbebelos mesmo, que restou no meio detirotei’...”

Ouvi e não cri. Ele, Diadorim? Aonde ia, sem mimentão,não podia ser ele, foras de norma. E ao Paspe

reperguntei,

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– 317 –

pedindo o exato. Era. Mas não seria, então, que ele

estivesseferido, numa perna?

Ao que nem não nem sim – mais pelo não que pelosim... –o Paspe completou. Não tinha reparado, no relance de

tempo. Sóviu que o arreio era um socadinho, quase novo, e ocavalo alto,desbarrigado, mas pronto de si, riscando com todas asferraduras,murzelo-andrino...

Aí, ai, oi, espécie de dor em meus cantos, o senhorsabe.Agora eu pateteava. Que que era ser fiel; donde estava o

amigo?Diadorim, na pior hora, tinha desertado de minhacompanhia.

Às certas, fuga fugida, ele tinha ido para perto de JocaRamiro.Ah, ele, que de tudo sabia em tudo, agora assim detenção melargava lá sem uma palavra própria da boca, sem umabraço,sabendo que eu tinha vindo para jagunço só mesmo porcontada amizade! Acho que me escabreei. De sorte que tantos

pensamentos tive, duma viragem, que senti foi esfriar aspontasdo corpo, e me vir o peso de um sono enorme, sono dedoença,de malaventurança. Que dormi. Dormi tão morto, semestatuto,que de manhã cedo, por me acordarem, tiveram demolhar comágua meus pés e minha cabeça, pensando que eu tinhapegadofebre de estupor. Foi assim.

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Vou reduzir o contar: o vão que os outros dias para

mimforam, enquanto. Desde que da rede levantei, comaquele pesoanoitecido, amanhecido nos olhos. Tempo de minhavazante. Aver como veja: tem sofrimento legal padecido, e mordidoeremordido sofrimento; assim do mesmo que tem roubo

sucedido e roubo roubado. Me entende? Dias que

marquei: fo-ram onze. Certo que a guerra ia indo. Demos um tiroteiomediano, uma escaramucinha e um meio-combate. Queissomerece que se conte? Miúdo e miúdo, caso o senhorquiser, doudescrição. Mas não anuncio valor. Vida, e guerra, é o queé:esses tontos movimentos, só o contrário do que assimnão seja.Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou porcima –o que parece longe e está perto, ou o que está perto eparecelonge. Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor nãosabe; masprincipal quero contar é o que eu não sei se sei, e quepode serque o senhor saiba. Agora, o senhor exigindo querendo,está

aqui que eu sirvo forte narração – dou o tampante, e oque for-de trinta combates. Tenho lembrança. Pelo tempo duradodecada fogo, se é capaz até do cálculo da quantidade debalas.Contar? Do que se agüentou, de arvoados tiros, e a gente

atirando a truz, no meio de pobre roça alheia, canavialcortante,eito de verde feliz ou palhada de milho morto, que sepisava e

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– 319 –

quebrava. De vez em que rifle trauteava tanto, e eram os

estalospassando, repassando, que, vai, se aconchava mão emorelha,sem saber por que, feita uma esperança de se conseguirmilagrede algum barulhinho diverso outro, qualquer, que aquelenãofosse, na ensurdescência. E quando toró de chuva deubomba,desmanchando a função de briga e empapando todos,

ensolvando as armas. De se olhar em frente o morro,semdesconfiança, e, de repente, do nu do morro,despejaremdescarga. De um entrar em poço, atravessando, emesmo comágua quase até pelos peitos, ter de se virar em direção, e

desfechar. De como, no prazo duma hora só, careci de irmevendo escorando rifle e alvejando, em quentes, em beirademato e campo, em virada de espigão, descendo esubindo ramalde ladeirinhas pequenas, e atrás de cerca, debaixo decocho,trepado em jatobá e pequizeiro, deitado no azul dumalajegrande, e rolando no bagaço doce de cana, e rebentandopor

dentro de uma casa. E de companheiro em sopas desanguemais sujeira de suas tripas, lá dele, se abraçando com agente, demandado da dor, para morrer só mesmo, seja queamaldiçoando,em lei, toda mãe e todo pai. E como quando, no refervo,

combatendo no dano da mormaceira, a raiva de fúria derepenteigualava todos, nos mesmos urros e urros, uns e uns,contras e

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– 320 –

contrários – chega se queria combinar de botar fora as

armas-de-fogo, para o aproximaço de se avir em mãos às durasbrancas,para se oferecer fim, oferecer faca. Isso é isto.Sobejidão. Osenhor mais queria saber? Não? Eu sabia que não. Menos

mortandades. Aprecio uns assim feito o senhor-homemsagazsolerte.

Vir voltemos. Aqueles dias eu empurrei, mudandoem raivafalsa a falta que Diadorim me fazia. Aí, curti amargos. Por

me vercasca em chão, que é o figurado de desprezo, e maistudo o queem ocasiões dessas se sente, conforme o senhor decertoconhecee sabe. Mas o pior era o que eu mesmo mais sentia: feito

se doíntimo meu tivessem tirado o esteio-mor, pé-decasa. E,conformesempre se dá, segundo se está assim em calibre de cão,emalquerente, repuxei idéias. Me alembrei do que tinhasopradoem intriga o Antenor, e dei razão à cisma dele: quemsabe,mesmo, Joca Ramiro estava no propósito de deixar a

gente seacabar ali, na má guerra, em sertão plano? E entãoDiadorimdisso sabia, estava no enredo, agora tinha ido para juntode locaRamiro – que era a única pessoa que ele bastantementeprezava?Fiquei em mim desiludido, caí numa lazeira. Mas cuspitrês vezesforte no chão, e risquei de mim Diadorim. Homem comoeu nãoé todo capaz de guardar a parte de amor, em desde querecebe

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– 321 –

muitas ofensas de desdém. Só que, depois, o que há, é a

almaassim meio adoecida. Digo, fiquei lazo. Me veio depensar emfalar com o Antenor. Não fiz. Dúvidas dessas, eu não iarepartircom estranhas pessoas. E não gostei nunca de homemintrujão,com esses não começo conversa: não hio e não chio.

 Tanto quemesmo foi o Hermógenes que um dia me chamou, veio

caçoando: – “Eh, valente tu é, Tatarana! Gosto dessa suabizarria...”

– “S’as ordens, s’or...” – eu só falei. Porque, ele, pelo jeito,

logo entendi que ia me fazer algum espontâneoobséquio, ou medar alguma boa notícia; todo que um, assim, nessas

horinhas,logo muda de modo: antes, aproveita um tico para falarde cima, jeitoso de dono bom ou de pai que cede. E foi que nãoerrei. Oque o Hermógenes queria me prometer era que embreve iamestar acabados aqueles riscos de trabalho e combate,comliquidados os bebelos, e então a gente ficava livre para

lidarmelhormente, atacando bons lugares, em serviço parachefespolíticos. E que, nessa ocasião, ele queria me escolherparacomandar uma parte dos seus, por ser isso de minha rija

competência – cabo-de-turma.

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 Tanto gabado elogio que não me mudou, não me fez.

Descarei. Experimentando o homem, só aproveitei foipara umadeixa: – “Joca Ramiro...” – eu disse, com uma risadazinhaminhavelhaca, que entre dois podia pegar qualquer incertosignificado.E me esperei. Mas o Hermógenes se saiu em só dizer,sério,confioso: que Joca Ramiro era maludo capitão, vero, no

real.Sonsice de Hermógenes? Não, senhor. Sei e vi, que osincero.Por que era que todos davam assim tantas honras a JocaRamiro,esse louvo sereno, com doado? Isso meio me turvava.Mas, doHermógenes, então, me atormentou sempre aquele meureceio,que eu carecia de pôr em raiva. Assim, por isso, falei emmimcomigo: – “A ele nego água, na boca do pote!”Esconjurar desse jeito leve me trouxe sossego. Ao que eu carecia. Tantomesmoque eu não queria ter de pensar naquele Hermógenes, eo pensa-mento nele sempre me vinha, ele figurando, eu cativo.Ser quepensava, amiúde, em ele ser carrasco, como tanto sedizia, senhor

de todas as crueldades. No começo, aquilo me corria sóoscalafrios de horror, a idéia minha refugava. Mas, a pouco,pegueiàs vezes uma ponta de querer saber como tudo podiaser, euimaginava. Digo ao senhor: se o demônio existisse, e osenhorvisse, ah, o senhor não devia de, não convém espiar paraesse,

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nem mi de minuto! – não pode, não deve-de! São se só

as coisasse sendo por pretas – e a gente de olhosfechados.

Ao tanto com o esforço meu, em esquecer Diadorim,digoque me dava entrante uma tristeza no geral, um prazo

decansado. Mas eu não meditava para trás, não esbarrava.Aquiloera a tristonha travessia, pois então era preciso. Água derio quearrasta. Dias que durasse, durasse; até meses. Agora, eunão meimportava. Hoje, eu penso, o senhor sabe: acho que osentir dagente volteia, mas em certos modos, rodando em si masporregras. O prazer muito vira medo, o medo vai vira ódio, oódiovira esses desesperos? – desespero é bom que vire a

maiortristeza, constante então para o um amor – quantasaudade... ; aí,outra esperança já vem... Mas, a brasinha de tudo, é só omesmocarvão só. Invenção minha, que tiro por tino. Ah, o queeuprezava de ter era essa instrução do senhor, que dárumo para seestudar dessas matérias...

Daí, eu caçava o jeito de me espairecer, junto comtodos.

Conversas com o Catocho, com Jõe Bexiguento, com oVove,com o Feijó – de mais sisudez – ou com Umbelino – o decarade gato. Se ria, fora de aperreio de combate muito sevadiava.Assim-assei, naquela influição. Vinha ordem, então a

gente se

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reunia em bando grande, depois tornava a em

grupozinhos seapartar. A guerra era a igual. E ali dava de se sentir ofaltoso e oimperfeito, como no mais acontece, em quantidademaior. OSão Francisco não é turvo sempre? E o que se falavamais eraem mulher? Isso fazia muito boa falta. Cada um queriadelas, noque só pensava. As mocinhas próprias de se provar, ou

ruaalegre cheia de alegria – o bom sempre melhor, o bom.Amigomeu, o Umbelino – esse que dizia: que, por não termulher ali,se tinha de muito lembrar. Ele era do Rio Sirubim, de umlugarpara trás das cachoeiras. Valia como companheiro, capaz

d’armas. Que que pequeno, era bom. Relembrava: – “Játiveuma mulher amigável só minha, na Rua-do-Alecrim, emSãoRomão, e outra, mais, na Rua-do-Fogo...” Essasconversas, como calor. Calor em que cão pendura a língua, o senhorsabe. Já viu,por aí? Em Januária ou São Francisco, tinha estação detempoem que não se podia deixar um ovo guardado: comumas duas ou

três horas, já se estragava. Todos contavam estórias deraparigasque tinham sido simples somente; essassenvergonhagens. Mas,de noite – é de crer? – a gente sabia dos que queriamqualquerreles suficiente consolo. E eram brabos saradosguerreiros, quenunca noutro ar. Coisas. Canta que cantavam, de dia,nenhumsabia pé-de-verso direito, ou não queriam ensinar, era sóaquela

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invenção, e cantando fanhoso no nariz. Ou ficavam

dizendograças e ditérios. Nem feito meninos não sendo. Poresse sem-quefazer, a gente ainda mais comia, quase que pordivertimento.Os uns iam torar palmito, colher mandioca emmandiocalzinhosem dono, dono tinha fugido longe. Gostei de favas domato,muito murici, quixaba e jaca. O Fonfredo tinha um

blilbloquê, agente brincava de jogar. Tudo jogado a dinheiro baixo.Osespertos, teve quem pôs a jogo até bentinho depescoço, semdizer desrespeito. E faziam negócio desses breves,contado quealguns arrumavam até escapulários falsos. Deusperdoa? Osenhor podia perguntar: Deus, para qualquer um

 jagunço, sendoum inconstante patrão, que às vezes regia ajuda, mas,outrashoras, sem espécie nenhuma, desandava de lá –proteção seacabou, e – pronto: marretava! Que rezavam. JõeBexiguento,mesmo, quis que diversos tomassem parte em novena,numa malrezada novena, a santo de sua redobrada tenção, e aqual ele nem

teve persistência para nos dias medidoscompletar.E – mas – o Hermógenes? Sobreveja o senhor o meu

descrever: ele vinha por ali, à refalsa, socapa de se rir ese divertirno meio dos outros, sem a soberba, sendo em sendo oraposomeco. Naqueles dias ele andava de pé-no-chão, maiscom umacalça apertada nas canelas e encurtada, e mesmo muito

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esmolambado na camisa. Até que de barba grande,

parecia umpedidor. E caminhava com os largos passos, mais omuito naspontas, vinha e ia com um sorrizinho besteante, rodeavapor todaa parte. Nem eu no achar mais que ele era o ferrabrás? Oqueparecia, era que assim estivesse o tempo todoproduzindo algumatramóia.

Estudei uma dúvida. Ao que será que seria o serdaquelehomem, tudo? Algum tinha referido que ele era casado,

commulher e filhos. Como podia? Ai-de vai, meu pensamento

constante querendo entender a natureza dele, viradadiferente detodas, a inocência daquela maldade. A qual que me

aluava. OHermógenes, numa casa, em certo lugar, com suamulher, elefazia festas em suas crianças pequenas, dava conselho,davaensino. Daí, saía. Feito lobisomem? Adiante de quem,atrás doquê? A cruz o senhor faça, meu senhor! Aí eu acrediteiquetivesse de haver mesmo o inferno, um inferno; precisava.

E odemônio seria: o inteiro, louco, o doido completo – assim

irremediável.

Ah, me aluei? O Hermógenes, esquipático, diverso.

Comigo eu começava numa espécie, o ror, vontade de irparaperto, reparar em tudo que fazia, dele escutar suas

causas. Aos

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poucos, o incutido do incerto me acostumando, eu não

tiravaisso da cabeça. O Hermógenes – ele dava a pena, davamedo.Mas, ora vez, eu pressentia: que do demônio não se podeterpena, nenhuma, e a razão está aí. O demônio esbarramansomansinho, se fazendo de apeado, tanto tristonho, e, osenhorpára próximo – aí então ele desanda em pulos e prezares

dedança, falando grosso, querendo abraçar e grossascaretas –boca alargada. Porque ele é – é doido sem cura. Todoperigo. E,naqueles dias, eu estava também muitoconfuso.

– “Será, o Hermógenes também gosta demulheres?” – eucareci de saber, perguntei. – “Eh. Apreceia não. Só se

nãogosta...” – um disse. – “Quá. Acho que ele gosta demaisé só nemdele mesmo, demais, demais...” – algum outro atalhou.Que eleera assim – eu fiquei em pausas –: e os companheirostodossabiam do ser; e achavam então que ato assim erapossívelnatural?! Como que não achavam? Até, por eu ter o

assunto, jáum vinha: – “Daqui a seis léguas, é a baixada do Brejinho– látem logradouro. Tem fêmeas...” Esse que disse era oDute, meparece; ou foi outro. Mas o Catocho desafirmou: quetinhaestado lá, não viu ar de mulher-davida nenhuma, só uma

vendinha de roça e uma velha pitando cachimbo, nobatenteduma porta, pitando cachimbo e trançando peneiras.Que que-

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riam mulheres principalmente a fim, estava certo; eu

também. Euqueria, com as faces do corpo, mas também comentender umcarinho e melhorrespeito – sempre a essas do mel eu deilouvorde meu agradecimento. Renego não, o que me é dedoces usos:graças a Deus toda a vida tive estima a toda meretriz,mulheresque são as mais nossas irmãs, a gente precisa melhor

delas, dessasbelas bondades. Mas o Lindorífico lembrava um pagode,emalgum ao lugarejo, para baixo de lá: do que batucavam,o pro-puxado das sanfonas, cachaça muita, as mulheresvinham darumbigadas, tiravam a roupa, cavalheiros levavam damasnasmoitas, no escuro do sebo; outros desafiavam outros parabrigar.Para quê? Por que não gozar o geral, mas com educação,sem asdesordens? Saber aquilo me entristecia. Tem coisas quenão sãode ruindade em si, mas danam, porque é ao caso devirarem, feitoo que não é feito. Feito a garapa que se azeda. Viver émuitoperigoso, já disse ao senhor. No mais, mal me lembro,mas sei

que, naqueles dias, eu estive muito maltrapilho. Em queera queeu podia achar graça? De manhã, quando eu acordava,sempresupria raiva. Um me disse que eu estava estando verde,má carade doença – e que devia de ser de figado. Pode que seja,tenhasido. O Paspe, que cozinhava, cozinhou para mim oschás: o de

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macela, o de erva-doce, o de losna. Oi. Dor, mesmo,

nenhuma eunão tinha. Somenteperrengueava.

Do que de uma feita, por me valer, eu entendi ocasco deuma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-

manhã, comraiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendopensar emoutra, para passar a ter raiva dessa outra, também,igualzinho,soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meupensamento iapegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, domesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e euem outrashoras delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas osarrodo pensamento alterava as lembranças, e eu ficava

achando que,o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, epunhasignificado de culpa em todas as conversas e ações. Osenhor mecrê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: queaquelaraiva estava em mim, produzida, era minha sem outrodono,como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de

naquelahora eu estar passeando pensar nelas. Hoje, que enfimeu meditomais nessa agenciação encoberta da vida, fico meindagando: seráque é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima.Osenhor ainda me releve. Mas, na ocasião, me lembreidumconselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinhadado. Queera: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem,mas raiva

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mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando

se curteraiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar queessaprópria pessoa passe durante o tempo governando aidéia e osentir da gente; o que isso era falta de soberania, e fartabobice, efato é. Zé Bebelo falava sempre com a máquina deacerto –inteligência só. Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo

finca-pé,em força para não esparramar raivas. Lembro quenaquela manhãtambém o calor era menos, e o ar era bondoso. Aí eu àpaz –com vontade de alegria – como se estimasse recebendoum aviso.Demorei bom estado, sozinho, em beira d’água, escutei ofifedum pássaro: sabiá ou saci. De repente, dei fé, e avistei:eraDiadorim que chegando, ele já parava perto demim.

Ele mesmo me disse, com o sorrisosentido:– “Como passou, Riobaldo? Não está contente pormever?”

A boa surpresa, Diadorim vindo feito um milagrealvo. Aoque, pela pancada do meu coração. Aí, mas um resto de

dúvida: ainteira dúvida, que me embaraçava real, em a minhasatisfação.Eu era o que tinha, ele o que devia. Retente, então,permaneci;não fiz mostra nenhuma. Esperei as primeiras palavrasdele. Maisfalasse; retardei, limpei agoela.

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– “A pois. Por onde andou, se mal pergunto?” – aí 

falei.Aquela amizade pontual, escolhida para toda a vida,dita aminha nos grandes olhos, ele

pronunciando:– “Você também não está bom de saúde, Riobaldo,estouvendo. Você derradeiramente não tem passado

bem?”– “Vivendo minha sorte, com lutas eguerras!”Ao que Diadorim me deu a mão, que malamalaceitei. E eledisse de contar. Segundo tinha procurado aqueles dias

sozinho,recolhido nas brenhas, para se tratar dum ferimento, tiroquepegara na perna dele, perto do joelho, sido só de raspão.Menosentendi. A real que estando ofendido, por que era quenão haviade vir para o meio da gente, para receber ajuda e termelhor cura?Doente não foge para um recanto, ou mato, solitárioconsigo,feito bicho faz. Aquilo podia não ser verdade? Afiguro, aí bemque criei suspeitas: aonde Diadorim não teria andado

ido, e quefeia ação para aprontar, com parte na fingida estória? As

incertezas que tive, que não tive. Assaz ele falava assimafetuoso,tão sem outras asas; e os olhos, de ver e de mostrar, dequererbem, não consentiam de quadrar nenhum disfarce.Magro eleestava, quasso, empalidecido muito, até ainda um pouco

man-

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– 332 –

cava. Que vida penosa não era capaz de ter levado,

tantos dias,sem o auxílio de ninguém, tratando o machucado com

emplastros de raízes e folhas, comendo o quê? Assuntode fomee toda sorte de míngua devia de ter penado. E derepente euestava gostando dele, num descomum, gostando aindamais doque antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele

o tempotodo eu tinha gostado. Amor que amei – daí entãoacreditei. Apois, o que sempre não éassim?

Além do que era sazão de sentimento sereno: arteque a

vida mais regateia. A vida não dá demora em nada. Nos

seguintes, logo tornamos para tornar em guerra, com

assanhamentos. De formas que perdi o semelhar detantosmanejos e movimentos e a certa razão das ordens que agentecumpria. Mas fui me endurecendo às pressas, no fazermeuparticípio de jagunço, fiquei caminhadiço. Agora eu tinha

Diadorim assim perto de afeto, o que ainda valia mais no

meiodesses perigos de fato. Sendo que a sorte tambémprevalecia donosso lado, aí vi: a morte é para os que morrem.Será?

Ao que, com João Goanhá de testa-chefe, saímos,unscinqüenta, pegar uma tropa de cargueiros dos bebelos,

quevinham ao descuidado, de noite, no Bento-Pedro – lugar

num

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braço de brejo, arrozal. Surpreender custou barato,

bobearam assentinelas, sem se haver um grito-de-armas, foi só pôrem fugida.Aquela carga era enorme, maior em dobro, uma riqueza –tinhade tudo, até cachaça de pago imposto: as caixas dequarenta-e-oito garrafas cada. Ao tanto levamos os lotes de burrosparaesconder no Capão dos Ossos, onde tem carrascais e

caminhosde caatinga pobre, com lagoas secando: as ipueirasverdolengas.Daí, tivemos mando, no Poço-Triste, de tornar a amontarnosanimais. Aquilo era uma alegria. Minha alma estava: otroteio, apoeirada que levantavam, os cavalos que rinchavambem. Acintebebi água de de-dentro dum gravatá em flor. Aquelasaranhasgrandes armavam de árvore para árvore velhices de teia.Pareciaque a guerra já tinha se terminado bem. – “Berimbau!” –umdisse – “Agora é gozar gozo...” Mas. – “Ah, e Zé Bebelo?”–perguntei. Um Federico Xexéu, que vinha de recado,botava ofácil desânimo: – “Ih! Zé Bebel’? Evém ele, com gentesde

nuvens gentes...” A desléguas, se guerreava. A genterecebia a no-ticia. Aí – cavalaria chusma, arruá que chegando, aosestropes,terras arribavam: – “Eta, é?!” Sendo que era não. Só eraSóCandèlário, de repente. Apareceu, com aqueles muitoshomens.

Sus, esbarrou o cavalo tão de repente, que o corpodele se

encurtou pela metade. Só Candelário. Esse era alto,trigueiro azul,

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– 334 –

quase preto, com bigode amarelecido. Homem forçoso,

homemde fúria. Mandou que mandava. Em hora de fogo, pulavaà frentede todos, bramava o burro. Tomou a chefia geral,debaixo dele oHermógenes parecia um diabo coitado. Só Candelário erao paraenfrentar Zé Bebelo. Salvante que seria para tudo. Seapeou,ficou um demorado tempo de costas para a

gente.Saudei o Fafafa, que era homem também dele: comos deSó Candelário, o Alaripe e o Fafafa tinham outra vez

aparecido.O Fafafa, o que ele pois então me falou, numa ocasiãoterrível...Ah, mas o que eu antes não contei: o do preso. Antes,como foique se passou, como estávamos em bons escondidos,

em voltada casa dum sitiante, no Timba-Tuvaca, casa caiada,casa-de-telhas. Uns em grota, uns em altos de árvores, tinhagente atédentro de chiqueiro, na lama dos porcos. Aí chegaram osbebelos– uns trinta? Tiroteamos na suspensão deles, os quantosquematamos, matamos, os mais fugiram sem após. Um ficou

preso.Nem tinha nenhum ferimento. – “Que é que vão fazercom ele?”– eu perguntei. Será que iam matar? – “É verdade, achoque sim.Pois, amigo, a gente tem lá meios para guardarprisioneiro vivo?Se degola é da banda da direita para a esquerda...” – oque oFafafa me respondendo. No que dizia, ele tinha razão.Mas,quem seria que ia cumprir de dar o fim n’aquele pobremoço? O

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– 335 –

Hermógenes? Decerto era ele. Cocei os olhos, eu queria

saber enão saber. Sabia nem o nome, como se chamava orapaz, que iamorrer, assim no meio de toda boa ordem, pornecessidade nossa– porque, se solto, ele tornava a se juntar com os outros,darrelatórios. Vim para a beira do córrego. Vendo comolevavam orapaz, como ele caminhava normal, seguindo para

aquilo comseus dois pés. Essa injustiça não podia ser! Assim, os quepassavam, depois, que decerto iam para matar, eramoutros, nãovi o Hermógenes. Um, um Adílcio, com vaidade de sercapaz damaldade qualquer, pavão de penas. O outro, Luís Pajeú.

Imaginado, a que iam matar o homem, lá nas primeirasárvoresda capoeira, assim. Ânsia de dó, apalpei o nó na goela,ardi.Aquilo fosse sonho mero, então só sonho; ou, não fosse,entãoeu carecia de uma realidade no real, sem divago!Ajoelhei nabeirada, debrucei, bebi água com encostando a boca,com a cara,feito um cachorro, um cavalo. A sede não passava,minha barriga

devia de estar inchada, igual a de um sapo, igual umsaco de todotamanho. A umas cem braças para cima, onde o córrego

atravessava a capoeira, estavam esfaqueando o rapaz, eeu espiavapara a água, esperando ver vir misturado o sanguevermelho dele– e que eu não era capaz de deixar de beber. Acho queeu estavacom uma febre.

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Aquele grande gritar, de se estremecer. Diadorim me

puxou. Só Candelário subido em sela, aforçuradoregendo: apronto ele queria o punhadão de homens, se ia para o É-

 Já, p’ralá do Bró, em todo o seguir. – “Vamos, Riobaldo! É paraseesperar Joca Ramiro...” Assim Diadorim me empurrou.Montei.Sem tento, pisei um estribo, o outro o meu pé não

achava. –“Tocar ligeiro, Riobaldo!” – Diadorim me atanazando.Aquiloque lavorava em minha cabeça – ah, mas, aí, quem é queeu vi?O rapaz, aquele, o preso, vivo e exato. Tambémmontado numcavalo. Assim o que me contaram: que não ia morrer,não, iammatar não, Só Candelário tinha favorecido perdão a ele,porcausa de sua mocidade. – “Ele é baiano, para a Bahiavolta,vamos levar mais adiante, para se soltar, para lá...” Mealegrei deestrelas. Conforme mais me deram explicação, aquelenãooferecia perigo mais de tornar a se juntar com os outrosbebelose vir outra vez de armas contra a gente: porque se tinha

providenciado de rezar nele uma reza de tirar a coragemdeguerra, feito ato, mandraca de se abobar! Tudo tinhagraça. Mas,e o Luís Pajeú e o Adílcio, então, do modo que vi? Pois,essespassaram com as facas-de-arrasto, mas porque iamajudar aretalhar o porco, porção que se levava, dali, em carne e

toucinhos. Ah, eu tinha bebido àtoa gorgol d’água. Sedeu

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– 337 –

galope. Me pareceu que daí adiante, a partir disso, o

tudo erapara só ser a desatinada doidice. Só Candeláriogalopava emfrente de todos. Se ia – feito o rei dosventos.

O lugar onde esbarramos, no É-Já, era logo depois da

ponte de pau, que estando esburacada: atravessamosmaisembaixo, mau vau, por espirro de águas e escorrego emlisaspedras soltadas, no ribeirão lajeal. Ter, lá, ainda nãotinhaninguém; até me deu desengano. Mas tudo, no redor, eraverdecapim em beira fresca, aguada e pastos bons. Atrevi quequis: –“E Joca Ramiro?” Mas Diadorim se compôs: – “Agora,aqui,Riobaldo, é o ponto: inimigo vindo, morremos; mas nem

umbebelo não tem licença quieta de passar!” Diadorim atantoimpante, eu debiquei: – “Ah, me importa! Não é o que ése ver

 Joca Ramiro? Pois eu estou vendo.” – “Rezinga não,Riobaldo. Ahoras destas, Joca Ramiro deve de estar investindoaqueles, etudo destralhado vencendo...” – foi o que ele perfez.

Atrás disso,eu em ojeriza: – “Você sabe, hem, sabe. Os grandessegredos...”– fui falei. Mas, em passos desses, Diadorim sempre meapeava.Como o que reprovou: – “Sei de nada. Sei o que vocêpode sabertambém, Riobaldo. Mas conheço Joca Ramiro, sozinhoquepensa as partes. Conheço Só Candelário – que sócomparece éem fecho de forte decisão...”

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– 338 –

Ao que era. Nos dias em que tivemos de montar

guardanos lajeiros e lajeados, aprendi os rasgos daquelehomem. SóCandelário – como vou explicar ao senhor? Ele era um.Achoque nem dormia, comia o nada, nada, às pressas, pitavao tempotodo. E olhava para os horizontes, sem paciência neles,pareciaquerer mesmo: guerra, a guerra, muita guerra. Donde ele

era,donde vindo? Me disseram: desses desertos da Bahia.Passava,não me olhava. Ocasião, então, Diadorim a ele memostrou: –“Este é o meu amigo Riobaldo, chefe...” Aí, Só Candeláriomedivisou, sempre me viu. Rir sorrir ele não sabia – massossegavaum modo nos olhos, que tomavam um sério bom, por umseuinstante, apagando de serem aqueles olhosencarniçados: e issofigurava de ser um riso. Que conhecia Diadorim, eprezandomuito, desde vi. – “Riobaldo,Tatarana,eu sei...” – ele falou –

“Tu atira bem, tem o adestro d’armas...” E foi andando;acho quedele ainda ouvi: ...”amizade nas festas...”? Conseguianem ficar

parado. E, por um ponto ou outro, que eu não divulgueibem, eletinha algum estilo de ar de parecença com o próprio ZéBebelo.

Mas o Alaripe foi que me contou, uma coisa quetodossabiam e nela falavam. Que Só Candelário caçava era a

morte. Ebebia, quase constantemente, sua forte cachaça. Porquê? Digoao senhor: ele tinha medo de estar com o mal-de-lázaro.Pai dele

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tinha adoecido disso, e os irmãos dele também, depois e

depois,os que eram mais velhos. Lepra – mais não se diz: ai éque ohomem lambe a maldição de castigo. Castigo, de quê?Disso éque decerto sucedia um ódio em Só Candelário. Vivia emfogo deidéia. Lepra demora tempos, retardada no corpo, derepente éque se brota; em qualquer hora, aquilo podia variar de

aparecer.Só Candelário tinha um sestro: não esbarrava dearregaçar acamisa, espiar seus braços, a ponta do cotovelo, coçavaa pele, deem sangue se arranhar. E carregava espelhinho naalgibeira, nelefurtava sempre uma olhada. Danado de tudo. A gentesabia queele tomava certos remédios – acordava com o propor daaurora,o primeiro, bebia a triaga e saía para lavar o corpo, empoço, paraa beira do córrego ia indo, nu, nu, feito perna de jaburu.Aosdava. Hoje, que penso, de todas as pessoas SóCandelário é o quemais entendo. As favas fora, ele perseguia o morrer, porcontafutura da lepra; e, no mesmo do tempo, do mesmo jeito,

forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só davare-sultado que mandava mortes, e matava. Doido, era?Quem não é,mesmo eu ou o senhor? Mas, aquele homem, euestimava.Porque, ao menos, ele, possuía o sabidomotivo.

 Tanto que o inimigo não dava de vir, pois bem, agente

ficava em nervosias. Alguns, não. Feito aquele Luzié, quecantava

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sem mágoas, cigarra de entre-chuvas. Às vezes, pedi que

elecantasse para mim os versos, os que eu não esquecinunca,formal, a canção de Siruiz. Adiantes versos. E, quandoouvindo,eu tinha vontade de brincar com eles. Minha mãe, ela eraquepodia ter cantado para mim aquilo. A brandura de botarpara seesquecer uma porção de coisas – as bestas coisas em

que a genteno fazer e no nem pensar vive preso, só por precisão,mas semfidalguia. Diadorim, quando cuidava que sozinhoestivesse,cantarolava, fio que com boa voz. Mas, próximo dagente, nuncaque ele queria. A ver que também fiquei sabendo que osoutrosnão consideravam naqueles versos de Siruiz a belezaque euachava. Nem Diadorim, mesmo. – “Você tem saudade deseutempo de menino, Riobaldo?” – ele me perguntou,quando euestava explicando o que era o meu sentir. Nem não.

 Tinhasaudade nenhuma. O que eu queria era ser menino, masagora,naquela hora, se eu pudesse possível. Por certo que eu jáestava

crespo da confusão de todos. Em desde aquele tempo,eu jáachava que a vida da gente vai em erros, como umrelato sem pésnem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia desercomo na sala do teatro, cada um inteiro fazendo comforte gostoseu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que euachava.

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Ao do jeito de Só Candelário? Esse variava raja. –

“Arre,que vê, estamos sem noticias, não sei... A notícia, agente tem deir por ela, mesmo entrar no mundo para se buscar!” –isso SóCandelário quase exclamava. Mandou três homens quesaíssem acavalo, estrada avante, até a uma légua, colher do quehouvesse,espiar os espias. Me mandou, também. Mas, a bem dizer,

fui euquem quis: na hora, à frente dei o passo, olhei muito paraele,encarado. – “Tu Tatarana, vai...” Quando elefalava

Tatarana,eu

assumia que ele estava sério prezando minha valia deatirador.Montei, fui trotando travado. Diadorim e o Caçanje iam jámaislonge, regulado umas duzentas braças. Arte queperceberam queeu vinha, se viraram nas selas. Diadorim levantou obraço, bateumão. Eu ia estugar, esporeei, queria um meio-galope,para logoalcançar os dois. Mas, aí, meu cavalo filosofou: refugoubaixo erefugou alto, se puxando para a beira da mão esquerdadaestrada, por pouco não deu comigo no chão. E o que era,que

estava assombrando o animal, era uma folha secaesvoaçada, quesobre se viu quase nos olhos e nas orelhas dele. Dovento. Dovento que vinha, rodopiado. Redemoinho: o senhor sabe– abriga de ventos. O quando um esbarra com outro, e seenrolam,o doido espetáculo. A poeira subia, a dar que davaescuro, noalto, o ponto às voltas, folharada, e ramaredo quebrado,no

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estalar de pios assovios, se torcendo turvo,

esgarabulhando. Sentimeu cavalo como meu corpo. Aquilo passou, embora, oró-ró. Agente dava graças a Deus. Mas Diadorim e o Caçanje seestavamlá adiante, por me esperar chegar. – “Redemonho!” – oCaçanjefalou, esconjurando. – “Vento que enviesa, que vinga dabandado mar...” – Diadorim disse. Mas o Caçanje não entendia

quefosse:redemunhoera d’Ele – do diabo. O demônio se vertia ali,dentro viajava. Estive dando risada. O demo! Digo aosenhor. Nahora, não ri? Pensei. O que pensei: odiabo, na rua, rio meio do

redemunho...Acho o mais terrível da minha vida, ditadonessaspalavras, que o senhor nunca deve de renovar. Mas, me

escute. Agente vamos chegar lá. E até o Caçanje e Diadorim seriramtambém. Aí, tocamos.

Até à barra dos dois riachos, onde tem a cachoeiradeescadinhas. Nem pensei mais no redemoinho de vento,

nem nodono dele – que se diz – morador dentro, que viaja, o

Sujo: oque aceita as más palavras e pensamentos da gente, equecompleta tudo em obra; o que a gente pode ver emfolha dumespelho preto; o Ocultador. Ao então, chegamos na barradosriachinhos, na cachoeira; ficamos lá até o sol entrar.Como é quese podia trazer notícias, para Só Candelário? Notícia écoisa quese tira, a desejo, do fim do sol? Lá tinha um capão-de-mato. Ou

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era mata, muito velha. Os coatis desciam espirrando, de

suasesta deles, nas árvores, e os jacus voavam para outrasárvores,se empoleirando para o sono da noite, com um escarcéudegalinheiro. Tristeza é notícia? Tanto eu tinha um apertode de-sânimo de sina, vontade de morar em cidade grande.Mas quecidade mesma grande nenhuma eu não conhecia, digo.

Assim euaproveitei para olhar para a banda de donde ainda seprazqualquer luz da tarde. Me lembro do espaço,pensamentos emminha cabeça. O riacho cão, lambendo o que viesse. Ocoqueirose mesmando. A fantasia, minha agora, nesta conversa –osenhor me atalhe. Se não, o senhor me diga: preto épreto?branco é . branco? Ou: quando é que a velhice começa,surgindode dentro da mocidade. Noitezinha, viemos. Primeiracoruja quea ãoar, eu era capaz de acertar nela umtiro.

Mas Só Candelário não era tolo nas meças. No outrodia,notícias tivemos. E que! Dali a lá, as notícias todas

andaram devir, em lote e réstia. Um Sucivre, que fino chegou,esgalopado.Disse: – “Nhô Ricardão deu fogo, no Ribeirão do Veado.

 TitãoPassos pegou trinta e tantos deles, num bom combate,noesporão da serra...” Os bebelos se desabelhavamzuretas, de-baixo de fatos machos e zuo de balas. A tanto, a genteem festase alegrava Só Candelário subiu no jirau de varas-quetinha

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mandado fazer, nele era que dormia sem repousar – e

assimespiou esquecido tempo, espiava as paradas distâncias,feito umgavião querendo partir em vôo. Agora, era a guerra,mesmo,estariam rompendo as aleluias, lá por lá. Donde, daí, veiooAdalgizo: – “Seô Hermógenes passou, obra de seisléguas, vaidar combate...” Nossa hora de fogo estava perto. Assim

osbebelos tinham de passar de fugida por ali no É-Já,resvés. SóCandelário chega exclamava, chorava: dizia que nuncatinhachefiado pessoal tão valente feito nós, com tantascapacidades.E queria, logo, logo, o inimigo vindo. Todas as horastocaiadas;e de noite com um olho só se ia dormir, que das armasnão selargava. A redobrar as sentinelas, em ave-marias ealvorada.Combate vem é feito raio cai. Tudo era alarme dado,cuquiada:um pontapé em tição, o punhado de terra jogado paraapagar asfogueiras, de repente, e se assobiava cruzado. Vez,deram atétiros: mas nada não era, só um boi loango, com muitafome e

pouco sono, que veio sozinho pastando e deu a caracomprida,ali foras d’hora, no capinzal bom. – “Tudo que é estúrdio

comparece em tempo de guerra... Vote, vais!” – algumdisse. Eteve gente que se riu disso, até à beira da madrugada.Daquilotudo eu gostei, gostava cada dia mais. Fui aprendendo aachargraça no dessossego. Aprendi a medir a noite em meusdedos.

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Achei que em qualquer hora eu podia ter coragem. Isso

quevem, de mansinho, com uma risada boa, cachaça aosgoles,dormida com a gente encostado em coronha de suaarma. O quecarece é acompanheiragem de todos no simples, assimirmãos.Diadorim e eu, a sombra da gente uma só uma formava.

Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem.

SóCandelário era o chefe ao meu gosto, como euimaginava. Ah, e Joca Ramiro?

Antes foi uma coisa acontecida repentina: aquelealvoroço,

na cavalhada geral. Aí o mundo de homens anunciandode si esobre o vasto chegando, da banda do Norte. Joca Ramiro!

–“Doca Ramiro!” – se gritava. Só Candelário pulou em sela,

assim como ele sempre era: mola de aço. Deu umgalope, emencontro. Nós todos, de começo, ficamos atarantados. Viumsol de alegria tanta, nos olhos de Diadorim, até meapoquentou.Eu tinha ciúme? – “Riobaldo, tu vai ver como ele é!” –

Diadorim exclamou, se abraçou comigo. Parecia umacriançapequena, naquela bela resumida satisfação. Como eraque eu iapoder raivar com aquilo? E, no abre-vento, a todacavaleiramachegando, empiquetados, com ferragem de cascos no

pedregulho. Eram de ser uns duzentos, quase tudomanos-velhos baianos, gente nova trazida. Gritavam vivas para agente,

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saudavam. E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num

cavalobranco – cavalo que me olha de todos os altos. Numaselabordada, de Jequié, em lavores de preto-e-branco. Asrédeasbonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era umhomemde largos ombros, a cara grande, corada muito, aquelesolhos.Como é que vou dizer ao senhor? Os cabelos pretos,

anelados?O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito. Nemtinhamais outra coisa em que se reparar. A gente olhava, sempousaros olhos. A gente tinha até medo de que, com tantaaspereza davida, do serão, machucasse aquele homem maior, ferisse,

cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente,comoagrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo dedúvida,nem tristeza. Uma voz quecontinuava.

Sobre o no meio daquele rebuliço, menos colhi dever e deescutar. Os chefes tinham apeado dos cavalos, e os

homens,todos, em balbúrdia com sensatez. Só Candelário não

arredavapé de Joca Ramiro, e explicava as diversas coisas, comgrandesgestos, quase ele não dava conta de se falar. A demoraerapouca. Aí o forte bando tinha de se aluir para adiante,em re-dobro de marcha – iam para ferrar fogo, em lugar e hora

determinados – semelhante se soube. Tempo debeberem umcafé. Mas Joca Ramiro veio de lá, em alargadosvagarosos

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passos, queria correr o acampamento, saudar um e

outro, apalavrinha que fosse, um dito de apreço e apraz. O andardele-vicerto: alteado e imponente, como o de ninguém.Diadorim olha-va; e também tinha lágrimas vindo por caso. Decidido,deu umà-frente, pegou a mão de Joca Ramiro, beijou. JocaRamiro, quefirme contemplando, só um instante, seja, mas o

docementeachável, com um calor diferente de amizade. A quantiaque elegostava de Diadorim! – e pousou nas costas dele umabraço. Aoque, se virou para nós, que estávamos. E eu fiz comoDiadorim– nem sei porquê: peguei a mão daquele homem, beijeitambém. Todos, os que eram mais moços, beijavam. Os maisvelhostinham vergonha de beijar. – “Este aqui é o Riobaldo, osenhorsabe? Meu amigo. A alcunha que alguns dizem é

 Tatarana...”Isto Diadorim disse. A tento, Joca Ramiro, tornando a mever,fraseou: “Tatarana, pêlos bravos... Meu filho, você tem as

marcas de conciso valente.Riobaldo...Riobaldo...” Disse mais: –

“Espera. Acho que tenho um trem, para você...” Mandouvir odito, e um cabra chamado João Frio foi lá nos cargueiros,etrouxe. Era um rifle reiúno, peguei: mosquetão decavalaria.Com aquilo, Joca Ramiro me obsequiava! Digo ao senhor:

minha satisfação não teve beiras. Pudessem afiar invejaem mim,pudessem. Diadorim me olhava, com um contentamento.Me

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chamou de lado. Vi que, mesmo sendo assim querido e

escolhi-do de Joca Ramiro, ele procedia mais de ficar de longe,porninguém se queixar, não acharem que ali haviaafilhadagem. –“Não é que ele é mesmo o chefe de todos? Não é que é

mandante?” – Diadorim me perguntava. Era. Mas eu não

percebi o vivo do tempo que passava. Eles já estavam

indo desaída. Montado no cavale branco, Joca Ramiro deu umadespedida. Vi que ele com os olhos caçou Diadorim. Só

Candelário gritou: – “Viva Jesus, em rotas e vantagens!”E, numbufúrdio, todos esporaram, andaram, ao assaz. A altapoeira, quedemorava. Aquilo parecia uma músicatocando.

Desde ver, a figura dele tinha parado no meio dagente,noutra coisa não se falava. Aí em festa feita a gente

tramava nasarmas: Joca Ramiro entrava direto em combate, então iaser ofim da guerra! – “Só Candelário queria ir também, masteve deaceitar ordem de ficar...” – Diadorim me explicou.

Segundodisse – que Só Candelário, por aquela ânsia e soência, de

avançar, a avançar, agora podia desequilibrar a boaregra detudo. Seria para ficar de espera, tapando o mundo aosque aquio mundo quisessem. Assim, mais, Joca Ramiro tinhamandado:que nosso grupo se repartisse, em aos três ou quatropiquetes,para valer de vigiar bem os vaus e suas estradas.Diadorim e eu

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fizemos parte duma turma dessas, duns quinze homens,

chefiade João Curiol – fomos para a baixa dos Umbuzeiros, lugarfeio,com os gravatás poeirentos e uns levantados de pedra.Partindodesse vau, a gente pega uma chapadinha – a Chapada-da-Seriema-Correndo. A que parecia mesmo de propósito.Porquefoi lá, com todo o efeito, que a cara da caça se apareceu.

Aquilo,terrível. Conto já ao senhor, dumavez.

 Terrível, tido, por causa da ligeireza com que aquiloveio.Surpresa a gente sempre tem, o senhor sabe, mesmo em

espera:dá a vez, e não se vê, à parva. Não se crê que é. Tão derepente.O vento vinha bom, da parte d’eles chegarem, de formas

que ogalope pronto se ouviu. Escoramos as armas. Assim queeleseram uns vinte. Passaram o ribeirão, com tanta pressa,que aágua se esguichou farta, vero bonito aquilo no sol.Demos fogo.

Do que podia suceder. Vi homem despencadodemais, oscavalos patatrás! Dada a desordem. Só cavalo sozinho

podiafugir, mas os homens no chão, no cata, cata. Ao que, agenteatirava! Se morria, se matava, matava? Os cavalos, não.Mas teveum, veio, à de se doidar, se espinoteava, o cavaleiro não

agüentava na rédea, chegaram até perto de nós, aí todosos doismorreram de repente. Meu senhor: tudo numa estraga

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extraordinária. Mas aqueles eram homens! Trampe logo

quepuderam, os sobrantes deles se desapearam erastejaram,respondendo ao fogo. Ah, puderam tomar oculto atrás deoutrasfragas de pedra, nisso a gente não conseguiu ter mão.Aindadeviam de ser uns dez, ou uns oito. Afa que gritavam, emfebrede ódio, xingando todo nome. A gente, também.

Anhãnhãe,berrávamos fogo, quando sinal de homem tremeluzia. Asbalasrachavam as pedras, só partiam escalhas. Um semostrou, caiulogo. Munição deles era pouca. Fugir, mesmo, nãopodiam. Agente atirava. Aí deviam de ser uns seis – que é a meia-dúzia. –“Aoê, sabe quem está lá, comandando?” – o rastejadorRoqueme disse. – “Sabe quem?” Ah, eu sabia. Eu tinha sabido,o emdesde o primeiro momento. Era quem eu não queria paraser.Era Zé Bebelo!

Assim eu condenado para matar.

Aqui eu não sei o que o senhor não sabe. – “A fogo!Acrevo!” – isto João Curiol gritava. Antes do depois, neles

a genteia ir a pano de facão. – “Tralha! Lá vai obra, cão, carujo!

Roncolho!” – isto era a voz de Zé Bebelo, gritava. Eu nãogritei.Diadorim também atirava calado. Munição deles – quase

nenhuma. Eles deviam de ser uns quatro, ou três. O cano

do

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meu rifle esquentava demais. – “Roncolho! Toma...” Um

Freitas, nosso, gritou, caiu muito ferido. A bala era de Zé

Bebelo. Atiramos, grosso. Eles respondendo.Respondiampouco. Deviam de ser... os quantos? Digo ao senhor: eugostavade Zé Bebelo. Redigo – que. eu menos atirava do quepensava.Como era possível, assim, com minha ajuda, a morte

dele? Umhomem daquela qualidade, o corpo dele, a idéia dele,tudo queeu sabia e conhecia. Nessas coisas eu pensei. Sempre –ZéBebelo – a gente tinha que pensar. Um homem, coisafraca emsi, macia mesmo, aos pulos de vida e morte, no meio dasduraspedras. Senti, em minha goela. Aquela culpa eucarregava?Arresto gritei: – “Joca Ramiro quer esse homem vivo!loca Ra-miro quer este homem vivo! Joca Ramiro faz questão!...”A quenem não sei como tive o repente de isso dizer – falso,

verdadeiro, inventado...

Gritei firme, repeti.

Os outros companheiros aceitavam aquilo, diziam

também, até João Curiol: – loca Ramiro quer este homemvivo!”– “É ordem de Joca Ramiro!” De lá não atiravam mais. Sóbalaou outra, só. – “Arre, à unha, chefe?” – o Sangue-de-Outroperguntou. João Curiol respondeu que não. Eles deviam

de estar

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reservando balas para um final. – “Ordem de loca

Ramiro: épegar o homem vivo...” – ainda eu disse. Ali Zé Bebelo eusal-vasse. Todos aprovaram. Eu sei, eu sei? O senhor agoravai nãome entendes, O como são as coisas. Todos meaprovaram – e,aí, extraordinariamente, eu dei um salto de espírito. Oque? Mas,então, eu não tinha pensado tudo, o real?! O que era que

euestava fazendo, que era que eu estava querendo – quepegassemvivo Zé Bebelo, em carnes e ossos, para depois

 judiarem comele, matarem de outro pior jeito, a fácil?! Minha raivadeu emmim. Me mordi, me abri, me-amargo. Tanto tudo iasendosempre’ por minha culpa! E daí pedi tudo ao rifle é às

cartucheiras. Eu atirava, atirava: queria, por toda a lei,alcançarum tiro em Zé Bebelo, para acabar com ele de uma vez,semmartírio de sofrimentos. – “Tu está louco, Riobaldo?” –

Diadorim gritou, rastejando para perto de mim, travandoemmeu braço. – “Joca Ramiroquer o homem vivo! JocaRamiro

quer, deu ordem!” – todos agora me gritavam. Assimcontramim, assim todos. O que eu havia de desmentir? E não vi

direito, o fato. O que vi foi Zé Bebelo aparecendo, derepente,garnisé. O que ele tinha numa mão, era o punhal; naoutra umagarrucha grande, fogo-central. Mas descarregou agarrucha,atirando no chão, perto dos pés dele, mesmo. Arrancoupoeira.

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Por trás daquela poeira ele reapareceu, dava

pensamento assim –aprumado, teso; de briga. Lampejou com o punhal, eesperou.Ele mesmo estava querendo morrer à brava,depressamente.Olhei, olhei. De atirar nele, de todo jeito não tivecoragem. Ah,não tinha! E um dos nossos, não sei quem, jogou o laço.ZéBebelo mal ainda bateu com um pé, por se firmar, e caiu,

arrastado, voz que gritou: – “Canalha! Canalha!” Mastodosforam nele, desarmaram do punhal. Eu parei quieto,vago, se meestranho. Não queria, ah não queria que ele mereconhecesse.

Sobrevinha o tropel grande de cavaleiros. Aos quais:era Joca Ramiro; com sua gente total. Subiu pó e pó, por

ouros,poeira de entupir o narii e os olhos. Agarrei de mim,sentado lá,no mesmo meu lugar, atrás do pedação de pedra. O queeuestava era envergonhado. O fuzuê se fez um enorme.Sendoque chegavam também os outros grupos nossos, escuteiosbrados de Só Candelário. A roda de cavaleiros tantos, no

raso,sempre maior. Algum soprou o buzo do corno de boi. Tocavampara o acampamento. Mas Diadorim estava me caçando,e mais João Curiol, pelos mortos e feridos que tambémtínhamos, etambém ali ele devia de ter perdido algum trem seu,objeto. –“Homem danado...” – ouvi o que um dizia. Meus olhos

firmavam no chão, agora eu via que tremia. – “Ipa! ZéBebelo,

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oxém, ganhou patente. É estragador!” Eu falei: – “É?” – e

nesteentretanto. Ao menos Diadorim raiava, o todo alegre, àsquasedanças: – “Vencemos, Riobaldo! Acabou-se a guerra. Amais, Joca Ramiro apreciou bem que a gente tivesse pegado ohomemvivo...” Aquilo me rendia pouco sossego. E depois? –“Para que,Diadorim? Agora matam? Vão matar?” Mal perguntei.

Mas o João Curiol virou e disse: – “Matar não. Vão dar julga;mento...”

– “Julgamento?” – não ri, nãoentendi.– “Aposto que sei. Aí foi ele mesmo quem quis. O

homem estúrdio! Foi defrontar com Joca Ramiro, e,assim

agarrado preso, do jeito como desgraçado estava, brabogritou:– Assaca! Ou me matam logo, aqui, ou então eu exijo

 julgamento correto legal!... e foi. Aí Joca Ramiroconsentiu,

apraz-me, prometeu julgamento já...” – isto o que falou JoãoCuriol, para me dar a explicação.

Agradeci mesmo isso, a cisma não era para pôrpeso emmeus peitos. Saímos ainda com João Concliz, a ir em

longearredor, prevenir os que faltavam. A vinda geral. A gentede Titão Passos e do Hermógenes mandava aviso deestarem emcaminho. Os do Ricardão já aos tantos chegavam. Saí,com essesde João Concliz. Fui. Fiz questão. Eu não queria retornarlogo,

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com os outros, não enxergar Zé Bebelo eu achava

melhor.Montamos e sumimos por aqueles campos, essa estrada,essespequizeiros. – “Homem engraçado, homem doido!” –Diadorimainda achava. – “Sabe o que ele falou, como foi?” E medeunotícia.

 Tinha sido aquilo: Joca Ramirochegando, real, emseu altocavalo branco, e defrontando Zé Bebelo a pé, rasgado e

sujo,sem chapéu nenhum, com as mãos amarradas atrás, eseguropor dois homens. Mas, mesmo assim, Zé Bebelo empinouoqueixo, inteirou de olhar aquele, cima a baixo. Daí disse:

– “Dê respeito, chefe. O senhor está diante de mim,ogrande cavaleiro, mas eu sou seu igual. Dêrespeito!”

– “O senhor se acalme. O senhor está preso...” – Joca

Ramiro respondeu, sem levantar avoz.

Mas, com surpresa de todos, Zé Bebelo também

mudoude toada, para debicar, com um engraçadoatrevimento:

– “Preso? Ah, preso... Estou, pois sei que estou. Mas,

então, o que o senhor vê não é o que o senhor vê,compadre: éo que o senhor vai ver...”

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– “Vejo um homem valente, preso...” – aí o que

disse JocaRamiro, disse com consideração.

– “Isso. Certo. Se estou preso... é outra coisa...” – “Oque,mano velho?”

“... É, é o mundo à revelia!...” – isso foi o fecho doque Zé

Bebelo falou. E todos que ouviram deramrisadas.Assim isso. Toleimas todas? Não por não. Também oqueeu não entendia possível era Zé Bebelo preso. Ele não

eracriatura que se prende, pessoa coisa de se haver àsmãos.Azougue vapor...

E ia ter o julgamento.

 Tanto que voltamos, manhã cedinho estávamos lá,noacampo, debaixo de forma. Arte, o julgamento? O que

isso tinhade ser, achei logo que ninguém ao certo não sabia. O

Hermógenes me’ ouviu, e gostou: – “É e é. Vamos ver,vamosver, o que não sendo dos usos...” – foi o que ele citou. –“Ei,agora é julgamento!” – os muitos caçoavam, em festafona.Cacei de escutar os outros. – “Está certo, está direito.

 JocaRamirosabe o que faz-..” – foi o que disse Titão Passos. –

“Melhor, mesmo. Carece de se terminar o maisdefinitivo com

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– 357 –

essa cambada!” – falou Ricardão. E só Candelário, que

agora nãose apeava, vinha exclamando: – “Julgamento É isto! Têmdesaber quem é que manda, quem é que pode!” Ao espraiaasmargens.

Agora estavam todos mais todos reunidos,estávamos no

acampamento do É-Já, onde ali mal tanto povo cabia, elotes epontas de burros, a cavalhada pastando, jagunços detoda raça equalidade, que iam e vinham, co, miam, bebiam,bafafavam. SóCandelário tinha remetido dois homens, longe, no São

 JoséPreto, só para comprarem foguetes, que no fim teriarAdepipocar. E onde estava Zé Bebelo? Apartado, recolhido

de todavista, numa tenda de lona – essa única que se tinha,porque JocaRamiro mesmo se desacostumava de dormir em barraca,por oabafo do calor. Não se podia ver o prisioneiro, que ficavaládentro, feito guardado. Contaram que ele aceitavacomida e água,e estivesse deitado num couro de vaca, pitando e

pensando.Gostei. O de que eu carecia era de que ele não botasseolhos emmim. Eu apreciava tanto aquele homem, e agora ele nãohavia deser meu pesadelo. – “Aonde é que vamos? Onde é queesse julgamento vai ser?” – perguntei a Diadorim, quandosurpreendios suspensos de se ter saída. – “Homem, não sei...” –;Diadorimdisso não sabia. Só depois se espalhou voz. Ao que se iapara a

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Fazenda Sempre-Verde, depois da Fazenda Brejinho-do-

Brejo,aquela a do doutor Mirabô de Melo.

Mas, por que causa iam dar com aquele homemtamanhapasseata? Carecia algum? Diadorim não me respondeu.

Mas, peloque não disse e disso, tirei por tino. Assim que JocaRamiro faziaquestã de navegar três léguas a longe comacompanhamento detodos os jagunços e capatazes e chefes, e g prisioneirolevado emriba dum cavalo preto, e todas as tropas, com munição,coisastomadas, e mantimentos de comida, rumo do Norte –tudo porglória. O julgamento, também. Estava certo? Saímos, detrabuz.No naquele, a gente podia ver resenho de toda geração

demontadas. Zé Bebelo lá ia, rodeado por cavaleiros deguarda,pessoal de Titão Passos, logo na cabeça do cortejo. Iacom asmãos amarradas, como de uso? Amarrar as mãos nãoadiantava.Eu não quis ver. Me dava travo, me ensombrecia. Fuificandopara trás. Zé Bebelo, lá preso demais, em conduzido.

Aquilo comaquilo – aí a minha idéia diminuía. Tanto o antes, que fizaviagem toda na rabeira, ladeando o bando bonzinho de

 jeguesorelhudos, que fechavam a marcha. A pobreza primeiradeles meconsolava – os jumentinhos, feito meninos. Mas aindapensei: –ele bom ou ele ruim, podiam acabar com Zé Bebelo?Quem tinhacapacidade de pôr Zé Bebelo em julgamento?! Então,ressenti um

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fundo desânimo. Sem mais Zé Bebelo, então, o restado

consolosó mesmo podia ser aqueles jericos baianos, que denascençasabiam todas as estradas.

Assim passamos pelo Brejinho-do-Brejo, assimchegamosna Sempre Verde. Aí fomos chegando. Que me deu, de

repente?Esporeei e galopeis para dianteira, fomentado,repinchandodessas angústias. Vim. Eu queriá sobressalto de estar aliperto,catar tudo nos olhos, o que acontecia maior. Nem nãoimporteimais que Zé Bebelo me visse. Passei quase para a frentede todos.Estavam pensando que eu viesse com um recado. – “Quefoi,Riobaldo, que foi?” – gritou para mim Diadorim. Dei

nenhumaresposta. pessoa ali não me entendia. Só mesmo ZéBebelo eraquem pudesse me entender.

A Fazenda Sempre-Verde era a casa enorme, viemossaindoda estrada e entrando nas cheganças, os currais-de-

ajuntamento.Aquele mundo de gente, que fazia vulto. Parecia ummortório.Antes passei, afanhou a porteira, aí fomos enchendo oscurrais,com tantos os nossos cavalos. A casade-fazenda estavafechada.– “Não carece de se abrir... Não carece de se abrir...” –era umaordem que todos repetiam, de voz em voz. Ave, não

arrombassem, aquilo era de amigos, o doutor Mirabô de

Melo,

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mesmo ausente. Esbarramos no eirado, liso, grande, de

tantotamanho. Aí tinham apeado Zé Bebelo do cavalo, eleestava comas mão amarradas, sim, mas adiante do corpo, feitoalgemas. –“Ata amarra os pés também!” – algum enfezado gritou.Outro sechegou, com uma boa peia, de couro de capivara. Queera queaquela gente pensavam? Que era que queriam? Doideira

detodos. Daí, Joca Ramiro, Só Candelário, o Hermógenes, oRicardão, Titão Passos, João Goanhá, eles todos reunidosnomeio do eirado, numa confa. Mas Zé Bebelo não estava

aperreado. Tomou corpo, num alteamento – feito quandoo peruestufa e estoura – e caminhou, em direitura. Que quepequeno,era bom: homem às graças. Caminhou, mesmo. –“Oxente!” Paradiante de Joca Ramiro, no meio do eirado, tinham trazidoummocho, deixado botado lá; era um tamborete de tripés, oassentode couro. Zé Bebelo, ligeiro, nele se sentou. – “Oxente!” –sedizia. A jagunçama veio avançando, feito um rodear degado –

fecharam tudo, só deixando aquele centro, com ZéBebelosentado simples e Joca Ramiro em pé, Ricardão em pé,SóCandelário em pé, o Hermógenes, João Goanhá, TitãoPassos,todos! Aquilo, sim, que sendo um atrevimento; caso não,o que,maluqueira só. Só ele sentado, no mocho, no meio detudo. Aoque, cruzou as pernas. E:

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– “Se abanquem... Se abanquem, senhores! Não se

vexem...” – ainda falou, de papeata, com vênias eacionados, eaqueles gestos de cotovelo, querendo mostrar o chão emroda, odele.

Arte em esturdice, nunca vista. O que vendo, osoutros se

franziram, faiscando. Acho que iam matar, não podiamser assimdesfeiteados, não iam aturar aquela zombaria. Foi umsilêncio,todo. Mandaram a gente abrir muito mais a roda, para oespaçoficar sendo todo maior. Se fez.

Mas, de repente, Joca Ramiro, astuto natural, aceitouo

louco oferecimento de se abancar: risonho ligeiro sesentou, nochão, defronte de Zé Bebelo. Os dois mesmos seolharam.Aquilo tudo tinha sido tão depressa, e correu por todosumarruído entusiasmado, dando aprovação. Ah, Joca Ramiroparatudo tinha resposta: Joca Ramiro era lorde, homemacreditadopelo seu valor.

A modo que – Zé Bebelo – sabe o senhor então o queele

fez? Se levantou, jogou para um lado o tamborete, compontapé,e a esforço se sentou no chão também, diante de JocaRamiro.Foi aquele falatório geral, contente. De coisas de tarasco,assim, agente não gostava? E até os outros chefes, todos, um porum,

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mudaram de jeito: não se sentaram também, mas foram

ficandomoleados ou agachados, por nivelar e não diferir. Ao queopovaréu jagunço, com ansiedade de ver e ouvir o que sedesse, seespremendo em volta, sem remangar das armas. Aquelepovo –rio que se enche com intervalo dos estremecimentos,regular,como o piscar de olho dum papagaio. Vigiei o

Hermógenes. Eusabia: dele havia de vir o pior. Com o que, todo o mundoparado,formaram uns silêncios. Menos no mais, Joca Ramiro iafalar aspalavras consagradas?

– “O senhor pediu julgamento...” – ele perguntou,comvoz cheia, em beleza de

calma.– “Toda hora eu estou em

 julgamento.”Assim Zé Bebelo respondeu. Aquilo fazia sentido?Mas ele

não estava lorpa nem desfeliz, bom para a forca. Que atécapivarase senta é para pensar – não é para se entristecer. E

rodouaprumada a cara, vistoriando as caras de tantos homens.Ar queinchou o peito e o queixo levantou, valendo se valendo.Criaturaassim sente tudo adivinhado, de relâmpago, na pontados olhosda gente. Eu tinha confiançanele.

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– “Lhe aviso: o senhor pode ser fuzilado, duma vez.

Perdeu a guerra, está prisioneiro nosso...” – Joca Ramirofraseou.

– “Com efeito! Se era para isso, então, para quetantorequifife?” – Zé Bebelo repostou, com toda a

ligeireza.De ouvir, dividi o riso do siso. A pois! Ele mesmotinha

inventado exigido esse julgamento, e agora torcia omotivo:como se em fim de um julgamento ninguém competissede serfuzilado... Saranga ele não era. Mas estava brincandocom amorte, que para cada hora livrava. Ao que bastava JocaRamiroperder um ponto da paciência, um pouco. Só que, porsorte, pa-

ciência Joca Ramiro nunca perdia; motejou, nãomais:– “Adianta querer saber muita coisa? O senhorsabia, lápara cima – me disseram. Mas, de repente, chegou neste

sertão,viu tudo diverso diferente, o que nunca tinha visto.Sabençaaprendida não adiantou para nada... Serviu

algum?”– “Sempre serve, chefe: perdi – conheço que perdi.Vocêsganharam. Sabem lá? Que foi que tiveram de

ganho?”O puro lorotal. E atrevimento, muito. Os jagunços emrodanão entendiam o escutado; e uns indicavam por gestos

que Zé

Bebelo estava gira da idéia, outros quadrando um caladode mau

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sinal. Até o que disse: – “De lá não sai barca!” Assim se

diz. JocaRamiro não reveio logo. Mexeu com as sobrancelhas.Só, daí:

– “O senhor veio querendo desnortear,desencaminhar ossertanejos de seu costume velho de

lei...”– “Velho é, o que já está de si desencaminhado. Ovelho

valeu enquanto foi novo...”

– “O senhor não é do sertão. Não é daterra...”– “Sou do fogo? Sou do ar? Da terra é é a minhoca –quegalinha come e cata:

esgaravata!”

Que visse o senhor os homens: o prospeito. Aquelesmuitos homens, completamente, os de cá e os de lá,cercando ooco em raia da roda, com as coronhas no chão, e astantas caras,como sacudiam as cabeças, com os chapéus rebuçantes.

 JocaRamiro tinha poder sobre eles. Joca Ramiro era quemdispunha.Bastava vozear curto e mandar. Ou fazer aquele bomsorriso,debaixo dos bigodes, e falar, como falava constante,com ummodo manso muito proveitoso: – “Meus meninos... Meus

filhos...” Agora, advai que aquietavam, no estatuto.Nanja, osenhor, nessa sossegação, que se fie! O que fosse, elespodiam

referver em imediatidade, o banguelê, num zunir: quevespassem.

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Estavam escutando sem entender, estavam ouvindo

missa. Um,por si, de nada não sabia; mas a montoeira deles, exata,soubessetudo. Estudei foi os chefes.

Naquela hora, o senhor reparasse, que é que notava?Nada,mesmo. O senhor mal conhece esta gente sertaneja. Em

tudo,eles gostam de alguma demora. Por mim, vi: assimserenadosassim, os cabras estavam desejando querendo o sério

divertimento. Mas, os chefes cabecilhas, esses, ao quemenos:expunham um certo se aborrecer, segundo seja? Cadaumconspirava suas idéias a respeito do prosseguir, ecumpriam seusmanejos no geral, esses com suas responsabilidades. Uns

descombinavam dos outros, no sutil. Eles pensavam.Conformevi. Só Candelário duma banda de Joca Ramiro, com TitãoPassose João Goanhá; o Ricardão da outra, com o Hermógenes.AtualZé Bebelo foi começando a conversar comprido, nataramelagemcomo de seu gosto – aí o Ricardão armou um bocejo; e

 TitãoPassos se desacocorou, com a mão num ombro, quedevia de teralgum machucado. O Hermógenes fez beiço. JoãoGoanhá,aquele ar sonsado, quase de tolo, no grosso dosemblante. OHermógenes botava pontas de olhar, some escuro, nunsvisos. SóCandelário, ficado em pé, sacudia o moroso daspernas.

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 Joca Ramiro deve de ter percebido aquele repiquete.

Porqueele sobre se virou, para Só Candelário, ao deindagar:

– “Meu compadre, que é que seacha?”Sô Candelário fungou, e logo abriu naqueles sestrosquetinha, movimental. Sendo por ele querer se desengonçar

e nãopodendo: como era alto e magro duro aquele homem!Sarre osonhos olhos amarelos de gavião, dele, hem. Não achouaspalavras para dizer, disse:

– “Ao que a ver! Ao que estou, compadre chefemeu...”A lesto que Joca Ramiro assentiu, com cabeça,conformese Só Candelário tivesse afirmado coisas de sincera

importância.Zé Bebelo abriu muito a boca, tirando um ronco, comoque depropósito. Alguns, mais riram dele. Em menos JocaRamiroesperou um instante:

– “A gente pode principiar aacusação.”Aprovaram, os todos, todos. Até Zé Bebelo mesmo.

Assim Joca Ramiro refalou, normal, seguro de suaestança, pormais se impor, uma fala que ele drede avagarava. Ditodisse queali, sumetido diante, só estava um inimigo vencido em

combates, e que agora ia receber continuação de seudestino.

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– 367 –

 Julgamento, já. Ele mesmo, Joca Ramiro, como de lei,

deixavapara dar opinião no fim, baixar sentença. Agora, quemquisesse,podia referir acusação, dos crimes que houvesse, detodas asações de Zé Bebelo, seus motivos; e proporcondena.

Rés o que começasse, quem? O Hermógenes limpoua

goela. De primeira entrada eu vinha sabendo – esse

Hermógenes precisava de muitasvinganças.

Ele era sujeito vindo saindo de brejos, pedras ecachoeiras,homem toda cruzado. De uns assim, tudo o que escapa

vai emretinge de medo ou de ódio. Observei, digo ao senhor.Carece

de não se perder sempre o vezo da cara do outro; osolhos.Advertido que pensei: e se eu puxasse meu revól-. ver,berrassefogo nele? Se acabava um Hermógenes – estava ali, sãono vão,e num átimo se via era papas de sangue – ele voltavapara oinferno! Que era que me acontecia? Eu tomava castigomortal,de mão de todos? Deixasse que tomasse. Medo não tive.Só quea idéia boa passou muito fraca por mim, entrada porsaída.Fiquei foi querendo ouvir e ver, o que vinha mais.Demarcavaque iam acontecendo grandes fatos. Desde, Diadorim,

conseguindo caminho por entre o povo, aí chegou, seencostouem mim; tão junto, mesmo sem conversar, mas

respirava, como

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era com a boca tão cheirosa. Há-de haja! – o

Hermógenes tinhalevantado, para falar:

– “Acusação, que a gente acha, é que se devia deamarrareste cujo, feito porco. O sangrante... Ou então botar

atravessadono chão, a gente todos passava a cavalo por riba dele – aver sevida sobrava, para nãosobrar!”

– “Quá?!” – Zé Bebelo debicou, esticando o pescoçoebatendo com a cabeça para diante, diversas vezes, feito

pica-pauem seu oficio em árvore, Mas o Hermógenes com aquilonãosomou; foi pondo:

– “Cachorro que é, bom para a forca. O tanto que

ninguém não provocou, não era inimigo nosso, não sebuliucom ele. Assaz que veio, por si, para matar, paraarrasar, comsobejidão de cacundeiros. Dele é este Norte? Veio a pagodoGoverno. Mais cachorro que os soldados mesmos...

Merece tervida não. Acuso é isto, acusação de morte. O diacho,cão!”

– “Ih! Arre!” – foi o que Zé Bebelo ponteou. Assim

contracenando, todo o tempo – medo do Hermógenes

remedou, de feias caretas.

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– “É o que eu acho! É o que eu acho!” – O

Hermógenesentão quase gritou, por terminar: – “Sujeito que é umtralha!”

– “Posso dar uma resposta, Chefe?” – Zé Bebelo

perguntou, sério, a joca Ramiro. Joca Ramiroconcedeu.

- “Mas, para falar, careço que não me deixem com asmãos

amarradas...”

Nisso não havendo razão ou dúvida. E Joca Ramirodeuordem. João Frio, que de perto dele não se apartava, veio

de lá,cortou e desatou a manupeia nas juntas dos pulsos. Queera queZé Bebelo ia poder fazer? Isto:

– “P’r’ aqui mais p’r’ aqui, por este mais estecotovelo!...”– disse, batendo mão e mão, com o acionado de

desplante. E riuchiou feito um sõim, o caretejo. Parecia mesmo quererfazerraiva no outro, em vez de tomar cautela? Vi que tudo era

enfinta; mas podia dar em mal. O Hermógenes pulou

passo, fezmenção de reluzir faca. Se teve mão em si, foi por forte

costume. E Joca Ramiro também tinha atalhado, comumaaspação: – “Tento e paz, compadre mano-velho. Não vêque eleainda está é azuretado...”

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– 370 –

– “Ei! Com seu respeito, discordo, Chefe, maximé!”

– ZéBebelo falou. – “Retenho que estou frio em juízo legal,

raciocínios. Reajo é com protesto. Rompo embargos!Porqueacusação tem de ser em sensatas palavras – não é comafrontasde ofensa de insulto...” – Encarou o Hermógenes: –“Homem:não abusa homem! Não alarga a

voz!...”Mas o Hermógenes, arriçado, crível que estivessetodo nopoder bravo de uma coceira, falou para Joca Ramiro – e

paratodos que estávamos lá – falou, numa voz rachada emduas, voztorta entortada:

– “Tibes trapo, o desgraçado desse canalha, que meagravou! Me agravou, mesmo estando assim vencidonosso epreso... Meu direito é acabar com ele,Chefe!”

Vi a mão do perigo. Muitos homens resmungaramemaprovo, ali rodeando, os tantos, dez ou vinte círculos,

anéis degente. Rentes os do bando do Hermógenes chegaram adar altaspalavras, de calca pá. Questionou-se a respeito disso?

 Tinhambarulhos na voz. Mesmo os chefes entre si cochicharam.Mas Joca Ramiro sabia represar os excessos, Joca Ramiro eramesmoo tutumumbuca, grande maioral. Temperousomente:

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– 371 –

– “Mas ele não falou o nome-da-mãe,

amigo...”E era verdade. Todo o mundo concordou, pelo que videtodos. Só para o nome-da-mãe ou de “ladrão” era que

não haviaremédio, por ser a ofensa grave. Com Joca Ramiroexplicarassim, não havia jagunço que não aceitasse o razoáveldaponderação, o relembrado. O Hermógenes mesmo semelou naatrapalhação das ligeirezas, e aí tinha de condizer. Nadaele nãodisse: mas abriu quadrada a boca, em careta de quemprovoupedra de sal. E Zé Bebelo mesmo aproveitou para mudaroaspecto – para uma certa circunspecção. Se via que elepensava acurto ganho no estreito, por detrás daquele sonsar.

 Trabalho deidéia em aperto, pelo pão de salvar sua vida daestrosca.

Imediato, Joca Ramiro deu a vez a Só Candelário,não

deixando frouxura de tempo para mais motim: – “Hê, evocê,compadre? Qual é a acu. sação que setem?”

Sobre o que, sobreveio Só Candelário, arre avante,aospriscos, a figura muita, o gibão desombrado. Sobrava

fala: –“Com efeito! Com efeito!...” – falou. Vai, vai, forteou maisa voz:– “Só quero pergunta: se ele convérn em nós doisresolvermosisto à faca! Pergunto para briga de duelo... É o que acho!Carecemais de discussão não... Zé Bebelo e eu – nós dois, nafaca!...”

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– 372 –

Só Candelário mais longe não conseguia de dizer, só

repetiaaquilo, desafio, e no mais se mexer, feito com são-guidoouescaravelho. Sem raiva quase nenhuma – notei; mastambém semnenhuma paciência. Só Candelário sendo assim. Mas aí 

 JocaRamiro remediou, dizendo, resistencioso, e escondeu ode queria:

– “Resultado e condena, a gente deixa para o fim,

compadre. Demore, que logo vai ver. Agora é a acusaçãodasculpas. Que crimes o compadre indica nestehomem?”

– “Crime?... Crime não vejo. É o que acho, por mimé o

que declaró com a opinião dos outros não me assopro.Quecrime? Veio guerrear, como nós também. Perdeu,pronto! Agente não é jagunços? A pois: jagunço com jagunço – aospeitos,papos. Isso é crime? Perdeu, rachou feito umbuzeiro queboicomeu por metade... Mas brigou valente, mereceu...Crime, quesei, é fazer traição, ser ladrão de cavalos ou de gado...nãocumprir a palavra...”

– “Sempre eu cumpro a palavra dada!” – gritou de láZéBebelo... Só Candelário olhou encarado para ele, rente

repente,como se nos instantes antes não soubesse que eleestava ali a trêspassos. Só assim mesmoprosseguiu:

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– 373 –

– “... Pois, sendo assim, o que acho é que se deve de

tornara soltar este homem, com o compromisso de ir ajuntaroutra vezseu pessoal dele e voltar aqui no Norte, para a guerrapodercontinuar mais, perfeita,diversificada...”

Ressaltados, os homens, ouvindo isso, rosnaram debem, cá

e lá: coragem sempre agradava. Diadorim apertou meubraço,como sussurrou: – “Doideira, dele. Riobaldo, SóCandelário estádoido varrido...” Aí podia ser. Mas eu tinha relanceadoum afiode onde ódio que ele mirou no Her-, mógenes, enquantofalando;e entendi: Só Candelário não gostava do Hermógenes!Sendo queele podia até nem saber disso, não ter noção firme de

que nãogostava; mas era a maior verdade. Sucinto, só por contadisso, euapreciei demais aquelerompante.

Só Candelário esbarrou de falar, secado. Só aosbufos,surdo de se ver que ele tinha feito o grande esforço todo,

sopitante. Se afundava para osaltos.

– “Apraz ao senhor, compadre Ricardão?” – JocaRamiro

solicitou, passando a vez.

Aquele retardou tanto para começar a dizer, quepenseifosse ficar para sempre calado. Ele era o famoso

Ricardão, o

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homem das beiras do Verde Pequeno. Amigo acorçoado

deimportantes políticos, e dono de muitas posses.Compostohomem volumoso, de meças. Se gordo próprio não era,isso sópor no sertão não se ver nenhum homem gordo. Mas umnãopodia deixar de se admirar do peso de tanta corpulência,a coisade zebu guzerate. As carnes socadas em si – parecia que

elecomesse muito mais do que todo o mundo – mais feijão,fubá demilho, mais arroz e farofa –, tudo imprensado, calcado,sacas esacas. Afinal, ele falou: fosse o AlmiranteBalão:

– “Compadre Joca Ramiro, o senhor é o chefe. O queagente viu, o senhor vê, o que a gente sabe o senhor

sabe. Nemcarecia que cada um desse opinião, mas o senhor querceder alarde prezar a palavra de todos, e a gente recebe essa boaprova...Ao que agradecemos, como devido. Agora, eu sirvo arazão demeu compadre Hermógenes: que este homem Zé Bebeloveiocaçar a gente, no Norte sertão, como mandadeiro de

políticos edo Governo, se diz até que a soldo... A que perdeu,perdeu, masdeu muita lida, prejuízos. Sérios perigos, em queestivemos; osenhor sabe bem, compadre Chefe. Dou a conta dos

companheiros nossos que ele matou, que eles mataram.Isso sepode repor? E os que ficaram inutilizados feridos, tantosetantos... Sangue e os sofrimentos desses clamam. Agora,que

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– 375 –

vencemos, chegou a hora dessa vingança de desforra. A

ver,fosse ele que vencesse, e nós não, onde era que umahora destasa gente estava? Tristes mortos, todos, ou presos,mandados emferros para o quartel da Diamantina, para muitascadeias, para acapital do Estado. Nós todos, até o senhor mesmo, sei lá.

Encareço, chefe. A gente não tem cadeia, tem outro

despachonão, que dar a este; só um: é a misericórdia duma boabala, demete-bucha, e a arte está acabada e acertada. Assimque veio, nãosabia que o fim mais fácil é esse? Com os outros, não sefez? Leide jagunço é o momento, o menos luxos. Relembrotambém quea responsabilidade nossa está valendo: respeitante aoseo Sul deOliveira, doutor Mirabô de Melo, o velho Nico Estácio,compadre Nhô Lajes e coronel Caetano Cordeiro... Essesestãoagüentando acossamento do Governo, tiveram de sair desuasterras e fazendas, no que produziram uma grandequebra, vaitudo na mesma desordem... A pois, em nome deles,mesmo, eu

sou deste parecer. A condena seja: sem tardança! ZéBebelo,mesmo zureta, sem responsabilidade nenhuma, vertepemba,perigoso. A condena que vale, legal, é um tiro de arma.Aqui,chefe – eu voto!...”

A babas do que ele vinha falando, o povaréu jagunçomovia

que louvava, confirmava. Aí, nhães, pelos que davammais

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demonstração, medi quantidade dos que eram do

Ricardãopróprio. Zé Bebelo estava definito – eu pensei – qualquer

rumorzinho de salvação para ele se mermando, se nomel, nop’ra passar. Mire e veja o senhor: e o pior de tudo eraque eumesmo tinha de achar correto o razoado do Ricardão,

reconhecer a verdade daquelas palavras relatadas. Isso

achei,meio me entristeci. Por quê? O justo que era, aquiloestava certo.Mas, de outros modos – que bem não sei – não estava.Assim,por curta idéia que eu queira dividir: certo, no que ZéBebelotinha feito; mas errado no que Zé Bebelo era e não era.Quemsabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo:

 julgamento ésempre defeituoso, porque o que a gente julga é opassado. Eh,bê. Mas, para o escriturado da vida, o julgar não sedispensa;carece? Só que uns peixes tem, que nadam rio-arriba, dabarra àscabeceiras. Lei é lei? Loas! Quem julga, já morreu. Viveré muitoperigoso, mesmo.

Nisso, Joca Ramiro já tinha transferido a mão de falaa

 Titão Passos – esse era como um filho de Joca Ramiro,estavacom ele nos segredos simples da amizade. Abri ouvidos.Idéia meveio que ia valer vivo o que ele falasse. Aí foi:

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– “Ao que aprecio também, Chefe, a distinção minha

destaocasião, de dar meu voto. Não estou contra a razão de

companheiro nenhum, nem por contestar. Mas eu cá seide todaconsciência que tenho, a responsabilidade. Sei que estoucomodebaixo de juramento: sei porque de jurado já servi; umavez, no

 júri da Januária... Sem querer ofender ninguém – vou

afiançando.O que eu acho é que é o seguinte: que este homem nãotemcrime constável. Pode ter crime para o Governo, paradelegado e juiz-de-direito, para tenente de soldados. Mas a gente é

sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis vir guerrear,veio –achou guerreiros! Nós não somos gente de guerra?Agora, eleescopou e perdeu, está aqui, debaixo de julgamento. Abem, se,na hora, a quente a gente tivesse falado fogo nele, ematado, aí estava certo, estava feito. Mas o refrego de tudo já sepassou.Então, isto aqui é matadouro ou talho?... Ah, eu, não.Matar, não.Suas licenças...”

Coração meu recomprei, com as palavras de TitãoPassos.

Homem em regra, capaz de mim. Cacei jeito de sorrirpara ele,aprovei com a cabeça; não sei se ele me viu. E mais nãohouverebuliço. Só que notei estopim os homens ficandodiferentes.Agora tomavam mais ânsia de saber o que era que iamdecidir osmanantas. O pessoal próprio de Titão Passos era queformavam

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o bando menor de todos. Mas gente muito valente.

Valentescomo aquele bom chefe. “De que bando eu sou?” –comigopensei. Vi que de nenhum. Mas, dali por diante, eu queria

encostar direto com as ordens de Titão Passos. – “Ele émeuamigo...” – Diadorim no meu ouvido falou – “... Ele ébisneto dePedro Cardoso, trasneto de Maria da Cruz!” Mas eu nem

tivesurto de perguntar a Diadorim o resumo do que elepensasse.loca Ramiro agora queria o voto de João Goanhá – oderradeirofalante, que rente dificultava.

 João Goanhá fez que ia levantar, mas permaneceuagachadomesmo. Resto que retardou um pouco no dizer, e o que

disse,que digo:

– “Eu cá, ché, eu estou p’lo qu’ o ché pro fimexpedir...”– “Mas não é bem o caso, compadre João. Vocês dãoovoto, cada um. Carece de dar...” – foi o que Joca Ramiro

explicoumais.

A tanto João Goanhá se levantou, espanou com osdedos

no nariz. Daí, pegou e repuxou seu canhão de cadamanga.Arrumou a cintura, com as armas, num propósito dedecisão.Que ouvi um tlim: moveu meus

olhos.

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– 379 –

– “Antão pois antão...” – ele referiu forte: – “meu

voto écom o compadre Só Candelário, e com meu amigo TitãoPassos,cada com cada... Tem crime não. Matar não. Eh,diá!...”

Rezo que ele falou aquilo, aquele capiau peludo,renasceuminha alegria. Rezo que falou, grosso, como se fosse por

umdestaque de guerra. De ripipe, espiei o Hermógenes:esse preteoude raiva. O Ricardão não acabava de cochilar, caragrande desapo. O Ricardão, no exatamente, era quem mandava no

Hermógenes. Cochilava fingido, eu sabia. E agora? Que équetinha mais de ter? Não estava tudo por bem em bemterminado?

Ah, não, o senhor mire e veja. Assim Joca Ramiro erahomem de nenhuma pressa. Se abanava com o chapéu.Ao emuma soberania sem manha de arrocho, perpasseou osolhos naroda do povo. Ant’ante disse,alto:

– “Que tenha algum dos meus filhos com

necessidade depalavra para defesa ou acusação, que podedepor!”

 Tinha? Não tinha. Todo o mundo se olhava, num

desconcerto, como quem diz lá: cada um com a caraatrás da sela.Para falar, ali não estavam. Por isso nem ninguém tinhaesperado.

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– 380 –

Com tanto, uns fatos extraordinários. Haja veja, que Joca

Ramirorepetiu o perguntar:

– “Que por aí, no meio de meus cabras valentes, seteráalgum que queira falar por acusação ou para defesa de

Zé Bebelo,dar alguma palavra em favor dele? Que pode abrir aboca semvexame nenhum...”

Artes o advogo – aí é que vi. Alguém quisesse?Duvidei, foio que foi. Digo ao senhor: estando por ali para mais de

unsquinhentos homens, se não minto. Surgiu o silêncio delestodos.Aquele silêncio, que pior que uma alarida. Mas, por quenão

davam brados, não falavam todos total, de torna vez,para ZéBebelo ser botado solto?... me enfezei. Sus, pensei, comumempurrão de força em mim. Ali naquel’horinha – meusenhor –foi que eu lambi idéia de como às vezes devia de ser bomtergrande poder de mandar em todos, fazer a massa domundorodar e cumprir os desejos bons da gente. De sim, sim,pingo.Acho que eu tinha suor nas beiras da testa. Ou então – euquis –ou, então, que se armasse ali mesmo rixa feia: metadedo povopara lá, metade para cá, uns punindo pelo bem da

 justiça, osoutros nas voltas da cauda do demo! Mas que faca.efogo

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houvesse, e braços de homens, até resultar em montes

de mortose pureza de paz... Sal que eu comi,só.

Abre que, ah, outra vez, Joca Ramiro reproduziu a

pergunta: – “Que se tiver algum...” – e isto e aquilo, tudoomais. Me armei dum repente. Me o meu? Eu agora iafalar – porque era que não falava? Aprumei corpo. Ah, mas nãoacertei emprimeiro: um outro começou. Um Gu, certo papa-abóbora,

beiradeiro, tarraco mas da cara comprida; essediscorreu:

– “Com vossas licenças, chefe, cedo minha rasaopinião.

Que é – se vossas ordens forem de se soltar esse ZéBebelo, isso

produz bem... Oséquio feito, que se faz, vem a servir àgente,mais tarde, em alguma necessidade, que o caso for...Não ajuntopor mim, observo é pelos chefes, mesmo, com estavênia. Agente é braço d’armas, para o risco de todo dia, paratudo omiúdo do que vem no ar. Mas, se alguma outra ocasião,depois,que Deus nem consinta, algum chefe nosso cair presoem mão detenente de meganhas – então também hão de sertratados commaior compostura, sem sofrer vergonhas e maldades... Aguerrafica sendo de bem-criação, bomestatuto...”

Aquilo era razoável. A ver, tinha saído tão fácil, até Joca

Ramiro, em passagens, animou o Gu, com acenos. Tomei

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– 382 –

coragem mais comum. Abri a minha boca. AI, mas, um

outrocampou ligeiro, tomou a mão para falar: Era umdenominadoDosno, ou Dosmo, groteiro de terras do Cateriangongo –entre oRibeirão Formoso e a Serra Escura – e ele tinha olhosmuitoincertos e vesgava. Que era que podia guardar paradizer um ho-mem desses, capiau medido por todos os capiaus do

meu Norte?Escutei.

– “Tomém pego licença, sós chefes. Em que pior nãoveja,destorcendo meu desatino. É-que, é-que... Que eu acho

que sejamelhor, em antes de se remitir ou de se cumprir essehomem,pois bem: indagar de fazer ele dizer ond’é que estão a

fortunadele, em cobre... A mó que se diz – que ele possederá obomdinheiro, em quantia, amoitado por aí... É só, por mim, ésó, comvosso perdão... Com vossoperdão...”

Riram, uns; por que é que riram? – rissem. Dei comoumpasso adiante, levantei mão e estalei dedo, feito menino

emescola. Comecei a falar. Diadorim ainda experimentou demereter, decerto assustado: – “Espera, Riobaldo...” – tive osiso davoz dele no ouvido. Aí eu já tinha principiado. O que euacho,disse, supri neste mais menosfraseado:

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– “Dê licença, grande chefe nosso, Joca Ramiro, que

licença eu peço! O que tenho é uma verdade forte paradizer, quecalado não posso ficar...” Digo ao senhor: que eu mesmonoteique estava falando alto demais, mas de me abrandarnão tinhaprazo nem jeito – eu já tinha começado. Coração brutobatente,por debaixo de tudo. Senti outro fogo no meu rosto, o

salteio deque todos a finque me olhavam. Então, eu não aceitei niwguém,o que eu não queria era ver o Hermógenes. Não pôr ascapas dosolhos nem a idéia no Hermógenes – que Hermógenesnenhumneste mundo não tivesse, nenhum para mim, nenhum desi! Porisso, prendi minhas vistas só num homem, um que foi o

qualquer, sem nem escolha minha, e porque estava bemporminha frente, um pardo. Pobre, esse, notando querecebia tantoolhar, abaixou a cara, amassado de não poder outracoisa. No eufalando:

–... Eu conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive

dolado dele, nunca menti que não estive, todos aquisabem. Saí delá, meio fugido. Saí, porque quis, e vim guerrear aqui,com asordens destes famosos chefes, vós... Da banda de cá, foiquebriguei, e dei mão leal, com meu cano e meu gatilho...Mas, agora,eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro,quehonra o raio da palavra que dá! Aí. E é chefe jagunço, deprimei-

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– 384 –

ra, sem ter ruindades em cabimento, nem matar os

inimigos queprende, nem consentir de com eles se judiar... Isto,afirmo! Vi. Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece umabsolvidoescorreito, mesmo não merece de morrer matado à-toa... E istodigo, porque de dizer eu tinha, como dever que sei, ecumprindoa licença dada por meu grande chefe nosso, Joca Ramiro,

e pormeu cabo-chefe TitãoPassos!...”

 Tirei fôlego de fôlego, latejei. Sei que me desconheci.

Suspendi do que estava:

–... A guerra foi grande, durou tempo que durou,encheu

este sertão. Nela todo o mundo vai falar, pelo Norte dosNortes,em Minas e na Bahia toda, constantes anos, até emoutraspartes... Vão fazer cantigas, relatando as tantasfaçanhas... Poisentão, xente, hão de se dizer que aqui na SempreVerdevieram sereunir os chefes todos de bandos; com seu cabrasvalentes,montoeira completa, e com o sobregoverno de JocaRamiro – sópara, no fim, fim, se acabar com um homenzinho sozinho– secondenar de matar Zé Bebelo, o quanto fosse um boi decorte?Um fato assim é honra? Ou évergonha?...”

– “Para mim, é vergonha...” – o que em brilhos ouvi:e

quem falou assim foi Titão Passos.

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– 385 –

– “Vergonha! Raios diabos que vergonha é!

Estrumes! Avergonha danada, raios danados que seja!...” – assim; equemgritou, isto a mais, foi SóCandelário.

 Tudo tão aos traques de-repente, não sei, eu nemacabei orelance que me arrepiou minha idéia: que eu tinha feito

grandetoleima, que decerto ia ser para piorar – o que foi no eudizer queZé Bebelo não matava os presos; porque, se do nossolado sematava, então não iam gostar de escutar aquilo de mim,quepodia parecer forte reprovação. Aos brados bramados deSôCandelário, temi perder a vez de tudo falar. Aí, nem olheipara Joca Ramiro – eu achasse, ligeiro demais, que Joca

Ramiro nãoestava aprovando meu saimento. Aí, porque nem nãotive tempo– porque imediato senti que tinha de completar o meu,assim:

– `... A ver. Mas, se a gente der condena deabsolvido:soltar este homem Zé Bebelo, a mãvazias, punido só pela

derrota que levou – então, eu acho, é fama grande. Famadeglória: que primeiro vencemos, e depois soltamos...” ;em tantoterminei de pensar: que meu receio era tolo: que,

 jagunço, peloque é, quase que nunca pensa em reto: eles podiamacharnormal que da banda de cá os inimigos presos a gentematasse,

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– 386 –

mas apreciavam também que Zé Bebelo, como contrário,

tivessedeixado em vida os companheiros nossos presos. Genteairada...

– “... Seja fama de glória! Só o que sei... Chagas de

Cristo!...” – eta Só Candelário tornou a atalhar.Desadorou-se!Senhor de bofe bruto, sapateou, de arrompe: os de pertoseafastando, depressa, por a ele darem espaço. Agora o

Hermógenes havia de alguma coisa dizer? O Hermógenes

experimentava os dentes nos beiços. Ricardão fazia que

cochilava. Só Candelário era de se temerinteiro.

Somente que, em vez do trestampo, que a genteesperasse,

e que ninguém bridava, ele Só Candelário espiou paracima, àspasmas, consoante sossegado estúrdio recitou, assim emtom – abonita voz, de espírito:

– “... Seja a fama de glória... Todo o mundo vai falarnisso,por muitos anos, louvando a honra da gente, por muitas

partes elugares. Hão de botar verso em feira, assunto de sair atédivulgado em jornal de cidade...” – Ele estava mandarino,

mesmo.

Aí eu pensei, eu achei? Não. Eu disse. Disse overdadeiro, oligeiro, o de não se esperar para dizer: – “... E, que perigo

que

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– 387 –

tem? Se ele der a palavra de nunca mais tornar a vir

guerrear coma gente, decerto cumpre. Ele mesmo não há de querertornar avir. É o justo. Melhor é se ele der a palavra de que vai-s’emborado Estado, para bem longe, em desde que não fique emterrasdaqui nem da Bahia...” – eu disse; disse mansinho mãe,mansice;caminhos de cobra.

– “Tenho uns parentes meus em Goiás...” – ZéBebelofalou, avindado de repente. E falou quando não se

aguardava, etambém assim com tanta vontade de falar, que algunsmuito seriram. Eu não ri. Tomei uma respiração, e aí vi que eutinhaterminado. Isto é, que comecei a temer. Num esfrio, num

átimo,me vesti de pavor. O que olhei – Joca Ramiro teria estadoagestos? – Joca Ramiro fazendo um gesto, então queriaque eucalasse absolutamente a boca; eu não possuía vênia paradiscorrerno que para mim não era de minha alta conta. Eu quis,derepentemente, tornar a ficar nenhum, ninguém, safado

humildezinho...

Mas Titão Passos trucou, senhor-moço. Titão Passos

levantava a testa. Ele, que no normal falava tão pouco,pudessedar capacidade de tantasconstâncias?

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– 388 –

 Titão Passos disse: – “... Então, ele indo para bem

longe,está punido, desterrado. É o que eu voto por justo. Crimemaiorele teve? Pelos companheiros nossos, que morreram ouestãoofendidos passando mal, tenho muitodó...”

Só Candelário disse: – “... Mas morrer em combate écoisa

trivial nossa; para que é que a gente é jagunço?! Quemvai emcaça, perde o que nãoacha...”

 Titão Passos disse: – “... E mortes tantas, isso não éculpade chefe nenhum. Digo. E mais que esses grandes de

nossaamizade: doutor Mirabô de Melo, coronel Caetano, e osoutros –

hão de concordar com a resolução que a gente tome, emdesdeque seja boa e de bom proveito geral. É o que eu acho,Chefe. Àsordens...” – Titão Passos terminou.

O silêncio todo era de Joca Ramiro. Era de Zé Bebeloe de Joca Ramiro.

Ninguém não reparava mais em mim, nãoapontavam o euter falado o forte solene, o terrivelmente; e então, agora,

paratodos os de lá, eu não existisse mais existido? SóDiadorim, quequase me abraçava: – “Riobaldo, tu disse bem! Tu éhomem detodas valentas_” Mas, os outros, perto de mim, por que

era que

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– 389 –

não me davam louvor, com as palavras: – Gostei de ver!

 Tatarana! Assim é que é assim! Só, que eu tinhapronunciadobem, Diadorim mais me disse: e que tinha sido menosporminhas tantas palavras, do que pelo rompante brabocom quefalei, acendido, exportando uma espécie de autoridadeque emmim veio. E para Zé Bebelo eu não tinha olhado. Que era

queele de mim devia de estar pensando? E Joca Ramiro?Esses sefronteavam: um ao outro, e o em meio, semediam.

Rente que nesse resto de tempo decerto cruzarampalavras,

que não deram para eu ouvir. Pois porque Zé Bebeloteve ordemde falar, devia de ter tido. A licença. Principiou. Foi

discorrendovagaroso, de entremeado, coisa sem coisa. Vi e vi: eleestava sóapalpando o vau. Sujeito finório. Aí o qualquer zunzo que

houvesse, ele colhia e entendia no ar – estava com asorelhas porisso, aquela cabeça sobrenadando. Já um poucodescabelado. Masserenou sota, para diante.

– `... Altas artes que agradeço, senhor chefe JocaRamiro,

este sincero julgamento, esta bizarria... Agradeço semtremor demedo nenhum, nem agências de adulação! Eu. José, ZéBebelo, émeu nome: José Rebelo Adro Antunes! Tataravô meuFranciscoVizeu Antunes – foi capitão-de-cavalos... Demarco idade

de

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– 390 –

quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar

Pacheco Antunes e Maria Deolinda Rebelo; e nasci nabondosavila mateira do Carmo daConfusão...”

Oragos. Para que a tanta sensaboria toda, essasfilosofias?Mas porém ele pronunciava com brio, sem as papeatas

de emantes, sem o remonstrar nem osreviretes:

– “... Agradeço os que por mim bem falaram epuniram...Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra e

gastos, àfrente de meus homens, minha guerra... Sou crescidovalente,contra homens valentes quis dar o combate. Não estácerto? Meu

exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem-Bem, Só Candelário!... e tantos outros afamados chefes,uns aquipresentes, outros que não estão... Briguei muitomediano, nãoobrei injustiça nem ruindades nenhumas; nunca disso me

reprovam. Desfaço de covardes e de biltragem! Tenhonada oupouco com o Governo, não nasci gostando de soldados...Coisaque eu queria era proclamar outro governo, mas com aajuda,depois, de vós, também. Estou vendo que a gente sóbrigou porum mal-entendido, maximé. Não obedeço ordens dechefespolíticos. Se eu alcançasse, entrava para a política, maspedia aogrande Joca Ramiro que encaminhasse seus brabos

cabras para

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– 391 –

votarem em mim, para deputado... Ah, este Norte em

remanência: progresso forte, fartura para todos, a alegria

nacional! Mas, no em mesmo, o afã de política, eu tive enãotenho mais... A gente tem de sair do sertão! Mas só sesai dosertão é tomando conta dele a dentro... Agora perdi.Estou preso.Mudei para adiante! Perdi – isto é – por culpa de má-hora

desorte; o que não creio. Altos descuidos alheios... De tersidoguardado prisioneiro vivo, e estar defronte de

 julgamento, isto éque eu louvo, e que me praz. Prova de que vós nossos jagunçosdo Norte são civilizados de calibre: que não matam comodistrair de mão um qualquer inimigo pegado. Isto aquinão sãoessas estrebarias... Estou a cobro de desordens malinas.Estimei.Dou viva Joca Ramiro, seus outros chefes, comandantesde seusterços. E viva sua valente jagunçada! Mas, homem sou.Sou dealtas cortesias. Só que medo não tenho; nunca tive, notravável...”

Anda que fez um gesto bonito. Assaz, aí, se

espiritou. Aoque, de vez, foi grandeúdo:

– “... Uê, vim guerrear, de peito aberto, comestrondos.Não vim socolor de disfarces, com escondidos e logro.

Perdi, porum desguardo. Não por má chefia minha! Não devia deterquerido contra Joca Ramiro dar combate, não devia-de.

Não

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– 392 –

confesso culpa nem retrauta, porque minha regra é: tudo

que fiz,valeu por bem feito. É meu consueto. Mas, hoje, sei: nãodevia-de. Isto é: depende da sentença que vou ter, neste nobre

 julga-mento. Julgamento, digo, que com arma ainda na mãopedi; e quedeste grande Joca Ramiro mereci, de sua alta fidalguia...

 Julgamento – isto, é o que a gente tem de sempre pedir!

Paraquê? Para não se ter medo! É o que comigo é. Carecideste julgamento, só por verem que não tenho medo... Se acondenafor às ásperas, com a minha coragem me amparo. Agora,se eureceber sentença salva, com minha coragem vosagradeço.Perdão, pedir, não peço: que eu acho que quem pede,paraescapar com vida, merece é meia-vida e dobro de morte.Masagradeço, fortemente. Também não posso me oferecerde servirdebaixo d’armas de Joca Ramiro – porque tanto erahonra, masnão condizia bem. Mas minha palavra dando, minhapalavra asmil vezes cumpro! Zé Bebelo nunca roeu nem torceu. E,sem

mais por dizer, espero vossa distinta sentença. Chefe.Chefes.”Digo ao senhor, foi um momentomovimentado.Zé Bebelo, acabando nas palavras, ali sentadinhoficou,repequeno, pequenininho, encolhido ao mais. Já um

poucodescabelado. Era uma bolinha de gente. Fechou-se um

homem.

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– 393 –

Olhei, olhei. Só a gente mal ouvisse o sussurro de todos

lá; quefoi bom: conheci que era. – “O sujeito machacá!Assopres!” –“Arre, maluco é – mas frege... Capaz que castra garrotecom asunhas dos dedos...” Não o que Diadorim não disse – maseleestava assim por pálido. Vai, vi os chefes. Elesconversaram umcircuitozinho, ligeiro. O Hermógenes e o Ricardão – e Joca

Ramiro para eles sorriu, seus compadres. O Ricardão e oHermógenes – eles dois eram chouriço e morcela. SóCandelário-conforme seus conformes, avançante-Joca Ramirosorriupara SóCandelário. O jeito de João Goanhá – richarte. Só TitãoPassosespiava desolhadamente, ele tão aposto homem tãobom, tãosério: com as mãos ajuntadas baixo, em frente dabarriga – sóesperava o nada virar coisas. Acontecesse o que. JocaRamiro iadecidir! Sobre o simples, o Hermógenes ainda ia sedebruçar,para um dizer em orelha. Mas Joca Ramiro encurtou tudonumgesto. Era a hora. O poder dele veio distribuído endireitoem Zé

Bebelo. O quando falou:

– “O julgamento é meu, sentença que dou vale emtodoeste norte. Meu povo me honra. Sou amigo dos meus

amigospolíticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro. Asentençavale. A decisão. O senhorreconhece?”

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– 394 –

– “Reconheço” – Zé Bebelo aprovou, com firmeza de

voz,ele já descabelado demais. Se fez que as três vezes, até:–“Reconheço. Reconheço! Reconheço...” – estrequesestalos degatilho e pinguelo – o que se diz: essasdetonações.

– “Bem. Se eu consentir o senhor ir-se embora paraGoiás,

o senhor põe a palavra, evai?”

Zé Bebelo demorou resposta. Mas foi só minutozinho.E,pois:

– “A palavra e vou, Chefe. Só solicito que o senhor

determine minha ida em modo correto, como

compertence.”– “A falando?”

– “Que: se ainda tiver homens meus vivos, presostambémpor aí, que tenham ordem de soltura, ou licença de vir

comigo,igualmente...”

Ao que Joca Ramiro disse: – “Topo. Topo.”– “ ... E que, tendo nenhum, eu viaje daqui semvigianenhuma, nem guarda, mas o senhor me fornecendo

animal-de-sela arreado, e as minhas armas, ou boas outras, comalgumamunição, mais o de-comer para os três dias,legal...”

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– 395 –

Ao que aí Joca Ramiro assim três vezes: – “Topo.

 Topo!”– “... Então, honrado vou. Mas, agora, com sualicença, apergunta faço: pelo quanto tempo eu tenho de estipular,

semvoltar neste Estado, nem na Bahia? Por uns dois, trêsanos?”

– “Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem...”

– Joca Ramiro ai disse, em final. E se levantou, num derepente.Ah, quando ele levantava, puxava as coisas consigo,parecia – aspessoas, o chão, as árvores desencontradas. E todostambém, aoem um tempo – feito um boi só, ou um gado em círculos,ouum relincho de cavalo. Levantaram campo. Reinou zoeirade

alegria: todo o mundo já estava com cansaço de dar julgamento,e se tinha alguma certa fome.

Diadorim me chamou, fomos caminhando, no meioda

queleléia do povo. Mesmo eu vi o Hermógenes: ele seamargou,engolindo de boca fechada. – “Diadorim” – eu disse –

“esseHermógenes está em verde, nas portas da inveja...” MasDiadorim por certo não me ouviu bem, pelo que começou

dizendo: – “Deus é servido...” Não sosseguei. Aquelepessoaltribuzava. O encarregado da Sempre-Verde abriu cozinha:

panelas grandes e caldeirões, cozinhando de tudo o quevale avaler. Tinha sempre algum batendo mão-de-pilão. Digo,não por

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– 396 –

nada não, mas pelo exato ser: eu tinha estalando nos

meus olhosa lembrança do Hermógenes, na hora do julgamento. Decomoprimeiro ele, soturno, não se sobressaía, só escancaravamuito aspernas, facãozão na mão; mas depois ficouartimanhado, comuma tristeza fechada aos cantos, como cão que consomeraivas.E o Ricardão? Esse: uma pesadureza na cara toda, mas,

quandoesbarrou de cochilar, aqueles olhos grossos, rebolandoque nemapostemados, sem bom preceito. Assente, enfim, tudoestavapassado, terminado. Estava? Pois, pedi espera aDiadorim, nabeira do rego, eu queria cuidar do meu cavalo, dissesse,

desarrear e escovar. Dei com o Hermógenes. Dito, abem, eucacei onde estava o Hermógenes, tempo parei perto dele.Virando que eu quis ir lá, e escutar, quase quis. Um dizerouvi: –... “Mamãezada...” Ao que seria? O Hermógenes não era

nenhum toleimado, para desfazer na decisão de JocaRamiro.“Mamãezada”?Maisnão ouvi, relembro que não sei direito.

Com

pouco, Zé Bebelo estava dando as despedidas. Se viu,montadonum bom cavalo de duas cores, arreado com sela boa deMinas-Velhas. Deram que levasse carabina, suas outras armas,e cruz-cruz cartucheiras. Aí já tinha jantado. E o bornal com

matlotagem. Sobre o cavalo se houve, se upou na sela.Se foi.Saiu em marcha de estrada, sem olhar para trás, o sol nabeira.

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– 397 –

Só o Triol devia de prestar acompanhamento a ele, por o

uso deresguardado território, de uma légua. Me deu certatristeza. Masa minha satisfação ainda eramaior.

Daí, estávamos todos pegando o que comer, queeramessas grandes abundâncias. Angu e couve, abóbora-

morangacozida, torresmos, e em toda fogueira assavam mantasdecarnes. Quem quisesse sopa, era só ir se aquinhoar naporta-da-cozinha. A quantidade de pratos era que faltava. E assazmuitacachaça se tomou, que Joca Ramiro mandou satisfazergoles atodos – extraordinária de boa. O senhor havia de gostarde veraquela ajuntação de povo, as coisas que falavam e

faziam, o jeitocomo podiam se rir, na vadiação, todos bem comidos,

entalagados. Daí, escureceu. Homens deitados no chão,

escornados até quase debaixo do mijo dos cavalospastantes. Euestava que impava, queria um bom sono. A ver, fui comDia-dorim para o rumo dos pés de fruta, seguindo o rego.

Com aentrada da noite, o passar da água canta friinho, permeio,

engrossa, e a gente aprecia o cheiro do musguz dasárvores. ZéBebelo tinha ido embora, para sempre, no cavalo de duascores,fez pouca poeira. Nós estávamos no jaz ali, repimpados,

enfunando as redes. Disso não esqueço? Não esqueço. Agenteestava desagasalhados na alegria, feitomeninos.

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– 398 –

Eu tinha vindo para ali, para o sertão do Norte, como

todos uma hora vêm. Eu tinha vindo quase sem mesmonotarque vinha – mas presado, precisão de agenciar um restomelhorpara a minha vida. Agora me expulsassem? Do jeito, istoé,tinham repelido para trás Zé Bebelo. Não me esquecidaquelaspalavras dele: que agora era “omundo à revelia...” Disse a

Diadorim. Mas Diadorim menos me respondeu. Ao dar,quefalou: – “Riobaldo, você prezava de ir viver n’Os-Porcos,que láé bonito sempre – com as estrelas tão reluzidas?...” Deique sim.Como ia querer dizer diferente: pois lá n’Os-Porcos nãoera aterra de Diadorim própria, lugar dele de crescimento?Mas,mesmo enquanto que essas palavras, eu pensasse queDiadorimpodia ter me respondido, assim nestas fações: – “...Mundo àrevelia? Mas, Riobaldo, desse jeito mesmo é que omundosempre esteve...” Toleima, sei, bobéia disso, a basba do

basbaque. Que eu dizia e pensava numa coisa, masDiadorim

recruzava com outras – “... Zé Bebelo, Diadorim: que équevocê achou daquele homem?” – ainda indaguei. – “Paraele, deagora, não tem dia nem noite: vai seu rumo, fazendo aviagem... Teve sorte! Entestou foi com Joca Ramiro – com sua alta

bondade...” – foi o que Diadorim me respondeu. E ficou

pensando, ficamos. Aí quando eu acabei até à pontinhameu

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– 399 –

cigarro, ainda perguntei: – “A ver, quem salvou Zé

Bebelo damorte?” Diadorim, o que quis me dizer foi em tantosegredo,que ele puxou a beira da minha rede, para a gente falarquasecara a cara: – “Ah, quem salvou Zé Bebelo de morte?Pois,abaixo de Joca Ramiro, por começar foi ele Zé Bebelomesmo.Depois, numa ponta do dito de Zé Bebelo, tomou figura

SóCandelário – homem esquipático e enorme de si, mas fiel,e quepõe mais de trezentas armas. Cabras que, por um gestodele,avançam e matam e matam...” Eu queria que ele tivesseexplica-do o fato de outro jeito. Mas Diadorim estavaprosseguindo: –“... A ser que você viu o Hermógenes e o Ricardão, gente

estarrecida de iras frias... Agora, esses me dão receio,meumedo... Deus não queira...” Depois, ele terminou assim: –“...Ao enquanto Joca Ramiro pode precisar da gente, vocêmesmome prometeu, Riobaldo: a gente persiste por aqui.”Prometioutra vez, confirmei. Desde, no sereno da noite, não se

conversou mais, não me recordo.

Diadorim estava triste, na voz. Eu também estive.Porquê? – há-de o senhor querer saber. Por causa de Zé

Bebelo terido embora; e aquilo era motivo? Depois de Paracatu, é o

mundo... Zé Bebelo ido, sei lá bem porque, tirava meupoder depensar com a idéia em ordem, e eu sentia minha barrigademais

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– 400 –

cheia, demais de tantas comidas e bebidas. Só o que me

consolava era ter havido aquele julgamento, com a vidae a famade Zé Bebelo autorizadas. O julgamento? Digo: aquilopara mimfoi coisa séria de importante. Por isso mesmo é que fizquestãode relatar tudo ao senhor, com tanta despesa de tempo emiúciasde palavras. – “O que nem foi julgamento legítimo

nenhum: sóuma extração estúrdia e destrambelhada, doideiraacontecida semsenso, neste meio do sertão...” – o senhor dirá. Pois: porissomesmo. Zé Bebelo não era réu no real! Ah, mas, nocentro dosertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão maiscerta e demais juizo! Daquela hora em diante, eu cri em JocaRamiro. Porcausa de Zé Bebelo. Porque, Zé Bebelo, na hora, naquelaocasião, estava sendo maior do que pessoa. Eu gostavadele do

 jeito que agora gosto de compadre meu Quelemém;gostava porentender no ar. Por isso, o julgamento tinha dado paz àminhaidéia – por dizer bem: meu coração. Dormi, adeus disso.Como é

que eu ia poder ter pressentimento das coisas terríveisque vieramdepois, conforme o senhor vai ver, que já lheconto?

Curtamente: dali da Sempre-Verde, com um dia mais,

desapartamos. O bando muito grande de jagunços nãotemcomposição de proveito em ocasião normal, só serveparachamar soldados e dar atrásamento e desrazoadadespesa.

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– 401 –

Constava que João Goanhá torasse para a Bahia, e que o

Antenorseguindo rumo em beira do Ramalhada, com umpunhado dosHermógenes. Novas ordens, muitas ordens. Alaripe ia vircom Titão Passos. Titão Passos chamou a gente: Diadorim eeu. Setinha um roteiro, sendo para ser: o mais encostadopossível noSão Francisco, até para lá do Jequitaí, e mais. Aquilo, por

quê? Agente não ia junto com Joca Ramiro, em caso de lhe a elepodermos valer, em caso, com maior ajuda, mão a mão?Ah, masnossa tarefa era de muito encoberto empenho e valor:pelo quetínhamos de estanciar em certos lugares, com o fito dereceberremessas; e em acontecer de vigiar algum rompimentodesoldados, que para o Norte entrassem. Arreamos,montamos,saímos. Naquela mesma da hora, Joca Ramiro davapartidatambém, de volta para o São João do Paraíso. Lá ia ele,deveras,em seu cavalão branco, ginete – ladeado por SóCandelário e oRicardão, igual iguais galopavam. Saíam os chefes todos– assim

o desenrolar dos bandos, em caracol, aos gritos devozear. Aoque reluzia o bem belo. Diadorim olhou, e fez o sinal-da-cruz,cordial. – “Assim, ele me botou a benção...” – foi o quedisse. Dásempre tristezas algumas, um destravo de grande povosedesmanchar. Mas, nesse dia mesmo, em nossos cavalostão bons,dobramos nove léguas.

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– 402 –

As nove. Com mais dez, até à Lagoa do Amargoso. E

sete,para chegar numa cachoeira no Gorutuba. E dez,arranchandoentre Quem-Quem e Solidão; e muitas idas marchas:sertãosempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, masderepente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão équandomenos se espera; digo. Mas saímos, saímos. Subimos. Ao

quando um belo dia, a gente parava em macias terras,agradáveis. As muitas águas. Os verdes já estavam segastando.Eu tornei a me lembrar daqueles pássaros. O marrequim,agarrixa-do-brejo, frangos-d’água, gaivotas. Omanuelzinho-da-croa! Diadorim, comigo. As garças, elas em asas. O riodes-mazelado, livre rolador. E aí esbarramos parada, parademora,num campo solteiro, em varjaria descoberta, pasto demuitogado.

Lugar perto da Guararavacã do Guaicuí: Tapera Nhã,nomeque chamava-se. Ali era bom? Sossegava. Mas, tem

horas em queme pergunto: se melhor não seja a gente tivesse de sairnunca dosertão. Ali era bonito, sim senhor. Não se tinha perigosem vista,não se carecia de fazer nada. Nós estávamos em vinte etrêshomens. Titão Passos determinou uma esquadrazinhadeles –com Alaripe em testa: fossem para a outra banda domorro,

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– 403 –

baixada própria da Guararavacã, esperar o que não

acontecesse.Nós ficamos.

O que, por começo, corria destino para a gente, ali,era:bondosos dias. Madrugar vagaroso, vadiado, se

escutando o gritoa mil do pássaro rexenxão – que vinham voando, aquelas

chusmas pretas, até brilhantes, amanheciam dumarestinga demato, e passavam, sem necessidade nenhuma, a sobre.E asmalocas de bois e vacas que se levantavam dasmalhadas, deacabar de dormir, suspendendo corpo sem rumornenhum, nomeio-escuro, como um açúcar se derretendo no campo.Quandonão ventava, o sol vinha todo forte. Todo dia se comia

bompeixe novo, pescado fácil: curimatã ou dourado;cozinheiro era oPaspe – fazia pirão com fartura, e dividia a cachaça alta.

 Tambémrazoável se caçava. A vigiação era revezada, de irmãos eirmãos,nunca faltava tempo para à-toa se permanecer. Dormi,sestasinteiras, por minha vida. Gavião dava gritos, até o dia

muito seesquentar. Aí então aquelas fileiras de resescaminhavam para abeira do rio, enchiam a praia, parados, ou refrescavamdentrod’água. Às vezes chegavam a nado até em cima dumailhacomprida, onde o capim era lindo verdejo. O que é depaz, crescepor si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha idéia detudo sóser o passado no futuro. Imaginei esses sonhos. Melembrei do

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– 404 –

não-saber. E eu não tinha notícia de ninguém, de coisa

nenhumadeste mundo – o senhor pode raciocinar. Eu queria umamulher,qualquer. Tem trechos em que a vida amolece a gente,tanto, queaté um referver de mau desejo, no meio da quebreira,serve comobeneficio.

Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo esaí, avão, escapado. Arte que eu caçava outra gente,

diferente. Emarchei duas léguas. O mundo estava vazio. Boi e boi.Boi e boie campo. Eu tocava seguindo por trilhos de vacas.Atravesseium ribeirão verde, com os umbuzeiros e ingazeirosdebruçados– e ali era vau de gado. “Quanto mais ando, querendo

pessoas,parece que entro mais no sozinho do vago...” – foi o quepensei,na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinhaculpa detudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertouemmim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razãode-motivo; que, quando notei que estava com dorde-cabeça,

e acheique por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até meserviu debom consolo. E eu nem sabia mais o montante quequeria, nemaonde eu extenso ia. O tanto assim, que até umcorguinho quedefrontei – um riachim à-toa de branquinho – olhou paramim eme disse: – Não... – e eu tive que obedecer a ele. Erapara eu nãoir mais para diante. O riachinho me tomava a benção.Apeei. O

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– 405 –

bom da vida é para o cavalo, que vê capim e come.

Então, deitei,baixei o chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão afogado.Dormi,deitado num pelego. Quando a gente dorme, vira detudo: virapedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer aosenhor,repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto éque refirotudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para

reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cadavirada decampo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia enoite umdiabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que éoromãozinho, é um diabo menino, que corre adiante dagente,alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono.Dormi,nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonitoéabsurdo – Deus estável. Ouro e prata que Diadorimaparecia ali,a uns dois passos de mim, mevigiava.

Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmonestavida. Tinha notado minha idéia de fugir, tinha me

rastreado, meencontrado. Não sorriu, não falou nada. Eu também nãofalei. Ocalor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto deDiadorim, overde mudava sempre, como a água de todos os rios emseuslugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tãomoço,tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contarcoisasque a idéia da gente não dá para se entender – e achoque é por

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– 406 –

isso que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar

esbarradoali, esperando meu acordar e me vendo meu dormir, era

engraçado, era para se dar feliz risada. Não dei. Nempude nemquis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito umdecreto: –Que você em sua vida toda toda por diante, tem de ficarparamim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!... – que era

como seDiadorim estivesse dizendo. Montamos, viemos voltando.E,digo ao senhor como foi que eu gostava de Diadorim: quefoique, em hora nenhuma, vez nenhuma, eu nunca tivevontade derir dele.

A Guararavacã do Guaicuí: o senhor tome nota deste

nome. Mas, não tem mais, não encontra – de derradeiro,ali sechama é Caixeirópolis; e dizem que lá agora dá febres.Naqueletempo, não dava. Não me alembro. Mas foi nesse lugar,notempo dito, que meus destinos foram fechados. Seráque tem umponto certo, dele a gente não podendo mais voltar para

trás? Travessia de minha vida. Guararavacã – o senhor veja, osenhorescreva. As grandes coisas, antes de acontecerem.Agora, omundo quer ficar sem sertão. Caixeirópolis, ouvi dizer.Acho qqenem coisas assim não acontecem mais. Se um diaacontecer, omundo se acaba. Guararavacã. O senhor váescutando.

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– 407 –

Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que

gostava deDiadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto emamizade.Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: faleicomigo.Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – nahora.Melhor alembro. Eu estava sozinho, num repartimentodumrancho, rancho velho de tropeiro, eu estava deitado

numa esteirade taquara. Ao perto de mim, minhas armas. Comaquelas,reluzentes nos canos, de cuidadas tão bem, eu mandavaa morteem outros, com a distância de tantas braças. Como éque, dummesmo jeito, se podia mandar o amor? O rancho era naborda-da-mata. De tarde, como estava sendo, esfriava umpouco, porpejo de vento – o que vem da Serra do Espinhaço – umventocom todas almas. Arrepio que fuxicava as folhagens ali, eia, láadiante longe, na baixada do rio, balançar esfiapado opendãobranco das canabravas. Por lá, nas beiras, cantava era o

 joão-po-bre, pardo, banhador. Me deu saudade de algumburitizal, na ida

duma vereda em capim tem-te que verde, termo dachapada.Saudades, dessas que respondem ao vento; saudade dosGerais.O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritistodos,quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso?O ventoé verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio põe nocolo.Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares. Mas, lá na

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– 408 –

Guararavacã, eu estava bem. O gado ainda pastava, meu

vizinho,cheiro de boi sempre alegria faz. Os quem-quem, aoscasais,corriam, catavam, permeio às reses, no liso do campoclaro. Mas,nas árvores, pica-pau bate e grita. E escutei o barulho,vindo dodentro do mato, de um macuco – sempre solerte. Eramês demacuco ainda passear solitário – macho e fémea

desemparelhados, cada um por si. E o macuco vinhaandando,sarandando, macucando: aquilo ele ciscava no chão,feito galinhade casa. Eu ri – “Vigia este, Diadorim!” – eu disse; penseiqueDiadorim estivesse em voz de alcance. Ele não estava. Omacucome olhou, de cabecinha alta. Ele tinha vindo quaseendireito emmim, por pouco entrou no rancho. Me olhou, rolou osolhos.Aquele pássaro procurava o quê? Vinha me pôrquebrantos. Eupodia dar nele um tiro certeiro. Mas retardei. Não dei.Peguei sónum pé de espora, joguei no lado donde ele. Ele deu umsusto,trazendo as asas para diante, feito quisesse esconder acabeça,

cambalhota fosse virar. Daí, caminhou primeiro até decostas,fugiu-se, entrou outra vez no mato, vero, foi caçarpoleiro para obom adormecer.

O nome de Diadorim, que eu tinha falado,permaneceu emmim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente –

“Diadorim, meu amor...” Como era que eu podia dizeraquilo?

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– 409 –

Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter

vergonha maior, o pensamento dele que em mimescorreufigurava diferente, um Diadorim assim meio singular, por

fantasma, apartado completo do viver comum,desmisturado detodos, de todas as outras pessoas – como quando achuva entre-onde-os-campos. Um Diadorim só para mim. Tudo tem

seusmistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, euabraçavacom meu corpo aquele Diadorim-que não era deverdade. Nãoera? A ver que a gente não pode explicar essas coisas.Eu deviade ter principiado a pensar nele do jeito de que decertocobrapensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas– dedentro de mim: uma serepente. Aquilo me transformava,mefazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora,eupudesse morrer, não meimportava.

O que sei, tinha sido o que foi: no durar daquelesantesmeses, de estropelias e guerras, no meio de tantos

 jagunços, equase sem espairecimento nenhum, o sentir tinha estadosempreem mim, mas amortecido, rebuçado. Eu tinha gostadoemdormência de Diadorim, sem mais perceber, no fofo dum

costume. Mas, agora, manava em hora, o claro querompia, re-bentava. Era e era. Sobrestive um momento, fechados osolhos,sufruía aquilo, com outras minhas forças. Daí,levantei.

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Levantei, por uma precisão de certificar, de saber se

erafirme exato. Só o que a gente pode pensar em pé – isso équevale. Aí fui até lá, na beira dum fogo, onde Diadorimestava,com o Drumõo, o Paspe e Jesualdo. Olhei bem para ele,decarne e osso; eu carecia de olhar, até gastar a imagemfalsa dooutro Diadorim, que eu tinha inventado. – “Hê, Riobaldo,

eh,uê, você carece de alguma coisa?” – ele me perguntou,quem-me-vê, com o certo espanto. Eu pedi um tição, acendiumcigarro. Daí, voltei, para o rancho, devagar, passos quedava. “Seé o que é” – eu pensei – “eu estou meio perdido...”Acerteiminha idéia: eu não podia, por lei de rei, admitir oextratodaquilo. Ia, por paz de honra e tenência, sacaresquecimentodaquilo de mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eudevia dequebrar o morro: acabar comigo! – com uma bala no ladodeminha cabeça, eu num átimo punha barra em tudo. Oueu fugia– virava longe no mundo, pisava nos espaços, fazia todasas

estradas. Rangi nisso – consolo que me determinou. Ah,entãoeu estava meio salvo! Aperrei o nagã, precisei de dar umtiro –no mato – um tiraço que ribombou. – “Ao que foi?” – me

gritaram pergunta, sempre riam do tiro tolo dado. –“Acho queum macaquinho miúdo, que acho que errei...” – euexpendi.

 Tanto também, fiz de conta estivesse olhando Diadorim,

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encarando, para duro, calado comigo, me dizer: “Nego

quegosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo!...”Assazmesmo me disse. De por diante, acostumei a me dizerisso,sempres vezes, quando perto de Diadorim eu estava. Eeu mes-mo acreditei. Ah, meu senhor! – como se o obedecer doamornão fosse sempre ao contrário... O senhor vê, nos Gerais

longe:nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escutabarulhode fortes águas, que vão rolando debaixo da terra. Osenhordorme em sobre um rio?

Segundo digo, o tempo que paramos naGuararavacã doGuaicuí regulou em dois meses. Bom ermo. De lá, a

gentecruzou as vizinhanças todas, fizemos grande redondeza. Tododia, trocávamos recado de avisos com o pessoal doAlaripe.Notícia, nenhumas. Nada não chegava em envio, do quefossepara chegar. Da outra banda do rio, se sucedeu a queimadoscampos: quando o vento dava para trás, trazia as tristes

fumaças.De noite, o morro se esclarecia, vermelho, asgrava emlabaredase brasas. Da banda de cá, num rumo, daí a obra de duasléguas,tinha uma lavourinha, de um sujeito ainda moço, que eraamigonosso. – “Ah, se ele quisesse alugar a mulherzinha delepara agente, bem caros preços que eu pagava...” – assim o quedizia oPaspe, suspiroso. Mas quem vinha eram os meninos do

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lavrador, montados num cavalo magro, traziam feixes de

cana,para vender para a gente. Às vezes, vinham em doiscavalosmagros, e eram cinco ou seis meninos, amontados,agarradosuns nos outros, uns mesmo não se sabia como podiam,de tãomindinhos. Esses meninozinhos, todos, queriam todo otempover nossas armas, pediam que a gente desse tiros.

Diadorimgostava deles, pegava um por cada mão, até carregavaos menor-zinhos, levava para mostrar a eles os pássaros das ilhasdo rio. –“Olha, vigia: o manuelzinho-da-troa já acabou de fazer a

muda...” Um dia, em que tínhamos caçado uma pacabem gorda,o Paspe pitou de sal um quarto dela, enrolou em folhas,e deuao menino mais velho: – “P’ra tu leva de presente, dá àtua mãe,fala que quem mandou fui eu...” – ele recomendou. Agente ria.Os meninos receavam o gado: ali no meio tinha resesmuitobravas, um dia uma vaca deu corrida em alguém,querendobater. Mas, depois, com o secar, de magros e fracos osbois se

atolavam no embrejado, até morreram alguns. Os urubusespaceavam, quando o céu empoeirado. Pousavam nopindaibaldo brejo. João Vaqueiro chamava a gente, ia desatolar osboisque podia. Uns eram mansos: por um punhado de sal, se

chegavam, lambiam o chão nos pés da gente. JoãoVaqueirosabia tudo. Chega passava a mão nas tetas de uma vaca– capins

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tão bons, o senhor crê? – algumas ainda guardavam leite

naqueles peitos. – “A gente carecia era de dar um fogo,de sairpor aí, por combate...” – sensato se dizia. Que jagunçoamolece,quando não padece.

A quase meio-rumo de norte e nascente, a quatroléguas de

demorado andamento, tinha uma venda de roça, nocomeço docerradão. Vendiam licor de banana e de pequi, muitoforte,geléia de mocotó, fumo bom, marmelada, toucinho.Sempre sóum de nós era que ia lá – para não desconfiarem. Ia o

 Jesualdo.A gente outorgava a ele o dinheiro, cada umencomendava oque queria. Diadorim mandou comprar um quilo grande

desabão de coco de macaúba, para sé lavar corpo. O donodavenda tinha duas filhas, o Jesualdo cada vez que voltavacareciade explicar à gente, de dia é de noite, como elas eram,

formosuramente. – “Ei, que quando vier o tempo, que deguerrase tiver licença, ah, e se esse vendeiro for contra nós,

ah, eu voulá, pego uma das duas, de mocinha faço ela virarmulher...” – oVove disse. – “O que tu não faz! Porque o que eu quero éoexato: que eu vou’ lá, prezado peço em casamento, enóivo...” –o Triol contestou. E o Liduvino e o Admeto cantavamcoisas desentimento, cantavam pelonariz.

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Ao que perguntei: e aquela canção de Siruiz? Mas

eles nãosabiam. – “Sei não, gosto não. Cantigas muito velhas...” –elesdesqueriam.

Daí, deu um sutil trovão. Trovejou-se, outro. Astanajurasrevoavam. Bateu o primeiro toró de chuva. Cortamos

paus,folhagem de coqueiros, aumentamos o rancho. E vieramunscampeiros, rever o gado da Tapera Nhã, no renovame,levaramas novilhas em quadra de produzir. Esses eram homenstãosimples, pensaram que a gente estava garimpando ouro.Os diasde chover cheio foram se emendando. Tudo igual – àsvezes éuma sem-gracez. Mas não se deve de tentar o tempo. As

garçasé que praziam de gritar, o garcejo delas, e o socó-boirangecincerros, e o socó latindo sucinto. Aí pelo mato daspindaíbasavante, tudo era um sapal. Coquexavam. De tão bobastristezas,a gente se ria, no friinho de entrechuvas. Dada aprimeiraestiada, voltou aquele vaqueiro Bernabé, em seu

cavalinhocastanho; e vinha trazer requeijão, que se tinhaincumbido a ele,e que por dinheirinho bom se pagou. – “A vida tem demudarum dia para melhor” – a gente dizia. Requeijão é comcafé bemquente que é mais gostoso. Aquele vaqueiro Bernabévoltou,outras diversas vezes.

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Ah, e, vai, um feio dia, lá ele apontou, na boca da

estradaque saía do mato, o cavalinho castanho dava toda pressadevinda, nem cabeceava. Achamos que fosse mesmo ele.Aí, nãoera. Era um brabo nosso, um cafuz pardo, de sonome oGavião-Cujo, que de mais norte chegava. Ele tinha tomadomuitaschuvas, que tudo era lamas, dos copos do freio à boca da

bota, epelos vazios do cavalo. Esbarrou e desapeou, num prontoser,se via que estava ancho com muitas plenipotências. Oque era?O Gavião-Cujo abriu os queixos, mas palavra logo nãosaiu, elegaguejou ar e demorou – decerto porque a notícia eraurgenteou enorme. – “Ar’uê, então?!” – Titão Passos quis. – “Te

rogaram alguma praga?” O Gavião-Cujo levantou umbraço,pedindo prazo. À fé, quase gritou:

– “Mataram Joca Ramiro!...”

Aí estralasse tudo – no meio ouvi um uivo doido de

Diadorim : todos os homens se encostavam nas armas.Aí, ei,feras! Que no céu, só vi tudo quieto, só um moído denuvens.Se gritava – o araral. As vertentes verdes do pindaibal

avançassem feito gente pessoas. Titão Passos bramou asordens.Diadorim tinha caído quase no chão, meio amparado atempopor João Vaqueiro.

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Caiu, tão pálido como cera do reino, feito um morto

estava. Ele, todo apertado em seus couros e roupas, eucorri,para ajudar. A vez de ser um desespero. O Paspe pegouumacuia d’água, que com os dedos espriçou nas faces domeu amigo.Mas eu nem pude dar auxílio: mal ia pondo a mão para

desamarrar o colete-jaleco, e Diadorim voltou a seu si,

numalerta, e me repeliu, muito feroz. Não quis apoio deninguém,sozinho se sentou, se levantou. Recobrou as cores, e emmaisvermelho o rosto, numa fúria, de pancada. Assaz que osbelosolhos dele formavam lágrimas. Titão Passos mandava, o

Gavião-Cujo falava. Assim os companheiros num estupor.Aoque não havia mais chão, nem razão, o mundo nas juntassedesgovernava.

– “Repete, Gavião!”

– “Ai, chefe, ai, chefe: que mataram Joca Ramiro...”–“Quem? Adonde? Conta!”

Arre, eu surpreendi eriço de tremor nos meus braços.

Secou todo cuspe dentro do estreito de minha boca. Até

atravessado, na barriga, me doeu. Antes mais, o pobre

Diadorim. Alheio ele dava um bufo e soluço, orço queoutros

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olhos, se suspendia nas sussurrosas ameaças. Tudo

tinha vindopor cima de nós, feito um relâmpago emfato.

– “... Matou foi o Hermógenes...”

– “Arraso, cão! Caracães! O cabrobó de cão!Demônio! Traição! Que me paga!...” – constante não havendo

quem nãoexclamasse. O ódio da gente, ali, em verdade, armavaum pojarpara estouros. Joca Ramiro podia morrer? Como podiamtermatado? Aquilo era como fosse um touro preto, sozinhosurdonos ermos da Guararavacã, urrando no meio datempestade.Assim Joca Ramiro tinha morrido. E a gente raivava alto,para

retardar o surgir do medo – e a tristeza em cru – sem sesaberpor que, mas que era de todos, unidosmalaventurados.

– “... O Hermógenes... Os homens do Ricardão... O

Antenor... Muitos...

– “Mas, adonde onde!?”

– “A desgraça foi num lugar, na Jerara, terras doXanxerê,beira da Jerara – lá onde o córrego da Jerara desce do

morro doVôo e cai barra no Riachão... Riachão da Lapa... Diz-seque foisido de repente, não se esperava. Aquilo foi à traiçãotoda.

Morreram os muitos, que estavam persistindo lealmente.Aí,

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mortos: João Frio, o Bicalho, Leôncio Fino, Luís Pajeú, o

Cambó, Leite-de-Sapo, Zé Inocêncio... uns quinze. Até sedeuum tiroteio terrível; mas o pessoal do Hermógenes e do

Ricardão era demais numeroso... Dos bons, quem pôde,fugiramcorretamente. Silvino Silva conseguiu fuga, com vinte etantoscompanheiros...”

Mas Titão Passos, de arrompe, atalhou a narração,eleagarrou o Gavião-Cujo pelos braços:

– “Hem, diá! Mas quem é que está pronto emarmas, para

rachar Ricardão e Hermógenes, e ajudar a gente navingança

agora, nas desafrontas? Se tem, e ond’é então queestão?!”– “Ah, sim, chefe. Os todos os outros: João Goanhá,SóCandelário, Clorindo Campelo.,. João Goanhá pára com

porçanheira de homens, na Serra dos Quatis. Aí foi elequem memandou trazer este aviso... Só Candelário ainda está

para oNorte, mas o grosso dos bandos dele se acha nos pertosdaLagoa-do-Boi, em juramento... Já foi portador para lá.Sendoque se despachou um positivo também para dar parte aMedeiroVaz, nos Gerais, no de lado de lá do Rio... Sei que osertão pegaem armas, mas Deus égrande!”

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– “Louvado. Ah, então: graças a Deus! Ao que,

então, estábem...” – Titão Passos se cerrou.

E estava. Era a outra guerra. A gente ficávamosaliviados.Aquilo dava um sutil enorme.

– “Teremos de ir... Teremos de ir...” – falou TitãoPassos,

e todos responderam reluzentemente. Tínhamos detocar, sematraso, para a Serra dos Quatis, a um lugar dito oAmoipira, queé perto de Grão Mogol. Artes que o Gavião-Cujo aindacontavamais, as miúcias – parecia que tinha medo de esbarrar decontar.Que o Hermógenes e o Ricardão de muito haviamajustado

entre si aquele crime, se sabia. O Hermógenes distanciou JocaRamiro de Só Candelário, com falsos propósitos,conduziu JocaRamiro no meio de quase só gente dele, Hermógenes,mais opessoal do Ricardão. Aí, atiraram em Joca Ramiro, pelascostas,carga de balas de três revólveres... Joca Ramiro morreusemsofrer. – “E enterraram o corpo?” – Diadorim perguntou,numavoz de mais dor, como saía ansiada. Que não sabia-oGavião-Cujo respondeu; mas que decerto teriam enterrado,conformecristão, lá mesmo, na Jerara, por certo. Diadorim tantoempa-lidecesse; ele pediu cachaça. Tomou. Todos tomamos.

 TitãoPassos não queria ter as lágrimas nos olhos. – “Um

homem de

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tão alta bondade tinha mesmo de correr perigo de morte,

maiscedo mais tarde, vivendo no meio de gente tão ruim...” –ele medisse, dizendo num modo que parecia ele não fossetambém jagunço, como era de se ser. Mas, agora, tudo principiava

terminado, só restava a guerra. Mão do homem e suasarmas. Agente ia com elas buscar doçura de vingança, como o

rominholno panelão de calda. Joca Ramiro morreu como o decretodeuma lei nova.

A daí, carecia fosse alguém do lado de lá do morro,pela

gente do Alaripe. – “Pois vamos, Riobaldo!” – Diadorim sepôs.Vi que ele fervia ali assim no pego do parado. Selamos os

cavalos. Serra acima, fomos. Ao no galope, cada umengolia suaspalavras. A mesmo estava o céu encoberto, e ummormaço.Mas, na descambada, Diadorim me reteve, me entregouá pontado cabresto para segurar. – “De tudo nesta vida a genteesquece,Riobaldo. Você acha então que vão logo olvidar a honra

dele?”– me perguntou. Devo que retardei muito em responder,comcara de não compreensão. Porque Diadorim completou: –“...dele, a glória do finado. Do que se finou...” E dizia aquilocomuma misturação de carinho e raiva, tanto desespero quenuncavi. Desamontou, foi andando sem governar os passos,tapadopelas moitas e árvores. Eu restei ficando tomando contado ca-

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valo. Pensei que ele tivesse ido a lá, por necessitar. Mas

demorou tanto a volta, que eu resolvi tocar atrás, para oquehavia ver, esporei e vim puxando o cavalo dele adestro.E aí oque vi foi Diadorim no chão, deitado debruços. Soluçavaemordia o capim do campo. A doideira. Me amargou, nocabo dalíngua. – “Diadorim!” – chamei. Ele, sem se aprumar,

virou orosto, apertou os olhos no choro. Falei, falei, meusconsolos, eele atendia, em querelenga, me pedindo que sozinhofosse,deixasse ele ali, até minha volta. – “Joca Ramiro era seuparente,Diadorim?” – eu indaguei, com muita cordura. – “Ah, era,

sim...” – ele me respondeu, com uma voz de poucocorpo. –“Seu tio, será?” – Que era... – ele deu, em gesto.Entreguei a eleo cabresto do cavalo, e continuei ida. Em certa distância,paraprevenir os alaripes, e evitar atraso, esbarrei e dispareitiros, parao ar, umas vezes. Cheguei lá, estavam todos reunidos,por meufeliz. E estava chovendo, de acordo com o mormaço. –“Trago

notícia de grande morte!” – sem desapear eu declarei.Eles todostiraram os chapéus, para me escutar. Então, eu gritei: –“Viva afama do nosso Chefe Joca Ramiro... “ E, pela tristeza que

estabeleceu minha voz, muito me entenderam. Ao quequasetodos choraram. – “Mas, agora, temos de vingar a mortedofalecido!” – eu ainda pronunciei. Se aprontaram numátimo,

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para comigo vir. – “Mano velho Tatarana, você sabe.

Você temsustância para ser um chefe, tem a bizarria...” – nocaminho oAlarípe me disse. Desmenti. De ser chefe, mesmo, era oque eutinha menos vontade.

Mas assim se deu que, no seguinte dia, no romperdas

barras, saímos tocando, Diadorim do meu lado, mudadotriste,muito branco, os olhos pisados, a boca vencida.Deixamos paratrás aquele lugar, que disse ao senhor, para mim tãocélebre – aGuararavacã do Guaicuí, do nuncamais.

Redeando, rumamos, em tralha e torto, por aqueleafora –

a gente ia investir o sertão, os mares de calor. Oscórregosestavam sujos. Aí, depois, cada rio roncava cheio, asvárzeasembrejavam, e tantas cordas de chuva esfriavam acacundadaquelas serras. A terrível notícia tinha se espalhadoassaz, emtodas as partes o povo fazia questão de obsequiar àgente, e fala-vam muito bem do falecido. Mas nós passávamos, feitoflecha,feito faca, feito fogo. Varamos todos esses distritos degado.Assomando de dia por dentro de vilórios e arraiais, eocupandoa cheio todas as estradas, sem nenhum escondimento: agentequeria que todo o mundo visse a vingança! Alto doAmoipira,quando terminamos lá, os cavalos já afracavam. João

Goanhá,

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em toda economizada estatura, foi ver a gente vindo e

abriu seusbons braços. Ele estava com próprios trezentosguerreiros. Esempre outros chegavam. – “Meu irmão Titão Passos...Meuirmão Titão Passos...” – ele falou, crescente. – “E vocêstodos,valentes cabras... Agora é que vai ser a grande briga!”Disse quecom três dias se saía em armas. João Goanhá ia na vaca

e noboi: não estava com por’oras. E Só Candelário, onde eraqueestava? Só Candelário, piorado doente, devia de estarum tempodesses nos Lençóis, para onde portador seguira, compressa dechamado. Mesmo assim, João Goanhá desnecessitava deesperarpor ele, para aos dois judas traidores dar batalha. No que

achamos bom conselho. E outros vinham chegando,oferecendopeito de ajuda, com prestança em ponta. Veio até quemnão seimaginou: como aquele Nhão Virassaia, com seus trinta ecincocacundeiros – o que carregava nome de fama por todo oRioVerdeGrande. E o velho Ludujo Filgueiras,montesclarense, com

vinte e dois atiradores. E o grande fazendeiro coronelDigno deAbreu, que mandou, seus, trinta e tantos capangas,também, porLuís de Abreuzinho comandados, que era dele filho-natural. E ogado em pé que se provia, para se abater e se comer,chegava aser uma boiada. Com sacas de farinha, surrão de sal, eaçúcarpreto e café – até em carro-de-bois os mantimentos defubá e

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arroz e feijão entregados. Só em quantidades de

munição era quea gente não produzia luxo, e Titão Passos se entristeceude nãopoder ter trazido a nossa, na Guararavacã tão em vãoesperada.Mas a lei de homem não é seus instrumentos. Saímos emguerra.Ãhã, do norte, da Lagoa-do-Boi, com troca de avisos,sobrevinhatambém o bastante da rapaziada dos baianos, debaixo

docomando de Alípio Mota, cunhado de Só Candelário. Asimplesíamos cercar bonito os Judas, não tinham escape. Aindasque seescapassem para o poente, atravessassem o rio, ah,encontravamferro e fogo: lá estava Medeiro Vaz – o rei dosGerais!

Saímos, sobre, fomos. Mas descemos no canudo das

desgraças, ei, saiba o senhor. Desarma do tempo, horade paga eperdas, e o mais, que a gente tinha de purgar, segundose diz.

 Tudo o melhor fizemos, e tudo no fim desandava. Deusnãodevia de ajudar a quem vai por santas vinganças?!Devia. Nós nãoestávamos forte em frente, com a coragem esporeada?

Es-távamos. Mas, então? Ah, então: mas tem o Outro – ofigura, omorcegão, o tunes, o cramulhão, o debo, o carocho, dopé-de-pato, o mal-encarado, aquele – o-que-não-existe! Que nãoexiste,que não, que não, é o que minha alma soletra. E daexistênciadesse me defendo, em pedras pontudas ajoelhado,beijando abarra do manto de minha Nossa Senhora da Abadia! Ah,só Ela

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me vale; mas vale por um mar sem fim... Sertão. Se a

Santa puserem mim os olhos, como é que ele pode me ver?! Digoisto aosenhor, e digo: paz. Mas, naquele tempo, eu não sabia.Como éque podia saber? E foram esses monstros, o sobredito.Ele vemno maior e no menor, se diz o grão-tinhoso e o cão-miúdo. Nãoé, mas finge de ser. E esse trabalha sem escrúpulo

nenhum, porcausa que só tem um curto prazo. Quando protege, vem,protegecom sua pessoa. Montado, mole, nas costas doHermógenes,indicando todo rumo. Do tamanho dum bago de aí-vim,dentrodo ouvido do Hermógenes, por tudo ouvir. Redondinhono lumedos olhos do Hermógenes, para espiar o primeiro dascoisas. OHermógenes, que – por valente e valentão – para demaisaté aofim deste mundo e do juízofinal se danara, oco de alma.Contraele a gente ia. Contra o demo se podia? Quem a quem?Milagrestristes desses também se dão. Como eles conseguiramfugir dasunhas da gente, se escaparam – o Ricardão e oHermógenes – os

 Judas. Pois eles escapuliram: passaram perto, légua,quarto-de-légua, com toda sua jagunçama, e não vimos, nãoouvimos, nãosoubemos, tivemos jeito nenhum para cercar e impedir.

Avançaram, calados, escorregando pelos matos,ganhando o maispoente, para o São Francisco. Atravessaram por nós, sema genteperceber, como a noite atravessa o dia, da manhã àtarde, seu

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– 426 –

pretume dela escondido no brancor do dia, se presume.

Quandopudemos saber, a distância deles já era impossível. Nós

estávamos pegando o ar. Duro de desanimável, hem? Epoisdemore o senhor para o pior: o que veio em sobre!: ossoldadosdo Governo. Os soldados, soldadesca, tantas tropas.Surgiram detodos os lados, de supetão, e agatanhavam, naquela

sanha, é vercachorrada caçante. Soldados do Tenente Plínio –companhia deguerra. Tenente Reis Leme, outra. E veio depois, commuitosmais outros, um capitão Carvalhais, maior da marca,esse bebiacafé em cuité e cuspia pimenta com pólvora. Sofremos,rolamospor aí aqui, se rolou. vida é vez de injustiças assim,quando odemo leva o estandarte. Pois – aquela soldadama vierapara oNorte era por vingar Zé Bebelo, e Zé Bebelo já andavaporlonges desterrado, e nisso eles se viravam contra agente, queéramos de Joca Ramiro, que tinha livrado a vida de ZéBebelodas facas do Hermógenes e Ricardão; e agora, por suaação, o

que eles estavam era ajudando indireto àquelessebaceiros. Mas,quem era que podia explicar isso tudo a eles, quevinham emmáquina enorme de cumprir o grosso e o esmo, tendo asgarraspara o pescoço nosso mas o pensante da cabeça longe,sógeringonciável na capital doEstado?

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De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está

cansadode ouvir narração, e isso de guerra é mesmice,mesmagem.Combatemos o quanto mais pudemos – está aí.Consoantecomeçou, no Curral de Vacas, perto do Morro doCocuruto,onde nos pegaram num relaxo. Fugimos, depois degrande fogo.Fogo demos daí no Cutica, na Chapada Simão Guedes:

masrodaram com a gente, de retruz. Serra da Saudade: agente sedesarranjou, fugimos, bem. Ah, e: Córrego Estrelinhas,Córregoda Malhada Grande, Ribeirão Traçadal – tudo foram asfeiezas.Recito frente ao senhor: e é rol de nomes? Para mimficaram emassento de sustos e sofrimento. Nunca me queixei.Sofrimentopassado é glória, é sal em cinza. De tanta maneiraDiadorimassistia comigo, como um gravatá se fechou. Semeeiminha pre-sença dele, o que da vida é bom eu dele entendia.

 Tomando otempo da gente, os soldados remexiam este mundotodo. Milhocrescia em roças, sabiá deu cria, gameleira pingoufrutinhas, o

pequi amadurecia no pequizeiro e a cair no chão, veioveranico,pitanga e caju nos campos. Ato que voltaram astempestades,mas entre aquelas noites de estrelaria se encostando.Daí,depois, o vento principiou a entortar rumo, mais forte –porqueo tempo todo das águas estava no se acabar. TenenteReis Lemenos escaramuçando: queria correr com a gente a pano desabre.

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Matou-se montanha de bons soldados. Estávamos em

terras queentestam com a Bahia. Em Bahia entramos e saímos,cincovezes, sem render as armas. Isto que digo, sei de cor:brigar noespinho da caatinga pobre, onde o cãcã canta. Chão quequeima,branco! E aqueles cristais, pedra-cristal quase desangue...Chegamos até no cabo do mundo.

Quadrante o que havia, me esconjuro. Parecia que agenteia ter de passar o resto da vida guerreando com os

praças? Masnosso constar era outro, com sangue de urgência –aquela luta demorte contra os Judas – e que era briga nossa particular.Não setendo recurso competente. Ah, Diadorim mascava. Para

ódio eamor que dói, amanhã não é consolo. Eu mesmeava.Mas, dandoum dia, a gente teve certas notícias: os do Hermógenesestandosenhores arranchados, conforme retouçavam, da bandade lá doRio do Chico: nas vertentes da beira da mão direita do

Carinhanha, no Chapadão de Antônio Pereira.

Questionou-senisso. Se pensou e falou em tudo por fazer e não fazer.Resultadofoi este: que o principal era a gente mandar reforço, paraMedeiroVaz, uns cinqüenta ou cem homens, repartidos emmiúdosgrupos, caçando jeito de safança por entre os lugaresperigáveis.Enquanto tanto, João Goanhá, Alípio Mota e Titão Passos,cadaqual de lado seu, deviam de ir desmanchar os rastos nacaatinga,

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e depois se esconderem, por uns tempos, em fazendas

de donosamigos, até que a soldadesca se espairecesse. E era bome era justo. Era certo. Deus em armas nosguardava.

De mim, vim, com Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João

Vaqueiro, e o Fafafa. Era para o outro lado, era para osmeusGerais, eu vinha alegre contente. E saímos, com oseguinte risco:o Imbiruçu, a Serra do Pau-d’Arco, o Mingu, a Lagoa dos

Marruás, o Dôminus-Vobíscum, o Cruzeiro-das-Embaúbas, oDetrás-das-Duas-Serras. O Brejo dos Mártires, aCachoeirinhaRoxa, o Mocó, a Fazenda Riacho-Abaixo, a Santa Polônia,aLagoa da Jabuticaba. E daí, por uns atalhos: o Córrego

Assombrado, o Sassapo, o Poço d’Anjo, o Barreiro doMuquém.Nesse meu, caminho fazendo, tirei minha desforra:faceirei.Severgonhei. Estive com o melhor de mulheres. NaMalhada,comprei roupas. O vau do mundo é a alegria! MasDiadorim nãose fornecia com mulher nenhuma, sempre sério, só se

emsonhos. Dele eu ainda mais gostava. E então se deu que

tínhamos esbarrado em frente da Lagoa Clara. Já era odo Chico– o poder dele – largas águas, seu destino. A ver, oporto-de-balsa, que distava pouco. Travessia, ali, podia serperigosa, comtantos soldados vizinhantes. A gente se apartar? Ah, maso quebastava o balseiro se chamar: – “Hô, passador! Hô,passador!...”

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– ele viesse. Assim, para uma invenção, que se teve. O

balseiro sóavistando João Vaqueiro e o Fafafa – estes ele entãopodiapassar, com cinco dos cavalos, falavam que era para uns

caçadores. Da outra banda, João Vaqueiro e o Fafafafossemlevando os cavalos para um lugar para cima da barra, noUrucuia,chamado o Olho-d’Agua-das-Outras. Lá a gente se

encontrava.Somente ficados com um cavalinho só, Alaripe e eu,

Diadorim e Jesualdo, andamos beira-rio, novagarosamente. Agente esperava o que acontecesse. Ali mais adiante, eraum porto-de-lenha. – “Você tem receio, Riobaldo?” – Diadorim me

perguntou. Eu?! Com ele em qualquer parte eu

embarcava, até naprancha de Pirapora! – “Vau do mundo é a coragem...” –eudisse. E, com os rifles escorados, acenamos para umagrandebarca – aquela, a cara-de-pau que tinha no bico da frenteera umacabeça de touro, boa-sorte nos dava. O barqueiro tocouumberro no buzo, encostaram. A gente os quatro, com o

cavalo, eranada – as arrobazinhas. E nós entramos, depois que opatrão nossaudou, em nome de Nosso Senhor CristoJesus, e disse: –“Eu cásou amigo de todos, segundo a minha condição...” E oAlaripeaceitou dele um gole de cachaça, aceitamos. Jesualdodisse, re-postando: – “Amigo de todos? Rio-abaixo, na canoa,quemgoverna é o remador!” Bem que rio-acima é que era,mas com

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remeiros muito bons esforçados. Aí constante, o velejo,

ventoem pano – nem remeiro com o varejão não carecia defazertalento. Pediram notícias do sertão. Essa gente estavatãodevolvida de tudo, que eu não pude adivinhar ahonestidadedeles. O sertão nunca dá notícia. Eles serviram à gentefarta

 jacuba. – “Por onde os senhores vieram?” – o patrão

indagou. –“Viemos da Serra Rompe-Dia...” – respondemos. Mentirasd’água. Tanto fazia dizer que tínhamos vindo da de SãoFelipe. Obarqueiro não acreditou, deu o zé de ombros. Mas levoua gentetravessia fácil, frenteando a boca do Urucuia. Ah, o meuUrucuia,as águas dele são claras certas. E ainda por eleentramos, subindolégua e meia, por isso pagamos uma gratificação. Riosbonitossão os que correm para o Norte, e os que vêm dopoente – emcaminho para se encontrar com o sol. E descemos numpojo,num ponto sem praia, onde essas altas árvores – acaraíba-de-flor– roxa, tão urucuiana. E o folha-larga, o aderno-preto, opau-de-

sangue; o pau-paraíba, sombroso. O Urucuia, suas abas.E vimeus Gerais!

Aquilo nem era só mata, era até florestas! Montamos

direito, no Olhod’Agua-das-Outras, andamos, e demoscom aprimeira vereda – dividindo as chapadas –: oflaflode vento

agarrado nos buritis, franzido no gradeai de suas folhasaltas; e,

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sassafrazal – como o da alfazema, um cheiro que

refresca; eaguadas que molham sempre. Vento que vem de todaparte.Dando no meu corpo, aquele ar me falou em gritos deliberdade.Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre

caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem umaverdade que se carece de aprender, do encoberto, e que

ninguémnão ensina: o beco para a liberdade se fazer. Sou umhomemignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousaterrível?Lengalenga. Fomos, fomos.

Assim pois foi, como conforme, que avançamosrompidasmarchas, duramente no varo das chapadas, calcando o

sapêbrabão ou areias de cor em cimento formadas, ecruzandosomente com gado transeunte ou com algum boi sozinho

caminhador. E como cada vereda, quando beirávamos,por seuresfriado, acenava para a gente um fino sossego semnotícia –todo buritizal e florestal: ramagem e amar em água. E

que, comnosso cansaço, em seguir, sem eu nem saber, o roteirode Deusnas serras dos Gerais, viemos subindo até chegar derepente naFazenda Santa Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira devereda.Que’s borboletas! E era em maio, pousamos lá dois dias,flor detudo, como sutil suave, no conhecimento meu comOtacília. Osenhor me ouviu. Em como Otacília e eu ficamosgostando um

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do outro, conversamos, combinados no noivável, e na

sobremanhã eu me despedi, ela com sua cabecinha degata, alvano topo da alpendrada, me dando a luz de seus olhos; ede lá mefui, com Diadorim e os outros. E de como viemos, emcata dogrosso do bando de Medeiro Vaz, que dali a quinzeléguasrecruzava, da Ratragagem para a Vereda-Funda, e com

eles nosajuntamos, economizando rumo, num lugar chamado oBom-Buriti. Me alembro, meu é. Ver belo: o céu poente de sol,detardinha, a roséia daquela cor. E lá é cimo alto:pintassilgo gostadaquelas friagens. Cantam que sim. Na Santa Catarina.Revejo.Flores pelo vento desfeitas. Quando rezo, penso nissotudo. Emnome da Santíssima Trindade.

O que o seguinte foi este: o encontro da gente com

Medeiro Vaz, no Bom-Buriti, num ressaco, conforme jádisse, eleno meio de seus fortes homens, exatos, naquela bocainadecampo. Medeiro Vaz, retrata], barbaça, com grande

chapéurebuçado, aquela pessoa sisuda, circunspecto com todasasvelhices, sem nem velho ser. Cujo eu me disse: – “É bomho-mem...” E ele beijou a testa de Diadorim, e Diadorimbeijouaquela mão. A um assim, a gente podia pedir a benção,se prezar.Medeiro Vaz tomava rapé. Medeiro Vaz, mandandopassar asordens. E tinha quartel-mestre. Subindo em esperança,de lá

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saímos, para chão e sertão. Sertão bravo: as araras. O só

queMedeiro Vaz comandou foi isto: – “Aleluia!” Diadorimtinhacomprado um grande lenço preto: que era para ter luto

manejável, funo guardado em sobre seu coração.Chapadão deduro. Daí, passamos um rio vadoso – rio de beirabaixinha, sóburiti ali, os buritis calados. E a flor de caraíba urucuiã –

roxoastrazado, um roxo que sobe no céu. Naquele trecho,tambémme lembro, Diadorim se virou para mim – com um arquase demeninozinho, em suas miúdas feições. – “Riobaldo, euestoufeliz!...” – ele me disse. Dei um sim completo. E foi assimque agente principiou a tristonha história de tantascaminhadas e vagoscombates, e sofrimentos, que já relatei ao senhor, se nãomeengano até ao ponto em que Zé Bebelo voltou, comcincohomens, descendo o Rio Paracatu numa balsa de talos deburiti, eherdou brioso comando; e o que debaixo de Zé Bebelofomosfazendo, bimbando vitórias, acho que eu disse até umfogo que

demos, bem dado e bem ganho, na Fazenda São Serafim.Mas,isso, o senhor então já sabe.

Só sim? Ah, meu senhor, mas o que eu acho é que o

senhor já sabe mesmo tudo – que tudo lhe fiei. Aqui eupodiapôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto quefalta, oque lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no quecontei,

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remexer vivo o que vim dizendo. Porque não narrei nada

à-toa:só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiçopala-vras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhorache.O senhor ponha enredo. Vai assim, vem outro café, sepita umbom cigarro. Do jeito é que retorço meus dias:repensando.Assentado nesta boa cadeira grandalhona de

espreguiçar, que édas de Carinhanha. Tenho saquinho de relíquias. Sou umhomem ignorante. Gosto de ser. Não é só no escuro quea gentepercebe a luzinha dividida? Eu quero ver essas águas, alume delua...

Urubu? Um lugar, um baiano lugar, com as ruas e as

igrejas, antiqüíssimo – para morarem famílias de gente.Servemeus pensamentos. Serve, para o que digo: eu queria ter

remorso; por isso, não tenho. Mas o demônio não existereal.Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, atéquechegue a hora de se dançar. Travessia, Deus no meio.

Quandofoi que eu tive minha culpa? Aqui é Minas; lá já é aBahia?Estive nessas vilas, velhas, altas cidades... Sertão é osozinho.Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito dosertão?Sertão: é dentro da gente. O senhor me acusa? Defini oalvarádo Hermógenes, referi minha má cedência. Mas minhapa-droeira é a Virgem, por orvalho. Minha vida teve meio-do-

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caminho? Os morcegos não escolheram de ser tão feios

tão frios– bastou só que tivessem escolhido de esvoaçar nasombra danoite e chupar sangue. Deus nunca desmente. O diabo ésemparar. Saí, vim, destes meus Gerais; voltei com Diadorim.Nãovoltei? Travessias... Diadorim, os rios verdes. A lua, oluar: vejoesses vaqueiros que viajam a boiada, mediante o

madrugar, comlua no céu, dia depois de dia. Pergunto coisas ao buriti; eo queele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo azul, enão seaparta de sua água – carece de espelho. Mestre não équemsempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que équetodos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, deuma vez?Eu queria formar uma cidade da religião. Lá, nos confinsdoChapadão, nas pontas do Urucuia. O meu Urucuia vem,claro,entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. OSãoFrancisco partiu minha vida em duas partes. A Bigri,minhamãe, fez uma promessa; meu padrinho Selorico Mendestivesse

de ir comprar arroz, nalgum lugar, por morte de minhamãe?Medeiro Vaz reinou, depois de queimar sua casa-de-fazenda.Medeiro Vaz morreu em pedra, como o touro sozinhoberrafeio; conforme já comparei, uma vez: touro preto todourrandono meio da tempestade. Zé Bebelo me alumiou. ZéBebelo ia evoltava, como um vivo demais de fogo e vento, zás deraio

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veloz como o pensamento da idéia – mas a água e o

chão nãoqueriam saber dele. Compadre meu Quelemémoutrotanto éhomem sem parentes, provindo de distante terra – daSerra doUrubu do Indaiá. Assim era Joca Ramiro, tão diverso ereinante,que, mesmo em quando ainda parava vivo, era como se

 jáestivesse constando de falecido. Só Candelário? Só

Candeláriose desesperou por forma. Meu coração é que entende,ajudaminha idéia a requerer e traçar. Ao que Joca Ramiropousou quese desfez, enterrado lá no meio dos carnaubais, em chão

arenoso salgado. Só Candelário não era, de certo modo,parentedo compadre meu Quelemém, o senhor sabe? Diadorimme veio,de meu não-saber e querer. Diadorim – eu adivinhava.Sonheimal? E em Otacília eu sempre muito pensei; tanto que euvia asbaronesas amarasmeando no rio em vidro – jericó, e oslíriostodos, os lírios-do-brejo – copos-de-leite, lágrimas-demoça, são- josés. Mas, Otacília, era como se para mim ela estivesseno ca-

marim do Santíssimo. A Nhorinhá – nas Aroeirinhas – filhadeAna Duzuza. Ah, não era rejeitã... Ela quis me salvar? Dedentrodas águas mais clareadas, aí tem um sapo roncador.Nonada! Amais, com aquela grandeza, a singeleza: Nhorinhá puta