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S OCIALISMO EM DISCUSSˆO maria da conceiçªo tavares emir sader - eduardo jorge globalizaçªo e socialismo

globalizaçªo e socialismo€¦ · Isso mostra que o socialismo é conceito e realidade válidos e legíti-mos, tornando necessário estudá-lo, debatê-lo, ajustá-lo ao tempo

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SOCIALISMO

EM DISCUSSÃO

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SABEMOS QUE O PRAGMATISMO DAS AÇÕES POLÍTICAS DEVE SER EQUILIBRADO

PELA REFERÊNCIA CONSTANTE AOS PRINCÍPIOS TEÓRICOS, QUE PARA NÓS SE

ENCARNAM NA PALAVRA SOCIALISMO. SABEMOS TAMBÉM QUE NO MOMENTO HÁ

MUITA HESITAÇÃO E MUITA DÚVIDA A RESPEITO DO SOCIALISMO. A DERROCADA

DA UNIÃO SOVIÉTICA E A DESCARACTERIZAÇÃO DA SOCIAL-DEMOCRACIA NA

EUROPA SÃO FATORES QUE CONTRIBUÍRAM PARA GERAR ESSES SENTIMENTOS.MAS O SOCIALISMO É ALGO MAIS VASTO QUE SUAS MANIFESTAÇÕES

HISTÓRICAS E CONTINUA A SER O CAMINHO MAIS ADEQUADO ÀS LUTAS SOCIAIS

QUE TENHAM COMO FINALIDADE ESTABELECER O MÁXIMO POSSÍVEL DE

IGUALDADE ECONÔMICA, SOCIAL, EDUCACIONAL COMO REQUISITO PARA ACONQUISTA DA LIBERDADE DE TODOS E DE CADA UM.

Antonio Candido

maria da conceição tavaresemir sader - eduardo jorge

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SABEMOS QUE O PRAGMATISMO DAS AÇÕES POLÍTICAS DEVE SER EQUILIBRADO

PELA REFERÊNCIA CONSTANTE AOS PRINCÍPIOS TEÓRICOS, QUE PARA NÓS SE

ENCARNAM NA PALAVRA SOCIALISMO. SABEMOS TAMBÉM QUE NO MOMENTO HÁ

MUITA HESITAÇÃO E MUITA DÚVIDA A RESPEITO DO SOCIALISMO. A DERROCADA

DA UNIÃO SOVIÉTICA E A DESCARACTERIZAÇÃO DA SOCIAL-DEMOCRACIA NA

EUROPA SÃO FATORES QUE CONTRIBUÍRAM PARA GERAR ESSES SENTIMENTOS.MAS O SOCIALISMO É ALGO MAIS VASTO QUE SUAS MANIFESTAÇÕES

HISTÓRICAS E CONTINUA A SER O CAMINHO MAIS ADEQUADO ÀS LUTAS SOCIAIS

QUE TENHAM COMO FINALIDADE ESTABELECER O MÁXIMO POSSÍVEL DE

IGUALDADE ECONÔMICA, SOCIAL, EDUCACIONAL COMO REQUISITO PARA ACONQUISTA DA LIBERDADE DE TODOS E DE CADA UM.

Antonio Candido

maria da conceição tavaresemir sader - eduardo jorge

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Maria da Conceição Tavares

Emir Sader

Eduardo Jorge

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Socialismo em discussão

EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO

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Fundação Perseu Abramo

Instituída pelo Diretório Nacionaldo Partido dos Trabalhadores em maio de 1996

DiretoriaLuiz Dulci – presidente

Zilah Abramo – vice-presidenteHamilton Pereira – diretor

Ricardo de Azevedo – diretor

Editora Fundação Perseu Abramo

Coordenação EditorialFlamarion Maués

Assistente EditorialCandice Quinelato Baptista

RevisãoMaurício Balthazar Leal

Márcio Guimarães de Araújo

Capa e Projeto GráficoGilberto Maringoni

Ilustração da CapaMário Pizzignacco

Editoração Eletrônica Enrique Pablo Grande

Impressão Cromosete Gráfica

1a edição: outubro de 2001 – Tiragem: 4 mil exemplaresTodos os direitos reservados à

Editora Fundação Perseu AbramoRua Francisco Cruz, 234 – CEP 04117-091 – São Paulo – SP – Brasil

Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910Na Internet: http://www.fpabramo.org.br – Correio eletrônico: [email protected]

Copyright © 2001 by Editora Fundação Perseu Abramo — ISBN 85-86469-61-0

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ApresentaçãoLuiz Inácio Lula da Silva ................................................................ 5

PrefácioAntonio Candido ............................................................................. 9

A propósito de um debate sobre socialismo e globalizaçãoMaria da Conceição Tavares ......................................................... 11Prólogo .............................................................................................................. 11A luta democrática e popular é nacional ............................................................ 11Uma pequena história do poder na República brasileira .................................... 15Bibliografia ......................................................................................................... 26

ComentáriosEduardo JorgePor uma Federação Democrática Internacional .................................................. 29Marx e a globalização ......................................................................................... 31Articulação internacional ................................................................................... 34Autoridade democrática mundial ....................................................................... 36

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ComentáriosEmir SaderGlobalização e hegemonia norte-americana ........................................................ 41Hegemonia dos Estados Unidos ........................................................................ 43Alianças internacionais ...................................................................................... 45Orçamento participativo e sem-terras ................................................................. 47Guerra ideológica ............................................................................................... 49Cultura política internacional ............................................................................. 52

Intervenções do públicoMaria Geralda de Paiva ...................................................................................... 55Max Altman ........................................................................................................ 55Darcy Passos ..................................................................................................... 57Ivan Valente ....................................................................................................... 57

Comentários finaisEduardo Jorge – Um horizonte novo ................................................................. 59Emir Sader – Acumulação de forças ................................................................... 61Maria da Conceição Tavares – Nós estamos na resistência .............................. 62

Encerramento do primeiro ciclo dosseminários Socialismo e DemocraciaAntonio Candido ............................................................................................... 67

Sobre os autores .......................................................................... 69

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ApresentaçãoLuiz Inácio Lula da Silva

Em meados de 1999, visitei Antonio Candido para conversar um poucosobre nosso país, nossos desafios e nossas esperanças. Além de sabore-ar as deliciosas histórias que ele sempre conta, fui brindado com algumasdoses da espantosa sabedoria que jorra do alto daqueles 82 anos de umavida bem vivida, repleta de lutas e marcada por absoluta coerência deponta a ponta.

Fiz a ele um pedido que apresentei como convocação. Solicitei queemprestasse sua enorme autoridade intelectual, moral e política para es-timular a retomada de alguns debates fundamentais para despertar acriatividade e reanimar o ímpeto de uma esquerda que, mesmo represen-tando o que há de mais promissor em nossa terra, nunca está imune aosvícios do acomodamento e ao apego à rotina.

Trocamos idéias sobre alguns temas prioritários e sobre possíveis al-ternativas para romper o marasmo intelectual que vinha caracterizandonosso país, sob o já longo reinado de FHC.

Antonio Candido ficou de pensar. Algum tempo depois, convidou PaulSinger e Francisco de Oliveira, e eles três, junto com Paulo Vannuchi,

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meu assessor no Instituto Cidadania, realizaram inúmeras reuniões econsultas até conceber os seminários Socialismo e Democracia, que oInstituto promoveu em parceria com a Fundação Perseu Abramo e aSecretaria Nacional de Formação do PT, de abril a junho de 2000.

Foram realizados seis seminários que abordaram o socialismo a partirde vários ângulos, para um plenário sempre superior a cem pessoas,entre dirigentes do PT, da CUT (Central Única dos Trabalhadores), parla-mentares, lideranças de movimentos populares, membros de equipes degoverno, ONGs (organizações não-governamentais), intelectuais, estu-dantes e convidados em geral. Já na carta-convite para o evento, expli-camos que nossa idéia era discutir o que queremos entender por socialis-mo hoje, para o Brasil e para o mundo. E que não existia, de nossa parte,nenhuma concepção prévia de socialismo e de como alcançá-lo. Querí-amos retomar um clima de discussão aberta, no qual pudéssemos exporlivremente todas as nossas certezas e dúvidas. Sem exclusão de nenhu-ma corrente ou facção.

Com a coleção Socialismo em Discussão publicamos o conteúdo bási-co desses seminários. Queremos que este material seja amplamente di-vulgado em todo o país, que seja reproduzido, que estimule outros textose publicações, afastando todas as ameaças de inércia e de mesmice.Queremos que seminários desse tipo sejam realizados nos vários esta-dos, repetindo o produtivo ambiente de franqueza, polêmica, respeito eseriedade que marcou estes encontros. Sobretudo nas atividades de for-mação política, a contribuição destes cadernos pode ser muito grande.

O êxito e a ampla aprovação obtidos nesta primeira fase tornamobrigatório o prosseguimento das discussões em 2001*, focalizandoaspectos cada vez mais concretos e específicos do tema. Já era essaa idéia dos organizadores dos seminários. Eles agora cuidarão da

* Em 2001 foram realizadosmais dois ciclos dos semináriosSocialismo e Democracia, queserão também publicados pelaEditora Fundação PerseuAbramo (Nota do Editor).

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tarefa com ânimo redobrado, escalando adequadamente a ricapluralidade de craques ainda não convocados, entre dirigentes parti-dários, sindicalistas e intelectuais.

Penso que dessa forma estaremos construindo, juntos, uma compreen-são do socialismo que esteja realmente à altura das exigências do novoséculo e que nos habilite a lutar por vitórias que são imperativas e inadiáveisno grave cenário de crise social, injustiças e desigualdades que vem sen-do imposto aos brasileiros já de longa data.

São Paulo, junho de 2000

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Prefácio

Esta série de seminários é um começo. Vamos analisar a experiênciaque ela produzir a fim de preparar a série do ano que vem, levando emconta os resultados, retificando o planejamento, recolhendo as opiniões.Felizmente, o que não falta no PT são pessoas capazes de atuar comoexpositores e comentadores. Elas serão progressivamente convidadas,atendendo sempre à gama de opiniões que caracteriza o partido.

Sabemos que o pragmatismo das ações políticas deve ser equilibradopela referência constante aos princípios teóricos, que para nós se encarnamna palavra socialismo. Sabemos também que no momento há muita hesi-tação e muita dúvida a respeito do socialismo. A derrocada da UniãoSoviética e a descaracterização da social-democracia na Europa são fato-res que contribuíram para gerar esses sentimentos. Mas o socialismo éalgo mais vasto que suas manifestações históricas e continua a ser o ca-minho mais adequado às lutas sociais que tenham como finalidade estabe-lecer o máximo possível de igualdade econômica, social, educacional comorequisito para a conquista da liberdade de todos e de cada um.

Isso mostra que o socialismo é conceito e realidade válidos e legíti-mos, tornando necessário estudá-lo, debatê-lo, ajustá-lo ao tempo. Só

Antonio Candido

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assim um partido como o PT evitará o risco de perder sua bússolaideológica na dispersão das necessárias operações táticas. De fato,sabemos que a referência constante à reflexão e ao debate é indispen-sável nas organizações políticas de esquerda, porque sem isso elaspodem desfigurar seus componentes mais válidos e naufragar no opor-tunismo. Há uma solidariedade profunda entre teoria e ação, e umadas contribuições mais importantes do marxismo é a idéia de que pen-sar corretamente a sociedade leva à necessidade de transformá-la. Enisto reside uma das razões de ser do socialismo.

Esperemos que esses seminários sejam o começo de uma atividadepermanente, que ajude o PT a conservar sua capacidade de luta políti-ca correta. Mesmo porque, na diversidade de nossas tendências inter-nas, há um grande ponto de encontro, que mantém nossa comunhão enossa solidariedade fraternal acima das diferenças: esse ponto de en-contro é precisamente o socialismo.

São Paulo, junho de 2000

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A propósito de um debate sobre

socialismo e globalização

Prólogo – Este pequeno ensaio foi escrito como reflexão posterior,quase um ano depois do debate “Socialismo e globalização”, ocorrido nasede do Diretório Nacional do PT em junho de 2000. Dada a confusãoreinante provocada pelo meu estilo de debater, foram distribuídos previ-amente aos debatedores dois trabalhos meus de referência: “Globalizaçãoe Estado nacional” e “Subdesenvolvimento, dominação e luta de clas-ses” (ver Bibliografia). As intervenções dos debatedores e a minha res-posta estão no final deste livro. Este novo ensaio que abre o livro, comoé visível, prende-se a uma visão de mais longo prazo dos problemas daluta contra os sucessivos pactos de dominação no mundo e em nossopaís, que não tem qualquer relação com a conjuntura, mas pretende situ-ar a luta das classes populares numa perspectiva histórica.

A luta democrática e popular é nacional – A atual forma deinserção na globalização capitalista (ver TAVARES e FIORI, 1997), senão for revertida, pode destruir as economias nacionais de váriospaíses, limitar ainda mais a soberania restrita dos Estados nacionaisperiféricos, mas não destrói necessariamente as lutas populares e

Maria da Conceição Tavares

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democráticas para a construção de uma nação mais justa e um povomais capaz de se autogovernar para sobreviver com dignidade nessemar de iniqüidades e prepotências locais e imperiais. Os ex-domíniosbritânicos e as ex-colônias européias não tinham soberania nacional,mas algumas foram capazes de se autodeterminar como povos, comvárias formas de luta e organizações populares e, sobretudo a partirda Segunda Guerra Mundial, tiveram reconhecida sua condição deEstados nacionais. Cuba está cercada pelo neo-imperialismo e nempor isso deixou de se autodeterminar como nação, fazendo avançaros direitos sociais básicos do seu povo. A Venezuela está tentandoreforçar a sua “república bolivariana” pela via eleitoral, na qual ga-nhou várias vezes com o apoio popular, embora continue economica-mente dependente do único ativo estatal que lhe resta: o petróleo.Mesmo que vários países latino-americanos venham a sucumbir àviolência do capital financeiro e do centro imperial, não morrerá ahistória das lutas contemporâneas em nuestra América, nem a forçadas lutas populares nas ruas das cidades (de Caracas a Buenos Aires)e nas áreas rurais (do México à Colômbia).

Cada país teve de reinventar o seu destino, nas guerras interim-perialistas, nas brechas das profundas crises internacionais capitalis-tas, nas lutas antiimperialistas de libertação nacional e nas grandescrises históricas de nacionalidade, como a que está ocorrendo hojeno Brasil. A razão pela qual não chegamos aos paroxismos argenti-no, colombiano, peruano e mexicano é que ainda não fomos comple-tamente desestruturados como economia nacional e como Estado na-cional (ver TAVARES, 1997). Apesar da heterogeneidade social e pormais injusto e submisso à “nova ordem mundial” que seja o atualpacto de dominação, ainda continuamos a luta por uma nação! Osimpérios mudam, as periferias mudam, mas, em primeira e última

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instância, é a ruptura do pacto de dominação interna, e, portanto, aluta política no território concreto do espaço nacional, que abre cami-nhos para o avanço dos direitos populares à vida e à autodetermina-ção, chame-se ele socialismo, libertação nacional ou aliança demo-crático-popular.

Os nomes não importam. As rupturas históricas com o passado deopressão e as lutas incessantes dos povos não se repetem do mesmomodo. Não há “etapas” nem “modelos”, mas, ao contrário do quedisse o grande poeta, existem caminhos. Há mais de 300 anos queexistem experiências de enfrentamento com o “capitalismo global”,com caminhos populares próprios de cada espaço nacional de luta declasses. Os rumos, estratégias e táticas políticas dependem das con-junturas históricas (da geopolítica e da geoeconomia), mas tambémda união, do discernimento e do avanço das organizações popularesem cada país (ver TAVARES, 2000).

É sempre bom lembrar que as lutas recentes dos trabalhadores bra-sileiros surgiram de mil maneiras, às claras na luta contra a ditadura,mas também nas lutas concretas das organizações populares nos anosde chumbo, que só ficaram visíveis a partir de 1977. O Partido dosTrabalhadores tem apenas 21 anos, mas as memórias dos combaten-tes pela liberdade e pelo socialismo que alimentaram estes seminári-os, que o PT em boa hora promoveu, têm tantos anos de existênciaquanto o capitalismo moderno. No caso brasileiro, começaram comas lutas pela descolonização. Se estas ainda não terminaram e têmde ser continuamente repostas, apesar de todas as derrotas, é indis-cutível o avanço do povo brasileiro e dos vários partidos e movimen-tos sociais dos trabalhadores, sobretudo dos atuais, entre os quais oPT cumpriu um papel decisivo na organização e nos rumos que toma-ram as lutas democráticas e populares nas duas últimas décadas.

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O socialismo não é uma utopia, mas um caminho sempre reinventadopara chegar a uma sociedade sem dominação de classes. A luta so-cialista tem se desenvolvido de forma desigual, e o socialismo nãoestá assegurado pela “propriedade estatal ou autogestionária dosmeios de produção” nem se tornará hegemônico (no sentidogramsciano) enquanto a expansão quase ininterrupta dos impériosanglo-saxônicos garantir a “ordem mundial” capitalista e a hegemoniado “globalitarismo”. O socialismo não é uma categoria universal raci-onal, é uma luta contínua que se tornou particularmente dramática ede resultados imprevisíveis com a formidável concentração do podereconômico, financeiro e das comunicações do atual centro imperial.

As armas atômicas e a propriedade estatal dos meios de produçãonão garantiram a sobrevivência da União das Repúblicas SocialistasSoviéticas (URSS), nem a experiência autogestionária da jovem repú-blica iugoslava do pós-guerra impediu Kosovo. Mas, muito antes queo modo de produção capitalista termine historicamente, é possívelnão apenas travar, num só país, uma luta de “horizonte socialista”,mas sobretudo afiançar algumas experiências democráticas e popu-lares concretas que dependem da acumulação de forças sociais, cul-turais e políticas que cada país ou região possa ter feito no seu pas-sado e nas lutas do presente com vistas a um futuro melhor. A atualcrise mundial e brasileira abre caminhos para o avanço da luta demo-crática e popular, condição para reconstruir uma nação com a qual opovo brasileiro possa se identificar, não apenas pelos símbolos e pelacultura, mas sobretudo pela conquista efetiva dos seus direitos decidadania, políticos, econômicos e sociais.

Só os países com pretensões hegemônicas mundiais têm projetosinternacionais globais. Os resultados catastróficos dessas preten-sões são conhecidos. Os países de capitalismo tardio ou de socialis-

1. Ver, por exemplo, os livrosdas coleções Intérpretes doBrasil, da Editora NovaAguilar, e Grandes Nomes doPensamento Brasileiro, daPublifolha, citados naBibliografia deste ensaio.

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mo subdesenvolvido só podem ter “projetos nacionais” que levemem conta as restrições externas de sua inserção internacional es-pecífica. Que estes dêem resultado ou não depende da identifica-ção da “nação real” com os três elementos que a constituem comoexperiência histórica: povo, território e Estado. As formas de organi-zação social e os pactos de dominação têm mudado, as formas daluta de classes também, mas nenhum país moderno sobrevive semum mínimo de representação-identificação com a chamada “sobera-nia popular”. Trata-se de fundamento político e ideológico da “sobe-rania limitada” de um Estado nacional ante a ordem mundial, global-mente hierarquizada (FIORI, 1999).

Uma pequena história do poder na República brasileira – Nãoparo de me espantar com a “criatividade” das oligarquias brasileiraspara se manter no poder em qualquer conjuntura, mesmo quando ocor-rem mudanças estruturais importantes no padrão de desenvolvimen-to nacional e internacional, no pacto de dominação regional e no regi-me político, como as que sucederam nas crises de 1930 e dos anos 80e 90 do século XX. As relações entre Estado territorial e autoritarismo,por um lado, e entre capitalismo central e periférico, mercado internoe classes sociais, por outro, sempre foram problemáticas e perpas-sam as nossas “obras magnas” sobre “formação nacional”1 . A do-minação econômica tem sido muito discutida – ver as obras de CaioPrado e Celso Furtado, por exemplo. Vou me aventurar a alinhavaralgumas idéias sobre ruptura política e pacto de dominação nas gran-des crises nacionais e internacionais que assolaram este país desdefinais do século XIX até o final do século XX2 .

A proclamação da República brasileira introduz os militares na po-lítica nacional de forma cada vez mais abrangente – a grande crise e

2. Minhas reflexões maisamplas sobre dominaçãopolítica-econômica-socialpodem ser vistas em “Impé-rio, território e dinheiro”(TAVARES, 1999). Para umdesdobramento posterior sobreo pacto de dominação e lutade classes, ver meu ensaio-homenagem a Celso Furtado,“Subdesenvolvimento,dominação e lutas de classes”(TAVARES, 2000).

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as rupturas do fim do Império e na crise de 1930 –, até convertê-los,em 1964, de poder arbitral nos conflitos das oligarquias regionais em“poder nacional”. O único poder que se considerava o guardião aca-bado do lema da bandeira: “Ordem e progresso”. As transformaçõesmais importantes na organização da “corporação militar” ocorrem apartir do Estado Novo e, sobretudo, depois da Segunda Guerra Mun-dial, com a mudança progressiva da doutrina e da forma de organiza-ção das escolas militares e dos estados-maiores, até alcançar umavisão geopolítica e geoeconômica diante da ordem mundial que podeser sintetizada na doutrina Segurança e Desenvolvimento que predo-minou no período 1964-1985.

A hierarquia e a profissionalização da corporação militar se iniciamcom a República e se completam para fins estratégicos de coordena-ção de mando em Estado-Maior das Forças Armadas. A ideologia dadisciplina e dos interesses nacionais é ensinada nas escolas militaresde cada corporação. Mas a visão do que era interesse nacional nãopassava pelo povo, passava pela defesa do território, salvo algumasdissidências internas que surgiram nas crises dos anos 30 e dos anos60. A visão de segurança interna passou sempre pela repressão daslideranças políticas de esquerda e das lutas populares. A partir de1958, a Escola Superior de Guerra e a Escola de Estado-Maior fo-ram os bastiões supremos da geopolítica nacional e da inserção dopaís na geopolítica internacional. O Itamaraty (“a casa de Rio Bran-co”) encarregava-se apenas da diplomacia formal e da formação dequadros da “sociedade civil” para funções de governo nas tarefas derelações internacionais.

A idéia de potência regional vai tomando corpo nas brechas dasmudanças que ocorrem nos centros do poder mundial. Apesar de aGuerra Fria estar no auge em 1961, o governo Jânio Quadros, com

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17SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

seu chanceler Afonso Arinos, inaugurou uma política “terceiro-mundista” de não-alinhamento automático com os Estados Unidos.Esta política foi interrompida com o golpe militar de 1964 e retomadamais tarde pelo governo Geisel (1974-79), depois da crise dahegemonia norte-americana com a derrota no Vietnã, a ruptura dosistema de Bretton Woods e a emergência da Europa continental edo Japão como pólos alternativos econômicos e tecnológicos. A vi-são geopolítica do general Golbery do Couto e Silva continuou orien-tando Geisel, depois de ter sido o principal orientador da Escola Su-perior de Guerra e o fundador do Serviço Nacional de Informação(SNI). Apesar de sua adesão à “internacionalização” do mercado in-terno pela expansão do investimento direto estrangeiro, Golbery ava-liava, na segunda metade da década de 1970, que a hegemonia norte-americana tinha chegado ao fim. O mundo multipolar já estava à vis-ta e o Brasil tinha chance de se qualificar como potência intermediá-ria, com hegemonia na América do Sul, desde que deslocasse o eixode sua política externa em relação à Argentina. Inaugurou-se tam-bém uma política de aproximação com o Japão e a Alemanha e comos países do Terceiro Mundo não-alinhados. Finalmente, uma partedos intelectuais “progressistas” brasileiros que sobrou no Brasil em-barcou nessa tese.

A década de 1980 está marcada pela nossa “transição democráti-ca”; pelo esgotamento do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND),ambicioso projeto baseado no crescimento do investimento estatal; pelaretomada da hegemonia norte-americana no governo Reagan, a partirda crise mundial de 1980-1982 (ver TAVARES e MELIN, 1997); e, final-mente, pela desestruturação da União Soviética no final da década.

Nos anos 90, com uma década de defasagem, o governo brasileiroaderiu aceleradamente à era do neoliberalismo e da “globalização

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financeira”: processo de desregulamentação dos mercados de capi-tais, cambial e financeiro, privatizações das estatais e desnacionali-zação dos bancos. Os governos brasileiros desse período acompanha-ram passivamente as mudanças drásticas na geoeconomia e nageopolítica mundiais. Como resultado dessas mudanças, as ForçasArmadas ficaram aparentemente sem “doutrina positiva” e sem polí-tica de segurança nacional clara.

O outro estamento decisivo para os destinos do Estado brasileiro,desde sua formação, foram os advogados e os legisladores. Os ba-charéis do poder civil sempre tentaram organizar os códigos e asnormas que dizem respeito à mal chamada “sociedade civil”, isto é,os direitos de propriedade. No caso de golpes militares, os juristas elegisladores sempre correram atrás do prejuízo. Foram elaborando,depois de cada golpe militar ou mudança de regime político, uma novaConstituição da República. É fantástico contrastar a longa duraçãoda Lei de Terras e do Código Comercial de 1850, e até mesmo doCódigo Civil, diante das freqüentes mudanças da Constituição brasi-leira, que deveria regular de forma estável os direitos fundamentaisdos cidadãos. Da Revolução de 1930 para cá, a forma como os direi-tos sociais das nossas Constituições entram e saem e o carátercrescentemente restritivo do papel da Federação – mesmo na Cons-tituição da Nova República, de 1988, e sobretudo no período dahegemonia neoliberal da década de 1990 – merecem um estudo maisdetalhado, que seguramente invalidará qualquer ideologia geral oufilosofia do direito positivo, na qual foram tão profícuos os nossosbacharéis. Depois da desconstrução da Constituição de 1988, perpe-trada com enorme rapidez e violência por boa parte dos legisladoresque ajudaram a montá-la, instaurou-se o reinado do arbítrio “demo-crático” neoliberal. O Poder Judiciário deixou de ter uma doutrina

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definida sobre qualquer assunto nacional relevante, ficando entreguea lutas intracorporis levadas pelas conjunturas mais variáveis, istoé, continuam correndo atrás do prejuízo e a reforma do Poder Judiciá-rio permanece inacabada.

A proclamação da República confirmou a hegemonia paulista nopacto de dominação burguês-oligárquico. O poder econômico do com-plexo cafeeiro foi reforçado pelo nexo entre a sua burguesia e oscentros financeiros internacionais. Daí em diante, cada vez que estenexo se rompe e força uma mudança no padrão de financiamento daacumulação de capital torna-se necessária a intervenção crescentedo Estado (Caixa de Conversão, Tesouro Nacional, Banco do Brasil)e, mais tarde, do sistema de instituições financeiras públicas (BancoNacional de Desenvolvimento Econômico, Banco Central etc.) pararepor as condições de valorização da riqueza privada. Um dos exem-plos históricos mais duradouros de intervenção do Estado na econo-mia foi a política de valorização do café, que teve início com o Acor-do de Taubaté de 1905, passou pela queima dos estoques de café nadécada de 1930 e durou até quase o final do segundo governo Vargas,no começo de 1954.

Por outro lado, as políticas macroeconômicas, sobretudo as cambi-ais, as monetárias e as de ajuste fiscal, nunca permitiram caracteri-zar nenhum governo da República como exclusivamente liberal oudesenvolvimentista. Aliás, as políticas macroeconômicas de Vargas,desde 1930 até 1954, são o próprio exemplo de pragmatismo. O mes-mo pode ser dito do período da ditadura militar. A única exceçãorepublicana é a década de 1990, quando finalmente a “onda neoliberal”globalizante nos avassalou completamente.

As mudanças no valor e na denominação da nossa moeda são ain-da mais freqüentes do que as das regras jurídicas, e têm conduzido os

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economistas a substituírem com rapidez os bacharéis da Repúblicano comando do Executivo, a partir do início da década de 1960. Aselites políticas e financeiras da República nunca se preocuparam asério com a natureza do “déficit fiscal”, salvo quando ele implicavauma relação de natureza financeira que ligava a dívida pública à dívi-da externa, pressionadas pela dificuldade de continuar ou renegociaro crédito externo. Nenhuma política de tipo fiscal tentou implementaro pleno emprego, e a oposição entre “keynesianos” e “ortodoxos”sempre foi meramente acadêmica. O nível de consumo das massasnos sucessivos programas de desenvolvimento subiu à custa da ex-pansão do crédito e do endividamento, e nunca com o aumento desalários acompanhando o aumento da produtividade. Vale dizer, nun-ca tivemos nenhum “modelo fordista”, apesar de a luta das classestrabalhadoras ter conseguido ao longo de décadas algumas conquis-tas dentro da grande empresa ou de ramos industriais específicos.Elas sempre se revelaram transitórias, seja pela interrupção dos avan-ços democráticos, seja pelas crises recentes a partir da hegemonianeoliberal. Os “pactos” de dominação internos se mantiveram essen-cialmente “oligárquicos” ou “plutocráticos”.

No Brasil, os economistas neoclássicos ou neokeynesianos sempreestiveram de acordo em lutar contra o “populismo macroeconômico”,desde que este não se achasse a favor das classes dominantes. Ahistória do salário mínimo, de 1958 em diante, é exemplar a esserespeito. Assim, do ponto de vista das “políticas macroeconômicas”,as elites tecnocráticas que dirigiram sucessivamente o Ministério daFazenda, o Banco do Brasil e o Banco Central trabalharam semprecom uma “macroeconomia” da concentração da renda e da riquezaque permitia apenas uma acumulação patrimonial das elites, mesmoquando a “teoria” fosse outra.

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Do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas, a cha-mada sociedade civil sempre pediu ao Estado uma expansão da infra-estrutura, não para planejar o desenvolvimento econômico sustenta-do, mas, no máximo, para desfazer “engarrafamentos”, obter “eco-nomias externas” para as grandes empresas e bons negócios para asconstrutoras. A idéia do “planejamento nacional” esteve sempre li-mitada a uma parte da burocracia civil e militar, em particular aosdefensores da “engenharia nacional”, vide os debates constantes noClube de Engenharia e no Clube Militar. O “Partido dos Empreitei-ros”, que vem florescendo em franca evolução capitalista desde aRepública, sempre cuidou dos “bons negócios”, mesmo quando issoimplicava freqüentemente desvios de rota dos planos traçados pelosburocratas de Estado. O “Partido dos Ruralistas” resistiu tenazmen-te – quase sempre apelando à violência política, exercida direta ouindiretamente – à introdução da reforma agrária pedida pelas elitesesclarecidas da República. Resistiram até mesmo à implantação doEstatuto da Terra do governo Castello Branco (1964-1967), o primeiropresidente militar depois do golpe de 1964.

Do ponto de vista das relações sociais básicas do capitalismo brasilei-ro, temos um problema clássico de heterogeneidade, que já foi discutidono Capitalismo na Rússia de Lenin e retomado por Caio Prado Júniorem A revolução brasileira, por Florestan Fernandes em A revoluçãoburguesa no Brasil e com enorme competência por J. M. Cardoso deMello em Capitalismo tardio. A burguesia cafeeira paulista foi uma dasprimeiras a introduzir o trabalho assalariado imigrante e uma das últimasa abandonar a defesa da escravidão como bom negócio, tendo comopano de fundo o excesso de “homens livres da ordem escravocrata”(ver FRANCO, 1969). Estes só vieram a ter utilidade como trabalhadoresassalariados com o crescimento metropolitano das cidades.

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Com a intensificação da urbanização, deu-se a ascensão de umnovo patronato urbano ligado aos negócios de obras públicas, e avalorização imobiliária sempre teve como suporte para a acumulaçãoprivada a ocupação do poder político do Estado por seus prepostos“profissionalizados”. Esse tipo de político urbano vai muito além do“tipo ideal” weberiano do “patrimonialismo” ou da versão brasileirade Raymundo Faoro em Os donos do poder. A exploração empre-sarial do trabalho nas grandes cidades se exerce sobre uma parcelareduzida de trabalhadores assalariados organizados e um excesso de“homens livres” expulsos da terra pela violência dos “coronéis” e daexpansão capitalista do latifúndio e atraídos à cidade sobretudo pelaexpansão da construção e dos serviços metropolitanos. Esta situaçãode grande “anarquia” e heterogeneidade social faz surgir um novotipo de “dominação burguesa urbana”, a qual propiciou a emergênciade lideranças políticas sem os “princípios éticos” de que sempre segabaram o “patriciado” paulistano e a burocracia civil e militar doRio de Janeiro. Assistiu-se, assim, simultaneamente, à expansão dopoder econômico cada vez mais concentrado, do conservadorismopolítico das chamadas “classes produtoras” e ao “rouba mas faz”das várias gerações de governantes urbanos que evoluíram mais re-centemente para um comportamento francamente celerado.

A disputa racional-administrativa pelo poder local foi obra de al-guns “engenheiros positivistas” desde o começo do século XX até1930 (as reformas urbanas do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, SãoPaulo). Com a exceção dos sanitaristas (sobretudo no Rio), poucosse preocuparam com as condições de vida do povo.

A disputa pelo poder local “ética-administrativa-participativa” tevecomo exceção mais duradoura a velha Frente de Esquerda do Reci-fe, de 1958, que se repetiu em 2000 e só começou a se ampliar na

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década de 1980 com algumas administrações exemplares do PT, quedaí tirou grande parte da sua força eleitoral na última década. A ca-pacidade de generalização (de baixo para cima) do poder local, doestadual ao federal, é uma hipótese por testar, mas dificilmenteexeqüível numa situação de crise econômica e social como a queocorreu desde as décadas de 1980 e 1990.

O Estado desenvolvimentista nas suas várias versões – Vargas, JK,Médici e Geisel – terminou com a crise nacional e internacional de1982, e levou juntos de roldão o padrão de acumulação e o regimemilitar. Mas restabeleceu o pacto de compromisso das elites regio-nais civis e militares que caracteriza a Nova República. Depois devárias crises dos governos de transição, os “paulistas” subiram nova-mente ao Poder Executivo, com o auxílio dos “cariocas” neoliberaise cosmopolitas do Rio de Janeiro, que ocupam até hoje os postosrelevantes do Ministério da Fazenda e do Banco Central.

Neste começo de século é difícil entender a obsessão do presiden-te Fernando Henrique Cardoso em destruir a era Vargas, que já foipara o espaço, de qualquer ponto de vista, pelo menos desde 1987,quando ocorreu a primeira moratória temporária da dívida externabrasileira desde o período 1931-1937. O comportamento de FHC, aomirar-se no seu espelho invertido de mil reflexos históricos regressi-vos, o impediu de avançar em qualquer direção que redemocratizassede fato a nossa “nova” República. Do ponto de vista constitucional,foi além dos generais e da República Velha, destruindo uma das re-gras básicas do Estado republicano brasileiro sob qualquer regimepolítico: a não-reeleição do presidente. Finalmente, centralizou ospoderes presidenciais de tipo “cesarista” e governou por medidasprovisórias, fazendo, além disso, quantas “contra-reformas” da Cons-tituição de 1988 lhe foram possíveis com apoio na mais extensa alian-

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ça política conservadora de que se tem notícia na história republica-na do país. Com algumas delas tentou liquidar de vez a Federaçãosem destruir o “pacto oligárquico”. Com outras, destruiu parte dasforças produtivas nacionais a pretexto de submetê-las a um “choquede abertura competitiva”. Reduziu à insignificância o nosso comércioexterior (0,68% do comércio mundial) e liquidou com qualquer pre-tensão a uma “inserção dinâmica” na economia internacional. Enfim,tornou o nosso capitalismo “dependente-associado” um mero vassalodas finanças internacionais, levando ao limite a sua “pseudo” coe-rência teórica dependentista e globalizante.

Dos direitos sociais duramente conquistados pelas classes subordi-nadas e finalmente expressos democraticamente na Constituição de1988, o atual governo pode ser qualificado como o seu liquidante,uma vez mais a pretexto de “modernizar” o país e acabar com ocorporativismo da era Vargas! À luz dos grandes negócios da bur-guesia paulista e “nacional-associada”, o governo FHC transformou-se por meio das privatizações num leiloeiro perdedor no mercadoglobal. À luz do novo imperialismo, converteu o governo brasileiroem um “consulado” de 25a categoria do centro imperial global (é as-sim que constamos da lista de prioridades do Departamento de Esta-do norte-americano) e, finalmente, como celebrante principal da mis-sa dos 500 anos do “Descobrimento do Brasil”, passará à históriacomo um renovador modernizante do “estatuto colonial”.

Não importam as qualificações ou o destino de FHC, o que a es-querda e as forças populares organizadas precisam ter mais claro –com todo o respeito aos meus mestres Celso Furtado, FlorestanFernandes, Caio Prado Jr. e às conjunturas de suas análises – é quea construção da nação não está interrompida, está por (re)fazer arevolução burguesa, não está por completar, por meio da passagem a

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uma “ordem competitiva”, e, finalmente, a revolução brasileira nãodepende apenas dos erros da esquerda, da construção das forçasprodutivas ou da unificação capitalista do mercado interno. A nação,a ordem democrática ou o socialismo só podem ser construídos peloacúmulo das experiências adquiridas na luta pela ampliação e pelaparticipação das representações populares na administração do po-der político e social em todos os níveis. Sem isso não haverá refor-mas sociais e econômicas duradouras. Estas terão de ser obtidas poruma mudança de eixo no modelo de desenvolvimento econômico,social e político, e levadas a cabo por governantes brasileiros querepresentem a maioria das forças populares e sejam capazes de fa-zer avançar a reconstrução da nação brasileira, radicalizar a demo-cracia e ter como horizonte uma sociedade mais justa, igualitária ecapaz de se autodeterminar.

Do ponto de vista teórico ou prático, é evidente que convém fazeruma reavaliação crítica da nossa história, e não apenas dos ideais re-publicanos e socialistas. Ficando apenas no terreno das idéias, é per-feitamente compreensível, a qualquer ser pensante, ter idéias confusase contraditórias a respeito do que vem acontecendo no mundo ou nonosso país. Mas não convém continuar até o cansaço fazendo falsasoposições: Estado X mercado, autogestão X planejamento, democra-cia direta X representativa, poder nacional X poder global. É melhorfazer um balanço das conquistas democráticas do século XX, semuniversalizá-las a partir da experiência de meia dúzia de países cen-trais, e tentar fazer avaliações estruturais da conjuntura (no sentido deCaio Prado, 1966). Evitar o vício do “economicismo macroeconômico”,apoiar e, se possível, orientar a luta dos movimentos sociais por umaumento da participação popular e democrática na administração davida política cotidiana e na democratização do Estado que não se limite

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a reerguer o Estado de direito clássico. Todos esses tipos de luta, acrítica, a política ativa e a da administração participativa, estão no cernede qualquer concepção que se tenha sobre o que possa vir a ser umprojeto de socialismo democrático neste país.

Bibliografia

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Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior; O pro-cesso civilizatório, de Darcy de Ribeiro; Projetos para o Brasil, deJosé Bonifácio de Andrada e Silva; Literatura e sociedade, de An-tonio Candido de Mello e Souza.

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Comentários*

Por uma Federação Democrática Internacional – Sou militantesocialista de 1968. Este ano, 1968, é uma espécie de fusão das idéiasanarquistas, liberais, socialistas e comunistas, por isso tive a felicida-de de misturar Trotski com libertários, Lenin com feministas etc.Assim, termina-se por ter um pouco de independência, e não se ficatão prisioneiro, de um ponto de vista ideológico, como outros compa-nheiros valorosos do passado.

Vou fazer meus comentários a partir não só da exposição de Mariada Conceição Tavares, mas também dos textos de sua autoria citadospor ela. Conceição afirmou em várias ocasiões que o controle dasinovações tecnológicas, por um lado, e a resistência baseada na cul-tura nacional, por outro, são duas grandes macrotendências que têmde ser dominadas para se entender a globalização moderna. E, peloque pude perceber, ela tem a tendência em localizar essa resistência,que identifica com a construção do Estado nacional, sempre em perí-odos de autoritarismo no Brasil. É verdade que ela diz também quedificilmente um projeto nacionalista autoritário tem alguma chancede prosperar na fase atual. Mas sua argumentação é toda atravessa-

Eduardo Jorge

* Os comentários de EduardoJorge e Emir Sader, assimcomo o debate com o público,se basearam em exposiçãofeita por Maria da ConceiçãoTavares, cujo conteúdo, comoinformado no “Prólogo” dapágina 11, foi diferente emalguns pontos do textoapresentado nas páginasanteriores (Nota do Editor).

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da por referências a Getúlio, a Geisel etc., figuras identificadas comperíodos em que houve tentativas de um projeto comandado por na-cionalistas autoritários.

Um ponto importante que percebo nessa argumentação é a não-valorização da explosão cultural que houve entre 1955 e 1964. Aque-le foi um período democrático inigualável do ponto de vista cultural,no cinema, no teatro, na música e até no futebol. Foi provavelmenteo período mais rico, de maior explosão da cultura e da nacionalidadebrasileiras. Isso é uma afirmação da nação tanto ou mais do que asquestões econômicas, as questões financeiras, e essa é uma lacunana exposição de Maria da Conceição Tavares.

Em relação à questão da globalização e do Estado nacional, ela reco-nhece que existe uma parte da economia, os fluxos de capital financei-ro, que está desterritorializada, a ponto de não ter sequer registro nosbancos centrais. Conceição identifica os Estados Unidos como nossoprincipal adversário – aliás, a globalização para ela nada mais é do queum conjunto de políticas e de iniciativas da potência dominante.

Ao fazer o contraponto e encontrar alguns modelos de possíveisalternativas, e talvez alguns potenciais aliados que se aventurem aenfrentar o novo César, ela aponta a China e a Índia, países quesabemos que têm importância econômica e política, mas que são hojemodelos políticos pouco atraentes: o primeiro, uma ditadura que con-tinua a utilizar a matriz stalinista, embora tenha abandonado algunsde seus princípios; o segundo, um país que vem sendo controlado porum partido de direita, religioso e altamente nacionalista, que estáameaçando até retomar a guerra com o Paquistão. Parece-me que,ao localizá-los como exemplos de resistência e de possibilidades, énecessário também considerar o contexto que está possibilitando essetipo de resistência.

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Conceição aponta o decréscimo da autonomia do Estado-nação ediz que a saída passa pela luta de cada país contra essa tendência, eque os países devem defender os interesses dos seus cidadãos. Aon-de essa luta poderá chegar? Quais das suas perspectivas se restrin-gem à resistência isolada de um país? Ela ressalta também a impor-tância da cultura como elemento-chave na resistência para a manu-tenção da nação e do Estado-nação, com o que eu concordo. Ressal-ta ainda a tarefa de regenerar o Estado brasileiro, ter objetivos naci-onais, investimentos políticos, sociais e econômicos a longo prazo, euma inserção internacional soberana, que não seja subalterna, com oque também concordo.

Mas acho que isso não é suficiente, em relação tanto ao Brasil comoa outros países e nações, para enfrentar a atual fase do capitalismo.

Marx e a globalização – Com relação às referências a Marx, valelembrar que há no Manifesto Comunista, escrito em parceria comEngels, uma parte analítica de crua atualidade. Vejamos este trecho:

“Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprimeum caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos ospaíses. Para grande pesar dos reacionários, ela retirou a basenacional da indústria. As indústrias nacionais tradicionais fo-ram, e ainda são, a cada dia destruídas. São substituídas pornovas indústrias, cuja introdução se tornou essencial para to-das as nações civilizadas. Essas indústrias não utilizam maismatérias-primas locais, mas matérias-primas provenientes dasregiões mais distantes, e seus produtos não se destinam ape-nas ao mercado nacional, mas também a todos os cantos daTerra. Ao invés das necessidades antigas, satisfeitas por pro-

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dutos do próprio país, temos novas demandas supridas por pro-dutos dos países mais distantes, de climas os mais diversos.No lugar da tradicional auto-suficiência e do isolamento dasnações surge uma circulação universal, uma interdependênciageral entre os países. E isso tanto na produção material quantona intelectual. Os produtos intelectuais das nações passam aser de domínio geral. A estreiteza e o isolamento nacionaistornam-se cada vez mais impossíveis, e das muitas literaturasnacionais e locais nasce uma literatura mundial”1 .

Mas há partes da obra de Marx que são datadas, por exemplo asque tratam da questão colonial, em que o pensamento marxista de-fendia como necessária a presença inglesa na Índia e na China, por-que ali não havia, segundo ele, senão bárbaros. Ou quando defendeuo assalto que os Estados Unidos fizeram ao México, roubando todaaquela região do Novo México e da Califórnia. Portanto, é claro queMarx tem descobertas universais, mas também tem pensamentosmarcados tanto pelo eurocentrismo, na visão sobre o colonialismo,como também pelo seu cosmopolitismo ingênuo. E não só ele pensa-va assim; os liberais da época também achavam que o mercado iriatrazer o governo mundial e democrático rapidamente.

Assim, penso que nós, que somos um partido socialista e um parti-do dos trabalhadores, temos que nos vacinar contra dogmatismos.

A questão da globalização, ao contrário do que Conceição diz,não é uma pura armação política, uma pura estratégia política dedominação do império moderno. A mundialização, como dizem osfranceses para serem diferentes dos norte-americanos, vem sedando de certa forma desde que o homem surgiu na Terra. A pró-pria expansão da nossa espécie pelo globo afora é um modo de

1. Citado a partir da traduçãode Victor Hugo Klagsbrunn quese encontra em REIS FILHO,Daniel Aarão (org.). O Manifes-to Comunista: 150 depois. SãoPaulo/Rio de Janeiro, EditoraFundação Perseu Abramo/Contraponto, 1998, p. 11-12.

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globalização, de mundialização; parece que essa é uma tendênciainata da nossa espécie.

Já houve vários outros impérios que se pretenderam globais: a Chinaantiga, Roma, o próprio império católico da nossa cristandade tinhapretensão universal. Portanto, essa tendência a buscar a unidade doplaneta Terra é uma velha aspiração da humanidade e vem se mani-festando das mais variadas formas, mesmo antes do capitalismo.

Existe um novo tipo de globalização, que tem características pró-prias da nossa época e não pode ser reduzido a uma armação políti-ca, a uma estratégia política de dominação da Roma moderna. Ameu ver, ele é o resultado de uma série de fatores interdependentes.O fator mais importante é político, conseqüência da crise do capitalis-mo e do socialismo real, nas décadas de 1960 e 1970, e da luta declasses dentro do capitalismo ou da luta de classes internacional, ouseja, da disputa entre as duas visões – capitalista e socialista –, quelevaram a uma crise brutal tanto do lado do socialismo real como dolado do capitalismo, exigindo das forças produtivas, da forma de pro-duzir, da forma de criar e dividir riquezas, recursos cada vez maissofisticados. Do lado do capitalismo há o desenvolvimento de recur-sos desse tipo, que foi mais rápido e derrotou o socialismo real.

O segundo fator, conseqüência do primeiro, é o domínio da técnica,produto de revoluções tecnológicas no campo da comunicação, dainformação, do transporte, que deram condições de produzir e criarriquezas de modo completamente diferente do que tínhamos anteri-ormente, antes da década de 1950.

E há também um terceiro fator, que é a revolução cultural de 1968,que começou nos movimentos estudantis mas depois se tornou clara-mente um movimento cultural. Não era um movimento econômico. Arevolução de 1968 se desdobrou em teses completamente novas, que

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passavam por cima e por fora da luta de classes tradicional: a ecolo-gia, o feminismo, o pacifismo e a primazia dos direitos humanos, quesão seus quatro maiores frutos.

Então, foi o cruzamento desse três fatores – política, tecnologia ecultura – que construiu essas saídas nas quais hoje estamos imersos,a chamada globalização do final do século XX ou do começo doséculo XXI.

Articulação internacional – Há algumas tendências importantesnesse tipo de globalização que é preciso identificar. Uma delas é atendência à mundialização de uma série de fatores econômicos, polí-ticos e sociais, e ao mesmo tempo o reforço simultâneo e paradoxal –ou não-paradoxal – da necessidade da identidade local e da manuten-ção dessa identidade, com a sobrevivência de grupos, de pessoas, deentidades. Essas duas características são intrínsecas à atualglobalização e levam em muitos casos ao despertar de nacionalis-mos, muitas vezes ultradireitistas. Mas é importante perceber queisso não é contraditório com esse processo de globalização.

Uma terceira característica da globalização atual é o aparecimentode vastas áreas no mundo desconectadas dos interesses do capitalis-mo global, as quais podemos chamar de excluídas. É o “Quarto Mun-do”, são locais em que prevalece uma nova tendência importante,que é, por um lado, a mundialização do crime e, por outro, a constru-ção de comunidades autônomas e independentes que se excluem doprocesso, caso, por exemplo, dos zapatistas no México, cuja propostaé política, ou do Taleban, no Afeganistão, cujo fundamento é religio-so. Porque estão na faixa dos excluídos, eles não afetam e não preju-dicam a reprodução do modo de produção novo e globalizado, salvopor ações diretas desesperadas e autolimitadas.

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Tenho insistido há alguns anos que não se podem enfrentar as tare-fas e os desafios mais importantes, seja em nível local, seja em nívelmundial, se não houver uma articulação internacional para discutir epropor saídas a longo prazo. Soluções nacionais, específicas, separa-das para problemas desse tipo não são possíveis. Vejamos uma ques-tão essencial para nós: os direitos dos trabalhadores. Se um país comoa França, por exemplo, sair na frente implantando as 35 horas detrabalho semanais, pode ter prejuízo econômico. Ou seja, ou a lutapelos direitos trabalhistas, pela manutenção da estabilidade no em-prego, do emprego decente, se faz em nível internacional, ou não teráeficácia e sustentabilidade.

O mesmo se dá em relação à defesa do meio ambiente. Qualquerum que faça uma legislação mais rigorosa em defesa do meio ambi-ente pode ter que arcar com o prejuízo econômico. Portanto, em re-lação aos direitos dos trabalhadores, à defesa do meio ambiente, aopróprio Estado do bem-estar social e às lutas contra epidemias, con-tra a fome, e para se ter acesso às tecnologias essenciais para aprodução, deve-se buscar uma articulação mundial, com regulaçõesinternacionais, que permitam a homogeneização desses tipos de pro-cedimento no mundo. Deve haver, volto a insistir, tanto a perspectivanacional como a internacional.

Os cenários possíveis diante desse quadro são vários, podemos es-pecular à vontade. A primeira possibilidade é que essa globalização eessa regulamentação vão gerar uma espécie de pax romana a ser-viço dos Estados Unidos, consolidando sua supremacia.

A segunda possibilidade é o cenário dos blocos. Cada grupo depaíses procura a sua turma e busca, dentro dela, fazer as regulaçõese lutar comercialmente contra os outros grupos. É o caminho maiscurto para a guerra de todos contra todos. Já se viu isso na Europa

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no começo do século e parece que ainda hoje é a tendência maisforte – a tentativa de se agrupar –, mas isso vai dar em guerra co-mercial, um passo para descambar para a guerra propriamente dita!

O terceiro cenário, no qual acredito, apesar de muitos o considera-rem utópico, é apostar na possibilidade de dialogar e construir novoscaminhos, a partir de um trabalho já feito pela Organização das Na-ções Unidas (ONU). A própria ONU já é um esforço desse tipo. Comuma ONU democratizada, expandida, ampliada, podemos construir aconvivência das nações. É claro que isso só ocorrerá com disputa,com diálogo, em busca da construção de algum tipo de autoridadeinternacional que seja de fato democrática e em torno da qual sepossam estabilizar regulações mundiais, de direitos ambientais, direi-tos trabalhistas, de saúde, de previdência, ou seja, a construção doque eu chamo de Federação Democrática Internacional – a partir doaprofundamento do trabalho da ONU. E, a partir de um horizonte des-se tipo, é necessário se reposicionar, reavaliar completamente a es-tratégia que se vai ter em cada país. Os países, as nações, os Esta-dos nacionais não vão desaparecer. Só pode haver uma Federaçãode Nações – isso é óbvio – se existirem nações como governo, comoproposta, como povo, como democracia. Sou a favor de que se lute,se reconstrua e se mantenha a convivência democrática que se cons-truiu em cada país, mas com a perspectiva do entendimento, dainterdependência democrática, construída em nível internacional.

Autoridade democrática mundial – Essa proposta, para nós queestamos num ponto excêntrico e periférico, às vezes é difícil devisualizar, mas em nível mundial tal utopia – ter uma autoridade inter-nacional democraticamente construída e, ao mesmo tempo, mais im-portante ainda, ter uma cidadania mundial, com valores, cultura,

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organizações independentes (dos trabalhadores, da classe média, dasfeministas, dos pacifistas, dos ecologistas) se espalhando, atraves-sando todos os países – é o maior fenômeno da modernidade, algoque está se espalhando com muita rapidez.

Exemplo disso é o Fórum do Milênio, que aconteceu em 2000 nacidade de Nova York. Foram milhares de entidades que formularamuma pauta imensa – desde as questões da mulher, da ecologia, dosdireitos sociais, do combate à pobreza, até a questão dos direitos tra-balhistas – que está sendo articulada no mundo inteiro para a demo-cratização da ONU. Essa pauta inclui também mudar o Conselho deSegurança – que ainda é um resquício da Segunda Guerra Mundial,com o predomínio da China, dos Estados Unidos e da Rússia –, criarum Parlamento Mundial proporcionalmente representado, ter um Tri-bunal Penal Internacional, em que criminosos – não Estados, mascriminosos mesmo (ditadores, presidentes, generais, responsáveis porcrimes, de genocídio e de agressão à humanidade, contra outros pa-íses, contra minorias e alvos civis) – possam ser julgados por umpromotor independente, eleito pelo Parlamento Geral da ONU, e nãopelo Conselho de Segurança etc.

Há um movimento, no mundo inteiro, em direção à constituição deuma autoridade democrática em nível mundial, que permita “anco-rar” os direitos sociais e trabalhistas de forma homogênea e, ao mes-mo tempo, colabore para a construção desse movimento pela cidada-nia mundial, com suas organizações autônomas e independentes.

É claro que o processo de globalização tem um componente econô-mico fundamental, e que neste campo o capital financeiro, pelas suaspróprias características, se apropriou imediatamente das tecnologiasmodernas e as têm levado às últimas conseqüências – por isso ele estána frente e é predominante. Mas eu insisto: entre a economia, a polí-

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tica e o fuzil, o que vamos escolher como caminho para construiruma nova convivência da humanidade? Eu prefiro escolher o cami-nho do meio: a política. Nem a economia, que é a barbárie, a lei domais forte – e que estamos vendo predominar nesta globalização fi-nanceira atual –, nem o fuzil, que é a lei da violência organizada.Vamos escolher a política, a discussão, vamos escolher construir oentendimento entre as nações, entre a humanidade.

Quero ressaltar que de fato temos de analisar o que foram as revo-luções russa, cubana e chinesa, porque elas são as nossas revolu-ções, são a nossa história, a nossa tradição. Mas também defendoque se analisem as experiências da União Européia, porque lá está seconstruindo um novo caminho. É claro que ainda prevalecem os inte-resses econômicos, mas é uma coisa fantástica, porque eram povosque se matavam diuturnamente. A história da Europa é uma históriade rivalidades cruéis, e, no entanto, por questão de sobrevivênciapolítica e econômica, ali está se construindo um tipo de Estado quenão é federação ou confederação, mas uma espécie de Estado inter-ligado, em que o poder local tem uma influência tremenda, em razãodo conceito de “subsidiariedade” – ou seja, aquilo que pode ser feitopelo nível local não deve ser feito pelo nível intermediário nem pelonível global, o que dá ao poder local um grande peso.

Sugiro que em outros seminários estudemos a União Européia, suasformas de gestão, suas formas de convivência econômica, porqueme parece que lá pode estar surgindo um novo tipo de administraçãoque pode ser aproveitado pelo mundo inteiro.

Para encerrar, gostaria apenas de dizer uma coisa. Nos últimosanos, assistimos a uma mudança brusca de toda uma legião de pes-soas que se diziam socialistas, que dormiam com os livros de Marx ede Mao debaixo do travesseiro. Quando o socialismo real ruiu, elas

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deixaram de ser socialistas. Eram tão dogmáticas, seguiam tão à ris-ca aquela “bíblia vermelha”, que quando tal “bíblia” ficou inativa elasa abandonaram, viraram outra coisa qualquer.

Não é o nosso caso. Espero que cheguemos todos à idade da Con-ceição com o seu mesmo ardor juvenil, defendendo o socialismo. Eufarei isso à minha moda, porque agora, felizmente, não há mais quempretenda dizer qual é o socialismo verdadeiro e qual o falso.

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Globalização e hegemonia norte-americana – Felicito a todos nóspor termos feito estes seminários sobre socialismo – afinal, já eratempo. Não fosse por outro motivo, pelo fato de que muita coisaindicava que o século XX seria o século do socialismo, e ele terminoucom o socialismo derrotado. Acho que só teremos sentido como par-tido se formos o partido do socialismo, o partido da ruptura com ocapitalismo. Democráticos e liberais, por mais radicais que sejam, hámuitos por aí. Estaríamos nadando contra a maré se não buscásse-mos elaborar projetos alternativos.

As previsões das teorias do imperialismo foram todas acertadas,infelizmente: duas guerras mundiais, contradições interimperialistas,mas um dos desdobramentos foi justamente aquilo que Lukács cha-mou de “atualidade da revolução” – com a vitória da RevoluçãoRussa. Isso desapareceu com o fim do chamado “campo socialis-ta”. O que quer que pensemos da China e de Cuba, a verdade é quea tarefa atual dos socialistas é lutar para que o socialismo volte aser uma atualidade histórica, não apenas uma referência doutriná-ria. E temos muitos elementos para isso. Não só as experiências

ComentáriosEmir Sader

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derrotadas, não apenas porque foram derrotadas, mas também assuas conquistas, e também temos as contradições múltiplas do ca-pitalismo. Porque, afinal de contas, o socialismo não é uma socie-dade utópica, ela nasce como anticapitalismo, como negação e su-peração do capitalismo. Assim, falar de socialismo antes de tudo éfalar do que é o capitalismo hoje.

Ou seja, considero que é nossa tarefa retomar o elo entre capitalismoe socialismo. Em relação ao tema proposto para hoje, tenho a impres-são de que ao se falar em “globalização e socialismo” está se pensan-do na internacionalização capitalista na sua etapa histórica atual e namaneira como retomamos o elo de construção do socialismo.

É fundamental falar de socialismo, mas já seria muito bom se falásse-mos mais sobre o capitalismo, pois, afinal de contas, é daí que podemosrecolher as contradições, os aliados, os inimigos etc. para reconstruiruma alternativa socialista. Temos que insistir em chamar pelo nome otipo de sociedade que temos, para não perder o contato com a realidadea partir da qual podemos construir uma alternativa.

Eduardo Jorge afirmou que é difícil pensar a solução de qualquer dosprincipais problemas do mundo sem pensar a sua dimensão internacio-nal. Eu diria mais do que isso: é difícil pensar os principais problemasdo mundo de hoje fora da hegemonia atual dos Estados Unidos – comoquer que a chamemos. Ou seja, no marco histórico geral, falar deglobalização é totalmente insuficiente. Daria a idéia de que é simples-mente um novo marco de internacionalização do capitalismo em escalamundial. Certamente também é. Mas é bobagem ficar comparando aatual situação com a do começo do século. A comparação deve serfeita com o período histórico anterior, em que houve evidentementepolíticas regulacionistas de proteção do mercado nacional. Então, emrelação a isso, claro que é uma etapa histórica de internacionalização

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maior das relações econômicas, mas considero que essa definição éinsuficiente, temos que pensar as relações de poder em escala mundi-al, as relações hegemônicas no mundo atual, o bloco de forças que nomundo, hoje, não é dirigido apenas pelos Estados Unidos – é dirigidopor eles, mas engloba também as grandes potências capitalistas. Éesse o marco com o qual temos de nos confrontar.

Ou seja, não basta pensar que as soluções são internacionais, mascontra quem temos de lutar para que elas sejam possíveis, tenham oobjetivo de defender o emprego, de proteger o meio ambiente e, muitomais do que isso, de construir um mundo novo.

Hegemonia dos Estados Unidos – O que marca o momento atualnão é a globalização, é a hegemonia unipolar dos Estados Unidos. É umaobviedade dizer algo assim, mas às vezes deixamos essa questão umpouco de lado. Sem pensar sobre isso é difícil inserir cada temática damaneira devida, com a correlação de forças real que existe. Podemostender a pensar, em primeiro lugar, em soluções muito fáceis. A democra-tização da ONU é ótima, mas é preciso avisar os norte-americanos, porquequando eles não têm maioria na ONU, atacam com a OTAN (Organizaçãodo Tratado do Atlântico Norte); se não têm maioria com a OTAN, atacamcom a Inglaterra; se não têm o apoio da Inglaterra, atacam sozinhos. Ademocratização da ONU é uma solução boa, é um objetivo final, mas quala relação de forças, com quem vamos nos aliar, que espinha dorsal épreciso quebrar para chegar até aí? Isso passa por filtrar relações depoder, relações da mercantilização capitalista em escala mundial. Esse éo marco em que temos de pensar, levando em conta a força do capitalis-mo norte-americano e tudo o mais, mas também as suas contradições.

Temos de pensar a força do capitalismo do ponto de vista econômi-co, a força política dos Estados Unidos, a única potência mundial com

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interesses em todos os lugares do planeta. Eles demonstraram umgrande potencial de unificação política na Guerra da Iugoslávia, ar-gumentando que já não se tratava de interesses econômicos, mashumanitários. Com esse discurso conseguiram convencer grande parteda intelectualidade de esquerda da Europa. Então, os Estados Unidosdetêm um potencial político-ideológico extraordinário, assim como umagrande capacidade de unificação – mesmo quando não integram aChina e a Rússia, eles as neutralizam, e de alguma maneira acabampor incorporá-las.

Além disso, os Estados Unidos possuem um poderio militarinquestionável. E, como mais um elemento, talvez mais importante doque os anteriores, existe a questão da hegemonia ideológica, a hegemoniados meios de comunicação no mundo. Os Estados Unidos não fabricammais aparelhos de televisão, mas produzem 70% das imagens que sevêem no mundo hoje em dia. Ou seja, na verdade exportam valores,modalidades de consumo, critérios estéticos – tudo o que podem. Issorepresenta uma totalidade cheia de contradições, porém nunca se en-frentou algo tão articulado nos períodos históricos recentes da humani-dade. Sem pensar este marco, é difícil imaginar como vamos conseguirnos articular e construir uma força alternativa, anticapitalista.

Claro que não há nenhuma solução mágica. Temos de considerarque os problemas do socialismo no século que passou não estavamem Moscou, Pequim ou Havana, mas em nossa incapacidade de cons-truir uma força anticapitalista e socialista em Tóquio, Nova York,Londres, Paris etc. Portanto, não dá para pensar a questão do futurodo socialismo apenas na sua periferia – se vamos retomar, no melhordos casos, o drama da Revolução Russa, que, ao não ser resgatadapela revolução na Alemanha ou em algum outro país do centro docapitalismo, ficou sozinha e teve de alguma maneira o seu destino

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quase que traçado, do ponto de vista econômico, pelo menos no seuisolamento, ao não se dar a revolução alemã em 1919-1921. Então,temos que pensar uma estratégia que, embora conte com forças es-senciais no Sul do mundo, naquela parte que está excluída dos trêsmegamercados mundiais, nos articule de alguma maneira com forçasque renasçam no centro do capitalismo.

Alianças internacionais – Podemos começar com coisas muito pe-quenas: teremos eleição presidencial em 2002, na qual temos chances deobter algum acesso a instrumentos de poder fundamentais, como aindasão os Estados nacionais – no caso do Brasil. A questão de acumularforças em escala internacional começa aqui, pela nossa casa. Na verda-de, se tivermos assinado o acordo com o Fundo Monetário, se a criaçãoda Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) for estabelecida daforma como está sendo proposta, se não tivermos alternativas de forta-lecimento do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e se não encararmosde novo, agora de maneira muito mais dura, a ofensiva norte-americanapara consolidar a sua hegemonia na América Latina, o que iremos fazercom a presidência, se eventualmente vencermos em 2002? Não queroreduzir as coisas a isso, mas estes são elementos a mais que se sobre-põem como limitações para construir uma alternativa, eu já nem diriaanticapitalista, mas de radicalização da democracia, com uma lógica con-traditória com o capitalismo.

Em suma, o drama argentino é o drama brasileiro. Se a Argentinasair da paridade, ela irá ou para a dolarização ou para uma moedaúnica regional. Tomando isso como um problema deles e não nosso,estamos favorecendo a dolarização, que abrirá o caminho, definiti-vamente, para a ALCA na América Latina. Então, uma saída óbvia éa estratégia internacional de alianças, mesmo regionais. Sabendo que

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o Mercosul é limitado, temos que pensar em alternativas a ele. Maseste deve ser um tema nosso, hoje – e acho que aí o modelo euro-peu também não serve, é um modelo que começou com a unifica-ção monetária mas pode ter muitas outras dimensões –, e se nãoencararmos como um problema nosso estaremos, na verdade, cri-ando uma relação de forças extremamente desfavorável para o Bra-sil no marco internacional.

Mas é claro que a questão da ALCA não é o único tema, embora sejaum tema de aliança importante, regional, com prazos determinados, eque vai criar uma correlação de forças muito difícil para nós em escalamundial. Essa é uma questão que não tem a ver com socialismo, mascom resistência à modalidade de internacionalização capitalista, que re-cairia com uma força brutal sobre nós, porque na verdade o grande butimda ALCA para os Estados Unidos é o Brasil. Então, é um tema imediato.Pensar hoje em resistência à internacionalização capitalista e norte-ame-ricana no mundo é pensar, antes de tudo, numa estratégia em nível regi-onal, em nível de fortalecimento imediato do Mercosul e de resistênciaaos projetos da ALCA.

É claro que o nosso marco de aliança é mais amplo, é o chamado Suldo mundo, que engloba 85% da população do planeta, e no qual serepartem pessimamente 15% dos recursos do mundo. Também é umaestratégia de resistência: não é o mundo pobre, do sul do universo, quevai ter condições de criar sozinho uma sociedade socialista. Mas, senão brecarmos de alguma maneira as formas de avanço damercantilização mundial, não teremos condições de acumular forçaspara depois construir uma alternativa anticapitalista e socialista.

Temos então, em países como a China e a Índia, que se protegemmuito mais do que nós desses mecanismos de globalização, aliados im-portantes, porque, afinal de contas, estas grandes potências do hemisfé-

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rio Sul estão todas excluídas, de alguma maneira são vítimas desse pro-cesso de globalização mundial. Então, nossa política internacional, nosâmbitos regional e do Sul, é um ponto de apoio fundamental para conse-guirmos avançar.

Orçamento participativo e sem-terras – No Primeiro Mundo,temos na França uma variante dentro da social-democracia, que nosinteressa basicamente pela política de redução da jornada de traba-lho sem redução dos salários, na contramão da chamada “flexibilizaçãolaboral”, um dos itens para os quais o pensamento único consideravaque não haveria alternativa. Interessa-nos também a resistência fran-cesa ao Acordo Multilateral de Investimentos (AMI). Não acho queos franceses sejam irresponsáveis, menos ainda o capitalismo fran-cês. Com a política de redução da jornada de trabalho, não houvefuga de capitais, ao contrário, chegaram lá capitais da indústria japo-nesa. É que a taxa de lucro que eles têm é tão grande que não lhescusta tanto, embora a contragosto, reduzir a jornada. Esse modelo,ainda que embrionário, tem elementos que podem ser incorporadosao que deve ser o nosso modelo. Se der certo, contradirá, no centrodo capitalismo, as teses da revista Economist, do Banco Mundial, doFundo Monetário Internacional. É um tipo de “gestão social da cri-se”, não apenas porque age pelo lado da diminuição da jornada detrabalho, mas também pela incorporação dos jovens ao mercado detrabalho, da criação de novas profissões subsidiadas pelo Estado; oEstado auxilia pequenas e médias empresas a criar empregos e jogao problema para as grandes empresas negociarem com os trabalha-dores. Eu acho que é um marco positivo, não se reproduz tal e qualna periferia, mas creio que é um aliado central que temos que levarem conta. Não é a “terceira via”, não é o modelo “anglo-saxão”, não

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é a “flexibilização laboral”, então, acho que é um aliado nosso do qualprecisamos terrivelmente, como precisamos da AFL-CIO (AmericanFederation of Labour – Congress of Industrial Organizations), queestá com uma direção renovada. Temos que buscar aliados no centrodo capitalismo porque, na verdade, é de lá que podem sair referenciaisfundamentais para conseguirmos construir uma força alternativa. Osmovimentos surgidos da Ação pela Tributação das Transações Fi-nanceiras em Apoio aos Cidadãos (Attac), que se manifestaram des-de Seattle, são, desse ponto de vista, o renascimento de um aliadoestratégico para nós no centro do capitalismo.

Existe uma batalha dramática, na qual estamos engatinhando ainda,que é a batalha ideológica no mundo. Os Estados Unidos hoje em dianão impõem apenas uma maquinaria de indústria cultural, mas tam-bém valores que contaminaram o mundo inteiro. O tema do “fim dahistória” não é brincadeira, não é a idéia de que os acontecimentoshistóricos acabaram, mas de que toda a história, dali por diante, sedaria no marco da democracia liberal e da economia capitalista demercado. E é o que existe hoje no mundo, praticamente. Até a ocor-rência das manifestações de Seattle e tudo o que se seguiu, quemresistia à globalização liberal eram Estados fundamentalistas, que fun-dem Estado e religião.

A França é um Estado nacional, por isso é um exemplo importantepara nós, mas o marco histórico que eles desenharam é o da “democra-cia liberal”. Se incorporarmos e fizermos dessa idéia o nosso marco,estaremos nos subordinando hegemonicamente ao que eles querem. Ouseja, é preciso construir modelos alternativos democráticos. Daí por queas propostas do orçamento participativo são fundamentais, porque setrata de um embrião de reforma democrática do Estado, de socializaçãoda política e do poder. É algo muito mais importante que a simples políti-

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ca regional. Está na contracorrente do que acontece no conjunto do Bra-sil e do mundo, mobiliza a cidadania.

Não adianta querermos amanhã fazer uma campanha de massa ouganhar a eleição – e podemos ganhá-la – com essa massa absolutamen-te desmobilizada. Se vencermos, iremos encontrar uma quantidade enormede obstáculos nacionais e internacionais para colocar em prática nossaspropostas, romper relações de poder, para realizar um programa demo-crático-popular; com que mobilização, com que consenso ativo vamoscontar se não conseguirmos mobilizar as massas? Este é um tema querenova aquela idéia do “modo petista de governar” – que tinha muitomais a ver com a reversão de expectativas. Este é um tema fundamen-tal: democratização estrutural do Estado por meio do orçamentoparticipativo, que é um embrião fundamental e se relaciona justamentecom a mobilização que hoje em dia não existe no mundo. No Brasil,vamos lutar contra um grau de desmobilização popular extraordinário, eas prefeituras, os programas de democracia participativa, são o grandemote que temos para a mobilização dos cidadãos. Temos um outro ele-mento importante, de certa maneira também um elemento alternativo,que são os assentamentos dos sem-terra.

No Brasil, nos anos 90, se conseguimos avançar foi em razão de doiselementos de esfera pública: o orçamento participativo e os assenta-mentos dos sem-terra. São experiências ainda periféricas, especial-mente os assentamentos, mas penso que se não criarmos esses embri-ões mobilizadores não conseguiremos ter a força social e política paraconseguir chegar lá.

Guerra ideológica – Voltando à questão da luta ideológica, o déficitextraordinário que temos pelo menos desde a campanha de 1989 é aausência, não digo de uma imprensa partidária, mas de uma imprensa de

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esquerda que chegue aos formadores de opinião no Brasil. Continuamoshoje, 20 anos depois da fundação do PT, a depender dos espaços que agrande imprensa nos concede, quando concede, da maneira que con-cede, deformando seu conteúdo da maneira que queira. Hoje temosmaneiras de multiplicar isso por meio da virtualidade, mas só para ma-teriais escritos, para formar pessoas que sejam militantes anticapitalistassocialistas. Este é um vazio que não há o que supra, e nós temos con-dições de superar isso. Temos força suficiente, qualidade suficiente(de jornalistas, de intelectuais, de militantes). Sem isso não vamos criara nossa força ideológica alternativa. Não estamos formando novasgerações de militantes, não estamos criando combatentes pelo socia-lismo, anticapitalistas, e até mesmo que lutem pela democracia e pelomovimento popular em geral.

A verdade é que, em escala mundial, hoje em dia, há uma guerra ide-ológica em que os Estados Unidos nos dão um banho. Econômica, políti-ca e ideologicamente. E estamos despreparados em relação a isso. Quaissão as nossas teses políticas em relação à democracia liberal, à econo-mia de mercado etc.? Esses temas são fundamentais, sem eles não sequebra a espinha dorsal do capitalismo, não se acumula força alternati-va. E ainda mais: às vezes se somam a isso pronunciamentos em nossopartido de que não queremos o socialismo. Então estamos lutando porquê? Melhorar um pouquinho o capitalismo? Essa é a mesma política doBanco Mundial. Vamos melhorar as conseqüências nefastas de uma eco-nomia inevitável em uma sociedade que tem de ser essa que está aí?

Temos nesse campo dificuldades enormes. As editorias internacionaisda nossa imprensa são muito ruins! No entanto, todos os grandes argu-mentos do nosso debate nacional vêm da temática internacional: “Por-que o crescimento americano...”, “porque a China...”, “porque a Alema-nha...”, “porque a Inglaterra...”, “porque Cuba...” etc. E não temos ins-

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trumentos nossos para contradizer isso. O leitor de jornal encontra oquê? Nos editoriais e nos colunistas, argumentos internacionais. Ele nãotem informação, não consegue acompanhar os mecanismos para ter umacultura política geral e poder rebater. No entanto é vítima daquelas cam-panhas sistemáticas. E não temos a nossa imprensa para dizer: “Não ébem assim que acontece em tal lugar...”. É fundamental termos elemen-tos para o debate ideológico-político.

Estou apresentando este tema porque se não nos armarmos ideologi-camente não haverá luta pelo socialismo nunca. Então, sem essa dimen-são da luta ideológica, vamos ser puxados pelas “ondas”, pelas temáticasdeles, e estamos sendo, na verdade, subordinados ideologicamente tam-bém. Temos que dar respostas aos temas imediatos, dizer que queremosum outro tipo de sociedade, um outro tipo de país, um outro tipo de Brasil,mesmo que não tenhamos ainda todos os instrumentos, os elos, paradizer aonde chegaremos. Podemos falar de socialismo. Vamos falar desocialismo. Para sair do neoliberalismo vamos ter de passar por um pe-ríodo transitório, evidentemente, recompor as classes sociais, recompora capacidade de regulação do Estado, recompor a esfera pública. É umprocesso de acumulação. Não vamos simplesmente dizer: “Queremosum Brasil socialista”. Vamos falar: “Que Brasil democrático queremos,que Brasil humanista queremos, que Brasil solidário queremos?”. Issotem faltado para nós.

Felizmente, este não foi um debate sobre um futuro utópico ou umamelancolia do Estado cepalino. Seriam alternativas muito ruins. AqueleEstado não volta e nem devemos nos refugiar num futuro longínquo.Evidentemente, temos que recolher experiências do passado, hoje emdia não há soluções importantes que possam ser implementadas apenasem escala nacional. O Estado nacional continua a ser o momento dearticulação da luta política e da luta social, a função essencial de integração,

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de incorporação da cidadania é do Estado nacional, mas a nossa estraté-gia tem que ser internacional, senão vamos estar numa inferioridade bru-tal em relação ao capitalismo, porque as soluções dele são internacio-nais. Não é que nossos programas possam ser colocados em práticaimediatamente, mas eles têm que apontar nessa direção – mercado detrabalho, proteção do meio ambiente, democratização dos meios de co-municação –, senão vamos estar lutando, na verdade, em função desoluções utópicas, em vez de tentar projetar soluções coordenadas deforma internacional para o futuro.

Cultura política internacional – Sem dúvida, a democratizaçãodas Nações Unidas é importante, mas somente se for acompanhadade uma série de questões que tocam em eixos fundamentais, como, porexemplo, acabar com o direito de veto das grandes potências.

Temos, na verdade, que pensar as relações de força: com quem nosaliamos, contra quem e em que circunstâncias.

A Guerra do Kosovo representou uma vitória muito importante paraos Estados Unidos porque a Europa se ajoelhou, aceitou fazer um bom-bardeio da OTAN – e não foi por causa do regime de Milosevic, que defato era um regime ditatorial e tudo mais. A realidade é que os EstadosUnidos conseguiram impor aquela solução e convenceram uma parteimportante da intelectualidade e da opinião pública européia, e isso éuma derrota grave, porque nos isola, consolida uma hegemonia norte-americana do pior estilo. E não na linha da negociação, que o EduardoJorge propõe, mas na linha do fuzil – no pior estilo possível.

Para concluir, eu diria que está faltando para nós uma cultura interna-cional – a cultura política hoje, em grande parte, é uma cultura internacio-nal. É saber o que se passa em cada lugar do mundo, pelo menos emrelação às experiências mais importantes. Não vamos conseguir avan-

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çar se não tivermos uma imprensa que faça um acompanhamento. Porexemplo, ao se noticiar “A Coréia do Sul saiu da crise”, é preciso expli-car como isso aconteceu. A grande imprensa noticia como ela entrouem crise, mas qual foi a modalidade adotada, como a Coréia do Sulchegou a ser o “milagre” que prometeram que o Brasil ia ser? Esseacompanhamento é que dá a verdade dos fatos. Mas só noticiam nummomento determinado para dizer: “Acabou o ‘milagre’ asiático”. Essa éa nossa responsabilidade: dar aos militantes e à opinião pública em gerala versão histórica, concreta, dos fatos. Senão vamos estar na linha dapós-modernidade, da instantaneidade, que é o que a imprensa acaba porfazer – os flashes imediatos.

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Maria Geralda de PaivaAcho que o nosso grande desa-

fio é definir qual o socialismo quequeremos e como vamos pautaressa discussão, hoje, no partido, quecada vez mais se ocupa só da“agenda eleitoral”. Além disso, éimportante nos perguntarmos porque muitos intelectuais que parti-lham a visão de alguns grupos queestão dentro do PT não têm dado acontribuição que deveriam para aconstrução dessa visão.

Max AltmanJohn Gray, um dos ideólogos de

Margareth Thatcher, escreveuum livro que se chama O falso

amanhecer1, em que faz umaanálise muito aprofundada do queocorreu nesses últimos anos, doque o “globalismo” provocou nomundo. Ele cita, entre outros, oexemplo da Nova Zelândia, quetinha um Estado do bem-estarsocial bem desenvolvido que foidestruído pela globalização, como surgimento de bolsões de mi-séria etc. Diz também que aglobalização atingiu o mundo in-teiro, mas de uma forma diferen-te e com resistências em algunspaíses, como, por exemplo, aChina, a Coréia, até o Japão –que tem uma tradição, uma cons-trução de capitalismo distinta, di-

Intervenções do público

1. GRAY, Jonh. O falsoamanhecer. Rio de Janeiro,Recod, 2000.

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ferente –, e em alguns outrospelo mundo. Então a globalizaçãonão se deu com a mesma ênfa-se, com o mesmo estilo, em todoo mundo.

Como se contrapor a essaglobalização? O que ela cria de ex-clusão, de miséria, de desempre-go no mundo inteiro, onde ela sur-ge, é aí que está o “caldo de cultu-ra” para a reação.

É evidente que existem obstá-culos muito grandes a serem en-frentados – não só no aspecto ide-ológico. Eu menciono, talvez comoo mais importante, a unipola-rização do poder, hoje detido pe-los Estados Unidos.

Estou de acordo com a tese le-vantada por Eduardo Jorge de quedeve haver uma articulação mun-dial prévia para que se possa avan-çar no sentido de resistir a partirda luta política concreta de deter-minado país. Nós estamos nos pro-pondo a isso. O PT é uma novida-de política no mundo inteiro e sepropõe a isso. É uma das suas ra-zões de existência criar uma re-

sistência a esse tipo de modelopolítico, social, ideológico, econô-mico que está se instalando nomundo. E existem resistências pon-tuais. Vou mencionar um país quetem sido muito pouco citado aqui:Cuba. Há 40 anos com bloqueioeconômico, concreto, palpável, re-siste ideológica e politicamente aosEstados Unidos, que estão a 90milhas da sua costa. Resiste e criauma sociedade – que pode ter osseus defeitos –, cria um sistema euma ideologia diametralmenteopostos à globalização.

Há outros países que iniciam umprocesso de resistência – como aVenezuela – ou reação – como aque houve no Equador e em al-guns outros países da América doSul – ao avanço da globalização.

Não vamos dar por definida essaetapa histórica. Existe a possibili-dade de resistir. Como vai ser fei-ta essa resistência é um problemaque nos compete. Devemos con-tribuir para essa resistência mun-dial, e considero que o papel doPT, num processo histórico de lon-

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go prazo, com as conquistas par-ciais que ele vem obtendo, é im-portantíssimo no palco mundialantiglobalização e no sentido deuma sociedade socialista – que éuma meta que está mais distante,mas da qual podemos, passo a pas-so, nos aproximar. Essa é a consi-deração que eu gostaria de fazer.

Darcy PassosSou economista e advogado, duas

profissões bem execradas. A eco-nomia porque trata da infra-estru-tura e o direito porque trata da su-perestrutura. Então, vivo em mimo dilema dessa ruptura. A inter-venção de Maria da ConceiçãoTavares confirmou a esperançaque eu tinha, ou seja, de que naeconomia – que é uma ciência hu-mana, e não uma ciência exata,embora métodos quantitativistas le-vem a crer isto – a apresentaçãode determinadas soluções como asúnicas possíveis é uma opção polí-tica. Ou seja: é possível forjar daeconomia soluções aparentementeexatas para convencer os demais,

politicamente, de que a única solu-ção viável é aquela.

Ao mesmo tempo, tenho muitomedo quando se esquece o planoda economia. Ele tem restrições.São as opções políticas que vão des-cobrir no plano amplo da economiaquais as mais adequadas para cer-tos objetivos políticos. Há fatosglobalizantes no mundo, ninguémnegou isso. Só que esses fatos sãodifundidos de maneira ideológica,como Emir Sader denunciou muitobem, para dar a impressão de quesão irreversíveis, incorrigíveis, deque são fatalidades.

Não há nada inevitável para opolítico. Inevitável é a opção políti-ca que transforma a solução eco-nômica opressiva na “salvação”, eisso é o que interessa ao império,como disse Conceição.

Ivan ValenteGostaria de frisar a importância,

como foi lembrado pela mesa, daampla hegemonia política, econômi-ca e ideológica, hoje, dos EstadosUnidos em nível internacional.

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Acho que valeria a pena, nessa dis-cussão sobre o socialismo – que éa discussão sobre a negação do ca-pitalismo, a ruptura com ele, a suasuperação – e sua relação com aglobalização, analisar também oproblema dos Estados nacionais edos projetos nacionais. Parece-meque esta é a grande questão a serequacionada hoje também pela es-querda. Qual é o papel da discus-são de um processo nacional e qualé o papel da luta antiimperialista?Como ela se manifesta hoje? Quepapel cumpre um projeto nacional?

Emir Sader explorou muito bemessa idéia, a partir da questão deonde estão os aliados, hoje, de umprojeto socialista – inclusive no Pri-meiro Mundo e em nosso país. En-tão, atualmente, o que ataca as ba-ses de dominação do império naslutas que se travam nos países ecomo se dá a luta antiimperialista?Porque nós já vivemos uma fase an-

terior, um outro momento históricode luta antiimperialista, em queexistia a expectativa – falsa, naminha opinião – de que haveria umaclasse interessada nesta lutaantiimperialista, um setor da classeburguesa. Acho que isso não exis-te, esta questão está superada, masexistem tarefas nacionais e demo-cráticas que podem, no momentoem que são enfrentadas, causar umprocesso de aceleração histórica eproduzir a movimentação e osurgimento de alternativas socialis-tas mais adiante, a curto prazo,dado o processo de radicalidade emque a própria dominação imperia-lista colocou o conjunto das naçõessubdesenvolvidas.

Então, a minha pergunta para amesa é esta: como vocês tratariamesta questão especificamente – oprojeto nacional e a luta pelo soci-alismo – e como se dá a luta antiim-perialista hoje?

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Vou tentar comentar as ques-tões levantadas tanto pela mesacomo pelos companheiros.

Primeiro, Max Altman: não disseque tinha de haver uma articulaçãomundial “prévia”. Afirmei que de-veria haver uma articulação mun-dial. E falei também – concordan-do com a Conceição – que tinha dehaver uma construção nacional. Ouseja, não falei em articulação “pré-via”, mas sim em uma articulaçãomundial para ter repercussão efe-tiva nos nossos esforços de recons-truir o governo, o Estado, a próprianação. Não acredito em soluçãonacional, isolada. Nenhuma!

Gostaria de fazer alguns comen-tários sobre a intervenção de EmirSader. Na questão da “busca dosaliados”, concordo que deve haveruma articulação que inclua o Ter-ceiro Mundo, e até o “Quarto Mun-do”, mas também a articulação como Primeiro Mundo, que nós despre-zamos por muito tempo e hoje é aarticulação-chave.

O caso da Índia e da China, naquestão de aliados no nosso campo,deve ser analisado cuidadosamen-te. A Índia ser nossa aliada, tudobem, vamos conversar, vamos dis-cutir. Mas a China, é bem maiscomplicado. Nós somos vítimas do

Comentários finaisUm horizonte novoEduardo Jorge

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dumping social, articulado pelo Es-tado chinês, que é bancado por umaditadura. Ou seja, vamos ter comoaliado um partido, um Estado, cujoprojeto nacional prejudica os cida-dãos dos outros países? Que aliadoé esse, se somos tratados como ad-versários? Temos que buscar o diá-logo com “gigantes” como esse, massaber também quais são os objeti-vos estratégicos desses países edesses governos.

Quanto à questão da França, achoque é corretíssimo lutar pela dimi-nuição da jornada de trabalho. Masé preciso que a França imediatamen-te leve esta luta para o ParlamentoEuropeu, para generalizá-la. Este éo caminho no qual quero insistir: to-mar medidas desse tipo só num paísé loucura; é necessário imediata-mente articular a luta internacional!Se a França faz isso, ótimo, corre-tíssimo. Aliás, é bom lembrar quemuitos não consideram de esquerdao governo francês, alguns pensado-res extremados chegam a dizer queele não passa de um “agente doneoliberalismo” na França.

Termino insistindo nesse ponto: nos-so caminho tem de ser o da articula-ção, da reconstrução, de ter governo,de ter política nacional. A tal“mundialização” ou “globalização”,como queiram chamar, tem o momen-to de “internacionalização” e o da“afirmação da identidade”, que é aconstrução nacional. Só pode haveruma Federação Democrática de Na-ções se houver nações. Não podemosdesconhecer nem ficar de fora da ar-ticulação que está sendo feita a partirdos encontros que a ONU tem promo-vido em relação a temas como popu-lação, mulher, habitação, desenvolvi-mento social, meio ambiente, e queestão construindo uma pauta de pro-postas de mudança. Por exemplo,como resultado do encontro sobre de-senvolvimento social foi gerado todoum programa de reorganização e rees-truturação da economia e de prote-ção aos que precisam ser protegidosno mundo inteiro. A pauta está sendoconstruída também nesses fóruns in-ternacionais. Pode estar aí um hori-zonte novo. E sem um horizonte nósestamos perdidos na política.

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No Brasil, a questão de um projetonacional é menos complicada, ape-sar do grau de desnacionalização daeconomia, porque, se o país tiver umgoverno “progressista”, ele vai influ-enciar, automaticamente, pela suaprópria existência, os vizinhos da re-gião, até por seus recursos econômi-cos, por seu peso, por sua transcen-dência no conjunto da área. Este temaestá colocado, ainda que em nívelnacional. Não considero que uma ar-ticulação internacional é necessari-amente prévia, mas faz parte da es-tratégia de um partido de esquerda,de um governo de esquerda, comoelemento fundamental, a questãodas alianças internacionais, da acu-mulação de forças internacional.

Sobre a questão da França, a crí-tica que setores da esquerda fa-

zem ao governo Jospin diz respei-to a sua timidez, mas ele está nocaminho correto, quer dizer, o ca-minho de desmitificar a idéia deque o desemprego é resultado deavanços tecnológicos. Tecnologianão desemprega ninguém,tecnologia diz que uma mercado-ria pode ser produzida com menoshoras de trabalho, portanto pode-se mandar metade das pessoasembora – como se costuma fazer–, ou diminuir a jornada, ou dobrara produção.

Portanto acho que esse é o temaessencial. Então o caminho, no qualse está avançando, é esse: reduzira jornada de trabalho, socializar umbem que não pertence à burguesia,pertence aos técnicos e à experi-ência da classe trabalhadora.

Acumulação de forçasEmir Sader

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Não sou apenas uma economis-ta política, sou uma crítica da eco-nomia política, e tenho feito umaboa força nesse sentido. Fui daeconomia política quando era daComissão Econômica para a Amé-rica Latina e o Caribe (Cepal), masjá a deixei há muito tempo, e te-nho feito a crítica sistemática dealgumas de suas teses. Estudeitodas as experiências comparadasde desenvolvimento econômico,social e político que pude, inclusi-ve a da China. Então, a única coi-sa que quero dizer aos senhores,eu que fui durante anos das Na-ções Unidas, é que se trata de in-genuidade dizer que a salvaçãoestá nas Nações Unidas, que dalivai surgir uma nova pauta mundi-al. A pauta já surgiu há muito tem-po, mas tudo que não interessa aosEstados Unidos é vetado ou igno-rado na ONU. Temos um Tribunal

Internacional, mas ele não pode jul-gar o caso Pinochet porque nãoestá constituído no plano do direi-to internacional, porque os Esta-dos Unidos são contra etc. Alémdisso, as Nações Unidas não fun-cionam melhor porque têm poucosrecursos e uma desproporção en-tre a Assembléia Geral e o Con-selho de Segurança. Os EstadosUnidos eram o maior contribuinteda ONU, no entanto não pagammais às Nações Unidas, e o centroimperial não leva em conta as de-cisões da ONU ou de outros fórunsinternacionais sobre ecologia, mo-vimento de mulheres, racismo eoutros temas que estiveram naagenda de Seattle. Vale dizer: dasmúltiplas redes que acreditam numaresposta da cidadania global aosmales da globalização.

Um breve comentário sobre umaobservação de Emir Sader: não é

Nós estamos na resistênciaMaria da Conceição Tavares

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que não há imprensa de esquerdano Brasil, ao contrário, há uma bru-tal proliferação da imprensa de es-querda. Mas ela está dispersa eatinge apenas pequenos segmen-tos da sociedade ou mesmo do PT.A concentração de poder da gran-de mídia está respondendo à con-centração de poder e à centraliza-ção do capital descrita por Marxcomo tendência, acompanhadapela dispersão dos mais fracos.

Em relação à França, quero di-zer que ela é o único Estado naci-onal de tradição européia que nun-ca, em nenhuma circunstância,comprou ideologicamente a tese doneoliberalismo, que foi capaz de re-tomar a tese do pleno emprego edo keynesianismo, quando supos-tamente Keynes estava morto.Sempre soube que o Estado naci-onal tinha que lidar com os proble-mas dos seus “cidadãos”.

Sobre a China: a razão pela qualos chineses conseguem venderseus produtos a preços irrisóriosnão é apenas a superpopulação dopaís, mas sim a taxa de câmbio

chinesa, que é a mais desvalori-zada do mundo, vis-à-vis qual-quer das moedas internacionais detransação. Além disso, a Chinanão tem mercado livre de traba-lho, exceto justamente nessasdesgraçadas zonas de exporta-ção, onde o trabalho não somentenão é livre como é quase escra-vo. E é isso que vai comê-la pordentro. Com tudo isso, piorou adistribuição de renda. É claro! Lá,como em toda a parte, a distribui-ção da renda e da riqueza pioroupor causa dessa onda de globa-lização recente.

Quanto à pauta que o EduardoJorge citou como exemplo deuma “nova pauta global”, é amesma dessa “pseudoelite ilus-trada” que se chama terceira via,da qual Bill Clinton era o chefe,Tony Blair o coadjuvante eFernando Henrique o “profeta”.Alguns tiveram a cara-de-pau depropor uma “nova esquerda soci-alista” com essa mesma “pautaglobal”, mas defendendo as polí-ticas e “reformas” neoliberais.

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Vamos nos entender: o que real-mente vai nos sobrar como alia-dos na pauta ecológica são as ONGsnorte-americanas e de alguns paí-ses do norte da Europa, não vaisobrar mais nada. A China nãoquer a pauta ecológica – nuncaquis. Mas quer a pauta da defesados seus interesses. É pouco? Não,não é pouco. Não é nossa aliadapara o socialismo, mas para encon-trar um espaço temporário na lutados “fóruns multilaterais” contra oneoliberalismo.

Por que não imitamos os norte-americanos naquilo que eles têm dedemocrático e só imitamos aquiloque eles têm de mercantil e de au-toritário? Essa é a questão. Nãotemos que imitar ninguém. Temos,em todos os países do mundo, queescolher coisas, lutas concretas decada país, e nos aliar àquele temada luta concreta.

O que estou falando é o seguinte:nós temos uma pauta carrega-díssima no plano nacional e regio-nal de movimentos sociais e de lu-tas sociais concretas. Eu acho que

o PT tem bancado a luta social, pormais que alguns militantes achemque isso não ocorre. Quero ressal-tar uma coisa: nós estamos na re-sistência. Nunca, ouçam, nunca ne-nhum dos impérios conhecidos atéhoje teve o poder de dominação queos Estados Unidos têm. Temos quelevar toda a pauta nacional e inter-nacional, isso é óbvio, mas temosque identificar em cada caso os ad-versários principais e os aliadospara cada pauta e ter prioridades.As nossas prioridades são popula-res, democráticas e nacionais. Ima-gino que saindo do plano da “ideo-logia”, e baixando à agenda con-creta, esta venha a ser a da maio-ria do PT. Não existe nenhum alia-do no mundo polarizado eassimétrico, em termos geoeconô-micos e geopolíticos, em condiçõesde conduzir uma luta hegemônicacontra os Estados Unidos. Já hou-ve um, perdeu! Aliás, começou aperder a hegemonia moral do cam-po socialista com as revelações doXX Congresso do Partido Comu-nista da União Soviética nos anos

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50, e no plano geopolítico nos anos60, quando rompeu com a China.Aquela foi a primeira grande fratu-ra do bloco socialista.

A divisão internacional do tra-balho proposta pelos Estados Uni-dos estabelece que nós não pode-mos ser países industriais autôno-mos, só o que eles querem. Entãoa China agora pode? Os cientistasnorte-americanos mais críticos di-zem que o caso da China é de “de-senvolvimento capitalista a convi-te”. Inclusive nas armas e no di-nheiro interno?!

Emir Sader tem razão. Se nãoconseguirmos uma imprensa nos-sa, que informe os militantes, e seos militantes não desenvolverem ohábito de ler, o debate ficará maisdifícil, em particular o do socialis-mo, e também o do entendimentodo capitalismo contemporâneo.

Olhem o que foram as grandesrevoluções industriais e comparemcom isso que está aí, a tal NovaEconomia. Imagine se a questãode o mercado financeiro estarglobalizado se resumisse ao fato

de que agora existem computado-res. Quando existia telégrafo nãoera o mesmo movimento, ao tem-po da pax britânica e do padrãolibra-ouro? Vocês acham que ainternacionalização das telecomu-nicações depende dos computado-res? Não!

Minha crença num mundo melhorpode ser caracterizada assim: um,crítica; dois, desejo, que envolve emconjunto o “pessimismo da razão eo otimismo da vontade” (políticanão-individual); três, é preciso tra-çar um caminho com horizonte delongo prazo sempre acompanhandoa análise de conjuntura. O meu ins-trumento crítico fundamental é acrítica da economia política acom-panhada da geografia e da históriacomo fundamentais para a compre-ensão do presente. Na política te-mos que usar nosso poder localpara fazer transformações. Não éapenas o orçamento participativo;é a radicalização da democracia –a invenção de um novo direito.Nisso estou com o Tarso Genro.Não concordo com ele é na idéia

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de pegar o local e extrapolar parao internacional, minimizando o po-der nacional. Que eu saiba, emâmbito internacional domina amercantilização, o poder do impé-

rio e do dinheiro. E o dinheiro nãoestá necessariamente na mão doimpério, apenas. Com isso estoude acordo. E é daí, entre outrascontradições, que vai vir a crise.

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Foi muito animadora a maneira pela qual decorreram as atividades destaprimeira fase do seminário Socialismo e Democracia, porque houve mui-ta liberdade de pensamento e uma variedade de pontos de vista que meparece muito saudável.

Além disso, deve ser assinalado como positivo o respeito mútuo entreos opositores, comentadores e debatedores sem prejuízo da vivacidade,sem prejuízo das divergências, cada um ouviu as razões do outro. E issoreforça a nossa convicção de que a melhor maneira de chegar a algumresultado válido é levar em conta as diferenças de opinião e assegurar odireito que cada um tem de exprimir estas diferenças.

É claro que tolerância não significa adesão mecânica aos pontos devista alheios. Tolerância é simplesmente o esforço para compreendê-lose a disposição para criticá-los, analisá-los e debatê-los. Essas atitudescontribuem muito, sem dúvida, para desenvolver a consciência crítica,que é o que seminários como este pretendem no partido.

Como foi possível ver, os participantes destas mesas, tanto expositorescomo comentadores, pertenciam a grupos muito diferentes de opinião*.Isto foi planejado. O nosso partido é um partido diversificado e a nossa

Encerramento do primeiro ciclo dosseminários Socialismo e DemocraciaAntonio Candido

* Ver na página 71 oprograma completo doprimeiro ciclo de semináriose seus participantes.

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idéia é que nestes seminários, e nos próximos, devem ser recrutadosrepresentantes de todas as tendências possíveis do partido. E mesmoaquelas que não existem oficialmente, mas que constituem, às vezes,manifestações individuais.

Terminando, em caráter um pouco pessoal, queria aproveitar para fa-zer um esclarecimento, por causa de uma certa tendência que está co-meçando a se manifestar, tanto oralmente como na imprensa. É a de queeu teria sido a figura central e o principal planejador destes seminários.Não é verdade. Nós trabalhamos com uma base de troca permanente deidéias, mas eu diria até que o meu papel foi mais de anfitrião, mesmoporque no caso de um seminário em que predominam os temas de políti-ca, de economia, de sociologia, um crítico literário não é a pessoa maisindicada para comandá-lo. De maneira que fui praticamente um anfi-trião. Eu diria até que fui uma espécie de maestro de banda de música dointerior, que não sabe muito bem o que a banda está tocando mas conti-nua a regê-la assim mesmo, compreendem? Eu diria que quem montou o“coreto”, quem escolheu o “repertório”, quem sugeriu os “executantes”foram, sobretudo, os companheiros Francisco de Oliveira, Paul Singer ePaulo Vannuchi. E nós quatro, cordialmente reunidos, queremos declararque procuramos corresponder o melhor possível à confiança dos quepromoveram estes encontros.

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69SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES nasceu em Portugal, em 24de abril de 1930, e tomou a cidadania brasileira desde 1957. Tem doisfilhos e dois netos. É matemática, economista, doutora e livre docentepela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora titular(aposentada) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pro-fessora emérita da UFRJ (aposentada). Consultora Econômica de diver-sas instituições nacionais e internacionais. Professora visitante por di-versas vezes no Chile e no México. Diretora do Instituto de EconomiaIndustrial (IEI/UFRJ), 1986-88, presidente do Instituto dos Economistasdo Rio de Janeiro (IERJ) por dois mandatos. Recebeu o Prêmio Viscondede Cairú/UFRJ, em 1960, e várias comendas do Brasil e de Portugal. Éautora de vários livros, centenas de artigos em periódicos e revistasespecializadas e, desde junho de 1993, colaboradora regular do jornalFolha de S. Paulo. Foi eleita deputada federal pelo Partido dos Traba-lhadores/RJ para a 50ª Legislatura, no período 1995-99.

EMIR SADER nasceu em 1943 na cidade de São Paulo. Formou-seem filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), onde obteve também

Sobre os autores

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o mestrado em filosofia política e o doutorado em ciência política. Publi-cou, entre outras obras, Século XX: Uma biografia não autorizada – Oséculo do imperialismo (Editora Fundação Perseu Abramo); Estado epolítica em Marx (Cortez); A transição no Brasil: da ditadura à demo-cracia?; Cuba, Chile e Nicarágua: o socialismo na América Latina eQue Brasil é este? (Atual); O poder, cadê o poder? (Boitempo); Oanjo torto: esquerda (e direita) no Brasil (Brasiliense). É coordenadordo Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio deJaneiro (UERJ).

EDUARDO JORGE MARTINS ALVES SOBRINHO nasceu em1949, em Salvador, Bahia. Antes de residir em São Paulo, onde estádomiciliado desde 1971, morou no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiroe na Paraíba. Médico sanitarista, é casado e tem seis filhos.

Militante nos movimentos populares (saúde, habitação, desemprego,meio ambiente, etc.) na questão sindical, na construção de um sistemade Seguridade Social no Brasil e na organização do PT, foi deputadoestadual, constituinte e deputado federal pelo PT. Foi líder da bancada naCâmara Federal em 1992 e secretário de saúde no governo LuizaErundina, na prefeitura de São Paulo (1989-92).

Em 2001 se licenciou de seu mandato de deputado federal (PT-SP)para assumir novamente o cargo de secretário municipal de saúde deSão Paulo na gestão de Marta Suplicy.

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Programa dos semináriosSocialismo e Democracia

realizados no primeiro semestre de 2000

Os seminários foram promovidos pelo Instituto Cidadania, pela Fundação Perseu Abramoe pela Secretaria Nacional de Formação do Diretório Nacional do PT

10 de abril – Socialismo no ano 2000 – uma visão panorâmicaExpositora: Marilena Chaui

Debatedores: Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Garcia

24 de abril – Economia socialistaExpositor: Paul Singer

Debatedor: João Machado

8 de maio – O indivíduo no socialismoExpositor: Leandro Konder

Debatedores: Frei Betto e Lula

22 de maio – Instituições políticas no socialismoExpositor: Tarso Genro

Debatedores: Edmílson Rodrigues e José Dirceu

5 de junho – Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismoExpositor: Francisco de Oliveira

Debatedores: João Pedro Stedile e José Genoino

19 de junho – Globalização e socialismoExpositora: Maria da Conceição TavaresDebatedores: Eduardo Jorge e Emir Sader

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Leia também da coleção

Orçamento particípativo e socialismoOlívio Dutra e Maria Victoria Benevides

Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismoFrancisco de Oliveira, João Pedro Stedile e José Genoino

Economia socialistaPaul Singer e João Machado

O índividuo no socialismoLeandro Konder e Frei Betto

Instituições políticas no socialismoTarso Genro, Edmílson Rodrigues e José Dirceu

Socialismo em discussão