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INTERNACIONAL 28 Cidade Nova • Agosto 2015 • nº 8 MARTINA CAVALCANTI [email protected] Gol contra a corru aio de 2015 foi um mês incomum para a Suíça e promete ser um divisor de águas na gestão do futebol. Sete dirigentes da Fifa foram presos no país-sede da entidade internacio- nal de futebol e outros sete foram acusados de corrupção pelo Departa- mento de Justiça dos Estados Unidos. Eles são suspeitos de suborno, fraude e lavagem de dinheiro, envolvendo um montante de US$ 150 milhões num período de 24 anos. Entre eles está José Maria Marin, ex-presidente e atual vice-presidente da Confedera- ção Brasileira de Futebol (CBF). Um processo de extradição da Suíça para os EUA está em curso. Caso sejam extraditados, enfrenta- rão processo judicial e podem pas- sar até 20 anos atrás das grades. O escândalo que sacudiu o fu- tebol mundial motivou também o anúncio de renúncia do presidente da Fifa, Joseph Blatter, desde 1998 no cargo. As prisões e a investiga- ção também lançam dúvida sobre a transparência e idoneidade dos úl- timos processos de escolha da sede da Copa do Mundo. Um processo aberto pela Suíça investiga se houve compra de votos na eleição da Rús- sia e do Catar para receber os Mun- diais de 2018 e 2022. Para alguns especialistas, o es- cândalo pode ser benéfico ao tornar mais transparente e democrática a gestão da Fifa e de outras entidades esportivas. Outros, porém, acredi- tam que o caso trará poucos resul- tados no curto prazo. Geopolítica O FBI (polícia federal norte-ame- ricana) vem investigando a Fifa há três anos. As investigações come- çaram para verificar o processo de FUTEBOL O escândalo da Fifa atingiu diversos dirigentes da entidade, mas resta uma questão: o caso conseguirá fomentar a democratização e a transparência na gestão internacional do esporte mais popular do mundo? M

Gol contra a corrupção

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Futebol - O escândalo da Fifa atingiu diversos dirigentes da entidade, mas resta uma questão: o caso conseguirá fomentar a democratização e a transparência na gestão internacional do esporte mais popular do mundo?

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28 Cidade Nova • Agosto 2015 • nº 8

MARTINA [email protected]

Gol contra a corrupção

aio de 2015 foi um mês incomum para a Suíça e promete ser um divisor de águas na gestão do futebol.

Sete dirigentes da Fifa foram presos no país­sede da entidade internacio­nal de futebol e outros sete foram acusados de corrupção pelo Departa­mento de Justiça dos Estados Unidos. Eles são suspeitos de suborno, fraude e lavagem de dinheiro, envolvendo um montante de US$ 150 milhões num período de 24 anos. Entre eles está José Maria Marin, ex­presidente e atual vice­presidente da Confedera­ção Brasileira de Futebol (CBF).

Um processo de extradição da Suíça para os EUA está em curso. Caso sejam extraditados, enfrenta­rão processo judicial e podem pas­sar até 20 anos atrás das grades.

O escândalo que sacudiu o fu­tebol mundial motivou também o anúncio de renúncia do presidente da Fifa, Joseph Blatter, desde 1998 no cargo. As prisões e a investiga­ção também lançam dúvida sobre a transparência e idoneidade dos úl­timos processos de escolha da sede da Copa do Mundo. Um processo aberto pela Suíça investiga se houve compra de votos na eleição da Rús­

sia e do Catar para receber os Mun­diais de 2018 e 2022.

Para alguns especialistas, o es­cândalo pode ser benéfico ao tornar mais transparente e democrática a gestão da Fifa e de outras entidades esportivas. Outros, porém, acredi­tam que o caso trará poucos resul­tados no curto prazo.

GeopolíticaO FBI (polícia federal norte­ame­

ricana) vem investigando a Fifa há três anos. As investigações come­çaram para verificar o processo de

fUTeBol O escândalo da Fifa atingiu diversos dirigentes da entidade, mas resta uma questão: o caso conseguirá fomentar a democratização e a transparência na gestão internacional do esporte mais popular do mundo?

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esco lha de Rússia e Catar, mas fo­ram expandidas para analisar os acordos da entidade desde 1991. A intervenção norte­americana pro­vocou um clima de tensão e depen­dendo do desfecho pode até resultar em uma crise internacional.

O presidente russo Vladimir Pu­tin, que viu a Copa que organiza entrar em perigo após as investiga­ções, afirmou que os Estados Unidos abusaram de seu poder no caso. Ao ser escolhida como sede do evento, a Rússia desbancou a candidatura americana. Para alguns, o despeito teria motivado a investigação por parte dos EUA.

“Associa­se a investida do depar­tamento dos EUA a uma retaliação ou uma disputa geopolítica entre americanos e russos. Nada pode ser descartado, mas creio que há outras

ferramentas de política externa mais contundentes que a simples prisão de dirigentes da Fifa”, afir­ma Renato Xavier, professor de Re­lações Internacionais do Programa de pós­graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC­SP). “Além disso, empresas norte­americanas são grandes patrocinadoras da Copa da Rússia. O interesse econô­mico envolve o próprio interesse de Estado, eles se misturam”, com­pleta o professor.

As autoridades americanas ale­gam que as transações ilícitas foram acertadas utilizando bancos dos EUA e planejadas no país, mesmo quando a corrupção era efetuada em outros locais, por isso a inves­tigação partiu da Justiça ameri­cana. Os líderes do país também defendem ter jurisdição pelo fato de as empresas de mídia norte­­americanas pagarem o maior va­lor de direitos de transmissão da Copa do Mundo.

Para Pedro Fernando Avalone, professor da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Política Social, o esporte tem relação muito próxima com a política, sendo a Guerra Fria o período histórico no qual essa li­gação ficou mais clara. “Enquanto os EUA e a Inglaterra, derrotados nas votações para as próximas Copas, estão apurando as investigações, os países que receberam o direito de sediar os próximos Mundiais estão se solidarizando com a Fifa, o que gera impactos geopolíticos”, analisa.

Países em desenvolvimento

Quase toda a renda da Fifa vem da Copa do Mundo, o evento es­portivo mais lucrativo do mundo. A simples concorrência para sediar a Copa já tem um custo exorbitan­te: a federação inglesa gastou 21

milhões de libras (R$ 103 milhões) para concorrer à Copa de 2018.

A Copa do ano passado custou ao Brasil cerca de US$ 4 bilhões. A Fifa lucrou mais de US$ 2 bilhões. O custo das duas próximas Copas deve ser ainda maior – no Catar, a previsão é que os gastos superem US$ 6 bilhões.

A escolha de países em desenvol­vimento para sediar o evento, desde a Copa na África do Sul, em 2010, é analisada criticamente pelos espe­cialistas. “Quando o presidente da Fifa anunciou, na década passada, o início da rotatividade para sediar a Copa, o que se verificou foi uma tentativa de acomodar os desejos do capital em países emergentes, cujas instituições democráticas ainda es­tão em fase de formação. Transfere­­se para o país sede a politização do evento esportivo já com regras de­terminadas a priori. Não é a socie­dade quem decide e sim a cartilha da FIFA”, critica Renato Xavier.

Pedro Avalone destaca a existên­cia de governos autoritários em al­guns dos países em desenvolvimen­to escolhidos para sediar o evento. “Na Copa, sempre há manifestações contrárias até pela grande repercus­são que o evento tem na mídia. A questão é a relação que o governo estabelece com essas manifestações. No Brasil, a repressão foi dura. Na Rússia e no Catar, não surpreende­ria que se a repressão fosse ainda maior”, afirma.

“Jérôme [Valcke, secretário­geral da Fifa] chegou a declarar que era mais tranquilo para a Fifa realizar o evento em países menos democrá­ticos. Não é um critério único para a escolha desses países, mas, sem dúvida, é um dos critérios”, apon­ta Avalone. Segundo ele, também existe uma explicação econômica para a escolha dos emergentes: “A Copa é um evento lucrativo. Mas a questão é: para quem? Nesses c

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países, aumentam as possibilidades de lucro para as empreiteiras e toda a área de construção civil, já que há pouca infraestrutura pré­existente, diferentemente da Europa. Para o estádio Mané Garrincha, em Brasí­lia, por exemplo, foram gastos quase R$ 1,5 bilhão. Justifica­se a cons­trução nesse valor para um espaço subutilizado?”, indaga.

Segundo o especialista, os casos se repetem na China (em Pequim), que sediou as Olimpíadas em 2008, e na África do Sul (Copa do Mundo de futebol, em 2010). “Hoje, esses países querem demolir a estrutura construída porque mantê­la é mui­to caro, ainda mais quando não há uma utilização constante daqueles espaços que justifique os gastos.”

Para Renato Xavier, “os escânda­los de corrupção devem ser investi­gados e a única forma de evitá­los é aumentar o escopo democrático da Fifa. Maior transparência na es­colha das sedes é o primeiro passo”.

Já Pedro Avalone considera ne­cessário adequar não apenas a le­gislação da Fifa, como também os acordos entre a entidade e seus prin­cipais parceiros comerciais. “Seria possível aumentar a arrecadação tributária não apenas sobre os con­sumidores, mas sobre empresas que vêm aqui e lucram muito, mas a Fifa exige isenção fiscal. As companhias parceiras da Fifa não são taxadas em relação ao que vendem nem em relação ao que compram nos países­­sede, que deixam de arrecadar re­cursos que poderiam ser investidos em educação, saúde, habitação e outras áreas de interesse social”, diz.

Segundo dados oficiais da Fifa, entre 2011 e 2014 a entidade inves­tiu US$ 454 milhões em programas de desenvolvimento e gastou mais do que o dobro, US$ 995 milhões, para alimentar sua máquina através de sa­lários, pensões e diversos pagamen­tos às federações dos países membros.

A Fifa não pode ser acusada pe­los gastos vultosos, já que os países sabem, desde o momento da candi­datura, das contrapartidas e regras que devem cumprir para participar do evento, defende Pedro Fida, espe­cialista em direito desportivo pela Fundação Getúlio Vargas. “Cabe aos governos fazer as adaptações exigi­das pela Fifa para receber um even­to desse porte. A Fifa coloca padrões mínimos de estádio e esse processo de adaptação é custoso, mas os paí­ses têm liberdade de investir onde quiserem”, afirma.

ReformasPara Pedro Fida, caso as suspeitas

sejam confirmadas e haja condena­ção dos responsáveis, o escândalo pode trazer benefícios para o es­porte. “O futebol é organizado por entidades privadas. Esse escândalo força essas instituições a se adequa­rem não apenas à legislação nacio­nal, mas a compliance e à transpa­rência. Essa gestão como empresa visa atender não só as instituições, mas a todos os stakeholders envolvi­dos, dirigentes, treinadores, atletas e consumidores, para que a estru­tura continue existindo da maneira mais saudável possível”, afirma.

No entanto, segundo ele, há muito trabalho pela frente, já que o esporte segue uma estrutura gi­gantesca e piramidal, tendo a Fifa no topo, seguida por confederações continentais, associações nacionais e federações estaduais. “As investi­gações vão influenciar o modo de gerir toda essa estrutura, inclusive com a revisão de todo o processo de escolha para a Copa. Uma reforma deve ser inevitável a médio e longo prazo, até pela grandeza da estrutu­ra do futebol”, sugere.

Segundo Renato Xavier, há es­perança de que as entidades se tor­nem mais democráticas, porém o

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processo promete ser lento e a re­forma corre o risco de ser limitada por falta de vontade política. “As confederações nacionais, que são os tentáculos da Fifa, também não dão sinais de mudança. A CBF, por exemplo, propôs pouca mudança regimental”, recorda.

Xavier concorda que o futebol não está dissociado das outras ati­vidades da sociedade e, portanto, é preciso que os recursos emprega­dos no esporte passem por rigorosa análise com regras mais claras. “É preciso haver mudanças, diminuir custos, ter mais transparência e, principalmente, tornar a Fifa uma entidade democrática”, declara.

Avalone considera que se a re­núncia de Blatter realmente acon­tecer, esse pode ser o primeiro impacto do escândalo em uma or­ganização desacostumada à alter­nância de poder. Segundo ele, as mudanças só serão aprofundadas na medida que os mecanismos de eleição à presidência da Fifa per­mitirem mais atores concorrendo. “Regras rígidas, como a que exige que o candidato tenha tantos anos a frente de uma federação nacional, limitam que pessoas novas e com novas ideias ingressem e deem mais transparência e cara nova a essas entidades”, critica.

“Para que essas mudanças acon­teçam, não basta esperar um movi­mento interno, É fundamental a cria­ção de uma fundação de atletas que pressione essas entidades”, sugere Avalone. Segundo ele, os jogadores, apesar da grande influência pública que possuem, costumam fugir de as­suntos políticos, mas essa realidade já está mudando, com a organização de atletas em novos movimentos.

Avalone também defende que, além dos atletas, a própria sociedade tenha mais voz na instituição, exi­gindo mais transparência sobre a for­ma que a Fifa gere seus recursos.