Globalizacao_e_capitalismo_contemporaneo-notas_preliminares_a_partir_da_obra_O_Capital_Financeiro_de_Rudolf_Hilferding.pdf

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    Globalizao e capitalismo contemporneo: notas preliminares a partirda obra O capital f inanceir ode Rudolf Hilferding

    Mauricio de Souza Sabadini (UFES)1

    ResumoDesde sua publicao em 1910, a obra O Capital financeiro de Rudolf Hilferding influencioumuitos autores clssicos e continua a influenciar pesquisadores contemporneos acerca de vriastemticas nas Cincias Sociais, em particular na Economia. Em meio a um contexto de expansofinanceira e produtiva do capital, vivemos em um perodo histrico onde os entrelaamentos entre aproduo e as finanas esto cada vez mais fortes e complexos e onde os movimentos financeirosespeculativos internacionais interferem diretamente na conduo da poltica e da economia dospases. Historicamente, as novas formas de poder econmico, a ascenso de novos atoresfinanceiros, a forma de apropriao do excedente econmico, o esgotamento da livre-concorrncia,a implantao de novas tcnicas de gesto e inovao, o aumento da escala produtiva e da

    concentrao industrial, dentre outros, requerem uma (re) leitura e um novo olhar interpretativosobre contribuies de autores clssicos como Hilferding, por exemplo. Para tentar captar algumasdessas contribuies luz de nossa realidade, este artigo tem por objetivo fazer uma (re) leitura doconceito de capital financeiro em Hilferding. O ponto de partida metodolgico a ser adotado acompreenso da dinmica existente entre as fases do ciclo do capital industrial envolvendo asetapas de produo e circulao.

    Palavras-chave: finanas, capital financeiro, capital fictcioKeywords:finance, financial capital, fictitious capitalClassificao JEL:B31, G0, P10

    Introduo

    Este artigo oriundo de um projeto de pesquisa iniciado h poucos meses outubro2011e tem por objetivo geral avaliar as contribuies tericas de Rudolf Hilferding em

    sua obra O Capital financeiropara a compreenso da dinmica financeira e especulativa

    do capitalismo contemporneo, destacando tambm suas relaes com a esfera

    real/produtiva.

    Apesar do pouco tempo de amadurecimento da leitura proposta, nossas idias e

    concepes comeam a se delinear quanto s ramificaes que a discusso sobre o capital

    financeiro trazem para a investigao cientfica e particularmente para a literaturaeconmica. Se por um lado, portanto, temos ainda a necessidade de um tempo maior de

    construo e desconstruo da temtica, por outro somos induzidos e no nos furtamos a

    sugerir aqui, mesmo que preliminarmente, algumas indicaes sobre uma obra que talvez

    no tenha recebido todo o crdito que merea ter, sobretudo no meio acadmico. Assim,

    optamos por indicar que este artigo est em sua parte I, parte esta que ser seguramente

    aperfeioada e mesmo repensada com o tempo.

    1Professor do Departamento de Economia e do Programa de Ps-Graduao em Poltica Social (PPGPS) daUniversidade Federal do Esprito Santo (UFES). Correio eletrnico:

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    Se talvez a obra de Hilferding no tenha recebido tanta ateno no meio acadmico,

    pelo menos em se tratando da literatura mais recente, verdade que a temtica foi tratada

    por autores renomados como Lnin, Rosa Luxemburgo, Bukharin, apenas para citar alguns

    deles, influenciando tambm o debate em Sweezy, Brunhoff e Harvey, por exemplo. Mas,

    nas ltimas dcadas do sculo XX, com o fim do acordo de Bretton Woods e a

    conseqente desregulamentao da esfera financeira mundial, nos parece que a discusso

    sobre o capital financeiro entrou em um senso comum, no sentido de sua utilizao

    conceitual se no errnea ao menos insuficiente, estando a nosso ver desconectada das

    reais transformaes do capitalismo atual.

    A publicao da obra O Capital financeiro de Rudolf Hilferding em 1910

    influenciou, portanto, vrios autores clssicos e sobretudo o debate acerca da constituio e

    compreenso do capitalismo ao longo do sculo XX. Aps 100 anos de sua publicao,

    essa influncia e a presena de conceitos chaves elaborados pelo referido autor ainda

    marcam profundamente o meio acadmico e tambm a imprensa especializada, falada e

    escrita.

    Os primeiros anos aps a publicao da obra de Hilferding foram representativos em

    termos de acontecimentos histricos que marcaram a histria da humanidade. Em 1914, a

    ecloso da Ia

    grande guerra mundial seguida da Revoluo Russa, em 1917, da grande criseem 1929 e da IIa guerra mundial em 1939. Todos estes fatos histricos mudaram a

    trajetria geopoltica global trazendo cena, por exemplo, o despertar da hegemonia norte-

    americana e o remodelamento das relaes entre as fraes do capital da esfera produtiva e

    financeira.

    Na produo, o crescimento e o conseqente amadurecimento das relaes

    corporativas das grandes unidades industriais criaram uma estrutura diferenciada em vrios

    setores da atividade econmica, j num contexto de transio de uma etapa concorrencialpara a concentrao capitalista. Ao mesmo tempo, na esfera da circulao, o capital

    financeiro continuava sua funo de financiamento da atividade produtiva, tendo tambm

    ao seu lado o carter intrnseco, mas ainda no hegemnico, da especulao financeira.

    Se a etapa capitalista concorrencial dava lugar gradativamente ao capitalismo

    monopolista, comeava tambm a emergir uma estrutura tcnica mais profissionalizada em

    relao aos antigos proprietrios, que tambm eram gerentes em suas unidades industriais,

    tanto na gesto produtiva quanto na financeira. o despertar das Grandes Empresas (GEs)

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    que acompanhava as transformaes de um capitalismo mais amadurecido e em

    consolidao das foras produtivas do trabalho.

    Foi em meio a algumas dessas mudanas que Hilferding esteve frente do ministrio

    das finanas da Alemanha em perodos extremamente turbulentos como foram os anos de

    1923 e 1929, levando a alguns autores como Marshall (2011) a destacar a sua influncia

    como homem poltico2. Ao mesmo tempo, a publicao de O Capital financeirode certa

    forma revolucionou a forma de pensar e utilizar o mtodo marxista para a compreenso da

    formao e das relaes entre a produo e as finanas no capitalismo de ento. As fontes

    do capital financeiro associadas ao financiamento da produo pelo capital bancrio, a

    capacidade de criao de crdito pelo sistema econmico, os ingressos de recursos via

    dinheiro de crdito, poupana das famlias, dentre outros, fazem parte, direta ou

    indiretamente, de suas anlises.

    J se passou 1 sculo desde sua publicao, mas muitas das idias de Hilferding

    continuam a fazer parte de nossa realidade econmica. Em meio a um contexto de crise

    capitalista e expanso financeira e produtiva do capital, vivemos um perodo histrico onde

    os entrelaamentos entre a produo e as finanas esto cada vez mais fortes e complexos e

    onde os movimentos financeiros especulativos interferem diretamente na conduo da

    poltica e da economia dos pases desenvolvidos e subdesenvolvidos.As novas formas de poder econmico, a ascenso de novos atores financeiros

    (fundos de penso, fundos especulativos, seguradoras etc), a forma de apropriao do

    excedente econmico, o esgotamento da livre-concorrncia, a implantao de novas

    tcnicas de gesto e inovao, o aumento da escala produtiva e da concentrao industrial,

    as crises recorrentes que se manifestam na esfera financeira, dentre outros, requerem uma

    (re) leitura e um novo olhar interpretativo sobre contribuies de autores clssicos como

    Hilferding, por exemplo.Muito criticado por sua viso reformista relacionada ao chamado capitalismo

    organizado3, Hilferding desenvolveu temas que consideramos fundamentais para a anlise

    2Um excelente artigo que mostra a trajetria poltica e intelectual de Hilferding o de Smaldone (1988).3 tambm durante a guerra que Hilferding deduz algumas concluses quanto ao destino imediato do

    capitalismo. Em 1915, formula a tese da possibilidade do advento de um capitalismo organizado sob adireo do sistema bancrio, que dizer das instituies que controlam e centralizam o processo de produosocial. Este capitalismo organizado, na qual os conglomerados se entrelaam com o Estado, torna-se para

    Hilferding o trampolim para a concretizao do princpio socialista da produo planificada, que dizer parauma transio ao socialismo sem uma exacerbao revolucionria da luta de classes. A possibilidade de umcontrole social da produo assim como a neutralidade do Estado na luta de classes, as duas idias centrais da

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    do capitalismo contemporneo e que d nome aos ttulos e captulos da primeira, segunda e

    terceira partes de sua obra: o tratamento do dinheiro, do crdito, da Sociedade Annima

    (SA), dos dividendos e do lucro do fundador, da bolsa de valores e a especulao, do

    capital financeiro e, finalmente, do capital fictcio.

    Naturalmente, todos estes assuntos fogem ao escopo de nossa anlise, apesar de suas

    conexes com a expanso desenfreada do dinheiro de crdito assumindo formas fictcias

    que transformam a natureza da acumulao. Discutiremos aqui somente um aspecto: o

    conceito de capital financeiro. Por isso, este artigo tem por objetivo principal fazer uma

    (re) leitura do conceito de capital financeiro em Hilferding.

    A importncia de O capital fi nanceir ode Hilferding

    Em primeiro lugar, a influncia de Hilferding sobre a obra de vrios autores,

    conservadores, reformistas, progressistas e revolucionrios por si s justifica a anlise da

    obra deste autor que atravessa os sculos e torna-se cada vez mais importante na literatura

    acadmica e jornalstica. Citaes e debates a partir de suas formulaes tericas

    apareceram, direta ou indiretamente, em autores clssicos como Marshall, Rosa

    Luxemburgo, Bukharin, Paul Sweezy, Kautsky, Lnin, Schumpeter, Behm-Bawerk,

    dentre outros, influenciando o olhar dos mesmos em temas relevantes como o

    imperialismo, o crdito e o sistema de crdito, as crises, a relao entre a economia real e

    financeira, dentre outras.

    Ao mesmo tempo, a relevncia do conceito de capital financeiro estabelecido por

    Hilferding, colocando na agenda da discusso a dimenso e interferncia das finanas no

    ciclo de acumulao capitalista, tambm foi uma importante contribuio num contexto

    onde Marx era, ou , equivocadamente, somente associado aos estudos das questes

    produtivas, fase esta do ciclo responsvel pela criao de valor. A adoo e disseminao

    do mtodo de anlise pautado na dinmica marxista da acumulao no contexto dasfinanas capitalistas devem-se, de certa forma, a Hilferding. Por isso, o entendimento deste

    conceito, sua importncia e ao mesmo tempo suas fragilidades para entender o capitalismo

    contemporneo devem ser levadas em considerao.

    Nesse nterim, a tradicional dicotomia entre o real x financeiro, tpico das teorias

    convencionais, foi tambm desmistificada por Hilferding medida que foram estabelecidas

    algumas dessas relaes que marcaram e continuam a marcar a trajetria do capitalismo.

    tese do capitalismo organizado, se encontram in nuceno O capital financeiro (Pierre, 2010: 41).(Onde NT= nossa traduo).

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    Evidentemente, o processo de transformao capitalista ao longo do sculo XX foi

    caracterizado por inmeras mudanas, tanto no seio do capital produtivo quanto nos

    movimentos financeiros localizados na fase da circulao. Novas formas de organizao da

    produo baseadas na flexibilidade produtiva e salarial, novas tcnicas de gesto, aumento

    da intensidade do trabalho, inovaes creditcias e bursteis, novas opes de

    investimentos financeiros, novos atores financeiros os investidores institucionais ,

    variaes na regulao estatal, processo de reestruturao produtiva, so algumas das

    inmeras formas que o capital se travestiu com intuito de se valorizar.

    Por outro lado, a crtica irrefutvel de Hilferding teoria neoclssica, via

    contraposio a livre-concorrncia, foi tambm uma contribuio importante em sua obra e

    que apareceu sob a forma da anlise dos preos monoplicos, da interferncia do capital

    financeiro na estrutura de mercado via oligopolizao, da lgica da concentrao e

    centralizao capitalista, dentre outros.

    As transformaes do sistema financeiro internacional e suas estreitas conexes e

    desconexes com a esfera real, produtiva, da economia so elementos que influenciam a

    dinmica de nossa sociedade, afetando variveis como a produtividade, o trabalho, os

    gastos sociais e a renda dos trabalhadores. Como disse Delilez (1970: 808), a anlise da

    reproduo e da acumulao do conjunto do capital implica que vamos entender asinterdependncias entre suas duas formas, ciclicamente ligadas, de capital produtivo e de

    capital monetrio. Essas formas conhecem movimentos quase autnomos o que requer o

    estudo das empresas industriais e dos bancos (NT).

    Portanto, os fundamentos e particularidades existentes nas fases do capital industrial,

    representados, por exemplo, pelas firmas e pelo sistema bancrio, devem ser desveladas,

    sob pena de no compreendermos a dinmica do capitalismo contemporneo. Por isso, os

    elementos tericos e concretos deixados por Hilferding tomam uma importncia inusitadamas devendo, ao mesmo tempo, ser (re) interpretado diante de uma nova configurao do

    capitalismo onde o processo de autonomizao das formas funcionais do capital d espao

    cada vez maior ao capital fictcio como eixo de sustentao e, contraditoriamente, de

    fragilidade sistmica.

    Estas poucas palavras at o momento no sugerem, por exemplo, que o conceito de

    capital financeiro forjado por Hilferding esteja equivocado, apesar das diversas

    interpretaes do mesmo que veremos a seguir. Mas a forma pela qual o mesmo usado

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    pela ampla maioria dos autores para caracterizar o capitalismo contemporneo, esta sim

    no se sustenta. E isso que faremos agora.

    Algumas vises sobre o conceito de capital financeiro

    O debate travado na primeira metade do sculo XX em torno da noo do capital

    financeiro rendeu importantes reflexes acerca das mutaes do capitalismo. Todos

    influenciados por Hilferding, alguns autores, citados anteriormente, enriqueceram a

    discusso na tentativa de entender as novas formas imperialistas e suas estratgias de

    acumulao, agora vinculadas estreitamente expanso financeira do capital. Com suas

    ressalvas e crticas, o debate travado permitiu uma melhor percepo de como se

    configurava o capitalismo de ento4.

    Sem querer propor uma tipologia das diferentes vises e interpretaes que

    permeiam o tema em questo, identificamos, apenas com o intuito didtico, trs vises ou

    leituras que tratam do conceito de capital financeiro. Apesar de apresentadas em separado

    acreditamos que elas esto interligadas, j que adotam de uma forma ou de outra os

    princpios bsicos descritos por Hilferding. Ao mesmo tempo de se registrar que, em um

    ou outro caso, suas interpretaes acrescentam novas contribuies ao debate. Vejamos.

    A viso tradicional adotada pela quase totalidade dos autores, tanto no meio

    acadmico quanto no jornalstico, adota o clssico conceito de capital financeiro a partir do

    conhecido e tradicional pargrafo de Hilferding (1985: 219) que diz:

    A dependncia da indstria com relao aos bancos , portanto,conseqncia das relaes de propriedade. Uma poro cada vez maiordo capital da indstria no pertence aos industriais que o aplicam.

    Dispem do capital somente mediante o banco, que perante elesrepresenta o proprietrio. Por outro lado, o banco deve imobilizar uma

    parte cada vez maior de seus capitais. Torna-se, assim, em proporescada vez maiores, um capitalista industrial. Chamo de capital financeiro

    o capital bancrio, portanto o capital em forma de dinheiro que, dessemodo, na realidade transformado em capital industrial. Mantmsempre a forma de dinheiro ante os proprietrios, aplicado por eles emforma de capital monetriode capital rendoso[portador de juros]esempre pode ser retirado por eles em forma de dinheiro. Mas, naverdade, a maior parte do capital investido dessa forma nos bancos transformado em capital industrial, produtivo (meios de produo e

    fora de trabalho) e imobilizado no processo de produo. Uma partecada vez maior do capital empregado na indstria capital financeiro,capital disposio dos bancos e, [empregado]pelos industriais.

    4Por questo de espao e objetivo deixaremos o resgate deste debate, bem como uma anlise interpretativado mesmo, para outro trabalho. Apenas indicaremos, resumidamente, a posio de alguns deles ao longo dotexto.

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    Alguns pontos desta definio de Hilferding merecem aqui comentrios. Em

    primeiro lugar, notamos a clara utilizao da palavra dependncia para caracterizar a

    relao entre a atividade industrial e a influncia direta dos bancos, toda ela capitaneada

    pelas mutaes nas relaes de propriedade com o surgimento das Sociedades Annimas

    (SAs) e a importncia da bolsa de valorespara as transaes dos ttulos de propriedade.

    Os bancos, na qualidade de credores e detentores do capital monetrio emprestado ao

    capital produtivo, controlam, conseqentemente, o dinheiro de crdito do sistema

    capitalista.

    Em segundo lugar, as afirmaes indicam a transformao do capital bancrio em

    capital produtivo. Ou seja, a relao de financiamento acontece diretamente dos bancos

    para a empresa e, em seguida, o controle monetrio pelas instituies bancrias lhe d

    direito sobre a propriedade das aes, configurando uma nova relao que substitui a posse

    dos ativos fixos da planta industrial. A associao entre as SAs e o movimento de compra

    e venda dos ttulos de propriedade (aes) nas bolsas de valores fornece ento as bases

    para se entender a expanso das grandes empresas, bem como suas fuses e aquisies.

    O financiamento bancrio do capital fixo, emergindo ao mesmo tempo com a

    transformao da propriedade familiar para as SAs como forma dominante das empresas

    capitalistas, fecha um crculo de dominao da empresa capitalista pelo capital bancrio,implicando no posicionamento dos banqueiros como proprietrios acionistas frente aos

    empresrios industriais.

    Hilferding (1985), em outra passagem, j no primeiro pargrafo do captulo XXI,

    conclui seu conceito reafirmando alguns de seus princpios5: O capital financeiro

    significa a uniformizao do capital. Os setores do capital industrial, comercial e

    bancrio antes separados encontram-se agora sob a direo comum das altas finanas, na

    qual esto reunidos, em estreita unio pessoal, os senhores da indstria e dos bancos (p.283). Corroborando as indicaes precedentes, notamos novamente em suas palavras o

    aspecto da dominao bancria e da juno monopolista pelo controle e expanso da

    produo e das finanas.

    5Durn (2011) destaca e analisa sucintamente seis princpios relevantes na obra de Hilferding: 1) o conceitode capital financeiro; 2) o papel do crdito, da taxas de juros e nvel de investimento; 3) a determinao dovalor da empresa industrial e acionria e a importncia estratgica desta ltima nos mercados financeiros; 4)

    a influncia do capital financeiro na estrutura de mercado ao limitar a livre-concorrncia e estimular aestrutura oligoplica; 5) o funcionamento do ciclo econmico e a crise; e finalmente, 6) a crise global daexportao de capital e a luta pelo espao econmico.

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    No que tange a monopolizao, Delilez (1970) d destaque ao monoplio

    industrial, entendido genericamente como a concentrao de capitais na produo

    (distribuio, estocagem, subcontrataes), e ao monoplio bancrio que controla a

    formao de capitais (centralizao dos lucros, arrecadao de depsitos e poupana etc),

    para o entendimento do capital financeiro. Para ele, seguindo a perspectiva hilferdiana, o

    capital financeiro se define como o sistema de inter-relaes e de interdependncia entre

    essas duas categorias. Ele tende a coordenar e a integrar os dois movimentos. Mas o que

    lhe confere suas caractersticas prprias que em seu seio se manifestam os

    desajustamentos e as divergncias entre essas duas categorias (p. 808) (NT).

    As palavras deste autor corroboram o que estamos aqui chamando de viso

    tradicional, j que as idias de Hilferding quanto associao e dependncia da indstria

    em relao aos bancos tornam-se palavras-chave, transformando radicalmente a

    propriedade capitalista pela emergncia das sociedades por aes e pela extino da livre

    concorrncia6. E a maioria dos autores, ao utilizar este conceito de Hilferding, acaba por

    adotar esta perspectiva tradicional de relao indstria x finanas7.

    Encontramos tambm vrios trabalhos com, digamos, uma viso intermediriaque

    ao mesmo tempo em que aceitam e utilizam do conceito anterior associam e fazem a crtica

    a outros aspectos desenvolvidos pelo prprio Hilferding ao longo de sua obra. Destacamosaqui alguns deles.

    Sweezy (1983), por exemplo, utiliza a definio tradicional de Hilferding adotando a

    perspectiva de fuso dos bancos com a indstria mas recusa a tese da tendncia histrica de

    dominao do capital bancrio, j que para ele o capital bancrio s pode exercer o poder

    de dominao em uma fase transitria e no permanente do desenvolvimento capitalista.

    6Hilferding (1985) apresenta no captulo XI o conceito de associao como a unio daquelas empresas

    capitalistas das quais uma fornece a matria-prima outra, e distinguimos essa unio, que se origina dadiversidade das taxas de lucro em distintos setores da indstria, da unio de empresas do mesmo ramoindustrial. Esta ltima nasce com o objetivo de aumentar a taxa de lucro nesse setor para alm de seu nvelinferior mdio, pela eliminao da concorrncia (p. 193). O autor apresenta duas formas de associao:cartis e trustes.7Encontramos tambm uma leitura institucionalista acerca do tema, leitura essa que, a nosso ver, demonstraum total desconhecimento da teoria marxista. Pineault (2002), por exemplo, aps indicar os traosfundamentais do conceito de capital financeiro, como o poder entre financistas e industriais e o grau deconcentrao do controle da propriedade entre os que acumulam as aes, descreve que em Hilferding adefinio de capital financeiro como bloco social o resultado de um longo desenvolvimento prvioanalisando as transformaes institucionais que acompanham e alimentam a financeirizao do processo

    social de acumulao. Neste sentido, o estudo do capital financeiro como bloco social possvel porqueteve, previamente, um estudo do capital financeiro como processo de acumulao e como conjunto de

    relaes sociais que perturbam e reestruturam as formas institucionais tambm fundamentais a economiacapitalista que so a moeda, o crdito assim como a propriedade. justamente este trabalho de anliseinstitucional que falta nas pesquisas marxistas e neomarxistas sobre o capital financeiro (p. 41-42).

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    certo que durante o perodo do prprio movimento de combinao, quando as

    sociedades annimas e as fuses esto em processo de formao, os bancos desfrutam

    uma posio estratgica que lhes permite influir sobre reas-chaves do sistema produtivo.

    O processo de combinao, porm, no pode continuar indefinidamente [...]. O capital

    bancrio, que j teve seus dias de glria, volta novamente a uma posio subsidiria em

    relao ao capital industrial, restabelecendo dessa forma a relao que existia antes do

    movimento de combinao (p. 205-206). Neste sentido, para Sweezy a base o capital

    industrial e no o capital bancrio como afirmou Hilferding.

    Posies intermedirias como esta so adotadas por outros autores. O prprio Lnin,

    apesar das crticas feitas a posio poltica de Hilferding e sobre a teoria do dinheiro, esta

    ltima extensamente trabalhada por Brunhoff, aceita o conceito de capital financeiro do

    mesmo, focalizando a discusso sobre o imperialismo mas a partir das categorias do capital

    financeiro. Ao tratar do imperialismo, Lnin afirma que o mesmo a fase monopolista do

    capitalismo. Esta definio englobaria o essencial, porque, por um lado, o capital

    financeiro o resultado da fuso do capital de alguns grandes bancos monopolistas com o

    capital de grupos monopolistas [...] (Lnin, 1979: 87-88). Apesar de fazer a crtica a

    Hilferding, tratando-o de antigo marxista, hoje companheiro de armas de Kautsky e um

    dos principais representantes da poltica burguesa, reformista, Lnin adota os princpiosgerais de seu conceito de capital financeiro, sugerindo que uma das caractersticas do

    imperialismo a fuso do capital bancrio e do capital industrial, e criao, com base

    nesse capital financeiro, de uma oligarquia financeira (p. 88). Por outro lado, afirma

    que esta definio [do capital financeiro] incompleta, na medida em que silencia um

    fato da mais alta importncia, a saber, a concentrao da produo e do capital, a tal ponto

    desenvolvida que ela d e j deu origem ao monoplio (Lnin, 1979: 46).

    Apesar dessas ponderaes, a influncia de Hilferding e a disseminao de seuconceito esto associadas a transformaes que deste modo, o sc. XX marca o ponto de

    partida de viragem em que o antigo capitalismo deu lugar ao novo, em que o domnio do

    capital financeiro substitui o domnio do capital em geral (Lnin, 1979: 45). Como em

    Hilferding, a indicao da tomada do poder pelos capitalistas financeiros muito clara

    tambm em todo o trabalho de Lnin, unificando e dominando o capitalismo de ento s

    novas formas financeiras.

    Evidentemente, Lnin utilizou certas categorias de Hilferding e desenvolveu outras,

    como a anlise da diviso territorial e suas estratgias de acumulao, incorporao da

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    oligarquia financeira e da importncia da exportao de capitais e unio de empresas

    monopolistas que partilharam o mundo. Assim, suas diferenas tambm esto postas.

    Harvey (1990) conclui dizendo que Lnin difere de Hilferding medida que aceita a

    identificao da esfera financeira com o capital nacional no caso das principais potncias

    imperialistas, assumindo uma concepo supranacional do circuito financeiro na sua

    anlise do capitalismo mundial. Segundo Harvey, a formulao de Lnin , por este olhar,

    mais ambgua que a de Hilferding.

    Da mesma forma, um interessante trabalho de Palloix (2006: 281) afirma, ao se

    utilizar do conceito tradicional de Hilferding, que o capital financeiro o momentopela

    qual o capital bancrio torna-se tambm capital industrial no curso do ciclo funcional do

    capital que , ao longo do canal conceitual, o capital fictcio (NT). Nota-se que o autor faz

    uso e referncia da associao, da juno do capital industrial e bancrio, e, ao mesmo

    tempo, destaca o capital fictcio como elo conceitual da anlise, algo que ainda no tinha

    aparecido mais diretamente entre os autores citados.

    Lapavitsas (2008), citando Hilferding, afirma que o conceito de capital financeiro

    representa uma mudana de poca induzida pela alterao na relao entre capital

    produtivo e bancrio (p. 31) (NT). Prossegue dizendo que como a escala de produo

    cresce, empresas industriais e bancos tornam-se cada vez mais concentrados e formamcartis monopolistas. Alm disso, o capital industrial precisa de volumes cada vez maiores

    de investimento em capital fixo, o que o torna muito dependente dos bancos para a

    aquisio do crdito. O resultado a criao do capital financeiro, isto , um amlgama do

    capital industrial e bancrio, com os bancos em ascenso. O capital financeiro domina a

    economia, restringindo progressivamente a concorrncia e organizando os negcios

    econmicos para servir aos seus interesses.

    Numa tentativa de compreenso da dinmica atual do capitalismo, o autor passa aavaliar se o processo de expanso financeira representa um retorno ao capital financeiro,

    tal qual apresentado por Hilferding. Sua resposta no e indica algumas razes que o

    conduz a destacar outros aspectos deste conceito8.

    8Dentre as quais: primeiro, os bancos e as grandes empresas industriais ou comerciais no se fundiram aolongo das ltimas dcadas e no existem provas de que os bancos detm um controle superior das relaescom a indstria. Ao contrrio, as grandes companhias tornaram-se mais distantes dos bancos e o sistemafinanceiro tornou-se mais autnomo. Segundo, o aumento desta autonomia transformou a natureza do sistema

    financeiro (aumento dos mercados financeiros abertos etc) de maneira incompatvel com a teoria do capitalfinanceiro. Terceiro, a teoria de Hilferding tem pouco a dizer sobre a interveno do Estado na esfera dafinana, mas o Estado fundamental para as operaes da finana contempornea. Quarto, a financeirizao

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    11

    Aps estas consideraes, nos parece que Lapavitsas j est aqui num momento

    avanado de interpretao do conceito de capital financeiro, relacionando-o ao momento

    atual do capitalismo. Por isso, ele o nega quando o utiliza para interpretar o capitalismo

    contemporneo e sugere outro conceito, o definanceirizao, que segundo ele no se reduz

    a dominao dos bancos sobre o capital industrial e comercial, j que d uma autonomia

    mais crescente para o setor financeiro.

    Finalmente, a viso alternativa, que avana no entendimento do conceito de capital

    financeiro de Hilferding, evoluindo e direcionando-o para alm da interpretao tradicional

    indicada anteriormente. At o presente em nossas leituras, dois autores trazem, a nosso ver,

    algo diferenciado nesta perspectiva: Pinto (1994, 1997) e Guilln (2011a, 2011b) 9.

    Faamos uma breve sntese de suas idias.

    Pinto (1994, 1997) apresenta, a nosso ver e at o presente momento, uma das leituras

    mais originais da obra de Hilferding. Correndo o risco de resumi-la indevidamente, seus

    argumentos centrais baseiam-se no fato de que a pertinncia do conceito de capital

    financeiro em Hilferding deve-se pautar na observao da transio vivida pelo capitalismo

    de fins do sculo XIX para uma fase de feio predominantemente financeira. Ou seja, o

    capitalismo tradicional, de base industrial e padro familiar, d lugar ao capitalismo

    financeiro, que rompe com as barreiras da acumulao e intensifica a racionalidademaximizadora e gerencial.

    Neste sentido, o capitalismo financeiro imps novos parmetros dinmica da

    acumulao privada, j que a materializao da riqueza sob a forma de ttulos altera os

    critrios de alocao dos recursos, diferente da fase industrial. No processo de

    transformao da forma de riqueza, do controle da propriedade sob a forma de ativos fixos

    para as aes, a posse e a manipulao dos ttulos que permitem acesso aos direitos de

    gesto sobre a atividade produtiva. Ento, para o autor, a riqueza privada se dissocia dosmeios de produo.

    A partir destes elementos, Pinto (1994) sugere que o conceito de capital financeiro

    foi utilizado ao longo dos anos de maneira superficial, beirando a vulgarizao, j que a

    noo de capital financeiro foi descaracterizada de seu sentido mais abrangente e reduzida

    veio acompanhada da queda do Acordo de Bretton Woods em 1971-1973 e o ouro tornou-se marginal nosistema monetrio internacional, com o dlar americano emergindo como ncora.9De certa forma Lapavitsas tambm avana ao fazer os comentrios acima. Mas, nos parece que, diferente da

    viso alternativa, ele no identifica no conceito de capital financeiro de Hilferding a possibilidade dacompreenso da dinmica especulativa da esfera financeira. Alm do mais, como j aqui indicamosanteriormente, nossa inteno no a de criar uma tipologia restrita e fechada.

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    a uma simples expresso do conjunto de recursos empregado pelo setor financeiro (p. 39).

    Referindo-se a Hobson e mesmo a autores marxistas que enfatizam o poder de dominao

    financeira da indstria capitalista pelos bancos, como na viso tradicional, Pinto sugere que

    no faz sentido em falar-se em dominao onde o capital bancrio compreendido como

    uma parte constitutiva do capital industrial. [...] o contraponto para uma possvel

    proeminncia do segmento financeiro seria a sua dimenso setorial. Ou seja, a submisso

    das atividades da indstria ou do comrcio de mercadorias ao setor de comrcio de

    dinheiro. Supondo-se que a idia de dominao tenha expresso econmica e possa

    portanto ser traduzida por uma rentabilidade superior vigente nos setores subordinados,

    seria necessrio superar mais uma objeo de carter geral (p. 65).

    Conforme Pinto, no mundo contemporneo a hiptese mais sensata e realista a de

    que as SAs aglutinam e organizam os ativos produtivos e bancrios em vrias frentes de

    atividade, se estendendo s atividades financeiras e no-financeiras. Lembra o autor que

    mesmo a concesso e controle do crdito pelos bancos no sinaliza uma exclusividade das

    instituies bancrias. Portanto, ao se definir esta fase como tendo sido a de consagrao

    do domnio dos banqueiros/financistas passa-se ao largo do que h de mais importante

    na transformao que se processou: a crescente flexibilidade (mobilidade e divisibilidade)

    que a riqueza privada passou a assumir (Pinto, 1994: 70).Tentando retirar o aspecto da dominao do centro do debate, o autor continua dando

    destaque a nova configurao da riqueza via instrumentos financeiros pois, segundo ele, o

    que diferencia esta fase do capitalismo que se inicia ao final do sculo XIX reside na

    magnitude relativa do que Hilferding denomina de capital financeiro. Ou seja, a partir do

    momento em que uma parte substantiva da riqueza privada constituda por ttulos

    negociveis e prontamente conversveis em dinheiro (p. 73). Para o autor, o sentido mais

    abstrato da contribuio de Hilferding passa pelo processo de financiamento dassociedades por aes, onde a viabilidade das transaes de compra e venda de ttulos via

    bolsas de valores possibilita a pronta possibilidade de reconverso do capital em

    dinheiro. Sem ela, inviabiliza-se a existncia do capital financeiro.

    Por esta forma, ao analisar a fuso do capital bancrio e industrial, sugere que reside

    aqui a anlise do seu movimento principal: a liquefao dos haveres capitalistas da

    riqueza privada. No se trata [...] de uma fuso entre banco e indstria, mas antes de uma

    combinao dos atributos dos capitais bancrio (liquidez) e industrial (valorizao)

    (Pinto, 1994: 75). Acrescenta que as leituras superficiais feitas por diversos autores

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    13

    acabaram por privilegiar peculiaridades histricas em contraposio a um entendimento

    mais abstrato e geral aqui apresentado, onde se pretende refletir a subordinao da riqueza

    privada aos mercados financeiros em geral (Pinto, 1997: 25). Desta forma, tal noo mais

    ampliada do capital financeiro parece muito mais adequada para compreender o que h

    de essencial no capitalismo moderno: a transformao da riqueza privada de haveres

    produtivos em ttulos negociveis atravs da expanso da grande sociedade por aes

    em substituio empresa familiar [...]. Nessa nova etapa no na firma (enquanto

    unidade produtiva) que se deve buscar o centro decisrio do processo de alocao dos

    recursos produtivos. no mercado financeiro onde se negociam os ttulos/aes que

    compem a maior parte da riqueza privada que se situa o fulcro das decises de

    investimento e, portanto, de acumulao de capital (Pinto, 1997: 24).

    Ao mesmo tempo, Guilln (2011a, 2011b) acrescenta outros elementos que, a nosso

    ver, so importantes tanto para uma melhor contextualizao do termo capital financeiro

    quanto para uma reflexo sobre o sentido de continuar ou no o utilizando como referncia

    para o entendimento do capitalismo contemporneo. Da mesma forma que Pinto, o autor

    diz que o debate sobre a dominao dos bancos sobre a indstria enganoso e obscurece o

    essencial da contribuio de Hilferding, impedindo uma leitura mais cuidadosa do prprio

    Hilferding que outorga a categoria de capital financeiro [...] um significado mais profundo(Guilln, 2011a: 2-3) (NT).

    Este significado mais profundo reflete dois elementos centrais: primeiro, que o

    capital financeiro o resultado do processo de concentrao e centralizao do capital e do

    surgimento das SAs e, segundo, que estas implicam no somente a separao da

    propriedade e o controle da empresa seno, mas mais importante, o controle por parte do

    capital financeiro da emisso e propriedade do capital fictcio, quer dizer aquele capital em

    forma de aes, debntures e qualquer tipo de ttulos financeiros que como brilhantementehavia intudo Marx duplica o capital real investido na produo (Guilln, 2011b: 49).

    Ao citar Hilferding, Guilln (2011b: 4) afirma que o capital financeiro um novo

    segmento do capital, no o velho capital bancrio a servio da indstria. O que surge

    desta fuso do capital bancrio e o capital industrial uma nova frao da burguesia: a

    oligarquia financeira que domina no somente as aes, seno que determina, tambm, o

    modus operandi da esfera produtiva da economia. Essa oligarquia financeira se apropria

    da mais valia social por mecanismos financeiros novos que antes no estavam em mos

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    das distintas fraes separadas do capital. por isso que a dicotomia entre economia real

    e economia financeira como esferas separadas da economia totalmente falsa.

    Mesmo que no tenha desenvolvido extensamente seus princpios, o que nos chamou

    mais ateno nas palavras anteriores, alm da idia da oligarquia financeira de Lnin, foi a

    referncia direta ao capital fictcio. Inclusive, no final de seu artigo, Guilln faz uma

    pequena relao entre os dividendos, o lucro de fundador e o capital fictcio ao afirmar, por

    um lado, que uma grande parcela de acionistas que recebe os dividendos tem por base o

    nvel da taxa de juros e por outro lado uma pequena frao dos mesmos tem acesso a

    emisso primria de capital fictcio, se apoderando de grandes lucros sobre a forma de

    lucro do fundador.

    Todas estas idias descritas pelos autores da viso alternativa trazem para o debate

    elementos novos, ricos e importantes, o que de certa forma os diferencia dos demais.

    Apesar disso, de se registrar que no achamos que as outras vises estejam equivocadas

    ou que sejam enganosas no que se refere interpretao do conceito de capital financeiro,

    exatamente devido ao carter ambguo da leitura de Hilferding. o que demonstraremos

    no prximo item.

    Avanando no debate sobre o capital financeiro

    Destacaremos neste item trs pontos que interferem na discusso envolvendo a

    definio do capital financeiro: i) a aparente ambigidade conceitual existente na obra de

    Hilferding; ii) a insuficincia da perspectiva dialtica de atrao e repulso entre as esferas

    real e financeira do capital, base da autonomizao das formas funcionais do capital, iii) e

    algumas breves observaes acerca das vises anteriormente descritas sobre o capital

    financeiro. Antes de tudo, achamos importante aqui registrar que, a nosso ver, no existe o

    conceito de capital financeiro em Marx, apesar de a traduo francesa de O Capital, a

    nica revisada pelo prprio autor, constar a expresso10.

    Sobre a ambigidade em H il ferding

    A despeito da enorme contribuio cientfica, a leitura de Hilferding sobre o conceito

    de capital financeiro nos parece, em diversos momentos, ambgua, aparentemente

    contraditria11. Expliquemos.

    10 Para Klagsbrunn (1992), a edio francesa do livro III dO Capital traduziu erroneamente o capital de

    comrcio de dinheiro (Geldhandlungskapital) como capital financeiro.11Ao avanarmos na leitura fomos percebendo que esta opinio tambm compartilhada por outros autores,como Harvey (1990), Pinto (1994), Germer (1995).

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    Tanto em Hilferding quanto nos autores que o discute, os indcios de existncia de

    ntima relao entre indstria e finanas so claros e desnecessrio aqui novamente

    resgat-los. Na verdade tal relacionamento faz parte mesmo do esteio de suas

    interpretaes, onde as esferas real e financeira se entrelaam, se entrecruzam com o

    desenvolvimento das SAs, com a monopolizao da indstria e o poder do controle

    monetrio pelos bancos, emprestadores creditcios de primeira instncia ao capital

    produtivo. Neste sentido, verifica-se a juno entre as duas fases do ciclo global do capital

    industrial, coexistindo com o intuito da expanso capitalista.

    Se por um lado no existe qualquer dvida em relao a estes indcios, por outro, na

    segunda parte de sua obra, intitulada A mobilizao do capital. O capital fictcio,o autor

    aborda temas que se relacionam mais aos aspectos financeiros, especulativos do capital,

    dando a impresso de que avanaria na definio inicial adotada (da viso tradicional). E

    os temas abordados, como a bolsa de valores e o capital fictcio, so categorias que, em

    Marx, mostram um carter mais mistificado e fetichista das mercadorias, do dinheiro e por

    conseqncia do capital, desenvolvidas em um contexto de autonomizao. Acontece que

    em Hilferding, os pontos relacionados estrutura e compreenso do capital fictcio so, a

    nosso ver, abordados sobretudo em sua forma concreta, no ficando claro que o carter

    fictcio do capital se descola da produo de valor, ratificando a autonomia e tambm adependncia da circulao em relao produo. O carter dialtico desta percepo, de

    atrao e repulso, nos parece secundrio, qui inexistente em seu texto.

    Mollo (1989), por exemplo, afirma que Rudolf Hilferding foi o autor que, na

    tradio marxista, analisou mais profundamente a idia do capital fictcio (p. 163) (NT);

    ao mesmo tempo, no mesmo pargrafo, a autora afirma que mesmo fiel a Marx,

    Hilferding no presta ateno a certos aspectos que consideramos importante quando se

    trata de analisar o capital fictcio, sendo um desses que Hilferding no relativiza aautonomia da circulao em relao produo (p. 209), afirmao esta central no nosso

    entendimento.

    Certamente Hilferding contribuiu decisivamente na utilizao da categoria capital

    fictcio de Marx, analisando corretamente o desenvolvimento do dinheiro de crdito. A

    primeira parte de seu livro, intitulada Dinheiro e Crdito, muito criticada na literatura

    econmica, j coloca no debate categorias fundamentais para a construo e

    desenvolvimento do capitalismo, sob a base do desenvolvimento do sistema de crdito. Ao

    analisar a substituio gradativa do dinheiro como moeda fiduciria e como o crdito se

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    apresenta de imediato como simples resultado da funo alterada do dinheiro como meio

    de pagamento (Hilferding, 1985: 85), o autor gradativamente vai fazendo aparecer o

    crdito de circulao em substituio ao dinheiro, o que poupa o dispendioso metal, visto

    significar a transferncia de mercadorias sem a interveno do dinheiro (p. 86). A prpria

    expanso da escala de reproduo e o conseqente aumento da produo implicam tambm

    a multiplicao da circulao, que possvel somente pelo volume de dinheiro creditcio.

    Os bancos neste sentido desempenham a funo vital de faz-los circular, alm da

    funo de compensao, crescendo assim, segundo o autor, a economia monetria j que os

    ttulos tornam-se meios de pagamento. O banqueiro substitui o crdito comercial pelo

    crdito bancrio trocando as notas promissrias por notas bancrias, ou seja, as duplicatas

    industriais e comerciais por suas prprias promissrias (Hilferding, 1985: 87).

    Mas, a evoluo no pra por a. A transformao do sistema bancrio, o

    aparecimento do crdito bancrio e a diminuio do capital monetrio a disposio dos

    capitalistas industriais aumentam a capacidade de circulao do dinheiro de crdito pelos

    bancos, rompendo as barreiras da produo. Assim, se o crdito de circulao exerce a

    funo de substitutivo de moeda corrente, o crdito que converte qualquer tipo de dinheiro

    ocioso (moeda corrente ou fiduciria) em capital monetrio ativo pode ser chamado de

    crdito de capital (ou de investimento) [...], afirma Hilferding (1985: 90).Todas estas rpidas passagens introduzem, neste e em outros captulos, categorias

    fundamentais da anlise marxista que caracterizam o dinheiro de crdito e o capital

    bancrio, multiplicando assim as formas ilusriase fictciasdo capital. Como afirma

    Marx (1985: 15), nesse sistema de crdito tudo se duplica e triplica e se transforma em

    mera quimera [...],algo mesmo fantasmagrico.

    Ao discutir a bolsa de valores, de mercadorias, o capital bancrio, a atividade

    emissora, Hilferding manteve-se atento para a negociao dos ttulos e aes como formade financiamento das SAs, como um mecanismo de captao de recursos para o

    financiamento da atividade produtiva, recurso este que tambm guarda relao direta com

    o movimento especulativo. Como o prprio autor diz, o ttulo em especulao est

    propriamente em contnua circulao na bolsa. um vaivm circular e no linear

    (Hilferding, 1985: 139).

    verdade tambm que Hilferding avana e aparentemente nega Marx ao tratar do

    conceito de lucro diferencial, conceito tal que indica ganhos financeiros advindos sem a

    contrapartida da produo da riqueza real, produtiva, da apropriao da mais-valia. Ao

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    fazer isto, o autor sugere mas ao mesmo tempo no desenvolve a desvinculao entre o real

    e o financeiro em um nvel mais reificado, fetichizado, do capital fictcio, sem um

    gradativo processo de compreenso da natureza autonomizada do valor e do capital a partir

    de suas formas funcionais.

    Ento, o que nos chama a ateno o fato de que ao mesmo tempo em que o autor

    trata em seus pargrafos conceituais da relao banco x indstria e seu aspecto de

    dominao, anuncia por outro a insero e discusso do capital fictcio como categoria

    central do capital financeiro, pelo menos no que tange especulao. Mas, ao que parece,

    esta ltima discusso no avana, no aparece em seu conceito, no anuncia o processo

    de autonomizao relativa da esfera da circulao, passo esse que consideramos

    importante, funcional e mesmo contraditrio para o capital.

    Com isso estamos querendo sugerir que o conceito no reflete, ou no tem a

    capacidade de refletir, elementos essenciais do debate que tem seus princpios associados

    diretamente ao capital fictcio. Resumindo: a aparente ambigidade reside ento no fato de

    que ao mesmo tempo em que se d destaque a relao banco x indstria, importante para a

    compreenso da dinmica financeira, por outro, ao indicar a temtica das finanas, no

    progride na compreenso do processo de substantivao do valor e de suas formas

    funcionais, onde notamos o carter autnomo que a esfera da circulao adquire no seio docapitalismo12.

    Esta imprecisonos levou, em determinado momento, a seguinte indagao: esta

    aparente ambigidade em Hilferding sugere em seus escritos uma insuficincia da teoria do

    valor de Marx? Talvez sim. Mas em funo do tempo de pesquisa ainda no temos

    condies de sustentar ou refutar tal hiptese. Temos, verdade, apenas intuies que

    necessitam ser amadurecidas13. Talvez a nfase de Hilferding na mutao da propriedade

    12Para Davis (2002), a especulao deve ser vista como uma sub-seo das finanas e o capital especulativocomo uma parte do capital da finana. Para ele, a especulao se desenvolve fora da finana e se difere docapital financeiro clssico de Hilferding. Este est destinado produo, porque investimento eminfraestrutura, matrias primas ou produo ou comrcio. O capital especulativo est somente implicado nocomrcio de contratos financeiros.13Citamos aqui algumas delas: i) sua interpretao acerca da teoria do dinheiro em Marx, bastante criticada

    por vrios autores; ii) o privilgio troca como ato de coeso social, de coerncia da anlise econmica ondeas pessoas so, assim, proprietrios particulares que, por meio do desenvolvimento da divis o do trabalho,so obrigados a entrar em relao uns com os outros. Esse ato [da troca] se concretiza na troca de seus

    produtos. a partir desse ato que se estabelece a coeso da sociedade atomizada pela propriedade privada epela diviso do trabalho (Hilferding, 1985: 33), afirmao esta que fragiliza a nosso ver o entendimento deque, ao contrrio, o valor-trabalho que est na essncia do princpio das relaes sociais e econmicas entre

    os indivduos, ele sim a causa, ele o motor de funcionamento da sociedade capitalista que se funda sob aforma da explorao da mercadoria fora de trabalho; iii) o no aparecimento do dinheiro de crditoassumindo formas cada vez mais desmaterializadas, fictcias, em total desconexo com a produo de riqueza

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    tenha colocado em segundo plano o carter contraditrio que as formas financeiras

    assumem ao se descolarem das atividades reais, processo este analisado pelo autor em sua

    forma mais concreta.

    Ento, a idia de associao, subordinao ou outra expressa pelas vises sobre o

    capital financeiro no suficiente para explicar a dinmica que muitas vezes atribuda ao

    seu conceito, sobretudo ao analisarmos o capitalismo contemporneo. Da forma como

    tratado, tal definio se aproxima daquele de capital portador de juros em Marx, que tem

    base real, produtiva, enquanto a dinmica fictcia, especulativa, exige a nosso ver o

    entendimento da natureza da desmaterializao do dinheiro sob a forma do capital fictcio,

    sustentando-se pela autonomizao das formas funcionais do capital.

    Finalmente, estas observaes crticas so feitas evidentemente no intuito da

    construo, levando sempre em considerao um aspecto fundamental j indicado aqui que

    o perodo histrico vivido pelo autor, que provavelmente dificultou a percepo desta

    dinmica. Pode ser, ento, que o problema no resida nas anlises de Hilferding, pela

    historicidade de seu conceito, mas sim na forma de utilizao do mesmo pelos autores

    contemporneos, que se apropriaram das idias originais do autor sem ao menos

    contextualiz-las.

    Sobre a autonomizao das formas funcionais do capital

    Mesmo no tendo por objetivo central uma exposio mais detalhada sobre tal

    temtica, indicaremos aqui alguns pontos que merecem ser levados em considerao e que

    podem contribuir para reforar nossas indicaes anteriores14. A partir das noes de Valor

    e Capital e das mutaes das formas do valor, o sistema capitalista se transforma com

    vistas sua auto-valorizao, valorizao do valor, alterando e acelerando as fases e a

    rotao do capital. O sentido do movimento passa a ser ento uma constante na

    constituio do sistema capitalista, fazendo-o evoluir, alterando-se e sempre buscando onovo. Ao passar de uma forma a outra, ao assumir formas diferenciadas de mercadoria, de

    dinheiro, revelando-se um ser que existe por si mesmo, o valor, num processo histrico e

    dialtico de desenvolvimento, se substantiva tornando-se valor-capital. nesta perspectiva

    de percorrer diferentes formas, diferentes movimentos, que devemos entender a

    real, com o capital produtivo, onde a substantivao do valor e a autonomizao das formas funcionais docapital elevam, contraditoriamente, a esfera da circulao a um certo grau de autonomia.14Para maiores detalhes, consultar Sabadini (2008) e Carcanholo e Sabadini (2011).

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    dinmica das diferentes fases da produo e da circulao do capital industrial, dando

    origem asformas funcionais do capital.

    Apresentadas inicialmente em partes isoladas no livro II de O Capital, a rotao e

    circulao do capital aparecem sob a forma inicial do capital monetrio, do capital

    produtivo e do capital mercadoria que apesar de parecem autnomas, representam a

    totalidade do ciclo global. Cada fase do ciclo do capital industrial (D1M D2) possui,

    naturalmente, funes especficas na tentativa da concretizao final do ato de compra e

    venda das mercadorias, onde o capitalista, seja na esfera da produo ou nas duas etapas da

    circulao, D1 e D2, atua diretamente. Ao passar de um momento onde um s capitalista

    ocupava as trs funes acima descritas para um outro onde cada capitalista se especializa

    em uma das formas funcionais, num contexto de diviso social do trabalho, se estabelece

    desta forma a autonomizao das formas funcionais do capital, representando mais

    fielmente o funcionamento de um sistema capitalista mais amadurecido.

    Assim, as formas iniciais do capital se alteram, progridem, evoluem para outras

    formas mais mistificadas, mais desenvolvidas do valor. Aparecem em cena o capital

    comercial, posteriormente o capital de comrcio de mercadorias, o capital de comrcio de

    dinheiro, o capital portador de juros e em seu grau mais extremo de desmaterializao, o

    capital fictcio.Neste processo, o capital fictcio, forma de capital que existe como um direito de

    uma renda futura antecipada sob a forma de ttulos cujo valor deriva de um fluxo de renda

    correspondente a um capital j realizado sob a qual se aplica uma taxa de juros, faz com

    que o proprietrio do capital tenha uma remunerao sem contrapartida em capital

    produtivo. Tal caracterstica dissimula ainda mais as conexes com o processo real de

    valorizao do capital, consolidando a imagem de um capital independente, que se valoriza

    por si mesmo nos mercados de compra e venda especulativos. Como diz Marx (1985), aofinal do processo no existe nenhum trao de relao com o processo real de valorizao

    do capital e a idia de um capital autnomo, capaz de criar valor por ele mesmo,

    intensificada.

    Aqui, a substantivao do valor-capital e a desmaterializao do dinheiro assumem

    um movimento ainda mais autonomizado na constituio do sistema monetrio e

    financeiro. Assim, o capital fictcio real e irreal ao mesmo tempo. Na aparncia, real em

    relao ao ato individual de cada capitalista, que recebe remunerao sob a forma de juros

    ou lucro; na essncia, na perspectiva da totalidade, real e fictcio ao mesmo tempo pois

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    no tem substncia do valor-trabalho, no ajuda a esfera da produo, se multiplicando a

    partir do movimento especulativo.

    Se autonomizando, ultrapassando em volume as fronteiras dos limites suportveis

    pela reproduo do capital industrial, o capital fictcio demonstra ter um movimento

    independente em relao ao capital industrial e, de certa forma, ele interfere na trajetria

    da acumulao capitalista. Neste sentido, a relao social torna-se mais mistificada,

    estando em um nvel mais elevado do carter fetichista das mercadorias, do dinheiro e

    como conseqncia do capital.

    Por estes traos, a complexificao e a autonomizao do esquema de reproduo

    financeira capitalista continuam em um grau ainda mais sofisticado que aquele ligado mais

    diretamente a esfera produtiva, como o capital portador de juros. Tomando-se por base

    estes elementos e fortalecendo as indicaes anteriores, acreditamos que a autonomia

    relativa da esfera financeira parece no ocupar um lugar de destaque em Hilferding, ao

    menos no sentido das mutaes das formas do valor, o que compromete parte constituinte

    de seu conceito de capital financeiro, sobretudo aquele que trata dos aspectos

    eminentemente financeiros do ciclo global do capital.

    Sobre as vises conceituais

    Quando observamos as caractersticas das vises conceituais aqui descritas, temos a

    presuno de que todas as trs esto corretas, cada uma sua forma, ao menos no sentido

    de abordarem aspectos que o prprio Hilferding descreveu, de uma maneira mais ou menos

    contundente. Naturalmente, cada uma busca explicaes a partir de seus parmetros, e da

    notamos certas divergncias ou nfases diferenciadas entre elas.

    De fato, no estamos totalmente de acordo com nenhuma delas e concordamos com

    todas elas ao mesmo tempo, pois cada uma, em funo da ambigidade aqui sugerida, se

    baseia nas afirmaes do prprio Hilferding. Assim, no adotamos e nem criamos umconceito de capital financeiro; preferimos a adoo das categorias descritas pelo prprio

    Marx que, no nosso entendimento, muito bem descreve as vrias formas de se entender ora

    as relaes de submisso, de convergncia e de autonomia entre as fases produtiva e da

    circulao capitalista. Para isso, as categorias de capital portador de juros e capital fictcio

    so esclarecedoras.

    Se concordamos com a viso tradicional, em funo da prpria definio de

    Hilferding onde o capital financeiro expressa a relao de dominao entre a finana e a

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    indstria, de se destacar, como as vises intermediria e alternativa fazem, que ela no

    frisa os aspectos especulativos, minimizando-os de certa forma.

    Nas vises intermediria e alternativa, mais eclticas por natureza e certamente mais

    abrangentes, analisam-se aspectos importantes como a nfase a no existncia de separao

    entre as esferas real e financeira do capital, bem como o argumento central da transio do

    capitalismo para uma fase de feio predominantemente financeira. Mas, ao mesmo tempo,

    a crtica feita a viso tradicional pelo seu reducionismo conceitual peca a nosso ver pois,

    como indicamos, vrias so as indicaes de Hilferding (1985: 219) de que o capital

    usurrio subordinado ao capital industrial.

    Ou seja, a concepo de que o capital bancrio deve ser entendido como parte do

    capital industrial, indicao correta, no inviabiliza a viso tradicional que define o capital

    financeiro pelo princpio da subordinao, sobretudo pelo real poder poltico e econmico

    que o capital bancrio exerce no ciclo global do capital. E tudo isto exatamente pelo fato

    da ambigidade presente na obra de Hilferding. Neste sentido, isso talvez no signifique

    dizer, ao contrrio do afirmado pelos autores, uma incompreenso por parte da viso

    tradicional do que seja o capital bancrio.

    No que se refere subordinao, a dominao econmica pelo capital bancrio, tal

    qual presente no debate, seu questionamento ultrapassa a comprovao de maiores taxas delucro setoriais, apesar de encontrarmos vrias pistas para sua comprovao emprica15.

    verdade que existem limites demonstrao emprica das taxas de lucro por cada fase do

    capital, sendo talvez mesmo impossvel de se indicar nmeros precisos de sua participao

    no capital total. Mas, isto no implica dizer a impossibilidade da demonstrao de sua

    evoluo, de uma tendncia, bem como do grau de crescimento relativo da esfera

    financeira ao longo das dcadas e tampouco que os indicadores financeiros no sinalizem

    para uma nova fase do capitalismo contemporneo.Evidentemente, a inteno no a de identificar um capitalista individual enquanto

    produtivo, comercial ou atuante na esfera financeira. Suas aes esto interligadas na busca

    incessante da lucratividade, independente da etapa do ciclo global. Na atual fase do

    15Pinto (1994: 66) sugere, por exemplo, que como aqui a noo de hegemonia ou dominao de um setorest restrita a sua expresso econmica mais concreta (rentabilidade substancialmente acima da mdia),

    pode-se afirmar que no h, at onde se saiba, qualquer evidncia emprica que permita sustentar essahiptese. Apesar desta afirmao datar de meados da dcada de 90, perodo ainda de crescimento dosmovimentos financeiros, encontramos informaes qualitativas e quantitativas recentes sobre o peso setorial

    relativo da esfera financeira do capital, bem como a evoluo e diferena entre a taxa de lucro industrial ebancria, em vrios autores como Dumnil e Lvy (2004), Husson (2006, 2007), Morin (2006), Gonalves(2006), Marquetti et all (2007) e Sabadini (2008).

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    capitalismo contemporneo observamos uma expanso sem precedente do circuito

    financeiro, circuito este que ao mesmo tempo pressiona e absorve riqueza da produo e

    conseqentemente do trabalho para, em grande medida, transferi-la para remunerar a

    especulao financeira.

    Finalmente, temos tambm a sensao de que, independente das vises, a relao

    com o investimento produtivo est dada, faz parte, pertence ao conceito de capital

    financeiro de Hilferding, o que para ns ento se aproxima do capital portador de juros de

    Marx.

    Consideraes finais

    Cada um pode construir um conceito de acordo com suas convices e

    interpretaes. A discusso apresentada aqui parece no ser diferente. A partir de uma base

    geral fornecida por Hilferding, leituras foram surgindo ao longo do tempo.

    A etimologia da palavra financeiro muito clara: o que se diz referente a finanas.

    Isto por si s suficiente para caracterizar o conceito de capital financeiro em qualquer

    aspecto relacionado aos movimentos financeiros ao redor do mundo, quer sejam

    especulativos ou no, quer estejam ligados ou no a produo. Neste sentido, o termo pode

    representar genericamente a finana contempornea, o mercado financeiro, a relao banco

    x indstria, os investidores institucionais (fundos de penso, especulativos etc). Porm, o

    rigor terico nos induziu a melhor qualificar o debate em torno desta definio que

    utilizada, mesmo nos meios acadmicos, de maneira indiscriminada para caracterizar o

    capitalismo contemporneo.

    E para isso, impossvel sem passar pela leitura de Hilferding que trata da influncia

    do capital financeiro em vrias temticas (oligopolizao, ciclos econmicos, crise, etc)

    que continuam e vo continuar a fazer parte das anlises econmicas. Sua importncia na

    leitura econmica indiscutvel, sobretudo quanto ao desdobramento das categoriascentrais discutidas no volume I dO Capitalque se concretizam no livro III, colocando no

    centro do debate, e em pleno fim de sculo XIX e incio do sculo XX, categorias

    marxistas que ainda hoje restam desconhecidas por boa parte dos pesquisadores e que aqui

    foram apresentadas, mesmo que preliminarmente.

    Nosso objetivo no era aqui forjar outro conceito para incorpor-lo aos demais e

    muito menos simplesmente fazer a crtica sem as mediaes histricas e tericas

    necessrias. Cumpre apreender que talvez mais importante que isto seja a absoro de suascontribuies para compreender o capitalismo contemporneo, se apropriando de seus

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    pontos positivos e negativos e revalorizando seus aportes para entender a dinmica

    capitalista atual.

    Hilferding estava totalmente correto ao verificar a face financeira do capitalismo de

    sua poca. O que ainda estava por vir, e que certamente o perodo histrico no

    proporcionou a nosso autor vos ainda maiores, foi antever o crescimento da dimenso e

    autonomia da esfera financeira do capital. Adicionalmente, a ambigidade de seu conceito

    de capital financeiro gerou interpretaes diferenciadas do mesmo, o que nos sugeriu

    afirmar que todas as vises aqui apresentadas so corretas, no significando dizer

    suficientes para entender a dinmica do capitalismo contemporneo.

    Por isso, finalizamos com a sensao de que o conceito de capital financeiro, apesar

    de suas controvrsias, no nos parece ser a maior contribuio de Hilferding. Mas, outras

    indicaes originais, como o lucro do fundador, por exemplo, parecem sinalizar para

    aspectos relevantes da atual fase capitalista. Mas, so assuntos que ficam, quem sabe, para

    outros trabalhos.

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